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A EDUCAÇÃO DO CAIPIRA: SUA ORIGEM E FORMAÇÃO

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  • Educ. Soc., Campinas, v. 32, n. 115, p. 489-506, abr.-jun. 2011Disponvel em

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    A EDUCAO DO CAIPIRA: SUA ORIGEM E FORMAO

    J T C

    RESUMO: Este texto busca compreender como se originou e se compe o currculo que durante sculos foi utilizado pelos caipiras para transmitir sua cultura. Procuro mostrar que esse processo educativo se realizava por meio do trabalho cotidiano, da religiosidade e da solidariedade grupal. E tambm o impacto que o xodo rural vem causando nesse tipo de cultura. Este estudo uma pesquisa qualitativa, com um estudo de caso etnogr co, com um olhar holstico, numa perspectiva crtica e descritiva. Desenvolvi as anlises durante a investigao em teorizaes progressivas, num processo interativo com a coleta de dados. A concluso procura mostrar o impacto do xodo rural e da escola na cultura caipira, assim como as consequncias das atuais polticas educacionais no meio rural.

    Palavras-chave: Cultura caipira. Currculo educacional informal.

    T :

    ABSTRACT: This text a empts to understand the curriculum that, for cen-turies, has allowed caipiras to transmit their culture. It tries to show that this educational process involved daily work, religiosity and group solidarity. It is a critical qualitative research that brings forward an ethnographic case from a holistic perspective. Analyses were progressive theorizations devel-oped during the research, in interaction with eldwork. In its conclusion, this paper highlights the impact of rural migration and school on the caipira culture and as well as of the consequences of the current education policies in rural areas.

    Key words: Caipira culture. Informal curriculum.

    L :

    RSUM: Ce texte cherche comprendre comment a surgi et sest compos le cursus qui, pendant sicles, a t utilis par les caipiras (paysans) pour transme re leur culture. Il entend montrer que ce processus ducatif passait par le travail quotidien, la religiosit et la solidarit de groupe. Il examine galement le et de lexode rural sur ce type de culture. Dans une perspec-tive critique et descriptive, ce e recherche qualitative porte un regard holis-tique sur un cas ethnographique. Les analyses ont t ralises pendant la

    * Doutor em Educao, professor e pesquisador no Instituto Bsico de Humanidades da Uni-versidade de Taubat (). E-mail: [email protected]

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    recherche, par thorisations progressistes, en un processus dinteraction avec la collecte de donnes. La conclusion cherche montrer les consquences de lexode rural et de lcole sur la culture caipira, ainsi que les rsultats des poli-tiques dducation actuelles en milieu rural.

    Mots-cls: Culture paysanne. Cursus o cieux.

    Procurando caminhos

    No Alto Paraba, sub-regio do Vale do Paraba paulista, que ca entre os contrafortes da Serra do Quebra-Cangalha e o alto da Serra do Mar, ainda se encontra um modo de vida diferente. Compreende cinco municpios que, juntos, tm menos de 50 mil habitantes. Ali ainda existem diversas manifes-taes culturais que se originaram no perodo da colonizao. Sobrevivem festas ancoradas no devocionrio popular, comidas tpicas e outros costumes que h cerca de 100 anos eram muito comuns por todo o Estado de So Paulo, mas que, em razo de diversos fatores, atualmente so muito raros ou at mesmo acabaram desapare-cendo. Brando (1983) a rma que no Alto Paraba est o ltimo bolso de um modo de viver tipicamente paulista, que cou conhecido como cultura caipira.

    Esta pesquisa busca a compreenso da maneira pela qual os portadores da cultura caipira transmitem as representaes de seu imaginrio e o signi cado de seus valores e das tradies acumuladas ao longo dos sculos. Procura tambm com-preender o porqu de esses instrumentos culturais serem relevantes para os proces-sos de socializao e adaptao ao meio em que vivem. De que maneira um grupo social que durante tanto tempo viveu praticamente sem contato com material escrito pode conservar tantos instrumentos? Como foi composto seu quadro curricular para transmitir esses saberes ao longo de todos esses anos? E como essa educao informal ainda sobrevive?

    Alguns caminhos me pareceram mais adequados para compreender como ocorre esse processo educativo. Escolhi a abordagem qualitativa, para a compre-enso do signi cado manifesto e latente dos comportamentos estudados. Consi-derando que o objeto deste trabalho so as inter-relaes da cultura e da educao dos caipiras, classi co esta investigao como um estudo de caso etnogr co (An-dr, 1995). Procurei, assim, dar pesquisa um carter interdisciplinar, com dados da memria, histricos, sociolgicos e antropolgicos, ancorados em um enfoque educacional. O trabalho baseou-se em pesquisas bibliogr cas e de campo. Para realiz-lo escolhi a rea territorial do municpio de So Lus do Paraitinga. Alm de se situar no centro geogr co do Alto Paraba, apresenta diversos aspectos da cul-tura caipira no comportamento de muitos de seus moradores. A povoao foi fun-dada em 1769, pelo sargento-mor (major) Manoel Antnio de Carvalho, a mando

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    do capito-general (governador) da Capitania de So Paulo, Lus Antnio de Sousa Botelho Mouro, o Morgado de Matheus.

