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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
INSTITUTO DE PESQUISAS SÓCIO-PEDAGÓGICAS
PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU
A EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE INDUSTRIAL:
DE COMENIUS A RIVAIL
Por: Sebastião Pinheiro Martins
Orientador: Prof. Ms. Marco A. Larosa
Rio de Janeiro 2001
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES INSTITUTO DE PESQUISAS SÓCIO-PEDAGÓGICAS
PÓS-GRADUAÇÃO LATU SENSU
A EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE INDUSTRIAL:
DE COMENIUS A RIVAIL
Apresentação de monografia ao Conjunto
Universitário Cândido Mendes como
condição prévia para a conclusão do
Curso de Pós-Graduação Latu Sensu em
Docência Superior, em 2001
Por Sebastião Pinheiro Martins
ii
DEDICATÓRIA
Dedico esta monografia à minha prima Mara Lúcia, exemplo de mulher cristã, mãe e educadora; e à minha amiga Leonídia, sociológa, que desde o princípio me estimulou a realizar este trabalho.
iii
AGRADECIMENTOS
Quero deixar aqui registrados meus agradecimentos ao pessoal da Escola
Estadual Mal. Zenóbio da Costa, em Nilópolis, RJ, nas pessoas de sua diretora geral,
Regina da Conceição; de sua diretora adjunta, Edilene Ferreira Braz; das orientadoras
pedagógicas Nádia Santos Souza e Jurema Almeida Rangel; dos professores Maria de
Lourdes Lima de Sousa Correia, Celi de Almeida Pinto e David Borges Berkowicz; e
demais funcionários, pela amistosa acolhida e apoio durante meu estágio no referido
estabelecimento público de ensino.
Quero agradecer também ao Prof. Marco Antônio Chaves, da
Universidade Cândido Mendes, pelas primeiras orientações na elaboração do projeto
para a pesquisa de que esta monografia é resultado.
Agradeço também ao Prof. Carlos Faria Filho, a Antônio Augusto
Azevedo de Carvalho, pelas sugestões bibliográficas.
E, finalmente, quero deixar aqui registrado também meu agradecimento
ao presidente do Centro Espírita Léon Denis, Altivo Pamphiro, pelo estímulo e apoio
para a realização deste trabalho.
iv
RESUMO
As transformações econômicas, sociais, políticas e culturais ocorridas
entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, por efeito da Revolução
Industrial, impuseram modificações nas teorias e práticas educacionais, tendo em vista
preparar o cidadão e trabalhador — do operário ao engenheiro — para um mundo em
vias de globalização. Dentro desse contexto histórico, a proposta educacional do
pedagogo francês Hyppolite Léon Denizard Rivail buscava atender, em parte, às
exigências dessa sociedade em processo de industrialização, valorizando, por um lado,
uma formação intelectual que privilegiava o ensino das ciências e das línguas modernas
— em substituição ao ensino humanista que caracterizara a educação do Antigo Regime
—, mas, por outro lado, enfatizando em primeiro lugar, uma formação ética, calcada em
valores cristãos.
v
METODOLOGIA
Basicamente, pode-se definir a metodologia desta pesquisa, de forma
mais genérica, como dedutiva. O método dedutivo parte de uma situação ou posição
geral, particularizando conclusões. Dessa forma, pretende-se explicar as idéias do Prof.
Rivail situando-as no contexto histórico das transformações trazidas pela Revolução
Industrial, iniciada na Inglaterra, e pela revolução político-social, iniciada na França em
1789, assim como a influência de pedagogos como Pestalozzi e Jean-Jacques Rousseau.
Procedendo à interpretação crítica dos dados levantados pelo estudo da documentação
textual, será averiguada a adequação das propostas educacionais do Prof. Rivail às
exigências trazidas pelas transformações sócio-econômicas e culturais ocorridas no
período supracitado.
vi
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO I – O CONTEXTO HISTÓRICO 12
1.1. – Um modelo a ser superado: o Antigo Regime 15
1.1.1 – O papel da Igreja na educação 22
1.2 – O impacto da Reforma protestante na educação 30
1.3 – O impacto das revoluções de 1789-1848 37
CAPÍTULO II – O SURGIMENTO DA PEDAGOGIA MODERNA 56
2.1 – Comenius 58
2.2 – Rousseau 64
2.3 – Pestalozzi 75
CAPÍTULO III – RIVAIL E A EDUCAÇÃO 84
3.1. – O Plano proposto para a melhoria da Educação Pública 89
3.1.1 – Conceito de educação 89
3.1.2 – Inatismo 90
3.1.3 – Fim das punições físicas 92
3.1.4 – Valorização do estudo das ciências 93
3.1.5 – Valorização do estudo das línguas modernas 96
3.1.6 – Contra as classes demasiadamente grandes 96
3.1.7 – Criação de uma escola de pedagogia 97
3.1.8 – Educação feminina 99
vii
3.1.9 – Sobre a interferência estatal no ensino 101
3.2 – O Espiritismo e a educação do trabalhador 102
3.3 – Léon Denis e a escola laica 113
CAPÍTULO IV – A PEDAGOGIA ESPÍRITA NO CONTEXTO BRASILEIRO 120
4.1 – O contexto brasileiro 121
4.2 – A introdução do Espiritismo no Brasil 129
4.3 – O desenvolvimento de uma pedagogia espírita no Brasil 134
CONCLUSÃO 144
BIBLIOGRAFIA 147
ANEXOS 151
INDICE 152
FOLHA DE AVALIAÇÃO 154
Viii
INTRODUÇÃO
“Há um elemento que não se ponderou bastante, e sem o qual a
ciência econômica não passa de teoria: a educação.”
KARDEC. O Livro dos Espíritos (1860)1
Esta monografia tem como objetivo esclarecer o sentido da proposta
pedagógica do pedagogo francês Hyppolite Léon Denizard Rivail, mais conhecido pelo
pseudônimo Allan Kardec (1804-1869). Busca elucidar, mais especificamente, as
possíveis contribuições trazidas por esse educador para a construção de uma pedagogia
apropriada às novas necessidades impostas por uma economia industrial. Deve ser
enfatizado, por outro lado, que não se está colocando em questão nenhum aspecto
propriamente religioso do pensamento de Kardec.
O problema apresenta relevância social no contexto brasileiro, levando-
se em conta a influência que as idéias de Kardec exercem sobre significativa parcela da
população brasileira desde a segunda metade do século XIX, estimulando a implantação
de uma extensa rede de assistência social, que inclui unidades escolares ou pré-
escolares que se propõe a aplicar os princípios teóricos do citado pensador. O recente
lançamento, no Brasil, da tradução de seu Plano proposto para a melhoria da Educação
Pública2, tornou ainda mais oportuna esta investigação.
1 KARDEC, Allan [RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard]. O Livro dos espíritos. 3. ed., São Paulo: FEESP, 1987, p. 266. 2 RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Textos pedagógicos. Tradução, apresentação e notas de Dora Incontri. São Paulo: Comenius, 1998, pp. 13-76.
A pesquisa parte do presuposto de que a educação “não é algo de isolado,
abstrato, mas está relacionada estreitamente com a sociedade e cultura de cada época”3,
pois “as questões educacionais são engendradas no seio das relações econômicas,
sociais e políticas das quais fazem parte indissolúvel”4. Não basta, portanto, situar
Rivail/Kardec em uma determinada linha teórica da Pedagogia e explicar que ele foi
discípulo de Pestalozzi (1746-1827), que por sua vez recebeu forte influência de
Rousseau (1712-1778), e que todos eles foram herdeiros de Comenius (1592-1670) —
ainda que este seja, sem dúvida alguma, de um aspecto fundamental, que deve
necessariamente ser levado em conta na pesquisa. Mas não é suficiente. É necessário,
também, elucidar o sentido da proposta pedagógica kardequiana situando-a no contexto
histórico das transformações econômicas, sociais, políticas e culturais ocorridas na
França desde as últimas décadas do século XVIII até a metade do século XIX.
Para a compreensão do impacto dessas mudanças históricas sobre a
educação, o conceito de aparelho ideológico de Estado, elaborado pelo filósofo francês
Louis Althusser (1918-1990), é de fundamental importância. Segundo Althusser, na
sociedade capitalista industrial, o Estado, além de contar com um aparato repressivo que
assegura a manutenção da ordem por meio da coerção (exército, polícia, tribunais,
prisões, etc.), possui também aparelhos ideológicos, constituídos por instituições da
sociedade civil encarregadas de transmitir idéias, valores e regras pelas quais se
pretende regular as relações sociais. São os aparelhos ideológicos: religioso, escolar,
familiar, jurídico, político, sindical, de informação e o cultural. Destes, o mais
importante na sociedade capitalista seria o escolar, por desempenhar papel de destaque
na formação de mão-de-obra, não só através da transmissão de conhecimentos
científicos ou técnicos, mas também e principalmente de idéias e valores da classe
dominante, a burguesia5.
3 LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação e da pedagogia. 18. ed., São Paulo: Nacional, 1990, p. xv. 4 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. 2. ed. rev. e atual., São Paulo: Moderna, 1996, p. 5. 5 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 7. ed., Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 57-58.
Conforme essa linha de pensamento, o processo de secularização do
ensino, que tomou maior impulso com a Revolução Francesa de 1789, substituindo a
Igreja pela Escola leiga no papel de aparelho ideológico de Estado dominante, vincula-
se ao desenvolvimento da economia capitalista e da consequente ascensão da burguesia
ao poder6. Tal processo implicou na substituição de teólogos e padres por intelectuais
leigos, pedagogos e professores no papel de principais responsáveis pela defesa e
inculcação dos valores da classe dominante junto às classes trabalhadoras7.
É a partir desses pressupostos teóricos que se pretende elucidar o papel
desempenhado pelo pedagogo Rivail/Kardec na sociedade francesa no século XIX,
assim como o sentido de suas propostas educacionais.
Assim, no capítulo I, abordam-se as mudanças sócio-econômicas,
políticas e educacionais ocorridas na Europa ocidental, mais particularmente na França,
durante a Idade Moderna, até a primeira metade do século XIX, demonstrando que essas
transformações estão interligadas dentro de um mesmo processo, que é o da
implantação capitalismo industrial e da ascenção da burguesia ao poder.
O capítulo II trata do desenvolvimento da pedagogia moderna e de sua
relação com as transformações culturais, econômicas e políticas ocorridas no período
histórico em questão, concentrando a análise nos três principais pedagogos da linha
teórica a que se filiava Rivail/Kardec, ou seja: Comenius, Rousseau e Pestalozzi. O
objetivo deste capítulo é discernir as principais propostas desse grupo de educadores.
O capítulo III busca analisar, mais especificamente, as idéias
pedagógicas defendidas pelo professor Rivail antes da codificação da doutrina espírita,
assim como o impacto posterior de suas propostas sobre a concepção espírita de
educação.
Finalmente, no capítulo IV, é apresentado, de maneira sintética, um
histórico da implantação do espiritismo no Brasil e o esforço de alguns de seus adeptos
em desenvolver no plano prático as propostas educacionais de Kardec.
6 Id., ibid., p. 76-77. 7 HOBSBAWM, Eric J. A Era das revoluções: Europa, 1789-1848. 12. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 241; VARELA, Julia & ALVAREZ-URIA, Fernando. A maquinaria escolar. Teoria & Educação, Porto Alegre, n.° 6, p. 68-95, 1992.
CAPÍTULO I
O CONTEXTO HISTÓRICO
“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem
segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de
sua escolha, mas sob aquelas circunstâncias com que se
defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A
tradição de todas as gerações mortas oprime o cérebro dos
vivos como um pesadelo.”
MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. (1852)8
Hippolyte Léon Denizard Rivail, que se tornou mundialmente conhecido
pelo pseudônimo Allan Kardec, nasceu na cidade de Lyon, França, no dia 3 de outubro
de 1804. Descendente de antiga família lionesa, católica, foram seus pais Jean-Baptiste
Antoine Rivai, juiz de direito, e Jeanne Louise Duhamel.
Tendo realizado seus primeiros estudos em Lyon, Rivail foi enviado, aos
10 anos de idade, à cidade de Yverdon, na Suíça, a fim de prosseguir seus estudos no
então célebre Instituto de Educação fundado por Johann Heinrich Pestalozzi.
Completou sua formação na Escola normal do Instituto, no qual teria iniciado sua
experiência pedagógica já em 1819, estagiando como submestre. Instala-se em Paris, no
ano de 1822, onde desenvolve sua carreira de professor, dono e diretor de escolas
particulares, autor de livros didáticos e pedagógicos. Dentre estes últimos, ganha
destaque o Plano proposto para a melhoria da Educação Pública, apresentado ao
Parlamento da França e publicado em 1828. Posteriormente, em 1831 e em 1847,
quando da abertura de trabalhos parlamentares visando a reforma do ensino, publicou e
enviou novamente aos legisladores sugestões para a melhoria da instrução pública.
Casa-se, em 6 de fevereiro de 1832, com a professora Amélie-Gabrielle Boudet, sua
maior colaboradora.9
8 MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. 2. ed., São Paulo: Centauro, 2000, p. 15. 9 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Allan Kardec: meticulosa pesquisa biobibliográfica. 4. ed., Rio de Janeiro: FEB, 1990, v. I, pp. 29-82, 117-120; DE MARIO, Marcus A. Kardec, o Professor. Revista Internacional de Espiritismo, Matão, ano LXXVI, n.° 12, p. 557-558, jan. 2001.
A promulgação da Lei Falloux, em 15 de março de 1850, a qual colocava
as instituições laicas sob severa fiscalização da Igreja, restringindo em muito seu
trabalho, determinou o afastamento do Prof. Rivail e de inúmeros outros educadores de
suas atividades docentes10.
A partir de 1854, Rivail dedica-se ao estudo de fenômenos
parapsicológicos, dos quais extrai conclusões não apenas científicas, mas também de
ordem filosófica e religiosa. Publica os primeiros resultados de suas pesquisas em 1857,
na primeira edição do Livro dos Espíritos, utilizando então, pela primeira vez, o
pseudônimo pelo qual se tornaria mais conhecido, Allan Kardec. Funda, em janeiro de
1858, a Revista Espírita — Jornal de Estudos Psicológicos, e, em abril do mesmo ano, a
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Publica uma série de livros sobre o
Espiritismo: O que é o Espiritismo, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o
Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese. Falece em janeiro de 1869.
Alguns de seus livros didáticos, sobre Aritmética, Geometria, Ciências e
Gramática, voltados para alunos do ensino fundamental e médio, incluindo manuais de
preparação para exames de admissão em universidades, como a Sorbonne, tiveram
sucessivas edições, após sua morte (até, pelo menos, 1879)11. Mas foi sua atuação como
pensador religioso, entretanto, que ficou marcada para a posteridade, ofuscando seu
trabalho como pedagogo. Só muito recentemente, graças à publicação, em português, de
seu “Plano” de 1828, é que os espíritas brasileiros começaram a se dar conta da
importância das idéias pedagógicas do codificador do Espiritismo.
Esse “resgate da missão pedagógica do Prof. Rivail”12, contudo, ainda
carece de aprofundamento no que se refere à sua contextualização histórica.
Habitualmente, os escritores espíritas limitam-se a situar Kardec como continuador de
uma corrente pedagógica integrada por pensadores como Comenius, Rousseau e
Pestalozzi13, todos eles, com exceção do próprio Rivail, protestantes, fato que pode não
ser uma simples “coincidência”, mas que nenhum autor espírita parece ter se detido em
explicar — preencher esta lacuna é um dos objetivos desta monografia.
10 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op.cit., pp. 143-146. 11 Id., ibid., pp. 182-187. 12 LOBO, Ney. Resgate da memória e da missão pedagógica do Prof. Rivail. Visão Espírita, Salvador, ano 2, n.° 19, p. 12-13, dez. 1999. 13 INCONTRI, Dora. A Pedagogia Espírita. Revista Cristã de Espiritismo, São Paulo, ano 1, n.° 3, p. 25-31, set./out. 1999.
É importante também levar em consideração que Rivail/Kardec trabalhou
como educador em um período crítico, quando a Europa sofria os efeitos do que o
historiador inglês Eric Hobsbawm chamou de “dupla revolução”: a Revolução Francesa
(abrangendo não apenas a revolução de 1789, mas também as de 1830 e 1848), de
cunho político e social, e a Revolução Industrial inglesa. Para Hobsbawm, essa dupla
revolução “constitui a maior transformação da história humana desde os tempos
remotos quando o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a escrita, a cidade e o
Estado”, e seus efeitos se fazem sentir ainda, por todo o mundo14. No plano econômico,
esse período se caracterizou pela superação de uma economia feudal,
predominantemente agrícola, pelo capitalismo industrial e urbano. Com a invenção do
telégrafo, do transporte ferroviário e do navio a vapor, essa nova economia industrial já
manifestava uma de suas características mais marcantes: a tendência de reunir todas as
regiões do planeta em um único mercado globalizado.
A aristocracia agrária e o clero católico perderam o poder político para
uma nova classe dominante: a burguesia. Conseqüentemente, o período se caracteriza
pelo surgimento de uma sociedade regida por valores burgueses, “pela obrigação geral
do trabalho, por uma separação rigorosa entre o foro privado e a vida pública, por uma
hierarquia de valores que dá a primazia ao sucesso econômico”15.
No aspecto educacional, essa época se caracterizou pelo
desenvolvimento da instrução pública estatal, constituída como unidade orgânica, da
escola primária à universidade; pelo laicismo, com a substituição do ensino religioso
pela instrução moral e cívica, inspirada em princípios democráticos e de liberdade; e,
finalmente, pela implantação do princípio da instrução elementar universal, gratuita e
obrigatória. O fenômeno da urbanização acelerada, decorrente do capitalismo industrial,
criava grande expectativa e demanda com respeito à educação, uma vez que a
complexidade do trabalho fabril passou a exigir maior qualificação da mão-de-obra16.
Essas transformações econômicas, sociais, políticas e educacionais
ocorreram não apenas simultâneamente, mas de forma integrada, enfrentando muita
14 HOBSBAWM, Eric J. A Era das revoluções: Europa, 1789-1848. 12. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 17. 15 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 116-117. 16 LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação e da pedagogia. 18. ed., São Paulo: Nacional, 1990, pp. 150-151, 155-157, 180-181; ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. 2. ed. rev. e atual., São Paulo: Moderna, 1996, p. 146.
resistência por parte de várias instituições sociais, como a Igreja católica. Importa
proceder agora ao exame mais pormenorizado dessas mudanças históricas.
1.1 – Um modelo a ser superado: o Antigo Regime
O modelo de sociedade que as revoluções de 1789-1848 buscavam
superar era aquele que os franceses denominam Ancien Régime, o Antigo Regime, cujos
fundamentos institucionais remontavam à Idade Média. O período de existência do
Antigo Regime corresponde, grosso modo, ao da chamada “Idade Moderna”, entre os
séculos XV e XVIII.
Tratava-se, antes de mais nada, de uma sociedade essencialmente rural,
de economia agropastoril: até 1789, quatro de cada cinco habitantes da Europa, em
média, eram camponeses, e mesmo na Inglaterra, pioneira na industrialização, a
população urbana não suplantou a rural antes de 185017. O Antigo Regime se
caracterizava também por uma estratificação social rígida, constituída por estamentos
ou Estados. Esses Estados, definidos conforme a função desempenhada pelos seus
membros, eram três: o Primeiro Estado, constituído pelo o clero, o Segundo Estado,
formado pela nobreza, e o Terceiro Estado, a massa restante da população, que
trabalhava para sustentar os outros Estados18.
17 HOBSBAWM, Eric J. Op. cit., p. 27. 18 DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. 2. ed., Rio de Janeiro: Graal, 1996, p. 163; HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21. ed. rev., Rio de Janeiro: LTC, 1986, p. 2-3, 144-145; OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia. 19. ed., São Paulo: Ática, 1999, pp. 76-78.
Até o começo do século XIX, a servidão feudal ainda não havia sido
abolida em muitos países europeus, tais como Áustria, Alemanha, Polônia, Rússia e
Romênia, onde boa parte do povo continuava efetivamente preso à gleba, como na
Idade Média. Na maioria dos Estados alemães, no fim do século XVIII, por exemplo, o
camponês não podia deixar o domínio senhorial: se o fizesse, podia ser perseguido e
reconduzido à força. Não podia alcançar uma posição melhor, nem mudar de profissão
ou casar-se sem o consentimento de seu senhor. Faltava-lhe liberdade até mesmo para
escolher o quê, quando e como plantar. Devia prestar serviço compulsório (corvéia) ao
seu senhor por até três dias da semana19. Esse estado de servidão só foi abolido, na
Europa Central, em 1848, e na Rússia e Romênia, após 186020. Na França, estas
restrições servis à liberdade do camponês já haviam sido abolidas antes de 1789, mas
ainda se obrigava o agricultor a pagar certos tributos feudais aos nobres.
Em países mais desenvolvidos como a Inglaterra e a França, boa parte da
terra — o principal meio de produção21, numa economia predominantemente
agropastoril — já havia se tornado, ao fim do século XVIII, propriedade de camponeses
livres; contudo, grandes extensões dela ainda estavam sob a posse dos nobres ou da
Igreja, variando o percentual conforme o país ou região da Europa22. Na França, os
agricultores ainda trabalhavam em condições nas quais, além de não conseguir terras
suficientes para alcançarem a independência econômica, ainda tinham a maior parte do
excedente produzido confiscada, sob a forma de tributos e obrigações senhoriais23.
19 TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. 4. ed., Brasília: UnB, 1997, p. 71. 20 HOBSBAWM, Eric J. Op. cit., p. 171. 21 Meio de produção: é todo meio material utilizado para realizar qualquer tipo de trabalho. Os meios de produção subdividem-se em matérias-primas (elementos que, no processo de produção, são transformados pra constituírem o bem final) e instrumentos de produção (objetos que direta ou indiretamente permitem transformar a matéria-prima num bem final: ferramentas, máquinas, imóveis, etc.). (OLIVEIRA, Pérsio Santos de. op. cit., p. 54-57.) 22 HOBSBAWM, Eric J. Op. cit., pp. 75-76, 175-176. 23 DARNTON, Robert. Op. cit., p. 40; HUBERMAN, Leo. Op.cit., p. 146-147.
Toda mão-de-obra familiar tinha de ser aproveitada na produção: as
crianças trabalhavam junto com os pais “quase imediatamente após começarem a
caminhar, e ingressavam na força de trabalho adulta como lavradores, criados e
aprendizes, logo que chegavam à adolescência”24. Não se considerava que as crianças
camponesas precisassem de instrução, uma vez que, numa sociedade estamental, não se
esperava que um filho de camponeses pudesse ser outra coisa senão camponês, criado
ou artesão, profissões que não exigiam, sequer, que se fosse alfabetizado. De qualquer
forma, a necessidade do trabalho infantil para ajudar no sustento da família (explicável,
em parte, pelo fraco desenvolvimento das forças produtivas25, que obrigava a um
emprego extensivo da mão-de-obra) dificultaria a permanência das crianças em
quaisquer escolas rurais que chegassem a ser criadas. A situação dos trabalhadores
urbanos não era muito diferente, e assim permaneceu até o século XIX.
Faltava também, às pessoas do Ancien Régime, até mesmo uma noção da
infância e da adolescência como fases distintas da vida humana, que exigem cuidados e
atenções especiais quanto à sua educação e preparação para a vida26. Até meados do
século XVII, o tipo de educação aplicado à maior parte da população consistia em
simplesmente integrar a criança à vida adulta, tão logo ela tivesse crescido o bastante
para isso. A alta nobreza e os artesãos permaneciam fiéis a uma antiga forma medieval
de aprendizagem: aos sete ou nove anos a criança era colocada na casa de outra pessoa
(muitas vezes em outra cidade ou país), para aí trabalhar por um período de sete a nove
anos. Elas eram então chamadas aprendizes, no caso dos artesãos, ou de pajens, no caso
dos nobres. Os plebeus aprendiam, dessa forma, uma profissão, e os jovens aristocratas
aprendiam línguas, as boas maneiras, os esportes da cavalaria e as artes marciais27.
Somente o Primeiro Estado, ou seja, o clero católico, valorizava e
garantia uma instrução letrada a seus membros: desde o Concílio de Trento (1545-1563)
foram criados seminários para educar os que se candidatavam ao sacerdócio. Entretanto,
a maior parte da nobreza e do Terceiro Estado, como foi visto, não sentiam necessidade
de uma instruição letrada. Esse quadro mudou graças a alterações, ocorridas entre os
24 DARNTON, Robert. Op. cit., p. 47. 25 Forças produtivas: são o conjunto dos meios de produção, mais o trabalho humano que os transforma em bens e serviços. (OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Op. cit., p. 57-58.) 26 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed., Rio de Janeiro: LTC, 1981, p. 29-49. 27 Id., ibid., pp. 225-233.
séculos XV e XVIII, na economia e política européias, e nas quais estava envolvido um
importante segmento do Terceiro Estado: a burguesia.
O termo “burguesia” tem suas origens no chamado renascimento
comercial e urbano dos séculos XI a XIII. As Cruzadas — uma série de expedições
militares, organizadas entre 1095 e 1270 sob os auspícios da Igreja Católica, com o
objetivo de libertar a Terra Santa (a Palestina) do domínio muçulmano — haviam tido
como conseqüência o restabelecimento das relações comerciais entre Europa e Ásia,
proporcionando à nobreza acesso aos produtos de luxo do Oriente e maiores
oportunidades de negócio para os mercadores. A retomada do comércio proporcionou o
aparecimento de bancos e instrumentos de crédito, o surgimento de grandes empresas
comerciais e a proliferação de oficinas manufatureiras. Todas essas atividades
concentravam-se em cidades cercadas por muralhas, denominadas “burgos”, e todo
aquele que habitava o burgo era chamado, consequentemente, de “burguês”. Como, via
de regra, os habitantes das cidades desenvolviam atividades ligadas ao comércio,
diferenciando-se da grande maioria da população trabalhadora, voltada para a
agricultura, bem cedo, já no século XI, o termo “burguês” foi usado para designar, ao
mesmo tempo, aqueles que viviam numa cidade e a classe mercantil em geral28.
Todavia, a organização política feudal, descentralizada, que vigorava na
Europa, prejudicava a expansão do comércio, pois os nobres tinham autonomia para
cobrar tarifas alfandegárias e pedágios nas fronteiras, pontes e estradas de seus
domínios senhoriais, além de cunhar moedas e estipular pesos e medidas, com validade
regional. Isso dificultava a unificação dos mercados nacionais. Além do mais, a
invenção das armas de fogo já havia tornado a cavalaria e os castelos dos senhores
feudais obsoletos, exigindo, desde o século XV, um novo tipo de exército.
Somente os reis tinham autoridade para reunir os recursos humanos,
técnicos e econômicos necessários na formação do novo Estado centralizado, e de seu
novo exército. Por outro lado, a fabricação das armas de fogo e da pólvora que os reis
precisavam para suas tropas demandava capital e indústrias, que estavam nas mãos da
burguesia29.
28 MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. História moderna e contemporânea. 5. ed., São Paulo: Scipione, 1999, pp. 11-13; HUBERMAN, Leo. Op.cit., pp. 18-27. 29 PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. 16. ed., São Paulo: Cortez, 1998, p. 108-109.
A burguesia passou, portanto, a apoiar os reis, contribuindo — sobretudo
financeiramente — para que eles impusessem sua autoridade aos senhores feudais,
abolindo suas milícias particulares em favor de um exército de caráter nacional, e
unificassem a moeda, os pesos e as medidas. Uma lei promulgada na França em 1439
vedava expressamente aos senhores feudais a manutenção de tropas armadas sem o
consentimento do rei, ao mesmo tempo em que proibia “todos os capitães e homens de
guerra” (a guerra era o ofício por excelência da nobreza) de molestar os mercadores ou
quaisquer profissionais no exercício de suas atividades e de cobrar quaisquer tipo de
“resgates”. No mesmo ano, o rei da França introduziu a taille, imposto regular em
dinheiro, que lhe permitiria manter seu exército30.
Foi sobre esse duplo monopólio do soberano — o monopólio fiscal, que
centraliza a tributação e dá ao rei a possibilidade de retribuir em dinheiro, e não mais
em terras, aos seus vassalos e servidores, e o monopólio da violência legítima, que
atribui unicamente ao monarca a força militar, tornando-o portanto senhor e garante da
pacificação de todo o espaço social — que se baseou o Estado moderno, dito
“absolutista”, dos séculos XV a XVIII 31.
Premidos pela necessidade de aumentar as receitas, os reis absolutistas
passaram a interferir mais diretamente na economia. Procuraram fomentar o tráfico
mercantil, para obter pelo comércio exterior excedentes em forma monetária
(alcançando uma “balança comercial favorável”). Estimularam e protegeram a produção
industrial manufatureira, apoiaram as companhias mercantis voltadas para o comércio
internacional ou fundaram as suas próprias, apoderaram-se da navegação marítima e
conquistaram colônias na África, Ásia e Américas, de onde se obtinham produtos e
matérias-primas inexistentes na Europa32.
Esse período da História, conhecido como da “Revolução Comercial”,
prenuncia também o futuro nascimento da globalização econômica:
Não só o velho mundo da Europa e regiões da Ásia se abriram
aos comerciantes empreendedores, mas também os novos
mundos da América e África. Não mais se limitava o comércio
aos rios e mares bloqueados por terras, como o Mediterrâneo e
30 HUBERMAN, Leo. Op.cit., p. 71-74; TOCQUEVILLE, Alexis de. Op. cit., p. 135. 31 CHARTIER, Roger. Op. cit., pp. 105 e 215. 32 HUBERMAN, Leo. Op.cit., p. 84-96.
o Báltico. Se anteriormente a expressão “comércio
internacional” queria apenas dizer comércio europeu com uma
parte da Ásia, agora a expressão se aplicava a uma área muito
mais extensa, abrangendo quatro continentes, tendo rotas
marítimas como estradas.33
33 Id.,ibid., p. 90.
Embora não se tratasse, ainda, da globalização propriamente dita — pois
esta só chegaria a se manifestar em sua plenitude no fim do século XX — , é inegável
que a implantação dessa rede de comércio internacional representou um passo
importante nesse sentido.
A nova economia propiciava o desenvolvimento de novas tecnologias34,
exigindo, como conseqüência, uma mão-de-obra mais qualificada e, portanto, uma nova
educação35. Já no século XVI o médico espanhol Cristóbal Pérez de Herrera defendia o
encaminhamento das crianças e jovens para instituições que os formassem para a prática
de ofícios adequados à suas aptidões, idade, origem social ou sexo. Assim, de acordo
com sua proposta, meninos de 10 a 14 anos seriam encaminhados para o aprendizado de
ofícios mecânicos, ou para o estudo da matemática, destinado à edificação, artilharia,
construção naval, etc36.
34 VILAR, Pierre. A transição do feudalismo ao capitalismo. In: SANTIAGO, Theo (org.). Do feudalismo ao capitalismo: uma discussão histórica. 4. ed. rev., São Paulo: Contexto, 1992, p. 40. 35 Tais mudanças chegaram, em alguns países, a influir na educação dos nobres. Em uma obra pedagógica de 1693 — Pensamentos a Respeito da Educação —, o médico e filósofo inglês John Locke estipulava como “absolutamente necessário” à educação de um gentleman o aprendizado da escrituração comercial. Trata-se de um sinal eloqüente do avanço da economia capitalista e da influência da mentalidade burguesa na sociedade da época, pois anteriormente os gastos da nobreza não precisavam ser contabilizados: esbanjar dinheiro, com elegante desprezo, era uma característica do nobre. Reflete também o fato de que muitos membros da nobreza britânica passaram a investir no comércio e na manufatura, associando-se à burguesia (PONCE, Aníbal. Op. cit., p. 126-127). 36 VARELA, Julia & ALVAREZ-URIA, Fernado. A maquinaria escolar. Teoria & Educação, Porto Alegre, n.° 6, p. 68-95, 1992; citação da p. 76-78.
A idéia, entretanto, não era tão nova, pois burguesia já havia
providenciado anteriormente, para si mesma, uma instrução apropriada às atividades
que pretendia desenvolver. Desde o século XIII, os magistrados das cidades européias
começaram a defender a criação de escolas primárias, custeadas e administradas pelas
municipalidades. Tais escolas se caracterizavam, quanto aos conteúdos ministrados,
pela substituição do latim pelos idiomas nacionais, e pela tendência maior a ressaltar a
importância da Aritmética e da Geografia, disciplinas que seriam mais úteis aos filhos
dos comerciantes, cambistas e banqueiros que as frequentavam, pois estes eram os
únicos que podiam pagar os estudos — pois tratava-se de escolas pagas, ainda que seu
custo fosse parcialmente coberto pelos municípios com subvenções, cessão de edifícios
ou material. Os magistrados ou alcaides geralmente nomeavam um diretor
(scholasticus), encarregado de selecionar os professores. No final da Idade Média
(século XV) essas escolas municipais haviam adquirido grande desenvolvimento,
sobretudo nas cidades do centro e norte da Europa, tornando-se, posteriormente, o
princípio da educação pública37.
37 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 88; PONCE, Aníbal. Op. cit., p. 102-103.
A partir do século XVI, a burguesia passa a encaminhar os estudantes a
uma nova instituição: o colégio38. Ele surge caracterizado como uma instituição escolar
voltada especificamente para a educação de crianças e jovens, o que, de certa forma, era
uma novidade. Anteriormente, nas poucas escolas existentes na Europa, o ensino era
ministrado em salas ou lojas alugadas pelo professor (quando as instalações não eram
cedidas pela Igreja ou pela municipalidade), que trabalhava sozinho, às vezes assistido
por um auxiliar. Ministravam-se as mesmas matérias — por exemplo, gramática latina,
retórica e dialética, disciplinas que no período medieval constituíam o chamado trivium,
correspondendo, grosso modo, ao ensino médio — a alunos de diferentes idades, de seis
a 20 anos ou mais, reunidos em uma mesma turma, pois não havia gradação de
currículos. Faltava mesmo, aliás, a noção de que crianças e adolescentes pudessem ter
necessidades educacionais diferentes das dos adultos. Foi em colégios do Antigo
Regime que os alunos começaram a ser distribuídos em diferentes classes, conforme sua
idade e desenvolvimento39. A criação dos colégios é acompanhada, também, pelo
nascimento dos corpos profissionais especializados em educação, que de início podiam
tomar a forma de corporações (como as que congregavam os artesãos) ou de
organizações religiosas. Estes três elementos, espaço escolar específico, cursos
graduados em níveis e corpo profissional específico, foram essenciais à constituição do
que hoje entendemos ser “a Escola”40.
A maioria dos colégios e universidades ficavam a cargo de instituições
religiosas ou estatais. O Estado, particularmente, passou a ter mais interesse na
formação de quadros profissionais:
38 Não podemos esquecer que, durante o Antigo Regime, os nobres e os burgueses mais abastados tinham a opção de deixar a instrução fundamental de seus filhos a cargo de preceptores (professores particulares). 39 ARIÈS, Philippe. Op. cit., pp. 165-177. 40 JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas/SP, n.° 1, p. 9-43, jan./jun. 2001.
Apoiado na escrita, o Estado moderno exige uma formação
particular dos seus agentes. [...] Para tal, são possíveis duas
atitudes: ou utilizar, por vezes adaptando-as, as estruturas
universitárias existentes (é assim que em Castela os seis
colegios mayores de Salamanca, Valladolid e Alcalá de Henares
formam no século XVII dois terços dos oficiais da chancelaria e
dos conselhos reais), ou fundar e apoiar, ao lado das faculdades
antigas, e muitas vezes em concorrência com elas, novas
instituições, caracterizadas geralmente por um plano de estudos
modernizados, aberto aos saberes postos de parte pelas
universidades e pelo exclusivismo nobiliário do seu
recrutamento (como os seminaria nobilium em Italia, no século
XVII, ou as escolas militares e técnicas em França, no século
XVIII).41
Esta tendência a uma interferência estatatal na educação — que,
inicialmente, não entra em choque com os interesses da burguesia — vai se acentuar
ainda mais após a Revolução Francesa de 1789. Contudo, até a metade do século XIX,
ainda houve muita margem para a interferência de uma instituição que, durante mais de
mil anos, havia tomado a educação sob seus cuidados: a Igreja Católica Apostólica
Romana.
1.1.1 – O papel da Igreja na educação
A Igreja desempenhou na Europa, durante mais de mil anos, desde a
queda do Império Romano do Ocidente, um papel crucial não só na vida religiosa, mas
também na organização social e cultural dos povos do continente. O ensaísta francês
Pierre Gaxotte assim descreveu essa atuação da Igreja na Idade Média:
Quando o Império se desmoronou sob os golpes dos Bárbaros,
foi ainda a Igreja o refúgio das leis e das letras, das artes e da
política, ocultando, nos seus mosteiros, tudo o que podia ter
valor para a cultura e ciência humana. [...] À sombra dos
mosteiros repovoam-se os campos. Aldeias em ruínas
41 CHARTIER, Roger. Op. cit., p. 225.
reerguem-se de novo. Os vitrais das igrejas e esculturas das
catedrais são o livro de imagens onde o povo se instrui. O papa
é o ditador da Europa. Ordena as cruzadas e destrona reis.
Doações, riquezas, honras, tudo é deposto aos pés dos clérigos,
e o próprio excesso deste reconhecimento é o índice da
grandeza dos seus benefícios.42
O historiador Charles Parain é mais incisivo quanto ao papel
desempenhado pela Igreja Católica até o fim do Antigo Regime: segundo ele, a Igreja,
além de seus objetivos propriamente religiosos, exercia importante função ideológica,
uma vez que ela “assegurava a subordinação moral das classes trabalhadoras, restritas
no cotidiano a manter, mediante seu trabalho e seu produto, a classe ‘que combate’ [a
nobreza] e a classe ‘que reza’ [o clero]”43. Ou seja: a Igreja pregava aos servos e aos
trabalhadores pobres em geral para que aceitassem, conformados, sua condição social e
a distribuição desigual de recursos (a terra, é importante recordar, estava em posse da
nobreza e do clero), sob o pretexto de ser esta a “vontade de Deus”.
Foi em virtude dessa função ideológica desempenhada pela Igreja que o
filósofo francês Louis Althusser classificou-a como um “Aparelho Ideológico de
Estado” (AIE). Os AIE são intituições sociais cujo objetivo é assegurar a “reprodução
das relações de produção”44, ou seja, das relações sociais que se estabelecem entre os
homens na produção, troca e distribuição de bens. Essas relações existem em todos os
processos de produção e se dão, basicamente, entre os proprietários dos meios de
produção, de um lado, e os trabalhadores, de outro45. Os AIE garantem a permanência
(reprodução) dessas relações produtivas justificando-as através do discurso ideológico,
tal como ocorre, por exemplo, no caso do discurso religioso, supracitado: as diferenças
entre nobres e servos, entre patrões e empregados e entre pobres e ricos são explicadas
como sendo resultado de um “plano divino” e não da atividade humana.
Mas os AIE não asseguram, sozinhos, a manutenção da ordem: existem
também instituições repressivas, tais como o governo, o exército, a polícia, os tribunais,
as prisões, etc, que constituem o chamado aparelho repressivo de Estado. O termo
“repressivo” indica que o aparelho de Estado em questão “funciona através da
42 GAXOTTE, Pierre. A Revolução Francesa. 2. ed., Porto: Tavares Martins, 1962, p. 7-8. 43 PARAIN, Charles. A evolução do sistema feudal europeu. In: SANTIAGO, Theo (org.). Op. cit., p. 27. 44 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 7. ed., Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 78.
violência” — pelo menos em situações limites, pois a repressão administrativa, por
exemplo, pode se revestir de formas não físicas. Althusser classifica os AIE, por sua
vez, basicamente, em: AIE religioso, escolar, familiar, jurídico, político, sindical, de
informação (imprensa) e cultural46.
Destes AIE, a Igreja foi o aparelho ideológico de Estado dominante na
Europa até o advento do capitalismo industrial, acumulando não só as funções
religiosas, mas também as escolares, assim como uma boa parcela das funções de
informação e de “cultura”47. De fato, durante os primeiros séculos (do VI ao XII) da
Idade Média, a Igreja foi a única a manter instituições educacionais, junto aos mosteiros
e catedrais. Mas tratava-se, antes de mais nada, de escolas destinadas à formação de
monges e párocos. Ao lado destas, e a elas vinculadas, foram criadas também as
chamadas “escolas externas” (externas apenas no sentido de que se situavam fora dos
muros dos conventos, pois funcionavam em regime de internato), destinadas à instrução
de clérigos seculares e de alguns nobres que queriam estudar, mas que não pretendiam
tomar hábito. Gramática, retórica e dialética (o trivium), eram as colunas mestras do
ensino dessas escolas, assim como algumas noções de direito e, obviamente, religião48.
A importância dessas escolas começou a decair quando a burguesia começou a criar,
após o século XII, universidades e escolas municipais. Não obstante, a Igreja Católica
ainda manteve o controle sobre o ensino, e as escolas municipais foram obrigadas a
aceitar a inspeção eclesiástica, de tal forma que nenhum professor poderia dar aulas sem
a licença concedida pelo bispo. Muitas universidades, como as de Paris e Bolonha,
também chegaram a ficar sob a tutela da Igreja49.
45 OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Op. cit., p. 58. 46 ALTHUSSER, Louis. Op. cit., p. 67-68. 47 Id., ibid., p. 75-76, 48 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 79-80; PONCE, Aníbal. Op. cit., p. 90-91. 49 PONCE, Aníbal. Op. cit., p. 101-102.
Quanto ao papel da Igreja como “aparelho ideológico de Estado de
informação” e de cultura, basta recordar que os monastérios católicos detiveram,
durante a maior parte da Idade Média, o monopólio sobre a reprodução de livros, que
eram copiados à mão pelos monges. A invenção da imprensa, em 1455, pelo alemão
Johann Gutenberg, proporcionou à burguesia a oportunidade de romper com este
monopólio eclesiástico, do mesmo modo como a invenção das armas de fogo
contribuíra para enfraquecer o papel militar dos nobres50.
