a economia política do milagre chinês

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  • 7/23/2019 A Economia Poltica Do Milagre Chins

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    A Economia Poltica do Milagre Chinsrea 1 - Escolas do Pensamento Econmico,Metodologia e Economia Poltica

    Andr Moreira Cunha1- UFRGS

    Abstract: This paper compares Chinas development model with the canonical Asian Modelconsidering the international political economy approach. It is argued that: (i) there is no one size fits

    all model in Asia; (ii) Chinas spectacular growth trajectory resembles some key elements off past Asianexperiences, especially those from Japan, Korea and Taiwan; (iii) but it also reveals specificities that mustbe considered in order to compose a broader perspective of the Chinese peaceful rise.Keywords: China, economic systems, international political economyJEL: P16, P51, O53

    Resumo: Este trabalho compara o modelo de desenvolvimento da China com o modelo asitico cannico,considerando a perspectiva da economia poltica internacional. Argumenta-se que: (i) no existe um nicomodelo asitico; (ii) que a espetacular trajetria de crescimento da China reproduz alguns dos elementos-chave das experincias asiticas anteriores, especialmente as do Japo, Coria e Taiwan; mas (iii) tambmrevela especificidades que precisam ser consideradas quando se compem um quadro mais amplo para a

    anlise da ascenso pacfica chinesa.Palavras-Chave: China, sistemas econmicos, economia poltica internacional.

    IntroduoCientistas sociais e formuladores de polticas interessados no fenmeno do desenvolvimento tm

    se debruado sobre a experincia dos pases asiticos, considerada paradigmtica em termos de sucesso.Recentemente esse olhar se concentrou no caso chins, no s por representar uma aparente confirmaode tal especificidade regional como, principalmente, porque a ascenso da China condio de potnciaeconmica global possivelmente seja um dos fatos mais importantes da ordem internacional emconformao no sculo XXI. Essa percepo reforada por estudos que sugerem que, em algum pontoda primeira metade deste sculo, as principais economias emergentes tero uma participao na rendamundial superior quela das economias avanadas que atualmente compem o G7 (ou algum outroagregado mais amplo de pases lderes do processo de modernizao dos ltimos dois sculos). China endia, seguidos de Rssia e Brasil, liderariam essa transformao (Goldman Sachs, 2007, NationalIntelligence Council, 2005, Maddison, 2007). Nos dois primeiros pases concentra-se 1/3 da populaomundial que, a despeito do progresso econmico recente, ainda convive com nveis relativamente baixosde rendaper capita, desenvolvimento humano e urbanizao.

    Seguindo o esprito do paradigma da modernizao (Roberts e Hite, 2000) aqueles estudossustentam suas anlises na suposio de que, na medida em as populaes rurais de China e ndia migram

    para os centros urbanos, deixando para trs o mundo das tradies e das atividades vinculadas produoagropecuria de subsistncia, cria-se um amplo espao para o crescimento baseado na acumulao de

    capital e em ganhos de produtividade laLewis. Esse processo seria viabilizado pela internalizao decapital e tecnologia forneos, implicaria em um deslocamento para aqueles pases de parcelas crescentesda produo manufatureira e de servios anteriormente concentradas em pases avanados e outraseconomias perifricas. Por isso mesmo, Dooley, Folkerts-Landau e Garber (2005) enfatizam ossignificativos efeitos esperados nos mercados de trabalho em termos de preos (salrios), quantidades(deslocamento espacial e setorial dos empregos) e qualidade das relaes de trabalho, dado estedeslocamento espacial das bases produtivas.

    Por seu turno, bancos de investimento e analistas de mercado vm apostando em um mundo ondealimentos, matrias-primas e energia tero preos tendencialmente pressionados para cima, o que poderiacontribuir para o dinamismo exportador de Amrica Latina, frica e Oriente Mdio (Trinh, Voss e Dick,

    1 Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pesquisador do CNPq. E-mail:[email protected]. Agradeo ao apoio de pesquisa da bolsista PIBIC-CNPq Nathaly Xavier e ao CNPq.

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    2006). Todos esses fatores tm feito com que se multipliquem os estudos sobre os impactos da ascensoda China e da ndia sobre pases, regies e setores econmicos especficos2.

    neste contexto que o presente trabalho procura analisar a estratgia chinesa de crescimento,denominada recentemente por seus idealizadores de ascenso pacfica. Procura-se identificar oselementos de convergncia e divergncia com respeito ao assim-chamado modelo asitico que,supostamente, teria sido perseguido por sucessivas geraes de tigres, a comear pelo Japo. Aps

    afastar a idia de que h um nico modelo asitico e de identificar as especificidades da experinciarecente da China, a anlise se concentrar no estudo da dinmica de regionalizao dos canais deinvestimento, produo e comrcio na sia, o que permite a sugesto de que est em processo de rpidaformao uma unidade econmica que transcende aos determinantes tradicionais do Estado-Nao. Tal

    preocupao no original, com atestam, por exemplo, os estudos da Unctad (2007) e do Banco Mundial(Gill, Huang e Kharas, 2006, Gill e Kharas, 2007). O que se procura aqui avanar na compreenso dos

    potenciais, contradies e limites desse novo modelo.Efatiza-se a percepo de que o olhar da economia poltica o mais adequado compreenso do

    desenvolvimento chins, na medida em que este transcende questo da replicao de modelos pretritosou mesmo de escolha entre alternativas de poltica econmica. Trata-se, em ltima instncia, de secompreender as transformaes na ordem capitalista engendrada pelo reposicionamento estratgico de um

    pas-chave. Ainda que tal tarefa no possa ser enfrentada em um nico texto, pretende-se aqui sugerir oselementos centrais dessa perspectiva. Alm desta breve introduo, os argumentos esto estruturados emmais trs sees. Na seqncia resgata-se, de forma sinttica, o debate em torno do desenvolvimento dos

    pases asiticos. Depois se analisa a estratgia chinesa de ascenso pacfica, procurando contrast-lacom as linhas gerais identificadas anteriormente. Na seo 4 estuda-se a dinmica de regionalizao emcurso, enfatizando o papel catalisador do hub produtivo chins, bem como os seus limites potenciais.Seguem as consideraes finais.

    2. O Modelo Asitico de DesenvolvimentoAs economias asiticas tm estado no centro dos debates acadmicos e polticos sobre os

    determinantes do desenvolvimento, na medida em que, onda aps onda, pases localizados naquelaregio experimentaram processos robustos e sustentados de crescimento econmico, com resultadosmuito favorveis em termos de reduo da pobreza, manuteno de uma relativa estabilidademacroeconmica e coeso social. As explicaes sobre esse sucesso tambm foram ocorrendo emondas, com o estabelecimento de distintas vises sobre os determinantes do milagre asitico, se quehaveria um milagre, bem como, em uma perspectiva comparada, o estabelecimento de lies erecomendaes a serem perseguidas por outros pases desejosos de reproduzir aquele tipo de trajetria.

    Nos anos 1960 e 1970, tratava-se de contrapor dois tipos de modelos: o introvertido, primrio-exportador ou, ainda, nacional-desenvolvimentista, tpico das economias latino-americanas e marcado

    pelo ativismo estatal e pela promoo da industrializao por meio da proteo aos mercados domsticos;e o extrovertido ou promoo de exportaes, adotado pelas economias asiticas, e marcado por uma

    maior neutralidade das polticas comerciais e, por isso mesmo, supostamente menos intervencionista.Economistas do Banco Mundial e ortodoxos em geral denunciavam o carter esprio do modelo nacional-desenvolvimentista, ento caracterizado como sendo responsvel pela distoro dos preos de mercado ecriador de corrupo na forma de comportamentos do tipo rent-seeking3. Nesta abordagem, ressalvava-seo fato de que o Japo e os tigres asiticos de primeira gerao (ou NICs, newly industrialized countries,Coria do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong) exporiam mais suas empresas s foras de mercado,garantindo a formao de preos corretos no distorcidos por incentivos provocados pelas polticasfiscais, cambiais, comerciais e creditcias. J a substituio de importaes implicaria na escolha dospreos errados, gerando ineficincia alocativa, baixo dinamismo e instabilidade macroeconmica (Ito eKrueger, 1995).

    2Para o caso dos impactos sobre a Amrica Latina ver, por exemplo, Ellis (2005), BID (2006), CAF (2006) e Cepal (2006, BID).3 No se est afirmando aqui que os problemas de ineficincia e corrupo eram inexistentes ou pouco importantes. Mas, sim, que acontraposio feita por esta linha de raciocnio era excessivamente simplista.

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    Nos anos 1980 e 1990, especialmente depois da crise da dvida externa, aprofundou-se adivergncia de desempenho econmico entre os pases asiticos e latino-americanos. Os economistasconvencionais, defensores da viso dos preos corretos, viam nesse fato a comprovao de suas teses.Por outro lado, comearam a se disseminar estudos que sugeriam ser a mo visvel das polticasdesenvolvimentistas muito mais importante na explicao do milagre asitico do que suponha aliteratura ortodoxa (Johnson, 1987, Amsden, 1989, Wade, 1990). Isso levou uma nova rodada de

    discusses onde, no campo do mainstreamemergiu o agora clssico The East Asian Miracle: economicgrowth and public polcy, estudo do Banco Mundial (World Bank, 1993) que enfatizava a importnciadas polticas pblicas de carter horizontal e que criavam um ambiente favorvel aos mercados ( market-

    friendl). Estabilidade macroeconmica, abertura comercial, investimentos em capital humanoconstituiriam o ncleo do modelo asitico. Admitia-se que, nos casos idiossincrticos de Japo, Coria doSul e Taiwan as polticas de crdito direcionado e promoo da indstria, de carter mais vertical (com aescolha de vencedores e utilizao de incentivos diversos) teriam sido parte da experincia bem-sucedidade crescimento com mudana estrutural. As burocracias meritocrticas e uma relao virtuosa entreEstado e mercados naqueles pases no seriam passveis de reproduo tanto nos pases menosdesenvolvidos da regio, como Indonsia, Tailndia, Filipinas e Malsia (os tigres ou NICs de segundagerao), quanto em outras regies em desenvolvimento, particularmente na Amrica Latina.