    Alis, Holbwachs (2004) acredita que nas cidades menores, um pouco afas-tadas das grandes correntes, que a vida ainda regulada e ritmada como o era h um ou dois sculos. Ali as tradies so mais estveis. Segundo ele, enquanto o gru-po social evolui, a cidade, em seu aspecto exterior, muda mais lentamente. Assim, os hbitos locais resistem s foras que tendem a transform-los e essa resistncia permite perceber melhor at onde a memria coletiva tem um ponto de apoio.

    Escolhi como sujeitos deste estudo dez pessoas sete homens e trs mulheres com idades entre 70 e 90 anos, moradoras em trs bairros e que sempre residiram na zona rural. Preferi as pessoas mais idosas dos bairros pois, de acordo com outros habitantes desses lugares, elas conservam boa parte das tradies da cultura caipira, tendo amplo conhecimento do contexto estudado.

    A formao da cultura

    Foi da Vila de So Paulo que, em 1645, partiu o bandeirante Jacques Flix para fundar Taubat, a primeira povoao da regio (Holanda, 2000; Ortiz, 1988). J no nal do sculo, havia tambm as vilas de Guaratinguet e Jacare. Embora fossem apenas trs povoaes, era a regio paulista mais povoada (Prado Jnior, 1999; Trin-dade, 1977).

    Faoro (2000) a rma que, ao dar organizao poltica para uma vila, a autorida-de real portuguesa no visava legalizar uma organizao social j existente como re-sultado de uma povoao. Ao contrrio, a vila s passava a existir o cialmente depois de autorizada. Foi o caso de So Lus do Paraitinga. Na poca de sua fundao o cial, em 1769, j moravam no local cerca de 50 famlias e havia uma igreja, (Azevedo Mar-ques, 1980). Antes dessa autorizao o cial, o local era considerado no existente.

    Os sculos , e representaram o estabelecimento do poder real e da expanso territorial paulista, e tambm a formao de um tipo de cultura e de uma etnia. O paulista, em grande parte, era o resultado do cruzamento de portugueses com as mulheres da terra, as indgenas. Dessa unio nasceram mestios em grande nmero, a quem se deu o nome de mamelucos (Saint-Hilaire, 1922). Nesses sculos, o estabelecimento de ncleos de povoao fez-se na base de famlias de sitiantes inde-pendentes, proprietrios ou posseiros, mas todos com acesso terra e numa quase igualdade de posio social (Franco, 1997).

    Falando sobre a economia paulista dessa poca, Simonsen (1957) a rma que a agricultura e o comrcio eram incipientes e insu cientes at para as necessidades da populao. A mercadoria mais vendida para as outras capitanias era a marmelada.

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    Esse estado de carncia da Capitania de So Paulo pode ser percebido at hoje na arquitetura. Edi caes antigas de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e do Rio de Janeiro apresentam requintes que denotam suas riquezas, ao passo que as igrejas, os casares e sobrados urbanos ou mesmo as sedes de fazendas paulistas apresentam um estilo despojado.

    De outra parte, no se cogitava o fortalecimento ou o respeito da cidadania dos moradores do municpio. Nessa poca, trs providncias a que as autorida-des sempre recorriam ameaavam os moradores: os recrutamentos para o servio militar, a prestao compulsria de servios para o governo e a cobrana de im-postos (Prado Jnior, 1999). Discorrendo sobre a atuao governamental no Brasil Colnia, Holanda (1997, p. 33) a rma: As iniciativas, mesmo quando se quiseram construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, no de os unir. Em face dessa situao, o povo reagia de duas formas: ou se embrenhan-do pelas matas, onde passava a morar com suas famlias (Simonsen, 1957), ou se comportando de uma maneira aptica, sem qualquer tipo de colaborao com as autoridades (Faoro, 2000).

    O prprio Morgado de Matheus, quando chegou a So Paulo e percebeu o comportamento arredio dos paulistas, comentou: Este costume de viverem disper-sos, metidos pelas roas, tem feito hbito, de sorte que s fazem gosto da solido e para ela fogem (Simonsen, 1957, p. 243). Quando da fundao o cial da Vila de So Lus do Paraitinga, seu fundador s conseguiu moradores para o local quando obte-ve licena especial do capito-general, concedendo o privilgio de que durante dez anos os povoadores no seriam chamados para soldados nem ocupados em outro algum servio ou emprego alheios a sua vontade (Trindade, 1977, p. 12). Porm, para Cndido (1971, p. 62-63 e 71), o isolamento dos caipiras, vivendo em bairros rurais, era apenas aparente. Na realidade, as famlias tinham como ponto de refern-cia de sua vida social no as sesmarias ou os stios, mas os bairros, que se tornaram a estrutura fundamental da sociabilidade do caipira. O termo bairro parece estar ligado diretamente rea caipira, no ocorrendo, ao que eu saiba, noutras regies do Brasil, acentua o autor.

    Comentando a a rmao sobre a singularidade da vida comunitria do cai-pira, centrada no bairro, Queiroz acha que Cndido mostrou como era ilusria a primeira impresso de isolamento dos caipiras, morando cada famlia em suas ter-ras. Na verdade, ela a rma, essas famlias estavam presas a uma organizao de vizinhana, o bairro rural. Ainda de acordo com essa autora, no passado a rea de in uncia caipira cobriu todo o territrio paulista. E considera o que chama de ci-vilizao caipira como a forma mais antiga de civilizao e cultura da classe rural brasileira, constituda desde os primeiros tempos da colonizao (1973, p. 8). No nal do sculo a cultura caipira j estava consolidada.

