a espera de godot

27
À ESPERA DE GODOT

Upload: livros-cotovia

Post on 24-Mar-2016

315 views

Category:

Documents


17 download

DESCRIPTION

Peça de teatro do Samuel Beckett, traduzida por João Maria Vieira Mendes, publicada por Livros Cotovia.

TRANSCRIPT

Page 1: A espera de Godot

À ESPERA DE GODOT

Page 2: A espera de Godot

Título original: En attendant Godot© Les Éditions de Minuit, Paris, 1952© Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2000

1.a edição: Julho de 20012.a edição: Novembro de 2002

Concepção gráfica de João Botelho

ISBN: 972-795-008-6

Page 3: A espera de Godot

Samuel Beckett

À espera de Godotuma tragicomédia em dois actos

3.a edição

Traduçãode

José Maria Vieira Mendes

Cotovia

Page 4: A espera de Godot
Page 5: A espera de Godot

Índice

Nota do Tradutor p. 9

À ESPERA DE GODOT 11

Page 6: A espera de Godot
Page 7: A espera de Godot

Nota do Tradutor

À Espera de Godot foi escrito originalmente em francês(publicado em 1952) e depois traduzido pelo próprio Sa-muel Beckett para inglês. Esta tradução portuguesa foi feitaa partir da versão inglesa conforme a segunda edição da edi-tora Faber and Faber de 1965, que apresenta importantesalterações em relação ao texto francês, alterações essas quemotivaram a sua escolha. Não foi porém esquecido o origi-nal francês e muitas vezes a ele se recorreu para desfazerdúvidas e tomar decisões. Além disso, foram adoptados,por razões fonéticas, alguns topónimos e nomes própriosdo francês em detrimento do inglês. Foi igualmente consul-tada a edição crítica do texto que se baseia numa revisãofeita pelo próprio autor já em 1975 — The Theatrical Note-books of Samuel Beckett (ed. Dougald McMillan e JamesKnowlson), Grove Press, New York, 1994.

Apesar de não se encontrar habitualmente em textosportugueses (e franceses) o travessão como marca de in-terrupção de fala, optou-se por, tal como no texto inglês,manter este sinal. Fica-se assim a ganhar com a importan-te distinção entre o uso das reticências, que indicam umasuspensão ou até ligeiro prolongamento duma frase ina-cabada, e o uso do travessão, que indica a interrupçãoabrupta da frase.

9

Page 8: A espera de Godot

O espectáculo feito a partir desta tradução (uma pro-dução Artistas Unidos e Re.Al estreada em Lisboa, no dia18 de Maio de 2000, no antigo edifício do jornal A Capi-tal) teve a seguinte ficha técnica:

Encenação: João FiadeiroCenografia e figurinos: Rita Lopes Alves, Isabel No-

gueira, Ana Paula Rocha e José Manuel Reis Luz: Pedro DomingosSom: Rui DâmasoInterpretação: Luís Elgris (Vladimir), Miguel Borges

(Estragon), João Garcia Miguel (Pozzo), Cláudio da Silva(Lucky), Guilherme Duarte (Menino)

Assistência de encenação: Jorge Cruz e Marie Mignot

10

Page 9: A espera de Godot

À ESPERA DE GODOT

Page 10: A espera de Godot

Personagens

ESTRAGON

VLADIMIR

LUCKY

POZZO

UM MENINO

Page 11: A espera de Godot

ACTO I

Uma estrada no campo. Uma árvore.Anoitecer.

Page 12: A espera de Godot
Page 13: A espera de Godot

Estragon está sentado num pequeno montede terra a tentar descalçar a bota. Puxa-a comambas as mãos, arfando. Pára exausto, des-cansa com a respiração ofegante e recomeçada mesma forma.Entra Vladimir.

ESTRAGON (desistindo mais uma vez) Nada a fazer.VLADIMIR (aproximando-se com um passo curto e tenso,

as pernas afastadas) Começo a ter a mesmaopinião. Toda a minha vida tentei resistir,dizia para mim mesmo, Vladimir, sê razoá-vel, ainda não experimentaste tudo. E reco-meçava a luta. (Como se pensasse na luta.Para Estragon.) Cá estás tu outra vez.

ESTRAGON Estou?VLADIMIR Fico contente por te voltar a ver. Pensava

que te tinhas ido embora para sempre.ESTRAGON Também eu.VLADIMIR Até que enfim que voltamos a estar juntos!

