a espera do amachenga: a máquina de guerra histórica · caminho: os primeiros ele transformou em...
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A espera do Amachenga: a máquina de guerra histórica Pedro Alex Rodrigues Viana (PPGA/UFF)
Resumo
Os Ashaninka são um povo de fala aruaque que habitam na Selva Central
peruana e no Acre, Brasil. No Peru, são conhecidos como o exemplo clássico do
guerreiro indígena. Essa fama é devida a sua resistência histórica contra qualquer
povo que tenta subjuga-los; foi assim contra os Incas, contra os missionários, contra
os espanhóis e, mais recentemente, contra os guerrilheiros do Sendero Luminoso e
MRTA. Eles são capazes de organizar sua resistência através de uma grande
confederação guerreira, articulada dentro dos limites de uma rede de alianças
interétnica, pautadas, sobretudo, por relações comerciais. Além da resistência
guerreira ser efetivada pelas relações de troca, esses povos – que fazem parte dessa
rede – tem em comum a crença cosmológica da chegada de um messias, o
Amachenga. Esse demiurgo tem o poder transformativo de reversibilidade da ordem
atual do cosmo, onde os Ashaninka poderão viver uma vida de liberdade e não
dependerão dos brancos, o wiracocha, para conseguir os bens necessários, o que
ocorre hoje. O objetivo desse trabalho é, por meio de uma revisão bibliográfica da
literatura etnológica e etnohistórica, analisar como uma série de guerras que
aconteceram ao longo da história Ashaninka se conecta com a crença cosmológica da
figura Amachenga. Com isso, pretendo investigar como figuras cosmológicas são
agentes de eventos políticos, capazes de sugerir um modo de pensamento e ação, uma
cosmopolítica. Esse modo, no caso Ashaninka, é uma recusa histórica a ver sua
liberdade e autonomia perdida, uma máquina de guerra, nos termos de Deleuze e
Guattari. Em suma, sugiro que essa máquina de guerra Ashaninka é menos a guerra
propriamente dita do que essa vontade transhistórica expressa na crença do
Amachenga.
Palavras-chave: Ashaninka; máquina de guerra; cosmopolítica; etnohistória.
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“Sob todos os aspectos a máquina de guerra é de uma outra espécie, de uma outra natureza, de uma outra origem que o aparelho de Estado”. (Deleuze & Gattari 2012: 13).
Introdução
Os Ashaninka são um povo falantes de uma língua da família aruaque e
habitam a região da Selva Central peruana e no Estado do Acre, Brasil. Atualmente
eles são cerca de 100.000 indivíduos no Peru e uns dois mil no Brasil,
aproximadamente (Sarmiento Barlleti, 2011). A história desse povo é fascinante e,
além do mais, conta com um número razoável de trabalhos sobre seu passado e
presente; uns dos povos mais pesquisados da américa indígena (Renard-Casevitz,
1992). Não é para menos, afinal eles fizeram fronteira com as civilizações dos Andes
e o império Inca, conseguiram organizar no passado umas das maiores rebeliões
indígenas contra os agentes da colonização – a revolta de Juan Santos de Atahualpa
em 1842. São um povo de guerreiros e comerciantes que prezam pela sua liberdade e
autonomia, custe o que custar. Essa característica aparece nas variadas fontes
bibliográficas: relatos e crônicas de viajantes; documentos das missões jesuítas e
franciscanas; e, mais recentemente, por vários antropólogos que dedicam-se a
investiga-los.
Os principais trabalhos que revisaram a etno-história Ashaninka focaram no
tema das confederações guerreiras e o sistema de organização social (Cf., por
exemplo, Renard-Casevitz, 1992, 1993, 2002; Brown & Fernandez, 1991, 2001), eles
visam entender as guerras que os Ashaninka fizeram, em vários períodos históricos
diferentes, contra inimigos que são marcados por uma diferença radical: não-
amazônicos e sociedades-estado. Ao ver sua liberdade ameaçada, uma rede de
alianças é ativada e em pouco tempo milhares de guerreiros estão de prontidão aptos e
habilidosos no seu terreno para se defender. Foi assim contra os Incas, os espanhóis,
missionários, a Peruvian Corporation e, mais recentemente, contra os guerrilheiros de
esquerda MRTA e o Sendero Luminoso.
Os primeiros contatos entre as populações indígenas do piemonte andino e os
espanhóis datam do final do século XVI. A conquista da região da Selva Central
sempre foi um problema para os agentes da colonização, contando com períodos de
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ligeiro sucesso rebatidos por grandes rebeliões capaz de reprimir entrada dos
estrangeiros no territórios dos aruaques subandinos 1 . O contatos e as guerras
provocaram profundas modificações sócio-culturais entre eles. Entretanto, Brown e
Fernandez (2001: 9) sugeriram que apesar das transformações e mudanças que esse
povo sofreu, podemos vislumbrar pontos de referências “razoavelmente fixos”.