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    Mas o que signi ca o termo caipira? As diversas fontes que consultei no chegam a um consenso sobre a origem etimolgica dessa palavra (Ferreira, 1986; Cmara Cascudo, 1972; Amaral, 1955) e apresentam verses diferentes e at contra-ditrias. Neste texto uso o termo caipira com o mesmo sentido que lhe d Cndido (1971), ou seja, para designar os aspectos culturais dos descendentes dos antigos moradores da zona rural do estado de So Paulo. Assim, o termo caipira signi ca aqui o grupo social ou a pessoa portadora dos traos distintivos da cultura caipira.

    O comeo das mudanas

    Tratando das mudanas na conjuntura, que acabaram tendo grande impacto no modo de vida do caipira, Prado Jnior (1999) considera que no sculo se situa a etapa decisiva para a formao do Brasil. As inovaes foram chegando lentamen-te, at que o caf se tornasse uma cultura de exportao e fosse um fator decisivo para a economia e a vida social da regio. At as primeiras dcadas desse sculo, muitos costumes dos moradores ainda eram praticamente os mesmos dos trs pri-meiros sculos da histria brasileira, predominando uma sociedade com muito pou-ca mobilidade social (Shirley, 1977).

    A casa dos caboclos paulistas no incio do sculo era feita de pau a pique, como no incio da colonizao do Vale do Paraba, h mais de 150 anos. Os utens-lios domsticos eram igualmente simples. Grande parte dos objetos utilitrios era de origem indgena. Vasilhas como panela, gamela, esteira, rede, peneira, balaio, piqu, pilo, tigela, colher de pau, pote, moringa, talha, sabo de cinzas e cuia eram feitos de materiais nativos como taquara, taboa, barro, cambuca ou madeira. s ve-zes eram enfeitados com pinturas ingnuas. Atualmente esses produtos esto quase desaparecidos.

    As grandes mudanas na economia e nos costumes do Vale do Paraba ocorre-ram, de fato, a partir de 1830, quando a monocultura cafeeira tomou conta da regio. O caf foi um fator decisivo para as modi caes que ocorreram na legislao fundi-ria e nos costumes da sociedade. Foi com esse produto agrcola que comeou uma forma incipiente de capitalismo e apareceram os primeiros hbitos de consumismo. Na economia, o caf foi to importante que, em 1850, excludo esse produto, o Brasil exportava menos que em 1800 (Faoro, 2000). E teve um grande impacto na demogra- a regional: em 1836 a populao vale-paraibana era de 105.679 habitantes; em 1886, no apogeu do caf, a regio atingiu 338.537 moradores (Pasin, 2000). Nessa poca os caipiras constituam cerca de dois teros da populao livre e eram mais numerosos que os escravos existentes (Franco, 1997).

    Os caipiras tambm foram envolvidos pela engrenagem de mudanas que ocorreram na regio. A Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como Lei

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    da Terra, acabou com o regime de posses, que era a forma como, tradicionalmente, eles ocupavam as terras em que moravam. Isso consolidou a tendncia de concen-trao da propriedade agrria, que vinha se con gurando desde a chegada desse arremedo de capitalismo, trazido pelo caf (Faoro, 2000).

    O mundo simples e unitrio existente nos trs primeiros sculos da formao do paulista passou a ser coisa do passado. Da nova ordem econmica e fundiria surgiram quatro categorias: o fazendeiro, dono de um latifndio, onde predominava a monocultura de exportao; o sitiante, que continuava produzindo a costumei-ra agricultura de subsistncia, com alguns produtos excedentes para o mercado; o agregado, que residia nas fazendas ou nos stios, ocupando como parceiro ou meeiro parte das terras com lavouras e criaes; e o camarada, um trabalhador sem vnculo empregatcio, geralmente recebendo como diarista. Para Queiroz, a disseminao das grandes fazendas monocultoras de caf contribuiu para a desorganizao das tradies dos grupos de vizinhana. Mas isso no desenraizou os costumes caipiras, uma vez que, veri cada a decadncia dessa monocultura, as fazendas foram outra vez divididas em stios e a civilizao caipira voltou a orescer no Vale do Paraba e adjacncias (1973, p. 137).

    Em contrapartida, nas ltimas dcadas do sculo e nas primeiras do s-culo , j se observava uma ntida urbanizao dos investimentos econmicos. Em face das mudanas na economia dessa poca, o setor rural deixou de ser o que apresentava as maiores oportunidades de investimentos. As melhores remunera-es para o capital agora estavam nas cidades. O dinheiro dos investidores, antes empregado nas lavouras, passou a ser canalizado para os grandes centros. Isso se re etiu na expanso das atividades comercial, bancria e industrial. Atividades ur-banas, portanto.

    Com isso, o caipira paulista passou a sofrer, no prprio estado onde vivia, um preconceito cultural. Em outras palavras, o preconceito contra o caipira, que aca-bou se transformando num esteretipo, foi consequncia das mudanas que vinham ocorrendo na economia do pas. Segundo Martins (1975, p. 4, 26 e 87), a a rmao da superioridade do modo de vida urbano sobre o rural exprimiu-se culturalmente na construo de esteretipos negativos sobre o morador da zona rural. O caipira seria um indivduo ingnuo, preguioso, desnutrido, doente, maltrapilho, rstico e desambicioso: Esse esteretipo encontrou sua melhor descrio no Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, e que tem sua contrapartida nas virtudes contrrias, atributos do homem urbano.

