a diversidade da condiÇÃo humana: … · uma das maiores alegrias e dádivas de todos os dias,...

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL A DIVERSIDADE DA CONDIÇÃO HUMANA: deficiências/diferenças na perspectiva das relações sociais Doutoranda: IDILIA FERNANDES Orientadora: PROFESSORA Dra. LEONIA CAPAVERDE BULLA Tese de doutorado apresentada para obtenção de grau de doutora em Serviço Social Porto Alegre, dezembro de 2002.

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Page 1: A DIVERSIDADE DA CONDIÇÃO HUMANA: … · uma das maiores alegrias e dádivas de todos os dias, teu sorriso, tua alegria, tua diversidade que cresce, que me ensina a viver de outro

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

A DIVERSIDADE DA CONDIÇÃO HUMANA:

deficiências/diferenças na perspectiva das relações sociais

Doutoranda: IDILIA FERNANDES

Orientadora: PROFESSORA Dra. LEONIA CAPAVERDE BULLA

Tese de doutorado apresentada para obtenção de

grau de doutora em Serviço Social

Porto Alegre, dezembro de 2002.

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BANCA EXAMINADORA:

___________________________________________

Profª Dra. LEONIA CAPAVERDE BULLA

__________________________________________

Profª Dra. MARIA LÚCIA MARTINELLI

_______________________________________

Prof. Dr. SENO ANTONIO CORNELY

_________________________________________

Prof. Dr. HANS GEORG FLICKINGER

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PENSAMENTO

"... condições sociais petrificadas têm de ser compelidas à dança, fazendo-lhes ouvir o

canto da sua própria melodia”.

KARL MARX (Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1983, p.81).

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Dedico este trabalho ao amor, aquele que acontece no coração da gente, ilumina a vida,

aquece o sangue das veias e dá sentido a tudo. A ti, amor de minha vida

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AGRADECIMENTOS

Toda criação e obra humana se consolidam a partir de atos coletivos. Sempre que é

possível dialogar, trocar idéias, experiências, projetos e sonhos algo se faz ou se fará de

produtivo. A construção desta tese não é diferente disso, só foi possível construí-la com a

contribuição de muitas pessoas, de diversos setores de minha vida. Portanto, tenho muitos

agradecimentos a fazer e, certamente nem todos estarão contidos nas palavras que seguem.

Vou procurar nomear algumas pessoas que foram significativas nessa construção, sob o

risco de que algumas outras pessoas, também significativas, não fiquem aqui registradas:

Minha orientadora Profª. Dra. Leonia Capaverde Bulla, não seria possível começar e

finalizar este trabalho sem a tua valorosa orientação e sem teu incansável estímulo, amizade

e profissionalismo. Tu és minha eterna mestra. Uma pessoa que congrega a energia de

quem sabe o que deve ser feito com a doçura de quem sabe indicar os caminhos, com

sabedoria e afeto.

Uma pessoa que tem sido fonte de inspiração profissional para toda a categoria de

assistentes sociais, tanto pela sua obra intelectual quanto pela sua energia pessoal de pessoa

comprometida com a vida e com uma sociedade ética e humana. A professora Dra. Maria

Lúcia Martinelli, que muito me honra com sua presença na banca examinadora. Eu sou

muito fã de suas palavras, de seus textos e seu modo de se relacionar com as pessoas,

sempre tão próxima, tão solidária, tão inteira naquilo que faz.

O professor Dr. Seno Cornely, uma figura marcante na história de minha formação

profissional, desde a graduação, quando foi meu professor e demonstrava sua "paixão" pela

vida, pela política, pela profissão. Com o professor Seno comecei a aprender a construir

uma interpretação dialético-crítica marxista da realidade. Os movimentos sociais, a visão

política, as alternativas de articulação com a comunidade são temas significativos que

aprendi com esse professor e nunca mais esqueci.

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O professor Hans Georg Flickinger, com o qual eu tive o privilégio de dialogar sobre as

diferenças culturais e sobre o significado da profissão e agora tenho a honra de aprofundar

o debate em torno do "estranho", é alguém que tem colaborado muito para a construção do

curso de doutorado de Serviço Social da PUC. Pessoalmente tive a oportunidade de

aprender muito nas aulas do professor Hans e no intercâmbio cultural, em Kassel,

organizado por ele, onde um grupo de professores foi recebido com muito profissionalismo

e solidariedade.

Não vou nomear meus amigos e amigas, companheiros e companheiros de jornada, de

militância política, de jornada de trabalho, de luta cotidiana pela vida, o que seríamos nós

sem uns aos outros? Todos fazemos parte deste grande universo e deste pequeno sistema

criado por nós. Não vivo sem vocês, nada se faz em caminhos solitários e o meu está

preenchido na GRAÇA da presença de cada um de vocês em minha vida.

Em especial, sem poder nomear, quero agradecer a colaboração de todos aqueles que se

dispuseram a participar das entrevistas, dos seminários e deste debate sobre a questão da

diversidade da condição humana. Muito pude aprender neste processo de pesquisa, de

estudo, de discussão com diferentes grupos e só foi possível construir a tese de doutorado a

partir dessa trajetória de múltiplas vivências e elaborações.

Aos meus familiares, que também não poderei nomear, tal a significância de cada um,

minha imensa gratidão. Em especial, quero registrar minha eterna gratidão por aquele que

foi meu companheiro durante 18 anos, Gerson muito grata pela tua paciência, dedicação e

extrema bondade para comigo, em toda a nossa história.

Minha filha Bruna agradecer a ti e à vida por oportunizar tua presença em meu caminho,

uma das maiores alegrias e dádivas de todos os dias, teu sorriso, tua alegria, tua diversidade

que cresce, que me ensina a viver de outro jeito. Linda, que a gente possa aprender todos os

dias a recriar nossas vidas com a riqueza das cores e dos tons diversos que estão colocados

no universo pelo qual transitamos.

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RESUMO

O grande paradoxo das relações sociais se coloca no fato de produzirem a necessidade

de padronização dos comportamentos humanos, embora a diferença seja uma característica

peculiar aos seres humanos. As pessoas vivem em seu meio social sob a égide de uma

cultura de "normalidade", que se desenvolve a partir de uma lógica dicotômica que divide

os seres em: normais/anormais; iguais/diferentes; perfeitos/deficitários. A conseqüência

direta dessa interpretação fracionária da realidade dos seres vem a ser a segregação e a

exclusão de todos aqueles que não se encaixam nos padrões de normalidade estabelecida no

contexto social. As pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades, por

demonstrarem singularidades marcantes, foram submetidas a um esmagador processo social

de exclusão e segregação, ao longo da história e da organização das sociedades. A tese que

aqui se apresenta: afirma o reconhecimento da diversidade, como constitutiva da condição

humana. Considera que, nas relações sociais são produzidas as interdições do acesso às

diversas instâncias sociais e das possibilidades de expressão dos sujeitos. Versando sobre a

temática das deficiências/diferenças se pretende colocar em questão determinados conceitos

que situem as diferenças no lado inverso daquilo que é considerado correto, ideal para

todos. Consideram-se as diferenças como propulsoras da dinâmica das transformações do

social. A pesquisa desenvolvida neste trabalho se constitui em uma abordagem qualitativa,

numa perspectiva dialética. Foi feito um estudo de caso de uma instituição pública que

trabalha com a questão das deficiências e das altas habilidades, no Estado do Rio Grande

Do Sul. Foram realizados entrevistas e seminários com as diversas unidades dessa

instituição e seus representantes, com usuários da mesma e com pessoas portadoras de

deficiência de movimentos sociais desse segmento. Além das entrevistas, o diário de

campo, a observação participante em fóruns deliberativos de organização da sociedade em

torno da questão das deficiências e das altas habilidades, serviram de subsídios para a

composição dessa tese. No horizonte de novos significantes que situem os seres na

possibilidade de exercer sua singularidade no contexto, se conclui que o social precisa

tornar-se acessível para comportar a diversidade da condição humana.

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ABSTRACT

The great paradox in social relations is established by the need of standardization of the

human behaviour, since differences are a typical characteristic of human beings. People

live in their social environment under the shield of ‘normality’ developed from a binary

logic which divides people into categories such as: ‘normal / abnormal’, ‘similar /

different’, ‘perfect / disabled’. The immediate consequence that comes from this

fragmented interpretation of individuals happens to be segregation and exclusion of the

ones who don’t fit the established standards of normality. Disabled people or the ones who

have highly sophisticated abilities due to their peculiarities have been submitted to this

overwhelming process of social exclusion throughout the development of society. The

present thesis recognizes diversity as a component of human nature; it considers that social

relations prevent individuals from having access to certain instances. Considering the topic

disabilities/differences it is intended that the concept which regards differences as

abnormality must be dismissed. Differences are the power that moves a dynamic society

forward. This research is a qualitative approach, that includes the study of a case from

FADERS (Foundation for development of public policies to people who suffer from any

disabilities or have highly sophisticated abilities in Rio Grande do Sul). Interviews and

seminars were carried out with several units of this foundation, its personnel, users and

disabled people as well. Besides the interviews, a diary and lectures about the organization

of society and the aspects related to disabilities and special abilities were used to make up

this thesis.

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SUMÁRIO

RESUMO.............................................................................................................................................................7

ABSTRACT...............................................................................................................................8

APRESENTAÇÃO.................................................................................................................................. .........12

INTRODUÇÃO................................................................................................................................................16

I - A DEFICIÊNCIA DO CONHECIMENTO E A DIVERSIDADE DA CONDIÇÃO HUMANA............24

1.1 Diferenças e Singularidades...........................................................................................24

1.2 A pessoa que é portadora de uma deficiência ou de altas habilidades...........................39

1.3 A diversidade como condição humana..........................................................................54

1.4 Identidade na perspectiva das relações sociais...............................................................67

I I - RELAÇÕES SOCIAIS E SINGULARIDADES INDIVIDUAIS..............................................................78

2.1 Os horrores da história e o não reconhecimento da diversidade.....................................79

2.2 Segregação nas relações sociais......................................................................................89

2.3 A diferença entre os sujeitos dessa sociedade...............................................................106

2.4 Relações sociais e a marca da igualdade.......................................................................108

I I I - POLÍTICAS PÚBLICAS E A GARANTIA DE CIDADANIA E PERTENCIMENTO.....................120

3.1 Portadores de um significado social: exclusão/inclusão no caso das diferenças

visivelmente aparentes........................................................................................................120

3.2 A FADERS como campo de pesquisa: seu significado social....................................125

3.3 O significado de uma política pública.........................................................................138

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IV - ACESSIBILIDADE: "UM MUNDO PARA TODOS".........................................................................152

4.1 Acessibilidade e a Questão Social...............................................................................152

4.2 Acessibilidade e a questão da heterogeneidade...........................................................163

4.3 Acesso a uma outra cultura..........................................................................................171

V - O DESENHO DA PESQUISA E SEU FUNDAMENTO TEÓRICO -PRÁTICO..................................180

5.1 Concepções acerca da construção desta travessia.........................................................180

5.2 O desenho da pesquisa..................................................................................................188

5.3 Os passos significativos da trajetória............................................................................194

CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................................................206

BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................................................218

REVISTAS......................................................................................................................................................228

FILMES...........................................................................................................................................................229

DOCUMENTOS......................................................................................................................229

ANEXOS.........................................................................................................................................................233

ANEXO 1 Dez propostas para uma nova abordagem...........................................................234

ANEXO 2 Parecer 658/77 Conselho Estadual de Educação.................................................235

ANEXO 3 Documento de Salamanca...................................................................................236

ANEXO 4 Legislação referente à pessoa portadora de deficiência/compêndio org. pela

FADERS................................................................................................................................237

ANEXO 5 Documento da FADERS sobre o significado do Fórum Permanente da Política

Pública para PPD e PPAH..................................................................................................238

ANEXO 6 Documento da FENEIS.........................................................................................239

ANEXO 7 Nova Lei da FADERS...........................................................................................240

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ANEXO 8 Instrumento de pesquisa I..................................................................................241

ANEXO 9 Instrumento de pesquisa II.................................................................................242

ANEXO 10 Instrumento de pesquisa III..............................................................................243

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APRESENTAÇÃO

Minha profissão denomina-se Serviço Social. Na qualidade de Assistente social, sou

investigadora da área humana no âmbito das relações sociais. Parece ser este um campo

extenso do conhecimento, porém, cada profissional da área faz o corte temático de seu

campo específico de trabalho para analisar o real em seu dinamismo relacional. Portanto,

toda esta aparente amplitude do campo social poderá se traduzir em uma forma de

interpretar as partes e os fatos, em um contexto mais amplo sem perder a especificidade de

cada área singular.

Sou militante (embora sem filiação partidária) de um partido de esquerda, portanto toda

a leitura que faço do real é também fruto de uma visão política que analisa o mundo a partir

das contradições do modo de organização social e das relações entre os sujeitos nesta

estrutura. Não acredito em neutralidade da ciência. Do lugar onde se está é o lugar de onde

se fala, se faz o conhecimento, que hoje é mais complexo e mais diverso do que já foi em

séculos anteriores ao atual. As concepções sobre a vida, a sociedade, sobre os seres

humanos, os valores e significados que se dão aos fatos da vida irão conosco, nos

acompanham nas construções teóricas que elaboramos. Por isso, assim apresento-me.

No início do curso de doutorado a temática de minha pesquisa foi construída em função

do “processo de trabalho do Assistente Social”, em uma abordagem marxiana. A filosofia

de Marx e seu método orientavam e continuam a orientar a forma como pretendo conduzir

meu processo de trabalho profissional. Uma vez que eu tinha desenvolvido a temática em

torno do processo de trabalho do Serviço Social no mestrado, pretendia continuar nessa

linha de estudo. Esse aprofundamento temático seria desenvolvido na perspectiva de

pesquisar e escrever sobre metodologias de intervenção no real, orientadas pela filosofia

marxiana. Nesta perspectiva desenvolveria um diálogo entre as obras “antigas”, clássicas

com a dos autores atuais. Esse diálogo seria feito, também, sob os elementos concretos das

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práticas sociais com as quais tenho familiaridade. Tal temática não é incomum na literatura

do serviço social de nosso tempo, muito embora também não seja um assunto esgotado.

Por ocasião do seminário internacional, na cidade de Kassel (Alemanha, em 1999),

quando houve um intercâmbio cultural entre Brasil e Kassel, apresentei no mesmo um

estudo sobre meu campo de trabalho. A temática deste seminário foi o intercâmbio entre os

campos do trabalho social entre esses dois países. Nessa ocasião sistematizei os

conhecimentos teórico-práticos de minha experiência na FADERS (Fundação de

Articulação e Desenvolvimento da Política Pública para pessoas portadoras de deficiência e

altas habilidades do RS), em uma abordagem específica do Serviço Social, porém em

constante articulação e comunicação com as demais áreas do conhecimento. Afinal não me

é possível dissociar as ações de minha profissão das demais e diferentes profissões, sendo

que minha experiência sempre se deu em trabalho de equipe e de forma interdisciplinar,

nessa Fundação.

O seminário internacional foi organizado pelo professor Dr. Hans Georg Flickinger, que

é da Universidade de Kassel e da PUCRS, no Brasil e pela professora Dra. Leonia Bulla

Capaverde, minha orientadora no Doutorado em Serviço Social da PUCRS. O evento foi

muito significativo para o grupo de professores doutorandos que lá estiveram, pois, todos

aprofundaram estudos em suas respectivas áreas de pesquisa. Com o intercâmbio,

conhecemos um pouco da realidade do serviço social europeu e suas peculiaridades

distintas da realidade brasileira. Foram encontrados, entretanto, alguns pontos em comum,

mas principalmente a riqueza da descoberta do diverso.

Na oportunidade daquele seminário, ao aprofundar a reflexão sobre o processo de

trabalho do assistente social da FADERS e ao tematizar sobre esse campo, descobri o

grande potencial investigativo da temática das deficiências/diferenças, assunto sobre o qual

vinha trabalhando e estudando, mas sem aprofundar as reflexões investigativas. Por ter

concluído o primeiro texto sobre o assunto, na ocasião do seminário e por tê-lo apresentado

e debatido em Kassel, comecei a encantar-me com a possibilidade de aprofundar esse

assunto. O intercâmbio de culturas, as aproximações com a temática das deficiências na

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realidade de outro país, as ampliações do conhecimento com outras teorias foram me

aproximando cada vez mais da decisão de substituir a temática original de minha pesquisa.

Para tanto, deveria eu deixar em suspenso todo o material e estudo sobre a temática inicial,

da qual já acumulava alguns subsídios teóricos e práticos para compor a construção de uma

tese.

Um fator que pesou bastante na decisão de finalmente substituir a temática de minha

pesquisa, além do incentivo de minha orientadora Professora Bulla, foi a apresentação, no

então seminário, das “Sete Teses em Torno da experiência do Estranho”, de autoria do já

mencionado Professor Flickinger. Essas belíssimas 7 teses demonstram, entre outras

coisas:

“Que é possível compreender aquilo que consideramos estranho (diferentes culturas, o que é diferente) na medida em que se consegue compreendê-lo, ou seja, se o tomarmos como estranho, reconhecendo sua estranheza. Admitindo sua existência, enquanto existência, enquanto diferença, enquanto algo que fora de si mesmo, pode ser o outro que nos faça experienciar a nos mesmos de outra forma. E, sendo assim compreender o estranho significa compreender melhor a si mesmo” (FLICKINGER, 1999).

As “teses em torno da experiência do estranho”, do professor FLICKINGER inspiraram

a caminhada que venho fazendo no desenvolver desta pesquisa e na renovação da

interpretação sobre a temática das deficiências, enquanto a demonstração das diferenças

que são inerentes à condição humana. As diferenças são estranhas enquanto não as

admitimos como constitutivas da realidade humana, enquanto não as aceitarmos, não

apenas como uma marca pessoal, de alguém que se considera diferente, mas como um

registro humano e real. Nos constituímos enquanto sujeitos da vida social, não nos moldes

do padrão das sociedades, porém enquanto indivíduos singulares pertencentes a sua

contextualidade.

A caminhada percorrida até aqui faz pensar que estranho é o modo de vida humana, a

organização dos setores da vida social. Vivemos e nos desenvolvemos em um mundo

pensado e feito para todos serem iguais, para um tipo de ser padronizado, idealizado e não

condizente com as peculiaridades humanas que nos fazem ser, por condição, diferentes uns

dos outros. Estranho é analisar a história e perceber nela tantos eventos que punem de

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forma tão violenta toda a expressão das singularidades pessoais. É estranho saber que a

peculiaridade da condição humana já foi considerada como algo não humano. Pensar que a

pessoa portadora de deficiência foi considerada deficitária, falha, incompleta em seu todo

pessoal, por não responder a um padrão idealizado de ser humano, isso causa estranheza.

E, o mais estranho de tudo isso é constatar que todo o “saber” das ciências humanas, em

diversos tempos históricos, não foi suficiente para demonstrar confiabilidade no potencial

humano. As pessoas que apresentam diferenças marcantes, visíveis ou algum déficit

específico no desenvolvimento são vistas com descrédito. Vou seguir construindo este

trabalho discutindo toda essa estranheza de ser e estar em um mundo humano, onde o

humano é tão desconhecido e estranho, que escapa as nossas explicações. O problema dessa

estranheza toda é não a termos admitido enquanto existente e, ao negá-la, negamos a nós

mesmos, ou uma parte significativa de nossas diferenças individuais. Não somos todos

iguais, nem tão pouco completos, perfeitos ou sem algum tipo de déficit pessoal. É estranho

aceitarmos, com pouca resistência, uma sociedade que diariamente, está organizada de

modo que, proporciona uma vida em que poucos podem pertencer.

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INTRODUÇÃO

O desenrolar das relações sociais entre os sujeitos da sociedade vem se constituindo

implícita e explicitamente de uma forma que constrói um padrão de exigibilidade sobre os

sujeitos. As pessoas se vêm compelidas a corresponder às expectativas sócio-culturais que

a história de cada tempo escreveu, a partir dos tempos passados e vividos por inúmeros

outros seres humanos que se desenvolviam enquanto pessoas em seus contextos. Na grande

maioria das vezes a expectativa colocada em cada criança que nasce está imbuída na idéia

de que ela deva crescer e se desenvolver bela, inteligente, “perfeita”.

A criança quando vem ao mundo é esperada com uma aspiração social previamente

estabelecida, pela qual ela deve estar de acordo com todos os sonhos que a sociedade

sonhou. Esta sociedade é composta por quem? Por seus pais, seus parentes, seus vizinhos,

sua comunidade, seu país, seu contexto, o mundo ao seu redor. Refere-se aqui a um ser

genérico, o ser humano, que em verdade pode ser qualquer um de nós ou cada um de nós.

Seja como for, todos os seres que vêm ao mundo o encontram previamente (antes de

nascer) organizado dentro de um padrão de funcionalidade à qual será necessário responder

positivamente, sob pena da interdição do pertencimento ao mesmo.

O que acontece se não for possível responder ao padrão geral dos seres humanos, se não

se é igual aos demais? Se acontecer de uma pessoa apresentar diferenças “marcantes”, a

família, a cultura, a sociedade, reconhecerá essa diferença como parte de seu conjunto? As

mesmas condições, de acesso às instâncias da sociedade, serão oportunizadas para os que se

desenvolvem dentro de condições específicas, consideradas "especiais"? Sabe-se pela

história da humanidade que as diferenças são pouco toleradas nas sociedades, que inclusive

foram punidas e erradicadas, em várias ocasiões. Aqueles que apresentam diferenças

marcantes são excluídos dos processos sociais, especialmente da participação social.

Quando acontece de uma pessoa apresentar uma deficiência se torna muito complexa a

tarefa de se presentificar num mundo todo pensado para um "ser humano padrão". A

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exigibilidade de perfeição e de enquadre no padrão social de funcionalidade, fecha os

espaços de expressão das diferentes singularidades. A sociedade se organiza de uma forma

que contraria a própria condição humana, em que não é possível encontrar a padronização e

igualificação. Cada subjetividade humana é dotada de um mundo rico e singular,

absolutamente único.

Parece haver um conflito fundamental entre as exigências impostas aos sujeitos e às

condições singulares que caracterizam os mesmos. Um ponto fundamental para

problematizar a concepção de ser humano pautada na homogeneização dos seres é

considerar o fato da diferença ser constitutiva da humanidade. Tanto a diferença cultural,

étnica, política, quanto à diferença biológica caracterizam a diversidade de possibilidades

de realização individual da condição humana. A questão das deficiências deveria ser vista

tendo como referência essa condição de diversidade característica do seres. Se assim fosse,

não teria sentido a segregação e a exclusão, as quais foram e ainda são submetidas às

pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades.

A tese que aqui se apresenta tem como finalidade demonstrar de um lado, a vivacidade

que pode produzir cada singularidade em sua diversidade real. Não são alguns seres que são

diferentes de outros. Cada ser possui a sua diferença, sua marca pessoal deveria ser

respeitada e reconhecida no social, por fazer parte da condição de ser humano. De outro

lado, pretende-se chegar, com esta tese, à demonstração de que nas relações sociais são

produzidas as interdições inviabilizantes da participação dos sujeitos em seu contexto.

O campo social, por vezes, fecha as possibilidades de acesso ao seu meio àqueles que

demonstram mais visivelmente as diferenças. Inúmeras barreiras materiais e simbólicas são

criadas impedindo a expressão daqueles considerados "sujeitos diferentes". O imenso

potencial criativo e humano das pessoas portadoras de algum déficit ou de algum talento a

mais se torna uma forma de vida "estranha" que não se enquadra no molde fornecido nas

relações sociais. Nesta "estranheza", as dificuldades, apresentadas por uma pessoa

portadora de deficiência, não são vistas como déficit referente a uma parte específica do ser

e sim no ser como um todo. Desta forma se percebe o ser como um todo deficitário, o que

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o coloca em um lugar social de "menosvalia", "menoridade", discriminação e exclusão

social.

A existência de uma cultura da “normalidade”, da padronização, leva ao não

reconhecimento das diferenças e singularidades. As diferenças são peculiares à espécie

humana. A subjetividade dos sujeitos, ainda não totalmente desvendada pelas ciências, se

expressa singularmente, não seguindo a normas nem a padrões. As relações sociais que são

estabelecidas entre as pessoas acompanham aquele padrão de normalidade, no qual os que

se enquadram estão dentro e os que não se enquadram estão fora e, portanto, excluídos da

sociedade. As relações sociais produzem a exclusão e na questão das deficiências, tem

produzido uma série de segregações para as pessoas portadoras de deficiência. Pelo

desconhecimento das ciências em torno da questão das deficiências e da real potencialidade

dos sujeitos portadores de alguma deficiência, se tem reservado um espaço social muito

restrito àqueles que tem limitado alguma função de suas vidas.

As relações sociais entre os sujeitos desta sociedade no dinamismo dos processos sociais

têm dificultado o acesso daqueles que precisam recorrer a formas alternativas de viver, que

não se enquadram nas normativas sociais. O déficit pessoal é acentuado por uma questão

que diz respeito não só ao indivíduo, mas também, pelo próprio processo social de

pertencimento ou de exclusão do sujeito do seu meio. Pretende-se demonstrar, nesta tese, a

importância de criar um outro dinamismo às relações sociais, no qual se considere algo

vital e óbvio, porém ainda não existente: a garantia da inclusão das pessoas nesta sociedade,

independente do déficit ou talento que ela possua. Os processos de exclusão por que

passam as pessoas portadoras de deficiência são a demonstração mais pontual e visível das

barreiras criadas na sociedade em função do não reconhecimento das singularidades como

parte do social.

No trabalho que aqui se apresenta elegeu-se a FADERS (Fundação de Articulação e

Desenvolvimento da Política Pública para Pessoas Portadoras de Deficiência e Altas

habilidade no Rio Grande do Sul), como um campo de pesquisa. O corte temático, para este

estudo, ficou definido como: a diversidade da condição humana e o entendimento do

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dinamismo das relações sociais como causador dos processos sociais de inclusão/exclusão,

nos quais se inserem as chamadas pessoas portadoras de deficiência. Pretende-se refletir

sobre as relações sociais de uma sociedade, em que as pessoas portadoras de deficiência

(PPD) e pessoas portadoras de altas habilidades (PPAH) convivem, com sua singularidade,

sob a égide da padronização. Nessa reflexão objetiva-se construir um caminho conjunto,

com os demais sujeitos do contexto da temática, que possa levar a destituição dos enredos

que situam ainda hoje, à questão das diferenças, nos meandros da discriminação e da

exclusão social.

Pretende-se, também, ampliar esta investigação: conhecer os processos sociais de

exclusão e inclusão por que passam as pessoas portadoras de deficiência, através do

depoimento de quem vive esses processos e daqueles que trabalham na instituição

FADERS e estão trabalhando na política pública para portadores de deficiência e

portadores de altas habilidades. Propõe-se, de outra forma, entender a questão das

diferenças como contraponto a um padrão de normalidade estabelecido no conjunto das

relações sociais de produção capitalista. Objetiva-se, outrossim, questionar os conceitos que

dão significância a um tipo “ideal de homem” e trabalhar tendo em vista o sentido da vida

humana, na ruptura de padrões estabelecidos socialmente. Foram utilizados procedimentos

de pesquisa, na instituição FADERS, que possibilitaram a reflexão e a problematização da

prática institucional em relação à inclusão /exclusão das PPD e PPAH.

A partir da definição da temática e dos objetivos deste estudo, formulou-se o problema

de pesquisa, composto por um conjunto de indagações acerca da temática, tais como: Será

possível atribuir outro significado ao lugar ocupado pelas diferenças no conjunto das

relações sociais? O que as pessoas portadoras de deficiência pensam sobre o processo de

cidadania e como percebem uma instituição como a FADERS? Esta instituição é percebida

em sua possibilidade de construção de políticas públicas, no sentido da cidadania? Como o

conhecimento técnico dos profissionais especializados nessa área, poderá ser utilizado, na

implementação de uma política pública para PPD e PPAH, em que a tônica esteja na

cidadania e na inclusão? Qual a real contribuição que uma instituição como a FADERS,

poderá proporcionar aos sujeitos dessa sociedade, no sentido da construção de uma nova

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cultura em relação às deficiências/diferenças? Com o desenvolver da pesquisa de campo

almeja-se poder percorrer o caminho dessas indagações e, em conjunto com os parceiros

dessas reflexões, ir formulando respostas e novas indagações, num processo de

inacabamento do aprender, pelo qual será possível uma aproximação maior com os eventos

do real, muito embora se considere o fato de que em seguida o mesmo escapa de uma

percepção mais acurada, deixando assim o caminho sempre em aberto para novas

descobertas.