A Revolução Comercial e o desenvolvimento do Estado absolutista,
assim como a Reforma protestante, diminuiram gradualmente a importância do papel
ideológico da Igreja, substituíndo-a por outros AIE, mais condizentes com as
necessidades da burguesia emergente51. A Igreja católica resistiu o quanto pôde,
mantendo seu papel dominante até fins do século XVIII.
Como resposta à difusão da Reforma protestante, o Concílio de Trento,
celebrado entre 1545 e 1563, a Igreja procurou, no campo educacional, investir no
preparo de seus próprios quadros, estabelecendo a obrigatoriedade do ingresso em
seminários para os que pretendiam seguir a carreira sacerdotal. Para os leigos, limitou-
se a recomendar aos bispos e autoridades eclesiásticas a criação de novas escolas, a
melhora das existentes em catedrais e mosteiros e a fundação de cadeiras de gramática,
isto é, de ensino secundário, em que se desse instrução gratuita aos clérigos e estudantes
pobres. De sua parte, os papas passaram a estimular também a formação de associações
para o ensino catequista e de instrução religiosa, para conter o movimento protestante.
Assim surgiram várias ordens religiosas dedicadas à educação52. Destas, ganhará maior
destaque, em virtude de sua forte atuação no ensino médio, a Companhia de Jesus,
fundada em 1534 pelo nobre espanhol Inácio de Loyola e reconhecida pelo Papa em
1540. Os jesuítas tinham por missão defender a Igreja católica, combater o
protestantismo, converter os hereges e fortalecer os católicos vacilantes. O criador da
ordem impôs, a todos os seus membros, uma rígida disciplina e estrita obediência 53.
Os colégios dos jesuítas ocupar-se-ão, particularmente, em educar as
classes mais favorecidas dos países católicos, ou seja, da aristocracia e da alta
burguesia, enquanto outra ordem religiosa, a dos Escolápios (Congregação das Escolas
50 Id. ibid., pp. 90, 106. 51 HUBERMAN, Leo. Op.cit., p. 82. 52 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 117-118.
Pias, fundada pelo nobre espanhol José de Calazans, em 1597), se encarregaria
basicamente da educação dos meninos pobres, mas procurando estender também seu
raio de ação para os filhos de famílias mais ricas. Outras ordens, muitas das quais hoje
extintas, serão posteriormente criadas objetivando a educação das crianças pobres:
Clérigos da Mãe de Deus, Doutrinos, Irmãos das Escolas Cristãs, etc54.
Merece particular destaque a Ordem dos Irmãos das Escolas Cristãs,
fundada em 1684, na França, por João Batista de La Salle. A ele se devem a difusão da
educação primária, popular e gratuita nos países católicos, e a idéia da formação de
mestres com essa finalidade, para isso criando Escolas Normais (até o ano de sua morte,
em 1719, havia conseguido criar quatro Escolas Normais e uma de aperfeiçoamento, em
diferentes cidades da França). Por outro lado, é também o criador da escola sem latim.
De resto, o programa era o mesmo de todas as escolas primárias da época: leitura,
escrita, cálculo e instrução religiosa. Segundo Lorenzo Luzuriaga, o aspecto mais
interessante dessas escolas “é o princípio de graduação e classificação dos alunos, que
introduz como antecipação daquilo que posteriormente será o ensino graduado”. As
escolas da Ordem se estenderam pela França e pela Europa e América nos séculos
posteriores, tornando-se as mais difundidas no campo do ensino primário, como as dos
jesuítas o eram no secundário55.
53 GADOTTI, Moacir. História das idéias pedagógicas. 8. ed., São Paulo: Ática, 2001, pp. 65, 72. 54 VARELA, Julia, & ALVAREZ-URIA, Fernando. Op. cit., pp. 71, 79-81. 55 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 128-129.
Diferentemente dos estudantes carentes recolhidos nas instituições
estatais ou caritativas, os alunos dos colégios jesuíticos dedicavam-se ao estudo de
matérias literárias (gramática, retórica, dialética), destinadas ao desenvolvimento da
habilidade de argumentação e que eram interditas aos pobres; ao de línguas,
predominando o latim, além de dança, esgrima, equitação e outros exercícios que lhes
proporcionariam habilidades e maneiras “cortesãs” próprias de sua categoria social.
Mas não é apenas a diferença de disciplinas e atividades que distinguirá, de início, o
ensino ministrado aos filhos da burguesia e da nobreza nos colégios jesuíticos daquele
dado aos dos pobres. Entre os primeiros, o maior rigor disciplinar e as formas de
avaliação a que eram submetidos os colegiais, com seus frequentes exercícios escritos,
distintos níveis de conteúdo, prêmios, recompensas e certames, contribuía para inculcar-
lhes as noções de “mérito individual” e “competência”, característicos do pensamento
burguês56.
Não se pode perder de vista, porém, que o intuito dos jesuítas era o de
proporcionar a melhor educação possível ao seus alunos, desde que fosse compatível
com os interesses da Igreja e da sua Ordem. Visavam, sobretudo, exercer influência
sobre a vida social e política dos países em que atuavam, inserindo nas mais distintas
esferas governamentais colaboradores ativos, zelosos e fiéis: seus ex-alunos. Por isso, o
ensino era ministrado nos colégios jesuítas de modo a excluir o risco de uma
emancipação intelectual por parte do estudante, uma vez que a educação jesuíta só
usava os recursos pedagógicos como um instrumento de domínio. Excluíam, por isso,
da educação, os conhecimentos históricos, filosóficos e científicos mais modernos de
sua época. Mantiveram-se indiferentes a toda controvérsia do pensamento filosófico
moderno; ignoraram até mesmo Descartes, um de seus mais ilustres ex-alunos.
Recusaram-se a incorporar as descobertas científicas de Galileu, Kepler e Newton.
Deturpavam a História de forma a torná-la praticamente irreconhecível. O ensino das
chamadas letras clássicas (estudo dos antigos autores greco-romanos) era realizado de
tal maneira que os textos eram submetidos a uma série de censuras, mutilações
grosseiras e interpretações tendenciosas57.
56 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 119-120; PONCE, Aníbal. Op. cit., p. 119-120; VARELA, Julia, & ALVAREZ-URIA, Fernando. Op. cit., pp. 78-80. 57 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 93-94; GADOTTI, Moacir. Op. cit., pp. 65, 72-75 ; PONCE, Aníbal. Op. cit., p. 119-120.
Nas Américas, os jesuítas também se destacaram no campo educacional,
cuidando da instrução dos filhos dos colonos e da catequese dos indígenas. No Brasil,
então colônia portuguesa, a Companhia de Jesus praticamente monopolizou o ensino,
durante 210 anos (de 1549 a 1759), apesar da atuação de outras ordens religiosas 58.
Luzuriaga considera que a supressão da Companhia de Jesus na França,
em 1762, praticamente representou o começo da implantação da educação pública
estatal naquele país, o que bem dá uma idéia do controle que a Igreja exercia sobre a
educação, por intermédio daquela ordem59. Os motivos da supressão foram tanto de
ordem política quanto pedagógica. Os parlamentos provinciais da França, dando eco a
muitas vozes que haviam se levantado contra os jesuítas em diferentes setores do reino,
acusaram os jesuítas de pretender reger o mundo, sob o pretexto de servir o Papa; de
“açambarcar a religião, da qual faziam propriedade”; de influenciarem os reis “por
intermédio dos confessores que lhes dava”; de prejudicar o cultivo dos sentimentos
patrióticos, ao “substituir a idéia de pátria por uma espécie de cosmopolitismo
religioso”, etc. No campo pedagógico, deplorava-se a rigidez de seus princípios, causa
do significativo atraso no conteúdo do ensino que ministravam, em face ao progresso
das idéias e das ciências naquela época60.
A Igreja ainda manteve considerável controle sobre o ensino na França,
mesmo após a supressão dos jesuítas, substituíndo suas escolas, em parte, pelas de
outras ordens católicas, principalmente pelas da Congregação do Oratório, fundada em
1614 por Pierre de Bérulle. Nos colégios oratorianos ministrava-se um ensino mais
moderno que o jesuíta: além do latim e letras clássicas, francês, história, geografia,
ciências e até mesmo a filosofia de Descartes. Sua disciplina era considerada menos
rigorosa61.
58 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., pp. 99-102, 115-116; PONCE, Aníbal. Op. cit., p. 121, nota 41. 59 Em verdade, esse evento foi parte de uma ação combinada entre diversos governantes, em toda a Europa, visando quebrar o se considerava, na época, como excessiva influência da ordem sobre os assuntos políticos. Iniciou com a expulsão dos jesuítas de Portugal e suas colônias pelo Marquês de Pombal em 1759, da França e respectivas colônias, pelo Duque de Choiseul, em 1762, da Espanha e colônias, pelo Duque de Aranda, em 1767. Sob a pressão combinada desses ministros e mais de Du Tillot, de Parma, e do Príncipe Kaunitz, da Áustria, o Papa foi obrigado a publicar, em 1773, a bula da dissolução da Companhia, a mandar prender o seu Geral (chefe da Ordem) e a fechar o famoso Collegio de Gesú, em Roma. Em 1814, a Companhia foi reorganizada mas, apesar de todos os esforços, nunca mais conseguiu reassumir a posição privilegiada que possuíra em todo o mundo católico, no terreno da educação (apud PONCE, Aníbal. Op. cit., p. 121, nota 41). 60 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 153-154. 61 Id., ibid., p. 130.
No campo teórico, a Igreja quase não produziu nenhum grande pedagogo
que conseguisse exercer uma influência mais perene sobre a educação, ao contrário do
que ocorreu com alguns pedagogistas protestantes surgidos entre os séculos XVII e XIX
— Comenius, Rousseau e Pestalozzi, apenas para citar os mais conhecidos —, cujas
teorias são estudadas e debatidas ainda hoje. Os nobres espanhóis que criaram as
primeiras ordens religiosas dedicadas à educação, Inácio de Loyola e José de Calazans,
não se distinguiram propriamente como pedagogos, mas simplesmente como fundadores
e organizadores. Nada escreveram sobre pedagogia. La Salle também escreveu pouco
sobre educação, embora tenha introduzido algumas importantes inovações no ensino.
Seu Guia das escolas cristãs, publicado em 1720, após sua morte, limita-se apenas a
regulamentar o funcionamento das escolas62. Uma exceção entre os educadores
católicos, contudo, merece ser ressaltada pelo grande valor que lhe foi atribuído
posteriormente pelo professor Rivail: o bispo francês Fénelon.
François de Salignac de la Mothe-Fénelon (1651-1715) foi preceptor de
um dos netos de Luís XIV e destacou-se pela sua defesa da educação feminina. Com
efeito, foi primeiro diretor de um colégio de moças, as Nouvelles Católiques, dedicado à
conversão de jovens protestantes à fé católica63. Mas suas preocupações não se
limitavam apenas ao aspecto religioso. Vivendo na corte, preocupara-se com o fato de
que mesmo as mulheres oriundas dos segmentos sociais mais elevados eram
insuficientemente instruídas: a maioria era semi-analfabeta. Em seu livro A educação
das moças, Fenélon propugnou uma instrução mais acurada para a mulher, ainda que
sem olvidar-lhe os deveres maternais e domésticos. Tal educação deveria compreender
a leitura, escrita, gramática, poesia, história e o estudo de algumas obras clássicas e
religiosas selecionadas. Recomendava que tal educação fosse apresentada de forma
atraente (“Quanto menos se faça em forma de lição, tanto melhor”) e alegre, baseada
mais no prazer que no esforço (“Deve-se misturar a instrução com o jogo”). Embora
suas propostas ainda sofressem de um certo elitismo — para ele, somente as moças “de
tendências excepcionais” deveriam ser encorajadas a aprofundar os estudos —, as obras
de Fénelon influíram grandemente na educação francesa64.
62 Ibid., pp. 123-124, 129 63 Outros intelectuais católicos, como Erasmo de Rotterdam (1467-1536) e o espanhol Juan Luis Vives (1492-1540) já haviam chamado a atenção para o problema. Vives, particularmente, expôs suas idéias sobre o assunto no livro A educação da mulher cristã, no qual pedia que não se limitasse a cultura da mulher ao conhecimento das primeiras letras e aos trabalhos domésticos, mas também estudasse as letras
Fénelon também costuma ser lembrado por sua influência no pensamento
social e político francês dos séculos XVIII e XIX. Suas idéias a respeito são
apresentadas no livro Télémaque, de 1699, composto sob a forma de epopéia em prosa
poética, e centrado na figura mitológica do príncipe grego Telêmaco, filho de Odisseu,
rei de Ítaca, e de sua preparação para o governo. A obra, muito apreciada
posteriormente por Rivail, apresentava-se, à primeira vista, como um código de moral
principesca, com vistas à formação do futuro rei, transformando-lhe o caráter agressivo
e vicioso e levando-o a acautelar-se contra o luxo e os prazeres excessivos, contra a
lisonja, as tentações do despotismo, o espírito da conquista, a ambição e a guerra. Na
prática, o livro servia como um manual de ética e de filosofia política65.
O professor Rivail tinha tanto apreço por Fénelon e pelo Télémaque, que
procurou traduzir a obra para o alemão, idioma que dominava. Publicou então, em 1830,
em Paris, Os Três Primeiros Livros de Telêmaco (Les trois premiers livres de
Télémaque), em alemão, com a tradução literal dos dois primeiros e o texto francês e
alemão do terceiro, com notas, para uso nos educandários66. Essa admiração de Rivail
pela obra de Fénelon manteve-se forte, durante toda sua vida; quando passou a escrever
sob o pseudônimo de Allan Kardec, ele destacou o eminente bispo católico como sendo
um dos espíritos superiores que o orientavam no trabalho de codificação da doutrina
espírita, ao lado de São João Evangelista, Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, São
Luís, Sócrates e Platão, além de Benjamim Franklin, Swendenborg (médium e místico
sueco do século XVIII), e ainda outros67.
clássicas (permitindo-lhe a leitura das obras de autores greco-romanos como Platão, Cícero, Sêneca e Plutarco), a retórica, a gramática e a poesia, disciplinas valorizadas pela educação humanista da época (apud LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 147). 64 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 109-110; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 147-148. 65 GAXOTTE, Pierre. Op. cit., pp. 42-43, 66-68, 70, 90; WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., p. 123. 66 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., pp. 123, 184. 67 KARDEC, Allan [RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard]. O Livro dos espíritos. 3. ed., São Paulo: FEESP, 1987, p. 52.
Não obstante esta influência de um educador católico como Fénelon
sobre Rivail/Kardec, tem-se enfatizado sua vinculação a uma linhagem de pedagogos
protestantes formada, como já foi assinalado, por Comenius, Rousseau e Pestalozzi68.
Faz-se necessário, portanto, examinar também o papel do protestantismo na história da
educação.
1.2 – O impacto da Reforma Protestante na educação
Segundo Friedrich Engels, a Reforma protestante alemã, iniciada em
1517 pelo teólogo Martinho Lutero, foi a primeira grande batalha decisiva da burguesia
européia contra o feudalismo, em vista do papel central que a Igreja Católica Romana
desempenhava naquele sistema sócio-econômico69. E não apenas pelo seu papel
ideológico: na Alemanha, Lutero contou com o apoio de mercadores insatisfeitos com a
intromissão econômica da Igreja romana, a qual, além de possuir quase um terço das
terras, ainda concorria com os comerciantes locais de alumínio, através da Societas
Aluminum, empresa fundada pela Santa Sé em 146270.
Mas a burguesia, é necessário esclarecer, não era o único agente social
mobilizado contra a autoridade da Igreja Católica: muitos reis europeus desejavam
escapar à interferência do Papa nos assuntos políticos internos de seus países. Havia
também o interesse dos monarcas em poder nomear bispos e abades quando ocorresse
uma vaga, uma vez que tais cargos envolviam o manejo de grandes somas em impostos
eclesiásticos pagos pela população — os quais eram depois enviados a Roma,
representando, para os reinos, uma evasão de divisas —, sem esquecer as grandes
extensões de terras que constituíam o patrimônio de bispados e abadias. Era muito
dinheiro, e tanto o rei como o Papa desejavam que fosse parar nas mãos de amigos e
parentes. Do ponto de vista daqueles monarcas, portanto, a Igreja se apresentava como
um poder supranacional, fabulosamente rico, que não contribuía para o tesouro real e
com o qual eram obrigados a dividir a fidelidade de seus súditos71.
68 INCONTRI, Dora. Apresentação. In: RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Textos pedagógicos. Organização, apresentação e notas de Dora Incontri. São Paulo: Comenius, 1998, p. 8. 69 ENGELS, Friedrich. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. São Paulo: Moraes, [s.d.], p. 16-17. 70 POMPEU, Renato & DIEGUEZ, Flávio. Lutero, o monge rebelde. Ciência Ilustrada, São Paulo, ano II, n.° 15, p. 78-83, dez. 1983. 71 HUBERMAN, Leo. Op.cit., pp. 78-82; MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 59.
Também é preciso não esquecer que havia um descontentamento sincero,
por parte de muitos fiéis, com a degradação moral do clero e com a pouca seriedade
com que era tratada a religião. Havia, de fato, um enorme abismo entre o que a Igreja
pregava e o que fazia. Os membros do alto clero (bispos, arcebispos, cardeais, abades),
oriundos, em sua maior parte, da nobreza, viviam luxuosamente, alheios às necessidades
espirituais e materiais do povo. O voto de castidade também era habitualmente
esquecido e os próprios papas davam mal exemplo, causando escândalo entre a
população. Era fato comum que papas tivessem amantes e filhos, e igualmente habitual
que depois distribuíssem fundos e cargos da Igreja para seus filhos, netos, parentes e
aliados em geral, quando não os vendiam a quem pagasse. Negociavam-se “dispensas”,
isto é, isenções de algumas regras da Igreja ou de votos, assim como com relíquias
sagradas (objetos supostamente tocados por Cristo, Maria ou os santos)72.
72 JORGE, Fernando. Lutero e a igreja do pecado. São Paulo: Mercuryo, 1992, pp. 19-42, 54-60, 194; MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 57-58.
O comércio de indulgências foi o abuso que acabou por desencadear a
Reforma. As chamadas indulgências eram documentos consignados pelo Papa,
absolvendo quem os comprasse, ou seus entes queridos já mortos, de pecados
cometidos, diminuindo o tempo de sua pena no purgatório. Originalmente elas não eram
vendidas e o fiel as conquistava por meio de penitências, jejuns e caridade. O Papa Leão
X (1513-1521) autorizara sua venda para cobrir as despesas com a construção da
basílica de São Pedro, em Roma. Foi para demonstrar a impropriedade desse comércio
que Martinho Lutero, monge e professor da Universidade de Wittenberg, divulgou em
outubro de 1517 suas Noventa e cinco teses, documento que desencadeou o processo da
Reforma, ganhando a adesão de príncipes, nobres, burgueses e populares73.
O luteranismo, ao dar ao homem a responsabilidade da sua fé, pela qual
seria salvo, e ao colocar a fonte dessa fé nas Sagradas Escrituras, assumiu, ao mesmo
tempo, o compromisso de colocar todos os fiéis em condições de salvar suas almas
mediante a leitura da Bíblia. O primeiro passo seria traduzir a Bíblia para o vernáculo
— o próprio Lutero encarregara-se de traduzi-la para o alemão, publicando o Novo
Testamento em 1522, e a Bíblia alemã completa em 1534, e seu exemplo logo foi
seguido em outros países —, com o propósito de torná-la acessível às pessoas simples74.
O passo seguinte seria alfabetizar os cristãos, para que eles pudessem ler
e estudar as Escrituras. Com esse objetivo, Lutero publicou, em 1524, a Carta aos
prefeitos e conselheiros de todas as cidades da Alemanha em prol das escolas cristãs,
na qual ele apelava aos governantes para que tomassem a iniciativa de manter as escolas
cristãs, o que significava também mais um passo no caminho da independência
religiosa, do completo rompimento com a Igreja Católica, à qual estivera sujeito, direta
ou indiretamente, o ensino da maioria das cidades alemãs75.
73 JORGE, Fernando. Op. cit., pp. 54-60. 74 BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. 2. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 246; PONCE, Aníbal. Op. cit., p. 117-118. 75 GADOTTI, Moacir. Op. cit., pp. 64, 70-72; JORGE, Fernando. Op. cit., p. 134; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p.109-110.
Lutero também estava atento aos benefícios materiais trazidos por uma
instrução acurada, e argumentava que era mais importante para uma cidade contar com
cidadãos bem preparados e capazes de administrar os recursos necessários, do que
apenas acumular dinheiro e armamentos, sem contar com alguém capaz de empregá-los
adequadamente76. “Intérprete da burguesia em grau maior do que pensava — pondera
Aníbal Ponce — Lutero compreendeu a estreita relação que existia entre a difusão da
rede escolar e a prosperidade econômica.”77
O apelo do reformador foi logo atendido por príncipes, nobres e
autoridades municipais alemães, dando início à orientação da educação como função
pública, um de cujos deveres essenciais era o ensino da língua vernácula, e, portanto, o
ensino de caráter nacional. Ao terminar o século XVI, a educação pública na Alemanha,
isto é, nos múltiplos Estados que a compunham naquela época, constituía-se dessa
forma em: a) escolas primárias para o povo (camponeses e artesãos), nas aldeias e
pequenas localidades, com ensino elementar dado em língua alemã, por eclesiásticos
luteranos, com caráter religioso; b) escolas secundárias ou latinas, para a burguesia, de
caráter humanista78, mas também religioso, como preparação principalmente para os
cargos eclesiásticos e profissões liberais; c) escolas superiores e universidades, já
existentes em parte, mas transformadas no espírito da Reforma, e outras novas, criadas
pelos príncipes protestantes. Essa organização tríplice manteve-se nos séculos
posteriores79.
76 Asseverava Lutero que “A prosperidade e bem-estar de uma cidade não consistem somente em acumular riquezas, em construir sólidas muralhas e belos edifícios ou em fabricar armas e munições. Seu melhor e maior bem, sua fortaleza, é contar com muitos cidadãos cultos, polidos, inteligentes, honrados e bem educados, que possam depois reunir, conservar e empregar bem tesouros e riquezas” (citado em LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p.110). 77 PONCE, Aníbal. Op. cit., p. 118. 78 Humanista, educação de caráter — O humanismo, movimento cultural que surge na Europa durante os séculos XV e XVI, caracterizava-se pela busca de uma imagem do homem e da cultura que se opusesse às concepções predominantemente teológicas da Idade Média e ao espírito autoritário delas decorrente. Embora isso não signifique que fosse irreligioso, o humanismo esforçava-se em superar o teocentrismo, enfatizando os valores antropocêntricos, humanos, terrenos. A negação do ascetismo medieval se revela na busca de prazeres e alegrias mundanos. Caracterizava-se ainda pela busca da individualidade e pela crença no poder da razão de cada um para estabelecer seus próprios caminhos. O humanismo retornou às fontes da cultura greco-latina, sem a intermediação de comentadores medievais, procedimento que visava à secularização do saber, isto é, desvesti-lo da parcialidade religiosa, para torná-lo mais propriamente humano. Em decorrência, a educação humanista valorizava o estudo da chamadas letras clássicas, ou seja, dos antigos textos gregos e romanos (apud ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 86-87). 79 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p.110-111.
Os efeitos da Reforma luterana no campo educacional estenderam-se
também para os demais países da Europa que a adotaram. Assim, por exemplo, na
Suécia e na Finlândia, a partir do século XVII, o clero luterano, além de suprir a falta de
professores e de escolas, passou a percorrer casa por casa, para testar os fiéis sobre sua
capacidade de leitura e conhecimento da religião, mantendo registros completos sobre
os índices de alfabetização de seu rebanho80. Do mesmo modo, o movimento de
intervenção das autoridades públicas na educação, iniciado no século XVI, amplia-se e
desenvolve-se nos países protestantes, durante os séculos XVII e XVIII, em contraste
com os países católicos, onde a instrução, sempre limitada a uma minoria, continuará
sob o controle majoritário das ordens religiosas até a passagem do século XVIII ao
XIX.
Foi nos Estados alemães luteranos que a educação estatal alcançou o
maior desenvolvimento. O duque Ernesto, o Piedoso, de Gotha, estabeleceu por lei, em
1642, o primeiro sistema geral de educação pública no mundo. Inspirado nas idéias do
bispo protestante e pedagogo checo Comenius, o duque Ernesto instituiu a
obrigatoriedade escolar, incubindo seu cumprimento às autoridades civis. Dividiu as
escolas em três graus: inferior, médio e superior, cada qual com programa próprio, que
ia desde a leitura e escrita às ciências naturais. Dispôs também que a carga horária das
aulas fosse distribuída em três horas pela manhã e três pela tarde, e a realização de
exames anuais perante banca, com a competente expedição de certificado. Finalmente,
estabeleceu a inspeção regular no ensino e mandava pagar os mestres com fundos
públicos81.
A esse decreto pioneiro de Gotha seguiram-se os de outros Estados
alemães, como o de Braunschweig, de 1651 (insiste na obrigatoriedade escolar); o de
Hessen, de 1656 (oferece plano de estudos de oito anos, da escola primária à
secundária, num todo orgânico), e o de Magdeburgo, de 1658 (também influenciado por
Comenius, dividindo em seis anos cada grau de ensino)82.
80 BURKE, Peter. Op. cit., pp. 248, 272; JULIA, Dominique. Op. cit., p. 29-30. 81 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 126-127. 82 Id., ibid., p. 127.
O Reino da Prússia destacou-se, no século XVIII, também por seu
pioneirismo, aplicando, a partir de 1717, por decreto do rei Frederico Guilherme I
(1688-1740), pela primeira vez em um grande Estado, o príncípio da obrigatoriedade
escolar, responsabilizando os pais que não enviassem seus filhos às escolas estatais,
além de ocupar-se da preparação dos mestres83. O mesmo rei estabeleceu, em 1736,
através de um Plano geral de escolas, uma fundação para subvencionar localidades que
não pudessem manter suas escolas e regulamentou o funcionamento do ensino privado,
submetendo-o à inspeção do Estado84.
Frederico II, o Grande (1712-1786), deu seguimento ao trabalho de seu
antecessor, assessorado pelo ministro Barão de Zedlitz (1731-1793). A educação foi
completamente secularizada e separada da Igreja, ainda que conservando o ensino de
religião. Criou-se novo tipo de escola, a Bürgerschule, ou escola média, assim como a
Realschule, ou escola técnica e científica, na qual se ensinava matemáticas, mecânica,
ciências naturais e trabalhos manuais. Através do Regulamento geral nacional escolar,
de 1763, assegurou-se a obrigatoriedade escolar para todas as crianças entre cinco e
quatorze anos, e tornou obrigatória, também, a preparação dos mestres, dispondo que
ninguém poderia ensinar sem possuir o título correspondente; para isso, determina a
criação de seis escolas normais provinciais85.
A Reforma calvinista, iniciada na Suíça pelo teólogo francês João
Calvino (1509-1564), foi considerada por Engels como “a segunda grande insurreição
da burguesia” contra o feudalismo, uma vez que seus dogmas serviam melhor ainda aos
interesses burgueses do que os do luteranismo86. Divergindo dos ensinamentos de
Lutero, segundo o qual o homem se justificaria perante Deus através da fé, Calvino
pregava que só o que salvaria o homem da perdição eterna é a vontade divina. Assim,
não adiantaria ter fé, nem fazer boas obras, pois se o indivíduo não foi escolhido
(predestinado) por Deus para se salvar, nada mais poderia salvá-lo.
Por si só, a doutrina de Calvino sobre a predestinação encerrava o perigo
duma indiferença moral: se já fomos predestinados por Deus à salvação ou à
condenação eterna, sem que nossos atos interfiram nesse destino, então podemos
83 A Alemanha foi pioneira, também, na criação das primeiras Escolas Normais de Estado na Europa, com a fundação de Seminários de Professores em várias cidades alemãs, entre 1732 e 1748 (LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 152). 84 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p.151-152. 85 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 126; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 152.
prescindir de qualquer preocupação moral, ética, quanto aos nossos atos. Os discípulos
de Calvino, ao perceberem isso, trataram de corrigir o mestre: se é verdade que a boa
obra em si não assegurava a salvação, ela é característica do indivíduo que foi escolhido
por Deus. O cristão faz boas obras não por sua vontade, mas pela vontade de Deus.
Dessa forma, passou-se a esperar do cristão calvinista que ele se comportasse, em sua
vida secular, de acordo com o que se esperava de alguém tocado pela graça divina: ele
deveria ser trabalhador, estudioso, disciplinado, austero e dotado de iniciativa para a
realização de bons negócios (pois as oportunidades que surgem para a obtenção de lucro
são um sinal de favorecimento divino, e devem ser aproveitadas sem hesitação). A ética
calvinista vinha, portanto, ao encontro das aspirações da burguesia, uma vez que não
condenava o lucro mas, pelo contrário, estimulava-o87.
Da mesma forma que o luteranismo, o calvinismo também promoveu,
nos páises em que se instalou (Suíça, Holanda, Escócia, colônias inglesas da América
do Norte), a universalização do ensino, impelindo os governantes a investir na
educação. O próprio Calvino publicou em 1558, um sistema de educação elementar no
idioma vernáculo, que compreendia o ensino de leitura, escrita, aritmética, religião e
gramática. Fundou também os célebres collèges (o primeiro dos quais foi o College de
la Rive, fundado por ele em Genebra, em 1536), escolas secundárias destinadas
principalmente à formação de funcionários civis e eclesiásticos e que serviram depois
de modelo para os colégios e liceus da França88.
86 ENGELS, Friedrich. Op. cit., p.17-18. 87 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira Thomsom Learning, 2001, pp. 67-90; HUBERMAN, Leo. Op.cit., pp. 167-170. 88 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., pp. 112, 127.
As principais características da educação calvinista são: acentuação do
elemento leigo na educação; espírito progressista de indagação e investigação,
científica89; amplo sistema de educação elementar, secundária e universitária, tanto para
os pobres como para os ricos; ênfase no conhecimento profundo das Escrituras, mesmo
para os mais pobres; utilização da organização representativa da Igreja para fundar,
sustentar e unificar a educação; disposição de sacrificar-se pela educação, realizando-a
a todo custo; grande acentuação do emprego da língua vernácula e, finalmente,
preparação do estudante para a “república” e para a sociedade (ou seja, para a
cidadania), tanto quanto para a Igreja90.
Como aspectos negativos da educação calvinista, destacam-se seu caráter
severo, moralmente rígido e intolerante91, assim como o pouco valor, até mesmo
desprezo, atribuído às artes92.
89 O sociólogo alemão Max Weber observou que os protestantes tendiam a valorizar mais os cursos médios e superiores de caráter técnico e científico, enquanto os católicos davam preferência aos estudos humanísticos. Assim, na Alemanha (e em outras regiões ou países da Europa, como a Alsácia-Lorena e a Hungria), no final do século XIX, os alunos católicos eram maioria nos Gymnasien, escolas médias dedicadas principalmente a disciplinas de cultura clássica, enquanto os protestantes eram majoritários nos Realgymnasien, dedicados às línguas modernas e às ciências, assim como nas Oberrealschulen e Realschulen, que eram escolas técnicas (apud WEBER, Max. Op. cit., pp. 21-22 e 136, notas 8 e 9). Na França, o botânico Alphonse de Candolle já havia notado, em 1873, a mesma tendência, assinalando que houve na Academia de Ciências da França, de sua fundação em 1666 até aquele ano de 1873 apenas 16 cientistas católicos contra 71 cientistas protestantes (huguenotes, como eram chamados os calvinistas franceses), e isto num país predominantemente católico (apud POMPEU, Renato & DIEGUEZ, Flávio. Op. cit., p. 78). 90 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 113. 91 Id., ibid., pp. 113, 116. 92 WEBER, Max. Op. cit., p. 120-121.
Os resultados do investimento dos reformadores luteranos e calvinistas
na educação aparecem refletidos nas estatísticas. Embora nem todos os países da
Europa tenham conservado dados tão precisos a respeito quanto, por exemplo, a Suécia
e a Finlândia, foi possível fazer comparações e concluir pelo menos que, em 1800, os
europeus eram mais alfabetizados do que em 1500; que os artesãos, de modo geral,
eram muito mais alfabetizados do que os camponeses, os homens mais do que as
mulheres, os protestantes mais do que os católicos, e os europeus ocidentais mais do
que os orientais. Os escandinavos, holandeses e britânicos — todos eles povos
protestantes — tinham os índices mais altos de alfabetização da Europa moderna, uma
tendência que se manteve durante a primeira metade do século XIX. Assim, segundo o
historiador inglês Peter Burke, em 1850 “a Rússia contava com 10% de adultos
letrados, a Itália e a Espanha com 25%, em comparação com 70% na Inglaterra, 80% na
Escócia e 90% na Suécia”93. A partir daí pode-se aquilatar a importância da Reforma
protestante no desenvolvimento do ensino público, em nítido contraste com os
resultados obtidos nos países onde a Igreja Católica ainda controlava a educação.
1.3 – O impacto das revoluções de 1789-1848
Grandes transformações abalam a Europa a partir da segunda metade do
século XVIII. No fim da década de 1760, a entrada da máquina a vapor nas fábricas
inglesas de têxteis marca o início da Revolução Industrial, que altera definitivamente o
panorama sócio-econômico. O aumento de produtividade possibilitado pela
mecanização da indústria permitiu que, pela primeira vez na história da humanidade,
“fossem retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades humanas, que daí em
diante se tornaram capazes da multiplicação rápida, constante, e até o presente
ilimitada, de homens, mercadorias e serviços”94. Camponeses foram liberados dos
últimos vestígios de servidão feudal — ou mesmo da escravidão, no caso das colônias
americanas —, para serem recrutados para o trabalho “livre”, assalariado, nas cidades95.
Durante as primeiras décadas do século XIX, esta revolução se disseminaria da
Inglaterra para a França, a Alemanha, a Bélgica e os Estados Unidos, atingindo depois,
com o tempo, outros países.
93 BURKE, Peter. Op. cit., p. 273. 94 HOBSBAWM, Eric J. Op. cit., p. 44. 95 Id., ibid., pp. 170-172.
A França foi o país onde, mais do que em qualquer outro lugar, os
conflitos sociais suscitados pelas transformações econômicas foram levados ao seu
termo decisivo e onde, por conseguinte, as formas políticas nas quais se processaram
estas lutas e nas quais se condensaram seus resultados adquiriram, no período de 1789 a
1848, contornos mais nítidos96.
A burguesia francesa, enriquecida pelos resultados da Revolução
Comercial e prestes a investir seu capital na industrialização se encontrava, no entanto,
onerada pela carga de tributos que incidia somente sobre o Terceiro Estado, isentando
as camadas privilegiadas, ou seja, o clero e a nobreza97. Embora tenha ascendido
economicamente pela aliança com a monarquia absolutista, a burguesia passara a se
ressentir desta mesma intervenção estatal na economia, que antes incentivara seus
investimentos e os protegera da concorrência externa. O descontentamento com o
absolutismo atingiu seu ponto culminante no reinado de Luís XVI, considerado a época
mais próspera do Antigo Regime,98 pois a economia havia se desenvolvido até atingir
um limite a partir do qual não poderia mais prosseguir sem que se fizessem as
necessárias mudanças na organização social e política.
A crise econômica avolumou-se na década de 1780. O déficit do tesouro
real atingiu níveis insuportáveis, por conta dos gastos com guerras, divertimentos e
sustento da corte, pensões para nobres e obras públicas. Compras e empréstimos feitos
pelo governo eram pagos com atraso, sem garantias para o reembolso e sem prazos
fixos para o vencimento, desesperando os empresários. Um tratado comercial desastroso
assinado em 1786 com a Inglaterra, facilitando a entrada de manufaturados ingleses,
prejudicou o setor manufatureiro francês, que não conseguiu enfrentar a competição dos
produtos britânicos. Também a agricultura foi prejudicada, entre 1784 e 1788, por anos
seguidos de chuvas, secas e geadas catastróficas, que destruíram as colheitas, levaram
muitos agricultores à falência e dificultaram mais ainda a sobrevivência dos
trabalhadores com a carestia dos gêneros alimentícios99.
96 ENGELS, Friedrich. Prefácio para a terceira edição alemã. In: MARX, Karl. Op. cit., p. 12. 97 HUBERMAM, Leo. Op. ct., p. 144-149. 98 GAXOTTE, Pierre. Op. cit., pp. 23-25; TOCQUEVILLE, Alexis de. Op. cit., pp. 163-167. 99 MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 144-145; TOCQUEVILLE, Alexis de. Op. cit., p. 167-168.
Tornou-se inevitável que a burguesia, já detentora do poder econômico e
sentindo-se espoliada pela nobreza e pelo rei, reivindicasse também para si o poder
político e procurasse instaurar uma nova forma de governo, que lhe garantisse a
necessária liberdade de ação para aumentar ainda mais suas riquezas. Esta seria a
terceira grande insurreição da burguesia, a primeira, segundo Engels, que se despojaria
completamente do manto religioso, travando batalha no campo político aberto100.
A oportunidade surgiu quando o rei Luís XVI convocou os Estados
Gerais, uma assembléia com caráter consultivo que reunia representantes dos três
estamentos que compunham a sociedade francesa, clero, nobreza e Terceiro Estado,
para resolver o problema da crise financeira. Cada Estado se reunia em separado e
expunha seu voto em bloco. A burguesia logo se mobilizou exigindo um número de
representantes para o Terceiro Estado igual ao da soma dos dois outros somados e a
votação nos Estados Gerais por cabeça e não por estamento. O rei só atendeu à primeira
reivindicação e, ao abrir a sessão dos Estados Gerais em 5 de maio de 1789, advertiu
que o objetivo de sua convocação limitava-se a tratar das finanças, e que se deveria
evitar qualquer proposta reformista. A burguesia, frustrada, reagiu declarando-se em
Assembléia Nacional e, logo em seguida, em Assembléia Constituinte. Em 14 de julho
de 1789, populares amotinados tomaram a Bastilha, antiga prisão real. Em 26 de agosto
a Assembléia Nacional aprovava a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão, que estabeleceu a igualdade de todos perante a lei, suprimia as distinções
nobiliárquicas, consagrava as liberdades individuais, reconhecia o direito de resistência
à opressão e institucionalizava o direito à propriedade privada101.
100 ENGELS, Friedrich. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. p. 20. 101 GAXOTTE, Pierre. Op. cit., pp. 81-102; MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., pp. 146-148.
Seguiu-se a nacionalização das propriedades eclesiásticas e sua venda em
benefício do Estado; a Constituição Civil do Clero, que transformava os clérigos em
funcionários do Estado, e a promulgação, em setembro de 1791, da primeira
Constituição Francesa. Esta Carta, além de instaurar uma monarquia parlamentar, nos
moldes ingleses, firmava o caráter burguês da revolução estabelecendo o voto
censitário, segundo o qual só podiam votar os indivíduos pagantes de impostos acima de
determinada quantia, considerados “cidadãos ativos”. Dentre esses, só poderiam ser
candidatos a cargos eletivos os proprietários de um grande cabedal. Foram declaradas
ilegais as greves e a organização de associações de trabalhadores102.
Os conflitos entre representantes de diferentes classes sociais na
Assembléia Legislativa que se reuniu após a dissolução da Constituinte, o ataque dos
monarcas absolutistas da Áustria e da Prússia, aliados aos emigrados (nobres e clérigos
que fugiram da revolução na França e a ela se opunham) e a suspeita de que o rei
pretendia dar um golpe, fomentaram uma intensa pressão popular pela convocação de
uma nova Assembléia Constituinte, a ser eleita por sufrágio universal. Essa nova
Constituinte, chamada Convenção103, marcou um período de radicalização
revolucionária (1792-1794): proclamou a República, julgou e executou o rei, a rainha e
muitos nobres e burgueses, considerados traidores, e promulgou, em junho de 1793,
uma nova Constituição, que ampliava os direitos políticos das massas populares e seu
acesso à terra e à educação. Implantou-se um novo sistema de pesos e medidas (o
sistema métrico, até hoje empregado), criou-se um novo calendário e proibiram-se os
cultos religiosos, substituídos pelo culto do “Ser Supremo” e da “Deusa Razão”104.
102 GAXOTTE, Pierre. Op. cit., pp. 135-156; MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 148-149. 103 Três agrupamentos políticos se distiguiram na Convenção, refletindo os conflitos entre as classes sociais: à direita sentavam-se os girondinos, representantes da burguesia comercial e industrial; à esquerda, os jacobinos, representantes da pequena burguesia, apoiados pelos sans-cullotes, que representavam as camadas populares (artesãos e trabalhadores urbanos), que por se sentarem no local mais alto ficaram conhecidos por “Montanha”; e, ocupando os bancos da parte mais baixa, no centro, encontravam-se os feuillants, representantes da burguesia financeira, que se caracterizavam pela indefinição política. Graças a essa atitude, e por se sentarem no setor baixo da Convenção, foram apelidados de “Pântano”. (apud MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 150) Essa classificação ultrapassou o contexto histórico da Revolução Francesa e passou a ser utilizada para qualificar politicamente pessoas e partidos: identifica-se a “direita” com o conservadorismo, a reação, a manutenção do status quo e o favorecimento aos ricos e poderosos, enquanto a “esquerda” representaria o progressismo, a defesa dos direitos dos trabalhadores e das minorias, etc. 104 CLARCK, Kenneth. Civilização. São Paulo: Martins Fontes, 1980, pp. 316-320; GAXOTTE, Pierre. Op. cit., pp. 157-308; MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., pp. 150-152.
O radicalismo da Convenção suscitou uma reação, igualmente violenta,
dos representantes da alta burguesia financeira, os feuillants, que, em 26 de julho de
1794 (9 termidor, no calendário revolucionário) deram um golpe, depondo e executando
líderes populares tais como Robespierre (1758-1794) e Saint-Just (1756-1794).
Promulgou-se em 1795 uma nova Constituição, que instaurou uma República colegiada
— o Diretório, formado por cinco membros — e restaurou os privilégios burgueses,
restabelecendo o voto censitário e excluindo a participação popular nas decisões
políticas105.