    Em paralelo, alguns acadmicos, com destaque para Krugman (1994), insinuavam que no haverianada de milagroso no crescimento asitico. Esse seria resultado muito mais de transpirao acumulaointensa de capital dado o rpido processo de urbanizao e industrializao do que inspirao inovaes tecnolgicas capazes de criar retornos crescentes de escala evidenciados por um pronunciadoavano da produtividade total dos fatores. As economias asiticas estariam, simplesmente, emulandotrajetrias de intensa acumulao, como as j vividas por outras economias, particularmente a UnioSovitica e, portanto, avanando sobre o seu prprio atraso relativo, sendo incapazes de liderar adinmica de conformao das fronteiras tecno-produtivas. Inevitavelmente suas economiasexperimentariam retornos decrescentes, de modo que o capitalismo ao estilo ocidental (ou, maisestritamente, anglo-saxnico) no estaria em xeque. J os economistas e cientistas sociais no alinhados viso do preo correto, procuravam destacar que a poltica, no caso asitico, agiria no sentido oposto,vale dizer: na construo consciente de sinais errados por no refletirem a escassez relativa correntedos fatores de produo que direcionariam a acumulao em um sentido previamente estabelecido(Wade, 1990).

    A crise financeira de 1997-1998 deslocou a fronteira temtica do estudo do modelo asitico,posto que a despeito de suas possveis virtudes passadas, estaria estruturalmente associado a um conjuntode distores geradas no plano da poltica: a existncia de um capitalismo de compadres, onde o crdito manipulado, onde existem garantias implcitas de que ningum ir quebrar e, portanto, onde os sinais de

    preo so distorcidos criando sobre estmulos para as decises de investimento e subestimao dos riscos. possvel, a partir de um balano destes debates, caracterizar um modelo asitico? Assume-se

    aqui que difcil sustentar a existncia de um nico modelo (Jomo, 2001, Chang, 2006). Todavia,

    possvel identificar elementos em comum nas trajetrias particulares de cada economia, bem comoaspectos idiossincrticos e, para o perodo mais recente, novos determinantes regionais e globais queesto criando um ambiente econmico e institucional cada vez mais governado por uma dinmica deregionalizao (Park, 2006, Gill e Kharas, 2007, Unctad, 2007). Em comum, havia o driveexportadorcomo elemento crucial na dinamizao do crescimento, gerao de fontes autnomas de financiamentoexterno e de presso competitiva sobre os produtores locais. Alm disso, o ambiente poltico favorveldos anos da Guerra Fria permitiu o acesso privilegiado aos principais mercados ocidentais e s fontesoficiais de financiamento, ao que muitos denominaram de desenvolvimento a convite (Best et al.,2005). A localizao geogrfica em uma das fronteiras do embate capitalismo versus socialismodeterminou este aspecto. A existncia de regimes polticos autoritrios ou, ao menos fortementecentralizadores e focados no crescimento econmico permitiu a manuteno da lei e da ordem e,

    assim, de bases estveis para os investimentos privados. Garantiu, tambm, a imposio da realocaodos excedentes socialmente produzidos, de modo a favorecer os setores modernos, e a criao delegitimao social das polticas oficiais, atravs da democratizao no acesso aos bens sociais bsicos.

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    Com respeito s especificidades, importante destacar que Japo, Coria e Taiwan procuraramfortalecer as suas bases econmicas endgenas, por meio do ativismo estatal, onde as polticas pblicas

    priorizaram a consolidao dos grupos econmicos nacionais privados e/ou estatais. As polticasfinanceira, industrial e comercial combinavam-se no sentido de garantir o crescimento da poupana

    pblica e, principalmente, privada , a internalizao de setores industriais intensivos em capital etecnologia e o aumento consistente da produtividade. A proteo do mercado interno e da indstria

    infante, os subsdios fiscais e financeiros normalmente atravs de instituies pblicas de fomento , osincentivos cambiais e comerciais eram instrumentos para o fortalecimento das empresas mais dinmicas.E, no limite, as bases para a construo nacional.

    Tal intento demandava a consolidao de burocracias capazes de implementar eficientemente osplanos de desenvolvimento. Mais do que isso, implicava na necessidade de superao das limitaesassociadas ao baixo desenvolvimento dos sistemas financeiros e do atraso tecnolgico. Isto foi buscado

    pelo estreitamento das relaes entre bancos, indstria e Estado. Em outro extremo, de carter maisliberal, Hong Kong e Cingapura priorizaram uma estratgia de especializao no setor de servios, o queimplicou uma abertura muito maior ao capital estrangeiro. No se pretendia consolidar a nao atravsda industrializao e, sim, encontrar nichos de competitividade, considerando-se as suas limitaes fsicase financeiras (Jomo, 2001 e Chang, 2006).

    Malsia, Indonsia, Tailndia e Filipinas tiveram trajetrias iniciais mais prximas experincialatino-americana, com nfase na explorao de seus mercados internos mais largos que dos vizinhos donorte e/ou de uma maior dotao de recursos naturais. Suas indstrias de transformao desenvolveram-senos setores tradicionais, intensivos em trabalho e recursos naturais. A modernizao recente, nas dcadasde 1980 e 1990, foi levada a cabo atravs da atrao de capital externo. Suas burocracias estatais jamaisalcanaram o grau de eficincia e de relativa autonomia poltica das congneres do noroeste, Japo,Taiwan e Coria. Seus regimes polticos sempre foram mais sujeitos ao clientelismo, o que reduziu adimenso objetiva das polticas pblicas.

    Nos marcos dos estudos supracitados, a China no costumava aparecer com muito destaque. Apsanlises detalhadas das experincias de Japo e dos NICs de primeira e segunda gerao, tendia-se asinalizar que a China estava iniciando um processo de crescente abertura econmica e poltica, que lhe

    permitiria reduzir o gapde desenvolvimento frente aos demais pases da regio. Percebia-se que a Chinavinha explorando a utilizao de seus vastos recursos internos e sua importncia geopoltica, ento

    potencializados por uma estratgia agressiva de internalizao de novas tecnologias, atravs da atrao docapital estrangeiro e da promoo de exportaes (World Bank, 1993 e Jomo, 2001). Haveria, aqui,elementos convergentes com as experincias de seus vizinhos mais desenvolvidos.

    Portanto, a idia de um modelo de desenvolvimento asitico subestima diferenas que socruciais para entender a regio (Jomo, 2001). A tradio do mainstream tendeu a tratar o milagreasitico como sendo o resultado esperado da eficiente execuo de polticas econmicas corretas: amanuteno da estabilidade econmica e da abertura economia internacional. Em sntese, pela adoode polticas market-friendly, de modo que este seria o nico modelo a ser considerado e, mais

    importante, replicado em outros pases. Com a crise financeira de 1997-1998, a leitura positiva domainstream sobre algumas das caractersticas de governana encontradas na regio se inverteu e,rapidamente, uma nova histria foi construda: os sistemas financeiros eram frgeis e mal regulados; as

    polticas macroeconmicas, especialmente os regimes cambiais, sinalizavam, incorretamente, umaestabilidade inexistente; as burocracias eram endemicamente corruptas; as polticas de incentivo internacionalizao, fontes de corrupo, dadas as relaes esprias entre os setores pblico e privado; e o

    prprio crescimento sustentado seria negativo ao criar uma falsa expectativa de retornos garantidos paraos investidores estrangeiros. O que era um modelo de sucesso, passvel de ser emulado por outraseconomias em desenvolvimento pelo menos a sua base gentica de polticas market-friendly passou aser caracterizado como um capitalismo clientelista.

    Interpretaes alternativas sugeriam que a viso do mainstream sobre o desenvolvimento e a

    crise seria reducionista e insuficiente. Autores seminais desta viso no-convencional, como Amsden(1989), Wade (1990), Jomo (2001) e Chang (2006) sugerem que a construo poltica de preoserrados, ou seja, de incentivos descolados dos sinais correntes sobre a escassez relativa dos recursos,

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    teria sido vital para a configurao de bases econmicas especialmente na indstria capazes desustentar o crescimento com modernizao das economias asiticas. A nfase destes estudos recai sobreas interaes entre as polticas pblicas, especialmente as direcionadas para a promoo seletiva desetores considerados estratgicos, e a organizao institucional dos mercados os padres definanciamento, a governana privada e a interface pblico-privada.

    Neste sentido, alguns pases, notadamente Japo, Coria e Taiwan, teriam sido extremamente

    eficientes em criar e gerir estmulos para o desenvolvimento de atividades produtivas que, ex-ante,mostravam-se inviveis do ponto de vista das suas vantagens comparativas. Os governos nacionaisutilizaram incentivos tributrios para ampliar a acumulao de lucros e garantir sua reteno pelasempresas. A depreciao acelerada dos equipamentos estimulava uma renovao mais rpida dosestoques de capital. Os recursos cambiais escassos eram subsidiados e direcionados para os setoresestratgicos. Empresas que cumpriam suas metas de exportao e que, desta forma, estavam expostas sexigncias competitivas superiores dos mercados externos, eram apoiadas com mais estmulos fiscais,cambiais e creditcios. Empresas ineficientes eram punidas pela supresso dos benefcios.

    A forte alavancagem dos grupos empresariais era um elemento central da acelerao dosinvestimentos e, assim, do ritmo de crescimento global. A estrutura patrimonial caracterizada pela altarelao capital de terceiros (dvidas) sobre capital prprio no era uma anomalia. Era o arranjo que

    sustentava a modernizao acelerada. Seu equilbrio dependia do crescimento, tambm veloz, dasreceitas, especialmente as de exportao, da proteo ao mercado interno, e da sustentao governamentaldo padro de financiamento (interno e externo). O crdito domstico suficiente para sancionar talestrutura patrimonial, o controle da conta capital e da conta corrente, e a busca de um relativo isolamentodomstico diante de choques externos, compunham o leque de aes complementares ao arranjo de

    polticas setoriais.O sistema de recompensas (acesso aos incentivos) e punio (sua retirada) minimizava o rent

    seekinge o desvio de recursos para fora da lgica de investimentos voltados expanso e modernizaoda base produtiva. Este ponto de fundamental relevncia, pois diferencia a experincia asitica da deoutros pases perifricos, cujos incentivos indstria infante no vinham acompanhados de mecanismosefetivos de monitoramento de desempenho. O prprio Banco Mundial (World Bank, 1993) teve dereconhecer a sua eficincia e importncia. Por este prisma as razes da crise financeira de 1997-1998deveriam ser buscadas, tambm, no processo inadequado de rpida liberalizao financeira e deafastamento, particularmente no caso sul-coreano, das polticas desenvolvimentistas.

    Esta sntese representa o modelo ideal na perspectiva no-convencional. Todavia, os autoresheterodoxos assumem que sua implementao variou no tempo e no espao, criando divergnciassignificativas nas experincias individuais. So amplamente reconhecidas as limitaes dos pases menosdesenvolvidos da regio Malsia, Indonsia, Tailndia e Filipinas em reproduzir o padro deeficincia de Japo, Coria e Taiwan. Da mesma forma, admite-se que o prprio sucesso naindustrializao e as mudanas na estrutura da economia internacional impuseram alteraes substanciaisnas polticas de promoo do desenvolvimento. O ativismo estatal foi dando lugar a intervenes mais

    pontuais, voltadas reestruturao de setores em declnio ou organizao dos novos setores produtivos,pela gerao horizontal de estmulos por exemplo, investimentos na formao de mo de obraqualificada e criao de facilidades institucionais (centros de pesquisa, aes de promoo comercial,etc.) para os setores intensivos em tecnologia.