    Almeida (1987) considera que, ao classi car o caipira como raa inferior, a ideo-logia de Monteiro Lobato mostrava seu inconformismo com um grupo social que resistia em deixar seus costumes seculares para se integrar na cultura europeizada,

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    recm chegada com a industrializao. Queiroz (1973, p. 87 e 112), por sua vez, a r-ma que descrev-los como estando margem da realidade social do Estado colo-car o problema de maneira falsa, j que tais sitiantes esto plenamente integrados nela, sendo que sua participao se regula pelos princpios da civilizao caipira e no pelos princpios da civilizao moderna. E observa que no se deve esquecer que a vida social do Estado de So Paulo foi, em tempos mais remotos, totalmente governada pela antiga civilizao caipira.

    O caf resistiu na regio at a dcada de 1920. A partir da, o Vale do Paraba comeou a passar por outras mudanas, com a chegada da pecuria leiteira extensi-va, a ocupao das vargens do Rio Paraba com plantaes de arroz, a transformao urbana e cultural das cidades e as primeiras tentativas de industrializao.

    A produo de leite trouxe para a regio melhores estradas, por onde passa-vam os caminhes que faziam o transporte do produto. Os leiteiros, como eram conhecidos esses veculos, promoveram a quebra do isolamento dos moradores dos bairros rurais. Alm de no mais depender das limitaes do armazm do bairro, os caipiras passaram a ter acesso aos remdios das farmcias, a eventuais consultas mdicas nas santas casas e em centros de sade; as mulheres puderam comprar suas roupas e mveis nas lojas, modi cando seu modo de vestir e mobiliar suas casas; e os agregados e camaradas que se sentiam prejudicados passaram a recorrer s repar-ties da Justia para resolver seus problemas trabalhistas.

    Educao: transmisso de cultura

    Durante muito tempo se pensou que culturas de sociedades iletradas ou gra-fas eram menos complexas ou menos elaboradas que as de sociedades em que a es-cola havia se desenvolvido. Hoje, porm, considera-se que os conhecimentos passa-dos pela educao tradicional, com base no saber oral, como o dos caipiras ao longo da histria paulista, so comparveis queles veiculados pela escrita. Dessa forma, se certas sociedades no se utilizam da linguagem gr ca para a transmisso de seus saberes porque o modo de vida de tais indivduos no lhes apresentou tal neces-sidade e no porque sua aptido mental fosse inferior. Atualmente, a capacidade simblica e os padres de todas as culturas humanas so considerados igualmente abstratos, signi cativos e capazes de dar respostas teis aos problemas de compre-enso do mundo (Costa, 2002).

    Por isso busquei na memria coletiva, nas entrevistas com os sujeitos desta pesquisa, os elementos para a anlise do processo educativo usado pelos caipiras para transmitir seu instrumental de adaptao ao ambiente fsico e social e de manu-teno da coeso do grupo, atravs do tempo de sua existncia. Os entrevistados tm

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    em comum o fato de sempre terem morado na zona rural de So Lus do Paraitinga, assim como todos os seus ascendentes dos quais se lembram. Por esses contatos pude inferir que trs elementos foram (ou so) fundamentais para o processo edu-cativo informal dos caipiras: o trabalho, a religiosidade e, entrelaada com os dois primeiros, a solidariedade do grupo.

    O trabalho

    Para se compreender o valor que o caipira d ao trabalho necessrio olhar para a sua morada e como ela usada. A casa considerada pelo morador tradicio-nal do Alto Paraba o local onde se concentra seu esforo cotidiano de manuteno da vida dos familiares que ali residem. Por isso percebi em todas as casas da zona rural que visitei que so, ao mesmo tempo, espaos de convivncia e de descanso, e tambm de trabalho. Brando (1999, p. 112-113) descreveu a casa do caipira como uma extenso domstica do trabalho familiar e a rmou que nela todos os espa-os so feitos para serem teis e no cmodos.

    Boa parte das tarefas realizadas fora do recinto da casa dividida. O pasto e a mangueira de ordenha, as terras da lavoura e todos os outros locais de criao e trato do gado e dos cavalos so espaos simbolicamente masculinos. Os homens veem es-ses locais como seus ambientes prprios de trabalho e ganho econmico. Apenas em casos excepcionais as mulheres da casa ajudam os homens nesses servios. Mas, se o campo um domnio masculino, o terreiro um espao mais feminino. Ali os ho-mens cuidam das tarefas que fazem a mediao entre o espao masculino do pasto e da lavoura e o espao feminino da casa. Eles lidam com o paiol de milho, consertam seus artefatos de trabalho, batem o fe o, debulham o milho e preparam as raes para os bois de arado e cavalos. Mas o domnio das mulheres sobre o terreiro mais acentuado. Ali elas cuidam do pomar, da horta e dos animais domsticos. Elas po-dem dividir com os homens da famlia os cuidados e o ganho com os porcos e o quei-jo. Mas os rendimentos obtidos das aves, dos ovos, do reque o, da manteiga e os eventuais produtos da horta e do pomar so invariavelmente de domnio da mulher. Assim, ao passo que os ganhos auferidos com o leite, com as plantaes de cereais e com a venda de animais so considerados prprios dos homens, o que se apura com a venda de produtos do terreiro pertence tudo para as mulheres que, dessa forma, mantm certa independncia econmica dentro da famlia.

