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Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 10 N. 19, INVERNO 2013 313 RAFAEL PAES HENRIQUES * Recebido em mar. 2013 Aprovado em jun. 2013 A ESSÊNCIA DA TÉCNICA EM HEIDEGGER RESUMO Para o pensamento grego, a téchne é uma forma de produção ligada a um saber-fazer desde o qual tudo se articula numa determinada orientação. Nessa perspectiva, técnica é poiésis, cujo modo de condução deve obedecer à natureza para levar algo à vigência. Com a técnica moderna, surgiu a crença de que o modo de articulação deve ser determinado pelo homem. Nessa forma de desencobrimento, procura-se conhecer a natureza, não para se ajustar às suas necessidades, mas para dominá-la. Desde tecnologia, o homem provoca e desafia a realidade o tempo inteiro e é a natureza quem se ajusta as suas vontades. PALAVRAS-CHAVE Técnica. Tecnologia. Dis-posição. Heidegger. * Doutor em Filosofia pela UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, professor Adjunto I do Departamento de Comunicação Social da UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Trabalha com os seguintes temas: Tecnologia; Metafísica; Conhecimento e Análise do Discurso.

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RAFAEL PAES HENRIQUES *

Recebido em mar. 2013Aprovado em jun. 2013

A ESSÊNCIA DA TÉCNICA EM HEIDEGGER

RESUMO

Para o pensamento grego, a téchne é uma forma deprodução ligada a um saber-fazer desde o qual tudo searticula numa determinada orientação. Nessaperspectiva, técnica é poiésis, cujo modo de conduçãodeve obedecer à natureza para levar algo à vigência.Com a técnica moderna, surgiu a crença de que o modode articulação deve ser determinado pelo homem.Nessa forma de desencobrimento, procura-se conhecera natureza, não para se ajustar às suas necessidades,mas para dominá-la. Desde tecnologia, o homemprovoca e desafia a realidade o tempo inteiro e é anatureza quem se ajusta as suas vontades.

PALAVRAS-CHAVE

Técnica. Tecnologia. Dis-posição. Heidegger.

* Doutor em Filosofia pela UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO,professor Adjunto I do Departamento de Comunicação Socialda UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Trabalha com osseguintes temas: Tecnologia; Metafísica; Conhecimento eAnálise do Discurso.

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44. ABSTRACT

For the Greek thought, téchne is a form of productionconnected to a know-how according to whicheverything is coordinated in a given orientation. Underthat light, technique is poiésis, whose mode ofconduction must follow nature in order to takesomething to terms. Modern technique brought aboutthe belief that the mode of articulation must bedetermined by men. In this form of unveiling, one seeksto know nature not in order to be adjusted to itsnecessities, but rather to dominate it. After technology,men provokes and challenges reality all the time, andit is nature that must adjust itself to his will.

KEYWORDS

Technique. Technology. Dis-position. Heidegger.

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Consequentemente, basta descobrir essas leisda natureza que o homem não terá mais deresponder pelos seus atos, e viver, para ele, seráextremamente fácil. Evidentemente todas as açõeshumanas serão calculadas matematicamente,de acordo com essas leis, numa espécie de tábuade logaritmos [...].

Fiódor Dostoiévski

1. INTRODUÇÃO

Os sinais estão por todos os lados e evidenciam o ponto em que estamos. A crescente hegemonia e

valorização da tecnologia são cada vez mais visíveis,se manifestando em todas as esferas da experiênciacontemporânea. O homem se informa, se comunica,se diverte e se distrai por meio de instrumentostecnológicos: o jornal impresso, o rádio, a televisão, ocinema e a internet, são exemplos de produtosdisponíveis para essas finalidades. O mercado deconsumo nos convoca o tempo inteiro para estarmossempre mais “atualizados”. Numa velocidadeprogressivamente maior, “novas novidades”, gadgetseletrônicos com diversas aplicações são lançados comoforma de nos intimar a também “fazer parte”. Atémesmo as relações pessoais podem, sem embargo, serinstauradas desde a mediação técnica, seja nascomunidades virtuais, seja em conversas online.

A própria atividade artística, que sempre pertenceuao âmbito da técnica, como saber fazer, também estáinserida nesse mesmo contexto, no qual tudo, inclusive oque sempre foi técnico, se torna tecnológico. Poemaspodem ser gerados automaticamente por meio de

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44. softwares de computador; instalações artísticas criam

obras audiovisuais com recursos interativos, possíveisgraças ao desenvolvimento de dispositivos tecnológicos;shows musicais são realizados sem a presença dosartistas, como é o caso do uso de hologramas ou datransmissão ao vivo, e simultânea, para várias salas decinema em diversas cidades diferentes.

Até mesmo o progresso da ciência se apresentacomo algo que depende intimamente dos avanços datecnologia. Isso quer dizer que ciência e técnica vivem,neste princípio de século XXI, uma relação deinterdependência nunca antes experimentada. E háainda um aspecto curioso e que é bastante sintomáticode nossa época: quanto mais aplicada é a investigaçãoe quanto mais indispensáveis são as ferramentas einstrumentos tecnológicos para a sua realização, maisvalorizada e importante, mais “de ponta” ela se torna. Éo caso das pesquisas em nanotecnologia, neurociênciase em cibernética, por exemplo. Como consequênciadesse parâmetro, em nosso tempo, a tecnologia é amelhor régua, a medida mais certa e segura para adeterminação da realidade do real.

No campo do trabalho e da produção, atecnologia também se faz evidente. Toda e qualqueratividade, mesmo as mais simples, hoje são executadasatravés de aparelhos e dispositivos tecnológicos. Provadisso são os anúncios de jornal que oferecem vagas deporteiro, cujo pré-requisito é o domínio de noções deinformática. É que a identificação dos visitantes demuitos edifícios comerciais é realizada por meio deum sistema informático que dever ser operado pelo

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funcionário. Difícil imaginar uma tarefa ou ocupaçãoque, atualmente, não faça uso de máquinas e aparelhostécnicos, sendo o computador a principal ferramentade trabalho para uma infinidade de profissões.