Apesar da colonização ter sido avassaladora não teve a capacidade de suprimir
o poder dos próprios indígenas de se reinventar. Esse ensaio pretende pensar certos
eventos históricos vividos pela população Ashaninka e as implicações sociológicas e
cosmopoliticas como esse grupo respondeu a esses eventos. Busca-se entender quais
são esses pontos de referencia “razoavelmente fixos” que a literatura afirma que esse
grupo ainda retém, a despeito das várias mudanças pelas quais passou. Cartografando
a história Ashaninka, as várias confederações guerreiras que apareceram e a ligação
delas com a figura do Amachenga, pretendo demonstrar que podemos visualizar uma
máquina de guerra2 (Deleuze & Gattari 2012) transhistórica, ou seja, uma vontade de
não ser submisso frente a formas estados que atravessou o tempo.
O wiracocha e o Amachenga
O tempo é uma categoria para os Ashaninka que não apresenta uma
linearidade. Os Ashaninka acreditam que seu mundo foi fruto de vários ciclos de
transformações, sempre marcados por demiurgos perigosos e pelo poder de
transformação deles. Os bons espíritos são responsáveis pela criação do cosmo
Ashaninka, que é entendida como uma transformação de um estado anterior através
de um sopro. No topo da hierarquia dos bons espíritos estão os Tasórentsi (raiz
tasonk, assoprar) (Weiss 1975: 266), ou Amachenga, que são: Pachakama, Inka,
Avíreri, Kashiri e Pavá3. A mitologia desses demiurgos nos permite entender como os
1 Os grupos aruaques subandinos são compreendidos pelos Yaneshá, Piro, Matsiguenga, Ashaninka, Nomatsiguenga e Caquinte. Os Yaneshá e os Piro se diferem um pouco do conjunto, entretanto os demais grupos são caracterizados por portarem traços comum, o que Weiss (1975) chamou de “cluster campa” . No passado esses grupos eram conhecidos pelo nome genérico de Campa (Renard-Casevitz, 1992). 2 O conceito de máquina de guerra que utilizo é inspirado na noção proposta por Deleuze e Gattari (2012) que consiste num mecanismo que algumas sociedades utilizaram para se manter insubmissa a sociedades estado. Esse conceito surgiu do dialogo dos autores com o antropólogo Pierre Clastres, que foi o primeiro a propor o mesmo sentido – inspirado na intense belicosidade dos ameríndios. 3 Não vou apresentar aqui, neste ensaio, a mitologia sobre Kashiri, a lua, e Pavá, o sol, devido a pouco importância que esses mitos tem para a economia do argumento desenvolvido nesse ensaio. Para uma versão interessante dessa mitologia conferir Weiss (1975).
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Ashaninka pensam a transformação e mudança – a necessidade de reversibilidade do
seu atual estado de dependência frente aos brancos.
Os Ashaninka não concebem o universo como algo estático e imutável, pelo
contrário, ele está em transformação a todo tempo. Foram as transformações que
possibilitaram o cosmo ganhar a forma que tem hoje. Foi um demiurgo quem no
tempo mitológico, parení, tirou o cosmo do total estado de indiferença – uma vez que
os humanos eram iguais aos animais. Avíreri vivia com seu neto, Kíri, e resolveu ir
visitar sua irmã para dançar, beber e ver os parentes. Depois da festa, na volta para
sua casa, ele começa a transformar os filhos de sua irmã que ele encontrou pelo
caminho: os primeiros ele transformou em criaturas arbóreas (macacos), seguiu
transformando os outros em insetos e alguns em pedras; depois criou o dia e a noite,
as estações do ano, e as músicas e festas para cada uma delas. Seus parentes por
afinidade, que viviam com sua irmã, ficaram cansados de suas transformações e
cavaram um grande buraco, Avíreri cai nele e o buraco leva até Ocitíriko, onde ele é
convidado por Pachakama para ajudar a sustentar a terra (Weiss, 1975: 313-324).
Uma versão do mito de Pachakama (ou Pachacamaite) foi recolhida por
Varese (1973) na década de sessenta, na região do Gran Pajonal. Para Varese, esse
mito é a forma como os Ashaninka pensam sua dependência tecnológica frente aos
brancos. Pachakamaite é Pavá, filho do sol, ele vive rio abaixo, ele faz tudo: rifles,
munições, facões, espelhos, sal, etc. Antes, quando os Ashaninka tinham necessidades
dessas mercadorias, eles iam buscar diretamente com ele. No caminho tinham que
passar pelo grande carangueijo, Oshéro, que exigia um pagamento de urucum para
dar passagem. Depois de receber as mercadorias de Pachacamaite – que não pede
nada em troca – os Ashaninka retornam, mas antes eles têm que jogar penas dos
pássaros sagrados para distrair o sarampo. Enquanto o sarampo recolhe as penas eles
voltam salvos pra casa. Os brancos, o wiracocha, construíram uma paliçada que
impede a chegada dos Ashaninka a Pachacamaite, por isso, atualmente, os Ashaninka
têm necessidade de conseguir essas mercadorias com eles (Varese, 1973: 309-310).
O último mito que irei expor, que se conecta com o do Pachacama, é o do
Inka. Um Ashaninka foi pescar no lago, ele primeiro usou papaia, mas não pegou
nada, depois tentou com um frango, sem sucesso também. Então, resolveu usar uma
criança Ashaninka e pescou um branco. Este branco perseguiu o Ashaninka até a casa
do Inka (que é Ashaninka) ele matou o Ashaninka, mas como o Inka nunca morre,
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está preso. O Inka era “dono” da tecnologia, por causa disso os brancos têm hoje a
tecnologia e os Ashaninka não (Ibidem: 415).