No capítulo primeiro, será discutido o (des) conhecimento acerca das

deficiências/diferenças demonstrando o déficit do conhecimento, a deficiência do “saber”

para responder as diferentes demandas referentes à diversidade da condição humana. A

diferença como uma marca das singularidades, inerente a todo ser humano é apresentada

através de ilustrações trazidas nos depoimentos das pessoas entrevistadas, na narração de

histórias reais ou fictícias de personagens da literatura e da história de "personagens" do

mundo social. Alguns depoimentos e vivências demonstram as diferenças de

individualidades singulares e ao mesmo tempo a dificuldade dos diversos setores da

sociedade de compreensão dessas singularidades.

Trata-se de um imenso desconhecimento da sociedade em relação à diversidade da

condição humana. Algumas situações específicas são exemplificadas para mais uma vez

demonstrar o quanto à organização do modo de vida social é constituído de maneira a

excluir aqueles que não se enquadram em uma vida pensada em padrões irrealísticos de

“normalidade”. Esse primeiro capítulo pretende situar o debate em torno dos significados

sociais atribuídos às pessoas portadoras de deficiência, em suas diferentes áreas (física,

sensorial e psíquica) e das que apresentam altas habilidades. A discussão, em torno dos

conceitos de identidade e alteridade, objetiva desenvolver o entendimento da concepção da

diversidade da condição humana como característica do dinâmico movimento que se

estabelece entre os sujeitos e seu contexto.

As diferenças entre os sujeitos, que não foram reconhecidas pela história da humanidade

e das ciências, serão apresentadas no capítulo segundo. Pontua-se, também, o fato das

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relações sociais serem segregadoras, no que tange às questões dos portadores de

deficiência. Nesse aspecto os processos de inclusão/exclusão são conseqüências dessas

relações sociais. Sujeito e contexto estão em uma imbricada relação dialética de inúmeras

facetas. Utilizam-se depoimentos colhidos nas entrevistas e seminários, bem como, a

análise de desenhos infantis para demonstrar as conclusões realizadas em torno da

interdição, colocada no social aos sujeitos e as suas diferenças.

No capítulo terceiro, é apresentada a política pública que atualmente (de 1999 a 2003)

passa a responder pelas questões referentes às pessoas portadoras de deficiência e de altas

habilidades, no Estado do Rio Grande do Sul. A construção de uma política pública para

atender às demandas desse segmento da população é o resultado de um amplo debate pelas

diversas instâncias do social que ultrapassam a visão em que a questão da deficiência era

tratada como campo da assistência social unicamente.

Há todo um movimento internacional de luta pela inclusão, pelo direito a ser diferente,

pela construção de uma sociedade que se adapte às necessidades singulares dos sujeitos. A

construção dessa política pública, no Estado do Rio Grande do Sul (através da FADERS),

vai ser retratada na sua perspectiva de luta pela cidadania e emancipação, pela qual busca

transformar as velhas tradições e consolidar os direitos sociais de todo o cidadão a fazer

parte de seu contexto. A FADERS é a instituição gestora dessa política pública e seu papel

social será discutido nesse capítulo.

O quarto capítulo versa sobre o significado da acessibilidade, como um dos resultados da

pesquisa. As relações sociais têm como conseqüência a questão social, apreendida em seu

duplo movimento, ou seja, de exclusão e de resistência dos sujeitos sociais. A interdição

das possibilidades de acesso ao campo social, se constitui em uma das refrações da questão

social. Para as pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades, essa interdição é

experiênciada de maneira mais acentuada, em função da constituição arquitetônica e

simbólica da sociedade, que está pautada em um "modelo-padrão". As diferenças dos

sujeitos que portam deficiência ou talentos singulares não encontram muito espaço de

reconhecimento no convívio entre as pessoas. De igual forma, as pessoas não encontram

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acesso a grande parte das instâncias organizadas do social. Portanto, o debate em torno da

acessibilidade, se torna imprescindível, no sentido de encontrar soluções para a interdição

imposta aos sujeitos e as suas singularidades.

O percurso transcorrido nesta trajetória de pesquisa e a construção da tese de doutorado

serão explicitados no capítulo quinto. Especifica-se o significado de uma abordagem social

na perspectiva da metodologia qualitativa em pesquisa, descrevendo-se também, os

procedimentos adotados nessa investigação. A FADERS é apresentada como uma

particularidade no processo investigativo. É um dos campos de pesquisa, um lugar, a partir

do qual, o real é submetido a inúmeras indagações. Não foi apenas essa, entretanto, a única

fonte de informação para a compreensão da questão da diversidade e dos processos de

exclusão/inclusão. Os depoimentos foram colhidos em entrevistas com as pessoas

portadoras de deficiência que utilizam os serviços da FADERS e, entre pessoas que não

estão ligadas a essa instituição.

A temática, elegida para o desenvolver da pesquisa foi passando por inúmeras (re)

significações e as concepções sobre a mesma também foram se transformando. As

formulações teóricas apresentadas, acerca da diversidade da condição humana, são,

portanto, de ordem coletiva. A proposta que aqui se apresenta, através da pesquisa, é um

diálogo com os sujeitos que tem uma vivência direta com as questões referentes à temática.

As vozes que foram ouvidas nesta abordagem social compõem as (re) formulações

constantes que se fazem sobre o tema.

A pesquisa se consolidada no desenvolver da prática institucional e extrainstitucional da

própria pesquisadora, os campos de estudo são próximos e interliga a investigação

(pesquisa) e processo de trabalho. Os resultados da pesquisa foram, portanto, sendo

discutidos constantemente. Pretende-se tornar público esses resultados, divulgando o que

foi se descobrindo e (re) descobrindo sobre os processos sociais de inclusão e exclusão a

que são submetidas às pessoas portadoras de deficiência e altas habilidades, a partir de seus

próprios depoimentos. As relações sociais criam os processos sociais de exclusão e

inclusão, em função de uma marca que é impingida a todas as pessoas, a de serem iguais.

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Esse é um papel social culturalmente almejado para a vida humana, uma vida absurda, que

não reconhece as diferenças, como característica dos seres humanos. No desenrolar desta

pesquisa, a partir de estudos de documentos, da revisão constante de literatura e da escuta

das múltiplas vozes que foram possível ouvir, através dos depoimentos, almeja-se ter

encontrado subsídios para sustentar a tese que aqui se propõe a apresentar.

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I - A DEFICIÊNCIA DO CONHECIMENTO E A DIVERSIDADE DA CONDIÇÃO HUMANA

Para iniciar esta caminhada em torno da defesa do direito de ser diferente em um mundo

que parece ser feito para os seres serem todos iguais será utilizado o recurso de descrever e

analisar as singularidades de algumas personalidades que serão apresentadas neste capítulo.

Com este estudo pretende-se demonstrar que o conhecimento acumulado pela ciência, em

suas diferentes áreas, não é suficiente para abarcar o significado humano de cada ser.

O problema que se coloca aqui se refere ao fato de que a insuficiência do saber só é

agravada pela soberba de sua imposição que irá influenciar no modo de viver das pessoas.

Essa influência nem sempre foi construtiva, tendo em vista que muitos métodos que foram

criados, na área da pedagogia, da psiquiatria e outras, têm servido para criar muros entre as

pessoas, consolidando fronteiras que separam "os normais" dos "não normais". Nas linhas

que seguem tanto a ficção como a vida real estará fornecendo subsídios para a

argumentação que pretende sustentar a idéia de que o principal déficit se localiza nas

organizações das instâncias sociais, suas instituições e seus métodos e não unicamente no

sujeito.

1.1 DIFERENÇA E SINGULARIDADE

A irônica obra de Machado de Assis (1988), intitulada “O Alienista”, será citada a

seguir, com certa minuciosidade, na qualidade de uma ilustração, referência para o debate

em torno da limitação do conhecimento para apreender o humano. Nessa obra encontra-se

uma bem formulada demonstração de como os “homens da ciência” trataram o

desconhecido mundo, pertinente aos seres humanos. A interioridade humana, as

peculiaridades comportamentais sempre escaparam da possibilidade de sua interpretação

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exata, realmente própria à condição humana. Machado de Assis criou o famoso personagem

do Dr. Simão Bacamarte, que morava na Vila de Itaguaí, casado com D. Evarista. O casal

não teve filhos. Ele um homem de ciência dedicou sua vida a estudar a loucura. Para tanto,

construiu a “Casa Verde”, uma bela construção, com diversos compartimentos para seus

hóspedes, com janelas verdes.

A construção dessa casa foi uma idéia que Simão Bacamarte teve de reunir em um só

lugar pessoas “demenciadas”. Até então em seu contexto, os “loucos” eram trancados em

casa e separados do mundo. O protagonista desse conto percorreu a câmara de vereadores

em busca de autorização e subsídios para implementar tal obra. Ele causou grande espanto

na vila com esta idéia de tratar e aglutinar os “loucos”. A Câmara lhe deu autorização e

apoio, por se tratar de experimento da ciência e de ser ele um homem estudioso, que vinha

de uma família com renomados nomes na ciência da medicina. O pai de Bacamarte foi um

dos maiores médicos do Brasil, segundo esse conto de Assis.

A inauguração da “Casa Verde” foi com grande “pompa”. Toda a vila participou apesar

de, no início, as pessoas terem ficado perplexas com a idéia. Após a inauguração começou a

grande “romaria” de exílio dos “loucos”. “De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíram

loucos à casa verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família

dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação”

(ASSIS, 1988, p.7). Foram muitas pessoas levadas, capturadas à casa verde. Simão

Bacamarte, “sábio que era não recolhia ninguém sem a certeza da loucura do mesmo”,

acreditava ele.

Passados vários episódios de “prisão dos loucos” as pessoas da vila começaram a se

indignar, porque uma quantidade muito grande daquela população foi recolhida de maneira

arbitrária à instituição. E, o Dr. Simão prosseguia em sua experiência científica capturando

“alienados”. Certa vez a indignação geral foi tão grande que uma pessoa da vila organizou

uma rebelião para soltar os cativos. As pessoas articularam-se com a câmara, mas nada

conseguiram e o alienista continuou prendendo os “loucos”. Foi chegado o dia em que o

próprio Simão Bacamarte decidiu soltar todos os que estavam na Casa Verde. O motivo?

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Tendo revisado a estatística da instituição percebe que quatro quintos da população

estavam lá em tratamento. Esse dado fez o alienista revisar sua “teoria das moléstias

cerebrais” e constatar que sua doutrina estava equivocada. Se antes ele havia concluído que

“estavam fora da razão os casos de pessoas que não apresentassem o equilíbrio das

faculdades mentais perfeito e absoluto” (ASSIS, 1988, p.9 ) agora seria ao contrário. Estava

ele convicto de que a loucura seria reportada às pessoas que demonstram equilíbrio, retidão

do caráter, generosidade, boa fé, respeito humano. O normal seria considerado o

desequilíbrio e a falta de retidão.

Uma vez descoberto que a exceção era o equilíbrio mental foi novamente à Câmara de

vereadores solicitar a continuação de seus estudos, desta vez recolheria à Casa Verde todas

as pessoas que demonstraram tal equilíbrio mental. E assim foi que submeteu todos os seus

pacientes a um tratamento à base de tentativas de desequilibrar os seus princípios morais.

Alguns foram resistentes e demoravam mais tempo para se corromper, mas aos poucos não

restou mais ninguém que não respondesse ao tratamento, dando espaço aos desvios do

comportamento. Por fim, foram todos sendo liberados da Casa Verde.

Quando saiu o último hóspede de sua instituição, Bacamarte não ficou apenas feliz, por

ter descoberto a verdadeira teoria da loucura e por ter devolvido a razão à cidade. Ficou

preocupado, surgiu-lhe uma indagação cruel: “Mas deveras estariam eles doidos, e foram

curados por mim, - ou o que parece cura não foi mais do que a descoberta do perfeito

desequilíbrio do cérebro?” (ASSIS, 1988, p.28). As pessoas curadas eram tão

desequilibradas como os outros. Tinham a loucura em potencial, logo não foram curadas.

Então pela teoria não existiriam loucos em Itaguaí. Novas dúvidas surgem à mente de

Bacamarte, agora sobre si mesmo, estaria ele reunindo as características do perfeito

equilíbrio mental? Parecia-lhe que ele próprio reunia a sagacidade, a paciência, a

perseverança, a tolerância, o vigor moral, a lealdade, em si mesmo.

Por ser ele um homem muito cauteloso e, para não se precipitar em conclusões sobre si

mesmo, consultou aos amigos sobre suas supostas qualidades. Acabou tendo como resposta

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que não tinha nenhum defeito, nenhum vício, nada. Era perfeito. Entretanto, como ainda

duvidava de ser um homem tão virtuoso, o vigário da vila terminou com sua dúvida ao

dizer que ele não percebia tamanhas virtudes por ter outra grande virtude – a modéstia.

Então, após tal constatação não teve mais dúvidas. Encerrou-se na Casa Verde para estudar

e curar a si. Depois de dezessete meses morreu sem ter logrado êxito algum. Alguns na vila

comentavam que talvez em Itaguaí nunca houvera outro louco, além do alienista. Assim

termina esse conto.

As tantas voltas desse conto em torno da busca do entendimento da loucura e as

“certezas” em cada conclusão teórica de um determinado momento, caricaturam a realidade

do universo científico. Do lado da loucura, do lado da normalidade, onde se localiza o

espírito humano? O entendimento e as certezas sobre a condição humana dependem da

opinião da ciência, da legislação vigente, do jogo de forças políticas, depende de quem o

diga, de quem o nomeia. Segundo esse conto de MACHADO de ASSIS, o que são

destruídos são as grandes teorias sobre a loucura. O ser humano continua sendo um enigma

para os estudiosos da área.

Parece relevante tentar entender nossa própria espécie, formular muitas hipóteses,

encontrar grandes respostas, por vezes. O problema que se coloca são as convicções

científicas que absolutizam “certezas” que não são tão verossímeis assim. Em nome destas

“certezas” atrocidades são cometidas com as pessoas que ficam a mercê de tais

experimentos. Conforme o relato de ASSIS (1988), todas as pessoas daquela vila passaram

pela Casa Verde. De uma maneira ou de outra havia necessidade de diferenciar os “loucos”

dos “normais”. Na dúvida do que é realmente a normalidade, do que é a loucura, todos

podem enquadrar-se em uma ou outra categoria.

Um estudioso tão dedicado como Bacamarte formulou uma teoria, experimentou-a e por

fim teve de refutá-la e formular uma nova teoria, justamente oposta à primeira. Muito bem

que seja assim para que a ciência possa colaborar com o desenvolvimento e o progresso das

sociedades. De acordo com o pensamento de BULLA, "Sabe-se, entretanto, que o mundo

físico, humano e social é infinitamente mais rico e exuberante do que a nossa possibilidade

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de compreensão" (1998 p.366). A partir dessa consideração, entende-se que o

conhecimento, por natureza, apresenta limites na apreensão do real, uma vez que o mesmo

é mais abrangente do que o esforço das ciências em compreendê-lo. Todavia, é necessário

que se tenha o cuidado, na manipulação dos conhecimentos, com a vida dos sujeitos. Em

nome do desconhecimento sobre a condição humana, não se pode mais sacrificar as

singularidades humanas, interditando suas expressões.

Talvez aqui esteja a grande mensagem da irônica e genial obra de Machado de Assis,

uma vez que o protagonista do conto foi o último a se exilar e por fim a morrer.

Demonstrou que, mesmo sem as devidas certezas, entregava sua vida a este

desconhecimento, em nome da ciência, do poder das instituições sociais e do medo da

incerteza. Se não é tão fácil compreender realmente o que significam as singularidades, ao

menos se tem que admitir que as mesmas compõem a condição humana e que estas não

podem ser marcadas, segregadas, excluídas ou aniquiladas. Não ficção mencionada acima

há um traço de inabilidade em tratar com a questão da saúde. No que diz respeito a doença

mental, infelizmente, no mundo real e histórico onde o cenário humano se desenrola, a

realidade não se apresenta muito diferente.

MORANT e ROSE (1998, p.129-136) alertam para o fato de ainda hoje a doença mental

ser considerada perigosa e contagiosa. No estudo desenvolvido pelas autoras em que

abordaram funcionários de instituições psiquiátricas francesas e sobre a mídia britânica, é

pontuado o fato de existir uma associação entre violência e problemas mentais. O estudo

indica que mídia britânica faz uma conexão entre grandes escândalos, como homicídios,

estupros e a doença mental. De igual forma especialistas em psiquiatria conceituam as

pessoas portadoras de doença mental como categoria de risco.

De outra forma, estatísticas trabalhadas pelas autoras demonstram que é muito difícil

calcular um percentual de pessoas com problemas mentais que sejam realmente violentas.

E, deve considerar-se o fato de não haver aumentado o número de tragédias envolvendo

pessoas em condições psiquiátricas desde a década de 50 (MORANT e ROSE, p. 130).

Entretanto, "o medo e o perigo" em relação a doença mental é propagado, comprometendo

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a imagem social daquelas pessoas que estão em sofrimento psíquico e as colocando na

condição da "necessária" estrita vigilância da comunidade e do Estado.

Os pressupostos generalistas consideram todas as pessoas, em sofrimento psíquico,

como se estivessem em permanente situação de risco para si mesma e para a sociedade.

Dessa maneira, apenas contribuem para a construção de uma imagem negativa e não

condizente com a realidade. Na realidade, o que de fato acontece na vida diária de pessoas

na condição da doença mental, é em geral, um cotidiano de estigma, marginalização,

ausência de variados recursos e o não acesso a maioria dos dispositivos sociais colocados

para os "ditos normais". A noção de contágio é tão antiga quanto irracional, mas ainda se

faz presente no imaginário social de nosso tempo, conforme indicam MORANT e ROSE: "

...fica evidente que a doença mental como 'um outro' psicossocialmente ameaçador é tanto

construído como perpetuado por práticas sociais, discriminatórias" (1998, p. 132).

As representações sobre doenças mentais feitas por profissionais que trabalham na área

são em geral perpassadas pela incerteza e por ambigüidades, mesmo considerando o fato de

serem esses profissionais "especialistas". Na pesquisa de MORANT e ROSE foi constatado

que "38% dentre 60 profissionais de saúde mental, franceses e ingleses entrevistados"

confessaram ignorância quanto ao entendimento acerca da doença mental. A mesma

ambigüidade e incerteza é encontrada em vários textos das áreas de psicologia, psiquiatria,

enfermagem e outras. De igual forma, quanto às causas e conseqüências da doença mental

também não são de domínio do conhecimento da área psiquiátrica. Na pesquisa feita na

Fundação que articula e desenvolve a política pública para pessoas portadoras de

deficiência e de altas habilidades no Estado do Rio grande do Sul, pode-se constatar a

mesma dificuldade, conforme declaração abaixo, de trabalhadores especialistas nessa área:

"Trabalhamos a tanto tempo com deficientes mentais mas não os conhecemos, não entendemos como funciona a mente deles, não sabemos o que fazer com eles, quais os recursos mais adequados para colocar a disposição. Eles não sabem dizer o que é melhor para eles, nós não sabemos interpretar" (Seminário realizado em agosto de 2002).

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Um mundo estranho, alheio, não familiar, um universo singular é o que caracteriza a

deficiência mental, quase incognoscível aos seres em geral. O contato com esse universo se

constitui em uma experiência diversa e única para quem convive. Constitui-se, também, em

um mundo tão peculiar no qual vivem as pessoas que entendem a realidade por uma outra

via que não é a do ordinário, do cotidiano comum as demais pessoas da realidade social.

Não é possível classificar a "loucura", que escapa as delimitações do entendimento que está

estabelecido para designar o que é humano.

Há um universo carregado de conceitos que classificam as atitudes humanas, que dita o

que é correto, desejável e se pode esperar das pessoas. A racionalidade humana está apta a

entender a forma possível a moldar-se aos conceitos preestabelecidos para significar o que

é a razão, o que é o "normal". As pessoas portadoras de doença mental demonstram outras

formas de estar no mundo, outro lugar para se colocar no social, que não é o exatamente

esperado. A forma diferenciada de viver, de se presentificar na vida, causa estranheza e está

atravessada pela idéia de que é inacessível ao entendimento comum.

As formas de vida diversas que se expressam por detrás de uma experiência com a

chamada deficiência mental trazem a marca do (des) humano. Vive-se em uma cultura

atravessada por um quase invisível processo de descaracterização da humanidade que há

nas pessoas que se expressam em um outro modo de ser, que não o esperado. A

conseqüência da experiência de tal diversidade tem sido a exclusão, a interdição das

instâncias sociais àqueles que não se enquadram na moldura social.

A estranheza causada pelas "disfunções" mentais constitui, segundo MORANT e ROSE,

"uma forma particularmente poderosa de alteridade" (1998, p.143). O problema aqui é o

fato do conhecimento apresentar limites para compreender e explicar tal alteridade. A

dificuldade se torna maior por esse limite ser agravado pela soberba de criar métodos e

normas de convívio, onde muros são consolidados para separar a "diferença" do mundo

comum. Essa situação segrega, mutila aquelas subjetividades não passíveis de compreensão

do mundo social.

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Perde-se muito, com o movimento que há nas diversas instituições do social, quando se

desloca para fora do convívio as pessoas que se apresentam de forma singularmente

diferenciada. Não só para quem sofre diretamente a conseqüência da exclusão, igualmente

para os demais que se privarão da riqueza da "mistura das cores". O convívio com as

diferenças culturais e pessoais é o que pode dar mobilidade aos padrões criados na

sociedade. Conforme se pode verificar no depoimento de um trabalhador da área da

deficiência mental:

"A quantidade de coisas que eu aprendi com os deficientes mentais eu não teria a menor chance de aprender se não fosse neste convívio, nesta forma absolutamente estranha de se colocar no mundo, que é a do deficiente mental. Foi uma vivência e um aprendizado sobre o que é ser humano, que eu jamais teria a não ser com aquele grupo super estranho, para a realidade da maioria das pessoas, e mesmo da minha" (Diário de Campo, jan. de 2001).

A possibilidade de convívio com a diversidade é o caminho possível para

desmistificar a estranheza sugerida no afastamento de tudo aquilo que foge ao

pseudocontrole da razão. Os diversos (des) caminhos de concepções e métodos

segregatórios e separatistas foram acentuando a não familiaridade com as singularidades

pessoais. Não é possível compreender aquilo do que nos afastamos por medo do

desconhecimento. A desqualificação relegada a tudo que foge às regras estabelecidas

conduziu ao desenvolvimento de relações sociais produtoras da interdição que negam

acesso ao mundo, para aqueles que são considerados "diferentes". Essa interdição produz a

limitação da possibilidade de compreensão das diferenças ou dos seres rotulados como

diferentes. "Há um preconceito imenso que nos impede de dar atenção à fala de uma

pessoa portadora de deficiência mental. Pensa-se que ela não tem nada de importante para

dizer, o que não é verdade" (Entrevista realizada em maio de 2001).

O preconceito é produto do desconhecimento, que faz as pessoas desconsiderarem

aquilo que não conhecem. “Devemos trazer para o campo do estudo das diferenças a

questão da deficiência com toda sua amplitude de peculiaridades” (AMARAL, 1994,

p.29). Segundo essa autora, a generalização reduz o entendimento, “gera o empobrecimento

da compreensão”. Geralmente o entendimento acerca das questões humanas se dá de forma

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totalizante e padronizante, como se todos fossem iguais, tivessem características idênticas,

sem diferenciações.

Ainda AMARAL, aborda os significados da diferenciação trazidos visivelmente pelos

portadores de deficiência, “... o deficiente é a própria encarnação da assimetria, do

desequilíbrio, das des-funções. Assim sua desfiguração, sua mutilação, ameaça

intrinsecamente a existência do outro” (1994 p.30). Refletindo nessa perspectiva ter-se-á

nas deficiências a representação das “imperfeições, das “limitações” de todos os seres. É a

prova da incompletude humana, da irrealidade que há na perspectiva que percebe o ser e a

vida como perfeita. A diferença é real, a singularidade faz parte da vida. Se faz necessário o

seu reconhecimento.

O “modelo médico” do século XIX “... marca todos os diferentes comportamentos com

uma mesma matriz, não procurando relações causais...” (CECCIM, 1999, p.32). A partir

da expressão da marca e dos rótulos que os indivíduos recebem por portarem determinadas

diferenças, a materialidade do social é desconsiderada. Uma vez que se atribui ao ser em si

a responsabilidade por “seus” impedimentos, as condições concretas do ambiente por onde

circulam as pessoas não são analisadas, ou seja, as condições estruturais, que podem ser

denominadas como a materialidade do social, não é levada em conta. O social é formado

por uma série de indivíduos, pelas relações que se dinamizam entre esses, seus processos e

por condições concretas de acesso (ou impedimentos) destes indivíduos aos diversos

setores da sociedade.

É preciso aprender a considerar e analisar toda a amplitude das peculiaridades na

questão das deficiências. Na expectativa da perfeição muito se negou a existência de

diferenciações básicas entre os seres e daquilo que é nomeado “defeito”. O que se considera

defeito tem como parâmetro o “perfeito” e o esperado em relação à característica da

maioria dos indivíduos. A realidade inverte tal expectativa, porque o sonho da perfeição é

apenas um sonho e não um fato experienciado no cotidiano do real. Na busca do

conhecimento não generalizante reconhecer-se-ão as especificidades das deficiências e suas

diversidades.

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Um exemplo interessante de adaptação à realidade do sujeito pode ser trazido a essa

reflexão a partir da experiência tida na área de saúde mental, em uma situação vivida com a

equipe de saúde mental e um usuário de seus serviços1. A equipe estudava as possibilidades

de intervenção junto a um usuário com histórico de várias internações, cuja família sempre

buscava o serviço quando o mesmo estava "mais agitado" e pronunciando "palavrões".

Com a medicação fornecida no serviço de saúde essa pessoa "acalmava-se", dormia por

diversas horas e deixava de pronunciar as palavras desagradáveis. O fato é que a equipe

começou a questionar a freqüência das internações, sendo que a situação não era tão grave

para tal reincidência na intervenção profissional.

Um monitor da equipe de saúde mental encontrou uma forma estratégica para

enfrentar tal situação. Resolveu, acompanhar o referido usuário, daquele serviço público,

até um estádio de futebol para assistir uma partida de um determinado time. No contexto de

um campo esportivo várias pessoas gritam, dizem palavras agressivas, utilizam-se de

"palavrões". Tal contexto forneceu ao sujeito em atendimento, o exercício de sua

diversidade, de forma a encontrar similitude com outros que como o mesmo estava

precisando dar espaço a uma determinada forma de expressão de sua individualidade.

Naquele lugar era possível fazer algo, em maioria, que para um determinado sujeito, que já

tinha um histórico de doença mental e, portanto, um rótulo, lhe custava novas internações

psiquiátricas. Esta estratégica foi estuda como exemplo das possibilidades em se criarem

formas alternativas de tratamento para os sujeitos em sofrimento psíquico. Novas formas

que pudessem ser mais adequadas à humanização dos atendimentos e não apenas centradas

na medicação.

1 A experiência foi relatada na Pré-Conferência de Saúde Mental do Distrito 4 da Região Sul de Porto Alegre (RS), realizada em setembro de 2001.

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Na situação dos portadores de deficiência há um déficit específico a cada área das

diversas deficiências, seja na área física, sensorial ou mental. Todas as áreas apresentam

múltiplas singularidades que se diferenciam umas das outras. Um portador de deficiência

mental tem déficit diferenciado de um portador de “Síndrome de Down”. As necessidades

de um portador de visão subnormal são diferenciadas de um portador de cegueira total,

embora os dois tenham um significativo déficit sensorial. Entre todas as pessoas existem

diferenças marcantes que deveriam ser consideradas na composição da sociedade, de sua

organização material e simbólica.

A questão que se coloca é que as pessoas portadoras de deficiência, por apresentarem,

diferenças marcantes, inúmeras vezes passaram por processos de classificação,

categorização, hierarquização. Tais processos reforçaram a segregação e os diversos

preconceitos por que passam as pessoas naquelas condições. Por conta dessas

classificações: “os seres são categorizados segundo o problema que causam à sociedade:

pobreza, delinqüência, loucura, deficiência e tantos outros” (TOMASINI, 1998, p.114).