Isso porque, na era da técnica, o computador éa máquina das máquinas. Computador é justamente odispositivo capaz de computar, isto é, de contar,calcular a realidade de maneira precisa. É interessantenotar que em espanhol e francês, duas outras línguasneolatinas, computador é ordenador e que, apesar dadiferença, a palavra está apontando exatamente paraa execução da mesma função. Computar é enumerar,calcular, mas é também determinar antecipadamente,ou seja, é aquilo com o que conto, no sentido de ser oque posso contar previamente. E ordenador significa oaparelho que põe em ordem, que organiza, ou seja, é aferramenta desde a qual se estrutura tudo, porantecipação e a partir de uma orientação prévia.

Desse modo, os instrumentos tecnológicos, cujomodelo paradigmático é o computador/ordenador,estão sempre nos convocando a realizar as maisvariadas atividades, em todas as esferas da experiênciacontemporânea. Só que a urgência de se pensarverdadeiramente a tecnologia e a sua crescenteonipresença não torna a tarefa mais simples ouevidente, mas o contrário. Seja no âmbito dainformação, do consumo, da comunicação, doentretenimento, da arte, da ciência ou do trabalho,todos os afazeres, que se medem desde a medida dasmáquinas e aparelhos tecnológicos, parecem nosrequisitar sempre do mesmo modo e desde a mesma

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44. medida. Resta saber que encaminhamento é esse, qual

é o modo de ser da tecnologia?

Talvez aquilo que procuramos com essa perguntase encontre muito próximo; tão próximo que muitofacilmente não o vemos. Porque o caminho para oque está próximo é para nós, homens, sempre o maislongo e, por isso, o mais difícil. Este caminho é umcaminho de reflexão (HEIDEGGER, s/d., p. 22-23).

Sendo assim, é sempre indicado dar um passoatrás, se afastar um pouco na tentativa de enxergarmelhor aquilo com o que estamos, o tempo todo, lidando.É que, na maioria das vezes, a proximidade nos fazperder o “foco”. Os diversos dispositivos e ferramentastecnológicas estão tão perto e tão presentes em nossodia-a-dia que é muito fácil se perder em análises que selimitam a defender ou condenar o uso dessesinstrumentos. De um lado, a tecnologia é compreendidacomo um mal a se evitar, uma vez que é fonte para aalienação e a escravização do homem, pela máquina: éa tecnofobia em seu grau mais extremo, que enxerganos aparelhos técnicos a fonte de todos os nossosproblemas. Em uma outra perspectiva de análise, osdispositivos tecnológicos são instrumentos libertadoresdo homem, já que são capazes de aliviar os fardos denossa existência, reduzindo o trabalho e o sofrimento,aumentando o bem-estar e até mesmo expandindo oshorizontes da vida humana. Tem-se, assim, a tecnofiliacaracterizada por uma intensa apologia da máquina.

O passo atrás visa, justamente, à superaçãodessa falsa dicotomia. Na verdade, tanto um, comooutro viés, olham para as diversas manifestações da

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técnica moderna na preocupação de sua dominação econtrole pelo homem. Dessa maneira, até mesmo essasduas perspectivas de análise já são o resultado do modode funcionamento da tecnologia. São horizontestécnicos, isto é, compreensões da tecnologia que jáoperam desde o encaminhamento da técnica. Ao invésde olhar para as ferramentas e suas aplicações, nohorizonte do seu apoderamento, o esforço dainvestigação deve ser o de refletir sobre a tecnologia,buscar a medida de sua ação, isto é:

[...] pensar o sentido do acontecimento subjacenteà nossa era técnica: o fenômeno da dominação damáquina ou da mecanização sistemática da vida.Na promoção e intensificação deste processo vai serealizando, isto é, se essencializando, a era técnicaou tecnicismo contemporâneo, o qual se faz e seestrutura como tecnologia (FOGEL, 1998, p. 92).

Somente nesse encaminhamento, a tecnologiapode se revelar em seu modo próprio de ser. Jáindicamos que, apesar de suas mais variadas aplicações,a tecnologia trabalha sempre desde uma espécie de“padrão”, nos convoca de um certo modo. O modelocomputar/ordenar evoca e coloca em funcionamentoum certo ser/agir. E é exatamente na promoção eintensificação dessa mesma origem que surge a estranha,fascinante e perturbadora força da técnica moderna.

2. O SENTIDO DA TÉCNICA

Conferência pronunciada por Heidegger no dia18 de novembro de 1953, no Auditorium Maximum daEscola Técnica Superior de Munique, e publicada pela

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44. primeira vez no ano seguinte, A questão da técnica

transformou-se rapidamente num texto de vitalimportância para todos aqueles que se ocupam deinvestigar a técnica moderna. Nesse trabalho, o autorbusca pensar o sentido (Besinnung) da atualidade e, porisso, desenvolve uma nova maneira de questionar o queé a técnica e as razões para a sua corrente onipresença.Entretanto essa nova forma de se perguntar pela técnicanão tem nada a ver com um modo original no sentidode ser uma grande novidade ou uma abordagem que seocupa de investigar os lançamentos mais recentes daindústria tecnológica. Na verdade, é justamente ocontrário: o questionamento heideggeriano é novoporque é originário, isto é, se esforça para retomar, pararepetir, a origem e, por isso, não poderia ser nada demais antigo, de mais arcaico.

Isso quer dizer que, no lugar de concentrar suaanálise no que está feito, ou seja, em vez de olhar paraos diversos usos, aplicação ou dispositivos tecnológicose seus acabamentos, todo o empenho de Heideggervai no sentido, não de objetivar a técnica,transformando-a em uma coisa como outra qualquer,mas de procurar compreender justamente seu vigorde realização. É que, nessa perspectiva, o feito, dealguma forma esconde, justamente, a força do fazer.O que move e promove o que está realizado não é nadade claro e evidente, mas pode ser entrevisto, em todae qualquer efetivação. Há sempre uma insinuação dadinâmica realizadora, em tudo aquilo que está sendo;são acenos, sinais – para quem pode ver – que devemser perseguidos, pela investigação filosófica.