    Por outro lado, o ambiente de desregulamentao e liberalizao dos anos 1990 teria criado novosestmulos econmicos, inexistentes no perodo desenvolvimentista. O excesso de endividamento externo,o boom especulativo nos mercados imobilirio e de capitais, a falta de coordenao nos investimentos emvrios setores gerando sobre-capacidade e rentabilidade declinante, a corrupo e o favoritismo, a

    predominncia dos interesses financeiros na definio das polticas macroeconmicas, especialmente narea cambial, entre outros elementos, teriam sido gerados pela ruptura do modelo anterior. Isto seria maisexplcito no caso coreano. Nos NICs de segunda gerao (Malria, Indonsia, Tailndia e Filipinas),

    seguem os autores heterodoxos, ao carter incompleto na replicao do modelo ideal somaram-se asfragilidades reais, derivadas da sua posio hierarquicamente inferior na diviso regional do trabalho, e osestmulos negativos da liberalizao financeira. Inverte-se aqui a (nova) leitura negativa do mainstream.

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    A idia de capitalismo de compadres culpa o passado pelos problemas que levaram crise,desconsiderando os aspectos virtuosos daquele passado e as vicissitudes do novo modelo criado pelaliberalizao.

    No prximo item explora-se o que h de particular no desenvolvimento chins recente. Reproduz-se na China elementos encontrados nos casos bem-sucedidos da modernizao com contornos asiticos,tais como o driveexportador, a escolha de campees nacionais para liderar a dinmica de industrializao

    e internacionalizao, a existncia de um controle estreito sobre preos macroeconmicos fundamentaispara a manuteno do empuxe de crescimento, a forte acumulao de capital, dentre outros. Todavia, htambm aspectos muito especficos, dos quais cabe destacar que a China avana rumo constituio deum novo plo de poder global que est redefinindo os contornos econmicos e polticos da regio e da

    prpria ordem internacional. A articulao destes elementos de suma importncia para a compreensoda experincia chinesa.

    3. O Modelo Chins na Viso dos seus Formuladores3.1 A Ascenso Pacfica como um Modelo de Desenvolvimento

    O capitalismo emergiu e se irradiou enquanto um processo social liderado pelos pases ocidentais,especialmente Inglaterra e EUA. Na longa transio do feudalismo para o capitalismo, a China aparecia

    no imaginrio e na realidade econmica e poltica da Europa enquanto um pas misterioso e fechado,repleto de promessas de rpido enriquecimento para quem lograsse penetrar em suas entranhas. Atmeados do sculo XIX havia a percepo, expressa por inmeros contemporneos, de Adam Smith a

    Napoleo, de que o grau de desenvolvimento tecnolgico e econmico chins rivalizava, seno superava,ao experimentado no Ocidente. Todavia, com a consolidao da industrializao e suas implicaes

    positivas sobre acumulao de poder econmico e militar, o confronto entre as potncias europiasemergentes, particularmente a Inglaterra, e o Imprio do Meio passou a revelar uma nova realidade: aincapacidade da China em acompanhar o ritmo de transformaes em curso no mundo ocidental. No foisem surpresa, para europeus e chineses que, de derrota militar em derrota militar o Imprio se desfez. E,mais importante, se inverteu a percepo ocidental sobre a China. De civilizao misteriosa, avanada e

    prspera, para um pas cronicamente invivel, cuja populao seria material e culturalmente inferior(Spence, 1999, Hutton, 2007).

    Vrios dos mais destacados intrpretes do capitalismo se debruaram sobre que percebiam ser ofracasso chins. Marx via na China o exemplo mais primitivo do modo asitico de produo,caracterizado pela longa estagnao em um estgio de desenvolvimento agrrio e de baixo dinamismo,incapaz de criar as pr-condies para a emergncia do capitalismo. Max Weber destacou caractersticas

    por ele percebidas como intrnsecas aos chineses, tais como desonestidade, docilidade excessiva,incapacidade de estabelecimento de laos mtuos de confiana, dentre outros, que seriam incompatveiscom o esprito do capitalismo. Ademais, em contraste com a Europa protestante, faltariam na China osincentivos para a poupana e o trabalho metdico e pesado. Tais elementos culturais condenariam a Chinaao atraso (Spence, 1999). Ecos contemporneos da viso dos maiores expoentes do pensamento social do

    sculo XIX aparecem, por exemplo, em North (1995), que identifica a origem do atraso chins naausncia de direitos de propriedade e, portanto, na arbitrariedade no exerccio do poder pelo Estado contraos indivduos empreendedores. Landes (1998) reconhece o que voz corrente entre os sinlogos, ou seja,que a China foi uma civilizao em muitos sentidos eficiente e mais avanada que as civilizaesocidentais contemporneas, mas que no foi capaz de conformar instituies adequadas ao plenofuncionamento do capitalismo. Assim como Weber e North, Landes aponta o carter conservador efechado da sociedade chinesa como tendo sido determinante para o atraso relativo do pas frente aomundo ocidental capitalista.

    Os grficos abaixo (1 at 3) fornecem um contorno mais preciso do debate. As estimativas deMaddison (1998 e 2007) sugerem que at meados do sculo XVI, em termos da renda per capita, e at ocomeo do sculo XIX, quando se toma o produto total, a China apresentava um nvel de

    desenvolvimento equivalente ou superior o verificado no Ocidente. Um vasto imprio, com uma reasemelhante da Europa Ocidental, abrigava, entre os sculos XVI e XIX, uma populao cerca de duasvezes superior do que o conjunto dos principais pases ocidentais. A viso marxiana de uma sociedade

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    agrria e atrasada no parece se ajustar a um conjunto amplo de evidncias de que a China possua umabase produtiva capaz de, em 1750, produzir mais ferro do que em toda a Europa (Hutton, 2007). No toa, os imperadores e o mandarinato chins enxergavam o pas como o centro mais avanado do mundoconhecido, tcnica, moral e culturalmente.

    Por outro lado, os dados tambm confirmam a incapacidade chinesa de acompanhar o avanomaterial verificado a partir da industrializao capitalista dos pases europeus, posteriormente emulada

    por potncias emergentes como EUA e Japo. Assim, se no comeo do sculo XIX a economia chinesarepresentava 1/3 da economia mundial, em 1950 tal participao no ultrapassava 5%. O atrasoeconmico transmutou-se em perda de poder militar, que em paralelo rigidez do sistema polticodomstico, redundou em derrotas nos enfrentamentos contra potencias ocidentais, particularmente aInglaterra, ou vizinhos poderosos como Rssia e Japo. Em 1912, o Imprio se desfez. A jovem repblicano foi capaz de conter a decadncia. Em 1949, sob o comando de Mao Zedong, os comunistas seimpuseram a tarefa de recuperar o poderio chins. Desde ento, em vrios momentos, manifestou-se odesejo de sobrepujar as potncias ocidentais. No Grande Salto Frente (1958-1963) Mao prometia quea produo siderrgica chinesa haveria de ultrapassar britnica. Mesmo hoje, as lideranas chinesasapontam que o ano de 2050 marcaria a realizao da promessa de Mao de que a China concretizaria seucatching-up, deixando para trs mais de cem anos de derrotas e humilhaes (Wu, 2005, Bijian, 2005 e

    2006, Mahbubani, 2005, Zweig e Jianhai, 2005, Hutton, 2007). neste contexto que alguns sinlogossugerem que a proclamao da Repblica e a Revoluo Comunista so movimentos iniciais dereafirmao da nao (Pinto, 2000)4.

    1. PIB em Economias S elecionadas, 1-

    1820 (US$ bilhes de 1990)

    -

    50

    100

    150

    200

    250

    1 1000 1500 1600 1700 1820

    Pases Ocidentais Avanados China

    2. PIB em Economias Se lecionas, 1850-

    2003 (US$ bilhes de 1990)

    -

    2.000

    4.000

    6.000

    8.000

    10.000

    1850 1870 1900 1978

    Pases Ocidentais Avanados China

    3. Renda Per Capita, 1-2003 (China/Pases

    Ocidentais Avanados, em %)

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    40

    60

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    1 1500 1700 1850 1900 2003

    Fonte: Dados brutos de Maddison (2007). Elaborao prpria.

    A conscincia de que a estratgia introvertida e baseada na coletivizao forada no havialogrado resultados em termos de reafirmao do poderio chins que passou a nortear a viso dereformistas como Deng Xiaoping. Uma vez no poder, eles deram incio a um processo de abertura emodernizao econmica acelerada. Desde ento, a China vem apresentando uma vigorosa trajetria de

    crescimento e internacionalizao. Com uma taxa mdia de expanso da renda superior a 9% ao ano, aolongo de mais de um quarto de sculo, a China atingiu, em 2006, a condio de quarta maior economia domundo em dlares correntes, ou segunda maior em paridade poder de compra5, o que significa,respectivamente, 5% e 15% da economia mundial6. As projees atuais apontam para o fato de que aChina dever se tornar, ainda na primeira metade do sculo XXI, a maior economia do planeta7.

    No plano comercial, o pas j o terceiro maior global player, atrs apenas de Alemanha eEstados Unidos. Note-se que em meados dos anos 1980 a China representava cerca de 1% das

    4Insiders do processo de abertura e modernizao na China enfatizam a linha de continuidade entre as reformas propostas por DengXiaoping e a revoluo de Mao Zedong. Ver, por exemplo, Wu (2005, 2006) e Bijian (2006).5World Development Indicators, 2007 (www.worldbank.org).6

    Para se colocar em perspectiva, a economia latino-americana como um todo equivale chinesa a valores de mercado ou cerca de metadedesta em PPP. No plano comercial h cerca de trs dcadas a participao latino-americana tem oscilado entre 6% e 7% do total dasexportaes mundiais. A China absorve o equivalente a todo o IED que se direciona para a Amrica Latina, excludos os parasos fiscais doCaribe.7Ver, dentre outros, Goldman Sachs (2007), National Intelligence Council (2005) e Trinh, Voss e Dick (2006).