Como é que vamos festejar isto? (Pensa.)Levanta-te para te abraçar. (Estende a mão a Estragon.)

ESTRAGON (irritado) Agora não, agora não.VLADIMIR (melindrado, frio) Pode-se saber onde é

que Sua Excelência passou a noite?

Page 14: A espera de Godot

ESTRAGON Num fosso.VLADIMIR (espantado) Um fosso! Onde?

ESTRAGON (sem qualquer gesto.) Por ali.VLADIMIR E não te bateram?

ESTRAGON Bateram-me? Claro que me bateram.VLADIMIR Os mesmos de sempre?

ESTRAGON Os mesmos? Não sei. VLADIMIR Quando penso nisso… estes anos todos…

se não fosse eu… onde é que estavasagora…? (Decidido.) Hoje não passavas deum monte de ossos, não tenhas dúvidas.

ESTRAGON (impressionado) Então e depois?VLADIMIR (abatido) Isto é demais para um homem só.

(Pausa. Alegre.) Por outro lado, de que éque me serve agora desanimar, digo eu. Jádevíamos ter pensado nisso há um milhãode anos atrás, nos anos noventa.

ESTRAGON Deixa-te de conversas e ajuda-me a descal-çar esta porcaria.

VLADIMIR De mãos dadas, do topo da Torre Eiffel,entre os primeiros. Na altura ainda andáva-mos decentes. Agora é tarde demais. Nemsequer nos deixavam subir. (Estragon agar-ra-se à bota.) O que é que estás a fazer?

ESTRAGON A descalçar a minha bota. Nunca te aconte-ceu?

VLADIMIR Estou farto de dizer que se tem de descalçaras botas todos os dias. Porque é que nuncame ouves?

ESTRAGON (enfraquecido) Ajuda-me!VLADIMIR Dói?

16

Page 15: A espera de Godot

ESTRAGON Dói! Ele quer saber se me dói!VLADIMIR (zangado) Só tu é que sofres! Eu não exis-

to. Gostava de te ouvir se tivesses o que eutenho.

ESTRAGON Dói?VLADIMIR Dói! Ele quer saber se me dói!

ESTRAGON (apontando) De qualquer maneira podiasabotoar-te.

VLADIMIR (debruçando-se) Tens razão. (Abotoa a bra-guilha.) Há que dar valor às pequenas coisasda vida.

ESTRAGON O que é que queres, estás sempre à esperado último minuto.

VLADIMIR (sonhador) O último minuto… (Medita.)Quanto mais tarda mais arrecada. Quem éque disse isto?

ESTRAGON Porque é que não me ajudas?VLADIMIR Há dias em que sinto que, seja como for, vai

acontecer. E então fico todo esquisito. (Tirao chapéu, olha para dentro dele, passa a mãopor dentro, sacode-o, volta a pô-lo na cabeça.)Como é que hei-de dizer? Aliviado e aomesmo tempo… (procura a palavra)…hor-rorizado. (Enfático.) HO-RRO-RI-ZA-DO.(Volta a tirar o chapéu e olha para dentrodele.) Engraçado! (Bate no chapéu como quepara desalojar um corpo estranho, volta a olhare põe-no na cabeça.) Nada a fazer. (À custa demuito esforço, Estragon consegue descalçar abota. Olha para dentro da bota, passa a mãopor dentro, vira-a, sacode-a, procura se nãocaiu qualquer coisa no chão. Não encontra

17

Page 16: A espera de Godot

nada, volta a passar a mão pela bota, o olharvago em frente.) Então?

ESTRAGON Nada. VLADIMIR Deixa ver.

ESTRAGON Não há nada para ver. VLADIMIR Experimenta calçá-la outra vez.

ESTRAGON (examinando o pé) É melhor deixá-lo res-pirar um bocado.

VLADIMIR Ora aqui temos um homem como deve ser!Acusa as suas botas quando a culpa é dos seuspés. (Volta a tirar o chapéu, olha para dentrodele, passa a mão por dentro, sacode-o, batenele, sopra, volta a pô-lo na cabeça.) Isto começa a ser preocupante. (Silêncio. Estragonmexe o pé, esticando os dedos para melhor circulação do ar.) Um dos ladrões foi sal-vo. (Pausa.) É uma percentagem razoável.(Pausa.) Gogo.