Esse conjunto de mitos nos permite entender como os Ashaninka pensam sua
condição no cosmo. O primeiro mito de Avireri que apresentei sugere que a mudança
e a transformação tem grande rendimento na cosmologia desse povo, não sendo
interpretado como algo anormal 4 . Varese (1973) sugeriu que a mitologia de
Pachacama e do Inka, eram mitos que visavam apresentar a situação de dependência
tecnológica dos Ashaninka frente aos brancos, o que nos indica que eles próprios não
se veem como vítimas da sua condição – mas pelo contrário, seus erros que
possibilitaram a “vantagem” dos brancos. Para que eles voltem a gozar da abundância
de mercadoria, da tecnologia perdida e recuperar sua liberdade, deve haver um grande
cataclisma que mudará o cosmo – o Amachenga deve retornar.
A arqueologia revela que os Aruaques subandinos estão há 4 mil anos na
região que compreende o piemonte andino. Huarí5 é um marco para a região,
localizada perto de Ayacucho, onde começaram a se estabelecer os primeiros centros
urbanos nos Andes Centrais antes do Império Inca; começa no século III e tem seu
apogeu entre os anos 600 e 900 d.C. As colônias de Huarí na região do piemonte eram
responsáveis por abastecer de produtos da floresta as populações dos Andes ao
mesmo tempo em que produtos dos Andes desciam para as terras baixas, através de
uma vasta rede comercial andino-amazônica. Logo após o apogeu de Huarí, os
Aruaques subandinos acabam se tornando vizinhos do Império Inca (Renard-Casevitz,
1992). Muitas de suas características atuais já eram encontradas neste período, como
o gosto pelo comércio e a facilidade para se organizar em confederações guerreiras.
Segundo Renard-Casevitz (1992), as relações dos Ashaninka com o Império Andino
eram de troca comerciais, sem os primeiros serem considerados vassalos dos
segundos; entretanto, quando o Império Inca dava ar de coerção, os Anti 6 se
4 Hvalkof & Veber (2005: 226) tem sugerido, “[L]a “sociedad” ashéninka puede describirse como un sistema social muy flexible, donde la fragmentación y quiebre nunca es algo anormal y donde la reunión momentánea y el comportamiento común pueden tener lugar de un momento a otro. En vez de concebir la desintegración y fragmentación como una anormalidad, lo cual en la sociología durkheimiana convencional se presenta como un problema, en el contexto ashéninka la ‘pluralidad’ y la no-integración constituyen lo normal, mientras que la incorporación y el agregado constituyen algo potencial y transitorio”. 5 Huarí foi a cidade capital do Império de Huarí, uma civilização andina que floreceu nos Andes centrais do século VII até o XIII. 6 Nome pelo qual eram conhecidos pelos Incas, em referência às terras baixas, que era chamada de antisuyo.
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organizavam numa grande confederação e eram muito habilidosos na guerra em seu
terreno.
Em 1635, os missionários chegam no vale do Paucartambo, próximo ao Cerro
de la Sal7, começando a estabelecer pequenos focos de reduções (Santos & Barclay,
1995). No entanto, este período é marcado pelo desinteresse da região da Selva
Central por parte dos colonizadores, pelos conflitos nas ordens cristãs e a inexistência
de minas de metais preciosos. Depois de mais de um século tentando a colonização da
região da Selva Central, os missionários já estavam mais hábeis e foram ao coração
do sistema: a estratégia foi dominar a rede comercial que estava em plena
efervescência naquele momento. O Cerro de la Sal era uma mina de sal gema que
abastecia diversos grupos indígenas que viajavam milhares de quilômetros para
adquirir barras de sal – especiaria muito apreciada como condimento e pela sua
capacidade de conservar alimentos – e participar dos grandes rituais promovidos pelo
chefe do Cerro, nos meses de verão.
Sabendo da importância do Cerro de la Sal para os grupos indígenas daquela
região, de pronto os missionários trataram de estabelecer uma missão atuante e
fortificada. Dali estabeleceram outros polos missionários pela região que tinham por
objetivo abastecer as minas de Cerro Pasco8 com cana de açúcar, tecidos e peixe
salgado (Santos & Barclay, 1995). Os missionários utilizavam os indígenas como mão
de obra, e os indígenas aproveitavam as ferramentas de metal que ganhavam em troca.
Essas reduções missionárias – como eram chamadas essas grandes vilas – começaram
a produzir uma diferença na lógica nativa de produção: trabalho pesado, comunidades
grandes centralizadas ao redor das missões, várias pessoas morando próximas umas
das outras9.