    De acordo com diversos depoimentos, antigamente os brinquedos das crian-as j eram uma forma de preparao para o trabalho. Brincava-se no terreiro da casa. Um dos brinquedos dos meninos era imitar o comrcio de mercadorias, como ocorria nas vendas e nos armazns dos bairros. De acordo com o mais idoso dos entrevistados,

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    Usavam terra vermelha e terra branca para dizer que eram cereais e barro em forma de quadradinhos era rapadura; areia branca virava acar ou sal. Faziam balancinhas para pesar as mercadorias. Enquanto um menino ngia que era o dono da venda os outros compravam, usando como dinheiro cacos de tigela. Tambm faziam urupuca, bolas feitas de panos costurados e casinhas cobertas com folhas de bananeiras.

    Os adolescentes tinham outras brincadeiras: Brincavam com bola de pano, costurada bem costuradinha. Tambm de correr cavalhada. s vezes ns juntava um terninho, a rapaziadinha nova e cava pastejando em pelo no cavalo, disse um informante de outro bairro.

    J as meninas, segundo uma das entrevistadas, tinham suas prprias manei-ras de brincar: As mais novas faziam bonecas de sabugo de milho; depois que cres-ciam mais um pouco aprendiam, com as mes ou com as costureiras do bairro, a fazer bonecas de pano. Tambm brincavam de casinha e faziam peteca de palha de milho e penas de galinha. Uma das brincadeiras que elas mais gostavam era inventar de fazer casamento.

    Brincar de fazer casinha, atividade comum a meninos e meninas, era realmen-te uma maneira de imitar as atividades dos adultos, quando estes faziam suas casas de pau a pique (ou taipa da mo).

    Mas o tempo reservado ao lazer da infncia era curto. A criana logo era enca-minhada para o aprendizado do trabalho. Como as escolas na zona rural eram pou-cas, restava s famlias caipiras o secular currculo educacional que, embora nunca fosse escrito, sempre foi usado para a transmisso dos instrumentos de adaptao ao meio fsico e para as suas relaes sociais e simblicas.

    Assim, as crianas de ambos os sexos, desde que nasciam at pelo menos a idade de 8 anos, cavam sob os cuidados das mulheres da casa: a me, as irms mais velhas e, eventualmente, as avs. As brincadeiras juntas no terreiro logo co-meavam a estabelecer espaos, reinaes e tratamentos diferenciados. As meninas iam se subordinando plenamente s mulheres, com quem comeavam a aprender os servios considerados femininos. J os meninos escorregavam pouco a pouco para a companhia dos homens do pai e dos outros irmos , quando eles estivessem em casa ou no terreiro.

    E a estava justamente o ncleo desse currculo informal, mas muito e ciente. O fato de as meninas acompanharem as mes e os meninos o pai signi cava, na pr-tica, entrar para o aprendizado das tarefas e pro sses que iriam exercer no futuro. Entre os 8 e 12 anos as crianas no exerciam uma pro sso: elas executavam as ta-refas junto com os adultos, como aprendizes. Estavam, na realidade, se preparando para o trabalho, numa espcie de sistema curricular, nessa pedagogia desenvolvida pelos paulistas da zona rural durante quase quatro sculos.

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    Um dos entrevistados explicou esse processo de aprendizagem:

    Os meninos aprendiam vendo os pais trabalhar. Quando ia barrear uma casa ou quando ia trabalhar com uma junta de bois, arrastando pau no mato. Eu ia atrs de meu pai l. O menino ia vendo e quando cava hominho j estava sabendo o que o pai fazia. Quando ele comeava a trabalhar, ele no ia aprender: ele j sabia de tudo o que devia fazer. Eu peguei [no servio] com 13 anos j sabendo de tudo. Da no tinha nada que meu pai ensinar. Era bonito aquele tempo; era gostoso demais.

    Isso signi ca que por volta dos 13 anos de idade eles chegavam ao estgio de prontido pro ssional: j entendiam todos os servios que se faziam na zona rural e podiam continuar acompanhando os pais. S que ento como pro ssionais quali -cados para o trabalho.

    Dessa forma, esse currculo colocado em prtica desde tempos imemoriais pre-via que os garotos entre 8 e 10 anos fossem com os pais para a roa. Os pais iam ensi-nando as tcnicas de carpir, roar, plantar. Plantavam milho, fe o, mandioca, cana. Essas plantaes quase todo mundo tinha para o gasto. Alm dos servios da lida agropastoril, os meninos e rapazes aprendiam a fazer certos instrumentos de traba-lho, como o escrassador de moer cana para fazer a rapadura a m de adoar o caf. Os que levavam jeito aprendiam o que hoje chamado de artesanato, como chapu de palha e instrumentos usados nas tropas, como cargueiros, bruacas, jacs e o conserto de arreios. Com 13 anos o rapaz j era considerado um trabalhador formado, capaz de carpir uma quadra ou tirar uma empreitada. Era costume que os rapazes traba-lhassem para os pais pelo menos at os 21 anos de idade. No que nem agora, que os lhos no trabalham mais para os pais. Principiam a trabalhar e j cada um para si. Naquele tempo, capaz, no era assim!, lamentou um de meus entrevistados.