Sendo assim, o indivíduo que é responsabilizado pelo “fracasso” de uma limitação, é

retirado do espaço de direito ao usufruto da vida, por ser considerado culpado pelos

possíveis transtornos que “causa” ao seu meio.

Um exemplo de situações que comprovam o dito acima, bastante comum, é a situação

das crianças que não acompanham o rítimo de aprendizagem da turma de alunos da qual

fazem parte. O que acontece na maioria das vezes? Essa criança é excluída, é deixada de

lado, não se investindo em sua potencialidade. O sistema de relações escolares é geralmente

segregador. Aqueles que não se encaixam num padrão geral de desenvolvimento são

retirados do processo. Não é comum ao sistema de ensino uma prática inclusiva, ou seja, a

utilização de metodologias alternativas, no sentido de estarem adequadas às peculiaridades

dos alunos portadores de deficiência. No ensino regular, dificilmente, uma criança com

algum determinado tipo de déficit permanece sem ser encaminhada ao ensino especial.

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Constituem-se determinados padrões de normalidade, como se fossem parâmetros para o

pertencimento ou não pertencimento. O parâmetro estabelecido socialmente se não for

acompanhado pelos sujeitos, os mesmos ficarão de fora daquele contexto, serão "jogados"

para outro lugar, o “lugar do diferente”, do “especial”. Isso significa classificar e colocar

em segundo plano tudo que for diferente. TOMASINI fala da classificação entre o

“cidadão de primeira classe” e o “cidadão de segunda classe”, sendo esse último mais um

dos estigmas relegados as PPD.

Uma prova de tal estigma e (des) qualificação é o teor histórico dado, por exemplo, para

as atividades das classes e das escolas especiais: dão ênfase às atividades manuais em

detrimento das atividades intelectuais. Com tal ênfase, a pessoa reduz, por uma questão de

método, sua aprendizagem ao aspecto manual, a mera execução de tarefas. O indivíduo

quando não é estimulado, em sua capacidade de pensar, de refletir, de participar dos grupos

com opiniões, acaba limitando a expressão de sua individualidade (TOMASINI, 1998,

p.127).

Esses equívocos quanto à potencialidade das pessoas portadoras de deficiência,

provavelmente se devam, entre outras coisas ao desconhecimento, à limitação do

conhecimento acerca das singularidades. Singular é, o oposto de plural que significa vários.

Singular é um, único, não passível à reprodução, a igualificação, é um só nome, uma só

pessoa, uma única forma de ser e, o que é distinto dos demais. Singular é o que diferencia e

distingue os seres uns dos outros apesar de todos fazerem parte da mesma espécie.

Portadores e não portadores, se assim forem classificados os seres, são distintos,

diferenciados entre si, porém pertencentes ao conjunto humano social. Na perspectiva da

singularidade, é estranho refletir sobre a enorme tendência das normativas sociais que

buscam uma padronização dos seres, que criam uma moldura social na qual todos devam se

enquadrar a despeito de sua singularidade. Por conta de tal tendência se cria um sistema

opressor nas relações da sociedade, que classifica as pessoas, que consolida muralhas

separatistas e limita o espaço de expressão das subjetividades.

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AMARAL (1994), se refere a uma antiga estória grega, o “Leito de Procusto”, que será

ilustrativa da referida moldura social. Havia um homem poderoso, rico que tinha o costume

de receber a convite pessoas estranhas ao seu reinado. Procusto recebia com toda a honraria

o convidado, servindo o que havia de melhor, oferecendo todo o luxo da casa. O anfitrião

oferecia inclusive um leito luxuoso, com uma determinada moldura na qual o convidado

deveria encaixar-se. Entretanto, se a pessoa não se adequasse a tal leito, seria compelida ao

enquadre de qualquer maneira, seria cortada, esticada. “A morte era quase certa! Só poucos

e raros convidados, absolutamente adequados à dimensão pré-estabelecida alcançavam a

velhice” (AMARAL, 1994, p. 44).

É comum encontrar nas lendas gregas uma representação drástica da história e do

cotidiano dos povos em geral. A estória narrada acima é uma figura similar ao modo de

vida que se desenvolve em nossas sociedades, no que diz respeito ao convívio com as

diferenças. Existe pouca tolerância subjacente às relações institucionais, comunais e

pessoais quanto às diferenças e principalmente às diferenças visíveis, como as que

apresentam os portadores de deficiência. É com estranheza que se olham uns aos outros,

quando não se percebe no outro apenas um espelho daquilo que está simbolicamente

delimitado como o que tem que ser igual. É difícil conviver e aceitar as singularidades sem

querer cortá-las, emoldurá-las no quadro da sociedade. É como se nada pudesse sobrar,

nada pudesse faltar. Tem que ser exato, correto, perfeito, senão é um “desvio”, um erro.

VELHO diz que “o estudo do desvio não é o estudo de pessoas em si mesmas, mas o

estudo da classificação de pessoas na mente dos homens” (1985, p.80). Eis nesta

afirmativa a indicação de que se idealiza o real, estratificam-se os comportamentos, e

visualizam-se as pessoas de acordo com uma determinada lente focalista, que percebe a

parte e não vislumbra o conjunto. A história das ciências por vezes, como no caso da

medicina, insistiu em conceitos de “normalidade”, penalizando desta forma os chamados

“anormais” com o exílio e a segregação.

Além do aspecto da segregação para este segmento da população acontece também um

"esquecimento" de que as pessoas portadoras de deficiência fazem parte deste mundo. Para

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compor essa argumentação será trazida a crítica, feita pelo movimento Gaúcho das Pessoas

Portadoras de Deficiência, a uma estatística fictícia da população do mundo2. Nesta

estatística é suposto que: se fosse possível reduzir a população da Terra para uma aldeia de

exatamente 100 pessoas, mantendo todas as relações humanas existentes, se chegaria ao

seguinte quadro:

"57 asiáticos, 21 europeus, 14 do Hemisfério Ocidental, do norte e do sul, 08 africanos; 52 seriam mulheres, 48 homens; 70 seriam não brancos; 30 seriam brancos; 70 seriam não cristãos, 30 seriam cristãos; 89 seriam heterossexuais; 11 homossexuais; 06 possuiriam 59% de toda a riqueza do mundo e todos os 06 seriam dos Estados Unidos; 80 habitariam moradias de baixo padrão; 70 não saberiam ler; 50 sofreriam de subnutrição; 01 estaria próximo da morte e 01 estaria próximo de nascer; 01 teria educação universitária e 01 possuiria um computador. Quando consideramos nosso mundo sob uma perspectiva de tal forma comprimida, a necessidade de aceitação, compreensão e educação se torna extremamente obvia" (Doc. Mov. Gaúcho das PPD, 2002, p.2).

O cerne da crítica feita a esta ficção estatística é o fato de apesar da proposta crítica que

ela apresenta em torno das flagrantes desigualdades sociais e a concentração de bens, ainda

assim ela não menciona as pessoas portadoras de deficiência. Os portadores de deficiência

sequer são lembrados "nessa aldeia". Não há visibilidade da questão da deficiência e suas

implicações sociais. O percentual de pessoas com algum tipo de deficiência no mundo não

é um número insignificante.

O Documento da ONU faz referência há uma estimativa de “500 milhões de pessoas

deficientes no mundo”. Neste documento leva-se em consideração o fato de que, na maioria

dos países, pelo menos uma em cada dez pessoas tem uma deficiência física, mental ou

sensorial e a presença desta deficiência repercute de forma negativa em pelo menos 25% de

toda a população. Considerando que número de pessoas portadoras de deficiência seja em

torno de 500 milhões, dessas 350 milhões vivem em zonas que não dispõe dos serviços

necessários para ajudar superar suas limitações. Essas pessoas estão expostas a barreiras

físicas, culturais e sociais que constituem obstáculos à sua vida (ONU, 1992, p.5-15).

No caso do Brasil, constata-se o problema da falta de precisão do dado quantitativo,

referente às pessoas portadoras de deficiência. Quantos são esses sujeitos? No Relatório

2 Declaração feita pelo Dr. Philip Harter, da Escola de Medicina da Universidade Stanford.

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Azul (1997) é apresentada uma indagação sobre os dados oficiais do IBGE (um dos grandes

Institutos Estatísticos Brasileiros). O Censo Demográfico de 1991 refere-se a 1,498% de

PPD, em uma população de 146.815.750 habitantes, ou seja, 2.198.988 são considerados

deficientes. Uma importante questão sobre essa problemática quantitativa é formulada por

um dos autores desse relatório, da seguinte forma:

“Se Suécia e Estados Unidos, países desenvolvidos do ponto de vista econômico e com os indicadores sociais de qualidade de vida entre os mais elevados do mundo, trabalham com percentuais populacionais na casa dos 20%, como explicar que no Brasil, com gravíssimos problemas econômicos-sociais que possui, tenha-se obtido o índice de menos de 1,5%? (LIPPO, 1997, p.149).

O fato dos dados para quantificar as pessoas portadoras de deficiência serem imprecisos

demonstra a importância de qualificar as pesquisas no sentido de uma maior

instrumentalização para apreender o dado real. Conforme AMARAL, “nas projeções mais

otimistas são mais de treze milhões as pessoas brasileiras portadoras de deficiência. Se

acrescentarmos dois ou três elementos familiares teremos quase que um terço da

população envolvida com a questão!” (1994 p.13). Não é pouco significativo o número de

pessoas diretamente relacionadas com as deficiências/diferenças e, portanto, esta é uma

questão necessária à pauta dos debates sociais.

O censo de 2000 (IBGE) apontou para um número de 14,5% da população com algum

tipo de deficiência. Esse percentual causou polêmicas, pois considerou para sua contagem

de pessoas com deficiências visuais totais e parciais. O que foi contestado por algumas

pessoas que consideraram o conceito de deficiência visual muito abrangente e não

concordam que o fato de uma pessoa usar óculos as coloque na condição da "deficiência".

O problema referido quanto à imprecisão dos dados quantitativos acontece de igual

forma com a definição dos termos, das palavras, da nomenclatura que designa os

portadores de deficiência. Alguns termos, (como será visto no item 2.1), estão a serviço de

uma lógica elitista e excludente, que justifica a “dita normalidade”. O que está em questão,

é a importância de perceber a pessoa portadora de deficiência como cidadão, sujeito

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participante e não objeto de piedade social. Sendo assim, o termo para designar sua

situação deverá ter o sentido político de contemplar o aspecto relacional das interdições.

1.2 A PESSOA QUE É PORTADORA DE UMA DEFICIÊNCIA OU DE ALTAS HABILIDADES

Quem é este sujeito que se vê privado de uma série de circunstâncias fundamentais para

vida humana? Que não se enquadra no padrão estabelecido pelas normas sociais? A

Política Nacional de Educação Especial tem explicações para cada termo específico dos

diferentes tipos de deficiência e considera:

“Pessoa portadora de deficiência é toda aquela que apresenta, em comparação com a maioria das pessoas, significativas diferenças físicas, sensoriais ou intelectuais, decorrentes de fatores inatos ou adquiridos, de caráter permanente, que acarretam dificuldades em sua interação com o meio físico e social” (1994 p. 22).

As pessoas portadoras de deficiência enfrentam impedimentos diferenciados, barreiras

de naturezas diversas, o que sugere alternativas heterogêneas para o enfrentamento de cada

especificidade das diferenças. O termo “portador de deficiência” é utilizado no Brasil de

forma genérica, abrangendo as diversas áreas da deficiência: deficiência física (paraplegia,

paralisias cerebrais e outros), sensorial (visual e auditiva), cognitiva (mental e

comportamental - condutas típicas) e múltipla. Assim como o termo “portador de altas

habilidades”, também, reconhecido em todo o Brasil, com essa nomenclatura faz parte das

“necessidades educativas especiais”, assim consideradas pela Política de Educação

Especial. Em um próximo item será abordada com maiores detalhes a questão dos termos.

O cotidiano das pessoas que tem restrições marcantes em seu viver, muitas vezes não

lhes permite a promulgada “igualdade de oportunidades”. Observam-se inúmeros exemplos

de exclusão de setores básicos da vida, como a escola que, geralmente, é a primeira a

excluir a diferença, por falta de habilidade, por não saber lidar com diferenças. O caso dos

“portadores de altas habilidades” é típico exemplo do despreparo das escolas,

especialmente, as da rede pública, que não reconhece o talento de determinados alunos que

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tem um rítimo diferenciado para a aprendizagem em relação aos demais, não se

submetendo aos padrões e não conseguindo se enquadrar no ensino tradicional.

Ao não reconhecer a singularidade destes talentos, por vezes, essas crianças são

relegadas ao abandono e taxadas de “hiperativas”, “agressivas”, “perturbadoras da ordem”.

Infelizmente a conseqüência dessa potencialidade não reconhecida e não acolhida em um

espaço de construtividade, acaba sendo a utilização do potencial para ações autodestrutivas

como organizar tráfico de drogas, assaltos, seqüestros, etc. Semelhante situação acontece

com os chamados “portadores de condutas típicas”, que são conceitualmente considerados

pelo Doc. da Política Nacional de Educação Especial como:

“Emocional e socialmente desajustados, por terem características de distúrbios de comportamentos, tais como: agressividade, timidez, medo, obstinação, tiques nervosos entre outros” (1994 p.13).

A prática cotidiana de atendimentos aos sujeitos assim considerados, permite

problematizar esses conceitos e dar uma outra dimensão para essa questão. Pondera-se que

pensar em “condutas típicas” leva a encontrar o que pode permear este conceito, ou o que

pode conectá-lo a outros fatores, outras situações. Partindo de um ponto de vista relacional,

pontua-se o aspecto contextual da “diferença em questão”, para situar o significado

singular que pode ter para cada sujeito específico, a característica comum aos “portadores

de condutas típicas”.

O dia-a-dia com crianças com tais características revela que o modo de vida desses

usuários dos serviços públicos é indicador de complexa rede de outros condicionantes

existenciais, sociais e estruturais. De um lado existem determinantes psíquicos que por

vezes, limitam um desenvolvimento considerado “adequado” ou desejado pelo meio social.

De outro lado há todo um contexto em que o sujeito se expressa e se apresenta, que está

subjugando, subestimando, subalternizando a expressão da individualidade. Encontram-se

famílias fragilizadas em suas relações pessoais, desgastadas por um cotidiano esmagador,

no turbilhão de uma sociedade de consumo e baixos salários, bem como um difícil acesso à

qualidade de vida e de saúde física e mental.

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Todos os indivíduos desta sociedade são únicos, singulares, inseridos em uma rede

ampla de relações. Os diversos sujeitos que produzem e reproduzem suas vidas diárias

estão em um cenário que está historicamente condicionado a uma estrutura social

desumanizadora que lhes exige a capacidade de ser “normal”, diante de tantas patologias

que são referentes à estrutura social da organização dos indivíduos na sociedade.

Voltando a refletir sobre a questão das altas habilidades acontece algo similar ao que é

enfrentado na situação das deficiências, onde se centra atenção no déficit. Nessa

circunstância a atenção estará centrada no potencial da pessoa. Mantendo-se um problema

semelhante que é o de centrar a percepção em uma parte do sujeito perdendo a noção do

todo e a visão global do ser humano. Uma pessoa passa a ser vista pela sua diferença e não

no conjunto de suas possibilidades e limites tão comum aos seres humanos. O drama dos

portadores de deficiência e dos portadores de altas habilidades se assemelha aqui pelo fato

de que se esquece o sujeito como um todo, se vê a parte como se fosse o todo.

Os pais perdem o parâmetro com a criança com altas habilidades, perdem o referencial

porque a criança foge dos padrões, há uma dificuldade em lidar com essas questões. As

famílias super estimulam suas crianças em determinadas áreas, esquecendo-se de suas

limitações. As crianças são colocadas a desempenhar papéis que não são adequados a faixa-

etária que elas estão, como, por exemplo, tomar decisões pela família. O nível de cobrança,

de exigência com o desempenho da criança é muito alto.

"Os pais chegam assustados ao plantão institucional, sem saber como lidar com o 'filho diferente' as reações que aparecem diante dos talentosos são semelhantes as reações diante dos portadores de deficiência, são crianças consideradas os 'chatos' da turma" A tendência dos pais é bloquear o conhecimento do filho por medo dele. (Seminário realizado em out. de 2001).

No ambiente familiar, o potencial da criança considerado além dos parâmetros acaba se

tornando ponto de conflito nas relações familiares Os pais não conseguem entender os

filhos, ficam assustados e desorientados diante da manifestação do potencial deles. Uma

criança aos cinco anos de idade não pode receber a incumbência de gerenciar a família,

pelo fato de apresentar alguns talentos, algo que acontece com freqüência, nessas

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circunstâncias. Isso significa a perda dos parâmetros e a dificuldade em perceber a criança

primeiro enquanto criança, depois em suas particularidades.

Os portadores de altas habilidades sofrem com a inveja e a agressividade das pessoas,

por isso acabam sendo excluídos dos grupos. Na relação professor aluno, por vezes o

professor não sabe como lidar com o aluno que supostamente sabe mais do que ele, e

algumas vezes acaba hostilizando o aluno. Há o medo do saber do outro. O déficit e o

potencial não são duas pontas antagônicas, a essência da problemática está nas relações

sociais que funciona em cima de um padrão, de parâmetros organizados pelo social, onde a

diferença não se encaixa. São muitas as questões que permeiam as altas habilidades, como

se pode analisar no resultado do debate abaixo:

"Há o medo da loucura porque a criança pensa demais, por estar sempre à frente, por ser crítico demais. A fantasia de que todo o cientista é um pouco louco. A percepção da criança é maior e a sensibilidade é mais aguçada. Ex: são crianças de 3 e 4 anos tematizando sobre a guerra, destruição, captando o contexto atual. Questões sobre política, sobre justiça aparecem precocimente" (Seminário realizado em out. de 2001).

Aproveitando, uma vez mais, a figura da ficção, pode-se valer do Filme Shine

("Brilhante")3 que apresenta a história de um menino talentoso, com uma grande habilidade

na área musical, tocava com maestria um piano. Trata-se de um jovem da classe pobre que

aprendeu com o próprio pai a tocar piano. Seu pai era um homem de características rígidas,

muito disciplinado e exigente, não aceitava que o filho fosse menos do que o melhor de

todos. O menino de origem Franco-Soviética começou desde muito pequeno (6 anos) a

participar de concursos de música e a ocupar os primeiros lugares. As competições que

perdia deixavam o pai muito irritado e decepcionado e o menino muito oprimido e abalado.

Tornou-se famoso na região pelos concursos que ganhou, pelas peças de grandes mestres da

música que sabia tocar e por suas próprias composições.

Com todo aquele talento ganhou diversos prêmios, inclusive subsídios para estudar na

Inglaterra. A rigidez e a super exigência de seu pai o acompanhou por toda sua carreira. Ele

3 Do original SHINE; Australian Film Finance Corporation. Produção Momentum Films - Jane Scott; Direção Scott Hicks, 1996.

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não teve uma vida de criança, nem de adolescente, não convivia com pessoas de sua idade,

não tinha diversão e vida social. Foi criado para responder ao padrão de ser um grande

músico e não decepcionar o pai. Em sua ainda juventude, durante um de seus consertos e

no esforço para realizar o melhor possível perdeu os sentidos e a razão. Foi acometido de

um surto psicótico, com conseqüente internação em um hospital psiquiátrico, por longos

anos, onde recebeu, entre outros tratamentos, o choque elétrico. Nunca mais se recuperou,

ficou com um comportamento regressivo, como se fosse um menino, deixava transparecer

um sentimento de culpa por não ter respondido a todas as expectativas do pai. Esteve

institucionalizado por um bom tempo, seus pais não o visitavam, apenas as irmãs iam,

eventualmente, vê-lo.

O protagonista dessa história com o passar do tempo, foi descoberto por pessoas que

reconheceram seu talento e lembraram do tempo em que ele era famoso por suas

apresentações artísticas. Algumas pessoas ligadas ao meio artístico "o adotaram". Por fim

foi morar com amigas e começou a fazer apresentações em bares e restaurantes. Foi

recuperando a expressão de seu talento e realizando apresentações em lugares famosos. Os

jornais da época recuperaram sua história e publicava seus feitos artísticos, relembrando

sua mocidade, o tempo em que ele ganhava concursos e prêmios. Recuperou sua

habilidade, fez várias amizades e se casou com uma pessoa de mais idade. Entretanto,

nunca recuperou sua integridade mental. Apresentava várias disfunções psíquicas, como um

comportamento regressivo, a fala repetida das palavras e o autocontrole prejudicado.

A história de David Helfgott é uma história real e retrata o drama de pessoas que têm um

talento que as diferencia das outras pessoas e em função deste talento suas vidas centram-se

no potencial, parcializando as possibilidades do sujeito, impedindo a manifestação das

demais funções da vida. A descompensação psíquica é conseqüência desta parcialização

que esgota a vida de uma pessoa em torno de uma parte de seu ser. Por vezes, é muito

difícil para as famílias e as pessoas em geral lidar, em suas relações pessoais, com uma

criança e/ou um adolescente que se apresente com uma singularidade marcante, que se situe

em um lugar diferente do lugar dito "comum". O custo é muito alto para o exercício da

diversidade, muitas vezes custa à própria vida. "O fato é que ele, ele não aprovou... Não

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aprovou. Desaprovou inteiramente.. E eles se afastaram e me deixaram aqui.." (frase do

protagonista do filme).

A "desaprovação" passa ter um sentido social que atravessa as individualidades. O

exercício da diversidade, a possibilidade de expressar as diferenças no contexto traz a tona

a dificuldade de aceitação e aprovação pelas instâncias institucionais e do cultivo no social

de uma moldura para os seres. Fora dessa moldura o resultado provável é a desaprovação e,

portanto a rejeição do sujeito que não se acomode na mesma. A imagem e a auto-imagem

pessoal de cada ser passa por este atravessamento de exigências cultuada pelo meio social.

Essa imagem pode ser desqualificada, depreciativa ou qualificada e considerada "padrão".

Segundo GOFFMAN, "a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o

total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma

dessas categorias" (1982 p.11). Como a sociedade, em geral, percebe as pessoas que tem

suas diferenças flagrantemente expostas? Em um depoimento de um militante da setorial

das pessoas portadoras de deficiência, de um Partido de Esquerda, constata-se uma resposta

bem realista para essa questão, que se expressa na fala que se destaca:

“Como um cego é visto pela sociedade? Olham o como “ceguinho”. Toda a subjetividade, todo o talento do indivíduo, tudo é negado nesta hora, o sujeito é reduzido à cegueira. Até que ponto a cegueira é um substantivo? Até que ponto a cegueira é minha substância? Isto é a ideologia – concepções de certo / errado, normal / anormal – ideologia que dá e tira prestígio para alguns e para outros. Como se trata o cego? Ou ralhando ou com o carinho que se dá aos “loucos”. Que bonitinho! É tão inteligente é mais inteligente do que eu (Diário de Campo nov. de 1999).

Nesse depoimento se expressa a percepção do quanto a cultura da “normalidade” olha

para a diferença acentuando o limite, numa perspectiva totalizadora. É como se o portador

de uma “deficiência” fosse idêntico a um ser deficitário em seu todo. Isto demonstra o

quanto o sujeito não é reconhecido em sua totalidade, mas é identificado pela

particularidade de sua diferença, que em alguns casos são diferenças restritivas em

determinadas áreas, porém, não impeditivas para o desenvolvimento das demais áreas da

vida.

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Para GOFFMAN, as pessoas são socialmente enquadradas em categorias, existem

determinadas afirmações em relação ao que deva ser o indivíduo que se apresenta aos

grupos da sociedade. Existem atributos que uma pessoa deve possuir para pertencer a uma

determinada categoria. Quando acontece de uma pessoa se apresentar com evidências de

um "atributo" que o torne diferente dos demais "assim deixamos de considerá-lo criatura

comum e total, reduzindo-o a uma criatura comum e estragada" (1982 p.12).

O fato de alguém não se enquadrar em atributos desejáveis ou apresentar atributos

considerados estranhos, caracteriza a situação, denominada por Goffman de "estigma". O

"estigma" aparece permeado pelo descrédito que se atribui a uma pessoa, que fica marcada

por aquilo que é considerado desvantagem. A desvantagem aparece na relação entre os

indivíduos, especialmente para aqueles que se apresentam de forma estranha ao

considerado habitual. O estigma se constitui em uma marca, um sinal que está pontuando

um defeito. Tal defeito foi consolidado nos processos socais que criaram delimitações entre

ordinário e o extraordinário.

O extraordinário, nessa situação, tem uma conotação negativa. GOFFMAN refere-se a

origem do termo "estigma" associando-a a sinais corporais que eram utilizados para

demonstrar que o indivíduo, assim marcado, era um escravo, um traidor, um criminoso.

Tratava-se de uma pessoa marcada, que deveria ser evitada, e que estaria sob a condição "...

do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social" (1982, p.7). No depoimento

abaixo se analisa o fato da pessoa portadora de deficiência mental avaliar que as pessoas,

em geral, não entendem que todos devem fazer parte do mundo.

"Tanto guri como guria a gente é tudo igual a eles, a gente faz tudo igual ao que eles fazem, só tem uma deficiência, a gente não tem doença contagiosa. A gente só não tem dinheiro para a liberdade de comprar as coisas, depende da família, no resto somos iguais. Gosto muito de fazer novas amizades. Algumas mães tem medo que a gente namore os filhos delas. A mãe de um amigo meu não deixou que eu namorasse o filho dela e me proibiu de voltar na casa dela" (Entrevista realizada em nov. de 2001).

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Falar em estigma é considerar as marcas que uma sociedade deixa em seus seres sociais.

Quando determinados padrões socialmente dados não são cumpridos por um sujeito, o

mesmo corre o risco de se tornar um estigmatizado. Correndo-se o risco, assim, de receber

uma marca, com a qual as outras pessoas irão se relacionar, antes mesmo de perceber o

sujeito que está por detrás da mesma. O imaginário social está fortemente condicionado

para a estranheza diante daquilo que não é da ordem do ordinário. O ordinário é percebido

como o ideal, como aquilo que deve acontecer, é ordem das coisas no social, o lugar

seguro. A visão sobre essa ordem "perfeita", no ordinário, se sobrepõe à percepção da

pessoa enquanto pessoa, uma vez que ela não cumpra tal prerrogativa. O depoimento que

segue, é significativo para demonstrar essas afirmativas:

"O importante é que as pessoas entendam que não se tem que procurar o específico da problemática de uma criança para entender sua deficiência, deveria percebê-la antes de tudo como criança. Tem que ver primeiro a pessoa e depois sua marca ou sua deficiência. O que acontece é o contrário. Na escola, principalmente, é muito complicada a aceitação de tudo que foge da 'normalidade'. Sempre causa espanto uma criança com diabete, portadora do vírus de HIV positivo ou que portem qualquer diferença. Isso passa ser o principal, a primeira questão. A criança não é considerada, mas sua marca, seu 'defeito' sim, esse vale" (Entrevista realizada em maio de 2001).

Em diversas instâncias da sociedade a situação de estigmatização é produzida e

reproduzida. Em geral o início do processo discriminatório começa na família. A filiação

acontece de maneira diferenciada, no caso das pessoas portadoras de deficiência. Os filhos,

em geral, são esperados para responder a uma expectativa de normalidade que já é dada no

social. A reação mais comum, com a chegada de uma criança com alguma deficiência, é a

da rejeição e o pesar. O "luto do bebê perfeito" começa a ser considerado, como algo

necessário, para que a criança real seja aceita e passe a conviver naquela família. Há um

olhar dos familiares, dos parentes, dos vizinhos, que por vezes, vai definir um lugar

diferenciado de inserção daquela criança no seu contexto de vida. Uma inserção, quase

sempre, atravessada por muitas marcas. "A espera da mãe de uma criança perfeita, resulta

que seu 'troféu veio arranhado', e aí esse 'troféu' não vai para estante, nem para vitrine, e o

que é pior ele nem sairá de casa" (Entrevista realizada em jan. de 2002).

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Como resultado desta pesquisa de doutorado se obteve, em vários depoimentos e nos

debates e reflexões em seminário, o resultado de que a família contribui para o isolamento

das pessoas portadoras de deficiência. Isso foi denominado de "cidadania roubada" pelas

mães, pelas avós, que em geral, são as pessoas que educam as crianças e as impedem de

circular pela sociedade. Há uma superproteção que impede o convívio de uma criança

portadora de deficiência, com as demais crianças. Esse fato dificulta a troca de experiências

e o processo de reconhecimento das características de pessoas que portam alguma

deficiência, por parte das demais.