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    exportaes mundiais peso equivalente ao do Brasil , atingindo, atualmente uma participao seisvezes maior (WTO, 2006, Cepal, 2006). A partir do comeo dos anos 1990, a China tornou-se a nao emdesenvolvimento que mais absorveu investimentoexterno direto (IED). Recentemente, alm de receptor o

    pas tambm se tornou fonte de investimentos8, especialmente em outros pases perifricos. O driveexportador chins vem impondo uma crescente presso competitiva sobre economias industrializadas eem desenvolvimento. Sua demanda por matrias-primas e energia afeta, cada vez mais, a distribuio

    mundial da oferta e dos preos das commodities, com distintos impactos sobre outros pases, produtores econsumidores9.As lideranas polticas e os idelogos do Partido Comunista da China (PCC) tm se utilizado de

    diversas expresses-sntese da especificidade da sua prpria trajetria de modernizao, tais comosocialismo de mercado, socialismo com caractersticas chinesas, caminho do desenvolvimento

    pacfico, abordagem cientfica do desenvolvimento e a estratgia de construo de uma sociedadesocialista harmoniosa, ascenso pacfica condio de potncia, para citar algumas das maisrepresentativas. Conforme argumenta um dos intelectuais reformistas mais influentes na Chinacontempornea (Bijian10, 2005 e 2006), a deciso chinesa de abraar ao invs de repudiar a globalizaoestaria no centro das principais decises polticas destas ltimas dcadas, refletindo a compreenso de queo crescimento econmico por meio de reformas que ampliassem os espaos dos mercados seria um

    instrumento central para o rejuvenescimento da nao. Vale dizer, sabedores do seu enorme atrasorelativo e do fracasso das estratgias coletivistas, os lderes da era ps-Mao Zedong adotaram o

    pragmatismo na conduo de sua estratgia de crescimento, entendido este como um objetivointermedirio do norte maior que, desde h muito persegue os chineses: a recuperao de uma posiohierarquicamente superior na ordem internacional (Wu, 2005 e 2006).

    Conscientes de que seu sucesso at aqui ainda insuficiente para a conformao de uma sociedademoderadamente prspera, e de que a perspectiva de concretizao daquele objetivo maior se descortinarapidamente, gerando tenses diversas particularmente nos planos geopoltico e geoeconmico oslderes da China contempornea buscam refgio no conceito da ascenso pacfica. Assim, na

    perspectiva chinesa haveria uma tentativa diferenciao da sua trajetria com respeito de outros pases,que em momentos semelhantes acabaram provocando conflitos polticos e guerras, como nos casos deAlemanha e Japo (Bijian, 2005, 2006). H, aqui, um dilogo nem sempre explcito com a literaturaocidental de histria e poltica internacional, cujas anlises procuram modelar o processo de ascenso equeda das grandes potncias (Kennedy, 1987, Landes, 1998, Fiori, 2004). Neste tipo de abordagemconstata-se a confluncia de elementos de acumulao de poder harde soft(militar, poltico, cientfico,cultural e econmico) no estabelecimento de hegemonias globais ou regionais. A ascenso de uma nova

    potncia estaria quase sempre associada ao declnio de outra, de modo que, recorrentemente, a guerraacabou sendo o desaguadouro das tenses provocadas pelo choque entre ascendentes e decadentes. Oschineses no querem ser percebidos como uma ameaa global, a despeito do fato de no esconderem suaestratgia poltica de longo prazo, que a de colocar a civilizao chinesa em uma posio decentralidade, mas no necessariamente de hegemonia, na ordem internacional.

    Condicionantes domsticos e externos interagem na conformao da viso chinesa sobre osdesafios resultantes de sua ascenso pacfica. Assim, por exemplo, o mais recente Plano Qinqenal (o11o, para o perodo 2006-2010) procura estabelecer os fundamentos para o desenvolvimento chins nasduas primeiras dcadas do sculo XXI. Seguindo o conceito firmado no 10 Plano de conformao deuma sociedade moderadamente prspera, explicita-se a preocupao de que o maior desafio depois dealcanado o crescimento econmico, expresso no aumento da renda per capita, o de tambm fortalecer o

    8 O estoque IED no exterior de cerca de US$ 46 bilhes ainda pequeno quando se comparam os dados de outros pases emergentes.Todavia, os fluxos so crescentes, tendo superado US$ 11 bilhes em 2005 (tabela do Anexo do World Investment Report 2006 daUNCTAD www.unctad.org - acesso em janeiro de 2007).9Para se colocar em perspectiva, no ciclo global de crescimento liderado pelo complexo econmico sino-americano, entre 2002 e 2006, opreo mdio das commodities elevou-se em cerca de 89%, contra 25% das manufaturas (Unctad, 2007). A poltica externa da China procuradiversificar e aprofundar sua zona de influncia poltica e econmica, de modo a garantir o suprimento dos insumos estratgicos para acontinuidade do seu crescimento.10Zheng Bijian (2006) o presidente do Frum de Reformas da China, e Vice-Presidente Executivo da Escola do Partido Comunista.

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    bem-estar social. Outro conceito importante o dos Trs Representantes, onde caberia ao PartidoComunista representar as necessidades de desenvolvimento das foras produtivas chinesas, odesenvolvimento da cultura chinesa, e os interesses fundamentais da maioria da populao chinesa.Atravs desses princpios, o desenvolvimento econmico, buscado atravs de reformas11 e maiorabertura, deve ser compreendido como o principal objetivo instrumental (ou intermedirio) do governochins. At porque o crescimento acelerado e a gerao de empregos so condies necessrias para a

    estabilidade social. A partir da histria chinesa emergem fantasmas sobre desordem e caos, geralmenteprovocados pela revolta popular ante o excesso de rigor do poder central, particularmente em momentosde escassez de recursos. (Pinto, 2000, Greenville, 2005, Wu, 2005).

    Na avaliao de Bijian (2006) existiriam inmeras condies favorveis para concretizao de umnovo perodo de prosperidade. Em primeiro lugar, as mudanas no padro de consumo interno, a partir doincremento da renda per capita, estimulariam a consolidao de uma estrutura produtiva diversificada emais vinculada aos gastos domsticos. Em paralelo, haveria ainda amplo espao para explorar aabundncia de mo-de-obra, cuja qualificao vem se expandindo, e a maior oferta e qualidade relativa dainfra-estrutura, especialmente em transportes e comunicaes. No menos importante, Bijian ressalta oque considera ser um ambiente de estabilidade poltica e de consolidao do socialismo de mercado. Noobstante as condies favorveis, o 11o Plano Qinqenal no desconsidera os desafios a serem

    enfrentados, particularmente nas reas de utilizao dos recursos naturais, especialmente a gua, busca demaior eficincia energtica, proteo do meio ambiente e reduo das desigualdades provocadas pelocrescimento desproporcionalmente mais acelerado de certas regies urbanas, em detrimento do hinterlandou do mundo rural em geral, que abriga mais da metade da populao.

    Para sustentar o crescimento e reduzir os seus impactos negativos a China dever contar com umateia ampla de relaes internacionais. Por isso, seguindo ainda a leitura de Bijian (2006) sobre as

    prioridades estratgias da China, expressas no seu mais recente Plano Qinqenal, o governo chins v ocenrio internacional como um ambiente de interdependncia, de aprofundamento da globalizao e decondies favorveis ao desenvolvimento do pas. Essas condies seriam: (i) a mudana nas relaesentre as grandes potncias no perodo ps-Guerra Fria; (ii) a possibilidade da China, atravs do seudesenvolvimento pacfico, oferecer oportunidades de crescimento para outras naes; (iii) em especial, acooperao com os pases em desenvolvimento e a garantia de uma relao especial e estratgica; (iv) asoportunidades de relao com os pases vizinhos, e a busca pela soluo dos conflitos diversos; (v) e a

    preferncia pela multilateralidade como importante forma de relao diplomtica, ou alternativamente, orepdio s posturas unilaterais das potncias hegemnicas. O ambiente internacional, embora sejafavorvel, tambm apresenta desafios, tais como desdobramentos protecionistas das disputas pormercados, recursos e tecnologias. Alm disso, a ascenso da China pode ser vista como uma ameaa pelasgrandes potncias, levando o pas a ter de reforar sua idia de desenvolvimento pacfico. Ressalte-se que,em praticamente todas as determinaes chinesas em relao s relaes internacionais, podem ser vistosos Cinco Princpios de Coexistncia Pacfica12.

    Portanto, como uma primeira aproximao, razovel assumir que na variante chinesa do

    modelo asitico aqui entendido no como um nico modelo, mas como uma expresso que sintetizaos aspectos comuns na trajetria de desenvolvimento das principais economias da regio , a estratgia deacelerao do crescimento atravs da adoo de uma maior exposio aos mecanismos de mercado deveser compreendida com um meio para o alcance do objetivo maior da modernizao chinesa (Saich,2004, Woo, 2005). As reformas liberalizantes no so um fim em si mesmas, ou mesmo uma adeso ordem liberal13, como sugerem as interpretaes mais prximas tradio convencional da escola dos

    11Modernizao dos transportes, reforma no setor bancrio, otimizao da utilizao dos recursos no-renovveis, dentre outros.12Estes princpios tm mais de cinqenta anos e foram sugeridos originalmente por Chu Em-lai, estrategista da diplomacia chinesa, poucodepois da formao da Repblica Popular da China. So eles: (1) respeito mtuo soberania e integridade nacional; (2) no-agresso; (3) nointerveno nos assuntos internos de um pas por parte de outro; (4) igualdade e benefcios recprocos; e (5) coexistncia pacfica entre

    Estados com sistemas sociais e ideolgicos diferentes.13Por exemplo, o anncio no Congresso do Povo realizado em 2007 de um novo marco legal que coloca a propriedade privada no mesmopatamar de proteo jurdica que a propriedade coletiva, parece responder no s s presses de investidores privados mas, principalmente,procuraria atenuar o problema da expropriao de terras de camponeses por autoridades locais em meio ao vigoroso processo de urbanizao.Ver: NPC Adopts Landmark Property Law (http://www.china.org.cn/english/government/203220.htm - acesso em maro de 2007).

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    preos corretos14. At porque h contrastes evidentes entre o sucesso chins de adaptao gradual epragmtica ao contexto de globalizao e as experincias frustradas de big bang na transio daseconomias de planejamento central do antigo bloco sovitico ou de implementao do Consenso deWashington na Amrica Latina (Rodrik, 2005). Sugere-se aqui que, no caso da China, a gestomacroeconmica de curto-prazo e o planejamento de desenvolvimento de longo prazo, ambos ancorados

    por uma poltica externa cada vez mais ativa, pretendem dar sustentao quela trajetria de retomada

    de um papel de maior protagonismo na arena internacional. Neste sentido, haveria uma aproximaomuito maior com a dinmica descrita anteriormente para o desenvolvimento do Japo, Coria do Sul eTaiwan.