ESTRAGON O quê?VLADIMIR E se nos arrependêssemos?

ESTRAGON De quê?VLADIMIR Bem… (Pensa.) Não me parece necessário

entrar em pormenores.ESTRAGON De termos nascido?

Vladimir solta uma grande gargalhada que reprime de imediato levando a mão ao púbis,a cara contraída.

VLADIMIR Já nem se pode rir.ESTRAGON Terrível privação. VLADIMIR Apenas sorrir. (Sorri de repente de orelha a

orelha, continua a sorrir, acaba de sorrir como mesmo repentismo.) Não é a mesma coisa.Nada a fazer. (Pausa.) Gogo.

18

Page 17: A espera de Godot

ESTRAGON (irritado) O que é?VLADIMIR Já alguma vez leste a Bíblia?

ESTRAGON A Bíblia… (Pensa.) Devo ter dado uma vistade olhos.

VLADIMIR Lembras-te dos Evangelhos?ESTRAGON Lembro-me dos mapas da Terra Santa. Eram

coloridos. Muito bonitos. O Mar Morto eraazul claro. Só de olhar para ele ficava comsede. É para lá que vamos, costumava dizerque é ali que vamos passar a nossa lua de mel.Vamos nadar. Vamos ser felizes.

VLADIMIR Devias ter ido para poeta.ESTRAGON Mas eu fui poeta. (Um gesto a indicar os tra-

pos com que está vestido.) Não se nota? Silêncio.

VLADIMIR Onde é que eu ia… Como é que está o teupé?

ESTRAGON Está a inchar.VLADIMIR Ah, já me lembro, os dois ladrões. Lembras-

-te da história?ESTRAGON Não.VLADIMIR Queres que ta conte?

ESTRAGON Não.VLADIMIR Ajuda a passar o tempo (Pausa.) Eram dois

ladrões que foram crucificados ao mesmotempo que o nosso Salvador. Um deles —

ESTRAGON O nosso quê?VLADIMIR O nosso Salvador. Dois ladrões. Dizem que

um foi salvo e que o outro foi… (procura ocontrário de salvo) …condenado.

ESTRAGON Foi salvo de quê?VLADIMIR Do inferno.

19

Page 18: A espera de Godot

ESTRAGON Vou-me embora. Não se mexe.

VLADIMIR E no entanto… (Pausa.) Como é que — es-pero não te estar a aborrecer — como é que,dos quatro Evangelistas, apenas um fala doladrão que foi salvo. Estiveram lá todos —ou pelo menos não andaram longe — e sóum deles fala de um ladrão que foi salvo.(Pausa.) Então, Gogo, de vez em quandopodias dizer qualquer coisa.

ESTRAGON (com um entusiasmo exagerado) Eu achoque isto é extraordinariamente interessante.

VLADIMIR Um em quatro. Dos outros três, dois delesnem sequer falam de ladrões e o terceiro dizque os dois o insultaram.

ESTRAGON Quem?VLADIMIR O quê?

ESTRAGON O que é que estás para aí a dizer? (Pausa.)Insultaram quem?

VLADIMIR O Salvador.ESTRAGON Porquê?VLADIMIR Porque ele não os queria salvar.

ESTRAGON Do inferno?VLADIMIR Não, estúpido! Da morte.

ESTRAGON Pensava que tinhas dito do inferno.VLADIMIR Da morte, da morte.

ESTRAGON Então e depois?VLADIMIR Então devem ter sido os dois condenados.

ESTRAGON E porque não?VLADIMIR Mas um dos quatro diz que um dos dois foi

salvo.ESTRAGON E depois? Não estão de acordo, paciência.

20

Page 19: A espera de Godot

VLADIMIR Mas estiveram lá os quatro. E só um deles éque fala de um ladrão que foi salvo. Porqueé que devemos acreditar mais nesse do quenos outros?

ESTRAGON Quem é que acredita nesse?VLADIMIR Toda a gente. Só se conhece essa versão.

ESTRAGON As pessoas são mesmo umas ignorantes demerda. Levanta-se a custo, coxeia até à esquerda, pára,olha para longe com a mão na testa a protegeros olhos, vira-se, vai à direita, olha para longe.Vladimir segue-o com o olhar, depois pega na bota, olha para dentro, larga-a precipitada-mente.