Mas, de todas as mudanças a sociológica talvez foi a menos importante, uma
vez que o próprio Cerro de la Sal já causava um “inflexão” a aquele sistema multi-
7 O Cerro de la Sal fica localizado a oeste do território, próximo a junção dos rios Perene e Chanchamayo. 8 As minas de Cerro Pasco se localizam a noroeste do território Ashaninka, nas cadeias de montanhas dos Andes. Essa mina de prata só perdia em importância e produtividade para as minas de Potossí, Bolívia, sendo de suma importância para o vice-reinado da Espanha. Conferir, por exemplo, Santos & Barclay (1995). 9 O padrão de assentamento comum entre eles, segundo a literatura etnológica, é pequenos grupos domésticos, de quatro a cinco famílias, distantes umas das outras, que formavam um grupo local, denominado namptsi (Zolezzi, 1994: 44). Cada namptsi é a área de influência de um chefe, pinkathari, que nada mais é que um homem de prestígio, que devido a suas qualidades individuais galgou essa posição. Entretanto, sua organização social é extremamente flexível podendo variar de pequenos grupos locais a grandes comunidades.
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centrado (Renard-Casevitz 1992)10, com seu líder tendo influência supra-local sobre
os demais e aldeias mais populosas. Nessas reduções houve grande mortalidade e
epidemias pelas doenças trazidas pelos brancos, bem como os missionários
começaram a proibir a poliginia praticada pelos chefes. Esse cenário, no começo do
século XVIII, começa a gerar uma grande insatisfação por parte dos indígenas, que,
por sua vez, iniciam rebeliões para expulsar os missionários. Os Ashaninka sempre
responderam de duas formas aos missionários: proximidade, por enxergarem como
fonte de abastecimento de ferramentas de metal; e distância, pela interferência no seu
modo de vida, marcado pela autonomia e liberdade.
Esse foi o cenário que Juan Santos de Atahualpa encontrou quando chegou a
região da Selva Central. Atahualpa foi um indígena mestiço errante, educado pelos
missionários em Cusco, com os quais fez viagens para Europa e Congo. Em 1742
chegou a Selva Central e vendo a insatisfação dos indígenas com a situação colonial,
criou uma grande rede de alianças entre os diversos grupos e promoveu a maior
rebelião já vista na américa indígena contra os agentes da colonização, expulsando
todos os espanhóis e missionários, relegando a região mais de cem anos de paz. Nas
sua palavras, dizia-se Apu Inka, e iria devolver aos indígenas daquela região a
liberdade que tinha sido perdida com a chegada dos brancos.
Depois de diversas guerras contra a coroa seu nome sai de cena dos
documentos oficiais no ano de 1752. Dizem que morreu vitima de uma pedrada na sua
cabeça dada por um seguidor querendo testar sua imortalidade, entretanto seu legado
continuou11. Na região de Metraro foi construído um templo de pedra onde diziam
estar enterrado seu corpo. Este tumulo era visitado todo ano por fiéis que vinham
festejar e trocar o cushma12 que ficava sobre ele. No final do século XIX esse local foi
10 Renard-Casevitz (1992) propõe que o sistema socio-cosmologico dos aruaques subandinos é concêntrico e reticular. Falar em concentrismo é pensar a socialidade como esferas de sociabilidade e solidariedade crescentes que interconectam os grupos locais a os supralocais criando um sistema de irradiação da influência política. Por sua vez, as vastas redes de comércio, o sistema reticular, possibilitariam que essa influência política alcançasse zonas muito distantes, capaz de unirem diversos grupos contra um inimigo comum. Portanto, cada grupo é um célula autônoma e um centro de irradiação política, por isso uma sociedade multi-centrada. 11Segundo Pimenta (2002: 60-61), “A historiografia produzida sobre o líder da grande revolta indígena que abalou a Amazônia peruana no século XVIII apresenta-se como um caleidoscópio de imagens que podem ser interpretadas e manipuladas em função dos interesses de cada parte: criminoso em fuga induzindo os índios, segundo os franciscanos, símbolo da resistência dos povos nativos para o indigenismo, herói da independência para o Peru republicano, precursor da guerrilha armada contra as injustiças para a esquerda radical peruana (…). Atahualpa faz parte do imaginário peruano, declina-se no plural e serve a várias causas”. 12A Cushma é uma vestimenta utilizada por todos os aruaques subandinos. Consiste num tecido retangular que cobre dos ombros feito de algodão cru.
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destruído pelo governo peruano (Santos-Granero 1993). O mais importante é que os
Ashaninka viram nesse sujeito a figura do Inka, um Amachenga, capaz de devolver a
eles a liberdade perdida, crença que, como veremos, permanece até hoje.
No final do século XIX, os colonizadores começam a tentar buscar rotas para
comerciar os produtos que provinham da região amazônica. Duas plantas em especial
chamavam a atenção: a salsaparrila, que era usada na indústria farmacêutica contra a
malária; e a borracha, extraída das árvores de hávea. Apenas os indígenas tinham
habilidades necessárias para recolher essas plantas no interior da floresta, sendo a mão
de obra por excelência. Para conseguir essa mão de obra, os patrões da borracha
tinham uma fórmula infalível, a servidão por dívida e o escravismo. Assim começou
umas das épocas mais tristes e sangrentas daquela região, levada a cabo por homens
duros querendo enriquecer a base do novo eldorado amazônico.