    A poltica de Going Global um elemento da estratgia chinesa de construir campeesnacionais, assim como j haviam feitos os pases mais avanados da regio. Alm de nuclear o esforoindustrializante (Lunding, 2006, Medeiros, 2006), os conglomerados chineses vm sendo incentivados

    pelo governo a avanar em seus processos de internacionalizao. Os conglomerados estatais na rea depetrleo e gs, como a Sinopec, CNOOC e a Petrochina, representam a articulao entre a busca desegurana energtica, a poltica externa e a estratgia de crescimento de longo prazo. Ainda na rea decommodities h outros gigantes com controle ou participao estatal, como a Aluminum Corporation ofChina (Chalco) e a Baosteel. No setor de bens de consumo, telecomunicaes e produtos eletrnicos, h

    empresas como Huawei, TCL, Lenovo, Boe Technology e Galanz. H, ainda, corporaes que esto emtrajetria de internacionalizao em setores como alimentos e bebidas (Tsingtao, Cofco International),comrcio e navegao (China Ocean Shipping Group, Sinochem Corp) e construo civil (China StateConstruction and Engineering Company). Todas essas empresas aparecem nas listas de maiorestransnacionais oriundas de pases em desenvolvimento e, algumas esto entre as maiores de seusrespectivos setores em nvel internacional, mesmo quando se incluem empresas dos pasesindustrializados.

    Ao se considerar as empresas de Hong Kong, Taiwan e de sino-descendentes os chineses deultramar (overseas Chineses) em pases asiticos como Cingapura, Malsia, e Tailndia, nota-se umainfluncia crescente de capitais chineses na regio e em nvel global (Unctad, 2006b). Neste sentido,

    possvel perceber a lgica da poltica chinesa de buscar um aprofundamento das relaes econmicas noplano regional, tanto pela via usual dos fluxos de comrcio e investimento, quanto pela construo delaos institucionais mais slidos, onde o pas busca cooptar vizinhos que poderiam, em princpio, seremdeslocados dos mercados globais por fora da concorrncia chinesa e que passam a ter no prpriomercado chins uma fonte substituta de dinamismo, conforme ser detalhado na seqncia. Tambmdesta forma estar-se-ia retornando a um papel histrico de liderana regional e que fora amortecido pelaascenso dos pases europeus na era ps-revoluo industrial (Pinto, 2000).

    A impressionante trajetria de crescimento da China vem colocando inmeros desafios paraanalistas,policymakerse lideranas em diversas esferas de atuao. Ela causa admirao pela capacidadedo pas mobilizar seus recursos humanos, materiais e espirituais para, em um relativamente curto espaode tempo, lograr um robusto processo de crescimento econmico, modernizao tecnolgica, reduo de

    pobreza, em meio a uma relativa estabilidade econmica e social. bem verdade que h evidncias deque o processo de modernizao chins tem limitaes internas e externas (Bijian, 2005, 2006). H otemor de que o crescimento chins aprofunde problemas globais de sustentabilidade ambiental, de pressoaltista sobre preos de commodities e baixista sobre os salrios dos pases industrializados e deemergentes com estruturas produtivas mais complexas. Para garantir o suprimento de insumosestratgicos, a China vem implementando uma poltica externa cada vez mais ativa, criando fontes

    potenciais de tenso com as potncias j estabelecidas. A escassez potencial de energia, matrias-primaspara a produo industrial e alimentos, estaria no centro das preocupaes do governo chins, o queestaria influenciando sua poltica externa15.

    A busca de fontes de energia tem levado a China a se aproximar de pases que fazem parte da reade influncia dos EUA ou, mesmo, que esto em confronto com o hegemon, como Ir, Venezuela e

    14Para uma discusso mais detalhada sobre as distintas vises sobre os determinantes do sucesso chins ver, dentre outros, Rodrik (2005),Wu (2005), Prasad e Wei (2005), Flassbeck (2005) e Chang (2006).15Ver Medeiros (2006), Zweig e Jianhai (2005), Mahbubani (2005), Jisi (2005), Lunding (2006) e Trinh, Voss e Dyck (2006).

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    Sudo16. Complementando a diplomacia do petrleo, a China tem anunciado investimentos em diversaseconomias perifricas17 e mesmo economias avanadas ricas em recursos naturais (como Canad eAustrlia), com vistas ampliao das fontes de suprimento de insumos estratgicos (Zweig e Jianhai,2005). Recentemente, o fundo soberano criado para investir parte das reservas oficiais iniciou uma

    poltica de investimentos estratgicos em pases ocidentais, causando preocupaes sobre areconfigurao das estruturas de propriedade em setores-chave de suas economias.

    Em uma nova onda do velho debate cujas linhas gerais foram apresentadas na seo anterior, osucesso chins vem sendo utilizado como comprovao de vrias teses sobre o que determinaria osucesso de certo padro de desenvolvimento. Liberais apontam que a adeso aos mecanismos de mercado,em um contexto de crescente liberalizao econmica, explicaria o fenmeno chins.Desenvolvimentistas enfatizam a regulao dos fluxos financeiros e o controle da taxa de cmbio, as

    polticas industriais e a insero internacional estratgica. Reproduz-se, assim, no s o processo real derpido crescimento baseado nas exportaes e nas relaes estreitas entre Estado e mercado, como odebate terico e ideolgico que vem sendo travado h vrias dcadas em torno da explicao do milagreasitico18. O milagre chins parece recolocar a questo dos estilos de desenvolvimento ou dasformas alternativas de modernizao capitalista, onde a via anglo-saxnica ou liberal tem porantagonismo conceitual os distintos modelos de capitalismo organizado (Zysman, 1983).

    3.2 A Subordinao da Gesto MacroeconmicaArgumentou-se at aqui que a opo chinesa por uma maior exposio s foras de mercado, em

    um mundo globalizado, no pode ser confundida como uma adeso pura e simples aos princpios doneoliberalismo, que a expresso poltica contempornea para onde convergem as diversas interpretaesconvencionais sobre o desenvolvimento. A complexidade da dinmica de modernizao da China vemimpondo um lento, gradual e controlado processo de incorporao/adaptao dos mecanismos demercado, como sugerem, dentre outros, Ramo (2004), Flassbeck (2005), Rodrik (2005), Wu (2005) eMedeiros (2006). O governo chins trabalha com um horizonte de longo prazo para a realizao plena dosobjetivos de modernizao (Saich, 2004, Woo, 2005, Bijian, 2006)19. Em meados de 2030, sua populaose estabilizaria ao redor de 1,5 bilho de habitantes, e somente em 2050, ao fim desse processo, a renda

    per capita atingiria um nvel intermedirio, o que caracterizaria a conformao da sociedademoderadamente prspera.

    Ademais, os planejadores da burocracia chinesa20 e as lideranas do PCC percebem as tensesprovocadas pelo crescimento acelerado21. Em particular, preocupam-se em evitar os desequilbriosdistributivos, tanto funcionais quanto regionais, a escassez de matrias-primas e os problemas ambientais.Este o foco do 11o Plano Qinqenal (2006-2010), analisado na seo anterior. No discurso oficial 22, aabertura no pode suprimir a busca pela independncia, e o imperativo da eficincia econmica no devese sobrepor harmonia e coeso da sociedade. O avano tecnolgico no pode comprometer aincorporao de mo-de-obra. O sucesso das zonas costeiras modernas deve ser gradualmente replicadono interior, no que vem se denominando uma corrida ao oeste. No toa, os investimentos pblicos,

    1616 Detalhes em Zweig e Jianhai (2005).17Prasad e Wei (2005) reportam um movimento de expanso de investimento externo originado na China e estimulado pelo governo desde2001 esto sendo implementadas medidas de desregulamentao da conta capital com esse intuito. Em 2004, teriam sido perto de US$ 4,00bilhes, dos quais metade para a Amrica Latina e 40% para pases asiticos. Ellis (2005) analisa os investimentos para a Amrica Latina.18Referncias sobre esse debate podem ser encontradas em Medeiros (2006), Unctad (2006), Rodrik (2005) e Fiori (2004).19No 16 Congresso Nacional do Partido Comunista Chins, realizado em 2002, foram estabelecidas as metas de longo prazo de crescimento(http://www.china.org.cn/english/features/44506.htm, acesso em dezembro de 2005). Pretendia-se dobrar o PIB em 2010 sob a base de 2000.Em um segundo estgio, o PIB voltaria a dobrar at 2020, quando a renda per capita atingiria o nvel intermedirio de US$ 3.000 dlares. Talritmo de expanso dever ser mantido at meados de 2050. Ou seja, depois de crescer cerca de 9% ao ano no quarto de sculo que se seguiuao incio do processo de abertura, a China vislumbra a necessidade de sustentar um ritmo ainda elevado de crescimento, na casa de 7% aoano pelos 50 anos seguintes.20Mahbubani (2005) destaca que o PCC e a burocracia estatal chinesa experimentaram uma profunda transformao nos ltimos anos. Maisdo que isso, esse analista sugere que a atual gerao de lideranas a melhor que o pas dispe em dcadas.21

    Ver China's Peaceful Development Road (http://www.china.org.cn/e-white/index.htm, acessado em dezembro de 2005).22As principais lideranas chinesas reafirmaram sua preocupao com o crescimento excessivo quando do encontro do Congresso Nacionaldo Povo, em 2007. Na sesso de abertura do Frum Nacional de Desenvolvimento, em maro de 2007, Vice Premier Zeng Peiyan,classificou de insustentvel o fato da China utilizar 15% da energia mundial para produzir o equivalente a 5% do produto mundial (ChinaDaily March 19, 2007 - http://www.china.org.cn/english/China/203358.htm).

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    especialmente em infra-estrutura e habitao popular vm se constituindo nos instrumentos desustentao do ritmo de crescimento nos momentos de desacelerao das exportaes23.

    Desde o incio do sculo XXI, a influncia da China sobre o dinamismo da economia mundialdeixou de ser uma projeo de futurlogos. Estimativas do FMI (IMF, 2007) sugerem que, desde 2002, ocrescimento chins responde por, no mnimo, da expanso da economia mundial. As relaes cada vezmais estreitas entre EUA e China, tanto no plano comercial, quanto no financeiro, autorizam a suposio

    de que h, de fato, um complexo econmico sino-americano, com os EUA crescendo por meio de ummodelo marcado por nveis elevados de consumo (e de importaes) e endividamento, tendo por espelhoe principal parceiro econmico, a China, com seu driveexportador e elevadas taxas de acumulao decapital com investimentos superiores a 40% do PIB , poupana e reservas, constituindo essas em fontede financiamento para os EUA (Dooley, Folkerts-Landau e Garber, 2005). O recente ciclo de expansoglobal (2002-2007) foi determinado, em grande medida, pelas polticas contra-cclicas das economiascentrais, particularmente os EUA.

