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Universidade Federal de Pernambuco - Núcleo de Estudos de Hipertexto e Tecnologias na Educação - 1 -
A era da dissimulação: a linguagem em tempos de tecnologias
Solange Carvalho∗ Rúbia Lóssio∗∗
A linguagem é fictícia. Entre a similitude e a simultaneidade dos acontecimentos, o disfarce permeia a linguagem tecnológica. Este artigo trata do uso da linguagem, a partir da interferência das novas tecnologias, cujo desafio é compreender a linguagem não verbal e às questões do uso no cotidiano das pessoas. Uma questão nos impulsionou ao desenvolvimento desse desafio: como se dá a relação entre o que se diz e o não dito? Nosso objetivo é analisar as interfaces da linguagem e o comportamento do usuário da língua em face das tecnologias, procurando desvendar os segredos do não dito da linguagem digital e seus códigos em tempos de tecnologias. Para melhor focar a era da dissimulação pela linguagem, tecemos nossas considerações com base nos estudos de Hanna Arendt, Maffesoli, Flusser e Labov,. A partir das análises realizadas, constatamos que a cultura digital é o lócus ideal para o disfarce dos sentidos favorecido pelo novo universo midiático. Este desafio nos permitiu compreender a efemeridade da linguagem. Um estudo que destaca a linguagem na cultura digital presta-se ao interesse não somente dos estudiosos da linguagem, mas de todos os que dela necessitam para interagir no cotidiano. Palavras-chave: Linguagem. Mídia. Inovação tecnológica. Disfarce.
1 Introdução
Este artigo pretende analisar as formas estéticas da linguagem em tempos
de tecnologias. Estamos vivenciando o século da mobilidade no que diz respeito
às inovações tecnológicas. O desafio que ora se lança é compreender a
linguagem não verbal e às questões do uso no cotidiano das pessoas.
∗ Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Revisora de textos na Diretoria de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco. Professora de Sociolinguística na Faculdade Luso-Brasileira (Falub). ∗∗ Coordenadora do Núcleo de Estudos Folclóricos Mário Souto Maior da Fundação Joaquim Nabuco e doutoranda do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPE).
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Privilegiamos uma nova era: a era da dissimulação. Nesse sentido, tentaremos
estudar os códigos da linguagem e seu uso em tempos de tecnologias.
A ficção não tem limites, daí a dissimulação. O disfarce gerando pela
aparência dificulta a compreensão da linguagem nos dias atuais. A questão está
na relação entre comunicação e cultura revelada na moldagem da mente das
pessoas que está no cotidiano e na socialidade1, onde há capacidades
contingentes. Há de se considerar que, entre a distância e ausência na relação
de tempos, objetos e mídias, o percurso ganha destaque, ou seja, o processo, o
uso da linguagem inaugura a era da dissimulação. Por isso a fluidez da língua
gera novos sentidos na história. Essa realidade de imagens, que está na
fotografia, internet, filmes, televisão, aproximam as pessoas a criar novas
formas de uso da linguagem. Nesse mundo mágico da ficção, a linguagem conota
uma nova ordem de mundo, o mundo do disfarce, o mundo de códigos, o mundo
de aparências que atinge as pessoas em todos os níveis. Apesar de encurtar a
linguagem, de colocar no sentido da praticidade do cotidiano, a criatividade
ganha destaque pelos gestos, pelas formas, pelas cores, pelos adereços para
compor a linguagem não verbal. Como pré-textos, inauguramos que a
informalidade é tão importante quanto à formalidade da língua.
A linguagem é fictícia. Entre a similitude e a simultaneidade dos
acontecimentos, o disfarce favorece a linguagem tecnológica. Existi uma
dispersão na linguagem que provoca sedução. Por isso, o efêmero se destaca. Há
um feérico charme no uso da linguagem para atrair e facilitar o processo da
comunicação. Por isso, as tecnologias trazem o poder do novo. Desse modo todo
sentimento é camuflado para designar a relação entre mídias, tempos e objetos
no cotidiano das pessoas.