Um dos grandes aspectos daquele antigo sistema de troca que tinha no sal a
moeda corrente era que os grupos envolvidos nele respeitavam uma certa paz interna,
ou proibição da endoguerra (cf. Renard-Casevitz 1992, 1992; Santos-Granero 2002;
para uma crítica ao conceito de endoguerra, cf. Viana 2013). Essa mesma rede
comercial de troca foi acionada por Atahualpa quando ele promoveu a sublevação,
conseguindo a aliança com os diversos chefes através da distribuição de ferramentas
de metais, supridas por uma indústria nativa13. Com a chegada do comércio da
borracha essa rede de troca e paz foi desfeita e diversas correrias começaram a ocorrer
entre os grupos que outrora eram parceiros comerciais. Varese (1973: 246) nos brinda
uma excelente imagem de como funcionavam estas correrias: El método es simple: se entregan Winchester a los cunibo que tienen que pagar com esclavos campa, después se entregan Winchester a los campa y éstos a su vez tienen que pagar com esclavos cunibo o amuesha, y así sucesivamente em uma cadena de correrías trágicas que tiñen de tristeza y horror casi cuarenta años de historia de la selva peruana y cuyas consecuencias se sienten hasta ahora.
Esse sistema perdurou por quarenta anos, mais ou menos. Os grupos que
viviam naquela região começam a utilizar duas estratégias para escapar do terror. Ora
13 Durante a sublevação de Juan Santos Atahualpa a coroa espanhola fechou as fronteiras com os aruaques subandinos impedindo os mesmos de adquirir as mercadorias da Serra. Devido a esse fator os próprios indígenas foram capazes de produzir as ferramentas de metal que necessitavam, através de um sistema de templo-ferrarias sobre a liderança de um sacerdote, o corneshá. Para uma análise desse sistema de templos e ferrarias conferir Santos-Granero (1993).
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fugindo para regiões longínquas do interflúvio, ora se aproximando das missões
protestantes que começam surgir14. Mientras los indígenas se movían entre estos puntos de referencia diferentes – probando la disciplina de las misiones por un tempo, trabajando como peones en los cafetales, viajando tierra adentro por una temporada para tener una vida más tradicional – alimentaban dos impulsos que se habían conservado a través de su historia: una tendencia a resistir por la fuerza la intrusión de los blancos, a responder a la ferocidad de los blancos con la misma moneda; y la creencia de que un espíritu redentor restauraría la prosperidad y la libertad tan brutalmente arrancada de sus manos (Brown & Fernandez, 2001: 75).
No começo do século XX a governo Peruano cedeu longas faixas de terra nas
bordas do rio Perene para a Peruvian Corporation, uma corporação sediada em
Londres que pretendia explorar o café naquela região. Fenando de Stahl, adventista do
sétimo dia, começa a estabelecer sua missão naquela região na mesma época. Com
uma pregação que afirmava a chegada de um messias e distribuindo mercadorias
conseguiu reunir, em pouco tempo, milhares de Ashaninkas esperando que sua
liberdade seja devolvida, acreditando que Stahl é o filho de Pavá, um amachenga.
Entretanto, fechou-se o cerco sobre o Stahl, uma vez que as mercadorias que ele tinha
acesso se acabam e o messias não chega. Aos poucos, esses grupos vão retornando ao
seu local de origem, mas notamos que vontade da reversibilidade não.
Na década de sessenta o Movimiento de la Isquierda Revolucionária (MIR) e
sua comuna Tupac Amaru, chegam na região da Selva Central peruana para levar a
cabo a guerra interna que vinham promovendo contra o governo peruano. Um xamã
Ashaninka, de nome Ernesto, ao se encontrar com Lobatón, o identificou como Itomi
Pavá, o filho sol (um Amachenga). Alguns fatores motivaram esta associação, “El
hecho de que Lobatón fuera de tez oscura y tuviera una gran barba – continuamente
mencionada en los relatos ashaninka – debe de haber contribuído a su alteridad, a la
impresión de que él era de alguna manera parte del mundo exterior, diferente de este”,
nos relatam Brown & Fernandez (2001: 114), procurando motivos para essa
associação. E processeguem os autores, “Así como un sheripiari del Gran Pajonal
pudo haber adaptado el mensaje de Juan Santos Atahualpa a un molde ashaninka,
Ernesto se aproprio del mensaje de Lobatón para hacer su própria profecia bien
estabelecido de los sueños messiânicos ashaninka” (Ibidem: 115). 14 Bodley (1970), na década de 60, encontrou mais de 38 missões que eram financiadas por denominações protestantes.
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Uma história que é cercada por mistérios, fica difícil saber exatamente quais
foram as causas que motivaram a aliança Ashaninka-MIR. Sabe-se que naquela região
esses índios viviam subordinados ao trabalho de peão nas fazendas, muito mal
remunerados e sofrendo diversos abusos por parte dos patrões. Para Brown &
Fernandez, “La explicación más común de la participación ashaninka en el conflito se
basó en las promesas del MIR de obtener recompensas materiales” (2001: 129). Isso
foi interpretado pela história da guerra, como nos dizem os autores, como uma
“ingenuidade” por parte dos Ashaninka que não sabiam o real valor das mercadorias.