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Dessa maneira, na conferência A questão da técnica,o questionamento apresentado por Heidegger segue omesmo encaminhamento adotado em outros trabalhosde sua vasta obra, e se ocupa de investigar a essência(Wesen) da técnica moderna. Para não sugerir justamenteo contrário do modo de investigação não-objetivante queapontamos anteriormente, a tradução de Wesen poressência precisa sempre vir acompanhada do seguintealerta: quando faz uso do termo, o filósofo não querapontar para uma natureza substancial da técnica, ou doque quer que seja, mas sim para uma certa disposição,uma força ou vigor fundamentais que a tecnologiacarrega. Para fazer uma diferenciação e tentar evitar essaconotação essencialista de Wesen, talvez fosse melhorutilizá-la com a primeira letra em maiúsculo (Essência)como faz Carneiro Leão, na tradução de Über deHumanismus (Sobre o humanismo). “Esse substantivo nãodesigna no texto essência, natureza, qüididade, mas aestrutura em que vigora, i.é., desenvolve a força de seuvigor, agir” (LEÃO, Emmanuel Carneiro. In: HEIDEGGER,Martin. Sobre o humanismo, 2009a, 3. ed., p. 23).

Outra solução foi a adotada pela tradutora daedição brasileira de Unterwegs zur Sprache (A caminhoda Linguagem), Márcia Sá Cavalcante Schuback, que,além de essência, também utiliza as expressões modo deser, vigor.

A p a l a v r a a l e m ã W e s e n s i g n i f i c acomumente essência. Ao longo de sua obra e muitoclaramente no presente volume, Heidegger “destrói”o sentido de essência, devolvendo-o paraa experiência de realizar o modo de ser, de

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44. vigorar, expressa num antigo verbo alemão wesen,

vigir, vigorar. Para acompanhar no texto atransformação do sentido eminentemente metafísicode essência para a experiência da simplicidade dovigor, [...] a tradução usou uma espécie de glissandosemântico entre essência, modo de ser e vigor. [grifosnossos] (SCHUBACK, Márcia, In: HEIDEGGER, Acaminho da Linguagem, 4. ed., 2008, p. 8).

O fundamental aqui é esclarecer que, no sentidoheideggeriano, Wesen deve ser entendida como umavigência, como uma espécie de movimento processualde essencialização. É preciso ter em conta que se querreforçar a conotação verbal (capaz de ação) daexpressão, retirando o seu sentido de substantivo, queseria algo pronto e acabado. Sendo assim, em vez deum miolo fixo e imutável, essência aqui está apontandopara aquilo que faz com que a técnica moderna venhaa ser isso que ela é, da forma como ela é. Ou seja,Wesen é uma dinâmica de realização.

E o que esta compreensão diz é que o conceito deessência, em Heidegger, afasta expressamente anoção de quididade, e em seu lugar insere aquelaproveniente da fenomenologia. Por essência passa ase entender os modos com que uma coisa vempresentar-se ao homem; isto significa, na verdade,que uma mesma coisa pode possuir, conforme umadeterminada época, diferentes essências, bastandopara isso que cada qual se manifeste, em um dadomomento, diversamente do modo como outrora semanifestou (OLIVEIRA, 2006, p. 106).

Diante da dificuldade de traduzir o termo e paraevitar mal-entendidos e ambiguidades, neste artigo

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optamos por utilizar mais de uma palavra ou expressãoque, em conjunto, dão conta de indicar, com maisprecisão, o que “essência” quer dizer. Neste texto,Wesen vai aparecer como vigor, força de realização,modo de ser ou mesmo, por vezes, Essência, com aprimeira letra em maiúsculo.

Pois quem investiga a essência de alguma coisaquer saber aquilo que ela é; e mais que isso: quer sabero que algo, realmente, é. Isso quer dizer que, apesar depodermos identificar diversas diferenças na realidade,não é nas características acidentais que devemos focara análise, mas sim naquilo que é seu fundamento, suarazão de ser. Desse modo, mesmo que se possafacilmente perceber que os cavalos, por exemplo, podemser pequenos ou grandes, fortes, pangarés, de pêlo bege,branco ou preto, ou portadores de muitas outrascaracterísticas, o que se quer saber é o que faz com queo cavalo seja cavalo, e que o faz da forma como o cavaloé. Expresso em outros termos, o esforço deve ser o dedescobrir a cavalidade do cavalo, ou seja, sua natureza.

Esclarecemos anteriormente que Heideggerinvestiga a essência da técnica. E que, na verdade, suaabordagem não tem nada de essencialista, de maneiraque o mais indicado é mudar a expressão utilizada paraexplicitar que o filósofo quer, na verdade, pensar ovigor da técnica moderna, quer encontrar a sua forçade realização. É por isso que, apesar de Heideggerquerer saber o que é a técnica moderna e investigar oque faz com que ela seja aquilo que é, e da forma comoela é, seu horizonte se distancia bastante dasperspectivas instrumental ou antropológica, para as

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44. quais a técnica é, respectivamente, um meio para um

determinado fim e uma atividade do homem. Não queessas sentenças estejam erradas. A técnica é, de fato,uma ferramenta e uma atividade humanas. Entretanto,para estar correta, esse tipo de determinaçãoinstrumental da técnica moderna não precisa descobrira Essência do que se realiza. Desse modo, para ofilósofo, o correto e exato ainda não é o verdadeiro, e,por isso, é preciso, então, voltar a investigação para ocerne do correto e indagar seu direito a existência.

Se a concepção instrumental da técnica adetermina como sendo um meio para um determinadofim, o caminho do pensamento deve, então, partir dapergunta pelo modo de funcionamento de fim e meio. Édessa maneira que a pesquisa filosófica pode, desde aproblematização do correto, alcançar o que acimachamamos de verdadeiro – ideia que será melhordesenvolvida posteriormente. Tomemos como certo queum meio é aquilo por meio do que se faz algo para seobter alguma coisa, para se alcançar um determinadofim. Só que a estrutura meio-fim não é tão linear eevidente como distraidamente se pode supor. Nessarelação, o fim não é sempre o último, não é todas asvezes a consequência, visto que também pode ser aprópria causa, o fundamento que determina o tipo demeio utilizado para se atingir um certo fim. Se pretendocortar um pedaço de carne, por exemplo, devo usar umafaca de metal e com serra, não uma colher ou uma facasem serra ou de madeira. Nesse caso, a carne cortada(um efeito pretendido) é, na verdade, a causa (a razão)que define a escolha (não-contingente) do meio. Sendo

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assim, “onde se perseguem fins, aplicam-se meios, ondereina a instrumentalidade, aí também impera acausalidade” (HEIDEGGER, 2010, p. 13).