A superproteção é apontada como característica da maioria das famílias prejudicando a

inserção da mesma no social. O "muro" começa a ser construído a partir de casa. A criança

vai se tornando frágil, não aprende a se auto - defender, a falar por si, a criar uma auto-

imagem construtiva. A autonomia fica prejudicada quando há o impedimento de trocar

características diferenciadas, nas relações sociais As diversas instâncias sociais se

desobrigam, se (des) comprometem com o fato de terem que reconhecer as diferenças.

Como conseqüência deste processo segregatório, a criança não cria "anticorpo social" e

vai alcançar algum nível de cidadania e de autonomia, muito tardiamente, quando

consegue. Em geral é na maioridade, após a morte dos familiares que uma pessoa "cuidada"

pela família, começará a perceber que há um mundo, com o qual, ela terá que interagir mais

diretamente. É freqüente acontecer dos familiares falarem sempre em nome da pessoa que é

portadora de deficiência e das outras pessoas não se dirigirem à própria pessoa para saber a

sua opinião.

"Quando vamos ao restaurante, os garçons sempre perguntam a minha esposa 'o que

ele vai comer', como se eu por ser cego não pudesse responder, não é um absurdo?"

(Entrevista realizada em nov. de 2001). A pessoa não é tratada como sujeito de opiniões e

decisões, como se não tivesse condições de fazer escolhas e dirigir sua própria vida. Algo

que deveria ser trabalhado desde a infância. O incentivo a autonomia é um exercício

fundamental para todos os seres humanos, desde que se colocam no mundo, a fim de que

seja possível a construção da cidadania e da democracia.

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"Na instituição que prepara os portadores de deficiência mental para o trabalho, esses chegam em geral após os 20 anos de idade, chegam limitados, de braços dados com a mãe, como se fossem meninos pequenos. O potencial deles para a independência da vida diária e para o trabalho ainda não foi trabalhado. São histórias de superproteção e/ou rejeição que se alternam. Quando trabalhamos para a autonomia destes sujeitos, a família perde a 'muleta', o 'ninho fica vazio'. É difícil para aquela família soltar o filho, deixar 'ele caminhar com as próprias pernas', ver que ele não é criança, que pode fazer muito mais" (Seminário realizado em julho de 2001).

Uma outra conseqüência da segregação é o confinamento, em seus múltiplos aspectos.

Alguns desses, já foram vistos, como a situação do portador de deficiência ser

"resguardado", dentro de casa, impossibilitado de circular pelas ruas, de se fazer presente

no mundo. Há o confinamento do próprio corpo, a proibição de mostrar suas características

pessoais, como se elas tivessem que ser escondidas por se tratarem de coisas vergonhosas.

Existem inúmeros exemplos dessas situações, conforme se pode demonstrar com alguns

depoimentos:

"Acompanhei por muito tempo uma mãe que andava com o filho de um ano no colo, tapado até a cabeça, como se fosse um bebê, de meses, Ela fazia isso, pois achava que estava protegendo o filho do olhar e da reprovação dos outros" (Entrevista realizada em dez. 2001). "As mães e os pais de filhos com problemas deveriam colocar seus filhos na escola ou em instituições como eu estou, não deveriam esconder seus filhos em casa. Tenho muitos amigos meus que estão só em casa dormindo, por serem deficientes. Tem uma mãe de uma amiga minha que deixa a guria escondida dentro do quarto quando chega visita, só porque ela tem síndrome de Down (Entrevista realiza em nov. de 2001).

Por muito tempo a condição da deficiência foi relegada ao confinamento e ainda em

nossa sociedade contemporânea esse traço se faz presente. Todos os depoimentos referidos

nesse trabalho são de pessoas que vivem o nosso tempo presente e, em geral, demonstram o

quanto nas práticas sociais, a deficiência ocupa o lugar do indesejável. Não se aprendeu a

reconhecer o potencial do portador de deficiência e o fato de nenhuma deficiência impedir a

vida e o desejo pela vida.

Por maiores que sejam as limitações físicas ou psíquicas, o ser é sempre capacitado para

viver, para fazer parte de seu conjunto humano, especialmente se as condições de vida

forem menos adversas do que as que a sociedade tem oferecido para as pessoas viverem. O

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estigma de incapacidade e de inutilidade outorgado às pessoas portadoras de deficiência é

uma criação cultural, não corresponde as reais condições humanas e sua principal

característica: a diversidade.

"A gente vive intensamente a vida da gente. Não se vegeta, a gente pode namorar, casar, ocupar cargos em alto escalão do Estado, as empresas. Infelizmente o próprio deficiente as vezes não sabe disso. E, nós somos minoria para passar tudo isso para a sociedade, em que podemos fazer tudo isso"(Diário de Campo, julho de 2001).

Voltando a situação do confinamento ao próprio corpo, pode-se trazer à pauta desta

análise aquilo que GOFFMAN (1984) chamou de "manipulação do estigma". A

característica distintiva que é colocada na situação do estigma leva, por vezes, as pessoas a

buscarem o encobrimento de sua deficiência. Isso se caracteriza pelas tentativas de

esconder as marcas ou evidências daquela condição que não recebe "aprovação" no social.

"Tem cegos que não usam a bengala, só usam óculos escuros para esconder a cegueira,

têm vergonha, não se aceitam" (Entrevista realizada em março de 2001).

GOFFMAN menciona o exemplo de pais que são hospitalizados por doenças mentais.

Quando a mãe tem que contar aos filhos, quase todas escondem e dizem que o pai está no

hospital por uma doença física (1984 p.102). Isso é o resultado da doença mental ser vista

de forma estigmatizante e deixar uma marca negativa em quem está sob tais condições.

Inúmeras outras situações são trazidas pelas pessoas que vivem em condições diferenciadas

das consideras culturalmente como as "normais" e desejáveis. Conforme se pode analisar,

segue abaixo depoimentos que retratam a situação do "encobrimento":

"Tem muitas pessoas que ao saírem da instituição retiram os aparelhos auditivos para não serem identificadas nas ruas como deficiente auditiva" (Seminário realizado em abril de 2001). "A mãe de uma menina com microcefalia, arrumava o cabelo dela bem volumoso para esconder a situação" (Seminário realizado em abril de 2001).

A discussão que atualmente está permeando o debate acerca dos acessórios que as

pessoas portadoras de deficiência precisam, para se situarem no mundo, é de extrema

positividade. Faz-se necessário que se veja os recursos de outra maneira e não como

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confinamento, não os considerando em um lugar de negatividade, não os vendo com pesar,

como se fosse digno de piedade ou discriminação a pessoa que o usa. "A cadeira de roda

ficou muito associada à idéia de doença, uma pessoa numa cadeira de rodas não significa

que esteja doente" (Entrevista realizada em março de 2002).

Tanto a cadeira de rodas, quanto à bengala para os cegos, os recursos de leitura em

Braille, os aparelhos auditivos e todos os outros acessórios são recursos fundamentais para

a acessibilidade das pessoas que portam alguma deficiência. Portanto, tais recursos devem

ser vistos como eles realmente são, ou seja, a possibilidade de acesso e não como marca de

confinamento. As barreiras do preconceito, às vezes, são maiores do que as barreiras

arquitetônicas e em função delas que esses recursos foram, por tanto tempo, vistos como

motivo de estigma.

"Sempre tive dificuldade de relacionamento devido minha deficiência auditiva, eu não ouvia o que as pessoas diziam, embora eu reconhecesse o valor da prótese, nunca a usava devido à vergonha. Após criar coragem e usar minha vida mudou" (Entrevista realizada em nov. de 2001).

A questão da interpretação do mundo, de cada sujeito e de cada fato que se localiza

neste mundo é crucial para o entendimento sobre o modo de vida das sociedades, bem

como para o desenrolar das relações sociais. Há uma necessidade sempre emergente de

compreensão do que se passa com a humanidade, bem como compreender a própria

condição humana. Nesse processo, sempre existiu muita intolerância ao que diz respeito às

situações das diferenças. Para interpretar é preciso entender, conhecer o que se interpreta. O

alcance ou a limitação do conhecimento é o que vai determinar a abrangência ou a

limitação das análises que são realizadas. Por conta dessas análises tantas atrocidades são

cometidas como se pode observar no caso da temática aqui apresentada, numa excursão

histórica.

Na situação das deficiências, como em outras, terá maior peso social à interpretação

dada a ela do que suas reais e concretas características e condições. Se uma pessoa é

portadora de deficiência mental e apesar de seu déficit orgânico é capaz de aprender, de

desenvolver sua potencialidade cognitiva, isto é da sua condição real. Porém, se a ciência

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ainda não se aprimorou a ponto de compreender as peculiaridades desse aprendizado e essa

mesma ciência vai realizar a interpretação do fato, a fará dentro de seu limite de

compreensão.

A crença naquilo que é da ciência, por muitas vezes determinou os padrões de

aceitabilidade ou a rejeição de idéias vigentes nas sociedades, e por aí quantas barbáries se

cometeu na história da humanidade ao tentar entender e interpretar a condição humana e

sua complexa diversidade. "O século passado foi marcado pela idéia de que o sujeito é

deficitário, é patológico, quando na verdade a deficiência está na sociedade, na cultura e

no Estado que não sabe abordar a questão das diferenças" (Entrevista realizada em set. de

2001).

Deixar-se conduzir pelo princípio da “igualdade de oportunidades e da plena

participação”, deverá levar a um caminho de grandes rupturas com requisitos postos pela

cultura e pela estrutura da sociedade, que está determinada por uma estrutura social que

pré-fixou valores e padrões como um ideal para a vida humana A perspectiva da cidadania,

da inclusão, é a principal reivindicação desses sujeitos, que vivem suas vidas com alguma

“restrição impeditiva” e muitas outras possibilidades, por vezes não consideradas, contudo,

que não os impede de ser sujeitos da história.

O mundo ao redor parece mesmo ter sido todo ele construído para seres humanos

perfeitos, sem limitações e num padrão único, sem distinções. Ao observar o cotidiano no

agito das grandes metrópoles, por exemplo, encontram-se grandes empecilhos para aqueles

que não condizem com as exigências da figura humana pensada na arquitetura da cidade.

Os transportes coletivos caracterizam-se por aberturas de longas escadas, onde as pernas

dos menos afortunados pela altura devem se esticar bastante para poderem entrar no

veículo. As aberturas das portas de repartições públicas e privadas, geralmente são

apequenadas a ponto de não comportar um sujeito que necessite, para se deslocar, do apoio

de algum acessório.

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O contexto em que as pessoas vivem suas vidas parece ter sido construído de forma a

ressaltar o déficit das pessoas com diferenças acentuadas. As pessoas portadoras de

deficiência têm “diferenças restritivas” que as faz diferir de um padrão cultural criado e

adotado como “normal”, como se a naturalidade para os seres humanos fosse um estilo

comum a todas as pessoas. Esse estilo tende a perfeição, é uma estética imaginada para um

ser perfeito, sem limitações físicas, psíquicas e de interação com seu meio social.

Essa estética imaginada se reproduz na forma como a arquitetura social é planejada e

executada, parece não condizer com a realidade da natureza humana. O ser humano é

imperfeito por natureza, é incompleto, é inacabado, portanto, cada um é portador de

inúmeras limitações em áreas diversas. Não é possível aos indivíduos, enquanto seres

humanos realizar toda a potência universal que está disposta no mesmo. A idéia de

perfeição é um sonho, talvez um forte desejo, impossível de realização plena, no plano

concreto da vida humana.

As pessoas portadoras de uma “diferença flagrantemente visível” demonstram o

inacabamento, a incompletude do que é humano, de forma peculiar e, na maioria das vezes,

irrevogável. Quando se fala em considerar o cotidiano dos sujeitos que são portadores de

alguma deficiência, se está incluindo a necessidade do contexto apresentar condições para

essa vivência ser possível de ser exercida com toda a dignidade que merece a vida humana,

em respeito a sua singularidade e a sua incompletude. As barreiras arquitetônicas das

grandes metrópoles desconsideram esta prática peculiar das diferenças, pois o planejamento

urbano é pensado para o homem padrão e não para o “homem em carne e osso”. Observa-se

que não são só os “portadores de deficiência” que sofrem restrições com as barreiras do

espaço construído:

“... também há os chamados ‘deficientes temporários’, ou seja, aqueles que momentaneamente tem reduzido sua capacidade de locomoção, tais como: fraturados, gestantes, enfermos,... os idosos, crianças e aqueles com problemas orgânicos: cardíacos, hipertensos, reumáticos, diabéticos, etc.” (LIPPO, 1997, p. 153).

Transformar essa lógica da “homogeneização artificial do ser humano”, é um desafio,

uma necessidade premente para a construção de uma sociedade democrática e humana.

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Para que isso possa se dar será preciso uma profunda revisão do conceito de normalidade,

que por si mesmo, se coloca como uma fronteira, um muro que separa os “ditos normais”,

dos “não normais”. Além da irrealidade dessa fronteira, tendo em vista a perspectiva da

singularidade humana e não a da massificação e padronização se tem nessa, uma

prerrogativa da normalidade. Tal prerrogativa coloca o “excepcional” em oposição ao

“normal”, o “desviante” em oposição ao padrão estabelecido. Essa terminologia expressa

uma lógica excludente, em que alguns seres humanos ficam de fora do que é considerado

normal, aceito e acolhido pela vida em sociedade.

STAINBACK (1999, p.419) sugere a utilização de destaque para as palavras capacidade

e eficiência, no caso da terminologia: inCAPACIDADE e dEFICIÊNCIA. Nessa proposta,

as letras iniciais daquelas palavras estariam em minúsculo com o propósito de ressaltar a

potencialidade, a possibilidade, a funcionalidade. A finalidade desta troca de posição entre

letras minúsculas e maiúsculas pode estar direcionada a uma valorização do potencial

daqueles que apresentam algum déficit físico, sensorial ou psíquico. Entretanto, pode-se

objetar que, nesse movimento de trocadilhos, ainda poder-se-á estar conservando a mesma

lógica, na qual o sujeito precisa responder à demanda social de um padrão de

funcionalidade e eficiência. De outra forma, há toda uma potencialidade, não reconhecida

pela sociedade, da capacidade das pessoas portadoras de deficiência, o que leva as mesmas

a movimentos compensatórios, como é destacado na entrevista que segue:

"Geralmente em uma empresa que tem um portador de deficiência, o mesmo sempre vai se esforçar para ser o mais competente funcionário. Este é um esforço que a pessoa faz para ser aceito e também pelo fato dela já partir do déficit" (Entrevista realizada em out. de 2001).

A principal contribuição da diversidade ao social é que as sociedades só se desenvolvem

a partir das diferenças. Onde tudo é igual não há movimento, não há crescimento. Cada

qual contribui com sua diferença, com seu jeito peculiar, com as formas alternativas e

criativas para o viver. Assim, o mundo vai sendo criado e recriado em cada tempo histórico,

a partir da dinâmica de seus movimentos contraditórios.

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Toda a dinâmica que caracteriza o movimento do real comporta a diversidade, tanto

quanto os seres em suas peculiaridades. Historicamente, entretanto, não tem havido espaço

para expressão, neste social, para aqueles que foram "marcados" por uma singularidade que

foge aos parâmetros. Que problema se coloca aqui? A grande deficiência parece se localizar

na ignorância dos atores sociais que fazem a história, desconhecendo as reais características

daqueles que constituem a sociedade humana, ou seja, os seres humanos. O que esteve e

está deficiente de fato? É possível arriscar uma resposta, indicando a construção histórica

da nossa estrutura social, como um fator de enorme peso, por tudo que já foi e será

expresso nesta tese.

1.3 A DIVERSIDADE COMO CONDIÇÃO HUMANA

Entende-se por diversidade o conjunto das diferenças e peculiaridades individuais.

Diversidade é esse conjunto de peculiaridades individuais que não se iguala, que é

impossível padronizar, por mais que a sociedade deseje unificar. É peculiar a cada ser uma

série de diferenciações que fazem parte de suas características, enquanto ser, nessas

diferenciações estão contidas toda a singularidade própria dos seres humanos. Portanto, se

considera como condição daquilo que caracteriza o ser humano, enquanto tal, uma vez que

a partir da multiplicidade dos aspectos pessoais se forma o conjunto social dos seres.

A partir dessa interpretação, assim colocada, será possível concluir que: um mundo

verdadeiramente humano deveria ser construído considerando a diversidade como

fundamental à vida social. Recorrendo ao Dicionário do Pensamento Social do século XX,

encontra-se um conceito de "diferenciação social" que remete ao entendimento dos fatos

sociais de diferença entre grupos ou categorias individuais. A diferenciação acontece em

função de diversos modos em diferentes sociedades, por vezes codificados por lei, entre

grupos etários, sexo, grupos étnicos e lingüísticos, entre grupos profissionais, classes e

grupos de status (1996 p.206-207).

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Ocorrem várias distinções entre os diferentes grupos. O fundamental nessa abordagem é

entender o fato da diferenciação social estar associada à "estratificação social". O que

significa dizer que as desigualdades de poder, riqueza e prestígio social, em suas variadas

formas, são as características principais do processo de diferenciação. As qualidades

pessoais dos indivíduos ocupam lugares determinados dentro da sociedade e seus

compartimentos. Cada indivíduo surge dentro de algum distinto grupo que já tem

estabelecido determinado lugar no social. A partir desse lugar se estruturam diferentes

condições de acesso ao mundo social.

A "diferenciação social", assim entendida, está na perspectiva inversa do entendimento

de que a diversidade da condição humana deve compor o mundo social. Essa diferenciação

se dá por uma estrutura já culturalmente formada e não em respeito a dinâmica peculiar em

que a vida humana se apresenta. A sociedade cria e reproduz a "diferenciação social" sem

absorver o conjunto das diferenças singulares como parte de seu movimento.

A socialização dos indivíduos se faz nos processos sociais e as diferenciações são

conseqüências do mesmo processo. O movimento de se diferenciar e se igualar são

consolidados na dinâmica social. Os padrões, as normas, as regras do mundo social são

absorvidos pelas pessoas afim de que elas possam se socializar e, aqui há uma

igualificação, a necessidade de se tornar igual ao seu grupo. A apreensão das formas

relacionais, os modelos que serão internalizados desde a infância vão constituído esse

processo de socialização.

A diferenciação acontece entre os grupos distintos, na medida em que a socialização seja

feita com determinada introjeção de costumes e padrões, diferenciados padrões e normas se

tornam estranhos àquela socialização. Se a criança teve um processo de socialização em

uma cultura basicamente urbano-industrial, ela responderá a este padrão se diferenciando

de outra criança que construiu sua forma de se relacionar com os demais em um modelo de

cultivo agrário, por exemplo.

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O problema que aqui se coloca não é a questão das culturas apresentarem traços

diferenciados e da socialização se dar de maneiras distintas. A questão centra-se na

hegemonia de um modelo sobre o outro, onde acontece a subjugação daquele que é

considerado inferior. Na sociedade, tal qual está colocada, uma socialização diferenciada da

considerada ideal pode ser considerada uma não socialização. No decorrer dos processos

históricos há inúmeros exemplos de situações, nas quais acontece uma mutilação da cultura

original do sujeito, em nome da socialização "oficial". Os povos indígenas são exemplos

emblemáticos desta trajetória social de violação das singularidades. Como será apresentada

adiante, neste trabalho, “a cultura surda" foi mutilada em sua possibilidade de expressão

gestual, em nome do "oralismo", que é algo não natural para quem não possui a audição.

"Os indivíduos nascem com várias disposições potenciais características do ser humano. Sem a interação adequada com membros de uma comunidade social, em fases apropriadas do crescimento, essas disposições permaneceriam latentes e acabariam por desaparecer. Sem a atualização das capacidades de comunicação, raciocínio, atividade criativa, cooperação no jogo e no trabalho, uma criança jamais se desenvolveria no sentido de transformar-se em ser humano" (BOTTOMORE, 1988, p.342).

Na referência acima colocada se trabalha com um conceito de socialização que faz uma

conexão entre o sujeito potencial e o necessário espaço do meio social para sua participação

e criação. Os seres trazem consigo as possibilidades criativas, mas precisam exercitá-las e

expressá-las no convívio entre os outros seres de sua espécie. A socialização deveria ser

não apenas espaço de introjeção para igualização, mas, sobretudo, espaço para inserção de

atos criativos e diversificados de cada pessoa. A condição, ou seja, o modo de ser, o estado,

a situação peculiar aos indivíduos é a condição da diversidade.

As condições do contexto de vida desses mesmos indivíduos se fazem no inverso

proporcional a essa diversidade. A padronização do social, a massificação das culturas, a

pretensa igualificação dos comportamentos ferem a condição, a situação original de ser no

mundo. O ser, em seu processo de desenvolvimento e diferenciação de outros seres,

deveria ter a possibilidade de interagir e expressar com sua peculiar diversidade.

Entretanto, a expectativa social é de que cada um seja igual aos demais.

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Esse é um paradoxo da construção social, o que pode remeter àquela discussão filosófica

de contraposição entre essência e existência. Entretanto, esse é um debate que não será

aprofundado neste trabalho, embora a relevância e profundidade dessas prerrogativas

filosóficas.

Os preconceitos criados no social são um resultado de todo o processo que cria a norma e

a partir dela o que fica fora é desvio. Sendo assim, será julgado como inadequado e

indesejável. Voltando à questão das pessoas portadoras de deficiência, percebe-se que os

diversos preconceitos, por parte da demais instâncias sociais, colocam a situação da

deficiência numa categorização de desqualificação e menosvalia na escala social. A

diversidade, que é condição humana, se torna mais visível, por vezes, na situação peculiar

de alguma deficiência. Nessa situação, por ser mais acentuada a diferença, os impedimentos

colocados no social são mais drásticos.

Ao mesmo tempo os sujeitos, de forma imprevisível, estão sempre superando os

obstáculos, sejam físicos ou sociais e recriando a vida e suas possibilidades. Segundo

SACKS (1995, p.16), há um enorme potencial criativo nas situações de doença e de

deficiência. O paradoxo das doenças e deficiências é seu poder criativo. Em seu livro

intitulado: Um Antropólogo em Marte, esse autor descreve a situação de sete histórias

clínicas de pessoas lobotomizadas, daltônicas, com síndrome de autismo e com síndrome de

Tourette. Todas as situações relatadas são reais e referentes a disfunções neurológicas.

O enfoque dado ao estudo feito pelo Dr. SACKS4 leva ao entendimento de que quando se

perde algo outras formas de acesso à vida se criam. O autor alerta para o grande risco de

reduzir toda a complexidade do que é humano à distúrbios neurológicos ou psiquiátricos.

Não se pode negligenciar a multiplicidade de fatores que determinam uma vida e nem

deixar de perceber que a singularidade do indivíduo é irredutível (1995 p.175). As

conclusões desse estudo demonstram situações específicas de pessoas acometidas de

distúrbios que às distanciaram do mundo, do convívio com outras pessoas, todavia, foi

4 A obra: Um Antropólogo em Marte, de Sacks, Oliver, narra a situação de histórias reais de pessoas com distúrbios neurológicas que tiveram o acompanhamento clínico do mesmo. Este autor é de origem inglesa,

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possível às mesmas se colocarem em situação de grande criatividade e contribuir para o

desenvolvimento da sociedade.

No caso dos portadores de autismo, se tem um exemplo, que apesar da limitação

relacional e as ausências freqüentes, pela qual a pessoa passa (o sujeito se ausenta do

mundo), alguma forma de se colocar no mundo acontece. Apresenta-se a seguir o exemplo

de duas histórias trazidas na obra do Dr. SACKS, com o objetivo de demonstrar, a

diversidade enquanto condição humana e potencial criativo:

Stephen, um menino que aos 2/3 anos de idade não controlava as mãos, não sentava, não

ficava de pé, não andava e resistia a ficar no colo, não fixava o olhar, se escondia das

pessoas, costumava gritar. Não fazia uso da linguagem, era praticamente mudo. Com

diagnóstico de autismo foi para escola especial. Na escola se manteve distante das pessoas,

saia freqüentemente da sala de aula. Jamais brincava com outras crianças ou interagia com

outras pessoas.

O referido menino se mantinha alheio a todos e a tudo que o cercava. Não tolerava

frustrações e reagia a elas com gritos. Aos cinco anos se mostrava fascinado por figuras e

as ficava contemplando por longo tempo. Em seguida começou a desenhar, desenhava

quase que em tempo integral, na escola. Aos sete anos desenhava de forma fantástica,

desenhos sofisticados, com domínio do traçado. Totalmente isolado ele parecia aprender

por si só as técnicas de desenho ou como se as possuísse de forma inata. Tinha uma

prodigiosa memória visual, era capaz de apreender os edifícios mais complexos. Mostrava

capacidade de aprender, guardar e reproduzir os modelos visuais, auditivos, motores e

verbais mais complexos, aparentemente sem levar em conta seu contexto.

Aos treze anos Stephen estava famoso na Inglaterra pelos desenhos que fazia, podia

desenhar com facilidade qualquer rua que tivesse visto, mas seria incapaz de atravessá-la

sozinho, sem ajuda. Poderia ver Londres inteira na imaginação, porém os aspectos humanos

da cidade lhe eram inteligíveis. Não conseguiria manter uma conversa com ninguém. "Foi

médico da área da neuro-psiquiátrica, trabalha nos EUA. Leciona no Albert Einstein College of Medicine

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considerado o melhor artista mirim da Grã - Bretanha, mas era visto desprovido de

intelecto e de identidade. Os testes por que passou confirmavam a gravidade de sua

deficiência. Será que alguém poderia ser artista sem um 'eu’?" (p.213).

O Dr. SACKS costumava visitar, acompanhar e realizar várias atividades com as

pessoas que ele estudava o comportamento. O autor questiona o fato de, por algum tempo,

ter tido uma visão de Stephen, que o reduzia a sua deficiência e a sua dotação, sem podê-lo

ver como um todo, como um ser humano. Para as crianças autistas as relações sociais

concretas são muito difíceis de compreender, ela não tem maiores dificuldades com nada

que seja abstrato. Sofrem com a chamada "deterioração da interação social com os outros"

(p.253).

Uma Segunda história, igualmente rica, para ilustrar a surpreendente capacidade humana

de transpor os limites de uma condição diferenciada de viver é o de Temple Gardin, uma

pessoa portadora da síndrome do autismo e que criou a "máquina de espremer ou máquina

do abraço", como será visto no que segue. Aos três anos de idade, Temple não observava

nenhum código de relacionamento humano.

A protagonista, da ilustração aqui trazida, sofria de ataques violentos e repentinos de

raiva, quando contrariada arremessava o que tinha pela frente, costumava espalhar as fezes

pelo quarto e não suportava a aproximação com as outras pessoas. Seu estado de

inacessibilidade, fixações, "violência" e completo caos quase a levou a uma internação

vitalícia aos três anos de idade. Entretanto, ela se tornou uma bióloga e engenheira bem-

sucedida que escreveu livros e fez inúmeras palestras sobro o autismo, sem perder suas

caraterísticas singulares àquela condição. Contrariando assim o que sempre tinha sido

suposto por estudiosos da área, que acreditavam que os autistas eram incapazes de um

autoconhecimento e de uma introspeção autêntica (SACKS, 1995, p.263).

O autismo é visto como um distúrbio do afeto e da empatia, Temple considerava que foi

dada ênfase demasiada nos aspectos negativos do autismo. A mesma mergulhou em

(Nova York)

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pesquisas químicas, fisiológicas e de visualização cerebral sobre esta síndrome e ponderou

que ainda são fragmentárias e não completas o conhecimento deste distúrbio. Em sua vida

de pesquisadora superou a dificuldade de entender aos seres humanos se dedicando ao

entendimento do comportamento animal. Parecia estar capacitada para captar o sentimento

dos animais. Com essa sensibilidade e habilidade desenvolveu uma metodologia para

diminuir o sofrimento dos animais na hora do abate. Tornando-se assim a maior projetista

do mundo de calhas afuniladas para o gado. Prestou assessoria à indústria da carne e

escreveu para diversas revistas de veterinária. Inventou um sistema que acalmava o gado

diminuindo assim o sofrimento do mesmo nos frigoríficos.

Temple inventou a "máquina de espremer", provocou suspeita de psiquiatras como essa

invenção significasse uma "regressão" ou "fixação", algo que precisaria de análise e

resolução psicanalítica, mas: "ela ignorou todos esses comentários e reações e decidiu

encontrar uma 'validação' científica para seus sentimentos" (SACKS, 1995, p.271). Tal

máquina tinha um mecanismo com dois lados de madeira pesados e inclinados, com

aproximadamente um metro e meio cada, estofados com um enchimento espesso e macio.