Entretanto, Brown & Fernandez têm resposta mais sofisticada para o “materialismo”
indígena: Los Ashaninka veían el intercambio – y el sentido de los artículos en sí – bajo otra luz totalmente distinta. Los bienes se ubican en una relación metonímica respecto del mundo europeo y su poder sobre los pueblos indígenas. La mitologia ashaninka estabelece que los machetes, las telas y otros artículos estuvieron una vez bajo el control del Inca, capturado pelos blancos malignos luego de que estos emergiron del mundo subterrâneo. Cuando el sistema opressivo existente sea derrocado por un héroe espiritual, los indígenas volverán a governar la producción de bienes y los blancos se verán reducidos a la pobreza que merecen (Brown & Fernandez, 2001: 131).
Portanto, nas profundas raízes do mito e da cosmologia ashaninka, ou seja,
naquela necessidade histórica dos bens matérias e na recuperação de um estado de paz
perdido, recuperado apenas pelo amachenga, que estariam as razões que levaram
Lobatón ser identificado com o Itomí Pavá e os Ashaninka terem contribuído com as
ações militares do MIR15.
Nos dias atuais, além dos guerrilheiros, a ameaça a sua autonomia vem se
agravando. A pressão sobre seu território e modo de vida ainda se efetiva de forma
drástica: madeireiros, fazendeiros, narcotraficantes, petroleiros, inúmeros projetos de
desenvolvimento que vêm sendo levados a cabo pelo governo peruano continuam a
pressionar a paz que os Ashaninka esperam gozar naquela região. Fazendo com que
eles ainda continuem empenhados por manter sua autonomia a despeito das várias
frentes de pressão sobre seu território. Se nos atentarmos, ao longo da história 15Além de Lobatón, outro estrangeiro foi associado à figura dos Amachenga. David Pent, filho de linguistas norte-americanos, que viveu na década de 60 na região da selva central, também tentou levar adiante seus sonhos utópicos com uma pitada de sexualidade exótica. Como nos descreve Brown & Fernadez, “parece probable que al menos algunos ashaninka vieron en el charismatico gringo cualidades de los amachéngas o tasórentsi” (2001: 147), essas qualidades seriam o acesso e a distribuição de bens, que ele adquiria com o dinheiro de empresários norte-americanos, que eram lubridiados com os projetos de Pent – o sonho da Amazonian Wood.
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Ashaninka, percebemos o esforço desse povo por manter sua liberdade frente as
pressões que sofreram.
Interpretações antropológicas: o profetismo Ashaninka
Brown & Fernandez (1991, 1992, 2001) sugerido que o que possibilitou a
união, diversas vezes na história, das confederações guerreiras foram as pressões das
frentes colonizadoras. No começo do século XVIII, com a sublevação de Juan Santos
de Atahualpa, nasce o sonho milenarista entre os Ashaninka, segundo os autores
(2001), que consiste na crença de que chegará um líder e com ele um grande
cataclisma irá mudar o mundo, devolvendo aos Ashaninka sua liberdade perdida.
Com isso, os autores acreditam que a assimilação de certos sujeitos – Atahualpa,
Fernando Stahl, Guillermo Lobatón – com a figura do Amachenga é devido a essa
crença que começa com Juan Santos de Atahualpa (1992: 184).
Para Brown & Fernadez, o que motivou a violência Ashaninka foi a chegada
do Estado, entenda-se, das frentes colonizadoras que tentavam de todas as maneiras
subjugar os povos indígenas do piemonte para levar a cabo seus projetos de
colonização16. Assim, no decorrer da sua história, os Ashaninka responderam à
violência que sofreram no mesmo grau. Eles não foram passivos neste processo, se
adaptando e tirando vantagem do que cada momento tinha a oferecer. Na época das
missões, juntando-se com os missionários para obter bens. Durante o período pós
Juan Santos de Atahualpa, produzindo suas próprias ferramentas de ferro. No período
da borracha, aproveitando das correrias para adquirir as mercadorias necessárias
(Ibidem: 193). Esses eventos produziram uma ideologia que os autores chamam de
“sonho milenarista”, uma súbita transformação do mundo.
Veber (2003) faz uma crítica contundente a “inclinação messiânica” que os
Ashaninka teriam (Brown & Fernadez, 2001)17. Segundo a autora, quando começou
seus estudos sobre estes povos acreditava que tachar as rebeliões como movimentos
milenaristas/messiânicos era algo legítimo. Não obstante, um processo de mobilização
16 “Did the expansion of the Spanish, and later, the Peruvian state increase levels of violencia within Asháninka society? The answer to this question is an unequivocal “yes”, though the proximal causes and specific shape of violence have changed through time (Brown & Fernadez,1992: 192)”. 17Vale lembrar que outros autores também relegaram esta tendência ao milenarismo ashaninka, ver Varese, 1973; Rojas, 1994; Santos-Granero 1991, 1992.
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política que ela presenciou em campo fez perceber que ali não tinha nada de
messianismo envolvido (2003: 185).
A ideia do messianismo nasceu nos primeiros escritos sobre a revolta
promovida por Juan Santos de Atahualpa. Alfred Metraux, em 1942, escreve um texto
intitulado A Quechua Messiah in Eastern Peru, apontando Juan Santos como um
messias. Esta designação foi levada adiante no trabalho de Varese (1973) e foi
perpetuada no trabalho de Brown & Fernandez (1991). Os estudos etnográficos,
baseados em trabalho de campo, segundo Veber, contradizem essa suposição levando
em conta as formas como os Ashaninka produzem suas práticas de liderança e chefia.