No campo educacional, o período revolucionário de 1789 a 1799 se
caracterizou mais pelos princípios renovadores que foram proclamados do que pelas
realizações, pois a constante agitação política, as guerras e a falta de recursos
impediram sua concretização. O propósito da burguesia era estabelecer o controle civil
da educação, que até então estivera nas mãos da Igreja, através da instituição do ensino
público nacional106. A esse respeito, Althusser é enfático:
A Revolução francesa teve, antes de mais nada, como objetivo e
resultado não apenas a transferência do poder do Estado da
aristocracia feudal para a burguesia capitalista-comercial, a
quebra parcial do antigo aparelho repressivo do Estado e sua
substituição por um novo (ex. o Exército nacional popular), —
mas o ataque ao aparelho ideológico de Estado n.° 1: a Igreja.
Daí a constituição civil do clero, a confiscação dos bens da
Igreja, e a criação de novos aparelhos ideológicos do Estado
para substituir o aparelho ideológico do Estado religioso em seu
papel dominante.107
Projetos com esse objetivo foram apresentados na Assembléia
Legislativa por Condorcet (1743-1794) e na Convenção por Lepelletier (1760-1793).
Reconhecendo que as mudanças políticas precisavam ser acompanhadas de reformas
educacionais, Condorcet propôs em 1792 a universalização do ensino primário gratuito,
dirigido e vigiado pelo Estado, como meio para eliminar a desigualdade. Opunha-se,
105 GAXOTTE, Pierre. Op. cit., pp. 310-330; MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 153. 106 GADOTTI, Moacir. Op. cit., p. 89. 107 ALTHUSSER, Louis. Op. cit., p. 76.
terminantemente, ao ensino religioso nas escolas e sugeriu o fim das faculdades de
Teologia. No importante lugar até então reservado ao ensino das letras clássicas,
propunha colocar o ensino das ciências. Defendeu a independência absoluta das
instituições de ensino superior. Demonstrou ser também, como Fénelon e Pestalozzi,
um ardoroso defensor da educação feminina para que as futuras mães pudessem educar
seus filhos. Considerava as mulheres “mestras naturais”108.
O Plano Nacional de Educação de Lepelletier, aprovado na Convenção
em 1793, e que estabelecia o ensino estatal obrigatório, em regime de internato, para
crianças de cinco a doze anos, não chegou a ser posto em prática109. O que ficou das
idéias sobre educação discutidas durante a Revolução Francesa, orientando, nas décadas
seguintes, a implantação do ensino público de caráter nacional em diversos páises
europeus, foi o seguinte:
1. Orientação cívica e patriótica, inspirada em princípios democráticos e de liberdade.
2. Educação como função do Estado, independente da Igreja.
3. Obrigatoriedade escolar para a totalidade das crianças.
4. Gratuidade do ensino primário, correspondente ao princípio da obrigatoriedade.
5. Laicismo ou neutralidade religiosa.
6. Unificação do ensino público em todos os graus e acesso dos mais capazes aos graus
superiores.110
108 GADOTTI, Moacir. Op. cit., p. 89; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 171-172; PONCE, Aníbal. Op. cit., pp. 139-141. 109 GADOTTI, Moacir. Op. cit., pp. 101-106. 110 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 157.
Embora tivesse fracassado em implantar o ensino primário obrigatório e
gratuito, a Revolução Francesa obteve maior sucesso com o ensino técnico, graças à
criação, em 1795, da Escola Politécnica, que se tornou modelo para instituições
similares implantadas posteriormente em Praga, Viena, Estocolmo, S. Petersburgo,
Compenhagen, Zurique, Massachussets e em toda a Alemanha e Bélgica. Também
criou, no Museu Nacional de História Natural (1794), o primeiro centro genuíno de
pesquisa fora das ciências físicas e recuperou a Academia Real (1795). O governo
revolucionário também foi responsável pelo primeiro esboço de uma Escola Normal
Superior, que depois seria firmemente estabelecida como parte de uma reforma geral da
educação secundária e superior por Napoleão111.
A ascenção de Bonaparte ao poder representou o passo final do processo
político iniciado em 1789. A grande insurreição burguesa, que, destruindo as formas
feudais da monarquia e expropriar a nobreza e o clero, se apresentara à sociedade como
um movimento de libertação do Terceiro Estado, terminou concentrando mais ainda a
riqueza em mãos de um pequeno número de pessoas e criando um novo conflito de
classes: a exploração dos servos pelos nobres foi substituída pelo antagonismo entre
burguesia e proletariado112. Os cinco políticos do Diretório e os comerciantes e
financistas a eles ligados faziam especulação com propriedades nacionalizadas,
auferiam lucros ilícitos com os abastecimentos militares e causavam uma perigosa
inflação da moeda, jogando com sua desvalorização. Enquanto isso, no inverno de
1795-96, os trabalhadores parisienses morriam de fome e frio nas ruas113.
111 HOBSBAWM, Eric J. Op. cit., p. 302-303. Segundo este autor, “A supremacia mundial da ciência francesa durante a maior parte de nosso período [de 1789 a 1848] se deveu quase certamente a estas importantes fundações, notadamente à Politécnica, um turbulento centro do jacobinismo e liberalismo que atravessou todo o período pós-napoleônico, e um incoparável criador de grandes matemáticos e físicos” (Id., ibid., p. 303). 112 Burguesia e proletariado — Constituem os dois principai grupos (classes) sociais da sociedade capitalista, segundo a sua situação em relação aos elementos da produção: os burgueses são os proprietários dos meios de produção (terras, indústrias, etc.); os proletários são aqueles que nada mais possuem para viver senão sua força de trabalho. Mas esta divisão não é tão rígida, pois entre a burguesia e o proletariado existe a classe média ou pequena burguesia, constituída pelos que vivem do pequeno capital (donos de pequenas empresas industriais, comerciais ou agropastoris), profissionais liberais (advogados, médicos, engenheiros, etc.), gerentes e administradores. Sem perder de vista a estratificação básica em duas classes, a sociedade capitalista, portanto, pode também ser dividida, segundo a renda e níveis de consumo de seus membros, em: classe alta ou grande burguesia, classe média ou pequena burguesia e classe baixa ou proletariado (apud OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Op. cit., pp. 78-80). 113 WILSON, Edmund. Rumo à estação Finlândia. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 71.
Tal quadro levou um grupo de revolucionários radicais a agruparem-se
em torno da figura do jornalista Graco Babeuf, que defendia idéias hoje consideradas
precursoras do socialismo: convencido de que a igualdade política formal nada
significaria sem uma igualdade social verdadeira, defendia uma melhor distribuição da
riqueza, a limitação dos direitos de propriedade e o fim das especulações gananciosas
dos ricos. Com tais objetivos, esses radicais esboçaram um levante, a chamada
Conjuração dos Iguais. Descobertos, Babeuf e seus companheiros foram presos em
março de 1796, julgados e condenados à morte114.
Ao mesmo tempo em que surgiam esses primeiros esboços
revolucionários de cunho socialista, a reação monarquista também se reagrupava,
enquanto, no exterior, a Inglaterra, a Áustria e a Rússia coligavam-se com o objetivo de
invadir a França e extinguir a revolução. Em defesa de seus interesses, a burguesia
sacrificou então sua liberdade política entregando o poder a um militar para que este lhe
garantisse, ainda que sob um regime ditatorial, uma ordem econômica favorável. Foi
assim que o general Napoleão Bonaparte, que já ganhara popularidade derrotando os
exércitos estrangeiros em campanhas na Itália e Egito, foi escolhido pela alta burguesia
para governar a França. Tomou o poder por um golpe de Estado em 9 de novembro de
1799 — 18 brumário pelo calendário da Revolução115.
114 GAXOTTE, Pierre. Op. cit., pp. 343-346; WILSON, Edmund. Op. cit., pp. 71-79. 115 GAXOTTE, Pierre. Op. cit., pp. 353-371; MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., pp. 153-154, 160-162. Alguns fatos da época evidenciam o entusiástico apoio dos capitalistas ao governo de Bonaparte. Logo depois do golpe, Napoleão convocou os banqueiros parisienses e requereu um empréstimo. “Todos subscreveremos o empréstimo”, declarou um representante dos banqueiros. “Há por acaso algum banqueiro ou negociante parisiense que, em vista de tantas belas esperanças, não se apressará a testemunhar sua absoluta confiança no governo?” A bolsa de valores respondeu ao golpe do 18 brumário subindo a cotação dos títulos do Estado (apud MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 162).
Durante o período conhecido como Consulado (1799-1804), Napoleão
derrotou militarmente os inimigos externos e reatou relações com a Igreja Católica
através de uma concordata assinada com o papa Pio VII (1801), que transformou os
clérigos católicos em funcionários do Estado. Criou o Banco da França em 1800, para
controlar a emissão de moeda e financiar a indústria nacional e a produção agrícola.
Através do Código Civil Napoleônico de 1804, institucionalizou as conquistas
burguesas revolucionárias, assegurando a igualdade formal perante a lei (ou seja, o fim
dos privilégios da nobreza), o direito de propriedade, a proibição das greves operárias e
das organizações sindicais, além de ratificar a reforma fundiária realizada pela
revolução, o que lhe garantiu o apoio da população rural. Logo a seguir, promulgou
nova constituição, ratificada por plebiscito, na qual substituía o regime de Consulado
pelo Império (de 1804 a 1815)116.
Após se fazer coroar Imperador dos Franceses, Napoleão estendeu os
princípios de seu Código Civil também para os países que ocupava em suas guerras pela
Europa. Não surpreende que muitas vezes fosse bem recebido pela burguesia das nações
conquistadas, pois, nesses países, a servidão era abolida, as obrigações e pagamentos
feudais eliminados e o mercado livre para fazendeiros, comerciantes e industriais
estabelecido definitivamente, abrindo caminho para a implantação de uma moderna
economia industrial117.
Ainda no Consulado foi estabelecida uma reforma no ensino, tornando a
educação secundária responsabilidade do Estado e adequando-a às necessidades
nacionais. Implantou-se, definitivamente, uma Escola Normal Superior, e foram
criados, por lei de 1° de maio de 1802, os liceus, espécie de internatos responsáveis pela
formação, a nível médio, dos futuros oficiais do exército ou ocupantes de cargos civis.
Durante a Restauração (1814-1830) tomariam o nome de colégios reais, retomando a
antiga denominação em 1848. Pelos termos da lei de 1802, os liceus se consagravam ao
ensino das letras e das ciências. Aí estavam compreendidas as línguas antigas (grego e
latim), a história, a retórica, a moral e os elementos das ciências matemáticas e
físicas118.
116 HUBERMAN, Leo. Op. cit., p. 151; MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 162-163. 117 MARX, Karl. Op. cit., p. 16; HUBERMAN, Leo. Op. cit., p. 152. 118 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op.cit., p. 145-146, nota 84.
No Império, a instrução pública foi organizada de forma mais
centralizadora, sendo o ensino confiado ao controle das universidades estatais.
Constituída por lei em 1806 e pelos decretos orgânicos de 1808, a Universidade
Imperial foi posteriormente (1811) investida de um monopólio que pôs em suas mãos
todo o ensino. A França foi então dividida em academias ou circunscrições acadêmicas,
cada uma delas dirigida por um reitor, assistido de um ou vários inspetores e de um
conselho acadêmico. As funções de reitor da Academia de Paris eram exercidas pelo
grão-mestre, autoridade suprema da Universidade Imperial e que acumulava a função de
ministro da Instrução Pública. Quaisquer instituições particulares de ensino primário ou
secundário deveriam obter autorização do grão-mestre da Universidade para poder
funcionar, ficando diretamente sob sua autoridade. O Conselho da Universidade era
responsável pelo exame e adoção dos livros didáticos destinados as três ordens de
ensino: primário, secundário e superior. Tais disposições vigoraram até 1850119.
Napoleão, entretanto, não se ocupou da instrução primária, que deixou
nas mãos das ordens religiosas, particularmente dos Irmãos das Escolas Cristãs, e que
atendiam somente a um número limitado de alunos. Não introduziu nenhuma nova idéia
pedagógica, já que a finalidade por ele atribuída ao ensino se limitava a inculcar
fidelidade ao governo imperial. Bonaparte legou aos governos seguintes, portanto, uma
situação precaríssima, no que diz respeito à instrução pública. Basta dizer que na capital
francesa, em 1817, apenas 14% das crianças, entre 6 e 14 anos, frequentavam uma das
132 escolas então ali existentes.120.
O regime político que sucedeu ao governo napoleônico, chamado de
Restauração (por ter sido constituído, entre 1814 e 1830, pelos irmãos do rei Luís XVI,
guilhotinado em 1793 pelos revolucionários), praticamente nada fez para melhorar o
quadro lamentável do ensino público na França. Mesmo o trabalho das instituições
particulares de ensino, voltado àqueles poucos que podiam pagar, era dificultado não só
pela burocracia implantada por Bonaparte, que continuava vigorando na Restauração,
mas também devido à forte concorrência e animosidade das escolas congregacionistas,
especialmente as dos Irmãos das Escolas Cristãs, as quais, cercadas de privilégios e
regalias, tudo faziam pra prejudicar as laicas. O esforço da Igreja em retomar o controle
119 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 182; WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op.cit., pp., 106-107, nota 53, 141, 151-152.
da educação parece ter sido uma das características do período. Desde abril de 1824 um
decreto do grão-mestre da Universidade, Denis Frayssinous, bispo de Hermópolis,
condicionou o funcionamento das escolas particulares laicas à obtenção de uma
autorização especial emitida pelo bispo diocesano e não mais pelo reitor. O bispo
também fiscalizava ou fazia fiscalizar as escolas, como na Idade Média. Este estado de
coisas só terminou em 1828, com o ministro Vatimesnil, que devolveu ao reitor da
Universidade suas antigas funções. Foi nesta conjuntura delicada que Hippolyte Léon
Denizard Rivail iniciou sua carreira de professor e diretor de escolas particulares121.
Seria necessário pelo menos mais uma revolução para que o “Terceiro
Estado” lograsse eliminar os últimos vestígios do Antigo Regime na França e iniciar a
implantação um sistema educacional laico e acessível à população. Desde 1815, o rei
Luís XVIII (1814-1824) adotara uma política de meio-termo, procurando conciliar a
restauração do absolutismo com a manutenção de algumas conquistas da revolução de
1789. Com esse objetivo, outorgou uma Constituição que instaurava uma assembléia
eleita por voto censitário. De uma população de 33 milhões de franceses, apenas 94 mil
cidadãos tinham direito ao voto e somente 14 mil atingiam o rendimento exigido para
candidatar-se a deputado122. A insatisfação com esse estado de coisas atingiu o auge em
1830, quando o rei Carlos X, apoiado pela aristocracia, desfechou um golpe de Estado
com o objetivo de restaurar integralmente o absolutismo no país. Decretou a dissolução
da Assembléia, a abolição da liberdade de imprensa e uma nova lei eleitoral
desfavorável à burguesia. O golpe de Carlos X encontrou forte oposição popular e
deflagrou, em julho de 1830, uma revolução que pôs fim ao absolutismo. Carlos X foi
destituído do trono e em seu lugar a alta burguesia financeira colocou no poder Luís
Filipe de Orleans, apelidado pelo povo de “rei burguês” e “rei dos banqueiros”. Esse
novo regime, liberal, foi chamado Monarquia de Julho (1830-1848)123.
Quando o novo governo nomeou, em 3 de fevereiro de 1831, uma
comissão encarregada de reformar a instrução pública e de preparar um projeto de lei
referente à organização do ensino, Rivail dirigiu aos membros da comissão uma
120 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 182; WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op.cit., pp. 45-47. 121 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op.cit., pp. 105-108. 122 Cabe notar que não só aos pobres eram negados, no século XIX, o direito ao voto e a uma participação ativa na política, mas também às mulheres eram recusados os mesmos direitos, em praticamente todos os regimes políticos europeus. 123 MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 177-178.
Mémoire sur l’instruction publique, na qual pedia licença para apresentar suas
contribuições em torno do assunto. Nela, o Prof. Rivail se colocava a favor da liberdade
de ensino, opondo-se ao controle da Universidade. Preocupava-se, também, com a
formação dos mestres, particularmente das professoras do ensino fundamental. Partindo
do princípio de que a educação deveria ser ministrada contemplando simultâneamente
os aspectos intelectual, físico, moral e religioso, como um todo, concluía que, para se
conseguirem bons resultados neste sentido, as mestras teriam que estar bem preparadas.
Sugeriu, assim, a obrigatoriedade, para aspirantes a professoras de crianças, um estágio
de três anos em um ou dois estabelecimentos de ensino124.
Os trabalhos realizados pela comissão nomeada pelo governo para
estudar os problemas atinentes ao ensino resultaram, após exames, discussão e
aprovação nas Câmaras, na lei de 28 de junho de 1833, sancionada por Luís Filipe e que
recebeu o nome do então Ministro da Instrução Pública, o historiador François Guizot
(1787-1874)125. Considerada a “carta da instrução primária na França”, essa lei
instituiu, finalmente, o ensino primário público e gratuito126.
Uma das conseqüências da implantação do ensino público estatal no
período de 1789-1848, não apenas na França, mas também em outros países ocidentais,
teria sido o aumento do prestígio dos profissionais do ensino, caracterizados pelo
historiador inglês Eric Hobsbawm como uma “leiga contrapartida do sacerdócio.”127 O
fato está diretamente ligado à substituição da Igreja pela escola como aparelho
ideológico de Estado dominante: o padre começou a ser igualmente subsituído pelo
professor ou, pelo menos, a disputar com ele a estima que lhe era atribuída. Assevera
ainda Hobsbawm que na maioria dos países do Ocidente, à exceção dos EUA e Grã-
Bretanha, o professor, particularmente o professor primário, tornou-se uma figura
popular, pois:
124 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op.cit., pp. 125-126, 141-142. 125 Por ter presidido uma reforma do ensino que tirou das ordens religiosas a responsabilidade pelo ensino fundamental, para colocá-lo sob responsabilidade do Estado, Guizot acabou ganhando a reputação de ser um perseguidor das escolas católicas (apud MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 228). O fato de Guizot ser protestante, calvinista, provavelmente só faria aumentar a suspeita dos católicos franceses mais devotos de que ele prejudicara as escolas católicas intencionalmente. 126 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 182; WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op.cit., p. 126-127. 127 HOBSBAWM, Eric J. Op. cit., p. 241.
[...] se alguém representava o ideal de uma era em que, pela
primeira vez, os homens e as mulheres do povo olhavam por
cima de suas cabeças e viam que a ignorância podia ser
dissipada, esse alguém era certamente o homem ou a mulher
cuja vida e vocação era dar às crianças as oportunidades que
seus pais nunca haviam tido, abrir-lhes o mundo, infundir-lhes a
verdade e a moralidade.128
A respeito, porém, da situação mais específica dos professores franceses
— denominados instituteurs —, o conceituado historiador britânico assinala:
O instituteur francês, pobre, abnegado, ensinando a seus alunos
em cada aldeia a moralidade romana129 da Revolução e da
República, antagonista oficial do vigário da aldeia, não triunfou
até a Terceira República130, que também resolveria os
problemas políticos de instaurar uma estabilidade burguesa
sobre os princípios da revolução social, pelo menos durante 70
anos.131
Um outro detalhe, ainda, deve ser salientado: os legisladores
concentraram seus esforços em escolas para meninos, não se preocupando com a
instrução das meninas. A maioria das escolas públicas não tinham cursos para as jovens
e, quando existiam vagas reservadas para elas, tinham de estudar separadas dos rapazes,
em classes ou estabelecimentos exclusivos para estudantes do sexo feminino. Rivail,
como seguidor das idéias de Fénelon e Pestalozzi, não podia deixar de condenar esta
política discriminatória. Em 1847, aproveitando o ensejo de um novo projeto de lei
sobre o ensino, apresentou sugestões num “Projeto de Reforma”, de sua autoria, no qual
se ocupava não só da organização geral do ensino, retomando as idéias apresentadas em
1831, como também defendia o investimento na educação das mocinhas132.
128 Id., ibid., p. 216. 129 Hobsbawm refere-se ao fato de que os revolucionários de 1789-1848 buscavam inspiração no modelo republicano da antiga Roma para a implantação de sua própria república na França (a esse respeito, ver: CLARK, Kenneth. Op. cit., p. 282-283; MARX, Karl. Op. cit., p. 16-17). 130 Terceira república: trata-se do período da história francesa que vai de 1870 até 1940, e durante o qual a burguesia gaulesa conseguiu implantar, finalmente, o modelo político republicano pelo qual lutara desde 1792, estando necessariamente incluída neste modelo a escola pública laica, gratuita e obrigatória — o Aparelho Ideológico de Estado dominante da sociedade burguesa. 131 HOBSBAWM, Eric J. Op. cit., p. 241. 132 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., pp. 128, 185.
Mas a simples promulgação de leis não bastaria para concretizar a
universalização do ensino. Uma década depois da Lei Guizot, a França ainda possuía de
40 a 50% de analfabetos e o número de alunos nos liceus estatais era inferior a 19 mil
alunos em 1842, e isto num país que já ultrapassara a marca de 30 milhões de
habitantes133.
A falta de investimentos do Estado em escolas não era o único obstáculo
à universalização do ensino. A própria Revolução Industrial contribuía para afastar as
crianças do estudo, pois os baixíssimos salários pagos pelos empresários aos homens
que trabalhavam nas fábricas obrigavam estes últimos a empregar também toda a
família na indústria, para lhes garantir o sustento. Era comum que as crianças
começassem a trabalhar aos cinco ou seis anos de idade. O descaso dos governantes e a
ausência de uma legislação trabalhista permitia aos industriais submeter seus operários,
inclusive as crianças, a jornadas que poderiam chegar a 16 horas diárias de trabalho134.
Como a tecnologia industrial utilizada na época ainda era pouco
sofisticada e não exigia qualificação, nenhum estudo era oferecida aos filhos dos
trabalhadores, uma vez que deles só se esperava que executassem operações mecânicas,
pelo resto da vida. A esmagadora maioria dos empresários não só considerava esta
situação como perfeitamente “natural” como ainda por cima defendiam-na com
argumentos moralistas. Questionado se não seria mau para as crianças não irem à escola
e trabalharem 14 horas por dia, o Sr. G. A. Lee, dono de uma tecelagem de algodão
inglesa, na qual as crianças trabalhavam das 6 da manhã às 8 da noite, respondeu assim,
em 1835: “Nada mais favorável para a moral do que o hábito, desde cedo, da
subordinação, da indústria e regularidade”135.
A exploração do trabalho infantil não se limitava às fábricas inglesas.
Léon Denis (1846-1927), continuador da obra espiritualista de Allan Kardec, deixou o
seguinte depoimento a respeito de sua experiência pessoal como filho de proletários na
França do século XIX:
133 HOBSBAWM, Eric J. Op. cit., p. 154-155. 134 CLARCK, Kenneth. Op. cit., pp. 346-350; HUBERMAN, Leo. Op. cit., pp. 176-194; PONCE, Aníbal. Op. cit., p. 141-142; WILSON, Edmund. Op. cit., pp. 127-136. 135 HUBERMAN, Leo. Op. cit., p. 182.
Nasci dentro da classe operária e dela conheci as lutas e
privações. [...] Eu mesmo, após ter recebido uma instrução bem
sumária, comecei como simples empregado de comércio e o
trabalho manual não me é absolutamente desconhecido. Aos
doze anos eu descolava “flans”136 de cobre na Casa da Moeda
de Bordeaux, e meus pequenos dedos de criança, com o roçar
do metal, algumas vezes se tingiram de sangue. Aos dezesseis
anos, numa fábrica de louças em Tours, eu carregava o cesto
nos dias em que se fazia o desenformamento das peças. Aos
vinte anos, em uma manufatura de couros, eu carregava as peles
nas horas de pique, ou manobrava “a margarida”, um grande
instrumento de madeira que serve para amaciar o couro.
Obrigado durante o dia a ganhar o meu pão e o de meus idosos
pais, eu reservei muitas noites para os estudos, no intuito de
completar minha leve bagagem de conhecimentos, desde então,
data o enfraquecimento prematuro da minha visão.137
A Monarquia de Julho representou, para a França, um período de grande
crescimento econômico, principalmente no setor industrial; mas, em relação ao governo
anterior, teve poucos progressos políticos e sociais: a imprensa sofria censura, as
manifestações políticas da oposição eram proibidas e o direito de voto foi muito pouco
ampliado. Sustentando-se politicamente apenas na burguesia financeira, o rei Luís
Filipe atraiu para si a oposição de partidos que representavam diferentes segmentos
sociais, excluídos do governo: o partido Legitimista, constituído pela nobreza, desejoso
de restaurar o poder da dinastia dos Bourbon, depostos em 1830; o Bonapartista,
liderado por Luis Bonaparte, sobrinho de Napoleão, formado por membros da pequena
burguesia (classe média) e apoiado pelos camponeses; o Republicano, de tendência
nacionalista, que também se sustentava na classe média, particularmente profissionais
liberais e funcionários públicos; e o Socialista, congregando as várias correntes
políticas que organizavam a classe operária francesa138.
Por tais motivos, esse regime de governo acabou tendo também como
desfecho uma revolução que exigia maiores avanços políticos e sociais. Deflagrada em
136 Flans: peças (chapas) de metal preparadas para serem cunhadas e receberem uma figura, marca, etc. 137 DENIS, Léon. Socialismo e Espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 1998, p. 23-24.
Paris, em fevereiro de 1848, ela logo contagiaria a Alemanha, Áustria, Itália, Polônia e
Hungria, inspirando movimentos similares. Tais revoluções podem ser vistas como mais
um prolongamento da Revolução Francesa de 1789, pois com elas a burguesia
consolidou seu poder em diversas nações da Europa, além de marcarem a presença do
proletariado industrial como força política organizada139.
A revolução de 1848 teve como pivô a reivindicação de uma reforma
eleitoral que ampliasse o direito de voto, que continuava sendo censitário: até então, o
corpo eleitoral só incluía franceses que pagassem no mínimo duzentos francos anuais de
impostos. Deputados da oposição no Parlamento — republicanos, socialistas —
propuseram a redução das contribuições necessárias para ser eleitor a cem francos, mas
esbarravam na decidida resistência do rei, do então primeiro-ministro Guizot e da
bancada governista. A proibição de Guizot a uma manifestação política em apoio à
reforma, marcada para 22 de fevereiro, acabou provocando, naquele mesmo dia, uma
revolta. Operários e estudantes saíram às ruas de Paris em passeata, montaram
barricadas nas ruas, exigiram a destituição de Guizot e a realização da reforma eleitoral.
No dia seguinte, os manifestantes armaram-se, conquistaram o apoio da Guarda
Nacional140 e enfretaram as tropas de linha que tentavam reprimi-los. Guizot renunciou
e, logo, no dia 24, era o próprio rei que abdicava141.
138 MARX, Karl. Op. cit., pp. 29-45 et passim; MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 228. 139 MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 227. 140 Guarda Nacional — Milícia voluntária civil armada, constituía majoritariamemte por membros da classe média e com comandos eleitos, que existiu na França e em alguns outros Estados da Europa ocidental (e mesmo no Brasil, durante o período da Regência e do Segundo Império). Foi criada pela primeira vez na França em 1789, no início da revolução; existiu com intervalos até 1871, quando foi dissolvida por ter participado ativamente da Comuna de Paris, insurreção de caráter socialista. 141 CASTELOT, André. 1848: A revolução que começou do tédio. Grandes Acontecimentos da História, São Paulo, n.° 3: p. 66-73, ago. 1973; MARX, Karl. Op. cit., p. 23.
Estabeleceu-se um governo provisório, constituído por republicanos,
socialistas e bonapartistas, que instaurou a Segunda República (1848-1852)142, aboliu a
pena de morte, estabeleceu o sufrágio universal e realizou eleições para a Assembléia
Constituinte, que redigiria a nova Constituição francesa. Pressionado pelo
trabalhadores, o governo provisório criou as oficinas nacionais, espécies de fábricas do
Estado destinadas a dar trabalho aos desempregados. O proletariado urbano
reivindicava ainda a instauração de uma “república social” que garantisse o direito de
trabalho e de greve, bem como limitasse a duração da jornada de trabalho.
A mobilização política dos trabalhadores urbanos em Paris — apesar de
não formarem ainda um partido coeso e se subdividirem em diversas correntes, como,
por exemplo, os socialistas utópicos, que repudiavam o uso de violência — despertava o
receio de republicanos e bonapartistas, pois já havia líderes esquerdistas propagando a
idéia de que o proletariado deveria tomar o poder. Dentre estes, destacava-se Auguste
Blanqui (1805-1881), que defendia a tomada do poder político pelos trabalhadores, se
necessário por meios insurrecionais, seguida pela instauração de uma “ditadura do
proletariado” (o termo é de cunhagem blanquista, e não marxista-leninista, como
geralmente se pensa). Blanqui já tentara por em prática seu programa revolucionário em
maio de 1838, quando promovera um levante em Paris. A alta burguesia e a classe
média teriam motivos, portanto, para temer uma revolução proletária143.
A Assembléia Constituinte eleita em abril de 1848 possuía maioria de
republicanos moderados, representantes da burguesia industrial, eleitos com os votos
dos numerosos e conservadores proprietários rurais. O fechamento das oficinas
nacionais, decretado pela comissão executiva eleita pela Assembléia para substituir o
governo provisório, e o temor dos operários de que suas reivindicações não fossem
atendidas pela Constituinte, desencadeou em junho uma insurreição proletária em Paris,
brutalmente reprimida pelo Exército e pela Guarda Nacional: três mil revolucionários
foram mortos e quinze mil deportados sem julgamento. Seus dirigentes, entre os quais
Blanqui, foram presos144.
A Assembléia marcou as eleições presidenciais para 10 de dezembro de
1848. Durante a campanha eleitoral, Luis Bonaparte aproveitou-se do sobrenome do tio,
142 A Primeira República estendera-se de 1792 até 1804, encerrada pela coroação de Napoleão Bonaparte como imperador. 143 HOBSBAWM, Eric J. Op. cit., p. 140-141; WILSON, Edmund. Op. cit., pp. 161, 269-272.
Napoleão, angariou a simpatia de boa parte da população francesa (principalmente do
campesinato e da classe média) com promessas de glória e grandeza semelhantes às da
época do Império Napoleônico e venceu as eleições. Luís Bonaparte governou, todavia,
em constante conflito com a Assembléia Legislativa eleita em maio de 1849, formada
majoritariamente por monarquistas (450, de um total de 750 deputados). A recusa da
Assembléia em aprovar uma emenda constitucional permitindo sua reeleição para a
Presidência da República serviu de pretexto para que Luís Bonaparte desse um golpe de
Estado em 2 de dezembro de 1851. O presidente realizou depois um plebiscito pedindo
apoio popular ao golpe e o direito de outorgar uma nova Constituição ao país. Vitorioso
no primeiro plebiscito, que o transformou em cônsul, como o tio, com poderes
ditatoriais por dez anos, Luís Napoleão convocou outro, em novembro de 1852, pelo
qual fez-se condecorar como o título de Napoleão III, Imperador da França. A Segunda
República foi substituída, então, pelo Segundo Império (1852-1870)145.
No âmbito educacional, o governo de Luís Napoleão Bonaparte
representou o último período histórico em que a Igreja Católica pôde exercer na França,
mais uma vez, o controle sobre o ensino público146. Buscando agradar a Igreja de todas
as maneiras, Luís Bonaparte confiou ao conde de Falloux, um dos representantes do
catolicismo conservador, a pasta da Instrução Pública e dos Cultos. O novo ministro
instituiu, então, comissões para a preparação de novo projeto de lei sobre o ensino. O
resultado foi a chamada Lei Falloux, aprovada em 15 de março de 1850, e que regeria o
ensino primário e secundário até 1860. A lei acentuava o caráter autoritário e
confessional da educação, favorecia o ensino privado (principalmente das instituições
católicas) ante o público, suprimia a gratuidade das escolas e restringia a liberdade dos
professores, submetendo-os à fiscalização da Igreja, em lugar do controle antes exercido
pelas universidades estatais147.
Aos bispos foi dado o privilégio de poderem criar, em suas dioceses, com
verbas estatais, escolas secundárias privadas, sob responsabilidade dessas mesmas
144 MARX, Karl. Op. cit., p. 25-26; MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 229. 145 MARX, Karl. Op. cit., pp. 41-129; MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. Op. cit., p. 229-230. 146 A definitiva implantação do ensino estatal laico, gratuito e obrigatório só foi realizada após a queda de Napoleão III, em 1870, quando foi instaurada a Terceira República, regime político que vigorou até a derrota da França na Segunda Guerra Mundial, em 1940. 147 MARX, Karl. Op. cit., p. 71-72; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 182; WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op.cit., pp. 143-145.
autoridades eclesiásticas, e sem se subordinarem a nenhuma condição ou exigência do
Estado, ainda que deste recebecem auxílios e subvenções. Muitos estabelecimentos
laicos particulares, abertamente hostilizados pela Igreja e dela enfrentando forte
concorrência, tiveram de fechar suas portas. Como os professores eram vistos como
agentes em potencial da revolução e da desordem, foram colocados sob a fiscalização
eclesiástica: sob os olhos vigilantes do pároco, eram obrigados a ensinar também o
catecismo a até a colaborar na sacristia, numa absurda acumulação de encargos, muitas
vezes incompatíveis com seu modo de pensar e suas crenças. Os padres, como ministros
do culto, detinham não apenas a fiscalização e a direção moral das escolas, mas até
mesmo sua direção pedagógica. De tal forma ficou constituída, pela Lei Falloux, a
administração geral do ensino primário e secundário, que, em caso de qualquer
desinteligência entre o pároco e o professor, este certamente levaria a pior148.
A situação agravou-se ainda mais com o golpe de Estado de 2 de
dezembro de 1851. Foram suprimidas as liberdades civis e a imprensa censurada. O
novo Ministro da Instrução Pública e Cultos, Hippolyte Fortoul, fez reinar na
Universidade o despotismo e o terror. Quando, em fins de 1852, Luís Bonaparte avocou
a si o título de imperador, os professores tiveram de prestar-lhe juramento de fidelidade
e os que se recusaram a isso foram demitidos. A espionagem policial entrou não apenas
na Universidade, mas também nos estabelecimentos escolares públicos e privados, com
exceção dos pertencentes à Igreja, que se beneficiavam da proteção do governo
imperial. Manifestando ainda hostilidade ao desenvolvimento da popularização do
ensino, o ministro Fortoul limitou o número de alunos gratuitos nas escolas primárias,
fato este que contrariou os ideais de muitos mestres, entre eles Rivail, que, consentâneo
com o pensamento de Pestalozzi, sempre propugnara pela maior extensão da educação
popular149.
148 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op.cit., p. 144-145. 149 Id., ibid., p. 147.
Foi devido a tais circunstâncias políticas que Rivail decidiu, como muitos
outros professores e diretores de escolas, afastar-se do magistério, após haver dedicado
trinta anos de sua existência à educação. A esta altura, porém, antes mesmo que o
Espiritismo lhe popularizasse e imortalizasse mundialmente o pseudônimo de Allan
Kardec, Rivail já havia “firmado bem alto, no conceito do povo francês e no respeito de
autoridades e professores, a sua reputação de distinguido mestre da Pedagogia
moderna”150. Sua atividade como educador decorreu em meio a alguns dos
acontecimentos mais importantes da história francesa e européia. Contemporâneo de
transformações econômicas, sociais, políticas e culturais que repercutem até hoje, em
todo o mundo, ele enfrentou o desafio de pensar e defender uma educação adequada
para a nova sociedade surgida com a Revolução Industrial e a Revolução Francesa.
150 Ibid., p. 189.
CAPÍTULO II
O SURGIMENTO DA PEDAGOGIA MODERNA
“As sementes da instrução, da moral e da religião, são postas
dentro de nós pela natureza.”
COMENIUS. Didática Magna. (1657)151
Para melhor compreender as propostas pedagógicas do professor Rivail,
faz-se necessário conhecer também a linha teórica à qual ele se filiava, suas origens e
fundamentos filosóficos. Para conhecer a Rivail, deve-se, portanto, conhecer também
Comenius, Rousseau, Pestalozzi e suas respectivas propostas pedagógicas.
Pode-se dizer que a moderna Pedagogia surge no século XVII, como
resultado duma verdadeira revolução filosófica e científica que então ocorre na Europa.
Filósofos como Francis Bacon (1561-1626), na Inglaterra, e René Descartes (1596-
1650), na França, desempenharam papel relevante nesse contexto ao investigar a teoria
do conhecimento e ocupar-se com o problema do método, isto é, com os procedimentos
da razão na investigação da verdade152. Bacon, particularmente, destacou-se por ter
proposto: 1) a distinção entre a fé e a razão, para que se evitasse cair nos preconceitos
religiosos que distorcem a compreensão da realidade; 2) o emprego do método
experimental como o único seguro no campo científico; e 3) valorização do raciocínio
indutivo, pelo qual se parte de dados particulares para chegar aos conceitos gerais 153.
Igualmente convencido do potencial da razão humana, Descartes também
se propôs a criar um método novo, científico, de conhecimento do mundo e a substituir
a fé pela razão e pela ciência, tornando-se assim o pai do racionalismo. Ao analisar, na
obra Discurso do método (1637), o processo pelo qual a razão atinge a verdade, utilizou
o recurso da dúvida metódica. Começou duvidando de tudo: do senso comum, dos
151 Citado in: COVELLO, Sergio Carlos. Comenius: A construção da Pedagogia. 3.ed. São Paulo: Comenius, 1999, p. 118. 152 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. 2. ed. rev. e atual., São Paulo: Moderna, 1996, p. 105; GADOTTI, Moacir. História das idéias pedagógicas. 8. ed., São Paulo: Ática, 2001, p. 76-77; LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação e da pedagogia. 18. ed., São Paulo: Nacional, 1990, p. 136. 153 GADOTTI, Moacir. Op. cit., p. 76.
argumentos de autoridade, do testemunho dos sentidos, das informações da consciência,
das verdades deduzidas pelo raciocínio, da realidade do mundo exterior e do próprio
corpo. Só interrompeu a cadeia de dúvidas diante de seu próprio ser que duvidava:
“Penso, logo existo”. Encontrou, portanto, uma realidade inquestionável: o próprio
sujeito pensante, que detém a função ordenadora do conhecimento. Desta maneira,
Descartes introduz a idéia de que a razão, bem dirigida, basta para encontrar a verdade,
sem que precisemos confiar na tradição e na autoridade dos dogmas. O espírito humano
carrega em si, portanto, os meios de alcançar a verdade, se souber cultivar sua
independência e conduzir-se com método154. Isto esclarece por que os jesuítas o
repudiavam: não queriam que seus alunos pensassem por si mesmos.
A idéia da existência de um método para se obter o conhecimento correto
levava a concluir pela existência também de um método para ensinar de forma mais
rápida e segura. Esta proposta tendia a ser encarada com mais urgência ainda nos países
protestantes, onde, já nos séculos XVI e XVII, estavam em pleno curso as primeiras
tentativas de implantação de um sistema de ensino organizado nacionalmente155. Em
consonância com seu tempo, educadores como o alemão Wolfgang Ratke (1571-1635) e
o pastor checo Comenius (1592-1670) procuraram desenvolver esse método de ensino,
lançando as bases da moderna pedagogia.
Ratke cuidou de introduzir na educação as idéias de Bacon, tornando-se
o primeiro representante do que ficou conhecido como a pedagogia realista, assim
denominada por derivar da expressão alemã Realien: fatos, coisas reais, isto é, matéria
útil, prática, técnica por oposição ao verbalismo livresco que longamente imperou nas
escolas, desde a Idade Média até o século XVII. Procurava modificar tanto o currículo
quanto o método, aquele no sentido de substituir a literatura e línguas clássicas (grego e
latim) por ciências e línguas modernas, e este no sentido de introduzir na escola
recursos de ensino e aprendizagem do tipo observação, experimentação, demonstração,
ilustração, etc156. Em suas linhas gerais, tais diretrizes pedagógicas são as mesmas pelas
quais Hippolyte Léon Denizard Rivail posteriormente se bateu na primeira metade do
século XIX.
154 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 105-106. 155 HAMILTON, David. Notas de lugar nenhum: sobre os primórdios da escolarização moderna. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n.° 1, p. 45-73, jan./jun. 2001. 156LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., pp. 136-138, 140-141, nota.
Da mesma forma como, mais tarde, Rivail procurou sensibilizar as
autoridades francesas para a necessidade de reformar o ensino, também Ratke buscou
apresentar suas propostas aos príncipes dos Estados alemães e a várias municipalidades
e, depois, à Dieta157 imperial alemã em um Memorial de 1612. Criou uma escola
experimental com o patrocínio do príncipe Luís de Anhalt-Cöthen, que não foi bem-
sucedida. Algumas das principais idéias nas quais se apoiava seu método eram: 1) Que
se deve partir do simples para o complexo, do fácil para o difícil. 2) Deve-se aprender
uma coisa de cada vez; e não se deve passar a outra antes de haver compreendido por
inteiro a precedente. 3) Deve-se repetir o aprendido. 4) Deve-se ensinar tudo primeiro
na língua materna, para depois passar às estrangeiras. 5) Deve-se aprender
prazerosamente, sem coação do mestre. 6) Não se devem impor regras, menos ainda
aprendê-las de memória, mas obtê-las pelo estudo próprio. 7) Deve-se aprender tudo por
experiência e indução158.
Finalmente, na ordem moral e social, a pedagogia realista cultiva o
espírito de tolerância, de respeito à individualidade do educando e de fraternidade entre
os homens. Estava reservado a Comenius conduzir esta linha pedagógica, iniciada por
Ratke, ao máximo desenvolvimento possível em sua época. É necessário examinar mais
detidamente a obra do educador checo, uma vez que ele foi o grande precursor de
Rousseau, Pestalozzi e Rivail/Kardec, que retomaram e desenvolveram muitas de suas
idéias pedagógicas e religiosas nos dois séculos seguintes.