    Nessa mesma faixa de idade as meninas comeavam a aprender os trabalhos domsticos simbolicamente considerados femininos. Dos 8 anos em diante as mes j iam ensinando, mas elas s se a rmavam por volta dos 12 anos. Mais ou menos na idade em que os rapazinhos tambm completavam seu aprendizado. No incio da adolescncia elas j estavam aptas a tomar conta da casa, quando a me se ausenta-va. Em casa, as meninas comeavam aprendendo a fazer roupa de boneca. Depois, aprendiam a costurar roupa de gente grande. Em muitas casas havia mquinas de mo para costurar. Se os pais precisavam, as meninas ajudavam a carpir, roar e lim-par as plantas. Quando elas iam para a roa e na irmandade tinha homem e mulher, os irmos que davam as explicaes s irms. Eram tambm as irms e os irmos mais velhos que falavam para as meninas que iam cando adolescentes sobre assun-tos de namorao.

    Para as meninas-aprendizes cava ainda a tarefa de cuidar das criaes no terreiro: porco, cabrito, galinhas e as outras aves. Alm disso, eram elas que deviam

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    distinguir os vegetais: aqueles que serviam para remdio j que era prprio das mulheres o cuidado dos doentes das plantas que tinham outras utilidades, como para fazer azeite, sabo ou vassouras, alm daquelas consideradas nocivas para a sade. Todas as pessoas que eu entrevistei me disseram que a principal coisa que uma menina precisava aprender era cozinhar. Desde criana elas iam aprendendo os pratos tpicos da cozinha caipira. Nessa sociedade grafa, de poucas, raras escolas, as receitas eram guardadas, na maior parte das vezes, de cor. Da a importncia da memria. Mas o mais idoso de meus entrevistados lamentou: Agora as moas se casam e no sabem nem cozinhar. Naquele tempo no era assim, no. Os pais e as mes ensinavam e os lhos aprendiam. A gente que viu tudo isso, agora at parece um sonho.

    A religiosidade

    Fiquei tambm convencido de que outro instrumento fundamental na educa-o dos caipiras foi a religio. Ou melhor, a expresso de uma determinada forma de religiosidade.

    As crianas comeavam a aprender as primeiras noes de religio com o pai e a me. Mas praticamente toda a comunidade do bairro transmitia, na vida cotidia-na, a sua religiosidade para as crianas. Depois elas iam ao catecismo na capela. As catequistas ou os capeles ensinavam, alm as oraes litrgicas, tambm as suas rezas tradicionais.

    Todos os entrevistados falaram, demonstrando saudades, das ladainhas can-tadas a duas ou trs vozes, orao que eles ainda tm em grande conta e a que mais gostavam de rezar. Era uma prece que se fazia coletivamente, servindo para incutir nas crianas o esprito de vida comunitria, por intermdio da religio. Hoje no se canta mais a ladainha nas capelas dos bairros que visitei.

    As crianas tambm aprendiam a fazer os instrumentos usados para as ora-es. As meninas, principalmente. Azeite de mamona, usado como combustvel para a lmpada votiva que se acendia em frente dos oratrios familiares; o tero de capi, onde aprendiam a rezar as principais oraes crists; e as lendas de fundo religioso, que tinham um sentido pedaggico. As crianas ouviam dos mais velhos e tambm contavam umas para as outras.

    Holanda (1998), em Viso do paraso, cita diversas lendas que tiveram origem na Europa medieval ou entre os ndios que habitavam a Capitania. At os anos de 1950 ainda eram contadas entre as crianas e os adultos da zona rural de So Lus do Paraitinga. Entre essas lendas esto as do saci, da lagarta que vira cuitelo, da or de maracuj como smbolo da Paixo e dos ares milagrosos de alguns lugares, capazes de curar doenas.

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    Talvez o mais forte trao medieval, que sobrevive entre os caipiras, seja a ins-tituio do compadrio, que ocorre quando um casal convida outro para ser padri-nho de seu lho. Os laos entre as famlias e as obrigaes que o casal de padrinhos assume que vo do dever de dar educao religiosa a substituir os pais, adotando a criana, em caso de dissoluo ou carncia da famlia paterna remontam ao di-reito consuetudinrio, vigente no incio da dinastia afonsina, em plena Idade Mdia (Faoro, 2000).

    Entretanto, todas as pessoas que entrevistei consideram que atualmente est muito difcil para os pais, avs e mesmo para a comunidade do bairro serem os primeiros catequistas das crianas. A rmam que os motivos so vrios. Culpam as in uncias vindas das cidades, principalmente a televiso que, acreditam, veicula maus exemplos dentro da famlia e a presena de drogas entre a juventude.

    Essa transio de comportamentos experimentada at por aqueles que ja-mais moraram fora dos sertes. A seduo do modo de vida da cidade chega aos lugares mais afastados da zona rural do Alto Paraba. At os divertimentos promo-vidos no ptio da capela durante as comemoraes festivas, os antigos moradores consideram fatores negativos para a educao religiosa e comunitria. Tem diver-timento para mim que uma profanidade numa festa de igreja, como o forr, que antes no existia. E para tirar renda, em qualquer festa j o bingo. Isso a acabou com tudo. Eu no participo e, de fato, no gosto, reclamou um dos entrevistados que por muitos anos foi o capelo daquele bairro.