Ligados por dobradiças a uma prancha de base longa e estrita, criando uma calha do

tamanho de um corpo e em forma de V. Havia uma complexa caixa de controle numa das

extremidades com tubos muito resistentes levantado a outros mecanismos que servia para a

pessoa controlar a pressão da máquina sobre o corpo.

Para a autora dessa engrenagem o objetivo era fazer com que a máquina proporcionasse

uma pressão firme e confortável sobre corpo, dos ombros aos joelhos. A pessoa poderia se

arrastar para o centro da máquina, ligar o compressor, ter o controle na mão e assim receber

uma pressão regular, vorável ou pulsante, conforme a pessoa decidir. Essa obra de Temple

começou a ser projetada desde os cinco anos de idade, por ocasião de seus problemas em

receber afeto. Quando menina ela se sentia subjugada, aterrorizada quando alguém próximo

da família procurava lhe dar um abraço. O contato humano, para ela, lhe dava a impressão

de que seria esmagada.

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Por mais que Temple gostasse das pessoas a proximidade física com as mesmas lhe

parecia uma ameaça a sua integridade. Desde então passou a pensar na possibilidade de

construir uma máquina que lhe pudesse abraçar, mas a qual ela pudesse controlar. Aos

quinze anos ao ver a foto de uma calha afunilada desenhada para impedir a passagem ou

conter o gado, concluiu que com algumas adaptações para seres humanos, poderia ter a

máquina que sempre imaginou. E, assim foi construída sua "máquina do abraço" com a

qual sonhava desde a infância.

Por mais estranho que pudesse parecer para os seres da ciência um recurso como a

"máquina de Temple" pode trazer inúmeros benefícios para uma singularidade semelhante

a em questão, que sofre de uma (in)suportabilidade diante do contato humano, embora

precise dele como todos os outros seres precisam. Dr. SACKS comenta que através

daqueles momentos com a máquina Temple estava resgatando sua relação afetiva com as

pessoas. Com sua máquina de espremer ela podia relembrar sua mãe, sua tia, seus

professores e assim de alguma forma se aproximava deles e do "mundo humano" e assim

também encontrava alternativa de enfrentar a esse mundo, onde era tão difícil a arte de se

relacionar com o outro.

"Para ela, a máquina abre uma porta para um mundo emocional que de outro modo

continuaria fechado, e lhe permite, praticamente lhe ensina a entrar em comunhão com os

outros" (SACKS, 1995, p.271). A tão complexa arte de estar com os outros é minimizada

com criações alternativas por quem inventa a vida a partir do seu sentido de ser e estar no

mundo das pessoas. Essa é a grande lição que se apreende com esta história real. O "mundo

do autismo" é um lugar aparentemente fechado para o outro, que nega esse outro, na forma

que comumente se entende ser a adequada à comunicação. Todavia novas formas de

comunicação e aproximação sempre poderão ser recriadas, eis o que Temple nos ensina.

A ciência médica e as demais, uma vez que estiver aberta para contemplar as

possibilidades diversas do que se refere ao humano, estarão colaborando para construir um

mundo mais humano. Quando é possível considerar os aspectos sociais, transcender aos

aspectos fisiológicos das "disfunções" orgânicas encontram-se uma multiplicidade de

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alternativas para contemplar as diferenças peculiares aos seres humanos. O ponto

fundamental para a vida humana se desenvolver é ter acesso ao mundo social. Todos,

enquanto seres sociais, necessitam participar das instâncias sociais.

O fundamental é sejam que desenvolvidas as formas de inserção no social, para todos,

independentemente de suas diferenças. Na área da psiquiatria, por exemplo, já existem

avanços no que diz respeito à superação de uma visão puramente clínica fisiológica. "A

psiquiatria, uma forma de tratar e definir a doença mental tem conhecido importantes

mudanças, desde a Segunda Guerra Mundial em sua prática e em suas raízes intelectuais"

(BOTTOMORE, 1996, p.628). A importância do mundo social passa ser considerada no

estudo e tratamento de doenças e distúrbios e com isso se pode ter novas dimensões para

transpor as dificuldades.

"... a psiquiatria, ao longo de toda a sua história, tem sido a mais aberta das especialidades médicas às idéias sociais e, por hora, não existem razões para um pessimismo declarado sobre o desenvolvimento de uma perspectiva social efetiva no âmbito da psiquiatria" (BOTTOMORE, 1996, p.631).

Considerar o mundo social como um ponto significativo para o desenvolvimento da

potencialidade dos sujeitos remete a possibilidade de entender que entre os diferentes

sujeitos há uma alteridade importante a ser reconhecida. Considerar a alteridade do outro é

o reconhecimento que em cada ser a algo que está fora de si mesmo, que o outro é um ser

diferente não igualável a si próprio. As peculiaridades na perspectiva da alteridade positiva

não servirão de motivo de discriminação e segregação. Entender que a alteridade não é algo

negativo e estigmatizante poderá conduzir a percepção que a sociedade é composta pela

diversidade e sem ela não teria como avançar.

Na situação da surdez, por exemplo, se tem um tipo de diferença que delimita um modo

de vida exatamente diverso do usual. A linguagem comunicada através da fala, que é o

comum às sociedades em geral, não será possível para uma pessoa surda. Fica assim

definido um tipo de alteridade que, por si só, deveria compor a condição humana

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reconhecida no social. Uma outra linguagem, não falada, gesticulada e/ou sinalizada, que é

própria à condição da surdez, deveria, nesse raciocínio, estar absolutamente inserida no

contexto relacional. Uma linguagem dos sinais seria, nesse entendimento um recurso de

comunicação e acesso ao mundo e não uma marca, um estigma ou uma alteridade negativa.

"É estranho quando se chega na escola de crianças surdas, durante o recreio não se ouve barulho algum. Em um aniversário, comemorado na escola, a festinha é feita em silêncio. Parece um outro mundo infantil, as crianças em geral são tão barulhentas e lá é aquele silêncio, é muito diferente quando não se está acostumado com esta realidade" (Seminário realizado em set. de 2001).

A diferença não pode mais ser subentendida como inferioridade e nem tão pouco estar a

serviço e justificar a exploração e marginalidade. No caso da surdez e dos ouvintes, os

segundos, em geral, tomam como valor universal à linguagem falada, se tornando assim o

"silêncio", uma distinção, uma alteridade distintiva. O problema é tornar esta distinção uma

marca de "menoridade". No desenrolar das relações sociais está fortemente impregnada a

idéia de que tudo que é distinto é estranho e o que é estranho é imperfeito, deve ficar de

fora.

A "distinção" peculiar à surdez foi por muito tempo sinônimo de banimento e exclusão.

WRIGLEY coloca que a surdez é como "um país", um "território estrangeiro". Em

contraposição a visão que coloca a surdez na condição de deficiência audiológica "os

surdos definem a si mesmo de forma cultural e lingüistica" (1996 p.13). Nessa perspectiva

a surdez é vista como uma identidade própria, um país com sua cultura e sua linguagem

própria, uma distinção respeitável a ser reconhecida.

Para pertencer à comunidade dos surdos o grau de perda auditiva não é relevante, o

importante é sua auto-identificação como surdo e especialmente o uso de uma linguagem

dos sinais. O que vai definir a auto-identificação como pertencente a uma minoria

lingüística ou étnica é ter uma língua própria e poder usá-la (WRIGLEY, 1996, p.15).

Como será visto no próximo capítulo, os surdos foram proibidos de usar sua própria língua,

durante muito tempo, em muitas partes do mundo. Esta proibição relegou as pessoas a falta

de lugar no mundo, como um país sem lugar próprio, sem origem geográfica.

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As pessoas que não são ouvintes utilizam uma linguagem particular denominada Língua

dos Sinais. Cada país tem sua língua de sinais específico, pois existem particularidades

próprias a cada cultura. Sendo assim não se pode falar em uma linguagem internacional dos

sinais. Para WRIGLEY (1996, p.23) as linguagens de sinais não são cópias visuais das

línguas faladas. Existem inúmeras barreiras na comunicação para as pessoas que são

ouvintes, que não se poderia admitir uma língua internacional. O mesmo ocorre com os

surdos, não seria possível uma língua dos sinais internacional.

É preciso que se entenda a questão da diferença como algo que difere as identidades

entre si e não pela condição de ser de cada qual. Existem características que são peculiares

a cada cultura, comunidade, a uma identidade específica. Não é o negro, o índio, o portador

de deficiência que é o especial, o diferente, as diferenças existem na diversidade da

condição humana em geral.

Cada qual tem suas diferenças, suas características, sua identidade. A reflexão em torno

da diferença não pode ocupar o mesmo lugar da antiga divisão "normais” / "anormais". Não

se pode fazer uma mera substituição de termos, onde a lógica binária permanece entre os

termos os "iguais" e os "diferentes". O fundo dessa discussão está em não mais

desqualificar o que não se enquadra no molde. O importante é buscar romper com a

limitada visão que legitima e valoriza apenas o que foi socialmente criado para ser o padrão

geral da vida humana. Afinal a vida de cada dia e de cada ser não se enquadra em moldes,

pois todos os dias os sujeitos desta sociedade criam e recriam a história e suas múltiplas

facetas.

Os "muros" que são criados nos processos sociais categorizam os seres em "melhores" e

"piores", "maiores" e os "menores", isso vai definindo quem entra e quem fica de fora do

mundo social. A partir da categorização, a diversidade própria à condição humana fica

relegada ao "segundo grupo", ao grupo daqueles que estão marcados pelo signo da

estigmatização e da desqualificação pessoal.

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WRIGLEY (1996, p.80) traz ao debate a questão acerca do que leva uma igreja, uma

nação, uma cultura, uma identidade a se fechar em si mesma definindo uma série de

diferenças como hereges, malignas, irracionais, perversas ou destrutivas. A lógica desta

pergunta leva a contraposição da "lógica" que está expressa nas sociedades, onde o

"normal" é discriminar tudo aquilo que é distinto. A colocação dessa questão significa

reterritorializar o problema, o situando em outro lugar que não no sujeito e suas diferenças.

O problema reside na relação entre identidade pessoal e ordem social, em uma

conflituosa interação, onde a dinâmica do social cria uma ordem estática que não

acompanha a diversidade característica das identidades que querem se expressar no

contexto ao qual pertencem sem poder pertencer. Não há uma solução única para a

dificuldade de comportar no campo social o conjunto das diferenças.

Faz-se necessário superar a antiga visão que reduzia a possibilidade de resposta

aniquilando as possibilidades de expressão da diversidade. Cada nação, através de suas

instituições representativas, produz o lugar da identidade nacional, tal qual sítios

produtivos. Para se tornar "cidadão" se aprende a aceitar a codificação estabelecida nas

relações que estão postas na produtividade sitiada neste locus. O fracasso ou o sucesso será

diretamente proporcional à assimilação da identidade fabricada pela cultura local. A

diferença se torna, assim, um desvio e uma ameaça a esta ordem consolidada no social.

"Em todas as formas de ditaduras estava a onipotência de um olhar autocontido, um olhar certo de si e da verdade que impunha. Para esse olhar, o outro não existe, e com seu desaparecimento simbólico, comunidades são destruídas, direitos individuais são postos em questão, saberes sociais tornam-se uma ameaça, e o viver, de fato, torna-se um inferno. Contra essa sombria visão, nossa única alternativa - e nossa única esperança - é a resistência ativa do outro" (JOVCHELOVITCH, 1998, p.82).

A resistência ao conjunto de medidas "autocontidas" que se conjugam a partir das

instituições sociais requer uma avaliação e reflexão permanente. As reações sociais que não

reconhecem o outro como parte do conjunto culminam na exterminação das diferenças. Ao

longo da história, como será visto no próximo capítulo, se viveu sob a égide do extermínio

das deficiências. Contudo, tenha sido o aniquilamento das deficiências e diferenças uma

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marca histórica, não se pode dizer que foi completamente abolida na contemporaneidade.

Atualmente com os avanços tecnológicos a área genética está desenvolvendo formas de

erradicação dos "defeitos genéticos humanos".

Estudos e pesquisas se voltam para vencer o déficit, para eliminar a deficiência. A

engenharia genética se empenha em superar os "defeitos" considerados congênitos, como

no caso da surdez ou do autismo, por exemplo. Entretanto, se pode objetar conforme

WRIGLEY: "Paddy, um intelectual Surdo morando no Reino Unido, considera os esforços

médicos de eliminar a Surdez como um povo, uma forma clara de genocídio" (1996 p.95).

Contrário a idéia de que a deficiência deva ser eliminada se tem o seguinte depoimento:

"A possibilidade de escolha genética dos filhos, os avanços da ciência nesta área tende a levar as pessoas que podem fazer essa opção a uma busca de normalidade como um padrão de perfeição. Isso vai levar há um afastamento ainda maior da aceitação das diferenças e deficiências. Há a possibilidade da mãe abortar o filho se, por exemplo, for visto na ultra-sonografia que a criança possui seis dedos. Isso é um retrocesso ao tempo do extermínio das deficiências. Antes matavam os que nasciam deficientes, agora se pode evitar o nascimento, matando o feto, antes mesmo de nascer" (Entrevista realizada em março de 2002).

A possibilidade de eliminar a deficiência antes da sua concepção remete, uma vez mais,

à normalidade, enquanto um valor social, o "normal" e a "perfeição" continua sendo uma

busca e um ideal de vida para os sujeitos. Sendo assim as deficiências/diferenças são

percebidas enquanto falhas e não são reconhecidas enquanto parte da diversidade humana.

De outra forma a idéia da eliminação não leva em conta o aspecto produtivo e construtivo

das deficiências.

Conforme o já mencionado estudo de SACKS (1995, p.175) há diversos distúrbios que

distanciam as pessoas, acometidas por eles, do mundo, no entanto, as fazem imensamente

criativas e por vezes geniais. Esse autor assinala o fato de grandes gênios da literatura, da

filosofia e da arte terem sido diagnosticados, pela literatura da área neuropsiquiátrica, como

portadores de diversas doenças neurológicas. A exemplo disso Mozart, o compositor,

recebeu diagnóstico de Síndrome de Tourette. A Einstein, o gênio da física, é atribuído a

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síndrome do autismo e a psicose maníaco - depressiva é atribuída a inúmeros artistas

criativos em diferentes tempos e culturas.

"Temple terminou uma palestra uma vez dizendo que 'se pudesse estalar os dedos e deixar de ser autista, não o faria - porque então não seria mais eu. O autismo é parte do que eu sou'. Por acreditar também que o autismo possa estar associado a algo de valor, fica alarmada com a idéia de erradicá-lo" (SACKS, 1995, p.297).

A demasiada ênfase no déficit das deficiências e dos distúrbios neurológicos é o que

remete a impossibilidade de perceber "algo de valor" nessas circunstâncias. Entretanto,

tanto na história quanto no cotidiano contemporâneo das sociedades há inúmeros exemplos

do aspecto altamente positivo e produtivo que se pode obter em situações diferenciadas

daquelas que se "almeja" como ideal.

Ao afirmar a diversidade como condição humana se está pontuando que não se trata de

considerar que há alguns são diferentes de outros ou que esses "outros" sejam os "iguais",

os "corretos" ou adequados diante daqueles que se diferenciam. O que está sendo

demonstrado, nesta tese, é que a diversidade se caracteriza pelo conjunto de distinções que

se fazem entre todos os seres. A dinamicidade da realidade humana, seu movimento

constante e inacabado leva a distinções permanente entre as pessoas. A distinção vai dando

ao mundo movimento e mutação. Como condição peculiar a todos os seres, a diversidade,

vai transformando os padrões que são colocados pelo tempo histórico de cada civilização.

1. 4 IDENTIDADE NA PERSPECTIVA DAS RELAÇÕES SOCIAIS

O formato implícito e explícito das relações sociais parece sugerir que algo estático e

permanente, sem movimentação deveria moldar as personalidades humanas. Entretanto, o

real é dinâmico, não permanece o mesmo e os sujeitos que nele fazem a história estão em

constante mutação. O reconhecimento dessa dinamicidade do sujeito e do contexto remete a

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um conceito de identidade onde o idêntico, o igual não se encaixa. MARTINELLI (1995,

p.142) situa o conceito de identidade no campo da diversidade, do movimento, da

alteridade e da diferença em contraposição a idéia de identidade como permanência.

Segundo a mesma autora, referida acima, o princípio da permanência, em nossa

sociedade contemporânea, ainda se faz fortemente presente (1995 p.143). A um apelo no

social para que a identidade dos sujeitos permaneça igualada a um determinado tipo de

identidade, que é produzida pela cultura do seu tempo histórico. Daí deve vir à idéia de que

"tornar-se pessoa", signifique torna-se igual ao que foi socialmente estabelecido, onde a

consolidação da identidade pessoal deva coincidir com a identidade idealizada no social.

"Ter uma deficiência parece que é igual à não ser considerado pessoa ou ser 'meia pessoa'. Em nossa sociedade as pessoas não olham para nós como se fossemos gente, olham como se a gente fosse um ser de outro planeta. Eu não me identifico com os ditos ”normais", pois eu sou diferente deles quando eu caminho torto, mas a minha identidade humana não muda em nada (Entrevista realizada em maio de 2002).

Ter uma identidade é sinônimo de uma identificação com o que está estabelecido na

cultura e no meio social. Nesta linha de pensamento se desconsidera o movimento próprio

das alteridades que transformam a realidade a partir da própria condição das diferenças.

Nas diferenças estão a propulsão ao desenvolvimento das novas formas de interação entre

sujeito e seu meio. A igualdade pressuposta no "princípio de permanência" é o que leva ao

entendimento de que as diferenças situam-se no campo da desqualificação pessoal ou da

patologia.

Tudo aquilo que não é idêntico ao convencional passa ser alvo de críticas,

discriminações e não reconhecimento. Há uma necessária ruptura com o velho conceito de

identidade atrelada a igualificação e a ausência de movimento e mutação. Um traço

histórico que traz como conseqüência uma série de práticas preconceituosas e segregatórias,

como se constata na situação das pessoas portadoras de deficiência, colocado no

depoimento acima referido.

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"Assim, falar de identidade hoje pressupõe a superação da nostalgia do idêntico, a ruptura com o princípio da permanência que, em nossas instituições, em muitos momentos, transmutou-se em um verdadeiro princípio de inércia, produzindo práticas sociais orientadas por um ritualismo mimético, eternas reprodutoras do já produzido" (MARTINELLI, 1995, p.145).

As práticas sociais cristalizadas e preconceituosas, reproduzidas nas diferentes

instituições são a sinalização e a materialização da concepção que desconsidera a

diversidade como caraterística básica dos indivíduos. Quando se pressupõe que todos têm

que ser idênticos uns aos outros, aqueles que não se enquadram na igualidade almejada são

situados "fora do mundo" social. A concepção de identidade permeada pela idéia da

igualificação consolida a existência dos processos de segregação. A identidade tem relação

direta com a alteridade, que significa distinção, o outro que é distinto diferente do mesmo.

Alteridade é igual a "álter" do latim "altes", que significa: o outro ou alteres do verbo

alterar (Dicionário da Língua Portuguesa, 1986, p.92). Entendendo os seres como distintos

uns dos outros e situando a identidade nessa distinção não caberia nenhum tipo de

discriminação, nem tão pouco uma prática de exclusão das diferenças. A diferença, a

distinção passa ser, nesta visão, uma característica comum à espécie humana. O outro é

aquele que altera o mesmo pela sua distinção, esta alteração é um movimento de

enriquecimento do contexto geral no qual todos fazem parte. Um contexto que é

transformado e movimentado no desenrolar da diversidade.

O problema que se coloca na discussão da identidade como campo do idêntico é que

nessa constituição a identidade deixa a sua margem algo sobrante, em excesso, algo que lhe

vai faltar. A falta diz respeito a tudo aquilo que será excluído, mas que em verdade faz

parte desta identidade. Quando a diversidade não é incluída na constituição da identidade se

passa pelo processo de estranheza do outro, que será percebido como algo exterior, fora do

esperado.

Há um fechamento na idéia de unidade e homogeneidade própria dessa visão que cria

espaço para o que não se enquadra se tornar "inadequado", indesejável e até intolerável. A

sociedade ao não reconhecer a distinção como parte de seu movimento, estranha o outro e o

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exclui de seus principais processos, criando assim o "ser correto" e dominante. A

racionalidade que exclui é a mesma que cria as condições objetivas de vida onde diversos

segmentos vivem a parte dos processos sociais de acesso aos recursos da sociedade. A idéia

de identidade que pressupõe o "ser correto" deixa de fora parcelas significativas de seres

distintos e inigualáveis ao que se considera "correto" ou "normal".

“Eu sou um ser humano como outro qualquer mas não sou igual, sou diferente. Minha diferença não muda os sentimentos que eu tenho e que são iguais aos de todos os que vivem neste mundo. Eu sinto frio, sinto calor, sinto amor, sinto ódio. Não é o que todo mundo sente? O que tem em nossa identidade de diferente das dos demais? Nos sentimentos eu me identifico com todos deste planeta" (Entrevista realizada em maio de 2002).

Em muitas circunstâncias a noção de identidade tem servido para criar distinções de

condições de vida ao mesmo tempo em que propicia o não reconhecimento das distinções

individuais. O problema centra-se na primeira distinção que não deveria ocorrer na mesma

medida em que a segunda distinção deveria ser o pressuposto principal da identidade. Em

uma outra perspectiva de identificação a identidade inclui a pluralidade das características

humanas e sociais.

Considerando-se a distinção de singularidades, se abriria espaço no campo social para as

diferenciações individuais, o que poderia reduzir e/ou evitar o imenso abismo da

diferenciação das condições objetivas de vida entre as pessoas. Em outras palavras se no

horizonte social tivesse espaço aberto para considerar identidade como construções plurais

de individualidades não se criariam tantos "muros" para separar os distintos dos "comuns".

A propósito da distinção negativa criada historicamente entre os segmentos da sociedade,

JOVCHELOVITCH, pontua que:

"Tanto o sujeito negro como a mulher foram historicamente construídos por representações marcadas pela violência simbólica e por um conjunto de exclusões. Mas ambos (e certamente a mulher negra com mais esforço) lutaram, e lutam, para não serem reduzidos a essas representações. Produzir contra-representações, outras representações, que não reduzam a objetividade da condição negra e feminina às tentativas de lhe construir enquanto negatividade tem sido parte dos movimentos negros e do movimento de mulheres" (1998 p.78).

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As representações sociais e especialmente as condições concretas de vida dos sujeitos

sociais denunciam as inúmeras mutilações a que são sujeitas as distinções. A negatividade

dessas representações, referida pela autora acima, bem como também das condições dizem

respeito à idéia de que o outro é diferente. A diferença não é vista como distinção e sim

como desqualificação. Aqui se trata de perceber na diferença a marca do desigual como se

fosse o desacordo, o desalinho, ou o desvio. Não se considera o fato de que cada ser tem

suas diferenças e que o conjunto delas constitui o mundo social percebe-se o outro como

diferente.

O equívoco está colocado, na distinção categorial, ou seja, se faz uma linha divisória

entre a categoria dos "iguais" e categoria dos diferentes. Nessa categorização recai a

negatividade sobre aqueles que se diferenciam, como um estigma, uma marca. Há uma

demarcação de fronteiras que separa o que permanece e o que fica fora. Assim o mundo

social se divide em "o nós e o eles". No depoimento abaixo se pode captar um sentimento

que expressa essa prática social separatista:

"É terrível e muito comum observar nos discursos de políticos e estudiosos, que querem ser progressistas, se referirem a nós portadores de deficiência como 'vocês'. Dizem 'vocês' precisam de rampas, 'vocês' que estão nesta condição de exclusão, 'vocês' que lutam com dificuldade para fazer parte do mundo. 'Vocês' que não sou eu, é isso que querem dizer. 'Vocês' lá e eu aqui. Querem falar em inclusão dos portadores de deficiência, mas já estão nos separando na própria fala deles. Onde já foi colocada uma barreira, uma divisória entre vocês para lá e nós para cá” (Diário de Campo, fev. de 2001).

TOMAZ (2000, p.74) assinala a lógica binária que subentende uma forma afirmativa de

expressar a identidade na qual será positivo aquilo "que se é" negativisando o que é do

outro. Trata-se de uma identidade positivada, auto-referenciada que remete a si própria

como ideal. Uma relação que não está explícita, mas subjacente à idéia divisória da

diferença. Nessa cisão "ser branco, ser jovem, ser heterossexual, ser homem" é a identidade

na qual a diferença se opõe: "ser negro, ser velho, ser homossexual, ser mulher". Esse

raciocínio fracionário concebe a diferença em oposição à identidade.

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Aquilo que eu sou é positivo, aquilo que o outro é será negativo. Entretanto, de encontro

a isso se tem que identidade e diferença se estabelecem em uma relação de estreita

dependência. Para TOMAZ aparentemente a identidade se esgota a si mesma ao afirmar

uma posição, como por exemplo, o fato de "ser brasileiro". Todavia a necessidade desta

afirmação só se justifica pelo fato de existir o seu contrário, ou seja, o fato de haver outros

que não sejam brasileiros. Não haveria sentido afirmar uma identidade se o mundo fosse

homogêneo (2000 p.75).

Na dialética da coexistência dos contrários no mesmo real, a afirmação é parte de "uma

extensa cadeia de negações" em que a diferença é colocada de modo negativo. O que se

inclui numa afirmação é a própria negação, porém a mesma, em geral, se encontra oculta,

não se percebe, de imediato, sua existência. Identidade e diferença fazem parte do mesmo

processo de constituição e expressão de cada indivíduo. Tanto uma como outra são

produzidas nos processos sociais e na relação entre subjetividade e contextualidade. O

processo de socialização, que por si mesmo é social, produz tanto a diferenciação quanto a

identificação permanente dos sujeitos.

TOMAZ (2000, p.76) alerta para o fato das diferenças não serem "derivações" da

identidade, como se fosse possível avaliar o que somos como norma e o que não somos

como a diferença. Sendo que a avaliação da diferença se faz plena de negatividade e

desqualificação. As diferenças não estão aí como essências ou elementos da natureza para

serem desvendadas, respeitadas ou toleradas, elas são criadas por contraste na produção da

inserção social daquela interação entre sujeito e contexto. Perceber a identidade como uma

criação social e cultural leva a entender que socialmente são criadas as barreiras que

impedem o reconhecimento das diferenças como parte do campo social e mesmo humano.

"O fato de eu ser cego não impede meus sentimentos humanos como de qualquer outra pessoa, eu quero namorar, casar, trabalhar, ir ao cinema, no bar como todo mundo quer. Minha deficiência não impede a vida e muito menos o desejo por ela. Isso é a pior exclusão que a sociedade nos impõe, é uma exclusão de concepção, nos colocam fora da vida. Nós não vegetamos estamos cheios de vida, pertencemos a este mundo, no qual nos barram a entrada, muitas vezes, isso é injusto" (Entrevista realizada em jan. de 2002).

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No depoimento acima se tem o exemplo das barreiras construídas por uma cultura que

percebe na diferença visível, como no caso da cegueira, um fator de exclusão das áreas

comuns à vida humana. Os portadores de deficiência, por não se enquadrarem num

processo de identificação igual ao padrão são colocados em um lugar social de

diferenciação. No qual a mesma é sinônimo de impossibilidade do exercício próprio a vida

dos seres.

Se diferenciar no mesmo processo de se identificar deveria ser concebido como uma

forma criativa e alternativa de inserção social. Nessas circunstâncias, tratar-se-á de criar

formas alternativas de estar no mundo da vida. O que está em questão como fundo desta

discussão é que é preciso incluir todas as formas de expressões humanas não importado o

fato de ser ou não diferente. Não se trata de diferenciar para demarcar divisões de

possibilidades e impossibilidades, trata-se de contemplar no mundo social a diversidade da

condição humana.

A sociedade parece se conceber enquanto grupo homogêneo, constituído de pessoas

"normais", cujo conceito de normalidade se faz a partir de padrões estéticos e produtivos

que desconsideram a existência singular dos seres. Toda a idéia de identidade produzida

pelo social está permeada na concepção dessa normalidade. A heterogeneidade manifesta

nas diferentes personalidades e, justo aí reside a riqueza do humano que é relegada ao

"desvio". Num contexto que cria divisões entre as pessoas baseando-se num pressuposto de

igualificação de identidades, cria também parâmetros para hierarquização. No campo da

identidade e das diferenças se manifestam relações de poder, onde quem se enquadra no

padrão detém o poder de fazer parte do mundo e comandá-lo.