2.1 – Comenius
Jan Amos Komensky, mais conhecido como Comenius, nasceu em 28 de
março de 1592, na cidade de Uhersky Brod, no Reino da Boêmia, hoje República
Checa, de família pertencente à igreja evangélica dos Irmãos Morávios. Tendo ficado
órfão de pai muito cedo, sua educação ficou abandonada até os dezesseis anos, quando
pôde frequentar a escola latina de Prerau. Ingressou, em 1611, no curso de teologia da
Faculdade de Herborn, onde conheceu as idéias de Bacon e Ratke, que muito o
influenciaram, passando em 1613 para a de Heidelberg159.
157 Dieta: assembléia de nobres e prícipes representantes dos Estados alemães que integravam o Sacro Império Romano-Germânico. 158 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 137. 159 COVELLO, Sergio Carlos. Op. cit., pp. 15-27; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 138.
Retornando à patria, encarrega-se, em 1614, da escola latina de Prerau,
na qual logo empreendeu uma série de reformas pedagógicas inspiradas nas idéias de
Ratke. Emprenha-se em tornar agradável o ensino, pondo de lado o verbalismo e a
memorização vazia. Recorre à pedagogia sensorial, à atividade constante e ao exercício
lúdico. Desenvolve o raciocínio de seus alunos, não ensinando nada com base na
autoridade. Cuida de distribuir corretamente o tempo escolar, entremeando o ensino
com conversas, jogos, recreações, e música, pois deseja que a escola seja agradável e
atraente160.
Em abril de 1616 é ordenado pastor dos Irmãos Morávios e se estabelece
na cidade de Fulnek, onde se casa. Desempenha com proficiência a dupla função de
pastor e educador, tornando-se, em 1618, diretor das escolas de sua comunidade
evangélica. Sua carreira seria momentaneamente interrompida devido à intolerância do
rei da Boêmia, Rodolfo II, o qual, sendo católico, começou a perseguir os protestantes
fechando seus templos e escolas, intimando seus súditos a se converterem ao
catolicismo. Tal atitude provocou a rebelião da população protestante checa, tornando-
se o estopim de um conflito religioso que se alastrou pela Europa: a Guerra dos Trinta
Anos (1618-1648). Comenius foi obrigado, como muitos de seus compatriotas, a exilar-
se: expulso de Fulnek em 1621, peregrinou de um lugar para outro até obter asilo para si
e seus seguidores em Leszno, Polônia, em 1628. Ali, entregou-se completamente à
atividade pastoral, educativa e pedagógica, lecionando no colégio da cidade e
escrevendo livros didáticos e pedagógicos que o tornaram famoso em toda a Europa.
Publica, em 1631, o Janua Linguarum (Pórtico das Línguas), um manual
prático para o ensino de latim e outros idiomas, no qual aplicava suas idéias. Tratava-se
de uma cartilha que continha oito mil palavras distribuídas em frases, a princípio
simples, depois de complexidade crescente, que se referiam a assuntos familiares à
criança: os animais, as plantas, o corpo humano, a família, etc. Cada página mostra em
colunas paralelas a sentença em latim e a equivalente em vernáculo, de modo que o
aprendizado do idioma se fazia naturalmente, sem grande esforço. Assim, a língua era
ensinada a partir das experiências do estudante e não de textos literários e regras
gramaticais. Tudo segundo criteriosa graduação, indo do mais fácil ao mais difícil.
160 COVELLO, Sergio Carlos. Op. cit., p. 29.
Como se vê, Comenius propunha o ensino da língua pela própria língua: a idéia antes da
palavra, o exemplo antes da regra.
Nos moldes do Pórtico das línguas, Comenius escreveu também, em
1651, uma obra considerada um marco na história do livro infantil: Orbis pictus (O
mundo ilustrado), espécie de pequena enciclopédia que utiliza, pela primeira vez na
história, gravuras organicamente vinculadas ao texto, de tal forma que cada capítulo da
obra é ilustrado por um quadro com números que correspondem às palavras e frases do
texto. Segundo Comenius, a imagem auxilia a reter a noção aprendida, pois “a sensação
recebida pelos olhos guardamos mais do que a recebida pela audição”, além de
estimular a inteligência infantil a procurar deleite nos livros. Tratava-se, enfim, de
chegar aos conhecimentos gerais por meio das impressões sensíveis, ou seja, de aplicar
o método indutivo. Hoje, tais recursos didáticos podem parecer muito familiares, mas
no século XVII eram revolucionários e as cartilhas criadas por Comenius foram
adotadas em vários países da Europa e mesmo da Ásia, sendo traduzidas para o francês,
inglês, sueco, italiano, árabe, persa e outras línguas. Circularam até o século XIX e
serviram de modelo aos modernos livros didáticos infantis e aos manuais de ensino de
idiomas161.
Pela mesma época em que publicava essas obras didáticas Comenius
escrevia e traduzia para o latim seu principal tratado pedagógico, a Didática Checa,
mais conhecido como Didática Magna, no qual expunha suas propostas educacionais,
todas elas retomadas, posteriormente, pelos pedagogistas dos séculos XVIII e XIX. Sua
pedagogia é conjunção de idéias realistas e religiosas, a parte religiosa referindo-se mais
aos fins da educação, e a realista aos meios. O fim da educação é, para Comenius, a
salvação, a felicidade eterna. Mas essa educação não deve se enquadrar em determinada
confissão religiosa, sendo antes extraconfesional, íntima162.
161 COVELLO, Sergio Carlos. Op. cit., pp. 52-53, 89-91, 106; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 142-143. 162 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 139.
Comenius é o primeiro pedagogo a lançar a idéia de uma reforma da
sociedade com base na educação, tornando-a acessível a todos. O propósito final era o
de criar condições para o surgimento de uma sociedade verdadeiramente cristã. Com
este fim, determina que nas escolas devem-se admitir não só os filhos dos ricos e
poderosos, mas a todos por igual, nobres e plebeus, ricos e pobres, meninos e meninas.
E não só isso, mas que hão de ser instruídos conjuntamente nos mesmos
estabelecimentos, sem separação por sexo ou classe social, como era habitual na
época163.
Quanto à estrutura do sistema educacional, Comenius preconizava que
ele deveria compreender 24 anos, correspondendo a quatro tipos de escolas, articuladas
num todo orgânico: a escola materna, dos 0 aos 6 anos; a escola elementar ou
vernácula, dos 6 aos 12 anos; a escola latina ou ginásio, dos 12 aos 18; e a academia ou
universidade, dos 18 aos 24 anos. Em cada família deveria existir uma escola marterna;
em cada município ou aldeia uma escola primária; em cada cidade um ginásio e em
cada capital uma universidade. As duas primeiras escolas destinam-se basicamente a
desenvolver os sentidos e a formar conceitos que servirão para toda a vida. Enquanto a
escola materna situa-se no próprio lar, sob os cuidados da mãe, a escola primária deve
ser pública e seriada, distribuindo-se os alunos em seis classes, com um programa que
compreende leitura, escrita e redação em língua vernácula, cálculo, canto, moral,
religião, fundamentos de economia, geografia e artes manuais164.
A escola secundária, por sua vez, destina-se aos jovens que não desejam
dedicar-se aos trabalhos manuais. Por isso, o ensino ministrado nesta instituição deveria
ser mais enciclopédico, incluindo gramática, física, matemática, ética, dialética,
retórica, ciências e quatro línguas (o vernáculo, o latim, o grego e o hebraico), com
ênfase ao vernáculo e ao latim. Os estudos universitários devem ser reservados apenas
aos alunos mais capacitados, destinados a carreiras em teologia, medicina, direito,
magistério ou política165.
Comenius resumiu seu método em nove regras: 1) Deve-se ensinar tudo
o que se deve saber. 2) O que se ensina, deve ensinar-se como coisa do mundo de hoje e
de utilidade certa. 3) Tudo deve ser ensinado diretamente, sem rodeios. 4) Ensine-se
163 COVELLO, Sergio Carlos. Op. cit., pp. 55-57; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 140. 164 COVELLO, Sergio Carlos. Op. cit., p. 57; GADOTTI, Moacir. Op. cit., p.79; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 140-141.
tudo pelas causas. 5) O que se oferece ao conhecimento deve apresentar-se
primeiramente de modo geral e, depois, por partes. 6) Deve-se examinar todas as partes
do objeto estudado, e as relações entre elas. 7) Ensinem-se todas as coisas
sucessivamente, detendo-se em uma só coisa de cada vez. 8) Detenha-se sobre cada
objeto de estudo até compreendê-lo perfeitamente. 9) Expliquem-se bem a diferença das
coisas, para obter conhecimento claro e distinto de todas166.
A divulgação das idéias pedagógicas de Comenius através de palestras,
correspondência epistolar e panfletos que resumiam a Didatica Magna tornaram o
pedagogo checo conhecido no norte da Europa, principalmente nas nações protestantes,
e lhe valeram uma série de convites de autoridades que desejavam seu auxílio na
implantação de reformas no ensino de seus respectivos países. Na Inglaterra, a
publicação, em 1637, de um opúsculo contendo um resumo da Didática Magna, o
Conatum commenianorum praeludia ex bibliotheca, com aprovação da Chancelaria da
Universidade de Oxford, despertou vivo interesse entre os letrados, muitos dos quais
pertencentes ao Parlamento. O Parlamento britânico foi, portanto, o primeiro órgão
político a convidá-lo a uma visita para que expusesse, pessoalmente, seu método aos
eruditos ingleses. Esta curta estada de Comenius em Londres (em 1641-1642), durante o
qual, inclusive, ele publicou A Reformation of Shooles, destinado especialmente aos
ingleses, repercutiu sobre os métodos de ensino que se adotaram na Inglaterra durante o
século XVII167.
Viajou em seguida pela Holanda, onde foi recebido com homenagens em
todos os lugares por onde passava, graças ao prestígio alcançado como educador e autor
de manuais didáticos que haviam logrado sucesso nos meios escolares. Recebe convites
para auxiliar de reformas educacionais na Suécia, em Massachusetts, na América do
Norte, e até mesmo na França, onde o Cardeal Richelieu parecia disposto a superar as
diferenças religiosas e adotar as idéias pedagógicas de um pastor protestante. Comenius
escolheu ir à Suécia, mas antes fez uma visita a um filósofo francês que, na época,
morava nos Países Baixos e com o qual tinha muito em comum: René Descartes.
Tanto Comenius quanto Descartes eram intelectuais do método e ambos
o defendiam como condição para a aquisição do saber. Os dois também aspiravam a
165 COVELLO, Sergio Carlos. Op. cit., pp. 57-59; GADOTTI, Moacir. Op. cit., p.79. 166 COVELLO, Sergio Carlos. Op. cit., p. 60; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 141-142. 167 COVELLO, Sergio Carlos. Op. cit., pp. 67-73; HAMILTON, David.Op. cit., pp. 46-47, 58 et passim.
uma ciência universal (denominada pansofia por Comenius) que pudesse ser alcançada
por todos, e colocada a serviço da humanidade sofredora. A regra básica do método
cartesiano é a mesma do comeniano (como havia sido também a de Ratke): na pesquisa
da verdade começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para
chegar, gradualmente, até o conhecimento das coisas mais complexas168.
Mas as diferenças entre os dois também eram grandes. Enquanto
Comenius encarava a ciência como meio de aproximação com Deus, Descartes
preconizava a separação entre os dois campos, o científico e o religioso, direcionando a
ciência para fins exclusivamente humanos. A postura de Descartes era, enfim, a de um
racionalista puro, enquanto a de Comenius era a de um intuitivo. Descartes era movido
pela dúvida, enquanto Comenius o era pela fé. Descartes preocupou-se apenas com o
intelecto, enquanto Comenius foi além, valorizando a razão mas também preocupando-
se com as emoções e com a alma. Apesar das diferenças, os dois intelectuais
permaneceram amigos169. As idéias racionalistas de Descartes direcionaram
posteriormente quase toda a cultura científica e filosófica do Ocidente nos séculos
seguintes, enquanto que muitas das idéias de Comenius seriam retomadas por Rousseau,
Pestalozzi e Kardec.
No verão de 1642 Comenius chega à Suécia, onde dedica-se a escrever,
por encomenda do Chanceler Oxenstiern, manuais escolares para uso dos estudantes do
país. Volta à Polônia em 1648 e, no ano seguinte, assume como bispo a direção geral da
Unidade dos Irmãos Morávios. Em 1651, a convite do príncipe Sigesmundo Rákoczy,
instala-se em Sarospatak, na Hungria, onde se dedica a reformar o ensino elementar
local. Regressa à Polônia em 1654, onde apóia a invasão do país pelo rei sueco Carlos
X, por ser este também protestante. Os católicos reagiram incediando Leszno, refúgio
dos protestantes checos, em 1656, obrigando-os a fugir novamente. Comenius exilou-se
então na Holanda, onde era muito bem quisto e ali deu continuidade a seus trabalhos
pedagógicos, até sua morte em 1670170.
Durante o século XVIII, Comenius foi quase esquecido, e somente em
1814 o erudito alemão Krause chamou a atenção do mundo para suas idéias. Em 1829 o
historiador checo Frantisek Palaky publicou A vida de Comenius, obra que estimulou
168 Id., ibid.,pp. 76-80. 169 Ibid., pp. 77, 80-81. 170 COVELLO, Sergio Carlos. Op. cit., pp. 93-103; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 138-139.
novos estudos sobre o pedagogo. Daí em diante a Didática Magna passaria a ser
traduzida para vários idiomas. Em 1956 a Conferência Internacional da UNESCO
realizada em Nova Delhi deliberou a publicação das obras de Comenius e o apontou
como “um dos primeiros propagadores das idéias que inspiraram a UNESCO por
ocasião de sua fundação”. Em 1989 a UNESCO declarou 1992 o Ano de Comenius,
para comemorar o 4.° Centenário de seu nascimento171.
Finalmente, resta observar que a premissa comeniana de que o fim último
da educação é resgatar a primitiva natureza humana, que foi criada boa por Deus e pode
(e deve) ser reconquistada a fim de transformar o mundo em verdadeiro paraíso, foi
posteriormente retomada por Jean-Jacques Rousseau, que também pregava a volta ao
“homem natural”; este último não é, como se pensa erradamente, o bruto da selva, mas
o homem recuperado em sua essência. Rousseau também defendia — assim como
Pestalozzi, seu seguidor mais célebre no âmbito educacional — o princípio comeniano
de que religião é algo mais individual que institucional, e muito mais do coração do que
do intelecto, mais de prática moral que de práticas rituais, muito mais de conceitos
simples e racionais que de dogmas e mistérios. Todas estas idéias pedagógicas e
religiosas foram defendidas, no século XIX, pelo professor Rivail, e continuaram a sê-
lo, em seu aspecto mais especificamente religioso, nas obras espiritualistas que escreveu
posteriormente com o pseudônimo de Allan Kardec172.
2.2 – Rousseau
Jean-Jacques Rousseau, filósofo suíço, acreditava que o ser humano é
essencial e naturalmente bom, mas que a sociedade o corrompe. A partir daí, investigou
como a sociedade limita as potencialidades do ser humano, desvirtuando-as, e de que
maneira se poderia reverter este quadro. Entendeu ser ilusão querer formar um homem
livre numa sociedade em que prevalece a desigualdade, do mesmo modo que também é
uma ilusão esperar transformar a sociedade sem dispor de homens livres e dispostos a
lutar pelos necessários avanços sociais. Seria necessário cuidar então, simultaneamente,
de ambos os aspectos do problema173.
171 COVELLO, Sergio Carlos. Op. cit., pp. 105-109, 150-151. 172 CERIZARA, Beatriz. Rousseau: a educação na infância. São Paulo: Scipione, 1990, pp. 38-40; COLOMBO, Cleusa Beraldi. Idéias Sociais Espíritas. São Paulo: Comenius, 1998, p. 28; INCONTRI, Dora. Pestalozzi: educação e ética. São Paulo: Scipione, 1997, pp. 37-40, 135-136. 173 CERIZARA, Beatriz. Op. cit., p. 26-27.
Embora não fosse cientista político nem pedagogo, Rousseau influenciou
de forma marcante o pensamento político moderno — os revolucionários franceses de
1789 pretendiam colocar em prática suas idéias —, assim como também o pedagógico.
Seu mais importante discípulo no campo da educação, Pestalozzi, também acreditava na
importância da educação para a realização de avanços sociais. Foi nesta linha de
pensamento que depois se orientou Hippolyte Léon Denizard Rivail, não só na
elaboração de suas próprias idéias pedagógicas, mas também na codificação da doutrina
social espírita, a qual busca na educação a chave para a solução dos problemas
sociais174.
Rousseau nasceu em 1712, em Genebra, Suíça, filho de pais calvinistas; a
mãe morreu em conseqüência do parto e o pai, relojoeiro, educou-o até os 10 anos,
quando foi obrigado a abandonar a cidade natal. Ficou sob a responsabilidade do tio
Bernard que, por sua vez, confiou sua educação a um pastor protestante, Lambercier.
Esta formação calvinista teve significativa influência sobre suas idéias políticas e
pedagógicas, e sua importância deve ser ressaltada. Sabe-se que ao mesmo tempo em
que contribuiu para a reforma dos métodos de instrução e o estabelecimento da
educação elementar universal, o calvinismo influenciou o desenvolvimento das idéias
democráticas175.
Aos desesseis anos, e após ter trabalhado algum tempo como notário e
gravador, Rousseau saiu de Genebra, viajando pela Suíça, França e Itália. Instalou-se
em Paris, em 1741, onde trabalhou como professor de música e autor teatral. Ali entrou
em contato com os intelectuais que representavam o movimento denominado
Iluminismo ou Ilustração, que enfatizava o poder da razão humana de interpretar e
reorganizar o mundo. Os iluministas foram os grandes críticos do absolutismo francês,
das velhas intituições sócio-economicas do Antigo Regime e da Igreja. Propunham
outro tipo de organização da sociedade, baseada no liberalismo176 econômico e político.
Tratava-se, portanto, de um movimento que expressava os valores e anseios da
burguesia ascendente.
174 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., p. 84-85. 175 GOULART, Iris Barbosa. Psicologia da educação. 7. ed., Petrópolis: Vozes, 2000, p. 138-139. 176 Liberalismo - Doutrina segundo a qual a liberdade, independente de qualquer obstáculo, é o único meio de progresso, harmonia e paz social. O liberalismo reduz o papel do Estado à função negativa de reprimir os atentados à ordem pública (apud: OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia. 19. ed., São Paulo: Ática, 1999, p. 195)
Duas idéias gerais, herança de Descartes, eram comuns a todos os
pensadores iluministas: 1) a razão é o único guia infalível para se chegar ao
conhecimento e à sabedoria; e 2) o universo é uma máquina governada por leis físicas
que podem ser determinadas e estudadas, não se submetendo a interferências de cunho
divino, como milagres por exemplo177. Tinham, portanto, uma visão de mundo
secularizada, desvinculada de qualquer aspecto religioso.
Rousseau tornou-se muito amigo de Denis Diderot (1713-1784),
importante filósofo e criador, junto com Jean D’Alembert, da Enciclopédia, obra
considerada um marco do pensamento iluminista e para a qual o próprio Jean-Jacques
colaborou com artigos sobre música e economia política. Diderot destacava-se ainda
pela sua defesa da educação como fator decisivo na vida do homem e da sociedade.
Afirmava que o Estado deveria ministrar a instrução independentemente da Igreja e que
na educação deveriam predominar os conhecimentos científicos sobre os literários.
Finalmente, Diderot batia-se também pela universalização do ensino, admitindo porém
que tal medida encontraria muita resistência da parte dos poderosos, porque “é mais
difícil explorar um camponês que sabe ler do que um analfabeto”178.
Rousseau concordava, em geral, com as propostas de reforma social e
pedagógica dos iluministas, mas discordava de sua ênfase demasiada no intelecto.
Enquanto seus parceiros voltavam-se para as explicações racionais e objetivas marcadas
pelo primado da razão, ele empregava uma maneira própria de pensar, na qual
privilegiava tanto o coração quanto o intelecto. Esta síntese entre emoção e razão
caracterizará seu pensamento pedagógico, da mesma forma como sempre procurava
levar em conta, também, a complementaridade entre os aspectos individual e social.
Pode-se dizer, em suma, que Rousseau procurou delinear uma educação integral, total,
humana179.
177 MELLO, Leonel Itaussu A. & COSTA, Luís César. História moderna e contemporânea. 5. ed., São Paulo: Scipione, 1999, p. 105. 178 PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. 16. ed., São Paulo: Cortez, 1998, p. 133; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 162. 179 CERIZARA, Beatriz. Op. cit., pp. 18 e 30; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 166-167.
Em 1762 publicou, simultaneamente, os livros Emílio ou da educação —
obra que, para Iris Barbosa Goulart, “estabeleceu os fundamentos da Pedagogia
moderna”180 —, e Do Contrato Social ou princípios de direito político. Esta
simultaneidade na publicação das duas obras não era coincidência, pois Rousseau tinha
em mente a existência de uma relação íntima e constante entre a educação do homem
(no Emílio) e a formação do cidadão (em Do Contrato Social)181.
Como adverte o pedagogista argentino Lorenzo Luzuriaga, é muito difícil
resumir, em poucas linhas, o pensamento de Rousseau, dificuldade agravada pelas
interpretações equivocadas a que estão sujeitas suas idéias básicas. Tem-se dito, por
exemplo, que a pedagogia de Rousseau é “naturalista”. O conceito de natureza, de fato,
é primordial na teoria pedagógica rousseauísta; mas engloba diferentes aspectos, que
vão muito além do mito do “bom selvagem”. Externamente, é o oposto das convenções
sociais; o contrário do que é artificioso e mecânico. Mas isso é apenas o aspecto
exterior, negativo, de sua concepção de natureza. O positivo é a natureza como
equivalente ao essencial do homem, o que tem valor substantivo e permanente. “Nesse
sentido, observa Luzuriaga, antes cumpre falar do humanismo do que do naturalismo de
Rousseau”. Ele parte do príncipio de que a natureza humana é regida por leis gerais,
racionais, acima de todas as circunstâncias históricas e sociais que a desnaturam182.
Portanto, a meta da educação “natural” de Rousseau é aproximar, o
máximo possível, o homem do “estado de natureza”, ainda que se saiba que ele não
existe concretamente, nem nunca existiu: o estado natural funciona, na verdade, como
uma hipótese de trabalho, um ideal a ser perseguido, pois tendo o homem natural como
protótipo, é possível, a partir dele, avaliar (e superar) a degradação do homem social183.
Para expor sua teoria pedagógica, Rousseau recorre à abstração
metodológica de uma relação ideal — semelhante à do contrato social, na qual os
indivíduos renunciam à sua liberdade natural irrestrita e submetem-se a leis e regras de
convivência social — entre um preceptor e uma criança (justamente o Emílio do título
do livro), cujo desenvolvimento ele acompanharia desde o parto até a idade adulta e seu
casamento. Rousseau dividiu então o livro em cinco partes, conforme as etapas de
desenvolvimento de seu aluno ideal: no Livro primeiro, a idade da necessidade (bebê,
180 GOULART, Iris Barbosa. Op. cit., p. 11. 181 CERIZARA, Beatriz. Op. cit., pp. 26-28. 182 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 165.
dos 0 aos 2 anos), no Livro segundo, a idade da natureza (criança, dos 2 aos 12 anos),
no Livro terceiro, a idade da força (adolescência, dos 12 aos 15 anos), no Livro quarto,
a idade da razão e das paixões (juventude, dos 15 aos 20 anos) e, finalmente, no Livro
quinto, a idade da sabedoria e do casamento (idade adulta, a partir dos 20 anos,
encerrando-se o acompanhamento do preceptor quando Emílio se casa aos 25 anos)184.
Nesta divisão do desenvolvimento humano em etapas encontra-se mais
um aspecto revolucionário da pedagogia rousseauísta, pois até então não se cogitara de
considerar as diferentes etapas da vida humana como portadoras de características
próprias, a exigirem abordagens educacionais distintas. Conforme demonstrou Philippe
Ariès, durante a Idade Média e o Antigo Regime o homem europeu não distinguiu a
infância como uma fase da vida distinta da adulta. Ainda no século XVIII, era comum
os internatos aceitarem alunos a partir dos 8 até por volta dos 24 anos, os quais
frequentavam as mesmas salas de aula. Rousseau foi, portanto, o primeiro a ver
claramente a diferença entre a mente da criança, do adolescente e do adulto. Enfatizou
que a infância, como a adolescência, “tem maneiras de ver, de pensar, de sentir, que lhe
são próprias” e que cumpre conhecer e respeitar185.
Rousseau se destaca ainda por ter sido — segundo Batriz Cerizara — um
precursor das teorias construtivistas desenvolvidas no século XX pelo seu conterrâneo
Piaget (1896-1980) e pelo soviético Vygotsky (1896-1934). Ele defende a tese de que o
homem é um ser social por excelência, que só se constrói plenamente na interação que
estabelece com o meio — que inclui tanto o ambiente natural quanto o social186.
183 CERIZARA, Beatriz. Op. cit., p. 40. 184 Id., ibid., pp. 19, 160-162 et passim. 185 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed., Rio de Janeiro: LTC, 1981, pp. 50-68; CERIZARA, Beatriz. Op. cit., p. 83; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 166. 186 PELLEGRINI, Denise. Aprenda com eles e ensine melhor. Nova Escola, São Paulo, ano XVI, n.° 139: p. 18-25, jan./fev. 2001; ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., pp. 184-185, 186; CERIZARA, Beatriz. Op. cit., p. 62-63.
Tal como Piaget, que denomina sensório-motor o período de 0 a 2 anos,
Rousseau considera que na idade da necessidade a criança não fica atenta senão àquilo
que afeta seus sentidos e que, nesta fase, ela aprende através da exploração dos objetos
e da comparação entre eles: “Somente pelo movimento aprendemos que há coisas
distintas de nós; somente pelo nosso próprio movimento adquirimos a idéia da
extensão”. Preconiza, portanto, que se permita ao bebê explorar o meio que o circunda,
com o devido cuidado de afastar de seu alcance objetos perigosos187.
187 CERIZARA, Beatriz. Op. cit., p.66; PELLEGRINI, Denise. Op. cit.,p. 24-25.
Atentando, ainda, para os altos índices de mortalidade infantil em sua
época — “Metade, quando muito, das crianças que nascem chega à adolescência; e é
provável que seu aluno não chegue à idade adulta” —, Rousseau oferece instruções de
ordem higiênica para a preservação da saúde da criança: recomenda que as mães
amamentem, elas mesmas, seus filhos, ou que contratem amas de leite, se necessário,
evitando o uso de leite animal (foi, portanto, um dos precursores das modernas
campanhas de aleitamento materno); e também que se banhe a criança frequentemente,
com água morna (sabe-se hoje que a falta de higiene era uma das causas dos altos
índices de mortalidade do período)188.
A passagem para a fase seguinte, a idade da natureza (de 2 a 12 anos189),
se dá quando a criança começa a falar. A esse respeito, Rousseau mostra-se, mais uma
vez, como um precursor das modernas teorias psico-pedagógicas do século XX: para
ele, a linguagem da criança é resultante de um processo de construção própria, que
inicia com uma gramática inerente à sua idade e cuja sintaxe tem regras mais gerais do
que a dos adultos. Essa gramática infantil, quando submetida à análise, apresenta uma
lógica interna adequada à maneira de pensar da criança. Rousseau ilustra sua
explanação com um exemplo que tem correspondente em língua portuguesa: trata-se do
fato de que todas as crianças, numa determinada idade, em vez de dizer “eu fiz”, dizem
“eu fazi”. Na sua busca (ou melhor, construção) de uma regra adequada, as crianças
inicialmente generalizam, tratando um vergo irregular da mesma forma com que tratam
os regulares190.
188 CERIZARA, Beatriz. Op. cit., pp. 60-61, 81. 189 Piaget denomina de pré-operatória a fase que se inicia aos 2 anos, e que ele caracteriza pela capacidade que a criança adquire de fazer uma coisa pensando em outra. Por exemplo, quando ela brinca com uma boneca e representa, dessa maneira, situações vividas em dias anteriores. Outra progressão se dá por volta dos 7 anos, quando ela passa para o operacional-concreto e consegue refletir sobre o inverso (reversibilidade) das coisas e dos fenômenos e, para concluir um raciocínio, leva em consideração as relações entre os objetos. Percebe, por exemplo, que 3-1=2 porque sabe que 2+1=3. Finalmente, por volta dos 12 anos, chega-se ao estágio operacional-formal, fase em que o adolescente pode pensar em coisas completamente abstratas, sem necessitar da relação direta com o concreto. É somente a partir daí que ele pode compreender conceitos como amor e democracia (apud PELLEGRINI, Denise. Op. cit.,p. 24). 190 CERIZARA, Beatriz. Op. cit., p. 73-74.
As recomendações que Rousseau oferece para se lidar com a
aprendizagem da línguagem verbal pela criança ilustram exemplarmente seu método
pedagógico: segundo ele, não se deve corrigir, criticar ou censurar o aluno que fala
“errado”, mas pura e simplesmente falar naturalmente com ele da forma correta, sem
nunca o corrigir. Ele próprio se corrigirá, com o tempo. Também considera um grande
incoveniente que “a criança tenha mais palavras que idéias e saiba dizer mais coisas do
que possa pensar”. Ou seja: não adianta incluir no vocabulário infantil conceitos
demasiadamente abstratos, que a criança ainda não tem capacidade para apreender191.
Quanto ao processo de alfabetização, Rousseau afirma que o método
utilizado não importa: qualquer um será bom, se a criança se interessar pela leitura. Para
ele, o fundamental é despertar nela esse desejo. Com essa finalidade, ele procura situar
o estudante em um contexto social onde ele perceba a utilidade da escrita e da leitura e
sinta necessidade de aprendê-las: Emílio receberá bilhetes e cartinhas de colegas, dos
avós e de outros parentes convidando-o para festas e passeios e, por não saber ler, terá
que pedi-lo a outrem. Como nem sempre ele encontrará alguém disponível ou com boa
vontade para isso, ele perceberá a utilidade de saber ler sozinho. Segundo Beatriz
Cerizara, Rousseau estaria se referindo aqui ao que atualmente a psicolingüista
argentina Emília Ferreiro denomina função social da escrita. O filósofo suíço destaca
que o fato de ser criado num “ambiente alfabetizador” (outro conceito de Emília
Ferreiro) instiga e possibilita ao aluno o aprendizado da leitura e da escrita192.
Rousseau preocupa-se também com o tipo de livro que se oferecerá para
a criança. Observa que as fábulas moralistas de La Fontaine e outros autores, tão em
moda nas escolas do século XVIII, eram inadequadas para crianças com menos de 12
anos, pois elas não são capazes de compreender os conceitos morais nelas expostos.
Corre-se mesmo o risco da criança identificar-se mais com os personagens malandros e
desonestos, tão comuns nestas fábulas, do que sentir empatia por suas vítimas, o que
seria desastroso para sua formação moral193.
Emílio só ganhará seu primeiro livro aos 12 anos e a obra escolhida é
Robinson Crusoé, romance do escritor inglês Daniel Defoe (1660-1731), cujo
personagem, um náufrago sozinho numa ilha, desprovido de toda assistência,
191 Id., ibid., p. 74-75. 192 Ibid., p. 133-134. 193 Ibid., pp. 128-132.
desenvolve os meios necessários à sua sobrevivência e bem-estar. Allan Bloom,
professor de ciência política da Universidade de Toronto, explica que nesta escolha não
há a intenção de fornecer apenas um passatempo inócuo para Emílio, mas de lhe
proporcionar uma visão abrangente da totalidade e um parâmetro para o julgamento das
coisas e dos homens:
Robinson Crusoé é um homem solitário que se encontra no
estado de natureza, fora do âmbito da sociedade civil e imune às
realizações ou opiniões dos homens. Suas únicas preocupações
são sua preservação e seu conforto. Toda a sua força e
raciocínio estão voltados para a consecução desses objetivos,
sendo a utilidade o princípio determinante de sua ação e
organizador de todo o seu conhecimento. O mundo que ele
percebe não contém deuses ou heróis; não há convenções. Nem
a lembrança do Éden nem a esperança de salvação afetam seu
julgamento. A natureza e as necessidades naturais constituem
tudo o que é de seu interesse. Robinson Crusoé é uma espécie
de Bíblia da nova consciência da natureza e revela a verdadeira
condição original do homem194.
É importante observar que os critérios defendidos por Rousseau para a
escolha dos livros a serem lidos pelos estudantes do ensino fundamental exerceram,
posteriormente, influência sobre o professor Rivail. Em seu Plano proposto para a
melhoria da Educação Pública, de 1828, ele também repudia as fábulas e recomenda a
leitura do Robinson Crusoé, explicando que:
194 BLOOM, Allan. A educação do homem democrático. Humanidades, Brasília, v. II, n.° 7, p. 78-92, abr./jun. 1984; citação da p. 82.
A escolha desses autores é bastante difícil para a oitava série195,
porque os modelos de estilo estão acima do alcance desta idade.
É preciso, pois, escolher os que são mais instrutivos e mais
interessantes ao mesmo tempo, a fim de habituar a criança a
fixar a atenção sobre o que lê. As escolhas de viagens,
descoberta da América, Robinson e outros semelhantes, podem
preencher este objeto; mas de forma alguma fábulas, pois é
ridículo colocá-las, nesta idade, entre as mãos de crianças,
quando muitas vezes, aos vinte anos, tem-se dificuldade de
compreendê-las196.
Para dar a Emílio noções básicas das relações sociais, Rousseau leva-o à
horta e o motiva a fazer seu próprio plantio, cultivando feijões. A partir desta
experiência, Jean-Jacques não apenas estimula no aluno o gosto pelo trabalho, mas
também lhe proporciona uma base concreta para o aprendizado do conceito de
propriedade, explicando-lhe que os feijões lhe pertencem por serem fruto de seu
trabalho — um conceito tomado do filósofo inglês John Locke (1632-1704). Depois,
Emílio aprende o respeito à propriedade alheia, quando ouve o jardineiro Robert
queixar-se de que, ao plantar seus feijões, o menino destruíra a semeadura de melões
que ele havia feito anteriormente no local. Emílio compreende então que o jardineiro
também teria direito à propriedade dos melões, por serem fruto de seu trabalho. Sob
orientação do professor, elabora com o jardineiro um pacto, pelo qual partilham o uso
da terra. Dessa forma, Emílio também recebe as primeiras lições práticas acerca do
contrato social e aprende a se submeter às próprias leis sobre cuja feitura foi chamado a
deliberar. Esta passagem demonstra que o objetivo de Rousseau, como bem enfatiza
Allan Bloom, é a formação de um homem democrático, que respeita o direito do
semelhante197.
No período dos 12 aos 15 anos, chamada por Rousseau idade da força, o
aluno já pode bastar-se por si mesmo. Começa a conhecer melhor seus limites, definidos
a partir do critério da utilidade — por isso recebe o livro com a história de Robinson
195 Tratava-se, na verdade, da primeira série do ensino fundamental, pois na época a seriação escolar se contava de trás para frente. 196 RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Plano proposto para a melhoria da Educação Pública. In: Textos pedagógicos. Organização, apresentação e notas de Dora Incontri. São Paulo: Comenius, 1998, pp. 13-76; citação da p. 69. 197 BLOOM, Allan. Op. cit.,p. 86-87; CERIZARA, Beatriz. Op. cit., pp. 109-111.
Crusoé. A instrução que o jovem recebe segue esse critério: as ciências físicas, como a
Matemática, a Física, e a Astronomia são aprendidas não como disciplinas meramente
impostas pelo professor, pois Emílio aprende-as de forma prática, de maneira a deixar
bem clara sua utilidade. Rousseau segue, aqui, o preceito comeniano: “O que se ensina,
deve ensinar-se como coisa do mundo de hoje e de utilidade certa.” A utilidade da
Astronomia, por exemplo, é demonstrada a Emílio através de um exercício pelo qual ele
deve descobrir o caminho de volta para casa, no campo, através da posição dos
astros198.
Aprendendo a controlar-se no mundo físico e nas relações com as
pessoas, aos 15 anos começa para o jovem a educação moral propriamente dita: ele
entra na idade da razão. Só a partir daí ele poderá observar os homens e suas paixões,
estudar disciplinas como História e Ética e iniciar sua instrução religiosa — em bases
não-confessionais —, pois falar precocemente de Deus com a criança apenas iria lhe
ensinar idolatria.
Para Rousseau, é na adolescência que aparece o homem completo, o
homem com suas paixões — é a época em que a sexualidade aflora. Ele defende a
importância das paixões e repudia a idéia de que há paixões boas ou más em si mesmas;
o que as torna boas ou más é o uso que se faz delas. A partir dos 20 anos, Emílio já
estará apto a inserir-se, finalmente, na sociedade civil199.
Como Rousseau defendia no Emílio o ensino de uma religião natural, não
confessional e de tendência deísta200, ele foi perseguido e ameaçado de prisão pelo
arcebispo de Paris. Voltou para a Suíça, onde foi hostilizado também pelos calvinistas.
Refugiou-se na Grã-Bretanha com o filósofo David Hume, com quem acabou se
desentendendo. Retornou à França em 1770, enfermo e pobre. Morreu em 2 de julho de
1778, em Ermenonville, na casa do marquês de Girardin, que o acolhera201.
198 BLOOM, Allan. Op. cit.,p. 82-83; CERIZARA, Beatriz. Op. cit., p. 160. 199 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 123; BLOOM, Allan. Op. cit., pp. 87-89; CERIZARA, Beatriz. Op. cit., p. 161-162. 200 Deísta, deísmo - O deísmo é a doutrina filosófica que admite a existência de Deus, mas nega a revelação e, às vezes, até a Providência; o Deus dos deístas é impessoal, destituído de atributos morais e intelectuais e é considerado apenas como a força infinita, a causa cega de todos os fenômenos do Universo. O deísmo foi adotado pelos filósofos iluministas como uma forma de reação ao antropomorfismo das religiões tradicionais — particularmente do catolicismo — que faziam representar Deus de forma demasiadamente humana. 201 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 164.
Considera-se como pontos fracos da pedagogia rousseauísta seu
demasiado otimismo na ação da natureza, seu elitismo e individualismo (Emílio recebe
educação sozinho, por intermédio de um professor particular, prática própria das
pessoas ricas do Antigo Regime). Faltaria também a Rousseau a idéia da instrução
popular, da educação das massas, se bem que, em outro trabalho — as Considerações
sobre o governo da Polônia, escritas em 1772 —, ele se haja ocupado sumariamente da
instrução de caráter nacional, afirmando que:
A educação nacional não pertence senão aos povos livres... A
educação é que deve dar às almas a forma nacional e dirigir-lhes
de tal modo opiniões e gostos, que sejam patriotas por
inclinação, por paixão, por necessidade202.
Com todas suas deficiências, desigualdades ou mesmo paradoxos,
Rousseau continua a ser considerado um dos maiores pedagogistas da História. Ainda
em seu tempo exerceu influência considerável no aspecto político e social, mudando
costumes e instituições. Robert Darton, professor de História na Princeton University,
afirma que o filósofo suíço influiu sobre a maneira da burguesia criar seus filhos, no fim
do século XVIII. Surgiu entre os pais uma nova atitude para com as crianças e um novo
desejo de supervisionar pessoalmente a educação de seus filhos, não mais a deixando
somente sob os cuidados de amas ou preceptores. No rastro do Emílio foi publicada
toda uma nova literatura pedagógica e infantil que visava suprir a procura dos pais (e
professores) burgueses por manuais desta natureza. “Esses livros partiam da premissa
rousseauísta de que as crianças eram naturalmente boas e prosseguiam desenvolvendo
uma pedagogia saturada de rousseauísmo”203.
202 Citado em: LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 167. 203 DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. 2. ed., Rio de Janeiro: Graal, 1996, p. 308.
Também para Philippe Ariès a segunda metade do século XVIII marca
uma completa mudança na forma como os pais de família das classes mais abastadas
(principalmente a burguesia) tratam da saúde e educação de seus filhos, acompanhando-
os mais de perto, cotidianamente204. Para Ariès, contudo, trata-se da culminância de um
processo que havia se iniciado muito antes de Rousseau, remontando aos escritores e
pregadores moralistas dos séculos XVI e XVII. Sob esta perspectiva, o filósofo suíço
apenas teria fornecido à burguesia, então, uma roupagem secular, não-confessional, a
alguns preceitos pedagógicos e morais que já vinham sendo difundidos por religiosos
católicos e protestantes nos séculos anteriores.
204 ARIÈS, Philippe. Op. cit., pp. 267-271.
Boa parte da influência de Jean-Jacques Rousseau sobre a Pedagogia se
deu indiretamente, através de pensadores e educadores que buscavam desenvolver e
colocar em prática suas idéias. Entre eles contam-se, na Alemanha, Basedow (1723-
1790), que influenciou as reformas educacionais na Prússia e criou, em 1774, uma
escola experimental em Dessau, o Philanthropinum, baseada nas idéias rousseauístas; e
ainda o conceituado filósofo Immanuel Kant (1724-1804), que ministrou aulas sobre
Pedagogia na Universidade de Königsberg. Na Suíça, o maior discípulo e continuador
de Rousseau foi Pestalozzi, mestre do jovem Rivail.
2.3 – Pestalozzi
Johann Heinrich Pestalozzi nasceu em Zurique, Suíça, em 12 de Janeiro
de 1742, de uma famíla calvinista. Seu pai, o cirurgião Johann Baptist Pestalozzi,
descendia de italianos emigrados para a Suíça no século XVI. Sua mãe, Susanne Hotz,
vinha de uma família de médicos. Com a morte do pai, Pestalozzi, então com cinco
anos, e seus irmãos passam a ser criados, em meio a muitas dificuldades econômicas,
pela mãe e pela governanta Magd Barbara Schmid. Lorenzo Luzuriaga enfatiza esta
primeira influência, puramente maternal e feminina, na formação de Pestalozzi,
argumentando que ela “explica certos traços de caráter” daquele educador, assim como
alguns aspectos de sua pedagogia. Dora Incontri concorda com Luzuriaga, ao admitir
que tal circunstância “tenha desenvolvido um componente feminino em sua psicologia”.