VLADIMIR Bah!Cospe. Estragon vai ao centro da cena e ficade costas para a plateia.

ESTRAGON Que sítio encantador. (Vira-se, vai até à bocade cena, olha para o público.) Perspectivasanimadoras. (Vira-se para Vladimir.) Vamosembora.

VLADIMIR Não podemos.ESTRAGON Porquê?VLADIMIR Estamos à espera do Godot.

ESTRAGON (sem esperança) Ah, pois é. (Pausa.) Tens acerteza que era aqui?

VLADIMIR O quê?ESTRAGON Que tínhamos de esperar.VLADIMIR Ele disse ao pé da árvore. (Olham para a

árvore.) Estás a ver outra?ESTRAGON Que árvore é que é?VLADIMIR Não sei. Um salgueiro chorão.

21

Page 20: A espera de Godot

ESTRAGON Então e as folhas?VLADIMIR Deve estar morto.

ESTRAGON Acabaram-se as lágrimas.VLADIMIR Ou então ainda não é a estação dele.

ESTRAGON Parece mais um arbusto.VLADIMIR Um buxo.

ESTRAGON Um arbusto.VLADIMIR Um — (Interrompe-se.) O que é que estás a

querer dizer? Que nos enganámos no sítio?ESTRAGON Ele já cá devia estar.VLADIMIR Ele não deu a certeza que vinha.

ESTRAGON E se não vier?VLADIMIR Voltamos amanhã.

ESTRAGON E depois de amanhã.VLADIMIR Talvez.

ESTRAGON E por aí fora. VLADIMIR O que interessa é que —

ESTRAGON Até que ele venha.VLADIMIR És implacável.

ESTRAGON Viemos cá ontem.VLADIMIR Ai não não, estás enganado.

ESTRAGON O que é que fizemos ontem?VLADIMIR O que é que fizemos ontem?

ESTRAGON Sim.VLADIMIR Bom… (Zangado.) Contigo nunca se tem a

certeza de nada. ESTRAGON Cá para mim, nós estivemos aqui.VLADIMIR (olhando à volta) Reconheces isto?

ESTRAGON Eu não disse isso.VLADIMIR Então?

ESTRAGON Isso não quer dizer nada.

22

Page 21: A espera de Godot

VLADIMIR De qualquer das formas… esta árvore… (vi-rando-se para o público.) …aquele pântano.

ESTRAGON Tens a certeza que era esta noite?VLADIMIR O quê?

ESTRAGON Que tínhamos de esperar.VLADIMIR Ele disse no Sábado. (Pausa.) Penso eu.

ESTRAGON Pensas.VLADIMIR Devo ter tomado nota.

Vasculha nos bolsos de onde tira lixo vário.ESTRAGON (insidioso) Mas qual Sábado? E será que

hoje é Sábado? Não será Domingo? (Pausa.)Ou Segunda? (Pausa.) Ou Sexta?

VLADIMIR (olhando desenfreadamente à sua volta comose o dia estivesse escrito na paisagem) Não épossível!

ESTRAGON Ou Quinta?VLADIMIR O que é que fazemos?

ESTRAGON Se ele cá veio ontem e nós não estávamos,podes ter a certeza que hoje não aparece.

VLADIMIR Mas tu próprio dizes que estivemos cá ontem.ESTRAGON Posso estar enganado. (Pausa.) Vamos calar-

-nos um minuto, pode ser?VLADIMIR (fraco) Está bem. (Estragon senta-se no

monte de terra. Vladimir caminha agitado deum lado para o outro, parando de vez emquando para olhar para longe. Estragon ador-mece. Vladimir pára em frente a Estragon.)Gogo!… Gogo!… GOGO!Estragon acorda sobressaltado.

ESTRAGON (retoma a consciência do horror da sua situa-ção) Estava a dormir! (Desesperado.) Por-que é que nunca me deixas dormir?

23

Page 22: A espera de Godot

VLADIMIR Senti-me sozinho.ESTRAGON Tive um sonho.VLADIMIR Não me contes!

ESTRAGON Sonhei que —VLADIMIR NÃO ME CONTES!

ESTRAGON (com um gesto para o universo) Isto chega--te? (Silêncio.) Não é simpático da tua parte,Didi. A quem é que eu hei-de contar osmeus pesadelos privados se não os pudercontar a ti?