"Normalizar significa eleger -arbitrariamente- uma identidade específica como parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais todas as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa à identidade normal e 'natural', desejável e única" (TOMAZ, 2000, p. 83).

A questão que se interpõe na situação de classificação de identidades é a hegemonia de

determinada identidade sobre as outras, o que traz a conseqüência da exclusão de tantas

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outras singularidades. A participação social é uma necessidade humana, o mundo que se

coloca ao redor dos seres é um mundo para ser explorado, por onde todos deveriam poder

circular e ter acesso a sua constituição e transformação constante.

Os processos que consolidam a criação de inúmeras barreiras impeditivas da expressão

de seus sujeitos são processos que desumanizam a vida social. Nesse sentido se pode

objetar até que ponto o mundo que criamos histórica e cotidianamente é um mundo

acessível a toda esta diversidade característica da humanidade. A participação é um

processo social necessário para todas as pessoas. Constitui-se, a participação, em "(...)

requisito de realização do próprio ser humano(...). O desenvolvimento social do homem

requer participação nas definições e decisões da vida social" (SOUZA, 1993, p.83).

Justamente esse requisito tão fundamental foi interditado pelo imperativo da

"normalidade", não viabilizando o acesso das diferenças na participação do mundo social

ou dificultando muito este acesso.

A esta altura deste debate que remete ao entendimento dos processos sociais de exclusão

e no caso da identidade, a exclusão de identidades não desejáveis, pode-se valer de

CASTEL para ampliar a discussão acerca do conceito de exclusão, a partir das objeções

trazidas por ele. Esse autor pontua o cuidado em não reduzir a questão social à exclusão,

percebe a relação entre exclusão e sociedade salarial e concebe esse conceito em situações

específicas e não de forma generalizante.

Segundo CASTEL (2000, p.40-43) a heterogeneidade do uso do termo exclusão, seu

uso impreciso para as fraturas sociais, em geral, acaba ocultando a especificidade de cada

situação social singular. O mesmo considera que toda a "tradição da ajuda social" vem

nesta linha e o seu desdobramento é a categorização de "população-alvo" (2000 p.29). Os

"excluídos" tornam-se assim uma categoria para qual se direcionará algumas ações das

organizações governamentais ou não governamentais. Mais uma vez rótulos e estigma que

não demonstram o real problema da sociedade. As consideradas "populações com

problemas", ou "populações de risco", ou ainda as "populações em estado de

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vulnerabilidade social" serão focadas como alvo de ações do Estado e da sociedade civil

organizada.

O problema colocado aqui é o fato de que na categorização desta população de

"excluídos" recaí sob o sujeito o pesar de portar o déficit pessoal que a torna "inapta" para

vida social. Entretanto, o que CASTEL alerta é para a situação em que a maioria das

populações caracterizadas como "problema” não são "inválidos, deficientes ou casos

sociais", são pessoas que estão fora do mercado de trabalho e, portanto se tornam

"inválidas" pela conjuntura.

A marginalização dos chamados "excluídos" acontece em função da estrutura social e

não por causa de uma incapacidade pessoal. O tratamento deveria se reportar ao social e

não ao sujeito, num enfrentamento do desemprego, da exclusão do mercado de trabalho que

coloca as pessoas em situação de miséria (2000 p.31). A concepção de exclusão não explica

a sociedade em se seus processos que produzem a retirada das pessoas de seu contexto.

Para CASTEL (2000, p. 39) existem sociedades de exclusão: como no caso das

escravagistas, onde há ausência total de direitos e reconhecimento social; os criminosos

condenados à prisão perpétua ou à morte; os guetos, os "dispensários" para leprosos; os

"asilos" para loucos; a situação de certas categorias da população que se vêem obrigadas a

um status especial que lhe permite coexistir na comunidade, privadas de direitos e

participação social, como no caso dos indígenas que são regidos por um código especial. A

característica básica desta sociedade de exclusão é que ela impõe uma condição específica

para um grupo que o diferencia dos demais. Ela mobiliza regras estritas e uma estrutura

oficial para garantir um status "menor" definido no conjunto do social.

No conceito da exclusão definido nessa perspectiva em debate não se aplica aos sujeitos

que estão inseridos num contexto, fazem parte do mesmo e se desenvolvem dentro de suas

leis. No caso aqui refletido a lei do mercado, com base na competitividade, expulsa os

cidadãos dos espaços sociais e produz espaço para a marginalização das pessoas.

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Entendendo-se por marginalização o processo social que cria a necessidade, cria a falta e a

interdição do acesso aos bens sociais.

A atual estrutura social está formatada para produzir o "sobrante", o "marginal", aqueles

que ficaram de fora do seu movimento produtivo. É uma situação de "precarização", de

"vulneralização", onde todos fazem parte, alguns pelo lado de dentro outros pelo lado de

fora. Nas relações sociais se cria a cisão, a expulsão, bem como, também, serão criados os

espaços de retomada destas fraturas e a (re) construção de uma nova ordem para o social.

Pois, somos: "privilegiados por vivermos neste final de século, onde tudo parece estar

impregnado de seu contrário..." (MARTINELLI, 1995, p.145). Conforme sugere a autora

as possibilidades de transformação se dão justamente nessa pulsão do movimento

contraditório do real.

Para poder mudar as coisas desta sociedade é preciso desnudar seus processos de

dominação e expulsão que na maioria das vezes se constróem de forma oculta. Com esta

preocupação pode se constatar um outro aspecto marcante no entendimento dos

significantes da identidade, ao percebê-la como: "uma categoria política disciplinadora das

relações entre as pessoas e grupos, onde o outro é transformado em estranho, inimigo ou

exótico", é o que nos demonstra SAWAIA (2001 p. 123). Para essa autora o aspecto dual

que há na identidade, que tanto serve para identificar e respeitar a alteridade, quanto para

classificar e regular o outro, poderá ser constatado quando se aprende a detectar as

intenções que levam a indagar pela identidade.

As relações de poder, estabelecidas na sociedade, levam ao movimento de especulação

sobre a identidade do outro. Neste caso se constata que o escragavista ao requerer sobre a

identidade do negro, bem como quando o colonizador requer pela identidade do indígena, o

fazem com intenções específicas. Tais intenções são analisadas por SAWAIA, como uma

forma de controle sobre o outro. Neste caso será preciso prestar atenção em "quem" indaga

pela identidade do outro e com qual finalidade o faz, por quê e para quê indagar? Esta

autora exemplifica a tendência histórica de "bisbilhotice internacional" fazendo referência

a Margaret Thatcher (ministra inglesa), quando a mesma ao encomendar uma pesquisa

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sobre a identidade dos alemães, faz isso antes de tomar uma decisão de apoiar ou não o

mercado europeu (2001 p.123).

Entender identidade enquanto um conceito político significa perceber as contradições

históricas e atuais que estão permeando não apenas o conceito, mas as práticas sociais que

se seguem a partir dele. O uso separatista que se pode fazer a partir da perspectiva que vê

no outro o "inimigo" ou a ameaça leva à segregação e a todas as suas conseqüências. Essa

análise demonstra o quanto conceitos e discursos não estão desprovidos de um resultado

que é sentido na materialidade das vidas humanas.

A simbologia, toda a ordem de signos que permeiam a ideologia que vigora no social vai

apontar para uma determinada forma e condição de vida para as pessoas. Nesse sentido é

fundamental perceber a identidade na conexão com as relações sociais, e buscar conhecer o

lugar que esta particularidade está ocupando na totalidade da vida social. O fato é que a

identidade tanto expressa a individualidade humana, seu campo de subjetividade, quanto

demonstra a relação do ser social e seu movimento na sociedade. Portanto, se conclui que

identidade será mais bem entendida, quando for analisada, no campo das relações sociais e

dos seus sujeitos.

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I I - RELAÇÕES SOCIAIS E SINGULARIDADES INDIVIDUAIS

A temática da diversidade não se coloca de forma deslocada do contexto social e

histórico que envolve todos os seres. Apenas de forma aparente poderia se cogitar que

indivíduo e sociedade não estivessem em uma profunda interligação. A significativa

imbricação entre sociedade e o sujeito indica uma verdadeira unidade entre ambos. O ser se

constrói em sociedade, essa é construída a partir da dinâmica movimentação entre os seres.

A contemporaneidade é o tempo presente, que se fez, enquanto conseqüência da história e

dos inúmeros processos que ao longo da mesma foram se consolidando. A consolidação

histórica dos processos sociais é o resultado de tudo aquilo que seus sujeitos construíram e

reconstruíram em seu permanente movimento.

Partindo da concepção relacional para interpretar, tanto o campo social quanto às

pessoas que nesse se localizam, deparar-se-á com conceitos que não reduzem as

explicações sobre os fatos da vida a uma perspectiva individual. O ser se constitui enquanto

tal, no mundo das relações sociais e nessas refaz seu mundo e se reconstitui no mesmo.

Para analisar a questão da diversidade, ou seja, se é possível admitir que cada indivíduo é

portador de inúmeras características que o diferencia dos demais, entende-se também que

multiplicidade de expressões se coloca em um mundo padronizado. Por mais que haja uma

dinâmica intensa na forma como as pessoas vivam a história, não é possível negar a

tendência unificante que existe no social.

Parece paradoxal, se tem um movimento próprio de tudo aquilo que está colocado no

universo da vida humana, tudo sempre está em mutação. Entretanto, há também, nesse

mesmo universo, a conservação de normas, padrões, regulamentos, para que o caos não se

estabeleça. O problema aqui colocado diz respeito a sobreposição da estática à dinâmica, se

esses dois aspectos fazem parte do real, um se sobrepor ao outro leva a situações concretas

de desigualdades de condições.

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O que tem ocorrido, historicamente, é o fato de que a criação de padrões, no campo

social, tem subjugado a expressão das diferenças. A predominância da exaltação de uma

ordem determinada e de um padrão socialmente consolidado tem afastado a possibilidade

da convivência entre as singularidades dos indivíduos. Nesse capítulo, apresenta-se uma

análise histórica e crítica da produção da cultura da "normalidade" em detrimento dos

sujeitos que foram considerados "anormais".

2.1 OS HORRORES DA HISTÓRIA E O NÃO RECONHECIMENTO DA DIVERSIDADE

A história nos conta seus horrores e as atrocidades cometidas pela ignorância falta de

informações precisas e de compreensão sobre a natureza humana. Sabe-se que na Idade

Média a rejeição aos portadores de deficiência era tamanha a ponto da eliminação destes

sujeitos. A Idade Moderna faz inúmeros estudos e experiências enfatizando o aspecto

patológico da deficiência, centrando a patologia no sujeito. Na Idade contemporânea, houve

um primeiro momento, em que a chamada “Educação dos Deficientes” era pensada em

instituições que segregavam as pessoas. Na metade do séc. XX, a educação evoluiu no

sentido de “oferecer aos portadores de deficiência” condições de vida semelhantes a das

outras pessoas, “podendo” esses utilizar as ofertas de serviços e oportunidades existentes na

sociedade, o que antes jamais se poderia pensar (FADERS, 1991).

Em uma incursão histórica pelas formas como as diversas instâncias da sociedade

tratavam a questão das deficiências deparar-se-á com o imenso despreparo das ciências nas

explicações desta questão. Uma grande inabilidade caracterizou por diversos anos o tipo de

relação que os “ditos normais” estabeleceram com os sujeitos que apresentavam

singularidades tão diversas daquelas previstas no padrão da sociedade. O mais dramático

desses fatos sociais é que por conta do estranhamento diante das diferenças, se tenha

cometido tantos equívocos históricos que não apenas prejudicaram as pessoas portadoras

de deficiência, como também tornaram suas vidas muito difíceis e por vezes até foram

sacrificadas em sua própria existência.

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CECCIM (1999, p.26) lembra em seus estudos, que as crianças portadoras de

deficiências físicas e mentais, na antiga Esparta, eram relegadas ao abandono e eliminadas.

A Grécia sempre cultuou o atletismo, a estética, a força dos guerreiros, em função dessa

cultura os portadores de deficiência eram considerados sem alma, não pessoas, com uma

existência subumana, assim como as mulheres também o eram consideradas da mesma

forma. A Idade Média vai mudar essas práticas, com a influência da Igreja Católica, os

portadores de deficiência passam a ser considerado filho de Deus e, portanto pessoas, seres

com alma e merecedoras de proteção.

A visão católica, no entanto, centrava seu entendimento na culpa, no castigo e na pena.

O sujeito é culpado pela sua deficiência, que a recebeu como “castigo dos céus por seus

pecados” ou por culpa de seus antepassados. Segundo CECCIM (1999, p.27) se substitui a

exposição e o assassínio pelo “dilema caridade-castigo” e pela “ambigüidade proteção-

segregação”. Muitas instituições segregadoras são criadas nessas épocas, isolando as

pessoas portadoras de deficiência do mundo, “tratando-as” de modo que pudessem se

recuperar do “pecado” de terem nascido “naquelas condições”. Dessa forma também

“protegiam” a sociedade do convívio com as diferenças.

Apesar de toda a “proteção” que a visão cristã tenha fornecido aos portadores de

deficiência, não mais permitindo a eliminação dos mesmos e os colocando em instituições

fechadas, a Inquisição (século XV), vai penalizar com o extermínio as pessoas

consideradas estranhas. Novamente nos estudos de CECCIM (1999), é apontado a prática

dos inquisidores como uma forma de extermínio aos hereges, às feiticeiras, às criaturas

bizarras e aos loucos. Esses últimos eram considerados criaturas diabólicas por lhe

faltarem a razão, assim como os que tinham “vista torta”, que era “torta” em função das

visões do demônio e conversas com espíritos do mau.

As luzes do período Iluminista (século XVIII) vão descaracterizando a força do

pensamento religioso. As inúmeras descobertas no campo das filosofias e das ciências

médicas vão mudando o mundo. Começam a controlar várias doenças e as deficiências

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passam a ser vistas do ponto de vista clínico, sendo passível ao tratamento médico e ao das

ciências em geral. A deficiência passa a ser tratada no campo médico, embora se tenham

ocorrido alguns equívocos. No caso da doença mental, as formulações psiquiátricas de

Pinel (século XIX), por exemplo, indicavam a incurabilidade. A loucura era vista

unicamente do ponto de vista fisiológico, tratada de forma orgânica e medicamentosa,

portanto na visão da medicina a loucura foi uma questão de doença, sem outras

possibilidades, sem considerar a possibilidade educativa e as alternativas diversas para o

aprender.

Fechava-se a questão na impossibilidade pelo “déficit intelectual”. Foi uma forma de

perceber e explicar a doença mental que deu base a um modelo, considerado por CECCIM,

fatalista unitário e segregador (1999 p.32). Esse autor destaca as produções científicas do

início do XX, onde pontua que um médico brilhante daquela época, o Dr. ESQUIMOL

(1772-1840), era leitura obrigatória para a formação médica e de profissionais da área,

influenciando várias gerações, tinha como uma de suas principais idéias: “... os idiotas são

o que virão a ser durante toda a vida” (p.32). Não há alternativa para a aprendizagem,

nesta perspectiva. Os portadores de deficiência mental foram considerados incapacitados

para a socialização e para a aprendizagem. Os doentes mentais foram denominados

cretinos, idiotas ou imbecis, e para CECCIM “troca-se a danação divina à condenação

médica” (1999, p.30-31).

Durante todo o século XIX e início do século XX a questão da educação na área da

deficiência foi tratada de forma muito problemática. Os alunos portadores de deficiência

foram considerados perigosos e prejudiciais ao desenvolvimento da aprendizagem dos

demais. Houve uma forte tendência à segregação das crianças que portavam alguma

deficiência. Eram colocadas em alas dos fundos das grandes instituições sociais, sem

direito ao estudo, sofrendo um controle institucional que as apartavam do convívio com

outras crianças, como se fossem indesejáveis à convivência social. Aquelas crianças foram

consideradas perigosas, subversivas à ordem “normal” das contingências da vida dos

grupos da sociedade.

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Até a década de 30 (século XX), o “movimento de eugenia” tornou ainda mais

desumano a vida dos portadores de deficiência. Segundo STAINBACK (1999 p.38). Esse

“movimento de eugenia” (entre 1900 e 1930) generalizou a idéia de que as pessoas com

deficiência eram portadoras de tendências criminosas devido à sua composição genética e

isso seria uma ameaça à civilização. A partir desses conceitos, uma série de práticas

segregadoras foi ainda mais desenvolvida, como a esterilização, a expansão das escolas e

classes especiais nas escolas públicas.

Nas décadas de 50 e 60 do século XX houve grande expansão e desenvolvimento das

escolas e classes especiais para atender aos alunos chamados “especiais”. Foi igualmente

nessas décadas, entretanto, que os pais de crianças com deficiência deram início a diversas

organizações que começavam a exigir os direitos dos alunos estudarem de forma menos

segregadora e receber uma educação em “ambientes escolares mais normalizados”

(STAINBACK, 1999, p. 39). Os pais organizados começam a questionar e a problematizar

o sistema de ensino, como um sistema que exclui seus filhos portadores de deficiência,

percebem e denunciam o caráter segregador das instituições, que até então prestam

“assistência” às questões da deficiência.

Esse movimento se estendeu por outras décadas e foi até os tribunais, pressionando o

legislativo a mudar as normas e leis que eram vigentes até o momento. Alguns Estados

norte-americanos começam (década de 70 do século XX) a promulgar leis que

normatizavam o chamado “ato de educação para todas as crianças portadoras de

deficiência, levando para década de 80 o grande desafio de o ensino regular para todos

(SATAINBACK op.cit. p. 40). A partir dos movimentos dos sujeitos da sociedade e de

uma evolução de conceitos acerca dos significados da deficiência, a forma de encaminhar

suas demandas vai tendo um outro rumo. A questão da inclusão surge no desenrolar destes

processos, assunto que será tematizado, adiante, em um outro capítulo. Quanto a história

dos processos sociais nos quais inseriram-se as pessoas portadoras de deficiência, é dito o

seguinte:

“De forma bastante sintética, pode-se mapear o percurso dessa viagem seguindo uma linha mais ou menos clara: do extermínio à integração, passando por uma escala na segregação: da“exposição” das crianças

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gregas à tentativa de oferecimento de oportunidades iguais, passando pelo “asilamento” (AMARAL, 1994, p. 14).

Uma outra situação similar à situação da doença mental aconteceu na questão da

deficiência auditiva, onde por muito tempo os surdos foram submetidos a imposição da

aprendizagem nos moldes da chamada “oralidade”. Ou seja, a singularidade de um sujeito

que não ouve é constrangida a ter que aprender com métodos que se servem

exclusivamente de recursos dos ouvintes. A linguagem gestual e a dos sinais eram vedadas

aos surdos. Os surdos foram submetidos a uma “ditadura” da oralidade. Para SKLIAR: “...

os surdos foram objeto de uma única e constante preocupação por parte dos ouvintes: a

aprendizagem da língua oral e, como se fosse uma conseqüência direta, sua integração ao

mundo dos demais... ouvintes e normais (1999 p.108).

Para o autor acima referido, existiram motivos políticos, filosóficos e religiosos, mas

não educativos para que a língua dos sinais ter sido proibida, como aconteceu no

Congresso de Milão em 1880 e que influenciou a educação até a década de 70. Nesse

Congresso foi decretado, por um determinado e pequeno número de educadores, que a

língua oral era superior a língua dos sinais e, portanto essa segunda estava condenada em

sua utilização.

Naquela época a Itália tinha um projeto de alfabetização e a língua dos sinais

representava um desvio, uma vez usada particularizaria uma forma de linguagem

diferenciada da oficial, eis aqui um motivo político. A superioridade do mundo das idéias

proclamada por ARISTÓTELES5, representada pela “palavra”, era a expressão do que

vigorava em termos filosóficos, naquele Congresso. E, em termos religiosos a influência da

igreja Católica prezava muito a palavra para que as pessoas pudessem se confessar

(SKLIAR, 1999 p.108-10).

5 ARISTÓTELES (384 a.C. a 322 a.C.), um dos maiores filósofos da filosofia antiga, considerado sucessor de Platão, no que diz respeito ao sentido dado a palavra "filosofia", como saber racional e reflexivo. Para MORENTE (1930 p.27), Aristóteles faz avançar extraordinariamente o cabedal dos conhecimentos adquiridos reflexivamente e a filosofia passa ser cada vez mais o conjunto do saber humano.

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Conforme essa breve incursão histórica, se pode constatar, o quanto de atrocidades foi

cometido às singularidades dos sujeitos, em nome de interesses, ideologias e da ignorância

dos recursos técnicos que se dispunham. Sendo que só a partir da década de 70 os surdos

começam a ter o direito de buscar as alternativas compatíveis com sua forma peculiar de

existência e de possibilidade de expressão e aprendizagem. O referido Congresso teve um

peso demasiadamente expressivo nas condições de educação e comunicação dos surdos, no

sentido negativo e prejudicial, uma vez que desrespeita, desconsidera as diferenças

peculiares da surdez, se é impossível para um surdo ouvir, como impor ao mesmo uma

aprendizagem pela via da audição? Em meados do século XVIII até metade do século XIX,

a educação pela via da língua dos sinais era aceita e considerada normal, após o Congresso

de 1880 fica instituído: “... o predomínio absoluto de uma única equação, segundo a qual

a educação dos surdos se reduz à língua oral” (SKLIAR, 1999, p.109).

Um outro fator que demonstra a inabilidade do mundo da ciência e o mundo da cultura

social em lidar com as diferenças é a diversidade de uma terminologia para designar a

questão das deficiências. Diversidade que expressa uma série de conceitos equivocados

quanto a temática, a exemplo deste fato se tem o que segue para denominar as pessoas que

possuem diferenças visíveis: idiotas, imbecis, cretinos, mongolóides, retardados, bobos da

corte, aberrações, anjos, pequenas criaturas de Deus, infaustos, pára-raios, membros

desafortunados da sociedade, nefelibáticos, deformados, deficientes, portadores de

deficiência, especiais (CECCIM, 1999, p.48).

Os primeiros termos mencionados nessa listagem remetem a uma cultura de

impropérios que as pessoas se dizem umas as outras com intenção ofensiva, em casos de

desentendimentos e injúrias. Palavras que são utilizadas, muito comumente, nas relações

afetivas de amor e ódio quando de uma parte se objetiva desqualificar, menosprezar a outra

parte. É uma demonstração do quanto se tratou ao longo da história (ainda é tratada) a

questão das deficiências com enorme intolerância às suas singularidades, com profundo

desconhecimento de causa e desrespeito a diversidade da condição humana.

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Na pesquisa, que aqui se apresenta, ficou evidenciado o fato de ainda hoje não se ter

clareza da nomenclatura adequada a ser utilizada para se referir às pessoas portadoras de

deficiência e de altas habilidades. O correto seria que as próprias pessoas envolvidas na

questão possam opinar e indicar qual o termo correto. No que diz respeito aos movimentos

sociais das PPD, aqui no Rio Grande do Sul, a tendência é a utilização e a preferência pelo

termo: "pessoa portadora de deficiência e pessoa portadora de altas habilidades". Na área

da Educação ainda é usual o termo "portadores de necessidades especiais".

O termo excepcional parece ter sido superado nas diversas áreas. Entretanto, ainda são

muito diversas as opiniões sobre a terminologia adequada. Em algumas áreas específicas,

como no caso da surdez, é preferido o termo surdo ao termo deficiente auditivo. Nessa

situação há diferenciação entre os que têm perda total da audição, portanto, os surdos, e

aqueles que tem graus de deficiência auditiva. O mesmo ocorre com os cegos, que em geral

preferem ser assim denominados, porém, existe diferença entre os que são totalmente

cegos e os que têm visão “subnormal" e possui uma deficiência visual severa, sem a perda

total da visão, e, portanto não são cegos. Na ilustração que segue se apresenta uma

explicação específica para os termos:

"Eu não me importo se me chamam de cego ou de deficiente visual, penso que a maioria dos cegos não gostam da palavra deficiência e preferem a palavra cegueira. Quem tem visão subnormal não deve ser chamado de cego, mas é um deficiente visual. Todo o cego é deficiente visual, mas nem todo deficiente visual é cego. Faz diferença se você tem 2% ou 3% de visão para saber um pouco sobre as cores, se alguém ascende à luz, se encherga vultos. Todas estas peculiaridades vão fazer diferença na orientação da pessoa por onde elas andam, não é tudo igual" (Entrevista realizada em maio de 2001).

A mudança de nomenclatura, por si só, não transforma o sentido dado aos termos, há

uma transformação cultural que tem que ser consolidada. Na situação dos chamados

"portadores de altas habilidades", o termo tem mudado para a comunidade acadêmica, que

entende que esse termo é mais abrangente, por abarcar diversos tipos de talentos. Essa

abrangência se refere ao fato de ampliar a idéia de que os talentos se desenvolvam

unicamente na área cognitiva, incluindo outras áreas de expressão (música, dança,

esporte...). Entretanto, essa visão que pretende entender mais amplamente e singularmente

o significado da "superdotação", se torna algo que não é assimilado tão facilmente pela

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comunidade em geral (familiares, parentes, vizinhos). A população em geral continua

utilizando o termo "superdotado".

Muitas vezes acontece que determinados termos se tornarem longos demais e dificultar

a sua expressão no dia-a-dia. Para dar um sentido acadêmico e um novo significado aos

nomes muitas vezes a explicitação se torna extensa. Quem cria os termos os fundamenta

em uma lógica ou contra lógica que nem sempre é fácil de ser utilizada no cotidiano, por

outras pessoas. "Há muitas palavras para designar as deficiências. Palavras que

distanciam, que são muito longas e difícil de pronunciar" (Entrevista realizada em jan. de

2002).

Em outras entrevistas, realizadas neste percurso, foi apontada a dificuldade com os

termos em função de uma não aceitação da própria deficiência. Em uma resistência no

enfrentamento da questão, o nomear as deficiências está permeado de uma necessidade de

ocultá-la, como se fosse algo ruim em si mesmo. Não querer falar no assunto, não poder

pronunciar as palavras referentes às deficiências, pode estar denotando formas de

preconceito semelhante a situações em que se dispõe de rótulos para se referir às pessoas

de diferentes realidades existenciais ou sociais. A opinião abaixo ilustra esse debate:

"O preconceito está no melindre em falar as coisas como elas são. Gordo é gordo, negro é negro, mulher é mulher, homem é homem, deficiente mental é deficiente mental, não tem que ter vergonha de dizer o que é" (Seminário realizado em 2001).

Na dinâmica da diversidade de opiniões e das problemáticas apresentadas na reflexão

sobre o termo ideal para designar a questão da terminologia, ressalta-se o processo de

mutação das diferentes formas de analisar a questão da deficiência. Não há uma forma

única apontada. Há avanços nesse debate, pois, se considera, atualmente, de forma mais

significativa às singularidades, são apresentados dados da realidade do contexto do sujeito

para avaliar as situações. Os termos como "excepcional", foram abandonados, o que parece

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ser muito positivo, tendo em vista o sentido histórico da palavra6. O debate em torno da

terminologia adequada vai continuar. Para se obter avanços mais significativos talvez

sejam preciso novas superações históricas no convívio social com as deficiências

/diferenças. Quando a ampliação de conceitos e práticas acerca da diversidade remeterem

os seus sujeitos sociais a um autêntico reconhecimento das diferenças. E, quando esse

reconhecimento estiver capacitado a romper com barreiras físicas, de comunicação e de

atitudes.

O termo, adotado na apresentação desta tese é: pessoa portadora de deficiência e pessoa

portadora de altas habilidades, por estar em sintonia com a demanda vinda dos movimentos

sociais desse segmento e na pauta da discussão e implementação de uma política pública

para essa área. De outra forma, de todos os termos utilizados nos parece o mais indicado

por remeter ao entendimento de que é uma pessoa que porta uma deficiência e não um todo

deficiente. Assim como parece adequado a expressão a seguir apresentada, para se referir

aos termos em contraposição aos "rótulos":

"Acho esta questão de rótulo totalmente desnecessária, nada importante e até discriminatória. Acredito que não há necessidade de rotular uma pessoa por qualquer que seja sua diferença, os rótulos foram feitos para produtos e não para pessoas" (Entrevista realizada em ago. de 2001).