De fato, mais tarde, ao elaborar sua teoria educacional, Pestalozzi destacará o amor
maternal e cristão como um de seus mais importantes fundamentos pedagógicos, senão
o principal. Segundo este pedagogista suíço, toda a eficácia de uma relação educador-
educando repousa na possibilidade de um sentimento filial que os una. Assim, ele
desejava transferir para a escola as relações familiares205.
Entre 1763 e 1765, Pestalozzi estuda Lingüística e Filosofia no
Collegium Carolinum, em Zurique. Nesta mesma época, toma conhecimento das obras
de seu compatriota Rousseau, o Contrato Social e o Emílio, que nele produzem uma
forte impressão. (Mais tarde, batizará seu único filho com o nome Hans Jacob, tradução
alemã de Jean-Jacques, uma homenagem a Rousseau.) Une-se então a um grupo de
patriotas radicais, a “Sociedade Helvética”, que critica a situação política e social do
205 INCONTRI, Dora. Op. cit., pp. 91-93; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 173.
país, reivindicando reformas baseadas nos preceitos iluministas e rousseauístas.
Pretendiam implantar uma nova Constituição para a Suíça, mais democrática, e a
educação universal para todos os cidadãos206.
O tipo de educação que Pestalozzi e seus companheiros então
reivindicavam para o suíços era inspirada no Emílio de Rousseau: científica, sem caráter
confessional, baseada nos princípios de fraternidade humana, patriotismo cívico e
tolerância religiosa. O jornal criado pela Sociedade, em 1765, divulgou tantas críticas
abertas às autoridades que Pestalozzi foi preso e condenado a pagar uma multa.
Entretanto, seu entusiasmo pela revolução social não diminuiu; décadas mais tarde,
saudou e apoiou publicamente a Revolução Francesa; ganhou em 1792 o título de
cidadão honorário da França, e ofereceu seu trabalho pedagógico ao Governo
Revolucionário Suíço, implantado em 1798 com apoio francês207.
A par destas influências seculares, de caráter filosófico e político,
Pestalozzi é influenciado também, nessa época, por um movimento de natureza
religiosa: trata-se do pietismo. Definível mais como uma corrente teológica do que
como uma igreja ou seita, o pietismo nasceu no século XVII, na Alemanha. Fundado
pelo teólogo Philipp Jacob Spener (1635-1705) e aplicado na pedagogia por Hermann
Francke208, o pietismo, em linhas gerais, pretendia resgatar a Reforma da “aridez”
intelectual a que ficara reduzida, devido a intermináveis disputas teológicas. Fazendo
apelo a um retorno ao cristianismo puro, o pietismo conclama a uma fé simples, longe
das complicações teológicas, preocupada apenas com a prática da moral cristã, traduzida
em fraternidade e amor ao próximo. Os pietistas também eram defensores da tolerância
religiosa e colocavam em segundo plano a filiação a igrejas institucionalizadas.
Preconizavam ainda a separação entre Igreja e Estado. Em sentido mais amplo, pode-se
caracterizar como pietistas quaisquer grupos cristãos cujo núcleo doutrinário seja a
prática individual da devoção e da moral de Jesus, em oposição às formas institucionais
das igrejas209. (É interessante observar que, de acordo com esta definição, o próprio
Espiritismo pode ser classificado como um movimento pietista.)
206 GOULART, Iris Barbosa. Op. cit., p. 139; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 174. 207 GOULART, Iris Barbosa. Op. cit., p. 139; INCONTRI, Dora. Op. cit., pp. 78-83. 208 Francke, August Hermann (1663-1727) - Teólogo, místico e educador alemão, responsável pela aplicaçãos dos princípios pietistas à pedagogia. Em 1695 fundou em Halle uma escola para crianças pobres, que depois passou a admitir filhos de burgueses, de nobres e, por fim, órfãos, constituindo com o tempo um conjunto de instituições educacionais relevantes, pois delas surgiram novos tipos de escolas, de grande influência na educação alemã e européia. São eles: 1) a escola primária popular na língua alemã;
Comenius é considerado um dos precursores desse movimento religioso,
pois suas ideias estão bem de acordo com o pietismo. As idéias pietistas exerceram
grande influência em toda a filosofia alemã e suíça até o século XIX. Os estudos de
teologia, nos quais Pestalozzi iniciou sua carreira na Suíça, traziam a marca dessa
corrente. Dora Incontri observa que o próprio Rousseau parece ter recebido, igualmente,
uma influência pietista em sua formação protestante, o que explicaria certos aspectos da
“religião natural” por ele preconizada no Emílio210.
Em 1774, Pestalozzi dá início a sua primeira experiência pedagógica, o
Instituto de Neuhof, uma fazenda convertida em estabelecimento para educação de
meninos pobres. Dentro da perspectiva que lhe orientaria a vida de educador, sua
intenção era formar um grande lar, onde as crianças desvalidas pudessem ter não apenas
instrução, mas também educação moral e profissionalizante. Aliando, assim, formação
geral e profissional — no que Maria Lúcia de Arruda Aranha definiu como uma
“avançada concepção” para a época — ensinava-se no instituto a ler, escrever, calcular,
trabalhar na fiação, tecelagem e agricultura e, finalmente, a orar. A experiência durou
pouco mais de cinco anos (1774-1780), pois o jovem educador não conseguiu mantê-la
financeiramente211.
2) a escola latina ou ginásio, com ensino clássico; 3) o Pädagogium ou escola secundária científica, de onde surgiu o tipo de colégio secundário realista; 4) o Seminário de professores ou escola normal, o primeiro desse tipo nos países de língua alemã. Nas escolas primárias, o objetivo fundamental era o religioso, mas, ao contrário das católica latinas que acentuavam a parte literária, dava-se maior importância à formação realista ou científica, colocando os alunos no maior contato possível com a natureza e com atividades manuais. Nas instituições de educação secundária, em compensação, acentuou-se o estudo do latim, tanto no uso diário como na leitura dos clássicos. Dupla é a importância de Francke e do movimento pietista em geral na educação: por um lado, pela série de instituições educacionais dele surgidas e por outro, pela influência exercida no rei da Prússia, Frederico Guilherme I, e em seu projeto de instrução pública. (apud LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 130-131) 209 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira Thomsom Learning, 2001, pp. 90-98. 210 INCONTRI, Dora. Op. cit., p. 37-38. 211 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 143; INCONTRI, Dora. Op. cit., pp. 30-32; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 174.
A essa primeira experiência educativa, seguiu-se um período de intensa
atividade literária, teórica e política. Alcançou grande sucesso com a novela popular
Leonardo e Gertrudes (em quatro volumes, publicados entre 1781 e1787), na qual
expunha, por intermédio de uma história de ficção, suas idéias de reforma social e
educacional. Em 1783 publica Legislação e infanticídio (Über Gesetzgebung und
Kindermord), considerada a primeira obra de sociologia juvenil já publicada no mundo;
e ainda outros livros212.
Pestalozzi participou ativamente das agitações políticas do período de
1794-1798, nas quais a população de Zurique e de outros cantões suíços reivindicava
direitos assegurados historicamente e que não estavam sendo atendidos pela burguesia
local. Em apoio aos revoltosos, a França interveio militarmente na Suíça, deflagrando,
em abril de 1798, a Revolução Helvética. Pestalozzi colaborou com o novo regime,
sendo primeiro encarregado da direção da Folha Popular Helvética (Helvetisches
Volksblat), órgão oficial do governo. Em seguida, assumiu, de 7 de dezembro de 1798 a
8 de junho de1799, a direção do Instituto de Stans, asilo onde foram recolhidas oitenta
criança órfãs ou refugiadas da guerra civil. Ali, deparou-se com a degradante condição
de crianças que eram exploradas pelos próprios pais (nem todas eram órfãs) para
mendigar e esmolar em seu favor. Enfrentou ainda a hostilidade da população local,
majoritariamente católica, que não aceitava que seus filhos fossem educados por um
professor protestante e que, ainda por cima, fôra enviado por uma administração laica
contra a qual eles haviam recentemente feito uma rebelião armada. Ao fim dessa nova e
dificílima experiência pedagógica, Pestalozzi quedou fisicamente esgotado pelo
trabalho exaustivo, que realizara quase sozinho, com ajuda apenas de uma
governanta213.
Após um período de repouso, Pestalozzi retomou suas atividades
educacionais fundando uma nova instituição em Burgdorf (Berthoud). O Instituto de
Burgdorf se mudou, em 1804, para Münchenbuchsee, e logo teve de fechar. Mas o
apogeu de sua carreira como educador foi atingido logo a seguir, no Instituto de
Iverdon, que ele instalou em 1805, num antigo castelo medieval cedido pela
administração local. A instituição teve, durante vinte anos, êxito extraordinário, sendo
visitada pelas mais destacadas personalidades dos campos pedagógico, filosófico,
212 INCONTRI, Dora. Op. cit., pp. 41-56. 213 Id., ibid.,pp. 83-88.
literário e político da Europa. Entre estas, cite-se aqui, apenas, por sua relevância, o
célebre pedagogo alemão Friedrich Fröbel (1782-1852), criador dos jardins de infância
(Kindergarten), e que permaneceu por dois anos em Yverdon (1808-1810), travando
estreita amizade com Pestalozzi; o industrial e reformador socialista inglês Robert
Owem (1771-1858), que inspirou-se nos métodos pestalozzianos ao criar escolas para
os filhos dos operários; e, finalmente, o filósofo alemão Johann Fichte (1762-1814), que
se tornou um ardente propagandista da pedagogia pestalozziana, defendendo a
implantação de uma reforma educacional na Alemanha, baseada nas idéias do educador
suíço214.
O Instituto de Yverdon atendia a uma média de 150 alunos em regime de
internato (a maioria) e externato, metade dos quais estrangeiros, isto é, não suíços. Das
crianças internas cujos pais tinham recursos, cobrava-se uma pensão anual (cerca de
setecentos e vinte francos em 1812), que permitia fornecer bolsas a alunos mais
carentes. O instituto abrigou ainda, entre 1809 e 1813, os chamados “alunos-mestres”,
jovens aspirantes à carreira do magistério que eram enviados pelos governos de países
próximos a fim de fazer o curso normal e estagiar em Yverdon, retornando depois a
seus países para implantar o método pestalozziano. Esses estágiarios podiam chegar a
quarenta ou mais, a cada ano215.
O curso completo de instrução de Yverdon não tinha duração fixa,
estendendo-se desde a idade de nove ou dez anos, ou mesmo desde os sete, até os
quinze ou dezesseis anos. À instrução fundamental e média, compreendida naquele
período, seguia-se, para aqueles que o desejassem, como foi o caso de Rivail, um
terceiro e último grau de educação, o normal, destinado à formação de professores. As
disciplinas ministradas no ensino fundamental incluíam leitura, escrita, cálculo,
desenho, canto e ginástica, além da instrução moral e religiosa — Pestalozzi respeitava
a filiação confessional dos alunos, providenciando catequistas católicos, calvinistas ou
luteranos para ministrarem o ensino religioso apropriado a cada grupo216.
O ensino médio em Yverdon era enciclopédico, com ênfase nas ciências,
mas sem descurar das humanidades: noções gerais, porém exatas, de mineralogia,
botânica, zoologia, anatomia comparada, fisiologia, física experimental e química;
214 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Allan Kardec: meticulosa pesquisa biobibliográfica. 4. ed., Rio de Janeiro: FEB, 1990, v. I., pp. 32-35, 131-132; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., pp. 174-175, 200. 215 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco.Op. cit., pp. 36, 44.
estudo de línguas mortas (grego e latim); o ensino de línguas vivas: italiano, inglês,
francês e alemão, sobretudo destas duas últimas; matemática, incluindo aí aritmética,
álgebra, geometria e trigonometria; mecânica e noções de astronomia. Ensinava-se,
também, geografia, história, música (incluindo canto) e desenho217.
Visando a uma formação integral, Pestalozzi procurava proporcionar
também uma variedade de atividades físicas a seus alunos: natação no lago de
Neuchâtel; montanhismo; patinação sobre o lago, no inverno; excursões às florestas
próximas, a fim de se realizarem estudos práticos e coleta de plantas; representações
teatrais, geralmente baseadas em episódios da história suíça; ensino facultativo de dança
e esgrima; jogos e diversões várias218.
Os estudantes desfrutavam de grande liberdade: as portas do castelo
permaneciam abertas o dia todo, e sem porteiros. Podia-se entrar e sair a qualquer hora,
como em toda casa de uma família simples, e as crianças quase nunca abusavam disso.
Eles tinham, em geral, dez horas de aula por dia, das seis da manhã às oito da noite,
mas cada lição só durava uma hora e era seguida de um pequeno intervalo, durante o
qual ordinariamente se trocava de sala. Por outro lado, algumas dessas lições consistiam
em atividades físicas ou trabalhos manuais, como cartonagem ou jardinagem. A última
hora da jornada escolar, das sete às oito da noite, era dedicada à atividade livre, e as
crianças e adolescentes podiam então, a seu bel-prazer, ocupar-se de jogos, de escrever
para os pais ou por em dia seus deveres219.
O ensino em Yverdon foi definido por Zêus Wantuil e Francisco Thiesen
como sendo essencialmente heurístico, ou seja, o aluno era conduzido a descobrir, por
si mesmo, tanto quanto possível por seu esforço pessoal, as coisas que estavam ao
alcance de sua inteligência, em vez das matérias lhe serem ministradas dogmaticamente
pelo método dito “catequético”. O professor limitava-se a seguir e secundar o aluno em
seu autodesenvolvimento, sem forçar-lhe a natureza própria220.
216 Id., ibid., pp. 41-42, 62. 217 Ibid.,p. 41. 218 Ibid.,p. 39. 219 Ibid.,p. 37. 220 Ibid.,pp. 41, 47.
No que se refere aos fundamentos teóricos que norteavam sua prática
educacional, Pestalozzi partia do princípio de que a criança tem potencialidades inatas,
que serão desenvolvidas, com a ajuda dos pais e dos professores, até a maturidade, tal
como a semente que se transforma em árvore, e que se desenvolve melhor sob os
cuidados do jardineiro — uma imagem também utilizada por Comenius221 e por
Rousseau222 e que inspirou Fröebel a criar os jardins de infância. Semelhante a um
jardineiro, o professor não pode forçar o aluno, mas ministrar a instrução de acordo com
o estágio de desenvolvimento da criança ou do adolescente. Trata-se, enfim, de um
método baseado, como o de Rousseau, num princípio simples: acompanhar a
natureza223.
Para Pestalozzi, a educação verdadeira e natural conduz à perfeição, à
plenitude das capacidades humanas. Essas capacidades revelam-se na tríplice atividade
de “espírito, coração e mão”, isto é, a vida intelectual, a vida moral e a vida material,
prática ou técnica, as quais devem ser cultivadas integral e harmonicamente e não de
modo unilateral e parcial. Nesse processo integral, a educação há de seguir o mesmo
caminho seguido pela humanidade: o homem desenvolve-se, como um ser instintivo ou
animal, depois como um ser social e, finalmente, como um ser moral (espiritual): é a
teoria dos três estados.
Em sua obra Minhas indagações sobre a marcha da natureza no
desenvolvimento da espécie humana (Meine Nachforschungen über den Gang der Natur
in der Entwicklung des Menschengeschts), de 1797, Pestalozzi expõe de forma mais
ordenada sua visão do desenvolvimento humano coletivo e individual, na forma da
teoria dos três estados supramencionada. Segundo Dora Incontri, esse desenvolvimento
é encarado pelo pedagogo suíço numa perspectiva nitidamente dialética, obedecendo a
um esquema similar ao da dialética hegeliana224, pelo qual uma determinada situação ou
estado (a tese), defronta-se com sua negação (antítese), contradição finalmente superada
pela síntese, que constitui a unidade e ao mesmo tempo o ato de tornar verdadeiras uma
e outra. Dessa forma:
221 GADOTTI, Moacir. Op. cit., pp. 82-84. 222 CERIZARA, Beatriz. Op. cit., p. 39. Rousseau comparava o ser humano a uma planta que deve ser cultivada pela educação. 223 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 143. 224 Hegeliana, hegeliano - Relativo à Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo alemão considerado o expoente máximo da escola idealista.
1) O ser passa primeiro pelo estado natural, definido como um estado
pré-social que se caracteriza por um “grau máximo de inocência animal” e pelo
predomínio dos instintos; o próprio atrito entre os instintos e o mundo provoca de
imediato, porém, a reação egoísta do homem, situação que conduz, à fase seguinte:
2) O estado social, nascido como conseqüência imediata do choque entre
os egoísmos individuais, o qual leva os homens a desejar uma ordem (obtida pelo que
Rousseau denominou “contrato social”) que, embora limitando a livre manifestação dos
instintos, garanta a sua fruição tranqüila. Cria-se aí, entretanto, um conflito, pois as
instituições sociais apenas limitam, mas não transformam; reprimem, mas não sublimam
suficientemente os instintos. E se é apenas em nome da própria satisfação animal que o
homem renuncia à livre expansão da sua animalidade, então esvazia-se aí qualquer
tentativa de sacralização da sociedade225: o estado social é frágil, pois o homem social é
um ser permanentemente em conflito, dividido entre a animalidade e a lei. Este homem,
dividido entre animalidade e sociedade, vai encontra sua síntese no:
3) Estado moral, conquistado a partir de um movimento interno do
indivíduo, pois apenas quando se torna consciente de sua irracionalidade subjacente e
da impotência dos meios externos para lhe dar felicidade é que o homem pode se lançar
à plena autonomia. Mas essa autonomia só pode ser garantida por uma divindade
essencial (imanente) e deve se projetar numa transcedência — não se deve esquecer que
Pestalozzi é também um pensador religioso. A essência divina no homem não é um
produto final, mas germe, potência de moralidade, que deve se desenvolver nos atritos
do homem consigo mesmo e com a sociedade, elevando-o acima dos próprios instintos,
sem negá-los, e acima da própria lei social, sem necessidade de violentá-la226.
225 Nesse ponto, Pestalozzi se distancia, portanto, dos filósofos idealistas alemães, com os quais ele tinha pontos em comum. Para ele, Estado, Igreja, instituições em geral e mesmo valores sociais são criações do egoísmo humano e não manifestações verdadeiramente morais. 226 INCONTRI, Dora. Op. cit., pp. 61-67.
A essas três fases ou estados corresponderiam, na vida humana, outros
tantos graus de desenvolvimento social: o ser humano se integra, primeiramente, a uma
família, depois a um Estado e, finalmente, à humanidade. Cada estágio exige uma
educação peculiar: primeiro, a educação familiar, seguida da educação escolar e, depois,
pela educação moral (que o educador suíço identifica com a educação religiosa, de
preferência não-confessional). Pestalozzi buscou integrar em suas instituições de
ensino, tanto quanto possível, estas três formas de educação227.
227 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 176.
Segundo Dora Incontri, a noção de dialética que orientou essa visão do
desenvolvimento humano remonta a Fichte, de quem Pestalozzi era amigo e que
também inspirou Hegel. Filosoficamente falando, Pestalozzi se coloca, portanto, como
uma ponte entre o iluminismo francês, cujos princípios defendeu no campo político, e o
idealismo alemão. É preciso enfatizar, contudo, que havia um ponto de divergência
entre o idealismo pestalozziano e o de Fichte e Hegel, pois enquanto estes dois últimos
insistiam no caráter absoluto do “ser” — perdendo de vista o sujeito individual, que
acabava por se dissolver, em sua teoria, num coletivismo totalitário —, Pestalozzi
jamais perdia de vista o indivíduo228.
A divergência entre Pestalozzi e os idealistas alemães manifesta-se ainda
no campo mais estritamente pedagógico. Fichte, assim como Hegel, distorceu o
conceito pestalozziano de “educação popular”, transformando-a numa “educação
nacional”. Na Alemanha, essa interpretação acabou levando, já no século XIX, a uma
escola excessivamente autoritária e disciplinar, cujo fim último era formação, para o
Estado, de cidadãos, trabalhadores e soldados obedientes e fiéis229. E era justamente
isso o que Pestalozzi não queria, pois ele acreditava sincera e seriamente numa
“humanidade”, sem distinção de nacionalidades, religiões ou classes. Ele não era um
nacionalista.
Em Yverdon, divergências não só de caráter pedagógico mas,
principalmente, religiosas, levaram ao fechamento do instituto, em 1825. Pestalozzi foi
muito criticado pela municipalidade de Yverdon, assim como por alguns pais, por
abrigar no mesmo instituto alunos de classes sociais diferentes, meninos e meninas.
Além disso, quase todos os professores protestantes, principalmente os de origem
alemã, abandoraram a instituição devido a divergências teológicas com o educador
suíço230.
Pestalozzi escandalizava os protestantes da época: tinha pouco apreço
pelo estudo formal do catecismo e pelas instruções verbais no desenvolvimento
religioso das crianças (embora o respeitasse), preferindo, pessoalmente, praticar a moral
ativa e intuitiva, e não a moral das cartilhas. O insigne educador mostrava-se, ainda por
228 INCONTRI, Dora. Op. cit., p. 61-62. 229 É importante observar que os governos socialistas, inspirados nas idéias de Karl Marx (1818-1883), seguiram o mesmíssimo caminho, uma vez que herdaram de Hegel (através de Marx) a ênfase no coletivismo, no estatismo. 230 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco.Op. cit., pp. 54-59, 66-74.
cima, completamente indiferente aos dogmas do cristianismo tradicional, tais como o do
pecado original, da graça e da redenção. Afirmava que o “mistério da Trindade” não
estava na Bíblia. Contentava-se com uma religião natural à moda de Rousseau, com um
cristianismo racionalista. Foi muito atacado por causa disso e acusaram-no de não ser
verdadeiramente cristão. Desfalcado de seus colaboradores de origem protestante, que
eram maioria, Pestalozzi teve de encerrar suas atividades pedagógicas. Retirou-se, em
março de 1825 para sua propriedade rural em Neuhof, falecendo em 1827, em Brugg,
para onde o haviam transferido por motivos de saúde231.
Resumindo, estas seriam as principais idéias de Pestalozzi, Rousseau e
Comenius, que inspiraram o professor Rivail na elaboração de sua teoria pedagógica:
• A educação deve levar em conta não só a natureza física, mas também a espiritual do
ser humano.
• A educação é, essencialmente, um desenvolvimento interno, formação espontânea,
“natural”, conquanto necessitada de orientação.
• A educação deve ter caráter “social”, no sentido de que deve estimular a convivência
fraterna entre os seres humanos e se contrapor ao individualismo.
•Valorização do estudo das ciências.
• Valorização da educação profissional, subordinada à educação geral.
• Valorização da educação religiosa íntima, não-confessional.
231 Id., ibid., pp. 68-73. Ainda segundo Wantuil e Thiesen, a desinteligência religiosa entre Pestalozzi e os ex-professores evangélicos do Instituto teria marcado permanentemente a lembrança de Denizard Rivail que, tal como seu mestre suíço, passaria depois a sobrepor a razão e a moral do Cristo a qualquer afirmativa dogmática, quer de natureza científica ou teológica. Já aos quinze anos, Rivail concebia a idéia de uma reforma religiosa, com o propósito de unificação das crenças. Mais tarde, durante a idade madura, estas idéias foram por ele aplicadas na codificação da doutrina espírita. E, exatamente como aconteceu com Pestalozzi, Kardec e seus discípulos acabaram sendo acusados pelas hierarquias protestantes e católicas de não serem cristãos, por não professarem os dogmas dessas igrejas (Ibid.,p. 73-77).
CAPÍTULO III
RIVAIL E A EDUCAÇÃO
“A educação é a obra da minha vida, e todos os meus instantes são empregados em meditar sobre esta matéria; feliz quando encontro algum meio novo ou quando descubro novas verdades.”
RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Discurso pronunciado na Distribuição de prêmios, (1834).232
O jovem Hyppolite Léon Denizard Rivail teria iniciado sua carreira no
magistério em 1819, no Instituto de Yverdon, estagiando na condição de submestre,
auxiliando os professores, substituindo-os eventualmente e coordenando grupos de
estudantes na tarefa de reforço escolar. É digna de nota essa atuação de Rivail, ainda
adolescente, e a boa reputação e confiança que gozava junto ao mestre Pestalozzi233.
Não há registros precisos de quando ele teria concluído seus estudos, mas
é certo que em 1822 o professor Rivail já se encontrava instalado em Paris, onde logo se
pôs a exercer o magistério, aproveitando as horas vagas para traduzir obras inglesas e
alemãs e também para preparar o seu primeiro livro didático, o Cours pratique et
theórique d’aritmétique, d’après la méthode de Pestalozzi, avec des modifications
(Curso Prático e Teórico de Aritmética, segundo o método de Pestalozzi, com
modificações), publicado em dezembro de 1823, em dois volumes. Essa obra alcançou
significativo êxito, obtendo sucessivas reedições até 1876, quando seu autor já era
falecido234.
O interesse por esta obra não reside apenas no fato de ser a primeira na
qual o jovem professor procurava colocar em prática o método de Pestalozzi, mas,
também, pela circunstância de que no “Discurso Preliminar” do livro ele também
explicava ao público o método de ação do educador pestalozziano e os princípios que
lhe formam a base. Tais princípios são os seguintes:
232 Citado em: RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Textos pedagógicos. Organização, apresentação e notas de Dora Incontri. São Paulo: Comenius, 1998, p. 78. 233 DE MARIO, Marcus A. Kardec, o Professor. Revista Internacional de Espiritismo, Matão (SP), ano LXXVI, n.° 12, p. 557-558, jan. 2001; WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Allan Kardec: meticulosa pesquisa biobibliográfica. 4. ed., Rio de Janeiro: FEB, 1990, v. I, p. 63.
“1° — Cultivar o espírito natural de observação das crianças,
dirigindo-lhes a atenção para os objetos que as cercam.
2° — Cultivar a inteligência, observando um comportamento
que habilite o aluno a descobrir por si mesmo as regras.
3° — Proceder sempre do conhecido para o desconhecido, do
simples para o composto.
4° — Evitar toda atitude mecânica [mécanisme], levando o
aluno a conhecer o fim e a razão de tudo o que faz.
5° — Conduzi-lo a apalpar com os dedos e com os olhos todas
as verdades. Este princípio forma, de algum modo, a base
material deste curso de aritmética.
6° — Só confiar à memória aquilo que já tenha sido apreendido
pela inteligência.”235
É interessante observar que os princípios 1, 2 e 4 nos remetem à visão
“naturalista” de Comenius, Rousseau e Pestalozzi, segundo os quais a criança já traria
inatos, dentro de si, potencialidades que só precisariam ser “cultivadas” pelos
educadores — como sementes que tendem a crescer expontaneamente, mas que
necessitam dos cuidados do jardineiro para que possam dar bons frutos, uma imagem
que esses educadores usavam com muita freqüência236. Note-se ainda que o princípio
3°, o de que se deve partir do simples para o complexo, tem também uma longa história:
remonta a Descartes e aos pedagogistas protestantes do século XVII, como Ratke e o já
citado Comenius. O outro conselho contido no princípio 3, o de que se deve partir do
que é conhecido pelo estudante para que ele possa alcançar um novo conhecimento, tem
ainda um sabor de grande atualidade. O 5° princípio nos remete à “pedagogia sensorial”
empregada por Comenius em sua escola de Prerov e que foi também muito valorizada
por Rousseau. Pode-se repetir aqui, a respeito dos princípios pedagógicos adotados pelo
jovem Rivail, o diagnóstico de Dora Incontri, de que: “Estamos, pois, em plena tradição
da Pedagogia ocidental”237.
234 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., pp. 85-89, 101, 183. 235 Citado em: WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., p. 98. 236 Id., ibid.,p. 119. 237 INCONTRI, Dora. Apresentação. In: RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Textos pedagógicos. Organização, apresentação e notas de Dora Incontri. São Paulo: Comenius, 1998, p. 8.
Outro aspecto relevante da obra em questão é o fato dela ser
recomendada pelo autor não só aos profissionais da educação, mas também às mães de
família que desejassem dar aos seus filhos as primeiras noções de Aritmética. Esta
preocupação com o papel desempenhado pelos pais, particularmente pela mãe, na
educação da criança, é outra característica básica da corrente pedagógica na qual Rivail
se inseria. Conforme esclarecem Wantuil e Thiesen:
Na família, e sobretudo nas mães, é que Pestalozzi colocava o
verdadeiro centro da educação infantil, a pedra angular sobre a
qual queria repousar todo o edifício do seu sistema de educação
e instrução: “A mãe, em sua perfeição, é o verdadeiro modelo, a
imagem viva da educação. A perfeita educação, na essência de
sua natureza, em seu ideal mais completo, deve ser a imagem da
mãe de família.” São elas, as mães, as primeiras mestras de seus
filhos, e a quem também se pode encarregar da primeira
instrução, embora esta parte esteja mais afeta às escolas. Rivail
seguia, assim, as diretrizes do legislador da Escola Moderna,
que, por sua vez, se inspirara nas seguintes palavras Jean-
Jacques Rousseau, a genial figura pedagógica do século XVIII:
“A primeira educação é a que mais importa; e essa primeira
educação compete incontestavelmente às mulheres.”238
Mas essa valorização do papel da família não era, contudo, restrita
apenas aos pedagogos supracitados. Na verdade, eles estavam sancionando uma idéia
que várias gerações de moralistas religiosos, tanto protestantes e católicos, haviam
defendido durante todo o Antigo Regime. Autores como Philippe Ariès, Julia Varela e
Fernando Alvarez-Uria demonstraram que, desde o século XVI até o XVIII, foram as
classes sociais mais favorecidas, primeiramente a nobreza e, depois, mais ainda a
burguesia, que se preocuparam em estabelecer um modelo educacional para a infância
calcado em duas instituições sociais: a família nuclear (pai, mãe e filhos) e a escola. A
própria preocupação com a educação, segundo Ariès, é uma invenção moderna, uma
vez que a civilização medieval a desconhecia239.
238 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., p. 90-91. 239 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed., Rio de Janeiro: LTC, 1981, p. 276 et passim.
A ênfase dos moralistas e pedagogos modernos na necessidade da tutela
das crianças pela família e pela escola, e sua separação do mundo adulto através destas
duas instituições sociais, sob o pretexto de evitar que a pretensa “pureza infantil”
(conceito que é mais uma invenção moderna) seja conspurcada240, estão relacionados
com o processo de substituição da Igreja pela escola no papel de aparelho ideológico de
Estado dominante. Depara-se aqui, contudo, com mais um detalhe importante desse
processo: o de que a escola não participa sozinha dele, pois tem como coadjuvante outra
importante instituição social: a família. Para Althusser, a Escola “forma com a Família
um par, assim como outrora a Igreja o era”241.
Essa complementaridade do trabalho educativo da família, mais
particularmente o da mãe, com o da escola foi ressaltada por Denizard Rivail no Plano
proposto para a melhoria da Educação Pública:
Como a mãe é a primeira educadora de seus filhos, como é ela
que recebe os primeiros sinais de sua inteligência, que responde
aos seus primeiros pedidos, que satisfaz às suas primeiras
necessidades, a ela pertence a condução das primeiras
impressões morais. Orientando-as erroneamente, seja por uma
ternura mal entendida ou por ignorância, ela prepara
comumente as penas daqueles que ela encarrega em seguida de
corrigir seus erros, e que freqüentemente não podem conseguir
isso com a melhor vontade do mundo, ou porque não sejam
convenientemente secundados e se destrói de um lado o que
eles fazem do outro, ou porque os defeitos estejam por demais
enraizados.242
240 VARELA, Julia & ALVAREZ-URIA, Fernando. A maquinaria escolar. Teoria & Educação, Porto Alegre, n.° 6, p. 68-95, 1992, passim. 241 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 7. ed., Rio de Janeiro: Graal, 1998, p. 81. 242 RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Plano proposto para a melhoria da Educação Pública. In: Textos pedagógicos. Organização, apresentação e notas de Dora Incontri. São Paulo: Comenius, 1998, p. 23-24.
O Cours de 1823 chama ainda atenção pelos agradecimentos dedicados
ao professor André-Marie Ampère (1775-1836), da Universidade de Paris, ilustre físico
e matemático, a quem Rivail procurara para orientá-lo na elaboração daquela obra
didática. Cabe enfatizar aqui a importância de Ampère na instrução pública francesa da
época: ele ocupou o cargo de inspetor-geral da Universidade de 1808 a 1836, estando
afeto a este cargo tudo o que se relacionasse com o comportamento e aproveitamento de
alunos e professores nos estabelecimentos de ensino em geral, da cidade de Paris243. Isto
sugere que Denizard Rivail era favorável à colaboração das intituições universitárias no
desenvolvimento e melhoria da instrução fundamental e média. O que ele, Rivail, não
admitia e procurou explicitá-lo claramente em suas propostas de reforma educacional,
publicadas em 1828, 1831 e 1847, é que as universidades estatais exercessem um
controle autoritário, ditatorial mesmo, sobre o ensino. Será examinado agora, mais
detidamente, o primeiro desses projetos de Rivail, o Plano de 1828.
3.1 – O Plano proposto para a melhoria da Educação Pública
Em junho de 1828, assinado por “H.L.D. Rivail, discípulo de Pestalozzi”,
era publicado o Plan proposé pour l’amérlioration de l’éducation publique, o primeiro
trabalho em que o citado autor procurava contribuir, da maneira mais elucidativa, junto
ao Parlamento e ao público franceses, para que se obtivessem melhores resultados no
ensino público ministrado às crianças. Passagens deste documento já foram
anteriormente comentadas nesta monografia. Serão examinados, a seguir, alguns dos
principais pontos do texto.
3.1.1 – Conceito de educação
O professor Rivail procura, antes de mais nada, definir o que é a
educação e qual é o seu papel:
A educação é a arte de formar os homens; isto é, a arte de fazer
eclodir neles os germes da virtude e abafar os do vício; de
desenvolver sua inteligência e de lhes dar instrução própria às
suas necessidades; enfim de formar o corpo e de lhe dar força e
saúde. Numa palavra, a meta da educação consiste no
243 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., pp. 93-95.
desenvolvimento simultâneo das faculdades morais, físicas e
intelectuais. Eis o que todos repetem, mas o que não se
pratica.244
Pode-se dizer que toda a passagem supracitada é plenamente
pestaloziana. Já foi demonstrado como Pestalozzi insistia na formação integral do
homem e na necessidade de equilíbrio no desenvolvimento de suas faculdades. Para ele,
só pode ser considerado realmente educativo e formador do ser humano o que influi no
conjunto de suas potencialidades — “coração, espírito [mente] e mão”. O que não toca a
totalidade do ser, não o toca naturalmente e não é educativo na extensão da palavra, ou
seja, não serve para a formação humana245.
É a partir da perspectiva pestalozziana que Rivail distingue a educação,
prática voltada para o desenvolvimento integral do ser, da instrução, que se restringe ao
ensino de determinadas matérias. Como decorrência desta distinção, ele procura
também estabelecer uma separação entre o papel do professor e o do educador,
alegando: “há uma grande diferença entre um professor e um educador246; o primeiro se
limita a ensinar; é suficiente, para cumprir sua função, ser bem instruído e ter um bom
método; mas o segundo é encarregado do desenvolvimento inteiro do homem”247.
3.1.2 – Inatismo
Como educador, Denizard Rivail estava particularmente interessado na
questão das chamadas características inatas, predisposições que as crianças
manifestariam sem aparentemente que nenhum estímulo externo as tivesse suscitado.
Aceita a existência real de tais caracteres, atribuindo-os uma origem natural, quer por
decorrência de influência climáticas, quer por fatores biológicos que hoje
denominaríamos “genéticos”:
244 RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 15. 245 LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação e da pedagogia. 18. ed., São Paulo: Nacional, 1990, p. 176; INCONTRI, Dora. Nota 1, in: RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 16. 246 Educador: a pedagoga Dora Incontri, responsável pela tradução do Plano de Rivail, adverte numa nota que o referido autor usa respectivamente, nesta passagem, as palavras professeur e instituteur. Optou-se por traduzir a segunda por “educador”, mas dependendo do contexto pode também significar preceptor e professor de escola primária. Como em português existe a palavra mais abrangente que é educador, ela se ajusta melhor na comparação que Rivail estabelece (apud INCONTRI, Dora. Nota 9, in: RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p.31). 247 RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 30-31.
Sem dúvida, há disposições que são realmente inatas; aquelas
que se ligam ao temperamento; tais como a vivacidade, a
lentidão, a coléra, o sangue-frio a agitação ou a profundidade
das idéias. Essas disposições se prendem à constituição,
nascemos com um temperamento que nos leva à lentidão ou à
vivacidade, à reflexão ou à leviandade, como se nasce forte ou
fraco, bonito ou feio. Estas diversidades têm freqüentemente
origem no clima, que exerce sua influência sobre a mãe, antes
do nascimento da criança e, através disso, sobre as disposições
físicas e morais de toda uma nação. Essas diversas naturezas de
temperamento, que a educação pode no entanto modificar,
tornam a criança mais ou menos propícia a receber ou a
conservar esta ou aquela impressão estranha.248
A idéia de que as crianças ressentem as impressões da mãe, de tal forma
que estas influem sobre o caráter do nascituro, remonta aos filósofos gregos Platão
(427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) e era familiar aos filósofos, cientistas e
pedagogos dos séculos XVIII e XIX249. Somente três décadas mais tarde, depois de
várias gerações de estudantes terem passado por suas mãos, é que o professor Rivail
concluirá que a hereditariedade e o clima somente não explicam certas tendências inatas
no indivíduo. As perguntas que ele formulou posteriormente, já então como Kardec,
podem ser consideradas uma negação de suas afirmativas como Rivail: 1) Por que as
pessoas revelam aptidões tão diversas e independentes das idéias adquiridas pela
educação? 2) De onde vem aptidão excepcional de algumas crianças de pouca idade
para esta ou aquela ciência ou arte, enquanto outras permanecem medíocres por toda a
vida? 3) De onde vêm, para uns, as idéias inatas ou intuitivas, que não surgem em
outros? 4) De onde vêm, para certas crianças, os impulsos precoces de vícios ou
virtudes, os sentimentos inatos de dignidade ou baixeza que contrastam com o meio em
que nasceram e foram criadas? 5) Por que alguns homens, independentemente da
educação, são mais “adiantados” que outros?250
248 Id., ibid., p. 26. 249 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., p. 133. 250 KARDEC, Allan [RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard]. O Livro dos espíritos. 3. ed., São Paulo: FEESP, 1987, p. 128.
Sabe-se que Rivail adotou, a partir de 1857 — sob a identidade de Allan
Kardec —, a reencarnação como explicação para as questões supracitadas. Por outro
lado, cumpre enfatizar que, em 1828, ele não tinha qualquer idéia pré-concebida a esse
respeito. Em artigos publicados em 1858 e 1862 na Revista Espírita Kardec enfatizou
que a doutrina da reencarnação estava tão longe de seu pensamento que ele desconhecia
até mesmo os textos de Platão que discorriam sobre o assunto, e que ele só os estudou
mais tarde. Chega a afirmar que a doutrina dos espíritos acerca da reencarnação, obtida
por vias mediúnicas durante suas investigações sobre fenômenos paranormais, não só o
surpreendeu como o contrariou bastante, pois se opunham frontalmente a suas próprias
idéias e convicções251. As origens da visão inatista do jovem professor Rivail devem ser
buscadas somente, portanto, nas idéias filosóficas e científicas da época.
3.1.3 – Fim das punições físicas
Ainda seguindo a linha pestalozziana, Denizard Rivail opõe-se à
aplicação de punições físicas, comuns na época em que ele escrevia. As seguintes
palavras parecem ser dirigidas justamente aos educadores que ainda empregavam tais
meios corretivos:
O quê? Quereis fazer amar o trabalho e a virtude e é na ponta de
uma vara que vós os apresentais? Vós, que deveis captar o
apego e a confiança de vossos alunos, que deveis ser deles
segundos pais, é com o ar pedantesco e rebarbativo e armados
de palmatória e martinete que ides lhes dizer: Tende confiança
em mim, amo-vos como filhos; não temais confessar vossas
faltas, é para o vosso bem que quero corrigi-las? Vós que deveis
lhes inspirar nobres sentimentos, imprimis sobre sua jovem
fronte o ferrete reservado ao crime! E por que? Por ter feito mal
um tema ou uma versão. É assim que se quer inspirar às
crianças a bondade e a doçura; é quando se lhes dá o próprio
exemplo de paixão, cólera e maldade, que se quer fazê-las amar
o trabalho e a virtude!252
251 Apud WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., p. 133. 252 RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 20-21.
Dois aspectos importantes da pedagogia rivaliana, derivados sem dúvida
alguma da educação que o próprio Rivail recebeu em Yverdon, e que transparecem na
passagem supracitada, merecem destaque. Em primeiro lugar, o papel reservado ao
professor, de ser um “segundo pai” para o estudante, e que logo se reconhece ter origem
na proposta de Pestalozzi de fazer da escola um ambiente com características familiares.
(E, de fato, sabe-se que o próprio Pestalozzi era realmente chamado de “pai” pelos
alunos253.) O segundo aspecto é a insistência do professor Rivail na premissa de que é
objetivo do educador fazer com que o aluno ame o trabalho e a “virtude”. Isto faz
lembrar a ética protestante, particularmente a calvinista e a pietista, que valorizavam
ambas o trabalho produtivo e a conduta moral “virtuosa” (calcada, obviamente, nos
mandamentos bíblicos)254. A origem dessa valorização “protestante” do trabalho e da
“virtude”, da parte de Rivail255, pode também ser atribuída à educação recebida de
Pestalozzi, cujos valores calvinistas e pietistas sem dúvida alguma repercurtiam sobre
sua prática educativa, tanto quanto em seus escritos, por mais que ele tivesse evitado
dar-lhes um tom confessional.