1 “As relações que compõem a socialidade constituem o verdadeiro substrato de toda vida em sociedade, não só da sociedade contemporânea, mas de toda vida em sociedade. São os momentos de despesa improdutiva, de engajamentos efêmeros, de submissão da razão à emoção de viver o ”estar junto“ que agrega determinado corpo social. Assim, é a socialidade que ”faz sociedade“, desde as sociedades primitivas com seus momentos efervescentes, ritualísticos ou mesmo festivos, até as sociedades tecnologicamente avançadas...” (MAFFESOLI, 1998, p. 3).
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2 A comunicação artificial
O processo da comunicação humana é artificial. Para tanto, afirma Flusser
que a comunicação “baseia-se em artifícios, descobertas, ferramentas e
instrumentos, a saber, em símbolos organizados em códigos.” (FLUSSER, 2007, p.
89). Nesse sentido a cultura influencia o processo de comunicação, tendo como
objetivo facilitar esquecimento de uma vida sem sentido condenada à morte. A
comunicação humana tece o véu do mundo codificado.2
Isso ressalta que a comunicação cria significados. Dessa maneira, os seres
humanos encontraram truques para acumular informações. (FLUSSER, 2007, p. 93).
Em toda forma de interpretação há o disfarce, há a camuflagem. Para
Flusser a comunicação só pode alcançar o seu objetivo quando há um equilíbrio
entre discurso e diálogo. (FLUSSER, 2007, p. 98)
Nesse aspecto, ressaltamos que a linguagem digital comporta em seu
discurso um novo diálogo. O diálogo condicional que está na informação estética e
oferece um mapa de sentidos.
Se adotarmos critério ‘semântico’, os gêneros da comunicação serão catalogados conforme a informação transmitida, por exemplo, nas três classes principais: informação ‘fática” (indicativo), informação ‘normativa’ (imperativo) e informação ‘estética’ condicional. Mas pode ser mostrado que os critérios ‘sintáticos’ que ordenam os gêneros da comunicação conforme sua estrutura são adequados para preparar o campo de futuras análises ‘semânticas’.” (FLUSSER, 2007, p. 99)
Desse modo os mapas na comunicação são interpretados dependendo da
visão em paralaxe de cada ser humano. Há de se considerar que:
A tradução da superfície em linha implica uma mudança radical de significado. O olho que decifra uma imagem esquadrinha a superfície e estabelece relações reversíveis entre os elementos da imagem. Essa reversibilidade das relações que prevalecem dentro da imagem caracteriza
2 Op. Cit, p. 90-91)
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o mundo para aqueles que as usam para o seu entendimento, para aqueles que ‘imaginam’ o mundo. (FLUSSER, 2007, p. 140 e p. 141)
Ainda assim, o tempo, segundo o autor, põe em ordem tudo e tudo coloca no
seu lugar devido. Então, há uma nova era, a era da dissimulação do disfarce, da
camuflagem que configura a linguagem em tempos de tecnologia. Os símbolos
foram alterados, reinventados, ressignificados para melhor combinação ou
equilíbrio entre as máquinas e os seres humanos em seu universo cotidiano.
Nesse aspecto configurara o simulacro. Toda a forma do jeito que é sem
ser real.
Diz Foucault que é preciso entender esta palavra com a ressonância que agora podemos lhe dar: ‘vã imagem (em oposição à realidade); representação de alguma coisa (em que esta coisa se delega, se manifesta, mas se retira e, em certo sentido, se esconde); mentira que faz tomar um signo por outro; signo da presença de uma divindade (e possibilidade recíproca de tomar este signo pelo seu contrário); vinda simultânea do Mesmo e do Outro. Assim, o simulacro remete a uma constelação: similitude e simultaneidade, simulação e dissimulação.” (FOUCAULT, p. 2006, p. 10)
Compreender a linguagem digital é um verdadeiro desafio. Desafio em
interpretar os mapas da comunicação revelados no mundo da tecnologia. Mesmo
assim ainda existe às questões o efêmero nos acontecimentos e inovações
provocando uma verdadeira dispersão dos sentidos das coisas. Fragmentações dos
acontecimentos remontam a trajetória na era da dissimulação. Entre códigos,
figuras, imagens, termos inventados a linguagem digital assume sentido e
tendências para novos manuais de interação entre mídias, tempos e objetos.