    Uma sntese da religiosidade dos caipiras aparece na realizao da Festa do Divino Esprito Santo. Nenhuma das manifestaes lendrias ou festivas do Alto Paraba expressa to bem a sobrevivncia do arqutipo dessa cultura como essa comemorao religiosa. Nesse evento os caipiras, ao prestar culto Divindade, tambm realizam um trabalho solidrio, envolvendo um grande nmero de pes-soas, que nada recebem pelos servios que prestam. Essa participao, ao longo do tempo, deve ter sido um instrumento para a transmisso de seus costumes para as geraes mais novas e para e educao das crianas e dos jovens em suas tradies comunitrias.

    Solidariedade

    Junto com o trabalho e a religiosidade praticados nos bairros caipiras, outro trao marcante dessa cultura a ajuda mtua ou participao comunitria. Pesquisa-dores veem nesses comportamentos a sobrevivncia de diversas vertentes culturais e tnicas, em especial a in uncia da poca da aculturao e adaptao entre os costumes portugueses e os de origem indgena (Holanda, 1997 e 2000; Shirley, 1977; Ribeiro, 1995).

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    As tradies de participao comunitria expressavam-se de diferentes ma-neiras. Podiam envolver apenas algumas pessoas, como no caso de uma mulher que se encarregava de cuidar de uma parturiente e assumir todos os cuidados domsti-cos, durante o perodo em que a mulher que deu luz no podia trabalhar; mobili-zar dezenas de pessoas, como num mutiro de preparo de pasto, construo de uma estrada ou ponte, na barreao de uma casa para os noivos ou reformar a morada de um idoso ou famlia necessitada; ou tambm para construir ou na manuteno da capela do padroeiro do bairro.

    Assim como as lendas antes referidas, os costumes de ajuda mtua apontam, por trs de instituies sociais aparentemente singelas, a existncia de um mecanis-mo social complexo, tecido ao longo de muitos anos e fruto de uma transmisso edu-cacional to e ciente que conseguiu sobreviver por sculos, atravessando muitas ge-raes e diversos perodos da histria brasileira. Alis, segundo pude perceber, uma das principais nalidades desses costumes era transmitir os conhecimentos para manter suas tradies. Isso se realizava por intermdio da ajuda organizada entre membros de uma ou diversas comunidades caipiras. Em outras palavras, as formas tradicionais de participao comunitria eram maneiras informais que os caipiras possuam para educar seus lhos. As crianas eram levadas, desde os 8 anos, a cada um desses eventos.

    As duas principais formas de participao comunitria eram a troca de dias e o mutiro. Na troca de dias, diversas famlias reuniam-se e iam trabalhar para uma outra na colheita, na limpa de pastos e nas demais atividades agropastoris. A famlia bene ciada cava obrigada a trabalhar para todas as famlias que a haviam ajudado. Era uma troca. Ningum recebia e ningum se negava a cumprir sua obrigao de pagar o dia de trabalho recebido como ajuda. Todos os entrevistados me a rmaram: a troca de dias no existe mais na zona rural do Alto Paraba.

    J o mutiro uma prestao voluntria e gratuita de servios entre mo-radores dos bairros dos municpios. Ningum se obriga. E no h a necessidade, para quem recebeu o servio, de trabalhar para quem lhe prestou o trabalho. O pagamento feito em forma de festa, com muita comida, bebida, caf com biscoito e cantoria, durante a prestao do servio. E termina sempre em festa. Com ape-nas isso, aqueles que vo trabalhar se sentem bem pagos. De acordo com Willems (1947), no h dvida de que essas instituies do uma fora de resistncia es-trutura social, que outras sociedades, baseadas exclusivamente no trabalho assala-riado, no possuem. Pelos depoimentos de moradores que participam de mutires em diversos bairros, essa prtica continua sendo realizada, embora mais raramen-te. As pessoas renem-se para a conservao de capelas e das casas de pessoas carentes. O trabalho comunitrio de limpa de pastos feito praticamente como h cerca de 50 anos.

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    Muita coisa mudou na estrutura agrria da regio. O municpio de So Lus do Paraitinga empobreceu. A zona rural continua a esvaziar-se. Com isso, muitos costumes ligados ao mutiro desapareceram. A abertura e manuteno de estradas um deles, agora quase totalmente assumidas pela Prefeitura, que para isso man-tm funcionrios, conhecidos como conserveiros. O barreamento de casas de pau a pique para os noivos no existe mais. O material usado nas novas construes a alvenaria: t olos ou blocos de cimento. E o trabalho feito, geralmente, por pedrei-ros pro ssionais.

    A cobertura de sap, to comum at os anos de 1970, tambm to existe mais. Alis, quem passa pelas estradas do Alto Paraba muito difcil ver, esparramado pelos pastos, um p de sap, vegetao nativa to comum h algumas dcadas nessa regio de Mata Atlntica. Assim como muitos aspectos da cultura e da educao dos caipiras, o sap parece estar em extino.