3.1.4 – Valorização do estudo das ciências 253 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., p. 54. 254 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira Thomsom Learning, 2001., pp. 67-98 et passim. 255 Não se deve perder de vista, entretanto, que Rivail permaneceu católico apostólico romano, ainda que em caráter meramente formal, pelo menos até a codificação da doutrina espírita.
O investimento no estudo das ciências era uma característica da
educação ministrada por Pestalozzi em Yverdon. De acordo com o sociólogo alemão
Max Weber, essa valorização das disciplinas científicas seria uma característica própria
da educação protestante, enquanto o ensino dito “humanístico”, que se assenta mais
sobre matérias de caráter literário (aí incluídos o estudo de línguas antigas, como o
latim e o grego) e artístico era o mais valorizado pelos católicos256. Um fato que parece
confirmar esse padrão é a crítica que Pestalozzi teria sofrido por parte de um célebre
representante da educação católica em seu país. O padre franciscano suíço Grégoire
Girard (1765-1850), que também dirigia instituições pedagógicas e enfatizava o amor
como base da educação, criticava Pestalozzi pela ênfase que este dava ao estudo da
matemática e das ciências. Girard propunha uma educação voltada muito mais para as
línguas e humanidades257.
Seguindo as propostas de seu mestre Pestalozzi, Rivail propunha,
igualmente, que as crianças fossem iniciadas desde cedo, no ensino fundamental, ao
estudo da matemática e depois das ciências — embora sem descurar totalmente as
disciplinas ditas humanísticas —, argumentando que “gostaria de um plano de estudos
que conciliasse os interesses de todos; que tivesse por base as ciências verdadeiramente
fundamentais, e que oferecesse recursos reais para todas as posições da vida”258. E
explica a seguir quais disciplinas considera mais importantes e por quê seu estudo deve
se iniciar o mais cedo possível:
As ciências que abrem a via a todas as carreiras, são: a
matemática e todas as que dependem dela, como a física, a
química, a tecnologia, a mecânica; as línguas vivas, incluindo
evidentemente a língua materna, cujo estudo deveria começar
desde o momento em que se aprende a ler e a escrever. [...] A
matemática e a física fazem parte, é verdade, dos estudos
superiores; é seguramente um avanço que deve ser levado em
consideração; mas se observamos que são ciências que exigem
o máximo de tempo, conceberemos facilmente que não será em
dois ou três anos, fazendo-se delas um objeto bastante
acessório, que se poderá conhecê-las o bastante, mesmo para o
256 WEBER, Max. Op. cit., pp. 21-22 e 136, notas 8 e 9 257 INCONTRI, Dora. Nota 12, in: RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 37.
uso comum. Pode-se começar bem cedo com a aritmética e
conhecê-la perfeitamente aos doze anos. Aos dez anos, uma
criança pode também conceber os primeiros elementos da
geometria e adquirir algumas noções de física, de química e de
história natural; de modo que aos 18 anos, ela teria consagrado
quase 10 anos a essas ciências, e poderia conhecê-las
perfeitamente bem, sem ter negligenciado as outras, o que lhe
seria infinitamente mais aproveitável que ter passado o mesmo
tempo aprendendo apenas um pouco de grego e de latim.259
258 RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 52. 259 Id., ibid., p. 52-53.
No plano de estudos por ele proposto para as oito séries do ensino
fundamental, o estudo da matemática e das ciências seguiriam a seguinte progressão,
abstraindo-se aqui as demais matérias (observe-se que, naquela época, a contagem da
seriação escolar se dava regressivamente, isto é, de trás para frente):
1. Oitava série: elementos do cálculo.
2. Sétima série: continuação da aritmética.
3. Sexta série: continuação da aritmética; elementos de geometria; noções elementares
de física, química e história natural.
4. Quinta série: término do estudo da aritmética; continuação da geometria;
continuação das noções de física e demais ciências.
5. Quarta série: elementos de álgebra; continuação da geometria; curso regular de
física experimental e química; elementos de mecânica.
6. Terceira série: continuação da álgebra; fim da geometria; continuação dos cursos de
física e de química; continuação da mecânica.
7. Segunda série: continuação da álgebra; elementos de trigonometria e aplicação da
álgebra na geometria; física, química e mecânica aplicadas às artes.
8. Primeira série: primeira aplicação da matemática à física, à química e à
astronomia.260
Essa valorização das matérias científicas na pedagogia em verdade
remonta aos pedagogos realistas alemães do século XVII. Foi também defendida, a
seguir, pelos filósofos iluministas franceses do século XVIII, entre os quais Diderot e
Condorcet. Ela pode ser entendida como expressão da nova ordem burguesa. Para o
crescimento da indústria (e de seus lucros) a burguesia necessita de uma ciência que
investigue as forças da natureza para dominá-las, usando-as em seu benefício através
das novas tecnologias produzidas pela pesquisa científica. Daí o investimento em uma
educação que privilegie o estudo das matemáticas e das ciências, visando a formação de
uma mão-de-obra qualificada para lidar com as novas tecnologias e aperfeiçoá-las261.
260 Ibid., pp. 68-73. 261 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. 2. ed. rev. e atual., São Paulo: Moderna, 1996, p. 106-107.
3.1.5 – Valorização do estudo das línguas modernas
A maior ênfase no estudo das línguas vivas, em lugar das línguas antigas
(latim e grego) é outra característica do modelo educacional dos realistas do século
XVII, e que reaparece em Pestalozzi e Rivail. Ela corresponde à necessidade de facilitar
o intercâmbio comercial, cultural e científico em um mundo que, graças ao
entrelaçamento cada vez maior do mercado internacional — processo que se inicia com
a Revolução Comercial da Idade Moderna (séculos XV / XVI) e que chega ao clímax
com a globalização econômica da passagem do século XX para o XXI — põe em
evidência o problema da comunicação entre povos de diferentes idiomas. Rivail propõe
que se inicie o estudo das línguas, tanto as antigas quanto as vivas na quinta série (que
equivale à nossa quarta), sugerindo ainda que se escolha, entre os idiomas modernos,
pelo inglês, alemão ou espanhol, ou mesmo por mais de um deles, justificando-se da
seguinte forma:
Essas três línguas são seguramente as mais necessárias, com
que, incluindo o francês, pode-se, por assim dizer, fazer a volta
ao mundo. A língua espanhola, de que não se sente ainda a
necessidade, será em alguns anos tão indispensável quanto o
inglês, seja por causa do grande número de países que a falam,
seja por das relações com o Novo Mundo, que se tornam cada
vez mais freqüentes.262
Pode-se dizer que o parágrafo supracitado tem grande atualidade e que,
com a globalização, as ponderações do professor Rivail só fizeram tornar-se ainda mais
verdadeiras do que já eram no século XIX.
3.1.6 – Contra as classes demasiadamente grandes
O Plano de Rivail revela ainda que os professores franceses no início do
século XIX já se queixavam de um problema que até hoje considerado obstáculo para a
excelência do ensino: o grande número de alunos agrupados em uma mesma turma:
262 RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 70, nota do autor.
Por outro lado, uma coisa que impede essencialmente o sucesso
nos estudos da generalidade dos jovens, é, além do vício do
método, o grande número dos que participam de uma mesma
classe, o que coloca o professor na impossibilidade absoluta de
prestar assistência individual; também está bem reconhecido e
afirmado, pelos próprios professores, que sobre cem, há quando
muito dez, que têm sucesso e que se olha por esses, em
detrimento dos outros; o resto vegeta e se desencoraja.263
Por esta passagem pode se concluir que o autor leva em consideração as
diferenças individuais de cada aluno, ou seja, ele sabe que cada estudante tem um ritmo
próprio de aprendizado. Classes muito grandes — como as dos colégios estatais,
principal alvo da crítica de Rivail no trecho supracitado — dificultam, senão mesmo
impedem, o acompanhamento individualizado de cada aluno e tendem a prejudicar,
principalmente, os mais tímidos e menos ágeis: “nesse número, há muitos inteligentes;
mas tendo o pensamento menos rápido ou menos memória, ficam atrás daqueles que
têm muitas vezes menos boa vontade, porém mais facilidade”264.
3.1.7 – Criação de uma escola de pedagogia
Partindo da premissa de que a educação “é uma ciência particular que
dever ser estudada”, Denizard Rivail preconiza a criação de uma escola teórica e prática
de pedagogia, “como há escolas de direito e medicina”265. Esta nova escola de
pedagogia deve ter um objetivo e alcance maiores que os da antiga Escola Normal, uma
vez que não se pretende formar nela simples professores: “Ela teria por meta formar
educadores, não somente capazes de ensinar, mais ao mesmo tempo de desenvolver o
homem em todos os sentidos.”266 O programa do curso, que deveria durar três anos — o
primeiro consagrado apenas à teoria, o segundo à prática e à teoria reunidas, e o terceiro
à prática apenas — deveria centrar-se no estudo dos seguintes temas:
1. “Fisiologia moral” do homem desde seu nascimento;
2. Influência do físico sobre o moral e vice-versa;
263 Id., ibid.,p. 75. 264 Ibid. 265 Ibid., p. 43. 266 Ibid., p. 46.
3. Estudo de “todos os tipos de caracteres, como a medicina estuda os diversos
temperamentos”;
4. Estudo de diferentes naturezas de impressões e dos efeitos que elas podem ter
“segundo o caráter ou o temperamento moral”;
5. Estudo aprofundado de todas as qualidades morais, boas ou más, de todos os defeitos
e de todos os vícios e de suas possíveis causas;
6. Estudo dos meios próprios a prevenir ou reprimir cada vício e sua aplicação aos
diferentes caracteres;
7. Estudo “do espírito humano, de sua marcha progressiva, dos meios apropriados para
dar idéias justas”; e os meios mais adequados para se colocar ao alcance dos diversos
graus de inteligência;
8. Estudo e exame crítico de diversos métodos de ensino e sua aplicação às diferentes
ciências;
9. Estudo da parte higiênica que se aplica à educação e dos “meios adequados para se
desenvolver o corpo e fortificar a saúde, sem perigo”;
10.Administração escolar;
11.Estudo aprofundado de “todas as obras que foram escritas sobre educação” ou que
tenham relação com o assunto.
12.Estudo das relações entre educação e religião.267
Por fim, Rivail recomenda a criação de uma escola de aplicação, onde os
estudantes da escola de pedagogia pudessem estagiar e colocar em prática o que
aprenderam na teoria268.
267 Ibid., p. 43-44. 268 Ibid., pp. 45, 47-48.
Deve-se observar que algumas das disciplinas e assuntos listados no
resumo supra do programa do curso por ele sugerido podem parecer hoje estranhos ou
fora de contexto. Não se faz a menor idéia do que seja a “fisiologia moral” a que se
refere Rivail, por exemplo. Termos como “caráter” ou “temperamento” não seriam
considerados muito precisos cientificamente, nos dias atuais. Também é incomum,
atualmente, que se estude num curso de pedagogia as relações entre educação e religião.
A própria insistência em temas relacionados à moral pareceria, hoje, despropositada —
se bem que Piaget tenha pesquisado o desenvolvimento do julgamento moral da
criança269; mas acontece que, no caso de Rival, é necessário não perder de vista que ele
se refere à apreensão, pelo estudante, de valores morais que ele considera absolutos, e é
isto que poderia chocar um pedagogo dos dias atuais. É necessário levar em conta,
ainda, que o termo “moral” não tinha, para os europeus do século XIX, o significado
pejorativo que tem hoje. Falava-se então de “moral” como agora se fala de “ética”, e
ainda hoje os espíritas consideram os dois termos sinônimos.270 Outra circunstância
histórica a ser levada em conta é o fato de que Rivail trabalhou e escreveu quando a
Psicologia da Educação praticamente não existia como disciplina. O estudo sistemático
da criança e a aplicação desse estudo à educação só principiram no fim do século XIX e
início do XX. Foi somente em 1903 que o norte-americano E. L. Thordinke nomeou,
pela primeira vez, a área de estudos hoje conhecida como “Psicologia da Educação” e
lhe deu um corpo doutrinário271. A pedagogia de Rivail, como a de Pestalozzi, está na
verdade assentada não em uma Psicologia educacional, que sequer existe em sua época,
mas sobre uma Filosofia da Educação, que prioriza o questionamento básico do para
quê e do como educar272.
Também é necessário recordar que Denizard Rivail não vivia em uma
sociedade tão completamente secularizada como o são as sociedades capitalistas do fim
do século XX e início do XXI; e que, em sua época, malgrado todo o esforço dos
iluministas e dos revolucionários de 1789, a religião ainda não havia perdido
completamente seu papel de “Aparelho Ideológico de Estado dominante”, o que
obrigava Rivail a considerar seu papel na educação.
269 GOULART, Iris Barbosa. Psicologia da educação. 7. ed., Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 164-166. 270 INCONTRI, Dora. A Pedagogia Espírita. Revista Cristã de Espiritismo, São Paulo, ano 1, n.° 3, p. 25-31, set./out. 1999. 271 GOULART, Iris Barbosa. Op. cit., p. 10-11; LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 245. 272 INCONTRI, Dora. Nota 16, in: RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 40.
3.1.8 – Educação feminina
Fiel às idéias de Fénelon, Rivail insiste na necessidade de não se descurar
da educação das meninas e das moças. Mas o tipo de educação que ele postula para o
sexo feminino, entretanto, não é o mesmo para o masculino, pois ele parte do princípio
de que, sendo os sexos diferentes biologicamente, seus papeis na sociedade também
devem ser diversos. Como consequência, a educação de meninos e meninas não pode
ser totalmente igual:
Se é importante orientar bem a educação dos homens, não o é
menos cuidar da educação das mulheres. Sua influência na
sociedade, a primeira educação de que são encarregadas, devem
merecer, neste aspecto, toda a atenção de um governo, que se
ocupe realmente de assegurar a felicidade de uma nação. Sob o
ponto de vista da instrução, a educação das mulheres é melhor
que a dos homens. É raro se encontrar uma jovem de doze ou
treze anos, bem educada, que não saiba bem sua língua, e às
vezes uma língua estrangeira, a geografia, a história e o
cálculo273. Entretanto, parece que se esquece que elas devem ser
antes de tudo esposas, mães e dirigentes do lar, e pensa-se
apenas em lhes dar talentos, que podem fazê-las brilhar no
mundo. Além dos conhecimentos que, em geral, fazem parte de
sua instrução, por que são negligenciados aqueles que tem
relação direta com as funções a que a natureza lhes destinou? A
economia doméstica prática e teórica, a administração de uma
casa, o conhecimento perfeito dos deveres de mãe e de esposa e
a arte de educar as crianças são os elementos mais importantes
da educação das mulheres, e são esses que são, em toda parte,
negligenciados. As mulheres são educadoras natas. Elas
sozinhas são encarregadas da primeira educação, orientam as
primeiras impressões, que todos os homens recebem, e são elas
que presidem de alguma forma o seu destino. Como podem se
desimcubir de um dever tão importante se não têm a instrução
necessária? Eis por que considero o estudo da pedagogia tão
importante para elas como para os educadores.274
273 O professor Rivail parece estar se referindo aqui ao tipo de instrução recebido pelas jovens da burguesia e das classes médias, no século XIX, geralmente ministrado em casa por preceptores ou professores particulares. 274 RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 64-65.
A rigor, o tipo de educação que Rivail sugere para as moças não difere,
basicamente, daquela que Fénelon lhes oferecia no século XVII: prepará-las para
desempenharem, da melhor maneira possível, o papel doméstico de esposa e mãe. Nesse
aspecto, portanto, Denizard não vai muito além do horizonte cultural de sua época, que
não reservava à mulher outro papel senão este.
3.1.9 – Sobre a interferência estatal no ensino
Um decreto de 1811 submetia as escolas particulares, laicas ou
religiosas, à obrigação de enviar seus alunos, a partir da quarta classe (classe de
humanidades), aos colégios reais, para que eles estudassem determinadas matérias.
Tratava-se, em verdade, de uma forma indireta de controle do ensino particular pela
Universidade de Paris, uma vez que os liceus ou colégios reais estavam sob seu controle
direto275. Rivail protesta:
Acrescentarei uma última observação, cuja importância se sente
diariamente, e que muitas pessoas fizeram antes de mim; é
relativa à obrigação em que se vêem todos os diretores de
escola de levar seus alunos para os cursos dos colégios. Esta
obrigação é muito prejudicial ao progresso da forma de
instrução; pois os educadores são forçados, a contragosto, a
seguir a rotina. Ela está ainda em oposição direta à promessa
feita de se dar inteira liberdade e igual proteção a todas as
formas de ensino; esta promessa se torna por esse fator
totalmente ilusória; é nisso que, sem dúvida, não se refletiu.
Seria necessário que o envio ao colégio fosse facultativo, o que
permitiria a cada um colocar seus objetivos em execução.276
275 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., p. 141. 276 RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 74.
Um documento do Conselho Real, datado de 1820, mostra bem no que
consistia o ensino ministrado nos colégios reais, que tinha um conteúdo claramente
ideológico: as bases da educação haveriam de ser a religião (católica apostólica
romana), a monarquia, a legitimidade da dinastia reinante e a carta constitucional. As
aulas só poderiam ser ministradas em latim e o ensino de ciências deveria ser separado
do de letras277. A contestação dessa forma de controle do ensino particular pelo Estado
tornar-se-ia o grande cavalo-de-batalha dos educadores franceses na primeira metade do
século XIX, mas a liberdade de ensino que eles tanto reivindicavam só chegaria no
período da Terceira República (1870-1940).
3.2 – O Espiritismo e a educação do trabalhador
Autores contemporâneos, que pesquisam as concepções espíritas sobre
educação, insistem na continuidade das idéias pedagógicas de Rivail em sua obra escrita
sob o pseudônimo de Allan Kardec. Dora Incontri define o Espiritismo como “uma
proposta de Pedagogia do Espírito”278, enquanto Ney Lobo enfatiza “a contribuição das
raízes culturais terrestres” do Prof. Denizard Rivail no trabalho de codificação do
Espiritismo279.
O texto básico de Kardec sobre educação encontra-se na obra
fundamental da doutrina espírita: O Livro dos espíritos, mais precisamente em um
comentário final do capítulo sobre a “Lei do trabalho” (na edição revista, refundida e
aumentada pelo autor em 1860, e que se tornou a obra-padrão empregada pelos espíritas
do Brasil e do mundo, desde aquela data.). Ele vincula, portanto, a educação à questão
do trabalho, e é sobre a formação do trabalhador que ele se ocupa. Mas não se trata
simplesmente de formação profissional, técnica: o problema que preocupa Kardec é o
da educação moral do trabalhador. Reconhece-se aqui, desde já, portanto, um
referencial comum entre o jovem professor Rivail e o maduro Kardec, escritor
espiritualista: a ênfase na formação moral — ética, como é dito atualmente — do ser
humano.
Antes de proceder ao exame do texto referido, é importante destacar
também que a obra espiritualista kardequiana não apenas assimila o legado pedagógico
277 Apud INCONTRI, Dora. Nota 29, in: RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 74. 278 INCONTRI, Dora. Apresentação, in: RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., pp. 7-10.
moderno desenvolvido por educadores como Ratke, Comenius, Rousseau e Pestalozzi,
como ainda representa a continuidade de idéias milenarmente presentes na cultura
européia, a começar por sua escala de valores morais, explicitamente tirada da Bíblia,
como mostra Kardec em O Evangelho Segundo o Espiritismo, obra publicada em
1866280. No plano filosófico, Kardec destaca como precursores da doutrina espírita os
pensadores gregos Sócrates e Platão, que quatro séculos antes de Cristo já falavam da
vida após a morte281. Textos de Platão, como o diálogo Fédon e o livro décimo da
República, são considerados os primeiros documentos escritos no Ocidente a tratar da
doutrina da reencarnação. Outros autores europeus trataram posteriormente destes
assuntos, como o próprio Kardec acabou por descobrir em suas investigações. A
reencarnação já era aceita, inclusive, por alguns pensadores franceses das primeiras
décadas do século XIX, mas não era popularizada282.
Longe de ficar contrariado com a descoberta de predecessores, Kardec
tinha satisfação em saber que não estava sozinho. Dedicou parte de seu tempo para
também pesquisar e coligir dados históricos e etnográficos que confirmassem a
universalidade das idéias e práticas espíritas, contando, para isso, com a colaboração de
adeptos e simpatizantes do Espiritismo espalhados por todo o mundo. Os resultados
dessas investigações eram publicados na Revista Espírita283. Pelo menos dois autores
europeus estudados em artigos da revista e posteriormente citados por pesquisadores da
história do Espiritismo merecem destaque, por sua proximidade com Rivail, no tempo e
espaço: o teólogo suíço Lavater, amigo de Pestalozzi, e o socialista utópico francês
Fourier.
Johann Caspar Lavater (1741-1801), teólogo protestante pietista, amigo e
companheiro de Pestalozzi nas atividades de militância política que anteciparam a
Revolução Helvética no fim do século XVIII, deixou para a posteridade um conjunto de
seis cartas dirigidas, em 1798, à imperatriz Maria Feodorowna, esposa do czar Paulo I
da Rússia, nas quais expõe idéias concordes com a doutrina espírita, sobre o futuro
reservado às almas após a morte. Lavater deixa a entender que recebeu tais informações
279 LOBO, Ney. Resgate da memória e da missão pedagógica do Prof. Rivail. Visão Espírita, Salvador, ano 2, n.° 19, p. 12-13, dez. 1999. 280 KARDEC, Allan [RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard]. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 2001, p. 49-53 et passim. 281 Id., ibid., pp. 38-48. 282 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Idéias sociais espíritas. São Paulo: Comenius, 1998, p. 34. 283 Id., ibid., pp. 34-41.
de um amigo já falecido — chega mesmo a reproduzir uma mensagem do morto —,
presumivelmente por vias mediúnicas, não especificadas. Após a divulgação dessas
epístolas pelo governo russo, Kardec reproduziu-as nas edições de março, abril e maio
de 1868 da Revista Espírita. É bem possível que Lavater tenha transmitido essas idéias
a Pestalozzi: sabe-se que este último acreditava em vida após a morte e, quando do
falecimento de sua esposa, em dezembro de 1815, manifestou a uma amiga a convicção
de um dia reencontrá-la “no outro mundo”284. Não se pode avaliar precisamente o
quanto Pestalozzi teria influenciado o jovem Rivail a esse respeito, pois ele não
manifestaria interesse por tais assuntos senão décadas após, a partir de 1854.
Quanto ao filósofo e economista francês Charles Fourier (1772-1837),
considerado um dos expoentes do socialismo utópico, trata-se já de um contemporâneo
de Rivail, com cujos adeptos ele teve oportunidade de entrar em contato mais tarde,
quando de seus trabalhos na Revista Espírita — que publicou em dezembro de 1862 e
março de 1869 artigos sobre aspectos concordantes da doutrina de Fourier com o
Espiritismo. Fourier tornou-se mais conhecido por suas idéias socialistas, nas quais
preconizava reformas sociais realizadas sem meios revolucionários, com o apoio das
elites. Previa a formação de comunidades ideais denominadas falanstérios, oferecendo a
cada um de seus membros o bem-estar através do trabalho interessante e livremente
escolhido285. Embora Kardec não tenha participado de qualquer movimento político da
época, é notório que algumas idéias de Fourier e dos socialistas utópicos eram
concordantes com as do Espiritismo286. Os espíritas repudiam, assim como os utópicos,
o emprego de soluções revolucionárias, insurrecionais, para a melhoria das condições
sociais. Como Fourier, acreditam também ser impossível uma igualdade social absoluta
entre os homens (embora sejam essencialmente iguais diante de Deus), por serem
desiguais os seus méritos e realizações. Crêem que as desigualdades sociais serão
paulatinamente sanadas através da reforma moral dos indivíduos, pois, para os espíritas,
essas desigualdades são originárias de sentimentos negativos como o egoísmo e o
orgulho.287
284 WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Op. cit., pp. 53-54, 71. 285 ENGELS, Friedrich. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. São Paulo: Moraes, [s.d.], p. 36-37; WILSON, Edmund. Rumo à estação Finlândia: escritores e atores da História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 86-90. 286 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., pp. 86-98. 287 KARDEC, Allan [RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard]. O Livro dos espíritos. pp. 109-118 (questões 166 a 196).
Mas o aspecto da doutrina de Fourier que mais interessou Kardec foi sua
crença nas vidas sucessivas: Fourier acreditava que cada alma reencarnaria 1626 vezes,
sendo 810 na Terra e as demais em outros planetas288. O Espiritismo repudiou estes
números tão pretenciosamente exatos, mas aceitou três idéias básicas de Fourier: a
reencarnação, a existência de vida inteligente em outros planetas e a possibilidade de
migração dos espíritos de um planeta a outro289.
Para iniciar a análise da proposta kardequiana de educação do
trabalhador, é recomendável, primeiro, partir da definição espírita de trabalho. Na
questão número 675 de O Livro dos Espíritos, o trabalho é simplesmente definido como
sendo “toda ocupação útil”, sendo colocados dentro desta definição tanto o trabalho
físico quanto o mental290. E mais: este conceito espírita de trabalho não distingue o
trabalho remunerado, voltado à produção de artigos vendáveis no mercado, do
voluntário. Empregando a terminologia marxista291, pode-se dizer que os espíritas
priorizam mais o aspecto do trabalho como produtor de valor de uso292, e menos seu
papel como produtor de valor de troca, ou seja, de valor econômico, expresso
monetariamente293. Tal como os marxistas, eles reconhecem o trabalho como “condição
natural da existência humana, uma condição do metabolismo entre homem e
natureza”294; no Livro dos Espíritos, o trabalho é também caracterizado como
consequência da natureza corpórea do homem, ou seja, da necessidade de prover o
sustento material e, ainda, como um meio pelo qual o ser humano desenvolve sua
inteligência295 — idéia com a qual os marxistas são perfeitamente capazes de concordar.
288 WILSON, Edmund. Op. cit., p. 88. 289 KARDEC, Allan. O Livro dos espíritos. pp. 303-306 (questões 803 a 816). 290 Id., ibid., p. 264. 291 MARX, Karl. Para a crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 2000, pp. 57-65 et passim. 292 Valor de uso: é a utilidade pura e simples de uma mercadoria, a maneira como ela satisfaz determinada necessidade humana. Segundo Marx, “Esse modo de ser da mercadoria como valor de uso coincide com sua existência natural palpável. Trigo, por exemplo, é um valor de uso particular que se diferencia dos valores de uso algodão, vidro, papel, etc. O valor de uso só tem valor para o uso, e se efetiva apenas no processo de consumo.” É avaliado tanto qualitativa quanto quantitativamente (MARX, Karl. Op. cit., p. 57). 293 Valor de troca: pode ser definido como possibilidade de uma mercadoria ser trocada no mercado por outra coisa. É avaliado quantitativamente: “o valor de troca de uma mercadoria varia conforme a quantidade de tempo de trabalho imediatamente contido nela” (MARX, Karl. Op. cit., p. 68). O dinheiro é o referencial comum de valor de todas as mercadorias. Pode ser definido como uma espécie de “mercadoria geral”, um intermediário cuja finalidade é simplesmente o de ser trocada por outras mercadorias — bens e serviços (Id., ibid., p. 74-75). O próprio trabalho assalariado é uma mercadoria. 294 MARX, Karl. Op. cit., p. 65. 295 KARDEC, Allan. Op. cit., p. 264 (questão 676).
Portanto, a concepção espírita do trabalho como lei natural,
determinante da evolução do homem, coincide com o princípio marxista segundo o qual
o ser humano, ao transformar a Natureza, por meio do trabalho, para prover sua
subsistência e conforto, acaba por transformar a si mesmo. Mas as semelhanças
terminam aí. Há que se considerar uma diferença básica: enquanto, para os marxistas, a
felicidade se limita ao usufruto, na Terra, dos produtos materiais do trabalho, para os
espíritas, além dos proveitos imediatos, o trabalho proporciona também os da evolução
espiritual. Um mundo socialista de trabalho e abundância para todos, mas sem
perspectivas que transcendam este mundo material, seria considerado limitado e vazio
por um espírita.
A reflexão de Kardec a respeito do papel da educação na formação do
trabalhador se inicia motivada por um problema considerado endêmico nas sociedades
capitalistas industriais: a questão do desemprego provocado pelas crises econômicas
cíclicas, típicas da economia industrial capitalista. Kardec propõe, através da educação,
capacitar os trabalhadores a “atravessar de maneira menos penosa os maus dias
inevitáveis”, evitando “a desordem e a imprevidência”. Mas ele não pretende capacitá-
los a superar essas crises tornando-os mais flexíveis para o aprendizado de novas
técnicas ou profissões. Não é a formação técnica ou intelectural que Kardec prioriza:
Não basta dizer ao homem que ele deve trabalhar, é necessário
também que o que vive do seu trabalho encontre ocupação, e
isso nem sempre acontece. Quando a falta de trabalho se
generaliza, toma as proporções de um flagelo, como a escassez.
A ciência econômica procura o remédio no equilíbrio entre a
produção e o consumo, mas esse equilíbrio, supondo-se que seja
possível, sofrerá sempre intermitências e durante essas fases o
trabalhador tem necessidade de viver. Há um elemento que não
se poderou bastante, e sem o qual a ciência econômica não
passa de teoria: a educação. Não a educação a intelectual, mas a
moral, e nem ainda a educação moral pelos livros, mas a que
consiste na arte de formar os caracteres, aquela que cria os
hábitos, porque educação é conjunto de hábitos adquiridos.296
296 KARDEC, Allan. Op. cit., p. 266. Os destaques em itálico são do autor.
Kardec mostra-se razoavelmente bem informado, não só quando localiza
a origem das crises industriais cíclicas — e do desemprego delas decorrente — no
desequilíbrio entre produção e consumo, mas também ao intuir que tal equilíbrio é
praticamente impossível dentro do modelo econômico capitalista (“esse equilíbrio,
supondo-se que seja possível, sofrerá sempre intermitências”). O industrial e
economista alemão Friedrich Engels explica estas crises cíclicas situando sua origem na
concorrência entre produtores e na busca de cada um deles pelo domínio de fatias cada
vez maiores do mercado. Para alcançar este fim, eles estimulam o desenvolvimento de
máquinas que produzam cada vez mais, no menor espaço de tempo e economizando
cada vez mais mão-de-obra. De imediato, tal esforço de aperfeiçoamento das técnicas
de produção leva à eliminação de postos de trabalho, que deixam de existir basicamente
porque novas máquinas substituem os seres humanos em suas tarefas. Uma parcela dos
trabalhadores tende a ficar, então, permanentemente desempregada, formando o que
Engels denominou exército industrial de reserva, “um exército de trabalhadores
disponíveis para as épocas em que a indústria trabalha a pleno vapor e que logo nas
crises que sobrevêm necessarariamente depois desses períodos, é lançado às ruas”297.
Tais crises surgem periodicamente devido ao fato de que a produção
tende a crescer mais do que a capacidade da população de consumi-la — por causa,
como foi dito, da disputa dos industriais por parcelas cada vez maiores do mercado.
Muitas empresas acabam fechando por não conseguirem vender sua produção, enquanto
as que sobrevivem à crise fazem-no diminuindo ou mesmo paralizando
temporariamente suas atividades e, com isso, demitindo empregados (deve-se recordar
que, até o final do século XIX, ainda não havia na maioria dos países uma legislação
trabalhista que garantisse férias anuais ao trabalhador; e que, como consequência,
praticamente não havia a opção de dar férias coletivas aos empregados). O precário
equilíbrio é retomado quando a produção excessiva é escoada e as empresas que
sobreviveram à crise ocupam no mercado o lugar das que faliram, retomando a
produção. Engels, que foi testemunha ocular das primeiras crises do capitalismo
industrial, no século XIX, descreve-as:
Com efeito, desde 1825, ano em que estourou a primeira crise
geral, não se passam dez anos seguidos sem que todo o mundo
297 ENGELS, Friedrich. Op. cit., p. 55-56.
industrial e comercial, a distribuição e a troca de todos os povos
civilizados e do seu séquito de países mais ou menos bárbaros
saia dos eixos. O comércio é paralisado, os mercados são
saturados de mercadorias, os produtos apodrecem nos armazens
abarrotados, sem encontrar saída; o dinheiro torna-se invisível;
o crédito desaparece; as fábricas param; as massas operárias
carecem de meios de subsistência precisamente por tê-los
produzido em excesso, as bancarrotas e falências sucedem-se. A
paragem dura anos inteiros, as forças produtivas e os produtos
são malbaratados e destruídos em massa até que, por fim, os
“stocks” de mercadorias acumuladas, mais ou menos
depreciadas, encontrem saída, e a produção e a troca se vão
reanimando pouco a pouco. Paulatinamente, a marcha acelera-
se, o andamento converte-se em trote, o trote industrial em
galope e, finalmente, em carreira desenfreada, num steeple-
chase298 da indústria, do comércio, do crédito, da especulação,
para terminar, por fim, depois dos saltos mais arriscados, na
fossa de um crack. E assim, sucessivamente.299
O próprio Kardec foi testemunha dessas crises periódicas, que atingiam
também a França. Também testemunhou, com certeza, os efeitos sociais e políticos
dessas crises. Segundo Eric Hobsbawm, a crise econômica de 1846-8 contribuiu para a
eclosão da Revolução de 1848300, na qual, como se sabe, o proletariado francês
desempenhou papel ativo, reivindicando não só direitos políticos formais, como o
direito ao voto, mas também direitos trabalhistas, inclusive medidas de proteção contra
o desemprego. Uma delas foi a criação de frentes de trabalho, denominadas “oficinas
nacionais”.
298 Steeple-chase: em inglês: corrida de obstáculos (apud FLORENZANO, Éverton. Dicionário de Ouro Inglês-Português/Português-Inglês. Rio de Janeiro: Edições de Ouro [s.d.], p, 211). 299 ENGELS, Friedrich. Op. cit.,p. 57. 300 HOBSBAWM, Eric J. A Era das revoluções: Europa, 1789-1848. 12. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 331-332.
Karl Marx assinalou que a crise econômica seguinte, ocorrida na França
em 1851 — uma crise de superprodução, como de costume, após dois anos de
prosperidade — teve igualmente graves repercusões na esfera política: induziu a
burguesia industrial francesa a aceitar a ditadura de Luís Bonaparte como forma de
garantir uma estabilidade política interna e, consequentemente, melhores condições para
superar a crise, que eles imaginavam ser causada pelas disputas entre facções
políticas301. O resultado foi um regime ditatorial que durou quase duas décadas (1852-
1870) e recolocou o ensino sob o controle eclesiástico.
Todavia, Kardec evita sugerir soluções políticas para problemas sociais
como o do desemprego. É muito difícil, por vezes impossível mesmo, discernir qualquer
posicionamento político definível no Livro dos Espíritos ou qualquer obra básica da
codificação espírita. A historiadora Cleusa Beraldi Colombo explica que, para Kardec,
“filiar-se a algum partido ou inclinar o movimento espírita para alguma ideologia
política da época seria limitar seus objetivos e introduzir entre seus adeptos disputas
partidárias e ideológicas, em contradição com o espírito de fraternidade.”302 No
máximo, ele reconhece a necessidade histórica das agitações políticas e sociais por que
passam os povos, para que se realize o progresso. Aceita-os como conseqüências
naturais de certos contextos históricos, repudiando porém o engajamento em doutrinas
revolucionárias303. Talvez Kardec tenha sido levado a isso pelas tribulações coletivas
que haviam se abatido recentemente sobre seu país, na busca por respostas políticas
para os desequilíbrios sócio-econômicos; mas não há como sabê-lo com certeza,
levando-se em conta a documentação atualmente disponível.
A solução que Kardec propõe para o desemprego, surpreendentemente,
não é a melhoria da capacitação técnica do trabalhador. Ele propõe, realmente, uma
melhor educação para o trabalhador, mas enfatiza que não se trata de educação
intelectual, mas moral. E não uma educação verbalista, livresca, mas “a que consiste na
arte de formar os caracteres, aquela que cria os hábitos, porque educação é conjunto de
hábitos adquiridos”. É interessante notar que, nesta última definição, Kardec retoma
uma antiga preocupação de seus tempos de professor e diretor de escolas. Em seu Plano
de 1828, ele explicara mais detalhadamente como se daria esta formação de hábitos:
301 MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. 2. ed., São Paulo: Centauro, 2000, p. 118-126. 302 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., p. 89.
A fonte das qualidades morais se acha nas impressões que a
criança recebe desde seu nascimento, talvez mesmo antes, e que
podem agir com mais ou menos energia sobre o seu espírito,
para o bem ou para o mal. Tudo o que ela vê, tudo o que ela
ouve, a faz experimentar impressões. Ora, assim como a
educação intelectual consiste na soma das idéias adquiridas, a
educação moral é o resultado de todas as impressões recebidas.
Cada objeto, que a criança vê, lhe dá uma idéia, e cada palavra,
que ela escuta ou cada ação de que ela é objeto ou testemunha, a
faz experimentar uma impressão, mantida durante um certo
tempo e freqüentemente repetida, fá-la contraí-la um hábito.
Ora, como se sabe, o hábito é uma segunda natureza que nos
leva, malgrado nosso, a fazer uma coisa, o mais freqüentemente
sem que nossa vontade participe disso; daí as chamadas
inclinações, que são apenas hábitos inveterados, quando não
estejam ligadas ao nosso temperamento, como a cólera, a
vivacidade, a lentidão e outras tendências desta natureza.304
Dessa forma, o jovem professor Rivail lança alguma luz sobre o
espiritualista Kardec. Mas o que definitivamente não fica claro é o que a “educação
moral” preconizada por Kardec pode fazer para diminuir o problema do desemprego ou
das crises econômicas cíclicas que o provocam. Neste aspecto, o discurso kardequiano
não parece muito coerente. O último parágrafo de seu comentário final ao capítulo sobre
a “Lei do trabalho”, n’ O Livro dos Espíritos, pouco contribui para a elucidação do
paradoxo:
Quando se pensa na massa de indivíduos diariamente lançados
na corrente da população, sem princípios, sem freios, entregues
aos próprios instintos, deve-se admirar das conseqüências
desastrosas desse fato? Quando essa arte for conhecida,
compreendida e praticada, o homem seguirá no mundo os
hábitos de ordem para si mesmo e para os seus, de respeito pelo
que é respeitável, hábitos que lhe permitirão atravessar de
maneira menos penosa os maus dias inevitáveis. A desordem e a
303 Id., ibid., pp. 80-86. 304 RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard. Op. cit., p. 16-17.
imprevidência são duas chagas que somente uma educação bem
compreendida pode curar. Nisso está o ponto de partida, o
elemento real do bem-estar, a garantia da segurança de todos.305
O que Kardec sugere não é qualificar melhor o trabalhador tecnicamente,
mas apenas prepará-lo moralmente para “atravessar de maneira menos penosa os maus
dias inevitáveis”, evitando a “desordem” e garantindo a “segurança de todos”. O texto é
pouco preciso, mas parece apontar simplesmente para a meta de educar o trabalador
para que ele aceite, conformado, situações de desemprego e penúria, evitando atitudes
que levem a “conseqüências desastrosas”. Embora Kardec seja muito vago e não
especifique quais seriam essas atitudes perniciosas, pode-se supor, de maneira bastante
verossímil, com base em testemunhos da época306 e nas conclusões de pesquisadores,
que ele estivesse se referindo ao roubo, ao alcoolismo, à prostituição, ao infanticídio (aí
incluído o aborto), e ao suicídio, e a outras práticas cujas estatísticas, de fato,
aumentaram com a concentração de mão-de-obra industrial nas grandes cidades,
preocupando administradores, empresários e militantes trabalhistas307. Por outro lado, as
queixas contra a “imprevisão”, “promiscuidade”, “disperdício” e “desordem” dos
membros das classes trabalhadoras eram um lugar-comum entre os educadores e
moralistas europeus da segunda metade do século XIX308.
305 KARDEC, Allan [RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard]. O Livro dos espíritos, p. 266-267. 306 Friedrich Engels (in: Op. cit., p. 32-33) refere-se ao crescimento das estatísticas criminais, da prostituição e dos vícios como conseqüências da exploração dos trabalhadores no capitalismo industrial, fato que ele testemunhou pessoalmente ao longo do século XIX em países como Alemanha e Inglaterra. 307 HOBSBAWM, Eric J. Op. cit.,pp. 223-225. 308 VARELA, Julia & ALVAREZ-URIA, Fernando. Op. cit., p. 88-89.
Existe ainda um importante aspecto desta questão, extremamente
esclarecedor, que deve ser levado em conta. As indústrias da primeira metade do século
XIX careciam de uma mão-de-obra com uma formação diferente daquela que fora
empregada, até então, nas atividades agro-pastoris e manufatureiras do Antigo Regime.
Era necessário, sobretudo, que o trabalhador se habituasse a trabalhar de uma maneira
adequada à indústria, ou seja, num ritmo regular de trabalho diário ininterrupto, o que é
inteiramente distinto dos altos e baixos provocados pelas diferentes estações no trabalho
agrícola ou da intermitência autocontrolada do artesão independente. Em outras
palavras, era necessário que o trabalhador aprendesse a operar segundo um ritmo
artificial, controlado pelo relógio, e não mais pelos fenômenos da Natureza, como
ocorria no campo309.
Era necessário ensinar o operário a trabalhar num ritmo constante,
visando alcançar — e superar — metas de produtividade: os empresários britânicos, por
exemplo, queixavam-se da “preguiça” de seus empregados, ou melhor, de sua tendência
para trabalhar apenas até que tivessem ganho um “salário tradicional de subsistência
semanal” (conforme a expressão de Hobsbawm) e depois parar310. Não só na Inglaterra,
mas nos demais países europeus que se industrializavam no século XIX, fazia-se
necessário educar os operários para que trabalhassem metodicamente, com a devida
constância, visando não só a subsistência imediata, mas também a formação de uma
poupança; de educá-los, enfim, para que se curassem — segundo a expressão de Kardec
— de sua “imprevidência”311.