Queremos salientar que à medida que há modulações dos signos, ocorre uma
transparência nos estilos na vida das pessoas. Consequentemente a maneira como
vemos a sociedade contribui no surgimento da estética. Nesse campo observamos
que segundo Flusser, “existem dois modos distintos de ver e de pensar: o material
e o formal.” (FLUSSER, p.2007, p. 28) O que acontece no cotidiano das pessoas
passa pela questão do material, do imaterial e do tempo. A mídia, por sua vez
contribui na projeção de expectativas e da autoexposição.
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Desse modo, os símbolos são necessários para a vida dos seres humanos.
Portanto, os símbolos são essenciais nas culturas e por sua vez o essencial
encontra-se sob a superfície e a superfície é o “superficial”.
O que está dentro de nós, nossa ‘vida interior, é mais relevante para o que nós ‘somos’ do que o que aparece exteriormente não passa de uma ilusão; mas, quando tentamos consertar essas falácias, verificamos que nossa linguagem, ou ao menos nossa terminologia, é falha (ARENDT, 2008, p. 46, 47).
Para analisar tais fatos de perto, verificamos que a comunicação é a única
maneira de externar os sentidos, ou seja, de aparecer os sentidos. Segundo Arendt,
“não há dois mundos, pois a metáfora os une”. (ARENDT, 2008, p.130)
O mundo é codificado, explica Vilém Flusser, onde precisamos compreender
a relação entre tempo, materialidade e imaterialidade, ou seja, no jogo do mundo
também temos que ter jogo de cintura. Para Flusser, Código é “um sistema de
signos configurados em um padrão regular. (FLUSSER, 2007, p. 83)” Precisamos
compreender que os objetos hoje em dia são mais que objetos, e os sujeitos
precisam desses objetos para se relacionar com o mundo. Nada se esgota e nada se
anula. Há, comtudo, uma característica importante que é ambivalência, que traduz
essa relação. Daí, encontrarmos questões relacionadas à necessidade (aparências,
modos de sobrevivência), resistência (hibridização) e ambivalência (mobilidade).
São modos de identificação da aparência, o estar-junto, o prazer que está na
centralidade subterrânea. A centralidade subterrânea são as conversas jogadas
fora, os bastidores. Por tudo isso, todo sentimento ganha poder na estética.
O cotidiano é ambíguo. Então o julgar, o querer e o pensar são formas de
sedução. “É assim que, num movimento circular sem fim, a ética, o que agrega,
torna-se estética, emoção, comum, e vice-versa.” (MAFFESOLI, p. 1996, p.19)
Nesse sentido nada do que compõem deve se rejeitar. Por isso, aparência.
Talvez o segredo da estética esteja nas banalidades do cotidiano.
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Para desenvolver este assunto devemos considerar as diversas modulações
entre o estático e o dinâmico. “Efeito de composição, chamado por Weber.”
(MAFFESOLI, 1996, p.52) O efeito de composição gera a dinâmica das culturas.