A investigação da verdade de fim e meio pertence,desse modo, ao domínio da causalidade. Compreendera técnica passa pela questão de entender a relação causa-consequência. Da doutrina das quatro causas, queremonta a Aristóteles, Heidegger destaca que, para aatividade técnica, a causa finalis é a mais importante detodas. Nela, o fim é identificado como sendo aquilo quedetermina a forma e a matéria do que é produzido. Issoquer dizer que, no exemplo acima, a faca deve seu modode ser, não somente ao metal do qual ela é feita, ou aoperfil (faca com serra) no qual o metal é forjado, massobretudo a uma terceira causa que reúne as outras duasde maneira prévia e antecipada: a sua finalidade, isto é,faca para cortar carne. “Com este fim, porém, o utensílionão termina ou deixa de ser, mas começa a ser o queserá depois de pronto. É, portanto, o que finaliza, nosentido de levar a plenitude, o que, em grego se dizcom a palavra telos 1” (HEIDEGGER, 2010, p. 14).

A esses três modos de responder e de dever-serdos utensílios, a saber, causa materialis (de que é feito),causa formalis (sua forma ou figura) e causa finalis (paraqual fim), devemos acrescentar a causa efficiens, isto é,o ferreiro que produz o efeito, a faca pronta e acabada.As quatro causas pertencem uma a outra, numa relação

1 Apesar de, no original, o termo estar grafado no alfabetogrego, optamos pela sua transliteração para caracteres latinos.O mesmo procedimento foi adotado em todas as demaiscitações deste artigo.

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44. de interdependência mútua, sendo que, na experiência

do fazer técnico, o que é ontologicamente primeiro é asua unidade de coerência: para uma determinado fazer.É ele que articula e conduz as outras três causas.

Quem faz alguma coisa precisa se submeter aqui ànatureza daquilo que é feito e a uma série deprocedimentos determinados, para que possaproduzir algo realmente condizente com a finalidadede produção. Sem uma tal submissão, o produtonunca se mostraria ao final como aquilo que elerealmente é (CASANOVA, 2010, p. 224).

Isso significa que não está na vontade ou noarbítrio do ferreiro fazer uma faca com o material quelhe vier na cabeça, ou na forma que bem entender.Não dá para fazer uma faca de papel e com o perfil deum tijolo, por exemplo, sob pena de o utensílio ouferramenta não se finalizarem, isto é, não serem levadosa sua plenitude, não serem aquilo que são. Na dimensãodo artesanato, faca para cortar carne é de metal e possuiserras de modo a cumprir adequadamente com suafunção. Na sua lida diária, o ferreiro “apenas” escuta eobedece ao modo de ser daquilo que produz. Comocausa efficiens, o ferreiro, ou qualquer que seja oartesão, é sim um elemento fundamental no movimentode trazer algo à vigência, mas isso não significa queele seja o único responsável pelo que se realiza. Aocontrário, o artesão atua como uma espécie deintermediário que sintetiza as outras três causas, deacordo com o que é próprio a cada modo de ser.

No sentido da antiguidade grega, é na dimensãoda produção (poiésis) que esses modos de responder e

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dever-ser se articulam para fazer com que algo venhaa viger, em sua vigência. Somente na atividade de fazervir a ser, aquilo que ainda não é, que os quatro modosde deixar-viger os entes são regidos e atravessados, demaneira uniforme, por um certo modo de condução.“Platão nos diz o que é essa condução numa sentençado Banquete (205b): [...] Todo deixar-viger o que passae procede do não-vigente para a vigência é poiésis, éprodução” (HEIDEGGER, 2010, p. 16).

A produção é, assim, a dinâmica de articulaçãona qual tudo aquilo que ainda não é passa a ser. Issovale para o artesanato, que cria, por meio de trabalhosmanuais, produtos como a faca do nosso exemploanterior, mas vale também para outras atividadeshumanas. Há produção operada pela arte, quando estaconforma e faz aparecer a palavra por meio de umromance, por exemplo. Até mesmo a própria naturezaé poética (no sentido de poiésis), na medida em que fazaparecer algo que até então não existia. Nesse últimocaso, poiésis é physis: é um tipo de produção que se faz,desde si mesma, como o aparecimento e crescimentode uma flor, para usar de um exemplo lírico, ou osurgimento e disseminação de um novo e mortal vírus,resultado de uma espontânea mutação genética, em umexemplo mais catastrófico. A physis é o único modo dedesencobrimento (Unverborgenheit) que eclode desde simesmo, sendo que a técnica (téchne) é o modo de poiésisque é produção pela mão do homem. Em resumo, pode-se dizer que tanto aquilo que eclode porque emergiuespontaneamente, quanto o que se realiza através doartesanato e da arte são modos de se pro-duzir.

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44. A pro-dução conduz do encobrimento para o

desencobrimento. Só se dá no sentido próprio deuma pro-dução, enquanto e na medida em quealguma coisa encoberta chega ao des-encobrir-se.Este chegar repousa e oscila no processo quechamamos de desencobrimento. Para tal, os gregospossuíam a palavra alétheia (HEIDEGGER, 2010, p.16).

Conforme já vínhamos indicando, a produçãogera o desencobrimento do que outrora ainda não eravigente. Alétheia é o nome grego para esse modo, pormeio do qual, cada ente vem a ser isso que ele é. Apalavra é formada pelo prefixo de negação “a” e “létheia”,que significa encobrimento, velamento. Ao contrário doque muitas traduções nos fazem crer, alétheia nada tema ver com verdade, no sentido de adequação daproposição do “sujeito” ao “objeto”, não se trata deverdade da representação. Antes disso, alétheia carregao significado de uma dinâmica de tensão, um movimentoambíguo que realiza, ao mesmo tempo, tanto oencobrimento quanto o des-velamento de mundo. Édesse modo, então, que toda produção acontece. Desdedesencobrimento, alétheia faz aparecer, traz a existênciaaquilo que se realiza, ao mesmo tempo em que encobrea dinâmica de sua própria realização.