    A virada do milnio havia sido caracterizada por uma elevada incerteza quanto capacidade daeconomia internacional resistir s recorrentes crises dos mercados emergentes e exubernciairracional do mercado financeiro estadunidense. De fato, entre 2001 e 2002, verificou-se um forte ajustenos lados real e financeiro, com a taxa de crescimento do PIB recuando para menos de 3% a.a., contra a

    mdia superior a 4% dos anos anteriores, o volume de comrcio atingindo uma variao anual de 0% em2001 e 3% em 2002, e o mercado acionrio dos EUA acumulando perdas da ordem de 40%. Todavia, jem 2003 as economias estadunidense e mundial se recuperavam com um vigor impressionante, cujomomento de auge foi o ano de 2004, onde se verificou a maior taxa de elevao do PIB mundial em trintaanos. Entre os momentos de desacelerao e recuperao, as polticas monetria e fiscal dos EUA e, emmenor intensidade, da Europa e do Japo, foram inusitadamente expansionistas.

    Nos EUA, tais estmulos permitiram a rpida recuperao dos gastos privados que, em umcontexto de crescente endividamento, dada a elevada liquidez e as taxas de juros em queda, lanaram aeconomia em um novo ciclo de vigoroso crescimento retomando o patamar de 3% a 4% ao ano nosanos seguintes. Em paralelo recuperao, novos desequilbrios passaram a chamar a ateno. Os dficitsexternos em conta corrente foram atingindo nveis inusitados, passando de menos 2% do PIB em meadosdos anos 1990, para 4% a partir do final daquela dcada, e 6% a partir de 2005. Isto acontecia apesar doenfraquecimento do dlar. O endividamento privado, especialmente das famlias, atingia nveis recordes,a deteriorao das contas pblicas era crescente e as presses altistas em certos mercados financeiros,

    particularmente no segmento imobilirio, eram preocupantes. A crise de crdito explicitada a partir dosegundo semestre de 2007 no somente marcou a reverso desse quadro virtuoso, como revelou osexcessos provocados por um padro instvel e fortemente especulativo de financiamento.

    Foi neste contexto que se manifestou a profundidade das relaes simbiticas entre as economiaschinesa e estadunidense. No plano comercial, a China tornou-se o principal parceiro dos EUA. Todavia, arelao bilateral apontava dficits comerciais crescentes, que passaram de uma mdia de US$ 54 bilhesentre 1996 e 1999, para mais de US$ 200 bilhes depois de 2005. Em contra-partida a China, atravs da

    estratgia de acumulao de reservas e, assim, de compra de ttulos do Tesouro dos EUA, passou a ser umdos principais financiadores dos dficits gmeos da economia estadunidense. Tal relao complexa decomplementaridade alimentou o debate sobre a sustentabilidade dos desequilbrios globais de pagamentose do quadro atual de elevada liquidez e juros reduzidos (Dooley, Folkerts-Landau e Garber, 2005).

    A manuteno de um ritmo acelerado de crescimento, na casa de 10% a.a. nos anos que seseguiram crise financeira de 1997-1998, se d tendo por base uma elevao significativa do nvel dosinvestimentos que passa de uma mdia j elevada de 30% do PIB na dcada de 1990, para mais de 40%nos anos 2000 e um recuo das presses inflacionrias at 2007, especialmente quando se toma por baseo decnio anterior. Os resultados das contas externas passam a expressar a velocidade dainternacionalizao chinesa no perodo ps-entrada na OMC. Depois de 2002, os supervits em contacorrente passam de uma mdia de 2% do PIB para estonteantes 9% e 12% do PIB em 2006 e 2007. Em

    valores correntes passou-se de US$ 30 bilhes/ano para mais de US$ 300 bilhes/ano, um incremento dedez vezes em pouco mais de cinco anos. A corrente de comrcio no ciclo em questo cresceu 25% a.a. em

    23Esse ponto est analisado em Medeiros (2006) e Unctad (2005), de modo que no nos prenderemos a detalhes aqui.

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    mdia, com as exportaes passando US$ 266 bilhes em 2001 para mais de US$ 1.200 bilhes em 2007.No mesmo perodo as importaes avanaram de US$ 232 bilhes para US$ 908 bilhes. Como a contacapital e financeira permaneceu superavitria, no somente pela absoro lquida de mais de US$ 50

    bilhes/ano, em mdia, depois de 2002, mas tambm pelo influxo de outras modalidades de capitais quea despeito dos controles de capitais passaram a especular, cada vez mais, a favor de um yuan forte o

    balano de pagamentos registrou resultados estruturalmente positivos. Estes se expressaram na

    acumulao de reservas internacionais sem precedentes atingindo, em 2007, mais de US$ 400 bilhesde variao, com um nvel absoluto de US$ 1,6 trilho (junho de 2008) ou, ainda, 46% do PIB e, comisso, em uma situao de fortalecimento da solvncia externa, capturada pelo indicador dvida externalquida (negativa desde 2001) como proporo das exportaes.

    Nestas ltimas trs dcadas, a gesto macroeconmica da China guardou relao estreita, e desubordinao com sua estratgia de crescimento de longo prazo. No perodo em destaque aqui, este fatoaparece de forma mais explcita na gesto cambial e dos fluxos financeiros. No que tange ao primeiroelemento, o pas tem procurado manter uma taxa de cmbio competitiva, o que se traduz pelas maciasintervenes no mercado cambial. Ao contrrio das expectativas e presses de analistas e policymakersestadunidenses, a acumulao de reservas ganhou flego redobrado depois da mudana de regimecambial de 2005, quando o yuanpassou a flutuar com respeito a uma cesta de moedas24. A valorizao

    acumulada de cerca de 10% frente ao dlar vem sendo controlada, ou melhor, contm-se a tendncia deuma valorizao do yuan renminbi, que seria um imperativo caso a taxa de cmbio fosse determinadalivremente nos mercados privados. Por outro lado, no que refere aos fluxos de capitais, pode-se perceberuma inflexo liberalizante que, todavia, vem sendo moldada de forma a atender os interesses estratgicosmais gerais.

    No quarto de sculo que se seguiu abertura promovida por Deng Xiaoping, tratava-se depriorizar a absoro de capitais (na forma de investimentos diretos e no de dvida) e tecnologia, alm deampliar a gerao de divisas por meio do comrcio internacional. Com uma capacidade para exportarmais robusta, a China pde minimizar o temor da escassez de alimentos e matrias-primas, o que seria umlimite objetivo continuidade do crescimento. Em um novo momento, j no sculo XXI, o pas partiu

    para a internacionalizao de seus capitais e da sua moeda. Conforme destacado anteriormente, desde2001, atravs de polticas como o Going Global, o governo vem estimulando os investimentosinternacionais das empresas nacionais, especialmente as estatais, em reas estratgicas, bem como

    permitindo que seus vizinhos utilizem oyuanpara liquidar pagamentos no comrcio bilateral regional.O governo chins tem procurado manejar de forma pragmtica a gesto dos fluxos financeiros. H

    incentivos tributrios para a atrao de IDE e, ao mesmo tempo, vrias restries para o seudirecionamento interno e para a constituio de passivos internacionais em instrumentos de dvida. bemverdade que no perodo recente os crditos comerciais tm crescido de importncia. Ademais, gastosdiversos vem sendo flexibilizados, como em turismo e aquisio de ativos no exterior, especialmente porestatais chinesas em setores considerados estratgicos. Depois da crise financeira de 1997-1998, a

    burocracia estatal optou por abandonar a meta de plena conversibilidade da conta capital e trabalha em

    ajustes pontuais que tambm buscam equilibrar as tenses provocadas pela necessidade de darcontinuidade internacionalizao e modernizao do pas e os riscos associados instabilidade dosmercados financeiros (Prasad e Wei, 2005). Neste mesmo sentido, os compromissos de adeso a OMCesto implicando na liberalizao financeira interna. Desde dezembro de 2006, os bancos estrangeiros

    passaram a poder operar plenamente no mercado de varejo chins. importante notar que, em linha coma estratgia mais geral de desenvolvimento e atrao de capitais estrangeiros, o governo est exigindo aconstituio de novas empresas, que devem ser fortemente capitalizadas, de modo a fortalecer o(potencialmente frgil) setor financeiro.

    Nos ltimos anos vem se intensificando a preocupao em estabelecer um padro de crescimentosustentvel, o que se traduziu no esforo iniciado em 2003 de frear a expanso dos investimentosindustriais, que vm se situando em nveis superiores a 20% ao ano, j tendo atingido a casa dos 40% a.a..

    Tal ritmo gera presses sobre a infra-estrutura dos principais centros industriais, com impactos adicionais24Em julho de 2005, a China abandonou o regime de cmbio fixo e adotou um regime de flutuao administrada para oyuantendo por base uma cesta de moedas.

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    sobre o meio-ambiente, os preos de commodities industriais e a capacidade de gesto poltica do sucessoeconmico, para citar algumas reas enfatizadas pelospolicymakerschineses (Roubini & Setser, 2005b).A maior flexibilidade cambial tambm foi pensada para tentar ampliar a autonomia da poltica monetria.A valorizao controlada do yuan permitiria reduzir potenciais presses inflacionrias e ampliar,gradualmente, a participao do consumo domstico como fonte de crescimento da demanda. Oextraordinrio desempenho do comrcio exterior chins, fruto do descolamento das taxas de crescimento

    das exportaes e importaes, outro sinal de que haveria espao, do ponto de vista interno, paraalguma apreciao cambial. As presses inflacionrias se acentuaram a partir do segundo semestre de2007, exatamente no momento de reverso da conjuntura externa, dada a crise de crdito nos EUA noincio de 2008 a inflao atingia quase 8% a.a.

    4. Implicaes da Ascenso Chinesa Sobre as Economias AsiticasNeste item, procura-se avaliar o impacto da ascenso da China sobre a dinmica integrao entre

    as economias asiticas. Parte-se da diferenciao entre dois conceitos-chave: regionalizao eregionalismo. O primeiro se refere ao processo espontneo, porque determinado pelas foras mercado, deampliao do espao econmico regional enquanto origem e destino dos fluxos comerciais, financeiros,tecnolgicos e de recursos humanos. Neste sentido, no parece haver dvidas de que as economias

    asiticas, particularmente no Leste da sia, vm experimentando um processo veloz de integrao. Osegundo fenmeno, o regionalismo, est associado constituio de uma estrutura poltica e institucional,

    por meio de acordos diversos e da criao de organismos supranacionais, que tem por objetivo estimular aintegrao. As duas idias podem se confundir no tempo e no espao, dependendo dos processosconcretos em anlise. Observadores da experincia asitica recente destacam que a regionalizaoencontra-se em um estgio muito mais avanado do que o regionalismo (Park, 2006, Gill e Kharas, 2007,Unctad, 2007).