309 Id., ibid., p. 66-67. 310 Ibid., p. 67. 311 VARELA, Julia & ALVAREZ-URIA, Fernando. Op. cit., p. 89.
Na França, as dificuldades enfrentadas por seus empresários para obter
uma mão-de-obra adequada ao trabalho nas fábricas foram muito parecidas com as dos
empresários britânicos. Testemunhos a esse respeito foram obtidos pelo historiador
norte-americano Robert Darton, com base em documentação de empresas tipográficas
da França e da Suíça, no final do século XVIII. Recrutadores e patrões franceses e
suíços (que habitualmente contratavam operários no país vizinho) queixavam-se
constantemente dos trabalhadores franceses, a quem acusavam de serem “preguiçosos,
incostantes, dissolutos e não-confiáveis”; a violência, a bebedeira e o absenteísmo
aparecem constantemente nas estatísticas de rendimento e produção que Darton
compilou com base no livro de pagamentos da Société Typographique de Neuchâtel, na
Suíça, que empregava muitos franceses312. (Por outro lado, deve-se notar que Pestalozzi
também criticava os trabalhadores suíços por sua mentalidade e comportamento,
caracterizados pelo relaxamento, ociosidade, falta de higiene, superstições, intrigas,
inveja mútua, ignorância, etc., atitudes que os enfraqueciam moralmente, alienando sua
dignidade humana e a capacidade de reação contra os que lhes exploravam.313) Décadas
depois, a situação não tinha mudado muito.
O discurso de Kardec é melhor compreendido, portanto, quando
devidamente situado no contexto histórico em que foi produzido. Sob essa perspectiva,
ele é um típico representante do seu tempo: suas preocupações quanto à “educação
moral” do proletariado são identicas às dos demais educadores e moralistas europeus do
século XIX.
Embora tenha, como Rivail, publicado textos nos quais apresentava
sugestões mais específicas para a melhoria do ensino público na França, Kardec evitou,
na qualidade de escritor espiritualista, tocar em questões de política educacional. Ele
limita-se, n’O Livro dos Espíritos, a propugnar a reforma moral dos indivíduos, calcado
nos ensinamentos bíblicos — a obra O Evangelho Segundo o Espiritismo explicita bem
este propósito. Caberia a um de seus discípulos e continuadores, Léon Denis, retomar o
problema da educação.
312 DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. 2. ed., Rio de Janeiro: Graal, 1996, p. 111-112. 313 INCONTRI, Dora. Pestalozzi: educação e ética. São Paulo: Scipione, 1997, p. 45-46.
3.3 – Léon Denis e a escola laica
Léon Denis (1846-1927) nasceu em Foug, burgo da Lorena, na França,
mas boa parte de sua vida viveu em Tours e Paris. Filho de proletários, teve uma
infância e uma adolescência de grandes privações, trabalhando arduamente durante o
dia e estudando à noite — seu testemunho pessoal a respeito foi reproduzido no capítulo
I desta monografia. Conheceu Kardec em 1867. Lutou na Guerra Franco-Prussiana de
1870. A derrota de seu país nesse conflito e a perda das regiões da Alsácia e Lorena
(onde ele nascera) para a Alemanha aguçou seu nacionalismo, o qual se tornaria uma
das características marcantes de sua personalidade, em contraste com o cosmopolitismo
de seu mestre Kardec. Publicou várias obras, tendo sido igualmente um grande orador.
Fez diversas conferências por toda a França e países vizinhos. Travou amizade com o
grande líder socialista francês Jean Jaurès314, com quem permutou idéias: Jaures
conheceu com ele o Espiritismo, e Denis passou a simpatizar com o socialismo. Tal
como o amigo Jaurès, Denis também assumiu postura de vigorosa oposição ao
marxismo leninista (bolchevismo), por repudiar os meios violentos que os bolcheviques
utilizavam para chegar ao poder315. Seu livro Socialismo e Espiritismo, publicado em
1924, destina-se basicamente a contestar as propostas revolucionárias dos bolcheviques
e defender reformas sociais através de meios pacíficos, principalmente através da
educação. Nesta obra, ele narra suas atividades como voluntário na luta pela melhoria
da educação do proletariado:
314 Jean Jaurès: nasceu em Castres, próximo de Toulouse, em 3/9/1859. Cursou a Escola Normal Superior em Paris. Doutorou-se na Sorbonne com as teses Da realidade do mundo sensível e As origens do socialismo alemão, segundo Lutero, Kant, Fichte e Hegel. Escreveu em vários jornais, fundando o jornal socialista L’Humanité. Foi deputado, professor e fundador do Partido Socialista Francês. É considerado também um dos expoentes do pacifismo na França. Foi assassinado por um fanático nacionalista em 21 de junho de 1914. 315 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., pp. 91-94.
Após a guerra de 1870, eu entendi que seria necessário trabalhar
com ardor na educação do povo. Com esse objetivo, aliado a
alguns cidadãos devotados, havíamos fundado na nossa região a
Liga de Ensino316, da qual tornei-me o secretário geral, criei
bibliotecas populares e inaugurei, em vários locais, ciclos de
palestras. Isto, para demonstrar que sempre guardei contato com
as classes trabalhadoras, e, como elas compartilhei de seus
problemas, suas aspirações de progresso. Interessei-me bastante
pelo movimento cooperativista e durante algum tempo
sustentei, a título gracioso, os livros de um grupo de sapateiros
reunidos em uma empresa comum.317
As aspirações de Léon Denis e seus companheiros pela ampliação das
oportunidades de estudo para os trabalhadores começariam a ser atendidas em breve
pelos governos da Terceira República. Este regime, que vigorou na França entre 1870 e
1940, investiu, a partir da década de 80 do século XIX, na instrução pública. O principal
responsável pela completa reorganização do ensino francês nesse período foi o ministro
Jules Ferry (1832-1893), que, com uma série de leis promulgadas entre 1880 e 1883
reorganizou totalmente o ensino público francês, estabelecendo definitivamente a escola
primária leiga, gratuita e obrigatória. As reformas se iniciaram com a lei de 1881, que
exigia o título de professor para o exercício do ensino primário (fundamental), seguida
da que estabelecia a gratuidade e, depois, pela de 1882 que introduziu a laicidade nas
escolas, ao substituir o ensino de religião pela “instrução moral e cívica”. Em 1886
determinou-se que o pessoal de todas as escolas públicas fosse exclusivamente leigo, e
em 1904 proibiu-se o ensino às congregações religiosas. Introduziu-se no secundário o
chamado “ensino moderno”, com ciências e línguas vivas e concedeu-se autonomia às
universidades. Ao lado dessas reformas, a Terceira República investiu também na
criação de milhares de escolas por todo o país, além de novas Escolas Normais e
Escolas Normais Superiores, para a formação de professores e inspetores. A partir de
1932 foi implantada a gratuidade do ensino secundário318.
316 Liga de Ensino — Associação fundada em 1866, por Jean Maré, para favorecer a difusão da instrução mas classes populares. 317 DENIS, Léon. Socialismo e Espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 1998, p. 24. 318 LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., pp. 182-183, 213-214.
As reformas educacionais da Terceira República só satisfizeram a Léon
Denis até certo ponto, pois ele tinha queixas a fazer. Em Socialismo e Espiritismo, ele
expressa sua visão da educação francesa, e do papel que esperava que ela
desempenhasse na sociedade:
Parece que assistimos a um início de desagregação da
sociedade. O cimento que une os elementos do edifício, isto é, o
espírito de família, a disciplina social, o patriotismo, o
sentimento religioso, etc., se enfraquece e se decompõe.
A quem remonta a responsabilidade desse estado de coisas? Em
grande parte à Igreja e à escola. Petrificada em seus dogmas, a
Igreja tornou-se impotente para comunicar ao corpo social essa
fé viva que é a grande força, a alma mesma das nações. Seu
catecismo, incompreesível e incompreendido, é notoriamente
insuficiente para esclarecer e guiar as crianças do povo em seus
difíceis caminhos da existência. Alguns, é verdade, podem
ainda se contentar com isso; mas uma sociedade inteira não
pode viver desse pão ressecado e endurecido.319
Denis preocupa-se com a crise de valores que parece atingir a sociedade
francesa após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ele retoma, portanto, uma
questão já abordada por Kardec em outro contexto histórico, com a diferença de que,
agora, busca analisar instituições sociais e não apenas indivíduos. Para ele, a origem
dessa crise de valores devia ser buscada nas duas instituições a que ele atribui a
responsabilidade maior pela educação pública: a Igreja e a Escola. Não por acaso, estas
suas instituições sociais desempenham relevante papel como “aparelhos ideológicos de
Estado”, sendo que a Igreja havia sido, na França, o Aparelho Ideológico de Estado
dominante até a Revolução de 1789 — e, na verdade, continuou a ocupar posição
proeminente nesse sentido até a metade do século XIX. A crítica de Léon Denis ao mau
desempenho da Igreja Católica em sua tarefa de evangelizar a população apenas reitera
uma condenação que já havia sido feita pelos os filósofos iluministas e políticos
liberais. Mas Denis não se ocupa demasiadamente em criticar a Igreja, concentrando sua
atenção, logo a seguir, sobre a escola laica:
319 DENIS, Léon. Op. cit., p. 29-30.
Falemos da escola atual laica e obrigatória. Ela foi uma reação
contra a escola congregacionista impregnada de preconceitos
dogmáticos e de rotinas seculares. Os responsáveis pela escola
laica tinham um programa e um objetivo: dividir com todos,
num grande entusiasmo, sua confiança na solidariedade humana
através da difusão da instrução e do conhecimento dos
princípios baseados no dever e na participação de todos na obra
comum. Essa instrução era acrescida pelas noções de moral
totalmente impregnadas do ideal espiritualista. Os manuais de
Paul Bert320 e Compayré321 ensinavam a existência de Deus, a
imortalidade do ser e tentavam reacender o fogo sagrado nas
almas francesas; contudo seus sucessores, em sua política terra
a terra, eliminaram pouco a pouco essas noções de idealismo e a
escola voltou a ter influência materialista.
Desde então, a instrução laica, desprovida de elevação,
desenvolveu o sentimento pessoal. Do orgulho ao egoísmo vai
um passo, e, há trinta anos, este vem crescendo, graças ao bem-
estar procurado por uma civilização totalmente materialista.
Quando a instrução é desprovida de freio moral, de sanção, e
vem se misturar à paixão material, ela só faz excitar os apetites,
os desejos de prazeres e se traduz por um egoísmo
desenfreado.322
Léon Denis assume posição favorável, pelo menos a princípio, quanto à
substituição das escolas religiosas pela escola laica. Mas, por outro lado, ele também faz
restrições quanto ao tipo de escola que foi implantada na França durante a Terceira
República e em outros países, por notar que seu objetivo não é o de formar seres
humanos plenos, desenvolvidos tanto no plano intelectual quanto no físico e no moral.
E nem poderia ser de outro modo, uma vez que o objetivo desta escola é o de formar,
por um lado, operários, cidadãos e soldados disciplinados e submissos; e, do outro,
320 Paul Bert (1833-1886) — Fisiologista e político francês, nascido em Auxerre. Defensor radical da República laica, foi ministro da Educação Pública (1881-82) e depois governador geral em Annam e em Tomkin (regiões, respectivamente, do sul e do norte do atual Vietnã, então colônia francesa). 321 Compayré, Jules Gabriel (1843-1913) — Professor francês, membro da Academia das Ciências Morais (1907). Ocupou-se principalmente de Pedagogia: foi autor de uma História Crítica das Doutrinas de Educação em França, e de um Curso de Pedagogia Teórica e Prática. 322 DENIS, Léon. Op. cit., p. 30-31.
consumidores que não exergam mais nenhum outro sentido na vida senão desfrutar dos
prazeres materiais oferecidos pelo capitalismo industrial. Este tipo de sociedade — o da
produção industrial em massa — apenas necessita de trabalhadores qualificados e de
consumidores para seus produtos, nada mais. Pessoas imbuídas de valores espiritualistas
não se limitariam a encarar como objetivos únicos da vida apenas produzir e consumir
mercadorias, mas é justamente este tipo de ser humano que políticos e empresários não
desejam ter sob suas ordens. Ao seu modo, Léon Denis aponta para estes fatos, quando
faz notar que a instrução laica não atende a outros objetivos senão o “bem-estar
procurado por uma civilização totalmente materialista”.
A criação e difusão da escola laica estatal gratuita e obrigatória de fato
não ocorreu senão obedecendo ao imperativo material de melhor qualificar os
trabalhadores. A burguesia pura e simplesmente não pôde mais recusar uma instrução
mínima ao populacho, uma vez que as máquinas complicadas que a indústria utilizava
não mais podiam ser operadas eficazmente sem esse conhecimento. No capitalismo
industrial, até mesmo a agricultura torna-se uma espécie de indústria, a partir do
momento em que se utiliza de máquinas destinadas a agilizar a produção, o que por sua
vez implica na necessidade de uma mão-de-obra melhor preparada. Já em meados do
século XIX, o político e educador argentino Domingo Sarmiento323 mostrava-se
consciente quanto a esse problema:
323 Sarmiento, Domingo Faustino (1811-1888) — Pedagogo e político argentino, é considerado o criador do ensino primário público em seu país. Trabalhou também no Chile, onde criou a primeira Escola Normal hispano-americana. Escreveu numerosas obras de caráter pedagógico, destacando-se o livro Educación Popular, de 1848 (apud LUZURIAGA, Lorenzo. Op. cit., p. 192).
Para manejar certas ferramentas é necessário aprender a ler. Em
Copiacó [cidade chilena] se paga 14 pesos ao operário rude, e
50 ao operário inglês que, pelo fato de saber ler, recebe as
encomendas mais delicadas e todo o trabalho que requeira o uso
da inteligência. Para manejar o arado é necessário saber ler! Só
nos Estados Unidos é que se generalizou o uso de arados
aperfeiçoados, porque só nesse país é que o trabalhador rural,
que deve manejá-los, sabe ler. No Chile, por agora [em 1853], é
impossível popularizar as máquinas de arar, de trilhar, de
debulhar milho, porque não há pessoal para manejá-las, e eu
próprio vi numa fazenda quebrar-se a debulhadeira no próprio
instante em que era posta a funcionar.324
324 Citado in: PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. 16. ed., São Paulo: Cortez, 1998, p. 145.
Mas não se tratava apenas de instruir o trabalhador, como já foi
assinalado. Era necessário também imbuí-lo, de preferência já desde a infância, de um
senso de disciplina e ordem apropriado ao labor fabril. E disto a Escola se encarregaria.
O espaço escolar que se implanta nas instituições educacionais dos países capitalistas a
partir do século XIX é rigidamente ordenado e regulamentado de maneira a inculcar nas
crianças e adolescentes que “o tempo é ouro e o trabalho disciplina”. Nele se verão
submetidos a toda uma ginástica que deixa a descoberto as funções que a escola cumpre
na qualidade de instrumento de gestão política das classes populares: os alunos devem
saudar com deferência o professor e o diretor, sentar-se corretamente, permanecer em
silêncio e imóveis, falar baixo e somente depois de havê-lo solicitado, levantar-se e sair
ordenadamente, obedecer a horários rígidos, etc. Trata-se de uma disciplina que parece
mais apropriada a instituições fechadas como quartéis, fábricas325, conventos e cárceres;
e, para melhor ministrá-la, criou-se um dispositivo fundamental: a carteira escolar,
artefato que submete o aluno a uma desconfortável imobilidade corporal e ao
isolamento dos demais colegas durante a aula. Segundo Julia Varela e Alvarez-Uria, a
carteira escolar, ao impor uma distância física e simbólica entre os alunos e o grupo,
reproduz a configuração básica da sociedade capitalista, composta pela mera soma dos
indivíduos 326.
Pode-se concluir, portanto, que o tipo de educação que se procurou
ministrar nas escolas a partir do século XIX destina-se mais a produzir um
comportamento funcional e ajustado às regras da sociedade capitalista do que ensinar
qualquer outra coisa ao aluno. Mesmo a “qualificação” do estudante para o trabalho,
embutida na educação que ele recebe na Escola, não consistiria propriamente — ou tão
somente — na aquisição de quaisquer conhecimentos técnicos ou científicos, uma vez
que, na prática, mesmo o estudante “profissionalizado” em cursos de nível médio ou
universitário carece ainda de passar por um treinamento técnico na própria empresa
antes que possa ser considerado capaz de oferecer um trabalho realmente “qualificado”.
Neste caso, seria talvez mais exato dizer que a educação ministrada na Escola forma o
trabalhador, enquanto a empresa o qualifica para o trabalho. Mas nem por isso o papel
da Escola na formação da mão-de-obra é menor, uma vez que formar o trabalhador,
325 Deve-se notar que a campainha ou cigarra que se utiliza ainda em muitas escolas, para assinalar os horários de entrada, de saída e do recreio dos estudantes, por exemplo, lembra também aquelas sirenes utilizadas nas fábricas para marcar os horários de mudança de turnos e de almoço dos operários, etc.
dentro desse esquema, não significaria apenas qualificá-lo tecnicamente, mas fazer com
que se torne, para ele, natural e necessária a venda de sua força de trabalho, a submissão
às normas de produção e à racionalidade da hierarquia na produção, e assim por
diante327.
Esta educação “reprodutora de força de trabalho” ministrada nas escolas
do Ocidente desde o século XIX está muito longe das aspirações de Léon Denis; e é
fora de dúvida que ela também não satisfaria a Kardec: por mais que tivesse defendido,
como professor, uma instrução mais moderna, valorizando o estudo de disciplinas
científicas e de línguas vivas, ele jamais perdia de vista seu propósito de uma educação
integral. O objetivo desses homens era o de prover uma educação que fizesse o ser
humano transcender o horizonte material, tornando-o imune ao consumismo. Uma
educação para o espírito, e não apenas para o homem corpóreo; uma educação, como
diria Comenius, para a Vida Eterna.
326 VARELA, Julia & ALVAREZ-URIA, Fernando. Op. cit., p. 91-92. 327 ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon. Introdução: Althusser, A Ideologia e as Instituições, in: ALTHUSSER, Louis. Op. cit.,p. 11-12.
CAPÍTULO IV
A PEDAGOGIA ESPÍRITA NO CONTEXTO BRASILEIRO
“Se Deus, nos seus desígnios, vos fez nascer em um meio
pudestes desenvolver vossa inteligência, é porque quis que
fizésseis uso dela para o bem de todos; é uma missão que Ele
vos dá, colocando em vossas mãos o instrumento com a ajuda
do qual podeis desenvolver as inteligências retardatárias, ao
vosso redor, e conduzi-las a Deus. A natureza do instrumento
não torna patente o uso que dele se deve fazer?”
FERDINANDO, espírito protetor. Bordeaux, 1862.328
O Espiritismo pode ser definido como uma proposta pedagógica cujo
objetivo é promover a educação do espírito. É uma definição bastante adequada, afinal,
para uma doutrina que foi codificada por um educador. Todavia, esta proposta de
“educação do espírito” não chegou a inspirar em seu país de origem, a França, a criação
de quaisquer instituições escolares voltadas à prática de uma pedagogia espírita. Léon
Denis limitou-se a sugerir, em 1924, no livro Socialismo e Espiritismo, que se criassem,
seguindo o exemplo dos espíritas da cidade de Lyon, escolas dominicais onde a doutrina
e a moral espírita seriam ministradas a crianças e adultos329. O que Denis sugere, na
verdade, é simplesmente imitar uma prática já consagrada, há séculos, pelas igrejas
protestantes.
Foi somente no Brasil que a proposta espírita de educação conseguiu se
traduzir, na prática, pela criação de instituições escolares destinadas à aplicação de seus
princípios pedagógicos, graças ao pioneirismo de educadores como Anália Franco,
Eurípedes Barsanulfo e Tomás Novelino. Este capítulo concentra-se na exposição
sintética da história desses pioneiros.
328 Citado in: KARDEC, Allan [RIVAIL, Hippolyte Léon Denizard]. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 2001, p. 148. 329 DENIS, Léon. Socialismo e Espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 1998, p. 31.
4.1– O contexto brasileiro
A sociedade brasileira assentou os fundamentos objetivos de sua
formação histórica sobre uma economia primário-exportadora, baseada na exploração
extensiva de recursos em grande parte não-renováveis — passando pelo uso destrutivo
do solo nos vários “ciclos” agrícolas — ao longo de mais de quatro séculos: o pau-
brasil, o açúcar, o ouro e os diamantes, durante o período colonial (1500-1822); o café,
durante o período monárquico (1822-1889); depois, ainda o café, mais a borracha
durante a “República Velha” (1889-1930)330. Muitos aspectos da sociedade brasileira
decorrerão desse condicionamento histórico.
A colonização lusitana no Brasil não teve outro objetivo principal senão
o de ordem econômica: a colônia era, antes de tudo, um “negócio” do rei (e de sua
corte, com quem ele repartia seus proventos, locupletando ainda os burgueses
envolvidos no comércio colonial) e todos os assuntos que se referem à sua
administração eram vistos deste ângulo particular, e de tal maneira que “o Real Erário é
o personagem que representa em nossa história colonial, e sem nenhum disfarce, o
maior papel”331. A educação ocupou, portanto, uma posição no mínimo secundária
dentro do projeto colonizador português, pois não havia necessidade de formação
especial para o desempenho de funções na agricultura ou no extrativismo vegetal e
mineral. A mão-de-obra utilizada era, principalmente, escrava, inicialmente constituída
por nativos (índios) e logo substituída, em sua maior parte, por africanos.
Pelo fato de a divisão social do trabalho estar calcada basicamente no
antagonismo senhor/escravo, ficando destinadas aos cativos quase todas as atividades
produtivas, restava uma pequena margem de ocupações destinadas ao homem livre na
sociedade colonial, ou mesmo durante o Império: se não era ou não podia ser
proprietário ou fazendeiro, senhor de engenho, comerciante (atividade quase toda
monopolizada por imigrantes portugueses) ou lavrador, não lhe sobravam senão umas
poucas ocupações, tais como de feitor, mestre de engenhos ou qualquer outro ofício
330 FURTADO, Celso. O capitalismo global. 4. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 39. 331 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 372.
mecânico que a mão-de-obra escrava não tivesse açambarcado. A utilização quase
universal do escravo na produção econômica terminou também por deixar como marca
característica, na sociedade brasileira, a conceituação do trabalho, principalmente do
trabalho físico, como atividade pejorativa e socialmente desabonadora332. A própria
valorização do trabalho intelectual, quando existe, se dá apenas em função de seu
contraste com o trabalho manual, considerado aviltante, próprio de escravos, e não em
virtude de quaisquer utilidades ou benefícios práticos dele decorrentes. Ficará, portanto,
na cultura brasileira, a marca do amor à erudição ostentosa (a “cultura inútil”) e ao
verbo espontâneo e abundante; de uma inteligência valorizada como “ornamento e
prenda”, e não como instrumento de ação333. O ensino ministrado no Brasil, desde a
época colonial até a República, se ressentirá desta característica.
As primeiras instituições de ensino criadas no Brasil foram de caráter
congregacionista, assumindo a Companhia de Jesus o encargo maior. Desde a chegada
de seus primeiros missionários, em 1549 — os quais logo instalaram em Salvador uma
escola “de ler e escrever” — até sua expulsão pelo marquês de Pombal, em 1759, os
jesuítas praticamente dominaram a instrução na colônia, criando a maior parte das
escolas elementares, secundárias, seminários e missões religiosas aqui existentes no
período. A intenção, porém, não era apenas difundir a religião. Numa época de
absolutismo, a Igreja, intimamente vinculada ao poder real, era um insturmento
importante para garantir a dominação metropolitana na colônia, convertendo e
aculturando os nativos (os índios) e mantendo os colonos fiéis ao catolicismo tanto
quanto à monarquia, da qual a religião era um de seus sustentáculos ideológicos334.
332 Id., ibid., pp. 286-287, 358-360. 333 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p. 50-51; SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de História da Cultura Brasileira. 16. ed., Rio de Janeiro: Bertrand, 1989, p. 35-36. 334 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. 2. ed. rev. e atual., São Paulo: Moderna, 1996, p. 99; SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., pp. 15-17.
O ensino ministrado pelos jesuítas ignorava as ciências físicas ou
naturais, assim como a técnica e as artes, visando apenas uma educação humanística,
centrada no latim, nos textos clássicos e na religião, com ênfase no grau médio.
Tratava-se, portanto, de educação literária, abstrata, distante de qualquer interesse
material ou utilitário. As mulheres estavam geralmente excluídas de qualquer forma de
instrução, da mesma forma que os negros. Os mulatos (ou “pardos”) só foram admitidos
nas instituições jesuítas a partir de 1689335. Este último fato exemplifica, inclusive,
outro problema histórico da sociedade brasileira: o da integração social dos indivíduos
de origem ameríndia ou africana; e isto apesar do alto grau de mestiçagem observado
desde os inícios da colonização336, ou mesmo dos esforços do governo português em
integrar índios e mulatos ao seu aparato administrativo337. Ainda que no Brasil a
discriminação não tenha assumido o perfil mais rígido e intolerante dos lugares de
colonização anglo-saxônica, é fora de dúvida que o preconceito existiu ao longo de sua
história e que continua surtindo seus efeitos.
A expulsão dos jesuítas em 1759 deixou um vazio educacional na
colônia, mal preenchido pela implantação do ensino público oficial pela Coroa, em
1772. Nomearam-se professores e implantou-se o sistema das aulas régias, de
disciplinas isoladas. Entretanto, os colégios públicos eram poucos e dispersos — mal
coadjuvados pelas poucas escolas de ordens religiosas, como as dos carmelitas,
beneditinos e franciscanos, que tentavam ocupar o lugar dos jesuítas —, e os
professores leigos mal pagos e despreparados, configurando mais um problema que
atormentaria a sociedade brasileira ainda por séculos a fio338.
A transferência da família real portuguesa para a colônia (em 1808) e a
conquista da autonomia política (1822) trariam algumas poucas melhorias no quadro
cultural e educacional, se bem que a estrutura sócio-econômica mantivesse seus traços
principais até, pelo menos, a abolição da escravatura (1888) e a proclamação da
República (1889): continuou sendo uma sociedade de características acentuadadamente
rurais e economia agro-exportadora, baseada na exploração do braço cativo. No que se
refere à instrução pública, o século XIX se caracteriza pela ausência de uma política
335 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 115. 336 PRADO JÚNIOR, Caio. Op. cit., pp. 102-106. 337 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., pp. 24-26. 338 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 134; SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., p. 28-29.
sistemática e planejada, resolvendo-se apenas problemas imediatos (principalmente o da
formação de quadros para o Estado), sem encará-los como um todo.
Com a instalação da Corte no Rio de Janeiro, em 1808, surge e
desenvolve-se a imprensa, com a publicação dos primeiros jornais e livros, organiza-se
a primeira biblioteca destinada ao público (Biblioteca Nacional, em 1810), e criam-se
os primeiros cursos superiores, principalmente aqueles destinados à formação de
quadros para as forças armadas (cirurgiões, engenheiros militares, etc.). Os primeiros
cursos jurídicos são criados após a independência, em São Paulo e Recife (1827),
tornando-se faculdades apenas em 1854. O primeiro curso de engenharia somente surge
em 1874, com a criação da Escola Politécnica, no Rio de Janeiro. Tais medidas
acentuam o caráter elitista, aristocrático da educação brasileira, a que tem acesso apenas
os nobres, os proprietários de terras e uma camada intermediária surgida da ampliação
dos quadros administrativos e burocráticos339.
O ensino fundamental e médio quedou desassistido e desarticulado
durante todo o século XIX. Uma emenda constitucional, o Ato Adicional de 1834,
descentralizou o ensino, atribuiu à Coroa a função de prover e regulamentar o ensino
superior, enquanto as províncias (futuros estados) ficavam incubidas do ensino
fundamental e médio. Contudo, os poucos liceus provinciais fundados pela iniciativa
pública enfrentaram dificuldades diversas, decorrentes da falta de organização, de
recursos e mesmo do despreparo dos professores (os quais, muitas vezes, devido aos
baixos salários, eram obrigados a se dedicarem também a outras atividades), e até
mesmo do insuficiente número de alunos, o que levou muitos deles a fechar. Boa parte
do ensino médio ficou, então, sob o controle da iniciativa privada, particularmente das
ordens religiosas. O Colégio Pedro II, fundado em 1837, constituiu uma exceção em
termos de iniciativa estatal; seu curso de sete anos, de nível médio, com tendência a um
ensino universalista e enciclopédico, distante da realidade concreta do país, serviu de
padrão aos demais liceus. No que se refere ao ensino fundamental, existiam poucas
escolas, que se restringiam à uma instrução elementar: ler, escrever e contar. Não havia
qualquer vinculação entre os currículos dos diversos níveis340.
Em virtude da maior ênfase dada à cultura humanística, retórica e
literária, aliada à mentalidade escravocrata que desprezava o trabalho feito com as
mãos, o ensino técnico quase foi relegado ao esquecimento. Somente em 1856 fundou-
se o Liceu de Artes e Ofícios, no Rio de Janeiro, e, em 1874, o Liceu de São Paulo. A
formação de professores era igualmente precária. As primeiras escolas normais, de nível
secundário, fundadas em Niterói (1835), Bahia (1836), Ceará (1845), e São Paulo
339 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., pp. 151-153; SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., p. 34-35. 340 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., pp. 152-156.; SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., p. 43.
(1846), de início destinadas apenas a rapazes, atendiam a pouquíssimos alunos. Todo
esse descaso com a educação reflete-se nos índices de analfabetismo, que atingia 67,2%
em 1890, um legado da monarquia que a República oligárquica não conseguiria reduzir
senão a 60,1%, em 1920341. Ele se explica, em boa parte, pelas condições objetivas —
entenda-se: econômicas —, da sociedade brasileira do período: a classe dominante
simplesmente não sentia a necessidade de intruir uma população quase totalmente
ocupada em atividades de natureza agro-pastoril ou extrativista, que constituíam a base
da economia nacional.
Somente a partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que provocou
uma momentânea diminuição do comércio internacional, o Brasil ensaia uma lenta
mudança do modelo econômico primário-exportador, com um surto industrial que dá
início à nacionalização da economia, reduzindo importações e fazendo surgir uma
burguesia industrial, uma classe média e um proletariado urbanos. Esta transformação
sócio-econômica reflete-se, politicamente, na Revolução de 1930, que quebra,
finalmente, a hegemonia política exercida pelas oligarquias agrárias. Uma nova crise do
comércio internacional (1929), criou condições para que o páis abandonasse
definitivamente o modelo agrário-exportador, ingressando num processo de
industrialização que se tornou o motor do desenvolvimento brasileiro durante quatro
décadas (1930-1970)342. A demanda por uma mão-de-obra mais qualificada para a
indústria criou a necessidade de expandir a oferta de ensino. O discurso político-
pedagógico do movimento conhecido como Escola Nova, cujo maior expoente foi o
filósofo e educador baiano Anísio Teixeira (1900-1971), traduz este momento: os
escolanovistas defendiam a escola pública laica e gratuita para todos, a fim de se
alcançar uma sociedade mais igualitária e sem privilégios. Chocaram-se frontalmente
com os interesses da Igreja, defensora de um modelo escolar tradicional, elitista e
acadêmico, que ela controlava. Esse embate ideológico se estenderá da década de 20 até
o princípio da de 60.
341 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 155. 342 FURTADO, Celso. Op. cit., pp. 39-41; SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., p. 63-64.
Um dos problemas educacionais básicos que se colocaram para a
sociedade brasileira ao longo do século XX, e que ela ainda está longe de erradicar, foi
a eliminação do analfabetismo. No Brasil, a redução da altíssima taxa de analfabetismo
somente teve início e se acelerou, de fato, com o desenvolvimento das relações
capitalistas, mais precisamente do capitalismo industrial. Por outro lado, as exigências
de uma sociedade em processo de industrialização não se esgotam apenas no terreno da
instrução básica; trata-se também de formar um número crescente de pessoas dotadas de
dimensão intelectual compatível com as exigências e a complexidade de uma sociedade
“moderna”. Ou seja, tornou-se necessário preparar também uma parcela mínima da
população para o trabalho intelectual, técnico ou burocrático, através do ensino de nível
médio e universitário.
Quanto ao ensino fundamental, o Estado brasileiro logrou implantá-lo
nas zonas mais desenvolvidas economicamente e de adiantado grau de urbanização
(justamente onde se concentram a maioria das indústrias), deixando boa parte do ensino
médio ou secundário, inclusive o técnico, assim como o universitário, entregues à
iniciativa privada, que, ao comercializá-los, estabeleceu critérios de classe para a
filtragem dos elementos capazes de passar além dos primeiros conhecimentos343. Essa
delegação de atribuições não deve ser atribuída, necessariamente, a uma falta de
vontade política ou incompetência na solução dos problemas educacionais. Ela
simplesmente obedece às conveniências dos grupos sociais dominantes, que deixam ao
Estado a tarefa de realizar os empreendimentos para os quais a iniciativa privada ainda
não reuniu o capital necessário (o que o Estado pode fazer, mediante arrecadação de
tributos). A esse respeito, Nelson Werneck Sodré tece as seguintes considerações:
Onde predominam as relaçõe capitalistas, mesmo aos que
fornecem trabalho físico, mesmo aos assalariados, é necessário
o conhecimento mínimo: ler, escrever, contar. Mas as
exigências quantitativas de trabalho físico são muito mais
numerosas do que as de trabalho intelectual, isto é, o número de
proletários é sempre muito maior do que o de trabalhadores
qualificados ou de white collar.
343 SODRÉ, Nelson Werneck. Op. cit., p. 71-72.
Assim, o esforço do Estado deveria ser muito maior,
naturalmente, em proporcionar aos capitalistas os proletários de
que estes necessitavam. [...] De outro lado, o fornecimento de
instrução passou a constituir, pela demanda crescente,
investimento de apreciáveis dimensões e de lucro certo,
disputado logo pela iniciativa privada sempre pronta a protestar
contra a estatização das atividades lucrativas, mas sempre gentil
em ceder ao Estado — até certos limites, pois o Estado é uma
empresa sua — aquelas deficitárias. Operou-se, assim, o
estrangulamento do ensino médio, comprovado pelas
estatísticas; operou-se, paradoxalmente, a deterioração desse
ensino, comprovada no baixo nível dos candidatos ao ensino
superior, alinhados nos concursos anuais de admissão.344
Somente a partir da década de 1930 são criadas e organizadas
universidades estatais, tais como a Universidade de São Paulo (USP), em 1934; e a
Universidade do Distrito Federal, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, em
1935345. O ensino profissionalizante recebe um reforço com a criação, em 1942, do
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), organizado e mantido pela
Confederação Nacional das Indústrias. Em 1946 cria-se, pelo mesmo procedimento, o
Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). Não obstante, o ensino técnico
e profissionalizante continuou a se mostrar insuficiente, devido ao pouco investimento
estatal. O analfabetismo, embora tenha se reduzido sensivelmente ao longo do século
XX, não foi erradicado.
O Brasil chegou ao século XXI sem erradicar também outros problemas
básicos, tais como o da evasão escolar, que reflete as precárias condições materiais de
vida da maioria da população. Uma das razões que levam à evasão escolar, por
exemplo, é o trabalho infantil, recurso a que muitas famílias carentes apelam para
aumentar sua renda. Embora proibido por leis (pela Constituição de 1988, pela
Consolidação das Leis do Trabalho, e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente), o
344 Id., ibid., p. 72-73. 345 Isto representa uma defasagem de quase quatro séculos em relação aos países hispânicos, os quais, já no século XVI, contavam com universidades (e não apenas escolas superiores isoladas, como as primeiras criadas no Brasil por D. João VI): a Universidade de S. Domingos foi criada em 1538; a de S. Marcos, em Lima, Peru, em 1551. Também de 1551 é a da Cidade do México. O atraso histórico de
trabalho infantil tem proliferado, segundo pesquisa realizada pela Fundação Getúlio
Vargas, justamente nas regiões mais desenvolvidas e nos períodos de maior
prosperidade econômica, quando aumentam as oportunidades de trabalho. Ainda
segundo a mesma pesquisa, a ameaça do trabalho infantil cresce também em relação
inversa à escolaridade dos pais, sobretudo da mãe: quanto menos instrução tem a mãe,
maior o risco do filho trocar a escola pelo trabalho346. Este último dado faz recordar que
educadores e pensadores tais como Rousseau, Condorcet, Pestalozzi e Rivail insistiam
na importância do papel da mãe na educação da criança, e de como seria necessário
investir na educação das futuras mães para se garantir também, indiretamente, a
educação dos filhos.
Outra questão que permanece irresolvida no Brasil, na passagem do
século XX para o XXI, é o da desigualdade racial, que, no âmbito educacional, se
manifesta através do abismo permanente que separa os níveis médios de escolaridade
dos adultos brancos e negros. Dados coligidos através da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD) de 1995 a 1999 revelaram que, desde 1930 até 1970
(quando a série se esgota, porque considera o ano de nascimento dos adultos de 30 anos
em 1999/2000), o nível de escolaridade dos dois grupos passou de cerca quatro para seis
anos entre os brancos, e de dois para quatro anos entre os negros. Portanto, a distância
entre brancos e negros segue inalterada ao longo do século XX, com uma diferença
sempre constante de dois anos de escolaridade entre eles, como linhas paralelas que
jamais se encontram347. Tal discriminação se reflete e perpetua no mercado de trabalho,
onde os afrodescendentes geralmente acabam sendo incubidos das funções menos
qualifiquadas e recebem os salários mais baixos.
A condição do professor brasileiro no começo do século XXI também é
precária: baixos salários, perda de prestígio social, falta de condições de trabalho, rotina
estressante, compõe um quadro desanimador que, segundo pesquisa realizada pela
Fiocruz, em parceria com o Sindicato Estadual dos Profissionais de Ensino do Rio de
Janeiro (Sepe) tornam os problemas psiquiátricos a principal causa de afastamento dos
nosso ensino superior pode ser considerado como mais uma herança negativa da colonização portuguesa (apud HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. cit., pp. 65-66, 85). 346 ALMEIDA, Cássia. Trabalho infantil é maior nas regiões mais ricas. O Globo, Rio de Janeiro, 4 fev. 2001, p. 33, caderno de economia; OLIVEIRA, Flávia. Crianças na ativa. O Globo, Rio de Janeiro, 21 jan. 2001, p. 30, caderno de economia. 347 OLIVEIRA, Flávia. Desigualdade racial. O Globo, Rio de Janeiro, 4 fev. 2001, p. 28, caderno de economia.
mestres das salas de aula, com 26,8% dos casos. Outro levantamento, realizado pela
Universidade de Brasília (UnB) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Educação (CNTE), chegou a resultado similar, revelando que 30% dos professores
brasileiros sofrem de exaustão emocional. A principal causa do esgotamento apontada
são os baixos salários, que força os docentes a cumprir uma carga excessiva de
trabalho348. Tudo isto revela um perfil pouco animador da situação educacional no
Brasil, em que ainda se perpetuam males que remontam à época colonial.
4.2 – A introdução do Espiritismo no Brasil
O Brasil foi um dos primeiros países nos quais a doutrina espírita
encontrou adeptos. O Espiritismo chegou à Corte imperial brasileira através de um
grupo de imigrantes e exilados franceses, dos quais freqüentemente pouco mais se
conhece além dos nomes, tais como o do professor e diretor de escola Casimir Lieutaud,
do jornalista Adolphe Hubert, e da médium psicógrafa Perret Collard, entre outros.
Destes, destaca-se o professor Lieutaud349, autor do primeiro livro de divulgação
espírita publicado no Brasil em 1860, com o título Les temps sont arrivés (Os tempos
são chegados) — ainda em francês, portanto. De início, a doutrina espírita foi divulgada
discretamente, entre os membros dos estratos mais favorecidos socialmente. Os cultos e
reuniões eram privativos e não se abriram centros, pelo menos até 1873, quando foi
fundada, no Rio de Janeiro, a Sociedade de Estudos Espiríticos Confúcius. O ano de
1875 marcou um importante momento da divulgação do Espiritismo ao público
brasileiro com a publicação da primeira edição brasileira de O Livro dos Espíritos,
traduzida integralmente por Fortúnio (pseudônimo de Dr. Joaquim Travassos)350.
348 BERTA, Rubem. Professores à beira de um ataque de nervos. O Globo, Rio de Janeiro, 5 ago. 2001, p. 26. 349 Lieutaud também alcançou no Brasil, como seu mestre Kardec, sucesso como autor de livro didático. Seu Tratado completo da conjugação dos verbos franceses, regulares e irregulares, publicado em 1859, teve boa acolhida, chegando a atingir, cem anos depois, sua 25ª edição. Era diretor de um dos mais conceituados estabelecimentos de ensino da Corte: o Colégio Francês, localizado na rua do Cano, 52, atual Sete de Setembro (apud MACHADO, Ubiratan. Os Intelectuais e o Espiritismo: de Castro Alves a Machado de Assis. 2. ed., Niterói: Lachâtre, 1997, p. 65.). 350 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Idéias sociais espíritas. São Paulo: Comenius, 1998, p. 53; MACHADO, Ubiratan. Op. cit., pp. 65-66, 71-73.
Outro importante núcleo de introdução, desenvolvimento e divulgação da
doutrina espírita no Brasil foi a cidade de Salvador, onde, desde 1865, este movimento
eclodira, sob a liderança do jornalista Luís Olímpio Teles de Meneses (1825-1893).
Como na Corte, o Espiritismo divulgou-se em Salvador, inicialmente, entre as classes
mais cultas, que liam Kardec ainda em francês. Em 1866, Teles de Meneses publicou
Filosofia espiritualista, livro composto por uma seleção de trechos, traduzidos, de O
Livro dos Espíritos351. Em 1869, Teles de Meneses realiza mais um avanço na
divulgação do Espiritismo no Brasil ao lançar a primeira revista espírita do país, O Eco
de Além-Túmulo. Além de divulgar e debater os problemas mais diretamente
relacionados com os ideais espíritas, a revista também comentava e noticiava
acontecimentos extradoutrinários. O periódico participava ativamente da Campanha
Abolicionista e reservava 10% do valor das assinaturas para um fundo destinado à
libertação de escravos do sexo feminino, de qualquer cor, de 4 a 7 anos de idade,
nascidos no Brasil352.