É por isso que afirmamos anteriormente que,apesar de estar correta, a determinação instrumentalda técnica não a diz, em verdade. Reforçamos que nãoestamos aqui defendendo a existência de umasubstância da técnica moderna, no sentido de umaessência objetivada. Não é essa a verdade aqui

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pretendida. O que se quer indicar é que, como qualqueroutro modo de produção, a própria técnica, não éapenas um meio para um determinado fim ou umasimples atividade humana, como as perspectivasinstrumentais e antropológicas compreendem. Apesarde corretos, esses horizontes de análise deixam escaparque a técnica – no sentido clássico, ou mesmo comotécnica moderna – é uma forma de desencobrimento.

Questionando passo a passo a técnica, eanalisando detalhadamente a concepção de que ela éum instrumento para que o homem alcance certosobjetivos, Heidegger chega à estrutura de desvelamentode mundo. É desde o desencobrimento que, qualquerque seja a elaboração produtiva, se efetiva. Nessacompreensão, não se pode mais afirmar que a técnicaé uma ferramenta isenta e a disposição do homem,como se fosse um simples meio, completamente livrepara utilizá-la conforme bem entendesse.

A técnica não é, portanto, um simples meio. Atécnica é uma forma de desencobrimento. Levandoisso em conta, abre-se diante de nós todo um outroâmbito para a essência [Wesen] da técnica. Trata-se do âmbito do desencobrimento, isto é, da verdade(HEIDEGGER, 2010, p. 17).

O filósofo quer chamar a atenção, na passagemacima, para o fato de que, ao contrário do que entendeo senso comum, a técnica não é nem poderia ser umaatividade neutra. Isso porque toda e qualquer formade desencobrimento é, por princípio, uma produçãointeressada de mundo. O desvelar da técnica é aassunção de uma forma de produção que, como já

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44. afirmamos, conduz do não-vigente para a vigência

sempre atravessada por um modo de condução, dearticulação dos quatro modos de se deixar-viger. Pordefinição, cada modo próprio e específico dedesvelamento é regido e conformado desde umaperspectiva do aparecer, segundo certa forma particularde fazer vir a ser tudo aquilo que é, e não a partir deoutra. E, ontologicamente, esse interesse é sempreprimeiro; é aquilo em que sempre já estamos inseridos,pelo que o homem é tomado e tocado, ou seja, nuncaé uma escolha dele.

É claro que é o homem quem produz as diversasaplicações e dispositivos tecnológicos, mas, por outrolado, o homem não pode se colocar fora de um mundo,de um determinado contexto, desde o qual a técnica jáopera uma forma de desvelamento. E é sempre a partirde um determinado interesse que a técnica trabalha.Para entender como esse interesse se realiza, é precisolevar em conta que a ação da tecnologia é um fazerque coloca um tipo de verdade (enquanto alétheia) emfuncionamento. É desde essa verdade que sempre jáestamos: “Técnica é uma forma de desencobrimento.A técnica vige e vigora no âmbito onde se dádescobrimento e des-encobrimento, onde acontecealétheia, verdade” (HEIDEGGER, 2010, p. 18).

A própria origem da palavra técnica pode seruma boa fonte para continuarmos seguindo o caminhoem direção ao seu vigor, isto é, na busca pelo modo deser fundamental da técnica moderna e da ação que elapõe em funcionamento. Técnica é uma palavraproveniente do grego (téchne) que indica justamente

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um certo saber fazer que diz respeito não somente àlida artesanal, como por exemplo, uma técnica indígenade confecção de cestas de palha, como também é validopara um saber artístico, como é o caso de uma certatécnica de uso do pincel para obter um efeito na pinturade telas. Dessa maneira, no pensamento grego antigo,téchne é uma palavra que indica um determinado modode conhecimento, que aponta para um certo saber-fazer. Assim como a episteme, a téchne é uma palavrapara o conhecimento de modo amplo, sendo que atéchne é uma forma que desencobre “o que não seproduz a si mesmo e ainda não se dá e propõe, podendoassim apresentar-se e sair, ora num, ora em outro perfil”(HEIDEGGER, 2010, p. 17).

É que, conforme já indicamos anteriormente, atéchne é um modo de desencobrimento, cuja dinâmicaé poiésis, e que precisa da mão do homem para sepresentificar. Dessa maneira, sua principalcaracterística está ligada ao fato de ser uma produçãona qual, de acordo com a finalidade (causa finalis),pode-se articular antecipadamente, numa unidade decoerência, a matéria (causa materialis), o perfil (causaformalis) do produto e sua realização (causa efficiens),para, assim, melhor se deixar conduzir, isto é, se guiarpelo que é mais adequado para a consumação de algo,para levar um determinado fazer a sua plenitude. “Odecisivo da téchne não reside, pois, no fazer e manusear,nem na aplicação de meios, mas no desencobrimentomencionado. É neste desencobrimento e não naelaboração que a téchne se constitui e cumpre em umapro-dução” (HEIDEGGER, 2010, p. 18).

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44. Uma passagem de Einführung in die Mataphysik

(Introdução à metafísica) confirma e esclarece essaperspectiva da téchne para o pensamento grego: ela éuma forma de produção ligada a um saber-fazer desdeo qual tudo se articula numa condução/orientação.

Physis se restringe a partir de sua oposição a téchne– que não significa nem arte nem técnica e sim umsaber, a disposição competente de instituições eplanejamentos bem como o domínio dos mesmos (Cf.Fedro de Platão). A téchne é criação e construção,enquanto pro-dução sapiente (HEIDEGGER, 1999,p. 46).

O ferreiro, para continuar com o mesmo exemplo,domina uma técnica, ou seja, é portador de um saber.Esse saber diz respeito, não somente à manipulação demetais propriamente dita, ou seja a sua lida manual,mas também às características de cada metal, de cadaliga, além do comportamento das combinações, forjadasnos diversos tipos de perfis existentes e seus usos eaplicações. Desse modo, um ferreiro é aquele queconhece o metal, suas utilizações e a melhor maneirade conformá-lo para se atingir uma determinadafinalidade. É o profissional que conhece a matéria, suasformas e, por isso, sabe levar as ferramentas a suaplenitude, pensando-as, não a partir de um saber teórico-especulativo, mas desde um determinado fazer. É umsaber que não tematiza muito os porquês, mas que sabemuito bem como as coisas são.