VLADIMIR Mantém-nos privados. Sabes bem que eunão suporto isso.

ESTRAGON (frio) Há alturas em que não sei se não seriamelhor separarmo-nos.

VLADIMIR Não ias longe.ESTRAGON Isso seria muito mau, muito mau mesmo.

(Pausa.) Não é verdade, Didi, muito maumesmo? (Pausa.) Tendo em conta a belezado caminho. (Pausa.) E a bondade dos ca-minhantes. (Pausa. Carinhoso.) Não é verda-de, Didi?

VLADIMIR Calma.ESTRAGON (voluptuosamente) Calma… calma… Os

ingleses dizem cauma. (Pausa.) Conheces ahistória do inglês no bordel?

VLADIMIR Conheço.ESTRAGON Então conta-ma.VLADIMIR Pára com isso!

ESTRAGON Um inglês, que bebeu um bocadinho maisdo que o habitual, resolve ir a um bordel.Pergunta-lhe a patroa se ele quer uma loira,uma morena ou uma ruiva. Continua.

24

Page 23: A espera de Godot

VLADIMIR PÁRA COM ISSO!Vladimir sai disparado. Estragon levanta-se esegue-o até ao limite do palco. Gestos de Es-tragon como se fosse a assistência encorajan-do um pugilista. Entra Vladimir. Passa porEstragon, atravessa o palco cabisbaixo. Estra-gon dá um passo na direcção de Vladimir,detém-se.

ESTRAGON (gentil) Querias falar comigo? (Silêncio. Estragon dá mais um passo.) Querias dizer--me alguma coisa? (Silêncio. Mais um passo.)Diz, Didi…

VLADIMIR (sem se voltar) Não tenho nada para tedizer.

ESTRAGON (mais um passo) Estás zangado? (Silêncio.Mais um passo.) Desculpa. (Silêncio. Maisum passo. Estragon pousa a mão no ombro deVladimir.) Então, Didi. (Silêncio.) Dá-me atua mão. (Vladimir volta-se.) Abraça-me!(Vladimir hirto.) Não sejas teimoso! (Vladi-mir amolece. Abraçam-se. Estragon recua.)Cheiras a alho!

VLADIMIR É para os rins. (Silêncio. Estragon observa aárvore atentamente.) E agora, o que é que fa-zemos?

ESTRAGON Esperamos.VLADIMIR Está bem, mas enquanto esperamos?

ESTRAGON E se nos enforcássemos?VLADIMIR Mmm. Depois ficávamos com tesão!

ESTRAGON (muito excitado) Tesão?VLADIMIR Com todas as suas consequências. Crescem

mandrágoras onde ele cai. É por isso que

25

Page 24: A espera de Godot

elas gritam quando as arrancamos. Não sa-bias?

ESTRAGON Vamos enforcar-nos agora mesmo!VLADIMIR Num ramo? (Aproximam-se da árvore.) Não

me parece de confiança.ESTRAGON Não se perde nada em experimentar.VLADIMIR Força.

ESTRAGON Primeiro tu.VLADIMIR Não senhor, primeiro tu.

ESTRAGON Porquê eu?VLADIMIR Porque és mais leve do que eu.

ESTRAGON Por isso mesmo!VLADIMIR Não percebo.

ESTRAGON Puxa lá pela cabeça.Vladimir pensa.

VLADIMIR (finalmente) Continuo a não perceber.ESTRAGON Então é assim. (Pensa.) O ramo… o ramo…

(Zangado.) Puxa lá pela cabeça!VLADIMIR És a minha única esperança.

ESTRAGON (com esforço) Gogo leve — ramo não par-tir — Gogo morto. Didi pesado — ramopartir — Didi sozinho. Porque se —

VLADIMIR Não tinha pensado nisso.ESTRAGON Se puder contigo pode com qualquer coisa. VLADIMIR Mas será que eu sou mais pesado do que tu?

ESTRAGON Lá isso não sei. O que é que tu achas? Há cin-quenta por cento de hipóteses. Ou quase.

VLADIMIR E então, o que é que fazemos?ESTRAGON Deixa estar. O melhor é não fazermos nada.

É mais seguro.VLADIMIR Vamos esperar para ver o que é que ele diz.

26

Page 25: A espera de Godot

ESTRAGON Quem?VLADIMIR O Godot.