351 No mesmo ano de 1866 também se publicava, em São Paulo, pela Tipografia Literária, a primeira tradução integral de uma obra de Kardec: o opúsculo O espiritismo reduzido à sua mais simples expressão, sem indicação, porém, do tradutor. A primeira tradução completa de O Livro dos Espíritos só seria publicada no Rio de Janeiro em 1875, pela conceituada Livraria Garnier. Segundo Ubiratan Machado, embora a tradução tenha sido feita por um breasileiro, Joaquim Carlos Travassos, a iniciativa de sua publicação provavelmente se deve ainda ao professor Lieutaud, francês como Garnier e seu velho amigo (apud ; MACHADO, Ubiratan. Op. cit., pp.87-89, 124-125). 352 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., p. 54.
No Rio de Janeiro, o Espiritismo começa a ser mais divulgado ao público
a partir da década de 1870, depois da fundação do grupo Confúcius e da publicação da
primeira edição brasileira de O Livro dos Espíritos. Em 1876, funda-se a Sociedade de
Estudos Espíritas Deus, Cristo e Caridade, e, em 1880, aparece o chamado Grupo Sayão
e que mais tarde se integraria à FEB, sob o nome de Grupo Ismael. Em 1883 começa a
ser publicado o Reformador, “mensário religioso do Espiritismo cristão”, ainda
independente. Nesta época, os dirigentes dos grupos já sentiam a necessidade de uma
união entre as organizações espíritas, resultando assim na fundação da Federação
Espírita Brasileira (FEB), em janeiro de 1884. O Reformador tornou-se o órgão oficial
— ainda hoje é publicado, com circulação nacional — dessa instituição, que reuniu
vários grupos353. A FEB hoje congrega não apenas as federaçõe espíritas estaduais de
todo o Brasil, como também reúne em seu Conselho Federativo outros órgão espíritas,
tais como a Cruzada dos Militares Espíritas, o Instituto de Cultura Espírita do Brasil
(sediado no Rio de Janeiro) e a Associação Brasileira de Divulgadores do Espiritismo
(ABRADE).
A notória expansão da doutrina espírita atraiu não apenas os ataques da
imprensa leiga e católica, mas também a repressão policial contra seus adeptos.
Registra-se em 1881 a primeira perseguição policial contra o Espiritismo, quando foram
proibidas, no Rio, as sessões da Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade. O
regime republicano, de inspiração positivista (mas contando, para esta finalidade, com o
apoio do clero católico), deu continuidade às perseguições e o Reformador chegou a ser
publicado com atraso em 1891, devido à repressão. A polícia invadia reuniões e
penetrava até mesmo em casas de família a buscar “conspiradores” . Em dezembro de
1903 o Reformador noticiava que as perseguições estendiam-se pelo interior do Brasil.
A repressão continuou até o Estado Novo (1937-1945), quando a FEB chegou a ser
fechada por ordem de Getúlio Vargas354.
Naquele difícil momento de consolidação do movimento espírita
brasileiro, em fins do século XIX, emergiu a figura de um líder que marcaria
fortemente, inclusive, a memória popular: o médico e político cearence Adolfo Bezerra
de Meneses (1831-1900). Sempre ligado ativamente à vida pública do país, começou a
carreira como médico-cirurgião do Exército até que, tendo sido eleito vereador
353 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., p. 56-57; MACHADO, Ubiratan. Op. cit., pp. 165-167. 354 Apud COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., p. 59-60, 62-63, 71.
municipal na Corte, pelo Partido Liberal, em 1861, afastou-se da corporação para
assumir a política. Em 1867, foi eleito deputado geral, mas logo em seguida saiu
temporariamente da política para empenhar-se na construção da estrada de ferro Macaé-
Campos (RJ). Retornou anos depois à política, sendo eleito vereador em 1876,
ocupando o cargo até 1880. Neste mesmo ano, é presidente da Câmara e deputado geral
pelo Rio de Janeiro. Em 1883, várias denúncias são levantadas por ele, entre as quais: a
poluição da Baía da Guanabara; o favelamento da cidade, a falta de rigor na fiscalização
para a melhoria da qualidade da carne (defesa do consumidor) e outras. Aderindo ao
movimento abolicionista, ao redigir, como segundo signatário, o relatório de uma CPI
em 1885, denuncia a grave questão social da emancipação dos escravos, e as condições
do comércio e da indústria nacionais, etc. Nesse ínterim, ele já havia se convertido ao
Espiritismo desde 1875, a partir da leitura de um exemplar da primeira edição brasileira
d’O Livro dos Espíritos. Mas foi somente em 1886, que ele assumiu publicamente sua
condição de espírita e afastou-se definitivamente da política, dedicando-se
integralmente ao Espiritismo e ao trabalho assistencial. De 1886 a 1893, com o
pseudônimo de Max, escreve coluna dedicada à divulgação e defesa da doutrina espírita
no jornal O Paiz, periódico dirigido pelo republicano Quintino Bocaiúva, também um
discreto simpatizante do Espiritismo. Em 1894, Bezerra foi chamado para unificar o
movimento espírita e convidado para presidir a FEB, cargo que ocupou até 1900, ano de
sua morte355.
355 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., pp. 58, 61-62; MACHADO, Ubiratan. Op. cit., pp. 175-179.
Bezerra de Meneses destacou-se também, particularmente, pelo
desenvolvimento prático e teórico da mediunidade voltada para a cura de males físicos e
mentais, o que acarretou em grande aumento da popularidade do Espiritismo em um
páis onde, tanto quanto a educação, a saúde pública quase sempre foi cuidada de forma
deficiente pelo Estado356. No livro A loucura sob um novo prisma (de 1897),
considerado até hoje obra de referência pelos médicos espíritas, o Dr. Bezerra defendeu
a idéia de que muitas enfermidades mentais seriam causadas por espíritos maléficos
(obsessores) e que a cura seria a doutrinação da entidade e — aspecto fundamental do
tratamento — a reforma moral do paciente. Males físicos eram tratados com remédios
homeopáticos receitados por espíritos de médicos desencarnados. Desenvolveu, com
isso, formas de terapia praticadas largamente em todo o Brasil até hoje — e sempre a
título gratuito, sem qualquer remuneração dos médiuns, a exemplo do que era feito pelo
próprio Dr. Bezerra, que logo recebeu, por isso, a alcunha de “o médico dos pobres” 357.
356 Por outro lado, foi também esta prática ostensiva da mediunidade de cura que serviu de pretexto para o acirramento das perseguições estatais contra o Espiritismo, pois o artigo 157 do código penal de 1890 não só proibia a prática do Espiritismo mas ainda especificava a pretensão de curar “molésticas curáveis e incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública” como passível de penas de prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$ (apud COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., p. 62-63). 357 WARREN, Donald. A terapia espírita no Rio de Janeiro por volta de 1900. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, n.° 11/3, p. 56-83, dez. 1984.
Pode-se dizer que a consolidação da doutrina espírita no Brasil se
completa com a obra do médium mineiro Francisco Cândido Xavier, popularmente
conhecido como Chico Xavier. Nasceu em Pedro Leopoldo, em 2 de abril de 1910, filho
de um operário e de uma lavadeira. Órfão de mãe aos 5 anos, começou a trabalhar desde
os 9 anos de idade em uma fábrica de tecidos para ajudar no sustento da família.
Começou a atuar como médium em 1927, quando recebeu as primeiras páginas
psicografadas em uma reunião do Centro Espírita Luiz Gonzaga, sediado na casa de um
de seus irmãos. Em 1932 ganhou destaque nacional ao publicar seu primeiro livro, o
Parnaso de Além-Túmulo, coletânea de poesias psicografadas por célebres autores
brasileiros e portugueses desencarnados. Desde sua primeira página psicografada até o
final do século XX, Chico Xavier publicou cerca de 400 livros, entre romances, poesias
e mensagens de mais de 600 autores espirituais, dentre os quais Emmanuel, seu guia,
que o acompanha desde 1931. Considerado “o mais importante médium psicográfico do
Brasil”, todos os direitos autorais de seus livros são cedidos a editoras espíritas e
entidades beneficentes. Também trabalhou, ao longo de toda sua vida, em atividades
assistenciais358. Sua origem humilde e simplicidade contribuíram para torná-lo — e à
doutrina espírita que divulga —, sem dúvida, ainda mais popular.
O trabalho de Chico Xavier parece ter um continuador à altura na pessoa
do médium, filantropo e orador espírita baiano Divaldo Pereira Franco. Divaldo nasceu
em Feira de Santana em 5 de maio de 1927, de família católica e, tal como aconteceu
com Chico Xavier, a mediunidade eclodiu cedo em sua vida, já na infância, o que o
levou a se interessar pelo Espiritismo, para o qual se coverteu. Em 5 de dezembro de
1945 conhceu o espírito que seria seu principal orientador nas tarefas mediúnicas: Joana
de Ângelis, identificada como sendo a freira Joana Angélica de Jesus, que morrera
assassinada por soldados portugueses na porta de seu convento em Salvador, na Bahia,
por ocasião dos combates pela independência do Brasil. Em 1947 Divaldo fundou o
Centro Espírita Caminho da Redenção e em agosto de 1952 fundou a Mansão do
Caminho, lar de assistência e amparo às crianças órfãs que hoje atende
aproximadamente 3000 menores carentes, com assistência médica, dentária escolar e
ensino profissionalizante. Depois, sem descuidar dos trabalhos filantrópicos, Divaldo
Pereira Franco passou a percorrer o mundo como missionário, divulgando o Espiritismo
358 Almanaque Abril: quem é quem na história do Brasil. São Paulo: Abril Multimídia, 2000, p. 493.
em 52 países. Por quatro vezes foi convidado a proferir palestras na ONU, nos EUA e
em Genebra, na Suíça. Sendo também médium psicógrafo, já havia publicado, até o ano
2000, com a ajuda dos espíritos, 156 livros, alguns dos quais vertidos em 14 idiomas,
alcançando tiragens superiores a cinco milhões de exemplares vendidos359.
O Espiritismo hoje, no Brasil, é uma das doutrina religiosas que mais
crescem, recrutando seguidores em todas as camadas sociais. Segundo pesquisa
realizada em 1996/7 na região metropolitana do Rio de Janeiro, pelo Instituto de
Estudos da Religião (Iser) em conjunto com a Fundação Getúlio Vargas, os espíritas,
que eram 2,1% da população em 1991, já eram estimados em 5,9% em 1997, sendo
31,4% deles da camada social de maior poder aquisitivo. Os espíritas são também os
religiosos que apresentam o melhor nível de escolaridade (43% tem instrução
universitária)360.
O reconhecimento internacional da importância do Espiritismo como
doutrina religiosa deu-se quando, recentemente, a Organização das Nações Unidas
(ONU), na pessoa de Bawa Jain, secretário geral do Encontro Mundial pela Paz,
convidou Divaldo Pereira Franco a participar do evento, realizado entre 28 e 31 de
agosto de 2000, em Nova Iorque. A participação de Divaldo deu-se no âmbito do fórum
de líderes religiosos mundiais, no qual fez um pronunciamento pela paz, transmitido
diretamente por TV a mais de 200 milhões de telespectadores em todo o mundo361. É
mais um fato que assinala a solidez e a representatividade do movimento espírita no
Brasil ou mesmo no mundo ocidental. Sua atuação, contudo, não se resume apenas ao
aspecto religioso e assistencial, mas se traduz ainda por iniciativas pioneiras no âmbito
da educação.
4.3 – O desenvolvimento de uma pedagogia espírita no Brasil
Pode-se dizer que a Educação espírita no Brasil primeiro se iniciou nos
lares, chegando ao público primeiramente através dos centros e demais instituições para
resultar, por fim, em escolas espíritas. Anália Franco e Eurípedes Barsanulfo foram os
pioneiros, já na passagem do século XIX para o XX.
359 Divaldo Franco, cidadão da paz. Visão Espírita, Salvador, ano 2, n.° 19, p. 24-25, dez. 1999. 360 Público espírita é o mais qualificado. Visão Espírita, Salvador, ano 1, n.° 10, p. 45, jan. 1999. 361 ONU reconhece liderança religiosa em Divaldo Pereira Franco. Visão Espírita, Salvador, ano 2, n.° 23, p. 8, ago. 2000.
Nascida em Resende, Rio de Janeiro, em 1° de fevereiro de 1856, Anália
Emília Franco destacou-se como educadora, jornalista e escritora, sendo considerada
também uma das primeiras defensoras dos direitos da mulher no Brasil, lutando pela
emancipação intelectual feminina e pelo ensino às camadas mais pobres. Primeiro
trabalhou com sua mãe durante algum tempo como professora primária. Cursou o
Normal em São Paulo e diplomou-se em 1878362. Tomando conhecimento de que,
devido à promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, muitas crianças negras estavam
pura e simplesmente sendo expulsas das fazendas e que os recém-nascidos de escravas
estavam sendo abandonados e entregues à “roda” da Santa Casa de Misericórdia, ela
decidiu fazer alguma coisa. Fazendo um apelo às pessoas de melhor posição social no
interior da província de São Paulo, particularmente às mulheres dos fazendeiros, Anália
Franco solicitou colaboração para socorrer essas crianças necessitadas, pois pretendia
transferir-se da capital (São Paulo) para o interior a fim de realizar essa tarefa.
Ofereceram-lhe uma casa para instalar uma escola primária, mas com a condição de que
segregasse as crianças negras das brancas, o que fez Anália recusar a gratuidade do uso
do imóvel, pagando o aluguel com seu próprio salário, o que representaria 50% dos seus
ganhos. A casa tornou-se, no dizer dos representantes da oligarquia escravocrata, um
“albergue de negrinhos” e procuraram, então, remover a professora de lá, que instalou-
se em outro imóvel e ganhou logo a seguir o apoio dos abolicionistas para sua causa.
Nascia então, na cidade de Taubaté, em 1887, a primeira “Casa Maternal” de Anália
Franco363.
Anália Franco iniciou sua militância pedagógica, portanto, atacando um
dos problemas educacionais — para não dizer sociais — mais graves do Brasil: o da
quase absoluta carência de instrução para os afrodescendentes, os quais, após a abolição
da escravatura, foram pura e simplesmente dispensados ou expulsos das fazendas, sem
receber nenhum auxílio, nenhuma educação ou ensino profissionalizante e acabaram por
inchar a periferia das grandes cidades, empregados como mão-de-obra barata e
desqualificada.
Tendo criado várias escolas maternais no interior de São Paulo, Anália
Franco retornou para a capital a fim de militar pela instrução das camadas sociais menos
362 Parece haver controvérsia quanto a esta data. Enquanto Cleusa Beraldi Colombo aponta o ano de 1878 (Op. cit., p. 66.), a biografia de Anália Franco publicada no site do GEAE (Grupo de Estudos Avançados Espíritas, cujo endereço na web é http://www.geae.org/) ela teria se diplomado “anteriormente a 1875”.
favorecidas e, particularmente, das mulheres. Funda então uma revista destinada a
difundir e defender suas idéias progressistas, intitulada Álbum das Meninas – Revista
literária e educativa dedicada às jovens brasileiras, cujo primeiro número aparece em
30 de abril de 1898. Em 1901, auxiliada por senhoras paulistanas, funda um instituto
educacional, a Associação Feminina Beneficente e Instrutiva de São Paulo, destinado a
instruir e amparar crianças carentes e mães desamparadas. O trabalho da associação
fundada por Anália Franco desdobrou-se em várias instituições subsidiárias, espalhadas
pela capital e interior do estado de São Paulo364.
À testa da associação, Anália criou várias “Escolas Maternais” e
“Escolas Elementares”, instalando, com inauguração solene a 25 de janeiro de 1902, o
“Liceu Feminino”, que tinha por finalidade instruir e preparar professoras para a direção
daquelas escolas, com o curso de dois anos para as professoras de “Escolas Maternais”
e de três anos para as “Escolas Elementares”. Também publicou opúsculos e tratados
pedagógicos sobre a educação infantil, nos quais orientava as professoras a desenvolver
tanto as faculdades afetivas e morais das crianças quanto as intelectuais. Destaca-se o
opúsculo O Novo Manual Educativo, voltado não só para a educação da infância, mas
também para a adolescência e juventude. Em 1° de dezembro de 1903 começou a
publicar também A Voz Maternal, revista mensal com apreciável tiragem, para a época,
de 6000 exemplares, impressos em oficinas próprias. A Associação Feminina mantinha,
dois bazares em São Paulo, capital, para a venda dos artefatos produzidos em suas
oficinas, a fim de contribui para o sustento de seus projetos sociais e pedagógicos:
Escolas Reunidas na Capital e Escolas Isoladas no interior de São Paulo, bibliotecas
anexas às escolas e escolas profissionalizantes (com cursos de Arte Tipográfica, Curso
de Escrituração Mercantil, Prática de Enfermagem e Arte Dentária, Línguas — francês,
italiano, inglês e alemão — , Música, Desenho, Pintura, Pedagogia Costura, Bordados,
Flores artificiais e Chapéus)365.
Em 1911, Anália Franco adquiriu ainda a Chácara Paraíso, com 75
alqueires de terra, parte em matas e capoeiras e o restante ocupado por benfeitorias
várias, entre as quais um velho solar, anteriormente ocupado por uma das mais notáveis
figuras da história do Brasil, Diogo Antônio Feijó. Nessa chácara Anália fundou a
363 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., p. 66. 364 Id., ibid., p. 67-68. 365 Internet: http://www.geae.org/ , página do Grupo de Estudos Avançados Espíritas (GEAE), 2001.
“Colônia Regeneradora D. Romualdo”, adaptando o casarão, a estrebaria e a antiga
senzala, para ali internar, sob direção feminina, os garotos mais aptos à lavoura, a
horticultura e outras atividades agropastoris, recolhendo ainda moças “desviadas”,
conseguindo assim recuperar centenas de mulheres366.
Anália Franco morreu em São Paulo, no dia 13 de janeiro de 1919,
precisamente quando havia tomado a deliberação de ir ao Rio de Janeiro fundar mais
uma instituição, idéia essa concretizada posteriormente por seu esposo, Francisco
Antônio Bastos, que ali fundou o Asilo Anália Franco. A vasta obra de Anália Franco e
da Associação Feminina Beneficente consistiu em 71 escolas, 2 albergues, 1 colônia
regeneradora para mulheres, 23 asilos para crianças órfãs, 1 banda musical feminina, 1
orquestra, 1 grupo dramático, além de oficinas para manufatura de chapéus, flores
artificiais, etc., em 24 cidades do interior do estado de São Paulo e capital367. Os
desdobramentos posteriores de sua obra são difíceis de mensurar, pois seu exemplo foi
seguido em todo o Brasil por grupos espíritas que criaram também asilos e instituições
voltadas para a educação, inclusive profissionalizante, de crianças e jovens carentes.
Outro grande expoente da pedagogia espírita no Brasil foi o professor
Eurípedes Barsanulfo. Nasceu em 1° de maio de 1880, em Sacramento, Minas Gerais,
de pais católicos. Fundou, em janeiro de 1902, com a colaboração de outro professor,
João Durwil de Miranda, o Liceu Sacramentano. Menos de cinco anos depois, ao
assumir publicamente sua conversão ao Espiritismo, é obrigado a fechar o Liceu, pois a
população local passou a considerá-lo louco e a discriminá-lo. Seus companheiros de
magistério o abandonaram e o prédio onde funcionava o Liceu foi requisitado pelos
proprietários. Sem desanimar, Eurípedes decide aplicar no plano educacional a
orientação de Kardec e, no dia 31 de janeiro de 1907 funda o Colégio Allan Kardec,
considerado o primeiro educandário espírita do mundo368. Funcionavam ali cursos de
grau elementar e médio. Antigos alunos do Liceu Sacramentano se matricularam no
novo colégio, chegando a totalizar 200 estudantes nessa época369.
366 Ibid. Note-se, a propósito, a semelhança desse projeto de Anália Franco com o que Pestalozzi tentou implantar em Neuhof, entre 1774 e 1780. 367 Ibid. 368 A proposta de Eurípedes parece diferir da de Anália Franco num aspecto: enquanto as instituições criadas por esta última tinham o propósito de fornecer educação a crianças e jovens carentes, como parte de um serviço de assistência social, Eurípedes fundara um colégio voltado especificamente para o ensino regular, pago (ainda que concedendo bolsas a alunos carentes). 369 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., p. 68-69.
A pedagogia que Eurípedes adotava no colégio tinha muitos aspectos que
remontavam ao método pestalozziano. Como o próprio professor Rivail havia
recomendado em 1828, Eurípedes aboliu a palmatória e inaugurou no Brasil a era do
entendimento e do diálogo. O aluno era respeitado e valorizado pelos dotes naturais de
que era portador em potencial, pois o mestre reconhecia neles as faculdades racionais,
percepções, idéias e hábitos — que poderiam trazer como herança, inclusive, de
reencarnações passadas, conforme a visão espiríta adotada por Eurípides. Isto tinha por
resultado o estreitamento de relações entre o professor e seus discípulos, criando com
eles laços de mútua confiança. Enquanto as diretrizes oficiais mantinham horários
específicos para alunos do sexo masculino e feminino, segregando-os, Eurípedes criou
em Sacramento o sistema de classes mistas. Além de valorizar o ensino das ciências,
inclusive o da Astronomia, pela qual Eurípedes parecia ter uma estima particular, eram
ministradas também aulas de Educação Física e teatro. Às quartas-feiras, reservava-se
horário para o estudo da Doutrina Espírita370.
Eurípedes Barsanulfo se destacou ainda pela sua atuação como médium,
particularmente no setor do chamado “receituário mediúnico”, prática pela qual são
receitados aos doentes, com o auxílio de médicos desencarnados, remédios geralmente
homeopáticos ou fitoterápicos. Eurípedes faleceu em Sacramento em 1918, em
conseqüência da gripe espanhola. Muitos de seus ex-alunos prosseguiram trabalhando,
ao longo do século XX, em prol do Espiritismo. Corina Novelino, uma de suas mais
destacadas alunas, dirigiu o Colégio Allan Kardec até 1973371. A instituição funciona
até hoje.
É necessário destacar, ainda, o trabalho desenvolvido pelo médico Tomás
Novelino (1901-2000), irmão de Corina Novelino e discípulo de Anália Franco e
Eurípedes Barsanulfo (estudou em escolas de ambos os mestres) e de sua esposa, a
professora Maria Aparecida Rabelo Novelino. O trabalho de ambos, pelas sua
amplitude, merece um exame um pouco mais detalhado. Em 1945, fundaram em Franca,
interior do estado de São Paulo, um educandário que recebeu o nome de Pestalozzi, em
homenagem ao mestre de Kardec. A idéia surgiu após terem assistido a um lamentável
incidente de discriminação religiosa, infelizmente ainda muito comum no Brasil, nas
primeiras décadas do século XX: um aluno espírita fora expulso de uma escola local
370 Id., ibid. 371 Ibid., p. 69-70.
devido à sua opção religiosa. Assim, em 1944, o casal iniciou a instalação de uma
escola onde funcionariam cursos de Pré-Primário, Alfabetização de adultos e Admissão
ao Ginásio. Em 1945 criaram a Fundação Educandário Pestalozzi, incorporando a
escola. Utilizando recursos próprios, provenientes da venda da casa em que moravam, e
organizando uma sociedade por cotas, com a colaboração de pessoas de Franca e outras
localidades, conseguiram dar maior amplitude ao seu trabalho, adquirindo um terreno
no qual inciaram a construção de um grande educandário. Em 1949, com o prédio ainda
em construção, para lá se dirigiram com os filhos e deram início ao curso Ginasial. Em
1954 criaram um internato, iniciando o atendimento para os órfãos e alunos carentes.
Desde o começo, a escola também acolheu, em regime de externato, filhos de pais
espíritas que se sentiam hostilizados pelas escolas locais372.
No ano de 1955, sentindo a necessidade de iniciar alguma atividade
produtiva no sentido de conseguirem recursos para a manutenção dos serviços
assistenciais, adquiriram uma pequena fábrica de calçados infantis de marca
“Narizinho”, onde os próprios jovens e o fundador, junto com colaboradores,
trabalhavam para a fabricação e comercialização dos calçados. A idéia era, na verdade,
tanto a de profissionalizar os adolescentes que saíam do internato quanto auferir algum
lucro para sustentar o educandário. Tratava-se, afinal, da mesma proposta
experimentada por Pestalozzi em Neuhof. Mas, como no caso de Pestalozzi, a idéia não
foi bem sucedida, pois ficou demonstrado que a produtividade requerida para uma
fábrica obeter lucro não era compatível com o aprendizado profissionalizante dos
adolescentes. Assim, a partir de 1960 contrataram-se operários, e a fábrica de sapatos
(com a marca “Pestalozzi”) e o educandário foram crescendo paralelamente, resultando
sua fusão na Fundação Pestalozzi. O lucro da fábrica era todo aplicado na educação e os
operários tinham também escola gratuita para os filhos373.
Em 1964 o internato foi desfeito, transformando-se na primeira unidade
do Lar-Escola, para que as crianças não perdessem o vínculo com suas famílias.
Crianças carentes, na faixa etária de 4 a 14 anos, de ambos os sexos, eram atendidas em
período integral, dentro de suas necessidades de instrução, saúde, alimentação,
educação moral, lazer e transporte, retornando a seus lares no final do dia. Em 1982 foi
372 INCONTRI, Dora. Pestalozzi: educação e ética. São Paulo: Scipione, 1997, p. 137; COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., p. 75; internet: http://www.pestalozzi.com.br/histórico.html, página da Fundação Educandário Pestalozzi, 2001.
inaugurada a Unidade II, segunda unidade escolar, localizada na vila Santa Helena,
bairro de Franca, abrindo cursos de Educação Infantil e Primeiro Grau, instalando ainda
um segundo Lar-Escola. Em 1983, inaugura-se a Unidade III, terceira unidade escolar,
localizada no bairro City Petrópolis, mantendo o mesmo funcionamento das outras duas
unidades, Escola e Lar-Escola. Nesse ano de 1983 somavam-se 750 crianças carentes
atendidas nas três unidades em regime de Lar-Escola. Também recebiam bolsas de
estudo integral todos os alunos então matriculados na Pré-Escola e no Ensino de 1°
Grau nas três unidades de atendimento. Para os funcionários e professores da Fundação
Educandário Pestalozzi e seus filhos, oferecia-se bolsa integral em todos os cursos
mantidos nas Escolas Pestalozzi: 1° e 2° graus (Colegial, Técnico em Contabilidade e
Magistério). Cada unidade possuía lavanderia, refeitórios, oficinas de costura (onde
eram confeccionadas as roupas dos alunos), salão de preces, teatro. Na unidade mais
antiga havia laboratórios, conservatório musical e ensino profissionalizante de
contabilidade374.
Esse quadro manteve-se estável até 1990, quando uma forte crise
financeira atingiu a Fábrica de Calçados Pestalozzi, maior fonte de recursos desse
trabalho e houve a necessidade de algumas medidas de economia, reduzindo o trabalho
desenvolvido. Optou-se então pela desativação provisória do Lar-Escola da Unidade I
em janeiro de 1991, sendo as crianças atendidas transferidas para as outras duas
unidades de atendimento, reduzindo-se o número de atendimento para 500 crianças;
conservou-se o oferecimento de bolsas de estudo apenas para alunos carentes dos cursos
de Educação Infantil e 1° Grau (1ª a 4ª séries) incluídos os filhos de professores e
funcionários das unidades. Os filhos de funcionários da fábrica permaneceram com 20%
de desconto no valor das mensalidades. Em dezembro de 1991, devido à continuidade e
agravamento da crise financeira foi necessária a desativação também do Lar-Escola da
Unidade de City Petrópolis, e encerraram-se as atividades da Fábrica de Calçados
Pestalozzi. Em 1999, no antigo prédio da fábrica de calçados, após reforma para
adaptação, foi instalado o Centro Esportivo, Cultural e Artístico Pestalozzi – CECAP,
inaugurado em 20 de maio de 1999375.
373 INCONTRI, Dora. Op. cit., p. 137; http://www.pestalozzi.com.br/histórico.html . 374 INCONTRI, Dora. Op. cit., p. 138; internet: http://www.pestalozzi.com.br/histórico.html. 375 Informações fornecidas pelo site da Fundação Educandário Pestalozzi (endereço: http://www.pestalozzi.com.br/histórico.html).
Atualmente, permanece em funcionamento a Escola Pestalozzi – Unidade
I, com os seguintes cursos diurnos: Educação Infantil (Prés I, II e III); Ensino
Fundamental; Ensino Médio; os cursos noturnos de Ensino Médio e Magistério; e a
Escola Pestalozzi – Unidade II, com cursos de Educação Infantil (Prés I, II e III) e
Ensino Fundamental, mantendo ainda o Lar-Escola que atende 250 crianças,
compreendidas na faixa etária de 4 a 12 anos, de ambos os sexos, em regime de tempo
integral, nas seguintes áreas de assistência: educação (cursos regulares de Educação
Infantil e Ensino Fundamental de 1ª a 4ª séries), saúde (atendimento médico e
odontológico), alimentação (quatro refeições diárias), lazer, educação moral, transporte,
Coral Bate-Boca e Banda Musical, Educação Física, Educação Artística e musical
desenvolvidos no Centro Esportivo, Cultural e Artístico Pestalozzi (CECAP),
juntamente com os alunos regularmente matriculados nas Escolas Pestalozzi. A arte
musical também tem seu espaço nessa organização, pelo trabalho realizado desde 1970
pela Escola Técnica Musical Pestalozzi, que vem desde então formando técnicos em
diferentes áreas da música, funcionando atualmente no CECAP376.
Tomá Novelino e sua esposa, falecida em dezembro de 1990, lograram,
portanto, transformar em realidade as propostas de toda uma corrente de educadores
espiritualistas: Eurípedes Barsanulfo, Anália Franco, Allan Kardec e Pestalozzi. Seu
trabalho é hoje conhecido internacionalmente: em 1996 a Fundação Pestalozzi foi
focalizada num documentário produzido pela televisão suíça e dirigido por Tobias
Wyss, sobre a influência de Pestalozzi e seus discípulos no mundo377.
376 Ibid. 377 INCONTRI, Dora. Op. cit., p. 138.
Enquanto Tomás e Maria Aparecida Novelino concretizavam as idéias
dos primeiros educadores espíritas, surgia também a preocupação com a sistematização
de uma Pedagogia espírita no Brasil. Em 1949, em São Paulo, foi realizado o Primeiro
Congresso Educacional Espírita Paulista, convocado pela USE (União das Sociedades
Espíritas do Estado de São Paulo, entidade que congrega o movimento espírita do
Estado de São Paulo, fundada em 1947 e adesa à FEB). O resultado concreto dos
debates ali havidos foi a criação do Instituto Espírita de Educação em São Paulo, com
sede própria, à R. Guarará, 140. Em 1951, no Segundo Congresso, foi realizada sua
instalação e determinou-se também a fundação do Instituto Educacional Espírita
Metropolitano, dedicado aos estudos e pesquisas pedagógicas378.
Vários encontros foram promovidos após esses congressos. Merece
destaque a I Convenção Espírita de Defesa da Escola Pública, reunida em São Paulo,
capital, de 11 a 16 de julho de 1960, apoiada e integrada pelos órgãos de máxima
representação do movimento espírita estadual. Desse encontro resultou documento — a
Declaração Espírita de Princípios Educacionais — do qual devem ser assinalados os
seguintes princípios básicos, referentes à educação pública:
1. Ensino livre, gratuito e leigo para toda a população, através de escola pública,
mantida pelo Estado.
2. Liberdade para a iniciativa particular no ensino supletivo, em todos os graus, desde
que respeitados os princípios democráticos e o caráter leigo do ensino público.
3. Exclusão do ensino religioso facultativo nas escolas públicas e particulares, por
constituir fonte de discriminação e injustiças.
4. Formação moral no ensino leigo, como supletivo da familiar, através de normas
éticas de ordem geral e de educação cívica elevada.
5. Ensino de religião como matéria filosófica, nos cursos médio e superior, sem
qualquer tendência sectária ou particularista.
6. Instituição de penalidades legais para qualquer forma de discriminação nas escolas
públicas e particulares, inclusive as decorrentes da posição civil dos pais.
7. Combate à evasão escolar no curso primário, assegurando-se a sua extensão a toda a
população em idade escolar.
378 COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., p. 74-75.
8. Instituição de medidas efetivas de aproveitamento vocacional, a partir do curso
primário, superando-se com os recursos do Estado, os prejuízos decorrentes dos
desníveis econômico-sociais, no aproveitamento de aptidões especiais.
9. Incentivo do ensino técnico, agrícola e da pesquisa científica, através de
planejamento adequado e da instalação de escolas primárias, médias e superiores
especializadas em todo o país.
10. Aplicação rigorosa das verbas públicas na manutenção, desenvolvimento e
aprimoramento do ensino público, sem qualquer desvio de recursos para a escola
particular ou outras finalidades379.
Finalmente, resta assinalar também a criação em 1957, no Rio de Janeiro,
do Instituto de Cultura Espírita do Brasil. Seu objetivo é estudar e difundir a Doutrina
Espírita em todos os seus aspectos. O objeto básico de todos os seus cursos, como não
poderia deixar de ser, é o Espiritismo, em que se procura estabelecer relações com a
Psicologia, a História das Religiões, Literatura e outros campos do conhecimento
humano. Este instituto, hoje adeso à Federação Espírita Brasileira, é considerado de
utilidade pública no âmbito estadual, devido aos seus serviços culturais prestados
gratuitamente à população380.
A educação é, para os espíritas, portanto, o mais poderoso fator do
progresso individual e social, mas para ser completa, integral, deve levar em
consideração não só o aspecto intelectual, mas também o afetivo e o moral; não apenas
o físico, mas também o espiritual. No Brasil, os espíritas aplicaram este princípio básico
conscienciosamente, investindo não só na pregação religiosa, mas também na instrução
e no atendimento de carências materiais — saúde, alimentação — e mesmo afetivas—
carinho, atenção, consideração — básicas, de que a população brasileira tem estado
necessitada há séculos. Isto explica boa parte do sucesso desta doutrina no Brasil.
379 Apud: COLOMBO, Cleusa Beraldi. Op. cit., p. 132-133. 380 Id., ibid., p. 75-76.
CONCLUSÃO
“Com efeito, o problema intelectual se une estritamente ao
problema moral. [...] É necessário ensinar o homem a respeitar
a si mesmo, a salvaguardar sua própria dignidade, pois,
valorizando o nível moral, trabalha-se ao mesmo tempo para
resolver todos os problemas difíceis do momento atual.”
DENIS, Léon. Socialismo e Espiritismo (1924).381
A visão pedagógica desenvolvida pelo professor francês Hippolyte Léon
Denizard Rivail, divulgada em 1828 no seu Plano proposto para a melhoria da
Educação Pública, pode ser considerada a síntese de todo um legado pedagógico
europeu que remonta, pelo menos, aos mais ilustres educadores do século XVII, tais
como Ratke, Francke, Comenius e Fénelon, passando ainda pela obra inovadora de
Rousseau e de Pestalozzi.
Não há coincidência no fato de que quase todos os pedagogos mais
influentes dos séculos XVII ao XIX tenham sido protestantes (dos supracitados,
somente Fénelon era católico), pois eles representavam, no campo educacional, as
aspirações de uma classe social ascendente, a burguesia, para a qual o ensino humanista
e verboso das escolas católicas não tinha mais utilidade. Não interessava à burguesia a
história dos santos e a retórica ali ensinados, mas sim o estudo e pesquisa da matemática
e das ciências, que lhes serviriam de base para o desenvolvimento de tecnologias
lucrativas. De nada adiantava à burguesia saber falar o latim e o grego, pois o que ela
necessitava era aprender os idiomas modernos, que facilitariam o intercâmbio comercial
e científico entre as nações. Esta necessidade foi atendida, já a partir do século XVII
pelos chamados pedagogos realistas, que propunham um ensino “moderno”, que
incluísse as disciplinas que interessavam à burguesia.
Por outro lado, o Estado moderno, que se tornava cada vez mais
complexo à medida que a sociedade e a economia se desenvolviam, necessitava formar
quadros mais bem preparados para sua administração. Os governantes passaram a
381 DENIS, Léon. Socialismo e Espiritismo. Rio de Janeiro: CELD, 1998, p. 144.
exigir, também, cidadãos que fossem mais fiéis à “pátria” (idéia que ganha contornos
mais nítidos após a Revolução Francesa de 1789) do que à Igreja Católica Apostólica
Romana, a qual, sendo uma organização de âmbito mundial, tendia a ministrar uma
educação pouco propícia à formação de um sentimento nacionalista. As igrejas
protestantes, fundadas com o apoio tanto da burguesia quanto dos governantes do norte
da Europa, não hesitaram em criar uma educação capaz de formar, além do cristão,
também o patriota.
Assim, enquanto a Igreja Católica não conseguia se desvencilhar das
antigas tradições dos tempos medievais, que somente serviam a sociedades de economia
agropastoril e baixo desenvolvimento tecnológico, educadores de origem protestante
como Rousseau e Pestalozzi sentiam-se mais à vontade para acompanhar as mudanças
econômicas, sociais, políticas e científicas de sua época e elaborar uma pedagogia mais
adequada para estas novas condições. A educação recebida em Yverdon pelo jovem
Rivail, daquele que era considerado o maior educador de sua época, Pestalozzi, estava
bem enquadrada neste perfil pedagógico.
Foi graças à formação recebida em Yverdon que o professor Rivail teve
discernimento para detectar as deficiências educacionais de seu país, e pôde, por
exemplo, afirmar que o enfadonho ensino do latim e da literatura clássica não mais se
adequavam às necessidades daquele momento histórico. Sua defesa de um maior
investimento no estudo das disciplinas científicas e da matemática nas escolas pode
parecer muito óbvia hoje, mas, na época em que foi escrita, ainda era considerada uma
inovação. Também sua crítica às punições físicas, aplicadas com freqüência nas escolas
durante o século XIX, era avançada para a época. Por outro lado, sua crítica às turmas
demasiadamente grandes, que entupiam as salas de aulas dos colégios estatais de seu
tempo, continua, infelizmente, muito atual — os professores brasileiros tem hoje muito
o que dizer, também, a esse respeito. Finalmente, chega quase a parecer uma profecia a
recomendação feita pelo jovem Rivail, em 1828, de se estudar, além do inglês, do
francês e do alemão, também o espanhol, idioma que ele previu que se tornaria muito
importante no futuro. Como muitos educadores de seu tempo, o jovem Rivail defendia
uma nova educação, voltada para a formação dos homens e mulheres que viveriam na
nova ordem social criada pela Revolução Industrial e pela Revolução Francesa, e na
qual já se podiam vislumbrar alguns traços do mundo globalizado do terceiro milênio.
Três décadas depois, quando passou a se dedicar à codificação e
divulgação do Espiritismo, agora sob o pseudônimo de Allan Kardec, o professor Rivail
aplicou seus princípios pedagógicos a uma visão de mundo ainda mais abrangente.
Ainda que acompanhasse os educadores e moralistas de seu tempo, reivindicando uma
“educação moral” mais apropriada para a formação dos trabalhadores da nova economia
industrial que então se consolidava, ele logrou transcender os condicionamentos
históricos de sua época, legando uma verdadeira Pedagogia do espírito, que continua
cativando pessoas em todo o mundo ocidental, mesmo aquelas que nunca ouviram falar
em Allan Kardec, mas que acreditam na imortalidade da alma e na reencarnação, idéias
que se tornaram quase um senso comum na cultura popular e moeda corrente nos meios
de comunicação de massa.
Partindo do pressuposto de que o ser humano é mais do que um corpo,
Kardec também proporcionou condições para superar a visão economicista — que ele
mesmo, provavelmente, chamaria de “materialista” — da educação, pois não basta
qualificar o estudante profissionalmente com o objetivo de torná-lo um trabalhador
eficiente e produtivo (ainda que os espíritas brasileiros nunca deixem de atender este
aspecto em suas instituições educacionais): é preciso também que ele adquira outros
valores, além dos econômicos, pois estes são apenas meios, e não fins em si mesmos. É
preciso, enfim, valorizar o ser humano.
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ANEXOS
ÍNDICE
Dedicatória iii
Agradecimentos iv
Resumo v
Metodologia vi
Introdução 9
Capítulo I – O contexto histórico 12
1.1. – Um modelo a ser superado: o Antigo Regime
15
1.1.1 – O papel da Igreja na educação 22
1.2 – O impacto da Reforma protestante na educação 31
1.3 – O impacto das revoluções de 1789-1848 37
Capítulo II – O surgimento da pedagogia moderna 56
2.1 – Comenius 58
2.2 – Rousseau 64
2.3 – Pestalozzi 75
Capítulo III – Rivail e a educação 85
3.1. – O Plano proposto para a melhoria da Educação Pública 89
3.1.1 – Conceito de educação 89
3.1.2 – Inatismo 90
3.1.3 – Fim das punições físicas 92
3.1.4 – Valorização do estudo das ciências 93
3.1.5 – Valorização do estudo das línguas modernas 96
3.1.6 – Contra as classes demasiadamente grandes 96
3.1.7 – Criação de uma escola de pedagogia 97
3.1.8 – Educação feminina 99
3.1.9 – Sobre a interferência estatal no ensino 101
3.2 – O Espiritismo e a educação do trabalhador 102
3.3 – Léon Denis e a escola laica 113
Capítulo IV – A pedagogia espírita no contexto brasileiro 120
4.1 – O contexto brasileiro 121
4.2 – A introdução do Espiritismo no Brasil 129
4.3 – O desenvolvimento de uma pedagogia espírita no Brasil 134
Conclusão 144
Bibliografia 147
Anexos 151
Folha de Avaliação 154
FOLHA DE AVALIAÇÃO
UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
Instituto de Pesquisas Sócio-Pedagógicas
Pós-Graduação Latu Sensu
Título da Monografia
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Data da Entrega:__________________________________________________
Avaliado por: __________________________________ Grau
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Rio de Janeiro, ____ de ____________ de 20____
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Coordenador do Curso