“Téchne” fala da natureza ou do modo de ser domovimento disso que, não estando ou não sendoencontrado à mão no mundo ou na circunstância,

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vem à luz, assim se abrindo, se instaurando e seoferecendo ao uso do homem desde a própria açãoou intervenção do próprio homem – por exemplo, amesa, o papel, a caneta, a casa, o automóvel, o míssilnuclear. O homem só é, só pode ser se fazendo e elese faz agindo, isto é, lidando com as coisas dacircunstância, com o mundo, transformando-o assimem seu lugar, em sua casa, em sua habitação (FOGEL,1998, p. 126).

É, então, razoavelmente fácil concordar queesse modo de articulação da técnica (téchne),determinada pelo pensamento grego antigo, dá contade explicar muito bem a produção artesanal e artística,mas fica a dúvida se essa compreensão alcança amoderna técnica, que se caracterizaria por estarassentada em uma infinidade de máquinas eaparelhos, o que poderia mudar tudo. Aparentemente,e num primeiro momento pode-se afirmar que atécnica moderna – justamente aquilo que nos interessaaqui compreender – difere bastante das anteriores.Outro ponto que também marca uma profundadiferença entre as duas técnicas é que a técnicamoderna é tecnologia, cujo sentido (lógos) é o daciência. Isso porque os modos de operar e os feitosda técnica moderna estão sempre associados àmoderna ciência exata da natureza, que determina oseu encaminhamento. Entretanto, não se pode deixarde também indicar que o inverso, da mesma forma, éverdadeiro: como ciência experimental, a físicamoderna, por exemplo, também depende daexistência e do desenvolvimento de aparelhos edispositivos tecnológicos.

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44. Apesar dessas diversas particularidades existentes

nas duas modulações da técnica, Heidegger confirmaque a técnica moderna também é uma forma dedesencobrimento. Só que, em maior grau, a técnicamoderna põe em funcionamento um certo desvelamentoque não se desenvolve numa pro-dução, no sentido depoiésis. Essa é sua principal diferença na comparaçãocom a téchne grega. Sendo uma forma de desvelamento,a técnica moderna é uma pro-vocação, uma intimação,uma espécie de requisição ou imposição, que operadesde um tipo de verdade. Mas que verdade é essa? Odesencobrimento que vigora e governa a técnicamoderna é o da contínua exploração da natureza para aobtenção de energia e seu armazenamento.

Desse modo, na técnica moderna o subsolo devastas regiões passa a se desencobrir como reserva deminério. A brisa do mar de desvela como energia eólica,e até mesmo o próprio sol não nos aparece mais comoum deus, nem mesmo como o astro rei ou estrela, massim como energia solar pronta para ser captada earmazenada.

Conduzir ou reger todas as ocupações à medida damáquina significa pois: Colocar ou sub-por toda avida, todo existir, sob a ótica do apoderamento e docontrole da natureza e assim realizar ou concretizareste existir, este viver. [...] Quem assim vive,promove (ou seja, rege, orienta, conduz) todoprocesso de afloramento e de realização da vida apartir da dominação da atitude ou da postura quese propõe dominar, apropriar, controlar a natureza,assim, assegurando-se dela e de si próprio (FOGEL,1998, p. 94).

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Era diferente a relação que a téchne mantinhacom a natureza. Téchne é poiésis justamente porque éuma atividade que não subjuga a physis. O agricultorque não fazia uso da tecnologia, mas da técnica(téchne), por exemplo, guardava um respeito muitogrande com o seu fazer e com a própria terra. Cultivarsignificava sobretudo escutar: isso quer dizer que, antesde mais nada, era preciso conhecer as característicasdo local, como temperaturas médias, regime de chuvas,fertilidade do solo, para, então, semear aquilo que fossepossível, e ainda cuidar e tratar de tudo sem atropelos.Não lhe seria possível plantar eucalipto em uma áreamuito seca, já que essa é uma planta que necessita demuita água. Também não poderia plantar café arábicaem baixas altitudes, pois essa cultura precisa de umclima mais ameno para se desenvolver.

Era, então, preciso articular o que havia disponível,a realidade, com determinada finalidade: o plantio decerta cultura. Nesse modo de condução, tudo é regido eatravessado pelos quatro modos de deixar-viger e sedesencobre pela mão do homem, que é quem sintetiza,numa unidade de coerência, a finalidade (certa cultura)e as características do local de plantio, os meios maisadequados. Sem tecnologia, o trabalho do agricultor nãoprovoca, intima ou desafia a natureza. Antes de qualquercoisa, ele é uma produção, e como tal, precisa obedecer anatureza, seu modo próprio de ser.

Com o advento da técnica moderna muita coisamudou. Surgiu a crença de que, por meio da tecnologia,o homem pode tudo. Se a região é seca, planta-seeucalipto mesmo assim, e desvia-se córregos para

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44. alimentar as máquinas e os aparelhos de irrigação. Se a

natureza do café arábica é crescer em temperaturas nãomuito altas, pode-se plantá-lo em áreas quentes,bastando para isso realizar uma alteração nessacaracterística. A pesquisa e o desenvolvimento deespécies transgênicas, os organismos geneticamentemodificados, realizam justamente esses “pequenosajustes”. No desencobrimento da técnica moderna ohomem procura conhecer a natureza, não para se ajustaràs suas necessidades, mas para dominá-la por completo,corrigi-la e, até mesmo, substituí-la. Ele provoca e desafiaa realidade o tempo inteiro: parece que, na tecnologia,é a natureza quem se ajusta as vontades do homem, enão o contrário. Nesse encaminhamento, o cerradobrasileiro, por exemplo, dá lugar a imposição damonocultura da soja, isto é, a indústria mecanizada emultinacional da produção de commodities.

Esta dis-posição, que explora as energias danatureza, cumpre um processamento, numa duplaacepção. Processa à medida que abre e ex-põe. Esteprimeiro processamento já vem, no entanto, pré-dis-posto a promover uma outra coisa, a saber, omáximo rendimento possível com o mínimo de gasto(HEIDEGGER, 2010, p. 19).