    Ademais, enquanto nos anos 1980 e 1990 a regionalizao foi comandada pelo processo deinternacionalizao dos conglomerados japoneses, tendo por trs o apoio do governo do Japo,

    particularmente pela mobilizao de recursos financeiros oficiais na forma de ODA (OfficialDevelopment Assistance), nos anos 2000 tem-se verificado um quadro mais complexo, agora centrado nohub chins. Duas outras caractersticas de destacam na regionalizao asitica: (i) a fortecomplementaridade entre os fluxos comerciais e de investimento direto externo (IDE), dando forma auma rede regional de produo; (ii) a recomposio do comrcio exterior, com o crescimento dosfluxos intra-regionais, centralizados na China, e perda relativa de importncia dos mercados ocidentais.Aqui se deve perceber que est se manifestando a regionalizao centrada na China, na medida em queseus vizinhos vo perdendo market-share nos principais mercados extra-regionais, particularmente osEUA, e compensando isso com o aumento das vendas para a China. Por isso mesmo o volume cada vezmaior de comrcio de componentes no total transacionado entre os pases da regio. Etapas sucessivas da

    produo de manufaturas, da extrao e processamento as matrias-primas bsicas, produo de energia ealimentos (para as populaes urbanas), etc., at o controle do core tecnolgico e das redes de

    distribuio, passam por esta diviso regional do trabalho, cujo comando est em disputa.Para aprofundar estes pontos, pode-se iniciar com um olhar mais agregado sobre alguns dados queevidenciam o rpido avano na regionalizao, especialmente no perodo que se seguiu s crisesfinanceiras de 1997-1998. Nas ltimas duas dcadas a regio asitica foi a que apresentou os maioresincrementos no comrcio intra-regional, aproximando-se, no incio do sculo XXI, dos nveis deintegrao verificados na Europa (Park, 2006, IMF, 2007b, Unctad, 2007). Kawai (2007) reporta que asexportaes intra-bloco passaram de 37% do total em 1985, para 55%, em 2005. Para se colocar em

    perspectiva, os dados no NAFTA e Unio Europia seriam, respectivamente, de 45% e 60% no ano de2005. Mais da metade do IDE da regio, especialmente o que se direciona para a China, provm da

    prpria regio. Por outro lado, para os demais instrumentos (e mercados) financeiros verifica-se umbaixssimo grau de integrao regional. A mobilidade da mo de obra tambm no particularmente

    elevada. sob os marcos da nova configurao da estrutura da economia mundial (IMF, 2007 e Maddison,2007), determinada pela ascenso chinesa, que se deve compreender o processo de regionalizao em

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    curso na sia e que, por isso mesmo, marca uma etapa diferenciada daquela verificada at meados dosanos 1990, cuja liderana era eminentemente japonesa. Foi neste incio de sculo XXI que a China setransformou no principal centro dinmico sia. Cerca de 1/3 das exportaes totais dos pases asiticosemergentes o que exclui o Japo se destinam para pases da mesma regio, cifra que chega a mais e40% com a incluso do Japo (World Bank, 2006, Gill e Kharas, 2007, Unctad, 2007, IMF, 2007b). AChina j absorve quase metade daqueles fluxos. Em contrapartida, entre 1995 e 2005 os Estados Unidos

    tiveram uma pequena queda na sua participao como mercado de destino para este conjunto de pases,passando de 22% para 20%. Todavia dois aspectos fundamentais, que no ficam evidentes com essesdados gerais, precisam ser destacados: (i) enquanto a China vem ampliando seu market-sharenos EUA,os demais pases asiticos vm perdendo terreno; (ii) 2/3 do total do comrcio intra-regional refleteexportaes de matrias-primas e componentes industrializados de outros pases da regio para a Chinaque, por sua vez, est se transformando em centro regional de montagem final para posterior exportao aterceiros mercados, especialmente os EUA. Assim, conforme sugerem os estudos citados anteriormente, omercado estadunidense tem uma importncia nas exportaes asiticas que bem maior do que sugeremas estatsticas formais de fluxos bilaterais de comrcio.

    H uma importante complementaridade entre as estruturas produtiva e comercial da China e osdemais pases da regio. No setor agropecurio a China exportadora de produtos temperados para os

    pases da ASEAN, e importadora de produtos tropicais. Este fato vem garantindo a viabilizao do acordode cooperao que tem por objetivo criar uma rea de livre comrcio China-ASEAN, a ser implementadaentre 2010 e 2015. J os pases com estruturas produtivas mais complexas que a China, como Japo,Taiwan e Coria, vm se tornando fontes importantes de suprimento de mquinas e equipamentos que dosustentao a um ritmo intenso de ampliao dos investimentos no setor produtivo industrial. Capital etecnologia fluem na forma financeira via investimento direto externo ou na importao deequipamentos modernos. Somente quatro economias da regio, Hong Kong, Japo, Coria do Sul eTaiwan, vm respondendo por cerca de 60% do IDE absorvido pela China que, por sua vez, responde por40% do total de investimento estrangeiro que entra na sia. A demanda chinesa por matrias-primas eequipamentos fica patente no fato de suas importaes passarem de uma mdia mensal de US$ 20 bilhesno comeo de 2002, para mais de US$ 50 bilhes/ms no final de 2004, incio de 2005 valor que seguecrescendo para algo em torno de US$ 100 bilhes/ms em 2007 e 2008 (World Bank, 2007). Assim, aChina posiciona-se como importadora lquida de insumos e equipamentos mais sofisticados dentro daregio, e exportadora lquida de manufaturas para os mercados ocidentais. Por isso mesmo, na mdia do

    perodo 2000-2004 a China sozinha respondeu pela absoro de cerca de 11% do total exportado naregio, contra 8% do Japo (Gill e Kharas, 2007).

    Quando se compara25o perfil do comrcio exterior chins entre o comeo dos anos 1990 e dosanos 2000, percebe-se uma rpida convergncia com os padres de especializao previamentealcanados pelas economias mais avanadas da regio. Assim, o peso das manufaturas no total exportado

    passou 79% para 90%, acima da mdia do Leste Asitico (89%) e pouco abaixo do perfil japons (93%).Dentro das manufaturas a participao dos segmentos mais intensivos em tecnologia merece destaque,

    com os equipamentos de telecomunicaes e escritrio avanando de 6% para 22%, e mquinas eequipamentos eltricos atingindo 10% ante os 4% verificados uma dcada antes. Os indicadores devantagens comparativas reveladas sugerem que os pesos relativos dos setores industriais mais dinmicosesto convergindo entre China, Coria e Japo, ainda que a liderana tecno-produtiva seja deste ltimo, oque se revela pela capacidade de inovar, controlar os canais de comercializao e, por isso mesmo, ter

    preos mais elevados. Do ponto de vista das importaes chinesas, cabe destacar que os itens de energia ecombustveis experimentaram uma elevao significativa, de 7% para 14%. Somando-se os produtosagropecurios tem-se pouco mais de 1/5 do total importado em insumos primrios estratgicos, ummercado de cerca de US$ 200 bilhes no ano de 2007.

    A diviso regional do trabalho centrada na China particularmente evidente no setor de produtoseletrnicos e de alta tecnologia. Entre 1900 e 2005 este grupo de manufaturas passou de 7% US$ 4

    bilhes para 37% US$ 282 bilhes das exportaes totais da China, e de 10% US$ 5 bilhes 25Valores mdios entre 1990-1994 e 2000-2004 estimados por Gill e Kharas (2007, cap. 2).

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    para 31% US$ 195 bilhes das importaes. Em sua composio nota-se que os insumos eletrnicos(partes e peas) respondem por 80% das importaes totais dos eletrnicos e high tech originadas emoutros pases asiticos, ao passo que os produtos finais somam mais de 50% das exportaes daquelacategoria de produtos. Ademais, h uma radical alterao neste perfil ao longo do tempo, pois no comeodos anos 1990 a China importava bens finais e exportava componentes. Assim, segundo o Banco Mundial... 55% das exportaes da China so de bens que tm sido importados para a China por empresas

    multinacionais para processamento e re-exportao aos mercados globais. Essas exportaes processadasdobraram na ltima dcada... (World Bank, 2006:19-20). Quando se leva em conta esse padro percebe-se que o peso dos mercados da Trade como destino final das economias emergentes da sia pode sersignificativamente maior do que o sugerido anteriormente. Estimativas apresentadas pelo Banco Mundialsugerem que tal proporo passaria de 36% para 45% para o ano de 2005. Outras sugerem o comrciointra-regional seria de 14% e o extra-regional de 86%. Ainda assim, importante deixar claro quenenhuma destas estimativas invalida o fato subjacente de que h um crescente dinamismo dos fluxos decomrcio e investimentos que esto tornando a China o plo central do export-driveregional.

    Dados estes crescentes vnculos comerciais regionais, a China tambm vem sendo muita ativa noprocesso de constituio de um ambiente institucional mais favorvel promoo da integrao regional.Em meados de 2006 havia quase 40 acordos comerciais em negociao na regio, muitos deles

    provocados pela poltica externa chinesa em sua busca de estabilidade na fonte de suprimentos deinsumos estratgicos (Gill e Kharas, 2007, Unctad, 2007). Alm disso, o regionalismo em construo nasia foi estimulado pela percepo de vulnerabilidade externa provocada pela crise financeira de 1997-1998. Esta pode ser considerada como um divisor de guas na percepo asitica sobre a necessidade dese criar (ou aprofundar) espaos institucionais e instrumentos mais efetivos, capazes de propiciar umamaior cooperao monetria e financeira na regio26. Em um primeiro momento a crise revelou pelomenos dois aspectos at ento pouco considerados pelos policymakers: (i) que o efeito-contgio, querdecorrente da j intensa integrao econmica regional, quer originado na percepo pouco seletiva dosinvestidores ocidentais sobre o risco especfico de capa pas, poderia introduzir fontes adicionais deinstabilidade para alm da capacidade domstica de implementar polticas de conteno das crises; e (ii)que os pacotes de socorro financeiro, liderados e implementados pelas instituies multilaterais sediadasem Washington, poderiam ser o cavalo de Tria a invadir a cidadela das estratgias nacionais demodernizao e desenvolvimento. No toa, o Japo ser o primeiro a reagir, propondo a criao de umFundo Monetrio Asitico (FMA). Este pas j vinha, desde a segunda metade dos anos 1980,constituindo uma ampla rede regional de produo liderada por seus conglomerados industriais. Os

    bancos japoneses eram grandes fornecedores de crditos na regio, e o governo garantia, na forma deemprstimos oficiais (ODA Official Development Assistance), recursos para que os pases receptoresdos investimentos japoneses pudessem constituir a infra-estrutura fsica capaz de dar competitividadequeles.