Um último aspecto que será analisado sobre a questão dos nomes e do significado do

nomear está colocado nos estudos de BRIZOLA, quando a autora reflete sobre os nomes

escolhidos para as escolas especiais. No estudo da autora, às escolas especiais, ao contrário

das escolas "comuns" que escolhem nomes de celebridades, são nomeadas, da seguinte

forma: O sorriso de Amanhã, Recanto de amor; Cantinho da Esperança; Pequenos passos;

Pedacinho do Céu; Morada da Ternura (2000, p191/192). Nessa nomeação transparece uma

denotação de compaixão, de infantilidade, é uma nomeação análoga a que se utiliza para

6 Na lei federal (brasileira) de 1961, o termo excepcional era aplicável a todo o indivíduo situado acima

(superdotado) ou abaixo (subdotado) da "norma" em uma ou mais das seguintes áreas: físicas, psicológicas,

sociais, abandono, indigência, marginalidade, delinqüência (BRIZOLA, 2000, p.179).

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nomear as creches. Historicamente a educação especial tem essa conotação de menoridade,

de abnegação, como será mais bem analisado no próximo sub-capítulo desta tese.

Pode-se valer das questões formuladas, da mesma autora, para problematizar o

significado desses nomes, se tem: Que tipo de concepção se tem do espaço institucional

escolar? É procedente categorizar a instituição escola como um "pedacinho de céu?” O que

se espera da educação ministrada no "lar da esperança?” Que papel esta escola deve

cumprir em relação aos próprios alunos e em relação à comunidade? O significado desses

nomes parece revelar uma "mea culpa", uma dívida social que só pode ser sanada se

oferece as pessoas "um novo amanhã", "uma nova vida", "através de uma corrente de

carinho" (BRIZOLA, 2000, p.192).

A situação de esses nomes estarem sendo designados para as escolas especiais parece ser

reveladora da atitude paternalista das instituições desta sociedade para com as pessoas

portadoras de deficiência. Há uma conexão importante entre os significantes nomeais e a

dinâmica presente nas relações sociais. Nessa situação em particular, está se falando da

forma como a sociedade em geral se relaciona com as deficiências. Essa reflexão aponta

para estreita conexão entre o sentido de nomear uma escola, a estrutura e a cultura de uma

sociedade que trata de questões referentes às deficiências como se fossem de cunho

"menor".

No que se refere às concepções, onde realmente a humanidade avançou desde a Idade

Antiga? Pode-se questionar, o que mudou? Foram as pessoas nascidas com alguma

deficiência que apresentam outras características naturais? Ou será que foi a atual

capacidade das ciências, da lógica, das filosofias, da política, de revisarem suas posturas,

suas concepções? Em uma profunda revisão, a partir de outra perspectiva, se abrem novas

oportunidades de se aprender algo a mais com a magnitude da vida humana e assim vão se

transformando os velhos conceitos. Para que isso aconteça um processo crítico de análise

deve ser acionado. No sentido de revisar os diferentes parâmetros que foram construídos

nas diferentes instâncias concretas e simbólicas da vida social. As representações feitas,

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mesmo que em nível inconsciente, atingem a forma concreta de viver das pessoas e sua

forma de acesso ao mundo que está consolidado a seu redor.

2.2 SEGREGAÇÃO NAS RELAÇÕES SOCIAIS

Não há justificativa cabível para o processo social de segregação pelo qual passaram e

ainda passam as pessoas que têm uma singularidade que se diferencia de forma

visivelmente marcante. O despreparo das ciências, o pouco investimento dos governos em

políticas públicas nessa área tem dificultado um caminho inclusivo às pessoas portadoras

de deficiência. Inclusão que deveria significar a possibilidade para todos os sujeitos da

sociedade fazerem parte, pertencerem à mesma de modo integral, de maneira que não

houvessem grupos excluídos, que ficam à margem dos processos sociais e dos recursos

oferecidos aos demais. Pensar em uma sociedade onde toda a pessoa, pela única razão de

ser pessoa, já tivesse de antemão garantido o seu direito de pertencer e participar é pensar

em uma sociedade que ainda não foi construída, pela qual se deve lutar.

“A alternativa segregadora das relações sociais, ainda que não produza separação

física ou de localização espacial, opera com a determinação unitária de comportamentos

dos indivíduos” (CECCIM, 1999, p. 47). Vive-se sob uma condição social, na qual as

pessoas devem corresponder às exigências de um padrão que determina que o modo de ser

não pode fugir às normas estabelecidas. Há uma normatização das relações entre as

pessoas da sociedade que é opressiva do ponto de vista das subjetividades e singularidades

dos sujeitos. Especialmente àqueles que não se enquadram nos padrões por diferenciações

de estrutura física, psíquica, emocional ou da forma de olhar o mundo, sofrem com a

violenta padronização de um mundo feito para todos serem iguais, a despeito da realidade

da condição humana que traz em si a diversidade e não a igualidade.

A separação dos demais, o isolamento, a segregação, em geral, é o que acontece àqueles

que “desviam-se do caminho” da padronização. As diversas instituições reproduziram e

reproduzem fortemente este processo social da igualização. Nessas e em inúmeras ocasiões

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as diferenças não são aceitas, por vezes, são reprimidas com atitudes reguladoras e

punitivas, a fim de que se atinja uma generalização dos comportamentos. A questão da

normalidade está diretamente ligada à questão da segregação, pois o que não é "normal" é

considerado um desviou, algo que deve ficar escondido. O depoimento a seguir denúncia à

maneira como as próprias instituições que "recebem" pessoas portadoras de deficiência

fazem isso de forma a acentuar a segregação:

"As instituições tem acessibilidades para automóveis, para entrada das pessoas há escadas. Essa é uma situação muito comum às instituições que atendem pessoas portadoras de deficiência. O motivo de tal fato é esconder a deficiência, as entidades de portadores de deficiência colocam carros a disposição para as pessoas não ficarem "expostas", para que a sociedade não os veja. É para esconder o "deficiente", não é para facilitar o acesso (Entrevista realizada em jan.2002).

Nessa lógica as pessoas se separam em normais e desviantes, essas últimas ficam

segregadas, ficam fora da chamada “sociedade da normalização”. Não se teria aqui a

fórmula da segregação? Seu significado é a exclusão, a expulsão e a desigualdade de

condições de vida para aqueles que são "diferentes". “No passado, foi decidido que

algumas crianças ou alguns adultos deveriam ser excluídos de nossas vidas, das salas de

aula e das comunidades regulares porque eram considerados uma ameaça à sociedade”

(STAINBACK, 1999, p.28). Em diversos níveis essa situação segregatória é reproduzida,

inclusive pelas famílias. Não é uma prática pouco comum os pais buscarem "proteger" seus

filhos do olhar dos outros, do olhar de reprovação, de rejeição, de incômodo, do olhar da

"normalidade" sobre a deficiência, do olhar que não percebe, que não reconhece, no outro,

a possibilidade de ser diferente. O depoimento, a seguir, ilustra essa reflexão:

"Muitas vezes o esconder a criança portadora de alguma deficiência acontece em nome da proteção da mesma. Vejo como exemplo o caso de uma mãe que carregava seu filho cego no colo, tapado como se fosse um recém nascido, ele já tinha 1 ano de idade. Sua justificativa era estar protegendo seu filho das outras pessoas., para não chocar as pessoas" (Entrevista realizada em jan.2002).

Olhando para o déficit, muitas vezes, os "cuidadores" desistem de investir na pessoa. A

velha idéia de que uma pessoa portadora de uma deficiência vivia por menos tempo está

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ligada ao fato dessas pessoas não receberem os cuidados adequados na infância. Por vezes

os cuidados com higiene e com o corpo é relegado pelo fato da pessoa ser portadora de

uma deficiência, bem como os cuidados com a aparência. Nas entrevistas realizadas na

pesquisa se obteve vários exemplos de situações, tais como: o fato da criança não ser

levada ao dentista por ser portadora de alguma síndrome; uma criança portadora de

deficiência vestida de maneira pouco alinhada, enquanto seus irmãos não portadores de

deficiência são vestidos de acordo com os costumes da época. Na entrevista abaixo se tem

uma ilustração dessa problemática:

"Muitas vezes estas crianças são criadas sem estímulo da família, sem alimentação adequada, sem carinho, pois se achava que a perspectiva de vida era mais curta para tais crianças. Justamente pelo fato de não serem tratadas com todo o cuidado necessário acabavam por viver menos". (Entrevista realizada em nov. de 2001).

O déficit é acentuado de tal forma com se fosse o todo e não apenas parte do ser que

porta uma deficiência, e nessa concepção esquece-se de perceber outras habilidades, outras

possibilidades, potencialidades destes sujeitos. É justamente a sua capacidade que deveria

ser reforçada e não a impossibilidade. Parece ser difícil para as pessoas, em geral, perceber

na pessoa portadora de deficiência, um ser humano integral, não fragmentado, não

reduzido a sua parte deficitária. No cotidiano das pessoas que portam alguma deficiência se

repetem inúmeras situações que demonstram essa análise, como se poderá constatar na

entrevista que segue:

"Um dia meu ginecologista me encaminhou para fazer uma ultra-sonografia, quando eu estava lá na clínica esperando para realizar o exame, o médico do local me indagou, o porquê eu estar ali para fazer aquele exame. Ele não estava entendendo os motivos de uma mulher numa cadeira de rodas se preocupar com questões ginecológicas. As pessoas desistem da pessoa portadora de deficiência, pelo fato de ter uma deficiência é como se todos os outros setores de sua vida ficassem nulos. Aí eles pensam que não precisamos nos vestir bem, cuidar de nosso corpo, sair para namorar" (Entrevista realizada em out. de 2001).

Com essa limitação da percepção acerca das reais condições pessoais de alguém que

porta uma deficiência, as pessoas que se encontram nessa condição foram tratada de forma

a serem reforçadas em sua "impossibilidade". Não se teve um real investimento em seu

potencial. Torna-se freqüente o relato, que se encontra nas entrevistas e se apresenta nos

resultados desta pesquisa, que diz respeito a uma certa "desistência" da pessoa portadora de

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deficiência, que é mencionada no depoimento acima. STAINBACK, alerta para o fato do

negativismo em relação à pessoa portadora de deficiência ter suas raízes no modo de vida

competitivo da vida social que leva à idolatria dos “vencedores” e a evitar os “perdedores”

(1999 p.415).

A imagem da vitória e da derrota esteve associada ao modelo humano atlético, alto, em

plena forma física e psíquica, um padrão pouco encontrado, porém, consolidado no

imaginário social, como sendo um padrão ideal de ser humano. Fora desse padrão, àqueles

que recebem o rótulo de “deficientes”, são vistos na perspectiva de uma possibilidade

menor, no que diz respeito ao seu desempenho cognitivo. Segundo STAINBACK,

instituições e métodos de ensino e avaliação tiveram uma expectativa muito reduzida em

relação às crianças portadoras de deficiência. Por muito tempo foi disseminada a idéia de

“ponto máximo”, na qual se acreditava que a aprendizagem, no caso das deficiências,

pudesse chegar a um determinado limite e, a partir desse nada mais poderia ser aprendido.

Para as pessoas em geral, não portadoras de deficiência, se considera a aprendizagem

como um processo inacabado a se desenvolver ao longo da vida. Considerar a existência de

um “limite máximo”, para àqueles que portam algum tipo de déficit físico ou metal, não

seria uma outra forma de exclusão? Aqui se tem uma exclusão de um processo natural à

espécie humana, ou seja, seu crescimento pessoal constante, cada um a seu rítimo, a seu

estilo próprio, mas nem por isso menos humano ou menos similar aos seus semelhantes.

Novamente se esbarra na grande deficiência do conhecimento e das estratégias dos

métodos pedagógicos para lidar com as diferenças e sua perversa conseqüência direta, ou

seja, a segregação. Na falta da compreensão não se buscou a alternativa para a diversidade,

então foi mais fácil separar, excluir, expulsar, desqualificar.

Os métodos das instituições da sociedade para lidar com as diferenças e com a

diversidade humana, sempre foram métodos excludentes e que não ofereceram igualdade

de oportunidades a todas as pessoas. Os mesmos parecem terem sido constituídos para o

favorecimento daqueles que respondem ao padrão de exigibilidade social. Um aspecto que

ratifica esse entendimento é o fato daqueles métodos estarem pautados em um olhar por

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demais “negativista, pessimista” sobre as características e o desempenho das pessoas

portadoras de deficiência.

“Os pais e os educadores que encorajam as crianças com deficiência a ter apenas

amigos com deficiência e a participar apenas de eventos sociais para pessoas com

deficiência perpetuam a segregação” (STAINBACK, 1999, p.410). Nessas situações, os

grupos se fortalecem entre si em uma identidade de diferenças, com a liberdade de se

expressarem sem ter que responder ao padrão de desempenho exigido pelo social.

Entretanto, há um grande risco nessas práticas, se for à única alternativa de convivência

social.

O risco de perpetuação da segregação se localiza no fato de não pressionar o conjunto

de outros segmentos sociais para o entendimento e o reconhecimento da diversidade

humana. Em uma prática separatista se descaracteriza a responsabilidade da sociedade em

apresentar condições alternativas que incluam as pessoas portadoras de deficiências com

suas peculiaridades. A sociedade deve se adaptar às diferenças, oferecer acessibilidade e

ser inclusiva. Não se pode deixar de lado a discussão contextual, na qual está mergulhada

toda e qualquer problemática humana. Se de um lado, os condicionamentos físicos abatem

os seres, de outro lado, o contexto onde eles se desenvolvem vai dar direcionamentos

diferenciados para os mesmos.

No que diz respeito às pessoas portadoras de deficiência, várias instâncias da sociedade,

desde a década de 80, tem feito um debate importante com vários avanços, contrapondo o

chamado "modelo médico da deficiência" a um modelo de "inclusão social". No "modelo

médico da deficiência" as pessoas portadoras de deficiência são consideradas doentes,

desamparadas, dependentes, inúteis, inválidas, isentas dos deveres comuns (SASSAKI,

1997, p.28). Nesse modelo as pessoas são objetos da atenção institucional e não sujeitos.

Essa afirmativa se comprova na reiterada forma dos profissionais da área da deficiência se

referir ao portador de deficiente como uma "eterna criança", que não cresce, que sempre

será tutelada, que terá alguém para falar e responder por si. Há uma prática institucional e

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cultural que leva a uma interlocução com uma pessoa portadora de deficiência mediada

pelo seu tutor.

A possibilidade de participação e expressão ficou interditada pelo costume de não se

consultar a opinião da própria pessoa sobre sua condição, seus desejos e suas reais

possibilidades. Há um lugar de "menoridade" que é reservado àqueles que têm algum

déficit visível. Nesse lugar acontece uma interdição, posta pelas instâncias sociais, das

condições para o exercício de participação, de autonomia e de cidadania. Sendo assim, ao

sujeito são colocadas barreiras que lhe afastam da inserção em seu contexto, lhe é negado o

direito de fazer parte, de assumir responsabilidades, de ter deveres e direitos dentro da

sociedade. Tal qual as crianças devem aguardar pelos adultos para poder "receber" aquilo

de que precisam.

O percurso histórico dos equívocos de percepções e métodos acerca das deficiências e

seus significados para os sujeitos vem sugerindo a importância da qualificação deste

debate. Uma superação necessária trata de abrir os espaços institucionais para o

entendimento que portar uma deficiência não é sinônimo de desqualificação pessoal, nem

se trata de "menoridade". As próprias famílias, por vezes em uma situação na qual a

estrutura familiar está marginalizada, acabam fazendo uso da deficiência para obterem

recursos do governo.

O pedir esmolas associado a imagem das deficiências é uma estratégia de sobrevivência

que ainda acontece. Ocasiões como essas dificultam o processo de ruptura com a imagem

de desvalia, entretanto, estão representando, não apenas expressões individuais, mas,

sobretudo um determinado tipo de sociedade. Essa sociedade que prioriza o consumo tanto

quanto a "venda" da própria imagem de "doente" para a possibilidade de obter recursos

para a sobrevivência.

Uma discussão conseqüente sobre a "doença como um projeto" foi enfrentada por

CARRETEIRO (2001, p.87-94) sinalizando a situação em que as instituições estão

oferecendo aos indivíduos "projetos - doenças". O que acontece é que para que a pessoa se

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inclua em determinados projetos ou programas governamentais e receba um "benefício",

ela necessitará comprovar um estado de debilitação extremado. Caso contrário o sujeito

estará impossibilitado de participar dos programas institucionais. Essa é uma situação que

está colocada na dinâmica de uma sociedade altamente excludente e que segundo

CARRETEIRO trabalha com a "pulsão de morte" em detrimento da "pulsão de vida" nos

meandros de suas instituições que atendem à Seguridade Social.

"As instituições podem oferecer aos indivíduos 'projetos-doença' e estes podem aceitá-los para ter legitimada a cidadania e certas condições de sobrevida. Quando isso acontece as instituições estão sendo trabalhadas pelas pulsões mortíferas que desqualificam a força dos sujeitos. Estes, aceitando o 'projeto-doença', escapam da possibilidade de serem considerados como 'extranumerários'. (Carreteiro, 2001, p.94).

O reconhecimento institucional se faz em cima da condição do "corpo doente" ou

deficiente e aqui se tem no déficit uma tonalidade compensatória e necessária para uma

inclusão institucional. O indivíduo está assinalado enquanto "inválido" e, portanto, não

"sobrante" na instituição. Esse é um registro que desconsidera as implicações dos

mecanismos sociais que geram as doenças, as deficiências, e especialmente que está

gerando a necessidade compensatória. Nesse processo há distanciamento da construção da

cidadania e do trabalho com potencialidades, uma vez que a tônica é a fragilidade e a

doença para pertencer. Então, são situações em que os indivíduos são levados a fazer uso de

sua doença, de sua deficiência para conseguir passagem de ônibus, para receber recursos

financeiros. Pessoas que fazem uso de exames de baixa imunidade (no caso de portadores

de HIV - positivo) para a permanência em programas e nas disputas de vagas institucionais.

A reflexão que se faz presente neste momento, remete aos diversos aspectos de

organização social que propiciam a desumanização da vida humana. Por outro, no debate

com as pessoas portadoras de deficiência, no tempo presente, é apontado a importância de

se criar espaços institucionais que trabalhem a perspectiva do portador de deficiência que

está capacitado para as atividades.

É preciso (re) significar a imagem "do deficiente incapacitado" e apostar em suas

potencialidades, transformando a imagem da deficiência como doença, na percepção da

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deficiência como um aspecto da vida da pessoa. Esse aspecto precisa ser contemplado mas

não super dimensionado. Na construção de uma política governamental comprometida com

a cidadania não se poderá descuidar da percepção de que "a doença como projeto" deverá

ser superada, com certa urgência.

"Para quem é portador de uma deficiência é fundamental ver nas instituições, a presença do deficiente trabalhando, atuando, produzindo, fazendo parte da equipe de saúde, não só como usuário, mas contribuindo para ensinar como se faz quando a deficiência acontece na vida da gente. Em conjunto com outros profissionais, o portador de deficiência poderá mostrar para o reabilitando a imagem da deficiência produtiva. Poderá mostrar os deficientes fazendo coisas, especialmente para a criança isso é importante". Somente essa imagem pode nos demonstrar, nesta hora, que podemos começar de novo e reconstruir nossas vidas" (Entrevista realizada em set. de 2001).

Em função daquele "modelo médico da deficiência" e daquela forma de olhar para a

deficiência a sociedade tem tido dificuldade em fazer o devido e necessário reconhecimento

dos processos sociais que estão impedindo o desenvolvimento do potencial das pessoas

portadoras de diferenças. A estrutura arquitetônica e cultural da sociedade apresenta

inúmeras barreiras, por serem pensadas para um padrão único de ser humano e não para

comportar diversas singularidades com determinados limites e restrições. Essa estrutura, em

verdade, comporta a exclusão, em que muitos ficam de fora do desenvolvimento da

sociedade, sem possibilidades de participar, de se sentirem pertencentes ao seu meio. No

caso das pessoas portadoras de deficiência é exatamente o que se passa, por não

acompanharem o rítimo imposto pelo padrão socialmente estabelecido para a vida dos

sujeitos, são consideradas incapazes.

Há um documento intitulado: DEZ PROPOSTAS PARA UMA NOVA ABORDAGEM da

CORDE (Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência),

que contempla sugestões de como as instituições, as pessoas e a sociedade em geral devem

se referir e tratar com a questão das deficiências. Esse documento pontua

fundamentalmente a importância da percepção da potencialidade que há na situação da

deficiência (ver anexo1, esse documento).

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Tornou-se habitual perceber, em análises sobre as dificuldades naturais da vida, uma

tendência em ressaltar o lado negativo do déficit. É um entendimento que centra no sujeito

a patologia e não discute as relações em que o mesmo está inserido. É necessário que as

análises acerca das deficiências possam perceber o contexto e o fato do ser humano se

constituir enquanto ser de relações sociais. Nos meandros dessas relações sociais os sujeitos

se constituem, se moldam e se transformam. O fato de a existência humana estar imbricada

na trama de tantas vidas indica que a análise acerca das problemáticas individuais não pode

acontecer dissociada a este movimento rico do real e da vida, em sua multiplicidade e em

sua singularidade.

Na situação dos portadores de deficiência, há uma série de discriminações que os

colocam na já referida condição de "menoridade" diante do padrão de exigência social de

uma "normalidade" irreal e massificada. Situação análoga ocorre com as pessoas que se

encontram na “maioridade”, ou em idades avançadas. Os idosos são outro exemplo de

exclusão, em que a situação não é diferente, no que diz respeito às discriminações.

Nas sociedades ocidentais, o idoso não é considerado em seu acúmulo de vivências e

conhecimentos, não é respeitado em seu desenvolvimento maduro. Cultuam-se ideologias

que ratificam a beleza do corpo, a juventude, a perfeição dos movimentos físicos, a super

produtividade do indivíduo, o conhecimento imediato, o descartável, a lei do "mais forte",

"mais esperto", "mais veloz", "mais belo" e da "mais-valia".

A perspectiva simbólica de "menoridade" que é atribuída aos portadores de deficiência

atravessa e permeia o entendimento do significado histórico dado à educação especial.

Quando se fala em educação especial, a exemplo do que já foi colocado sobre os termos

utilizados e os nomes destinados às escolas especiais, o que se destaca é uma "educação"

menor, inferior à educação "normal". O traço de "educação menor" se apresenta na

característica de um sistema de ensino que tem sua tônica mais na assistência do que na

escolarização.

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Onde há toda uma preocupação em assistir a criança muito mais do que em investir nas

condições para que ela possa aprender o que deve ser aprendido em uma escola. A

educação especial tem um caráter de "apêndice indesejável" ou obra de pessoas

"abnegadas" que assistem aos "deficientes". O que acontece nessa área é que muitas ações

são realizadas de acordo com a "boa vontade" e não em um planejamento político que

projete a inclusão das características peculiares dos portadores de deficiência no ensino. A

entrevista abaixo demonstra o aspecto pouco valorizado dado a educação:

"Quando a gente vai para o interior do Estado o que se percebe é que há política pública para o asfalto, para a construção de canteiros de flores, para as 'coisas da cidade", mas para as pessoas não há políticas públicas. O ministério público responde por inúmeros processos e multas por lesar o patrimônio privado daqueles que o tem. Entretanto, quando se trata de adequar recursos na escola para crianças portadoras de deficiência se pensa em fazer rifas, gincanas para arrecadar fundos. Infelizmente essa é a realidade de muitos municípios” (Entrevista realizada em jan.2002).

As escolas por muito tempo tiveram práticas excludentes com ênfase no déficit, não nas

possibilidades e no dinamismo próprio da condição de ser humano. Pensar em uma escola

inclusiva significa considerar a convivência plena entre as diferenças, sem medo de incluir

a diversidade e as formas alternativas de aprendizagem. Significa considerar que além dos

métodos tradicionalmente conhecidos para o ensino outros métodos podem ser usados,

métodos que correspondam às peculiaridades de sujeitos que não são iguais aos outros. É

importante entender aqui, que não ser igual não significa ser incapaz de aprender.

É muito recente (em países em desenvolvimento) o movimento pela inclusão, data da

década de 90 (século XX), onde começou a ter maior força. Na década de 80 já havia um

movimento incipiente em países desenvolvidos e há uma projeção para os primeiros 10

anos do século XXI, o seu desenvolvimento em todos os países (SASSAKI, 1997, p.17). O

documento da ONU, em relação às pessoas portadoras de deficiência, declara que "... a

incapacidade existe em função da relação entre as pessoas deficientes e o seu

ambiente..."(1992, p. 6). Isso demonstra que, de forma internacional, já se faz presente nos

debates, a questão das interdições contextuais, como um fator importante a ser considerado

na organização das cidades. As barreiras físicas, culturais, sociais, devem ser pensadas

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como impedimentos, e, portanto eliminadas em um processo que possibilidade aos sujeitos

uma maior acessibilidade à vida em sociedade.

No plano Nacional de Educação, em ocasião do Segundo Congresso de Educação

(1997), no qual o mesmo foi consolidado, o diagnóstico realizado acerca das condições da

educação especial, pontua que: "a educação especial sempre foi tratada como apêndice da

educação regular, com caráter assistencialista, discriminatório e excludente e continua

com tal conotação na Lei de Diretrizes e Bases (LDB)" (BRIZOLA, 2000, p. 38). A

educação especial é tema da LDB em 1961, uma lei que é proscrita para educadores da

época e já vinha sendo gestada desde 1946. É uma lei que coloca a educação especial em

contraste com a educação comum, geral, "normal" (ver no anexo 2, o parecer 658/77). A

crítica que se faz à educação especial é o fato dela ter se tornado um subsistema à parte,

uma "superestrutura" que segrega o processo educativo em geral, criando uma cisão entre o

ensino comum e o ensino especial.

O que era para ser uma metodologia de ensino ou para ser tratado como construção de

técnicas, abordagens específicas e peculiares às condições dos portadores de deficiência, se

torna um sistema de ensino. Um sistema que cria uma "duplicidade de educações". Nesse

caso objetivos e finalidades do ensino se fazem de acordo com as características do usuário

da educação e não em função do fim educacional que é educar.

Em 1994 a Declaração de Salamanca (EUA), (ver anexo 3) preconiza pela "educação

para todos", uma escola de boa qualidade para todos, uma escola inclusiva. O objetivo

dessa Declaração é a inclusão de grupos tradicionalmente excluídos da escola "comum". Há

a idéia de deslocar do eixo da educação especial a atenção aos portadores de deficiência e

colocar no âmbito da educação comum. Uma educação em nova perspectiva, que esteja

qualificada para abarcar os diferentes grupos (meninos de ruas, mulheres, vítimas de

guerras, portadores de deficiências, altas habilidades, etc.). A segregação dos alunos com

dificuldades de aprendizagem passa a ser questionada e se desenvolvem conceitos que

remetem à escola a responsabilidade de ser "exitosa para todos". É firmado um debate em

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torno da necessária superação das atitudes discriminatórias e excludentes para com aqueles

alunos que sempre foram rotulados como "problemáticos".

Na proposta da escola inclusiva se abrem espaços para a aceitação e o reconhecimento

das diferenças. Os alunos portadores de deficiência passam a estudar junto com os não

portadores de deficiência. Segundo BRIZOLA (2000, p.56), apesar das superações

conceituais e reflexivas deste debate, que já vem desde a década de 70 e culmina na

Declaração de Salamanca, os avanços concretos são lentos e graduais, mesmo nos dias de

hoje.

Um outro problema apontado pela autora é o fato de que esse Documento, apesar dos

avanços, não traz uma declaração incisiva e radical para que as escolas especiais deixem de

existir. O que faz é destacar a preocupação com a proliferação das escolas especiais, como

espaço segregador. Essa autora faz uma significativa reflexão acerca do processo histórico

de exclusão escolar e da ineficácia do ensino especial. Demonstrando, a mesma, as

dificuldades atuais de se incluir na escola.

A tendência à educação inclusiva é um debate internacional e da mesma forma as

medidas para sua implementação. Diversos países do mundo têm feito esse debate em torno

da necessidade de uma "escola para todos", sem discriminações e que pudesse colocar fim

aos estigmas e a segregação. No Brasil, a constituição de 1988 e a Política Nacional de

Educação Especial de 1994 oficializaram as pretensões de "integração escolar e social das

pessoas com deficiências". O Ministério de Educação e Cultura (MEC), órgão do governo

Federal Brasileiro, em 1995 lançou um documento que dispõe sobre o "Processo de

Integração Escolar dos Alunos Portadores de Necessidades Especiais no Sistema de Ensino

Brasileiro".