Isso quer dizer que, ao explorar a natureza, adisposição da técnica moderna não o faz de umamaneira qualquer. O modo como esse desencobrimentoé realizado segue uma determinada configuração. Éuma pré-disposição que, além de enxergar no cerrado,indústria de commodities, quando assim o vê – e issovale para qualquer outro exemplo – o vê desde uma

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pré-compreensão na qual é preciso explorá-lo aomáximo gastando o mínimo possível. Dessa forma, ocerrado, não somente é lavoura de soja paraexportação, como também deve alcançar altaprodutividade, sem que muitos recursos precisem serdispensados. É por isso que nas extensas faixas defloresta que serão destinadas à cultura se faz o uso decorrentes puxadas por tratores, para limpar o terreno,ou ateia-se fogo a vegetação nativa, antes do plantio;estratégia que reduz tudo o que encontra pela frente aobstáculo que precisa ser rapidamente contornado.Também, caso o solo não responda mais àsnecessidades da planta, basta desmatar uma outra áreade floresta depois de esgotar os terrenos já explorados.

A Natureza transforma-se num único posto deabastecimento gigantesco, numa fonte de energiapara a técnica e indústria modernas. Esta relaçãofundamentalmente técnica do Homem com o tododo mundo surgiu pela primeira vez no século XVII,na Europa e unicamente na Europa. Permaneceudesconhecida das restantes partes da Terra durantelongo tempo. Era totalmente estranha às épocasprecedentes e aos destinos dos povos de então. Opoder oculto da técnica contemporânea determinaa relação do Homem com aquilo que existe. Dominaa Terra inteira (HEIDEGGER, s/d., p. 19).

Essa dominação não deixa, isto é, não ofereceoportunidade e ocasião para os entes se realizarem,fora da perspectiva da exploração. Esse modo dedesencobrimento atinge, hoje, até mesmo os rincõesmais distantes das grandes cidades. Como obra datécnica moderna, a usina hidrelétrica de Belo Monte,

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44. que atualmente está sendo construída no rio Xingu, no

estado do Pará, é um exemplo que segue a mesmarelação com o seu contexto. A hidrelétrica vai dis-pordo rio e das áreas que serão alagadas, para fornecerpressão hidráulica, que, por sua vez, vai dis-por asturbinas a girar, cujo giro impulsiona uma série demáquinas e aparelhos. São esses mecanismos queproduzirão a corrente elétrica que poderá, então, sertransmitida. Curioso é notar que nessa cadeiainterdependente de dis-posições, o próprio rio Xinguaparece, não como simples rio, mas como dis-positivo.Nesse sentido, talvez seja mais correto afirmar que nãoé a usina que estará instalada no rio, mas justamente ocontrário: é o rio, como dis-positivo, que ficará instaladona usina. Dessa forma, é ele quem deve se adaptar.Torna-se, assim, extremamente legítimo e até mesmoindispensável, passar por cima de interesses indígenase represar o Xingu, alagar quilômetros de florestas para,assim, produzir a pressão hidráulica e, então, dispor asturbinas a girar.

O dis-ponível tem seu próprio esteio. Nós ochamamos de dis-ponibilidade (Bestand). Estapalavra significa aqui mais e também algo maisessencial que mera “provisão”. A palavra “dis-ponibilidade” se faz agora o nome de uma categoria.Designa nada mais nada menos do que o modo emque vige e vigora tudo o que o desencobrimentoexplorador atingiu (HEIDEGGER, 2010, p. 20-21).

O rio, a floresta, o solo, a montanha, ou o quequer que seja, se desencobrem de um modo, cada vezmais frequente e em todas as dimensões da atividade

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humana, como aquilo que Heidegger chama de dis-ponibilidade. O pensador destaca que o sentido dotermo extrapola a noção que temos de provisão. Éverdade que essa investigação da técnica moderna nosleva a conclusão de que a natureza, se revela, nessemodo específico de desencobrimento, como um grandereservatório, um arquivo pronto e a dis-posição, umaespécie de grande e infinita despensa da qual o homem,não somente pode, como também deve se servir àvontade. Então, até certo ponto, dis-ponibilidade quermesmo dizer provisão. A questão chave é que essaforma de se relacionar e de desencobrir o real se tornou,na atualidade, um tipo de categoria particular: é aforma, antecipada, como se organiza tudo o que avigência da técnica moderna alcançou; é a força desdea qual se desvela o que é explorado. A técnica moderna:

[...] promove a ideologia ou a positividade do podercomo agigantamento do controle, como gigantismodo apoderamento e da manipulação. A natureza é,então, exclusivamente objeto de apoderamento, decontrole, de uso, de manipulação, de consumo –energia para. Dominando a máquina, isto é, a atitudeou postura que traz a máquina à tona e à vigência dedominação, tudo, de repente, se torna ração deengorda, tudo vira gado de corte ou, o que é a mesmacoisa, potencial energético, reserva (FOGEL, 1998,p. 96-97).

Tudo o que aparece nessa perspectiva se realizado mesmo modo: como dis-ponibilidade. Chegamosao ponto em que, sem dúvida alguma, essa é a maneirahegemônica de aparecimento dos entes. O automóvel,por exemplo, se desencobre como dis-ponibilidade à

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44. medida que está dis-posto a assegurar a possibilidade

de transporte. O computador está dis-posto a fornecerinformações, entretenimento e executar as maisvariadas tarefas. É interessante notar que mesmoaqueles objetos que não foram produzidos pelo homem,se revelam, “em essência”, como dis-positivos, isto é,potenciais aparelhos para a exploração humana, comosão os casos, já citados, do subsolo, dos rios, do sol oudo próprio vento.