ESTRAGON Boa ideia.VLADIMIR Vamos esperar para saber exactamente em

que pé estamos.ESTRAGON Por outro lado talvez não fosse mau malhar

o ferro enquanto está quente.VLADIMIR Estou com curiosidade para saber o que ele

tem para nos oferecer. Depois, ou pegamosou largamos.

ESTRAGON O que é que nós lhe pedimos exactamente?VLADIMIR Não estavas lá?

ESTRAGON Não devia estar a ouvir.VLADIMIR Oh… nada de concreto.

ESTRAGON Uma espécie de oração.VLADIMIR Precisamente.

ESTRAGON Uma súplica vaga.VLADIMIR Exactamente.

ESTRAGON E o que é que ele disse?VLADIMIR Que logo via.

ESTRAGON Que não prometia nada.VLADIMIR Que tinha de pensar no assunto.

ESTRAGON No sossego da sua casa.VLADIMIR Consultar a sua família.

ESTRAGON Os amigos.VLADIMIR Os agentes.

ESTRAGON Os correspondentes.VLADIMIR Os livros.

ESTRAGON A conta bancária.VLADIMIR Antes de tomar uma decisão.

ESTRAGON É o procedimento habitual.VLADIMIR É, não é?

27

Page 26: A espera de Godot

ESTRAGON Acho que sim.VLADIMIR Eu também.

Silêncio.ESTRAGON (ansioso) Então e nós?VLADIMIR Como diz que disse?

ESTRAGON Eu disse, Então e nós?VLADIMIR Não percebo.

ESTRAGON Qual é o nosso papel no meio disto tudo?VLADIMIR O nosso papel?

ESTRAGON Não tenhas pressa.VLADIMIR O nosso papel? De mendigos.

ESTRAGON Isto está assim tão mau?VLADIMIR Terá Sua Excelência alguma exigência a

fazer?ESTRAGON Já não temos direitos?

Gargalhada de Vladimir reprimida como antesmas agora sem sorriso.

VLADIMIR Se não fosse proibido, fazias-me rir.ESTRAGON Perdemos os nossos direitos?VLADIMIR (com clareza) Livrámo-nos deles.

Silêncio. Ambos quietos, os braços baloiçan-do, a cabeça descaída, os joelhos dobrados.

ESTRAGON (fraco) Não estamos atados? (Pausa.) Nãoestamos —

VLADIMIR Ouve!Escutam com uma rigidez grotesca.

ESTRAGON Não oiço nada.VLADIMIR Shhht! (Escutam. Estragon perde o equilí-

brio, quase cai. Apoia-se ao braço de Vladimirque vacila. Escutam agarrados um ao outro.)Eu também não.Suspiros de alívio. Descontraem-se e separam-se.

28

Page 27: A espera de Godot

ESTRAGON Assustaste-me.VLADIMIR Pensava que era ele.

ESTRAGON Quem?VLADIMIR O Godot.

ESTRAGON Oh! O vento nos juncos.VLADIMIR Ia jurar que ouvi uns gritos.

ESTRAGON E porque é que ele havia de gritar?VLADIMIR Ao seu cavalo.

Silêncio.ESTRAGON (violentamente) Estou com fome.VLADIMIR Queres uma cenoura?

ESTRAGON Não há mais nada?VLADIMIR Sou capaz de ter uns nabos.

ESTRAGON Dá-me uma cenoura. (Vladimir vasculha nosbolsos, tira um nabo e oferece-o a Estragonque lhe dá uma dentada. Zangado.) É umnabo!

VLADIMIR Ai perdão! Ia jurar que era uma cenoura.(Vasculha de novo nos bolsos e só encontranabos.) São tudo nabos! (Continua a vascu-lhar.) Deves ter comido a última. (Vasculha.)Espera, já encontrei. (Tira uma cenoura e dá--a a Estragon.) Toma, meu caro. (Estragonlimpa a cenoura à manga e começa a comê-la.)Dá-me o nabo. (Estragon dá-lhe o nabo queele volta a meter no bolso.) Fá-la durar que éa última.

ESTRAGON (mastigando) Fiz-te uma pergunta.VLADIMIR Ah.

ESTRAGON Respondeste-me?VLADIMIR Que tal é a cenoura?

ESTRAGON É uma cenoura.

29