    A roa na cidade

    A decadncia da pecuria leiteira foi o fator econmico mais importante na histria recente de So Lus do Paraitinga, tornando-se um acontecimento decisivo para os fatos que ocorreram no municpio nos ltimos 40 anos. Nesse perodo a vida do caipira mudou muito. Com isso, a partir da dcada de 1970, ocorreu uma modi- cao fundamental na posse da terra e na produo rural. Os stios e as fazendas foram sendo vendidos para os moradores das grandes cidades. A maioria passou a utilizar as propriedades para lazer ou com plantaes de eucalipto. Os empregados que ainda existiam foram sendo dispensados e o local acabava cando sob a respon-sabilidade de apenas uma famlia. Esses passaram da condio de agregados para a de caseiros.

    A produo de leite no municpio diminuiu muito. E a rea destinada pro-duo de eucalipto aumentou demais. Outra mudana fundamental no per l econ-mico dos habitantes de So Lus do Paraitinga: boa parte desses trabalhadores, antes de se mudar para a zona urbana, era de pequenos sitiantes e meeiros. abandonan-do a posio de parceiro ou agregado na zona rural e se tornando assalariado rural ou urbano que o trabalhador de origem caipira consegue se integrar no contexto econmico. Assim, de produtores passaram a ser empregados e consumidores na cidade.

    O ambiente de uma cidade pequena permite aos que migram da zona rural alguma forma de recriao de seu mundo de origem. A transposio de costumes manifesta-se na precariedade da arquitetura e das instalaes de suas casas, localiza-das principalmente na periferia. E na reinveno de tradies, como nas danas das

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    companhias de moambique e congadas, nas folias de reis e em outras manifes-taes culturais que h uns 50 anos s existiam na roa. Seria, talvez, uma forma de valorizar suas expresses culturais e religiosas, fazendo delas instrumentos de rea-daptao. Nota-se que em quaisquer desses grupos existem crianas e jovens como danadores, instrumentistas ou representando alguma gura de destaque.

    O xodo rural parece ser uma das principais causas na inverso da distribui-o de moradores. Em 1940, dos 11.127 moradores, 1.164 residiam na zona urbana e 9.963 estavam na zona rural (, 1948). interessante notar que ao passo que no Censo de 1970 se constatou que a maioria da populao brasileira passara a morar na zona urbana (Durhan, 1973), em So Lus do Paraitinga isso s acorreu 20 anos depois, pelo recenseamento de 1991. De acordo com a estimativa de 2005 do , o municpio conta com 10.417 habitantes, sendo 6.143 (59%) na cidade e 4.274 (41%) morando na roa.

    Rito de sada

    Ao terminar suas narraes lamentando o desaparecimento dos costumes sempre usando expresses que demonstram saudades do passado e uma melancolia da situao presente , os entrevistados no estariam indicando que eles constatam que a educao que sempre foi utilizada para a transmisso de sua cultura gradual-mente vem perdendo o signi cado para as novas geraes?

    O futuro de uma cultura depende da capacidade do grupo social onde ela sobrevive de continuar transmitindo sua educao tradicional. Todos os entrevista-dos, por um ou outro motivo, tiveram pouca escolaridade. Entretanto, isso no teve grande impacto nas suas formaes. Nem impediu que, depois de adultos, integras-sem-se na vida econmica do municpio. Tanto que todos so pequenos propriet-rios de terras, das quais, de alguma forma, tiraram o seu sustento. Para a educao tradicional caipira, a criana ou o adolescente pouco precisava de uma sala de aula, livros, professores e outras metodologias pedaggicas. Pelo contrrio, eles, em suas brincadeiras e nos seus trabalhos, precisavam de contato livre com suas famlias e com os moradores do bairro onde moravam.

    S que agora eles no podem tocar essa empreitada apenas com os instru-mentos e a metodologia que no passado utilizavam com e ccia. As transformaes estruturais pelas quais o pas passou, com o estabelecimento de uma ordem econ-mica capitalista, determinaram que a escola acabasse ocupando diversos papis que antes cabiam famlia e comunidade do bairro realizar para a educao das crian-as. Apesar disso, a populao escolar diminuiu. Em 1968 existiam 22 escolas rurais com 424 alunos, em classes que iam da 1 3 srie. Com a municipalizao foram

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    criados, a partir de 2005, quatro ncleos escolares, cada um reunindo as crianas dos bairros adjacentes. Mesmo existindo, em todos, curso completo de Ensino Funda-mental, a matrcula diminuiu, pois somam apenas 324.

    No interior da famlia e da comunidade caipira o processo de educao no um ato passivo, mas um processo ativo que interfere no indivduo, levando-o a recriar o aprendido de acordo com suas necessidades e condies materiais de vida. Por isso a escola poderia levar compreenso das realidades produtoras dessas for-mas de vivncias sociais, permitindo que as culturas escolar e caipira se interpene-trassem, sem perder suas identidades.

    Pluralismo signi ca dilogo com outras culturas a partir de uma cultura que se abre s demais. A meu ver, justamente disso que as escolas destinadas aos caipiras precisam: da promoo de polticas que contemplem a diversidade cultural; de cur-rculos que preparem as crianas e os adolescentes da zona rural para o exerccio da cidadania e de programas que busquem a compreenso da educao prpria dessa cultura tradicional.

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