As especulações, e as expectativas são necessárias para a dinâmica das
culturas. Essas especulações precisam da aparência precisa para sobreviver, porque
por dentro, todos são iguais. Digamos que a aparência seja um modo de proteção
para salientar a relação dos seres vivos que entre sujeitos e objetos, estão
percebendo e sendo percebidos ao mesmo tempo. A dinâmica da cultura da
aparência ocorre justamente porque há na vida dos seres humanos, ciclos que vão
do aparecer, do parecer, para depois vir a desaparecer. Primeiro queremos mostrar
exibir, expor, depois queremos imitar para logo depois reinventarmos maneiras de
sobrevivências. E, nesse mundo cotidiano de aparências, tornam-se acessíveis as
experiências do senso comum. Para salientar, esta acelerada dinâmica, faz com
que os acontecimentos, apareçam, parecem e desapareçam rapidamente, onde a
lembrança é algo que parece está tão distante. No jogo do mundo atual, as
questões do efêmero têm a capacidade de transformar os sentidos que envolvem as
práticas sociais. Então...”todo o presente está ausente, porque algo realmente
ausente está presente no espírito, e entre as coisas ausentes está o seu próprio
corpo” (ARENDET, 2008, p 122).
A capacidade dos seres humanos tem de pensar, exerce fundamental
conexão na cultura da aparência, onde a memória e ressaltada com prazo de
validade.
Nesse sentido é como se o invisível viesse primeiro através da aparência. E,
ainda assim, a linguagem, seria o único meio pelo qual as atividades espirituais
podem materializar3.
Isso leva a pensar que o mundo das imagens está entre o conteúdo e a
embalagem. A imaginação é uma fonte inesgotável que facilita o processo da
criatividade no mundo virtual. Por isso:
3 Idem.
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Seria possível se perguntar há 6 mil anos por que se substituiu o mundo das concepções pelo da imaginação , por que foi inventada a escrita. Pode-se fazer essa mesma pergunta nos dias atuais, precisamente porque uma ‘nova civilização das imagens’ parece estar amanhecendo. Naturalmente a resposta é: porque há 6 mil anos algumas pessoas pensaram que certas imagens precisavam ser explicadas. As imagens são mediações entre o homem e o seu mundo, que para ele se tornou imediatamente inacessível. São ferramentas para superar a alienação humana: elas tinham a função de permitir a ação dentro do universo no qual o homem não vive mais de forma imediata, mas o enfrenta (FLUSSER, p. 2007, p. 142).
A “nova civilização das imagens” revela a era da dissimulação, pedo disfarce
e da camuflagem. Hoje não basta “ser” bom, é preciso “mostra” que se é bom. Os
segredos estão manifestados na aparência. Então a aparência é a manifestação dos
segredos. No mundo virtual as aparências se destacam. E a linguagem digital
remete a toda forma de sentido. O second life, ou seja, a segunda vida está na
linguagem digital. Nesse sentido, “Cada um de nós constrói a própria mitologia
pessoal, a partir de pedaços os fragmentos de informações extraídos do fluxo
midiático e transformados em recursos através dos quais compreendemos a nossa
vida cotidiana.” (JENKINS, 2008, p. 28) Vale ressaltar que o texto quando sai do
papel ganha novas formas, gerando dispersão e pedaços. Embora não tenha
validade ganha visibilidade demonstrando valores intangíveis e imateriais. Assim:
O diretor do Programa de Estudos Midiáticos do Massachutts Instituteof Tecnology (MIT), Henri Jenkins, defende que ‘a convergência midiática é mais que uma mera mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias existentes, as indústrias, os mercados, os gêneros e o público” (Jenkins, 2008, p. 41) A convergência efetiva se dá no meio digital. É cada vez mais evidente que a produção mundial de bens simbólicos e icônicos está se digitalizando guardando as especificidades de cada cultura e região. Mas, em todo lugar a digitalização generalizada implica a liberação dos conteúdos culturais de seus suportes físicos. Desse modo. A música se libera do vinil, o texto do papel e a imagem da película, enaltecendo suas características fundamentais de bens informacionais, intangíveis e imateriais. 4
4 Consultar: SILVEIRA, Sérgio Amadeu. Direitos Autorais no Mundo Digital. Revista – Observatório Itaú Cultural/Novos Desafios da Cultura Digital/OIC – n. 09 (jan./abr.2010). – São Paulo, SP: Itaú Cultural, 2010. p.114
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3 Linguagem digital
O ciberespaço constitui-se no ambiente mais procurado por aqueles que
desejam ampliar a sua rede de relacionamento, haja vista permitir uma diversidade
de interação social, em que o espaço e o tempo não se apresentam como entraves
para aproximar pessoas.