Na esteira dos argumentos de Elick (1970), que propôs a relação entre o líder e o
xamã em momentos de crises, Juan Santos – bem como outros estrangeiros – pode ter
sido aceito mais como um líder devido o seu discurso “religioso”, bem como por ser
um fornecedor de mercadorias (Veber 2003: 190).
O chefe, entre os Ashaninka, é um homem provedor de bens e “forte”, sua
autoridade só é garantida enquanto ele souber manter essas qualidades. Juan Santos
foi aceito como líder menos por ser reconhecido como messias do que por ser capaz
de atualizar esse modelo da chefia. Vale lembrar que durante a revolta as redes de
comércio que ligavam os Andes foram fechadas e os próprios revoltos foram capazes
de estabelecer na região sua própria indústria de ferro, que possibilitou a provisão
destes bens e a manutenção das redes de alianças entre os chefes (Veber 2003: 196).
Portanto, para a autora, as revoltas entre os Ashaninka, inspirado no caso de Juan
Santos e no sistema de organização social, obedece mais a uma necessidade “político-
pragmática” do que uma ênfase no messianismo ou milenarismo.
Entretanto, não é que os autores estejam errados nem certos, os dois se
baseiam em fortes evidências empíricas para sustentar suas hipóteses. Talvez
podemos ler esses movimentos sobre a sigla do profetismo. Sztutman (2005) nos
apresenta uma interpretação interessante para pensarmos estes casos que percorrem a
história Ashaninka, de Atahualpa a Lobáton. Conforme o autor, para entendermos
esses movimentos políticos, temos que fazer um retorno à “inflexão mítica e
xamânica da ação política” (2005: 435).
No período dos setecentos, a revolta de Atahualpa tinha por fundo romper os
grilhões de dominação impostos pelos padres franciscanos e a promessa de devolver a
liberdade perdida aos indígenas, num sentimento pan-indígena (amazônicos e
andinos). Por sua vez, a adesão de alguns Ashaninkas ao MIR e o título de
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amachenga dado a Lobatón é motivado por processos similares. Vemos que a história
Ashaninka sempre atribui esse título a estrangeiros, figuras da alteridade, como uma
forma de domesticar o poder atribuído às agências exteriores que são responsáveis
pela desarticulação das redes comerciais e do modo de vida desses grupos. Que tipo
de ação política podemos vislumbrar nos vários períodos históricos distintos da
história Ashaninka?
Veber discorda que haja uma inclinação ao profetismo, pois entre eles não
existe uma tradição profética como, por exemplo, os Guaranis estudados por H.
Clastres. Ela, em suma, desconfia das motivações religiosas que fizeram certas figuras
– Atahualpa, Lobatón – serem caraterizados como líderes profetas, sendo estas
figuras, apenas, fruto da reprodução social da sociedade Ashaninka. Ou seja, para
Veber, as motivações são político-pragmáticas, onde a necessidade dos bens era mais
importante do que o sonho profético, como se pudéssemos traçar uma linha que
separa a ação política da cosmologia.
Renato Sztutman faz uma importante crítica a esta posição defendida pela
autora: Ainda que Veber possa ter razão quanto ao exagero das análises etnológicas e históricas sobre as rebeliões ashaninka, negar a presença de elementos proféticos latentes é negar que, ali, o acesso à mitologia e ao xamanismo tenha qualquer implicação para a ação política indígena. Mesmo se os profetas não eram propriamente xamãs campa, isso não significa que o seu reconhecimento – no mais das vezes sob a figura de estrangeiros, mestiços bastante peculiares – não dependesse do xamanismo (2005: 436-437).
Ora, como vimos foi justamente um xamã que se encarregou de “decifrar” aqueles
jovens cabeludos e barbudos, com um discurso libertário e armas na mão.
O xamanismo não é apenas o locus da cura, mas por ser o modo de tratamento
com o cosmo e a cosmologia, ele acaba por redundar nas formas da ação política. Não
importa se uma ação isolada de outro grupo Ashéninka do Pajonal – pesquisado por
Veber – não fez uso de palavras “proféticas” ou “religiosas”. Temos que nos atentar
que a própria maneira de agir – recorrente na sua história – traz em si uma forma de
pensar e agir – uma cosmopolítica.
Prosseguindo na crítica de Sztutman, Diferente do que busca enfatizar Veber, é possível alegar que os povos como os Ashaninka compartilham, com os povos tupi-guarani, um conjunto de mitos sobre a perda da agência, bem como um conjunto de práticas xamânicas que se dispõe a recuperar essa
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agência via mediação e comunicação com os diferentes patamares do cosmo. Ora, essa mitologia e essa práxis – o xamanismo – seriam fundamentais na concepção de uma ação jamais confinada ao mundo dos homens e ao tempo atual, mas que transborda ao mundo não-humano e ao tempo do mito (2005: 437).