    A crise trouxe uma nova oportunidade para o Japo exercer o que, na sua perspectiva, era algonatural, ou seja, a liderana do processo de integrao regional. Todavia, a proposta no FMA no

    avanou. s evidentes presses contrrias vindas dos EUA e do FMI, somaram-se desconfianas internasacerca da pretensa liderana japonesa. Por outro lado, a gravidade da crise criou um novo caminho, que sematerializou na chamada Iniciativa de Chiang Mai27, em homenagem cidade tailandesa que abrigou um

    26Neste sentido, em 1998 os Ministros de Finanas dos pases da ASEAN assinaram um termo de entendimento que estabeleceu o Processode Monitoramento do ASEAN. Em encontros semestrais, realiza-se o acompanhamento conjunto das polticas dos pases membros e, pordecorrncia, do desempenho macroeconmico e social na regio. A troca de informaes e a coordenao das aes formam a base destainiciativa.27O encontro de maio de 2000 do ASEAN, ao qual se seguiu o encontro anual do Banco Asitico de Desenvolvimento, marcou o lanamentoe detalhamento inicial do que ficou conhecido como Iniciativa de Chiang Mai, um arcabouo que permitiu a expanso do Arranjo de Swapda ASEAN (ASA), e a criao das bases para o estabelecimento de swaps cambiais bilaterais e acordos de recompra. O ASA fora criado em1977 (ASEAN, 1977) com o objetivo de aliviar a escassez temporria de divisas dos Bancos Centrais de Malsia, Indonsia, Tailndia,Cingapura e Filipinas. Em 2000, estendeu-se sua cobertura para todos os pases da ASEAN, alm de Coria, Japo e China (ASEAN+3).

    Com o apoio destes trs ltimos, ampliaram-se os limites para os swaps de US$ 200 milhes para US$ 1 bilho e criou-se uma rede deAcordos Bilaterais de Swap cambial (ABS), que atingiu o montante de US$ 75 bilhes, em meados de 2007. Neste mesmo ano, essa redepassou a ter um carter multilateral (Unctad, 2007). Assim, o arranjo institucional da ICM foi estruturado com o objetivo do provimento deliquidez para os pases membros do acordo que estejam enfrentando restries severas de curto prazo no balano de pagamentos, de modo aevitar a ecloso de crises financeiras cujo carter sistmico tende a afetar o conjunto da regio. Neste sentido, a criao de uma rede de

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    encontro entre os pases da ASEAN junto com o Japo, a China e a Coria do Sul. Ali se iniciou aestruturao de uma rede de swaps bilaterais de reservas cambiais que, em 2007, foi transformada em um

    pool compartilhado em uma base multilateral. Mais importante do que a possibilidade de ter uma linhaadicional de defesa diante de eventuais novas crises financeiras, o acordo ASEAN+3 permitiu aampliao do dilogo sobre a cooperao monetria e financeira regional, bem como de outros aspectosda integrao, particularmente o associado criao de reas de livre comrcio.

    Em paralelo queles esforos, os governos nacionais adotaram estratgias mais agressivas derecomposio de reservas internacionais e de estabilizao das taxas de cmbio, o que tornava cada vezmenos relevante o mecanismo de swaps cambiais nos termos e montantes ento definidos. O novo

    problema que se manifestava era o que fazer com o excesso de poupana, especialmente quando seconstatava que esta se direcionava para os mercados financeiros ocidentais. Assim, as novas iniciativas ecooperao financeira do mbito do ASEAN+3 foram estruturadas para aprofundar a integrao dosmercados financeiros regionais, tornando-os mais seguros e homogneos, e para criar novos instrumentosfinanceiros como os ttulos emitidos pelos governos locais em suas prprias moedas que pudessemmelhor o perfil de financiamento dos governos e dos setores com menor acesso aos mercadosinternacionais como as empresas de menor porte. Sob os auspcios doAsia Bond Markets Initiativevemse conformando aes em vrias reas, que vo da uniformizao dos padres contbeis, ao

    estabelecimento de novas bases estruturais para o funcionamento dos mercados financeiros 28. Assim,atravs de um processo de amadurecimento institucional e ajuste no foco das iniciativas criou-se umconjunto de mecanismos de cooperao que viso fortalecer o dilogo poltico, a coordenao e acolaborao nas reas financeira, monetria e fiscal, mais especificamente h: (i) o Dilogo de Polticase Anlise das Economias29, por meio dos encontros anuais dos Ministros das Finanas30 busca-seestabelecer um dilogo que permita reduzir os riscos de crise e d sustentao para as demais iniciativas;(ii) a Iniciativa de Chiang Mai, que congrega mecanismos de apoio financeiro mtuo para financiardesequilbrios de curto prazo; (iii) a Iniciativa do Mercado de Ttulos Asiticos (Asian Bond MarketsInitiative ABMI); e (iv) o Grupo de Pesquisa do ASEAN+3, criado em 2003 para aprofundar estudosem torno de trs temas fundamentais, quais sejam, liberalizao financeira e arranjos de cooperao,desenvolvimento dos mercados de capitais e coordenao poltica.

    interessante notar que, se em sua origem os esforos de cooperao na rea financeira foramliderados pelo Japo, o que gerou resistncias diversas, inclusive da prpria China. Por outro lado, orelativo enfraquecimento deste item da agenda do regionalismo coincidiu com a crescente nfase chinesana constituio de uma base de infra-estrutura fsica transportes, comunicao, etc. e legal (tratados delivre comrcio) capaz de viabilizar a regionalizao em curso que, conforme argumentado at aqui, tem

    acordos bilaterais de swap (ABS) e a expanso do Arranjo de Swap da ASEAN (ASA) so sementes, na regio, da funo de emprestador emltima instncia, tpica dos bancos centrais.28Em 2002, o ASEAN + 3 explicitou sua preocupao com a fixao da poupana na regio por meio do desenvolvimento do mercado decapitais regional. No mbito da Asian Bond Market Initiatives passou-se a trabalhar nas seguintes reas: (i) emisso de ttulos de dvidados governos asiticos, com o intuito de se criar padres de referncia (benchmarks) para um posterior aprofundamento do mercado, com

    mais emisses privadas; (ii) emisso de ttulos de dvida de instituies financeiras oficiais dos governos locais como forma de estabelecerfunding para que as empresas privadas dos respectivos pases tenham porte para no futuro captarem diretamente; (iii) estmulo asecuritizao, atravs da estruturao de operaes de emisso de ttulos privados lastreados em ativos e garantias slidos; (iv) emisso dettulos de dvida por instituies multilaterais regionais e outras agncias governamentais; (v) emisso de ttulos de dvida estruturados demodo a facilitar a entrada de investimento direto externo na regio (IDE); (vi) emisso de ttulos de dvida nas respectivas moedas nacionaise de ttulos baseados em cestas de moedas. Para viabilizar tais aes os diversos grupos esto estudando como harmonizar regionalmenteregras de regulao dos mercados de capitais, de tributao, e de outros aspectos legais que afetam o funcionamento dos mercados, bemcomo de mecanismos de compensao de pagamentos baseados na regio, e de disseminao de informaes. Considera-se, tambmessencial o aprimoramento dos sistemas de avaliao de risco de crdito e de proviso de garantias, com a eventual criao de agnciasregionais de crdito, e de uma seguradora regional.29O Dilogo funciona como um espao de coordenao informal de vrias iniciativas articuladas em conjunto com outras organizaesregionais como a APEC, a EMEAC e a ASEAN+3. Seu mandato est explicitado na Declarao de Chiang Mai (2003), onde h uma fortenoo da interdependncia dos pases da regio, no que se refere ao tema da integrao financeira aos mercados globais. A criao de ummercado financeiro regional mais robusto, passaria pelo aprimoramento de questes centrais, algumas delas a serem realizadas em nvelnacional, como a adeso a parmetros de regulao e superviso financeira, regras contbeis e de transparncia das informaes dasempresas, e outras no prprio plano regional. Aqui se concentram aes no desenvolvimento da infra-estrutura de mercado, de fundos deinvestimento (demanda por ativos) e de estruturao de novos instrumentos e produtos financeiros (oferta de ativos).30Com encontros semestrais das respectivas burocracias dos Ministrios de Finanas.

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    na China seu vetor de destino. Mesmo reconhecendo que no seu nvel atual de desenvolvimentotecnolgico e produtivo, a China no capaz, ainda, de liderar a conformao das fronteiras tecnolgicase produtivas, as lideranas chinesas parecem ter clareza que o pas est sendo capaz de, a um s tempo,reproduzir as distintas etapas caracterizadas no modelo clssico dos gansos voadores. Ou seja,mesmo explorando as economias de escala e a vastido do seu mercado de trabalho para avanar nossetores intensivos em mo-de-obra, a China avana, paralelamente nos setores intensivos em tecnologia

    (Gill e Kharas, 2007, Unctad, 2007, IMF, 2007b). Mais do que manufaturas Made in China, a ascensopacfica chinesa implicar na emergncia de produtos Designed in China, criados, produzidos ecomercializados internacionalmente por conglomerados chineses. Assim, uma diferena marcante domodelo chins com respeito aos milagres asiticos precedentes parece ser a imensa capacidade de

    potencializar os fatores determinantes do sucesso, bem como reproduzir, a um s tempo, as etapas quenos demais pases ocorreram de forma dilatada no tempo, ou ainda, de forma regionalizada, mas sob ocomando poltico e estratgico externo, dos conglomerados japoneses.

    5. Consideraes FinaisEste trabalho procurou argumentar que, se por um lado o crescimento espetacular da China nas

    ltimas trs dcadas reproduz vrios dos elementos que usualmente esto associados ao estilo ou

    modelo asitico, por outro, ele se d em um contexto geopoltico marcadamente distinto, onde o prpriodesenvolvimento chins representa a conformao de uma nova ordem internacional. Em um primeiromomento resgatou-se o debate entre liberais e desenvolvimentistas em torno na explicao do milagreasitico. Procurou-se esclarecer que no apropriada a definio de um nico modelo asitico, adespeito do fato de haver elementos recorrentes nas trajetrias individuais de modernizao.Posteriormente explorou-se a racionalidade em torno do conceito da ascenso pacfica da China condio de potncia, elaborado pelos idelogos da abertura chinesa, e que traduz a preocupao emgarantir um ambiente internacional favorvel s pretenses do pas. Tal ascenso colocou a economiachinesa como um hubregional, alavancando o processo de regionalizao e criando, simultaneamente umespao para a emergncia (ainda que incipiente) de um novo regionalismo asitico. Os temas trazidos

    baila pelo texto so complexos e merecem um tratamento mais detalhado, o que excederia aspossibilidades de um nico esforo de reflexo. Ainda assim, importante destacar que a compreenso dadinmica de transformaes, internas e globais, provocadas pela ascenso chinesa torna-se uma tarefaobrigatria e urgente para todos os que se preocuparem em compreender as perspectivas dedesenvolvimento neste sculo XXI, particularmente sob a tica da economia poltica.

    6. Referncias Bibliogrficas

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