A interação em ambientes virtuais funciona como “arenas de uso da
linguagem”, para usar a expressão de Clark (1992), para a qual aponta três
componentes: as pessoas (duas ou mais), os processos (atividades que se queiram
realizar) e as ações coletivas em que os participantes estão engajados.
Defendemos uma interação cuja prioridade seja o desenvolvimento humano.
O homem é o elemento-chave no processo transformador por que passa a sociedade
nos tempos da linguagem digital. É ele quem escolhe as experiências que deseja
ter a partir das oportunidades que se lhe descortinam mediante as novas
tecnologias. Ele vai construindo a sua identidade com liberdade e autonomia para
se tornar sujeito da sua história.
Cada um tem a oportunidade de construir sua própria rede de
relacionamento, e, mesmo autônomos para fazerem suas escolhas, as pessoas
buscam aproximarem-se pela linguagem. O que nos chama atenção são as
especificidades dos usos linguísticos no suporte digital. É interessante como a
diversidade linguística é patente também no ambiente virtual.
Abreviar é a nova ordem dessa linguagem emergente, em oposição ao uso
tradicional, pois a necessidade imposta pelo espaço e tempo levam as pessoas a
registrarem fonologicamente seus textos. Quem sabe não seria a linguagem
fonológica a mais adequada para o registro também da escrita tradicional? Talvez
causasse menos polêmica normativa.
Um fato não há como negar: a linguagem digital com suas especificidades
linguísticas e paralinguísticas parece ser um caminho sem volta, para o desespero
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dos professores de língua portuguesa. Aqueles avisados não se surpreenderão, posto
saberem que a língua é flexível e a tendência é se modificar.
A beleza da língua é a sua fluidez. Escorregadia, ela não se deixa aprisionar. Há muito que se vem tentando... mas é impossível, ela muda. Os filólogos sabem disso. Gramáticos e lexicógrafos sofrem com a variação – primeiro passo para a mudança - essa sim, é a grande realidade da língua. Fluida, escorregadia, variável (CARVALHO, 2010)5
Pelo texto acima, pode-se perfeitamente compreender que, independente
dos que a queiram aprisionar, na perspectiva sincrônica e diacrônica, ela muda
conforme mudem os suportes.
A autora convida a sentir a língua em movimento conforme se pode
visualizar a seguir:
A fala é o foco para a percepção do balanço da língua. De todas as coisas que expressamos oralmente, somente uma ínfima parte é apreendida pelos dicionários e, acreditem, muitas estão destinadas a um obscuro repouso... é isso mesmo! ao asilo das palavras. Não adianta querer ressucitar defunto, dizendo que o latim não morreu, que está vivíssimo entre nós ou com roupagens novas. Morreu sim, e está enterradinho da Silva! Está bem, pode até ter reencarnado, mas ganhou nova identidade... e nova alma! A língua viva está em movimento, na boca do povo, como dizia o saudoso Souto Maior. Pergunto: A esse uso, chamaremos ERRO? Talvez DESVIO? No uso, ela transforma-se e podemos chamar isso de VARIAÇÃO!6
Se conforme o texto acima, não se pode julgar como “errado” o uso da
língua que está em processo de transformação, como pois julgar a fluidez da língua
no suporte digital? É diferenciada sim, é abreviada mesmo, e nas escolhas lexicais e
nas abreviações e até mesmo na descrição de uma emoção tal como o riso, por
exemplo, a grafia é variada. Para citar alguns exemplos: rsrsrsrsrsr; tststststst;
huahuahuahuá; kkkkkkkk e há quem simplesmente utilizem os ícones com
expressão de sorriso para indicar esse estado de espírito. É bem verdade que
5 Disponível em: www.carvalhosolange.blogspot.com Acesso em 14 agosto 2010. 6 Idem.
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existem estudos sendo realizados que diferenciem essas formas de riso como
emoções diferenciadas.