Abrimos aqui um pequeno parêntese para, apartir das diferenças linguísticas, olhar com mais atençãopara o que “estar disposto” quer apontar. Como se sabe,o português falado em Portugal reserva algumassurpresas aos brasileiros. Uma delas pode nos ajudar aentender melhor o sentido dessa expressão, naconcepção heideggeriana. No país, é muito comum, nolugar de um simples “bom dia”, ou mesmo logo a seguira este, ouvir a seguinte indagação: “Estás bem disposto?”No Brasil, a pergunta parece expressar uma preocupaçãocom alguém que está convalescente, isto é, que estevedoente e que ainda não está totalmente recuperado.Nesse horizonte, a questão se interessa em saber sehouve melhora; se a pessoa sente-se mais saudável queantes. Não é, absolutamente, esse o uso português dapergunta. Em Portugal, não é preciso ter estado doentepara ser questionado sobre a disposição com a qual seacordou e que, talvez, se vai carregar para o resto dodia. Pergunta-se isso a todos, indistintamente. Adisposição, nesse último uso, parece apontar para ummodo de se portar e de se colocar frente aquilo que vierdurante o dia. É um encaminhamento desde o qual se

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tempera, isto é, se regulam as nossas relações com omundo. Estar bem disposto, nesse caso, é apresentaruma espécie de estado de desembaraçamento, dedistribuição ordenada de energias e esforços.

A comparação clama por um esclarecimento.Com o parêntese, não queremos dizer que o homem éo responsável pelo modo como tudo aquilo que é serealiza. Ao afirmar que podemos estar bem ou maldispostos, não estamos querendo indicar que o tipo dedesencobrimento está nas mãos do sujeito, que serialivre para escolher a forma que bem entendesse oupara alterar a vigência daquilo que se desvela dedeterminado modo. Apesar de ser o lugar demanifestação de toda a realidade, na verdade, o homemnão é a sua causa.

O homem pode, certamente, representar, elaborarou realizar qualquer coisa, desta ou daquelamaneira. O homem não tem, contudo, em seu podero desencobrimento em que o real cada vez se mostraou se retrai e se esconde. Não foi Platão que fezcom que o real se mostrasse à luz das ideias. Opensador apenas respondeu ao apelo que lhe chegoue que o atingiu (HEIDEGGER, 2010, p. 21).

É o homem quem realiza os feitos da técnicamoderna, ninguém pode negar, mas ao fazê-los, elenão obedece a si mesmo, mas ao própriodesencobrimento da dis-ponibilidade. E mais que isso:nessa tarefa, o homem responde a um chamado, demaneira que não é ele quem tem a técnica, masjustamente o contrário: é a técnica moderna que o tem,isto é, que o alista e convoca de determinada maneira.

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44. O homem responde ao apelo do que se realiza e que o

atinge. Nesse sentido, até de modo mais originário doque a própria natureza que é explorada, o homemtambém pertence a dis-ponibilidade.

O produtor de café das montanhas do EspíritoSanto, por exemplo, que aparentemente cultiva o grãodo mesmo modo que os primeiros imigrantes europeusque colonizaram a região, hoje está à dis-posição daindústria exportadora de café verde ou das usinasbrasileiras de torrefação. Mesmo que ele não vendadiretamente a sua produção para uma dessasindústrias, ele o fará para um atravessador, o chamadocorretor de café, que por sua vez, está diretamente àdis-posição dos industriais. Esses industriais, por suavez, estão à dis-posição da demanda internacional dabebida, que oscila a cotação para mais ou para menos,aumentando ou reduzindo os seus lucros, numasucessão integrada de dis-posições.

Todavia, precisamente por se achar desafiado a dis-por-se de modo mais originário do que as energias danatureza, o homem nunca se reduz a uma mera dis-ponibilidade. Realizando a técnica, o homem participada dis-posição, como um modo de desencobrimento.O desencobrimento em si mesmo, onde se desenvolvea dis-posição, nunca é, porém, um feito do homem,como não é o espaço, que o homem já deve terpercorrido, para relacionar-se, como sujeito, com umobjeto (HEIDEGGER, 2010, p. 22).

É que o homem é o vivente para o qual chegamos apelos. É ele quem sempre é tomado e tocado e quese vê, a cada vez, imerso em uma possibilidade de

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desencobrimento. Ao responder ao chamado erequisição da técnica moderna, o homem é desafiadoa dis-por-se de um modo, a se comportar dedeterminada maneira. E quando o faz, isso aconteceainda mais arcaicamente do que a própria dis-posiçãoda natureza, e por isso, ele não é apenas mera dis-ponibilidade. Ele é, na verdade, o lugar, sine qua nonde realização do que se desencobre, seja como dis-posição, seja como qualquer outra forma dedesencobrimento, sem, no entanto, se tornar o senhordessa dinâmica de realização. Mais uma vez,reforçamos que o desvelamento não é um simples feitodo homem. É algo ontologicamente anterior a elepróprio como “sujeito” e que também antecede oschamados “objetos”, que supostamente se opõem a ele.Há, na verdade, um poder de sedução que guia ohomem e o convoca a desencobrir o real dedeterminado modo.

Por isso, temos que encarar, em sua propriedade, odesafio que põe o homem a dis-por do real, comodis-ponibilidade. Este desafio tem o poder de levaro homem a recolher-se à dis-posição. Está em causao poder que o leva a dis-por do real, como dis-ponibilidade (HEIDEGGER, 2010, p. 22-23).

O poder desse tipo de desencobrimentoparticular, no qual o homem é, de alguma maneira,chamado a dis-por do real como dis-ponibilidade, residena ação que a técnica moderna é capaz de levar a cabo.Uma ação que difere bastante do agir da téchne,sobretudo com relação aos seus propósitos.

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44. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASANOVA, Marco Antônio. Compreender Heidegger.2. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Notas do subsolo. Tradução:Maria Aparecida Botelho Pereira Soares. Porto Alegre:L&PM, 2011.

FOGEL, Gilvan. “Do ‘coração-máquina’ – Ensaio deaproximação à questão da tecnologia”. Da SolidãoPerfeita: escritos de filosofia. Petrópolis, RJ: Vozes, p.91 – 130, 1998.

HEIDEGGER, Martin. “A questão da técnica”.Tradução: Emmanuel Carneiro Leão. Ensaios eConferências. 6. ed. Petrópolis: Vozes, p. 11-38, 2010.

______. Introdução à Metafísica. 4a. ed. Tradução:Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: TempoBrasileiro, 1999.

______. Serenidade. Tradução: Maria Madalena Andradee Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Introdução à Carta Sobreo Humanismo”. In: HEIDEGGER, Martin. Carta sobreo humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.

OLIVEIRA, Rubem Mendes de. A questão da técnica emSpengler e Heidegger. Belo Horizonte: Argumentum:Tessitura, 2006.