O interessante é que essa busca pela agência perdida passa pela assimilação de
certos aspectos do próprio captor – se abastecer de mercadorias e conhecimento do
mundo dos brancos. Entre xamanismo, guerra e comércio vemos uma interferência
na ação política nativa; cada ato, cada disputa e cada troca traz entrelaçada todos os
aspectos da socialidade. Ao longo de sua história o que temos de constante é uma luta
histórica para ser Ashaninka: uma possibilidade de continuar a se reinventar, neste
mundo caótico que eles vêm provando ao longo da sua história.
Se profetismo é política, ou seja, um modo de pensar e agir, ele tem pretensões
com essa ação: a busca pela autonomia e satisfazer o desejo pelas mercadorias e por
conhecimento que provém do exterior; ele funciona como uma máquina de guerra, no
sentido que Deleuze e Guatarri (2012) dão ao termo, ou seja, uma forma de conjurar a
dominação da forma Estado. A ação política contida no profetismo Ashaninka seria
uma ação motivada pela máquina guerreira capaz de se mobilizar através da história
deste grupo contra as formas Estado que os pressionam. Esta máquina guerreira pode
ser pensada tanto na forma de agir – as confederações pan-étnicas contra inimigos
comuns – mas na forma de pensar desta cosmologia e na forma de constituir a
socialidade; “[...] seria, em suma, a inversão – a reversão – do mito, ou seja, a
possibilidade de recuperar o que foi perdido na expectativa do retorno do filho do sol”
(Sztutman, 2005: 438). Esses personagens da história Ashaninka – Atahualpa, Stahl,
Lobáton – foram identificados com figuras cosmológicas, pois eles continham um
valor de alteridade e hibridismo que os permitiam ser os mediadores entre os dois
cosmos que estavam em choque e, apesar de diferentes, se intercruzavam. Essa inversão (ou reversão) é possível visto que o herói mitológico e o histórico compartilham a posição de mediadores porque se emprestam como veículo de comunicação entre homens e deuses e, sobretudo, porque são, eles mesmos, seres híbridos: nem homens, nem deuses, nem indígenas, nem brancos, mas, antes de tudo, aqueles que estão na passagem, no meio, homens-deuses, indígenas ocidentais (Ibidem: 439).
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Na esteira dos argumentos de Calavia Saez sobre a figura do Inka18, Sztutman
argumenta, O “Inka” não seria nem a reminiscência de um tempo passado – o tempo das confederações na selva, como enfatiza Michael Brown (1991) –, nem a imagem da alteridade sociológica ou sociocósmica – o andino, o branco etc. Ele seria, isso sim, um instrumento de pensamento e ação, algo dotado de eficácia histórica. [...] Os mitos em questão trazem, portanto, uma reflexão sobre as possibilidades de existência da vida social, o que pressupõe, como sempre, considerações sobre a condição humana, sobre a mortalidade. Oferecem figuras responsáveis por essa existência e essa condição, figuras que, se materializadas, podem significar uma produção de eventos, tais os movimentos proféticos (2005: 440).
Se levarmos a sério a perspectiva profética desses eventos, podemos começar a pensar
qual é o fundo a que essa política busca responder, seguindo os argumentos de
Sztutman, Nesse sentido, o profetismo subandino, para além de um produto da Conquista e da dominação colonial, pode ser compreendido como um modo de organizar o mundo, de habitar o tempo. O profetismo campa e yanesha não consistem, pois, simplesmente na busca da restauração de um Império ou de uma hierarquia implícita como resposta a uma situação colonial, mas sim num projeto de refundação do social a partir de formas já disponíveis e, no caso, a partir da apropriação de elementos ao mesmo tempo do mundo andino e ocidental, tomados menos como limites ou modelos que como objetos do pensamento (2005: 441).
Considerações Finais
O amachenga, portanto, é uma categoria que pode ser ocupada por figuras
hibridas que possuam o poder da transformação – essa ideia visa reverter a
dependência e devolver a liberdade. A principal função – me perdoem o termo – do
amachenga seria funcionar como objeto de pensamento capaz de redundar numa ação
no mundo. Sendo assim, a crença nessa figura cosmológica está intimamente ligado
com seu poder de funcionar como máquina de guerra, sugerindo que eventos e ações
são derivados de suas próprias cosmopolíticas, ou seja, quando duas cosmologias se
18Calavia Saez (2000) faz um estudo sobre a figura do Inka contida na mitologia de três povos pano para demonstrar que ele consiste num significado muito diverso, uma forma de trato com a alteridade. Segundo Sztutman, “Em poucas palavras, esse motivo [o inka] diz respeito às maneiras de expressar o conjunto das relações entre uma sociedade e seus outros” (2005: 440). Sendo que esses outros, neste caso, diz respeito à fonte produtora de agências que essa figura dá para reprodução social pano como afins potenciais “recusam-se a troca matrimonial, mas participam ativamente da elaboração formal da sociedade, ou seja, são provedores de arte e agência” (2005: 440).
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chocam figuras intermediárias fazem o papel de negociar as forças que resultam desse
encontro. Á guisa de conclusão, o amachenga é justamente essa figura do meio, essa
agência capaz de negociar a liberdade Ashaninka na relação com seus outros
perigosos – sociedades estado. Se tem algo de “razoavelmente fixo” ao longo de sua
história é essa possibilidade.
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