Nessa perspectiva, não há como negar o surgimento de uma onda inovadora
na forma de expressão da língua, a partir da linguagem digital, em que a leitura e a
escrita nos ambientes virtuais estão dando uma reviravolta em nossas práticas
socioculturais hoje.
A linguagem digital, como condicionante inovador das novas formas de
leitura e escrita na Internet, vêm transformando as práticas socioculturais das
comunidades. Corroborando essa afirmação, apontamos para os gêneros
emergentes: o e-mail, o bate-papo, o blog, assim como a aula virtual. Tais gêneros
estão subistituindo numa proporção assustadora os gêneros convencionais7, a saber:
a carta pelo e-mail, a conversa pelo bate-papo, o diário pelo blog e a aula
presencial pela aula virtual. Essa transposição do convencional para o digital não se
dá somente na mudança de suporte, mas também no modo de interagir.
Há uma visível tentativa de suprir essa mudança, a partir de uma
transposição dos aspectos linguísticos da fala para a escrita, fato recorrente em
aulas virtuais8
Os ambientes virtuais de interação on-line são o lócus dos diálogos
eletrônicos comum dos gêneros digital. A linguagem digital em geral recorre a
elementos que caracterizam um estilo altamente informal como: uso de siglas,
abreviaturas, formas elípticas entre outras formas que, mesmo sem apoio da
gramática normativa – e por isso mesmo são estigmatizadas pelos puristas ou pelos
que temem a morte da forma linguística convencional – são formas que constroem
sentido e por isso mostram-se persistentes. A linguagem digital, a exemplo das
aulas virtuais, que instaura uma nova maneira de ensinar e aprender transformando
o tempo e o espaço da aula, estendendo-o para horários e para espaços que vão
além da escola, essa linguagem não tem pretensão de sair de circulação, ao
contrário, parece cada dia mais presente na vida das pessoas. Os ambientes
7 Cf. Marcuschi, 2004, p. 13-67. 8 Sobre a construção de sentidos no gênero Aulas Virtuais, cf. Castro (2007).
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virtuais vêm restatar, assim, as características da conversação face a face,
restaurando os turnos conversacionais, aproximando a conversa on-line das
conversas típicas presenciais.
A linguagem utilizada em ambientes virtuais estigmatizada é acusada de a
apresenta-se como uma linguagem que se afasta dos padrões de uma gramática
prescritiva, valendo-se abreviaturas nada ou pelo menos pouco convencionais, e
icônicas. Entendemos que o grau de formalidade da língua vai num continuum do
menos formal ao mais formal e isso pode ocorrer tanto da linguagem digital como
na linguagem convencional, entretanto no meio virtual há uma predominância da
informalidade, a depender do suporte digital
Os usuários dos suportes digitais se utilizam com propriedade os aspectos as
marcas da oralidade. Além dos aspectos linguísticos da modalidade oral, fazem uso
dos paralinguísticos para estabelecer a construção de sentidos, a exemplo dos
emoticons. Nossa análise estendeu-se ainda aos aspectos contextuais (inferências
pragmáticas) e aos aspectos cognitivos.
Vejamos a seguir alguns emoticons entre os mais usuais:
Sorriso Zangado Eca Ohhh!
Raiva Piscada Na praia Dentuço
Gargalhada Assustado Louco Careta
indeciso Bocejo
Recorrer a elementos paralinguísticos, como visualizado acima, é muito
comum entre os usuários da linguagem digital. Há uma diversidade de
representação para as várias expressões de sentimentos: alegria, raiva, espanto,
estranheza, indecisão, concordância, descaso entre tantas outras. Não se pode
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limitar a diversidade de elementos numa interação on-line. A ideia é agilizar a
comunicação, haja vista a necessidade de se registrar o raciocínio com maior
rapidez. O tempo é um dos condicionantes favoráveis ao uso desses elementos
paralinguísticos, pois a escrita convencional não supre essa necessidade de
registrar o que se vai no processamento cognitivo. Um único ícone economiza
grande quantidade de espaço e de tempo.
Esse novo gênero tem preocupado leitores e produtores textuais, os mais
tradicionais, sobretudo alguns professores de língua. Isso se justifica pelo temor de
que a linguagem digital, com essa mudança de suporte, venha a responsável pela
morte da língua.
4 A variação linguística
O grande conflito por que passa o usuário da língua está intrinsecamente
relacionado à discrepância existente entre o uso natural da língua e o que se
convencionou chamar de norma padrão. Há uma errônea visão que considera para
cada evento que a língua oferece uma forma única de falar “corretamente” e
outras formas “erradas”, ou seja, as outras variantes são qualificadas como
“erros”. O que ocorre é que a língua oferece diversas formas de falar, e, em estudo
diacrônico, percebemos que o oral guia a forma escrita que pode se tornar
obsoleta, com o tempo. A escrita não muda a forma da fala, mas a fala, por sua
vez, orienta a escrita (CARVALHO, 2009)
A Sociolinguística, surgida em meados do século XX depois da chamada
virada pragmática em que se passou a valorizar a língua em uso, tem por objeto de
estudo a variação linguística, cujo expoente é William Labov, autor da Teoria da
Variação. Sua perspectiva da língua foi tão difundida que muitas vezes confunde-se
com a própria ciência que é reconhecida como “Sociolinguística Variacionista”.
A língua caminha em constante transformação. A variação é o primeiro
passo para a mudança. Segundo Labov (1972) existem na língua duas formas de
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variação: a variação em co-ocorrência e a variação em concorrência. As pessoas
usam mais de uma palavra ou expressão para significar, o que é perfeitamente
natural haja vista a riqueza lexical de uma língua. Dizemos então que são formas
co-ocorrentes. Ocorre que, muitas vezes, duas formas entram em competição, em
que uma delas é estigmatizada, ou seja, sofre preconceito, será considerada a
espúria da língua, forma “errada” de expressar o significado, embora esteja “na
boca do povo”, nas praças, nas escolas, no uso natural da língua. A outra forma,
mais aceita pelos falantes da chamada norma culta, presente na escrita formal.
São formas em concorrência. Na evolução da língua, somente uma forma de uso vai
permanecer. O que muitos não se dão conta é que pelo estudo diacrônico da língua
foram as formas usada fora da academia, longe da erudição, pelo povo sem
escolaridade (e a maioria não tinha acesso), são tais formas que permaneceram,
pois o Português como o é hoje foi originado do Latim vulgar e não do Latim
erudito.
Nessa perspectiva, entendemos que são as formas estigmatizadas, mas em
uso, que possivelmente prevalecerão, ou seja, o uso considerado “errado” hoje
será considerado ”certo” amanhã. Portanto, somos convidados a combater o
preconceito linguístico tão arraigado em nosso meio, como bem ilustrado por
Bortoni-Ricardo (2005, )quando aponta que a sociedade valoriza o uso da chamada
norma culta, tanto o erudito quanto o trabalhador braçal “todos admiram o “falar
bem” dos que se comunicam mediante a variedade de prestígio do Português, cujas
normas estão prescritas na gramática.
É interessante constatar que, nas sociedades modernas, os valores culturais associados à norma linguística de prestígio, considerada correta, apropriada e bela, são ainda mais arraigados e persistentes que outros de natureza ética, moral e estética” (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 13)
Segundo a sociolinguista acima referenciada, para a sociedade, em geral, é mais
fácil aceitar a diversidade de valores éticos, morais e estéticos do que a
diversidade de usos linguísticos. Para Bordoni-Ricardo (2005, p. 14), tais valores
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culturais, em relação ao uso da norma prestigiada, ou seja, o prestígio relacionado
ao Português-padrão pode ser questionado, desmistificado, apontado como
influencia das desigualdades sociais, mas não pode ser negado, pois o
comportamento em relação à língua “é um indicador da estratificação Social”9
Os variacionistas, por sua vez, vão de encontro à chamada norma culta, pois
entendem que a língua não pode ser estudada sem considerar os usos não somente
regionais, mas os diversos usos que se afastam da gramática prescritiva. Eles
questionam a terminologia padrão, pois, segundo entendem, padrão mesmo é o uso
flexível com que os usuários, na espontaneidade da fala, se comunicam. Uma
característica inegável da língua é sua mobilidade; é seu caráter flexível. Há que se
considerar, portanto, a variação linguística como inerente aos estudos linguísticos.
Nessa perspectiva, a verdadeira norma seguida é a variação e a mudança, pois
quando duas formas sobrevivem em tempo síncrono, dizemos que está em variação,
quando ao longo do tempo uma das formas desaparece, sobrevivendo apenas uma
das formas, entendemos que houve mudança.
Considerações Finais
Este artigo apresentou uma discussão teórica sobre as forma de dissimulação
que a mídia oferece com foco no fenômeno da linguagem digital, trazendo à tona
elementos pontuais da variação linguística como pressuposto para uma melhor
interação entre os usuários da língua.
Ao longo das discussões procurou-se mostrar que se vive numa época em que
a hipocrisia e o preconceito linguístico são latentes, embora dissimulados pelo não
dito. As abordagens nos mostraram que é preciso estar aberto às novidades da
língua para uma compreensão satisfatória do outro que, entre o dito e o não dito,
sugere um turbilhão de emoções que são imperceptíveis para alguns. Observamos,
no entanto, certo embaralhamento de valores na era digital – uma mistura entre a
9 Id. Ibid
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imagem, o texto e o real –, resultando daí maneiras imprevisíveis de destacar a
efemeridade no mundo da mídia. Se, porém, esse canal estiver bloqueado por
algum tipo de preconceito, não haverá motivação suficiente para alguns usos vão
criar raízes e outros podem fracassar devido às mudanças em seu funcionamento ou
mesmo adquirir novos significados, pois aqueles que estão fechados as novas
formas de uso e cedo perderão interesse por uma língua, cuja prática oral nega a
prática escrita.
Outro ponto discutido foi sobre a preocupação dos leitores e produtores
tradicionais quanto à suposta morte da língua, sem entender que uma língua só
morre quando deixa de ser usada (e isso ainda é questionável), entretanto o que
deve descansar esse olhar preocupado é que a língua é maleável, flexível, fluida e
a sua beleza reside nessa fluidez, somente o tempo é testemunha dessa
transformação, que nem mesmo as amarras da tradição consegue aprisionar. É,
pois, aconselhável que estejamos abertos a novas perspectivas, ao fenômeno da
variação e à mudança linguística.
Consideramos relevante, também, o incentivo às pesquisas dos fenômenos
variacionistas nesse novo gênero textual que ora se instaura, advindo daí muitas
descobertas, pois todos nascemos aptos para conhecer e nos dar a conhecer.
Acreditamos que investigar a construção de sentidos no ambiente de
interação on-line é, no mínimo, uma tarefa instigante para quem se interessa pelos
fenômenos da linguagem em uso, pois a linguagem digital apresenta características
próprias, criadas pelos usuários da língua com a finalidade de atender a uma
necessidade de comunicação em tempo real.
Por fim, há de se considerar que o universo digital é um poço de insatisfação
e criatividade. Na mídia, todo “absurdo” torna-se interessante. O remix é um
processo natural no mundo virtual. É possível que a era da dissimulação sempre
tenha existido, mas hoje ela germina para legitimar a mídia que consumimos por
uma linguagem digital.
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