O mesmo anuncia o esforço de implementar medidas para que as pessoas portadoras de

deficiência (temporária ou permanente) tenham o direito à educação. Entretanto, esse

cabedal legal não tem sido capaz de gerar mudanças mais concretas (BRIZOLA, 2000,

p.57). Atualmente, no que diz respeito à experiência porto-alegrense, ainda é complexa a

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inclusão de crianças com qualquer diferença e dificuldade na escola dita regular. A

exemplo disso, o depoimento abaixo:

"Eu sou portadora de deficiência física desde que nasci, meu marido também é, hoje em dia temos muitas facilidades de inclusão na sociedade, conseguimos trabalho, nos locomovemos com certa facilidade nos lugares onde já costumamos ir. Porém, para nosso filho com síndrome de Down a dificuldade para incluí-lo na escola é imensa. Isso que eu sou professora, conheço a lei e brigo muito para mantê-lo no ensino. O lugar mais difícil de incluir é na escola, na minha experiência familiar, onde somos três portadores de deficiência" (Entrevista realizada em set. de 2001).

No cotidiano de instituições que trabalham com portadores de deficiência se apresenta

constantemente a expressão dessa dificuldade de inclusão escolar. Para aqueles que

conseguiram entrar na escola é por vezes difícil permanecer na mesma. Um outro aspecto

considerável a realizar no que tange a questão da inclusão escolar se expressa na

dificuldade de se trabalhar com a inclusão de forma qualificada e não como depósito de

alunos nas salas de aula, sem o devido preparo dos professores, sem equipamentos

especializados e sem estar de acordo com as necessárias demandas de cada aluno.

Os governos precisam investir na educação de recursos e não utilizar a “inclusão” como

pretexto para reduzir custos orçamentários na área da educação especial. “Incluir a

educação das crianças especiais dentro da discussão educativa global não significa, então,

incluí-las fisicamente nas escolas comuns, mas hierarquizar os objetivos filosóficos,

ideológicos e pedagógicos da Educação Especial” (SKLIAR, 1999, p.15).

Uma grande e importante polêmica que vem a tona em diversos debates entre

profissionais da área da educação e das demais áreas que se envolvem na questão, remete a

preocupação de que a “inclusão” possa ser igual a um modelo inconseqüente, sem o

preparo que as áreas especializadas sempre tiveram com a educação especial. A segregação

nas práticas institucionais e especialmente nas escolas é secular, portanto será uma tarefa

nada simples de executar, haja vista o despreparo das mesmas diante desta necessidade de

mudança, porém: “... nenhum destes argumentos pode realmente justificar a segregação

dos alunos com deficiência ou de qualquer outro aluno da escola regular e da vida

comunitária” (STAINBACK, 1999, p. 433).

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Portanto a escola, as instituições em geral, os professores, os profissionais das diversas

áreas, os pais, os familiares, os diversos setores da sociedade, deverão aprender a se

comunicarem com as diferenças. Isso significa em última análise aprender a se comunicar

com a sua própria condição de pessoa, ou seja, com a característica da diversidade que é

peculiar à espécie humana. A mudança que deverá ocorrer é cultural, no que diz respeito ao

olhar para as diferenças. Uma nova visão e uma nova prática que desenvolvam novos

processos sociais, nos quais pertencer a seu próprio grupo humano não seja mais uma

questão para o debate e sim uma prática comum à vivência humana.

"É certo que as diferenças e a pluralidade da vida não têm encontrado lugar na escola: é como se as crianças, jovens e adultos, ao desfrutarem das atividades escolares, tivessem de se despir de suas singularidades, peculiaridades e, mesmo suas semelhanças para compor um todo homogêneo, estável, previsível e quiçá, imutável" (BRIZOLA, 2000 p.123).

Não se aprende desde criança a valorizar a vida em sua plenitude natural e singular.

Aprende-se a adorar o belo, e o belo é o imediato produtivo do momento atual. É uma

questão sociocultural não saber valorizar as conquistas pessoais que serão sempre

particularizadas e diferenciadas. O que se aprende é cultuar um padrão de exigência de uma

super "competência" para acompanhar o rítimo de uma sociedade que não pára de se

desenvolver, do ponto de vista da tecnologia e seu aprimoramento. Entretanto, do ponto de

vista da humanicidade das relações sociais há muito que se aprender e avançar quanto aos

conceitos e práticas sociais, referentes à questão das diferenças.

Segundo SASSAKI o "modelo médico" (1997, p. 28-35), responde adequadamente a

uma visão que tem como parâmetro, um padrão de normalidade. Nesse modelo é como se

houvesse um organismo absolutamente perfeito, em que todo e qualquer problema que

venha ocorrer junto ao mesmo, seja uma disfunção, uma desorganização patológica. É

evidente que os avanços da medicina, das ciências em geral, da tecnologia trazem

conseqüências muito positivas para nossa sociedade, desenvolvem e aprimoram os tempos

vividos pelos sujeitos, inclusive deixando a vida mais fácil de ser vivida e agradável. O que

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acontece, de igual forma, é que a visão do organismo perfeito, uma vez transposto para o

entendimento social desconsidera as relações.

Quando o indivíduo é percebido isoladamente em sua "doença", consequentemente é

responsabilizado pela “sua disfunção”. Dessa forma não se apreende as contradições

inerentes aos processos sociais que interditam as possibilidades dos sujeitos terem acesso à

qualidade de vida. Qualidade de vida é uma questão crucial para uma existência melhor

vivida e isto deve significar possibilidades de inclusão, de pertencimento, de trabalho como

atividade prazerosa, criadora, onde o sujeito se expressa, se mostra, se encontra. Em

qualquer faixa-etária o lazer, o descanso, as atividades agradáveis, a "ludoterapia" são

importantes, são formas de qualificar o modo de vida, de enfrentar as adversidades que se

colocam em todos os caminhos a fim de que o sujeito possa se sentir pertencente a seu meio

e incluído. Para isso a sociedade deve se adaptar às diferenças deve se tornar acessível às

singularidades.

A questão da qualidade de vida não é algo isolado do contexto social e estrutural da

sociedade, muito antes pelo contrário, quanto melhor desenvolvido for um país, um

continente, do ponto de vista do desenvolvimento econômico, mais tenderá a oferecer

condições para uma vida digna a todos os seus compatriotas. Sociedades exploradas,

subdesenvolvidas, pobres de "pão" e de cultura não oferecem condições ao

desenvolvimento em geral das pessoas. A compreensão sobre os limites impostos pela

estrutura social é fundamental para entender os problemas de cada sujeito social, que nela

se inserem.

É preciso que se desenvolvam projetos de qualidade de vida com conhecimentos acerca

dos problemas que envolvem as pessoas em suas particularidades, mas para, além disso,

que haja clareza da importância das lutas sociais. Só uma estrutura social que permita

"Equiparação de Oportunidades", "Autonomia" e "Independência" para seus sujeitos poderá

garantir qualidade de vida. A relação entre a estrutura da sociedade e a vida particular de

cada um se consolida de forma absolutamente imbricada. E, será significativo, pontuar o

campo social o caracterizado, conforme a orientação de CORNELY, de maneira a encontrar

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no mesmo um sentido humano: "Que, por social, é finalista, pois deve inscrever-se nos

esforços para a construção de uma sociedade mais humana, mais equânime, mais justa e

mais solidária" (1998 p.48).

Necessário, se faz, compreender as engrenagens do sistema social para encontrar as

estratégias importantes e ações que articuladas aos movimentos coletivos possam enfrentar

e superar as barreiras postas no social para que a vida se torne possível para todos..

Especialmente buscar a necessária superação da imposição da vida social em detrimento do

sujeito deste social, que reduz suas possibilidades. Na perspectiva da "inclusão social", a

sociedade é pensada sob uma outra ótica que não aquela que a percebe de forma perfeita e

adequada ao desenvolvimento humano. Nessa se percebem as limitações contextuais no

tecido social e as dificuldades que existem para além de cada sujeito, o modelo, o padrão

social é o que dificulta o indivíduo de se manifestar plenamente. Em uma análise de

contraversão do entendimento clínico, se percebe as patologias no contexto e não

exclusivamente no indivíduo. SASSAKI diz o seguinte, quanto ao assunto:

"A inclusão social, portanto, é um processo que contribui para a construção de um novo tipo de sociedade através de transformações, pequenas e grandes, nos ambientes físicos (espaços internos e externos, equipamentos, aparelhos e utensílios, mobiliário e meios de transporte) e na mentalidade de todas as pessoas..." (1997, p.42).

Quando se analisa por demais um lado dos fatos se tende a não conseguir perceber os

outros. No caso das pessoas portadoras de deficiência, poderá ser um fato que algumas

funções e habilidades referentes ao desenvolvimento do indivíduo vão se tornando

diferenciadas do movimento dos demais na mesma faixa-etária, e deficitários, do ponto de

vista clínico. O fundamental, porém, é buscar encontrar possibilidades contextuais para a

continuidade do desenvolvimento da vida, nas etapas em que ela se encontra. Ou seja, é

preciso desenvolver as contingências estruturais da vida humana de forma favorável à vida,

no seu significado pleno.

Uma transformação nas formas de pensar a sociedade, de perceber as potencialidades

humanas será fundamental para revolucionar o modo de vida nesta sociedade. Trabalhar

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com processos de conscientização, de clarificação de novos significados para a relação

sujeito-sociedade, onde se possam contemplar explicações e ações que conduzam ao

reconhecimento das diferenças e à inclusão dos sujeitos em seu próprio contexto. Ao

considerar o sujeito social como um ser de relações, se faz necessário buscar as conexões

entre as pessoas e o lugar onde elas se expressam, onde elas construíram sua história e se

constituíram enquanto pessoa.

A complexidade da vida humana é uma marca da civilização deste milênio, que por mais

que seja novo conserva sua característica mais antiga: o fato de possuir um emaranhamento

entre seus sujeitos. As pessoas na vida comum das sociedades resolvem suas questões

pessoais tendo que passar por inúmeras mediações que são inerentes a seu meio. Para se

resolver "problemas pessoais" é necessário buscar soluções que sejam, também, do

conjunto, tendo em vista o emaranhado da díade pessoa-contexto. Todas as ciências já

fizeram esta descoberta, entretanto, para uma transformação da cultura que privilegia a

visão do sujeito patológico, em uma cultura que privilegie os processos sociais, ainda se

tem um longo caminho pela frente.

Quando se estuda a patologia fisiológica, em primeira vista, se tem a impressão de um

sujeito patológico em sua totalidade. Na contraposição a esta visão se pode ter a perspectiva

que situa a patologia no processo da sociedade. Por mais que se possa admitir o fato do

corpo humano ter seu processo individual, por vezes apresentando determinados déficits,

limitações que o atingem de forma pessoal, não há como negar a influência extrapessoal. A

fundamental significância do contexto é ratificada na perspectiva da "inclusão social", que

pretende abarcar o sujeito em seu contexto, privilegiando a aceitação das diferenças, ou

seja, das diversidades que são inerentes a cada ser humano.

A diversidade da vida humana é uma expressão forte de que as diferenças são inerentes

à condição humana. A vida em sociedade cria padrões e uma exigibilidade em cumpri-los.

Padrões esses que nem sempre correspondem ao ser humano comum, parecem pensados

para um super humano, super ativo, super produtivo e "normal", em "funcionalidade

perfeita". Problematizando o padrão social e considerando a incapacidade das estruturas

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sociais para atender as necessidades daqueles que são diferentes do "normal instituído" pelo

social, se vai ampliando a compreensão acerca da diversidade da condição humana.

2.3 A DIFERENÇA ENTRE OS SUJEITOS DESSA SOCIEDADE

A sociedade capitalista tem seus padrões estabelecidos de funcionalidade, dentre esses

se destacam a eficiência, a produtividade, a lucratividade, a estética padronizada em um

modelo de beleza pré-fixada pela imagem de grandes artistas de cinema. Os chamados

“deficientes”, os que têm estatura baixa, os que possuem peso acima da média, os que têm

a cor da pele escura, os que já viveram muitos anos, os que estão doente, os que não

possuem recursos econômicos para o consumo e, outros tantos estão fora do “enquadre

social”, daquilo que é desejado idealmente, para a vida cotidiana, nesse modelo de

sociedade.

A vida, entretanto, se apresenta em suas inumeráveis facetas e, nessas não é possível um

“enquadre social”, sem perder muito daquilo que constitui essencialmente os indivíduos

enquanto seres humanos singularmente diferenciados uns dos outros. Se for possível

padronizar objetos, reproduzí-los por meio de uma máquina, com a espécie humana

pensante o mesmo não acontece, pelo menos até o presente momento na

contemporaneidade.

Historicamente, as diferenças não são consideradas na constituição social. Em

conseqüência, as pessoas portadoras de “diferenças restritivas” são estigmatizadas. O fato

de o sujeito ser portador de uma deficiência não significa que a sua totalidade enquanto ser

seja deficiente. Embora isto pareça óbvio, infelizmente, na prática não é assim, porque na

maioria das vezes, o entendimento da deficiência centra no indivíduo como um todo a

responsabilidade pela inadequação. É como se a identidade pessoal fosse deficiente. Há

uma naturalização da questão e assim não se considera o fator relacional da inadequação,

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onde o que de fato acontece é uma “interdição das possibilidades do processo de

singularização” (LIPPO, 1997, p. 148).

O autor referido acima trabalha com o conceito de “interdição”, situando no contexto,

as dificuldades da pessoa portadora de deficiência. O contexto não é adequado para

satisfazer as necessidades de cada diferença, para comportar as diferenças, pois este é feito

de forma padronizada. Esse autor considera importante substituir a palavra deficiência, por

interdição, para deslocar do sujeito a perspectiva da patologia. Cada pessoa, em

determinadas circunstâncias, fica limitada em desenvolver seu processo de singularização,

em função da interdição posta pelos impedimentos do meio social, que é assim visto em

sua responsabilidade, pelo fenômeno da inadequação.

O “Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência” reconhece a

responsabilidade da estrutura social na questão das diferenças e sinaliza a importância de

um outro padrão de vida social, para evitar os acontecimentos que causam as deficiências.

Os requisitos apontados, como significativos, para alcançar os objetivos do programa são:

“... o desenvolvimento econômico e social, a redistribuição da renda e dos recursos

econômicos e a melhoria dos níveis de vida da população” (Doc. Internacionais ONU,

1992, p.5).

Um outro aspecto importante de ser mencionado no que diz respeito às

responsabilidades sociais se refere às medidas na área da prevenção. Sabe-se que muitas

deficiências poderiam ser evitadas se existissem medidas contra a desnutrição, a

contaminação ambiental, a insuficiência de assistência pré e pós-natal, as moléstias

transmissíveis pela água, deficiências causadas pela poliomielite, sarampo, tétano,

coqueluche e, pelos diversos tipos de acidentes. Fatores do contexto social ocasionam

determinadas deficiências. Seria imprescindível, portanto, que a fome, a miséria, as

guerras, as catástrofes, fossem evitadas, assim como deveriam ser evitados os modelos de

sociedade que causam a exclusão e a pobreza para imensa maioria das pessoas.

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Num modelo social que propicia a pobreza e a exclusão, se constata um “..múltiplo

gradiente causal ligado a configurações sócio-geográfico-político-econômicas: más

condições de atendimento médico, lastimáveis condições de alimentação, precárias

condições de saneamento básico, estarrecedoras condições de segurança do trabalho..”

(AMARAL,1994, p.13). Este entendimento remete à responsabilidade das políticas

públicas, da estrutura social em reordenar tais configurações, imprimindo um novo modelo

de estrutura à sociedade.

Os governantes não podem mais se manter indiferentes a essa realidade e precisam

assumir o compromisso de um planejamento humanizado que inclua as diferenças e

considere a realidade dos seres humanos. O movimento organizado das pessoas portadoras

de deficiência tem um significativo papel na transformação do que está posto. Já conseguiu

muitos avanços e sua luta deverá engrossar a fileira da resistência contra a exclusão. A

sociedade civil em geral, também, tem o importante papel de aprender a lidar com as

diferenças e validar a heterogeneidade e a pluralidade da existência humana.

2.4 RELAÇÕES SOCIAIS E A MARCA DA IGUALDADE

O entendimento de cada fato na sociedade, na perspectiva das relações sociais, não

significa jogar ao campo social toda a responsabilidade das problemáticas humanas. Não é

uma absolutização do social, enquanto produtor de todas as dificuldades individuais. Em

uma perspectiva relacional o que se tem é o entendimento do dinamismo processual entre o

sujeito e seu contexto. As relações se fazem entre as pessoas e, portanto podem ser refeitas,

transformadas. Cada individualidade se desenvolve em determinadas condições sociais e

estruturais, condições que são consideradas nessa análise relacional. O indivíduo é um,

porém, não o único no espaço e as teias relacionais que se consolidam em torno de cada um

é o que vai dando sentido às construções e vivências humanas.

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Tomando algumas palavras emprestadas de VELHO, a estrutura social não é uma

“entidade oposta, distinta a indivíduos biológicos e psicológicos” (1985 p.16). O que

acontece é uma intensa inter-relação entre o sujeito e seu contexto e não uma dicotomia

entre indivíduo e sociedade. Não é o caso de depositar na sociedade todos os enredos

humanos, por que a mesma, se for vista de forma abstrata, é o todo ou nada, onde não há

sujeito. O que dá movimento à estrutura social é justamente as construções materiais,

históricas, culturais e simbólicas que vão sendo tecidas por cada indivíduo, cada grupo

humano, cada comunidade singular e por todo o emaranhado relacional que permeia os

contextos onde se desenvolvem as pessoas em seu tempo histórico. A realidade pessoal do

indivíduo não se dissocia de sua realidade sociocultural, histórica e da organização de sua

vida material.

Todavia, cada indivíduo é responsável pela sua potencialidade, é capaz de fazer as

rupturas necessárias com àquilo que é dado historicamente, especialmente se tais condições

são adversas a sua condição. Não se desconsidera, na análise relacional dos fatos que

existem limitações e dificuldades que são singulares e referentes ao indivíduo. “O ser de

um sujeito é incompreensível fora da dialética de suas relações e de seu meio,

historicamente situados e diversificados” (TOMASINI, 1998, p.115). Quando se pensa na

deficiência como doença ou disfunção se desconsidera o processo social que se

desenvolvem na sociedade e a própria potencialidade dos sujeitos em desenvolver sua

expressão de criatividade.

“Na realidade, embora os homens se encontram enredados em múltiplos condicionamentos, existem possibilidades e espaços, ainda que limitados, para sua ação transformadora. E a história tem testemunhado esse contínuo movimento dos homens, tentando superar as circunstâncias adversas e melhorar as suas condições de existência, através de sua práxis humano-social” (BULLA, 1992, p.20).

Os estereótipos, os estigmas e os inúmeros preconceitos criados na dinâmica das

relações sociais poderiam ser representados na figura de um “biombo” que separa a

“normalidade” da “não normalidade”. Ser desviante significa ter recebido um rótulo,

significa estar sendo colocado em um lugar definido como o da “anormalidade”. Isto é uma

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criação sociocultural, que produz conceitos que dividem os seres humanos, é a marca da

igualidade, todos “devem ser iguais”. Segundo VELHO, o “desvio” é criado pelo social,

quando este assim o nomeia de “desviante”. Se o “desvio” é nomeado e institucionalizado,

passa ter um sentido sociológico (1985 p. 61).

Para VELHO, a gênese fisiológica das deficiências é menos significativas do que as

atitudes que se aprende ter diante das mesmas (1985 p. 60). Quanto mais rígidos forem os

padrões de normalidade mais excludentes serão os processos sociais que envolvem a

questão das deficiências. Os conceitos e preconceitos que uma cultura cria vão moldando os

comportamentos e definindo as formas relacionais que serão mais ou menos

humanizadoras. Na perspectiva da normalidade todos devem balizar seus comportamentos

segundo um padrão comportamental simbolicamente consolidado nas relações sociais.

Nas séries iniciais começa para todas as pessoas, que nela tiveram a oportunidade de

ingressar, uma jornada de capacitação ao “mundo” da normalidade. Se for norma que as

crianças devem alfabetizar-se aos 7 (sete) anos, aquelas que nesta idade apresentam

resistências a enquadrarem-se, nesse tempo cronológico à aprendizagem correspondente,

suspeitar-se-á, da impossibilidade da criança.

Uma dificuldade específica não precisaria ser transposta para o todo do ser. Há aqui uma

análise unilateral e totalizante ao mesmo tempo. Se a criança que entrou na escola para

aprender a ler e a escrever, "não aprendeu”, se considera que o problema é dela. Se esta

mesma criança tiver outras potencialidades nem terá oportunidade de demonstrar, de

expressar, pois o rótulo que recebe de “não educável” estará permeando todo o seu ser. A

subjetividade da pessoa é desconsiderada, quando ela é percebida como alguém que “se

desvia”, por não se enquadrar.

“Uma vez definidas como desviantes, a tendência será sempre procurar nas crianças os

sinais e sintomas do seu desvio; quaisquer manifestações de sua parte servirão de prova de

sua “excepcionalidade” (VELHO, 1985, p.73). A oposição entre a “normalidade” e a

“excepcionalidade” demonstra uma forma relacional de desigualdade de condições.

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Aqueles que ficam do lado oposto da "normalidade" são penalizados, com a limitação dos

métodos de ensino, que não são adequados à singularidade diversas e não oferecem as

mesmas oportunidades para o aprender.

Existe uma enormidade de casos e pesquisas7 que comprovam que muitas crianças, após

diagnóstico de algum tipo de déficit, são consideradas pela escola, “potencialmente”

incapazes de se alfabetizarem. Essas são tratadas de modo diferenciado, não recebem

estímulo para acompanhar essa aprendizagem. Em condições, como essas, é negado o

direito de aprender, de se desenvolver, de se relacionar com o mundo dos objetos, de

manipular as coisas que estão fora do sujeito, mas que na relação com os mesmos, os

constituem.

“Todas as suas relações com o mundo - ver, ouvir, cheirar, saborear, pensar, observar, sentir, desejar, agir, amar -, em suma, todos os órgãos de sua individualidade, como órgãos que são de forma diretamente comunal, são, em sua ação objetiva (sua ação com relação ao objeto), a apropriação desse objeto, a apropriação da realidade humana. A maneira como eles reagem ao objeto é a confirmação da realidade humana” (MARX, 1983, p. 120).

O destaque ao pensamento do autor acima citado será aqui analisado, no que tange as

relações sujeito-sociedade e sujeito-objeto de comunicação com mundo. Primeiramente se

pode entender que os sentidos humanos são individuais por fazerem parte de um sujeito

único. Ao mesmo tempo são os sentidos também “comunais”, pois ao expressá-los no

mundo eles estarão em relação direta com os sentidos de outros seres humanos. A

possibilidade de expressar esses sentidos, pela manipulação daquilo que é exterior ao

indivíduo, ou seja, dos objetos, será justamente aí o ponto no qual reside a consolidação da

“realidade humana”.

7 O Texto de VELHO (1985) apresenta vários exemplos de crianças que sofreram processos de discriminação e de não investimento em seu potencial cognitivo, por serem portadores de alguma deficiência. O texto de TOMASINI (1998), de igual forma aponta exemplos, nesse sentido. O livro de AMARAL (1994), também aponta exemplos de crianças que são “diagnosticadas” pelas professoras como incapazes de aprender, sem ao menos terem tido oportunidade de exercitar sua potencialidade. Na pesquisa de campo, que aqui se apresenta, no cotidiano profissional se tem feito a escuta de diversos depoimentos nesse sentido. Profissionais que trabalham na área das deficiências têm questionado o sistema de métodos que sempre foram aplicados às crianças portadoras de deficiência. E, principalmente, a perspectiva que não deposita nenhum crédito no potencial do sujeito.

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O sujeito cria sua realidade humana na conexão de sua vida pessoal à vida social e na

dinâmica relacional com o mundo, ou seja, na vida prática. Negar o direito de se

presentificar no mundo é uma forma de desumanizar o ser, de esvaziar seu sentido de vida.

Justamente esta negativa é uma realidade muito presente para aquelas pessoas que portam

algum tipo de déficit seja físico, sensorial ou mental. A condenação à segregação de

inúmeras pessoas portadoras de deficiência é um arbítrio que desconsidera a própria

condição de ser humano, daqueles que são considerados diferentes: “... que se vê refletido

na imagem daqueles que o têm como um ser humano não completo ou não completamente

humano” (TOMASINI, 1998, p. 125).

Não ser considerado um ser humano por apresentar diferenças, deficiências, déficits nas

áreas do desenvolvimento é a demonstração da dificuldade de compreensão acerca da

própria condição humana, por parte daqueles que são humanos e vivem em sociedade. É

estranho pensar que para o ser humano seja tão difícil reconhecer sua própria condição de

diversidade. A história, entretanto, é testemunha desse fato, que se está procurando debater

e demonstrar nesse trabalho: a imensa intolerância com a diversidade como indicativa de

que a referência da igualidade, possa ser para a humanidade um “porto seguro”.

A perspectiva de que todos devem ser iguais é irreal, pode estar a serviço da garantia de

um real estático que não muda, que não se transforma, que não coloca em questão os

padrões estabelecidos e fixados no campo social. Não estaria aqui uma possível explicação

para o “terror” que causam as diferenças e deficiências? As pessoas portadoras de

deficiência constróem formas alternativas de viver e se desenvolver neste mundo

padronizado, igualizado. Descobrem todos os dias, formas diferenciadas para se inserirem

no cotidiano da sociedade. Não são iguais, não se enquadram nas freqüências de

desempenho exigidas pela cultura da competitividade comum. Entretanto, não deixam de

criar a história de uma outra forma e demonstrar que a vida também é possível fora das

normas criadas, além da cerca que delineia o que é possível, o que é certo, o que é belo, o

que é a vida.

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As pessoas portadoras de deficiência subvertem a ordem, as diversas ordens do social.

Nesse sentido, se faz necessário reconhecimento do potencial de revolucionar o cotidiano

que são dotados os portadores de deficiência. Se existe uma configuração adequada à vida

humana e nessa não há espaço para a inclusão das pessoas com suas singularidades, essas

mesmas pessoas reinventam a vida. O cotidiano de cada individualidade está imerso em

um conjunto de fatores sociais, constituídos no conjunto da sociedade, influenciando a

individualidade de cada um.

O campo social está historicamente permeado pela estrutura social, cultural econômica

e normativa. As relações se constituem de forma a oferecer condições de vida desiguais e

opressoras entre os sujeitos. Os indivíduos possuem uma relativa autonomia devido à

consolidação normativa que impõe rígidas formas para o viver humano. Aqueles que

vivem de modo diferenciado podem estar representando uma ameaça as normatizações e às

disciplinas criadas na ordem das coisas da sociedade pelo fato de serem “diferentes”.

GUARESCHI, quando analisa o que foi nomeado por ele de “categoria excluído”, diz o

seguinte:

“Hoje, como ontem, são excluídos da sociedade pelos poderosos do tempo os que desafiam, por serem competidores em potencial. Os que constrangem, com seu comportamento diferente, contestador,“anormal”, ou bizarro. Os que ameaçam, por muito terem sido feridos, por não conhecerem horizontes” (1992, p. 3).

Por essas razões acima descritas se encontra nas pessoas com vivências diferenciadas

uma certa “desobediência” das convenções sociais. Sua “inconveniência” pode estar

provindo deste desempenho transgressor que influência a história da sociedade e vai

abrindo novos espaços para as diversas expressões da vida. A sociedade condiciona a vida

individual, tanto quanto as experiências singularizadas vão transformando a maneira de

viver em sociedade. Nesta dialética da vida o desenrolar das potencialidades e

possibilidades humanas vão apresentando seus diversos matizes, suas tonalidades

múltiplas.

A radicalização dessa dialética levaria a necessária desconstituição das normatizações e

do pressuposto da igualização que submete a todos a uma vida padrão. Na perspectiva das

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relações sociais, se entende que esse pressuposto de igualização impõe um padrão de

desempenho que deve ser igual sem se preocupar em oferecer igualdades de condições.

Nesse sentido não se fala em igualdade e sim em igualização. As oportunidades não são as

mesmas para todos, porém a exigibilidade social de desempenho está padronizada.

Quanto a “desobediência”, FROMM traz uma contribuição importante, que se pode

aproveitar nessa análise. Esse autor considera que a história da humanidade começou por

atos de desobediência, Adão e Eva burlaram as normas do paraíso e só depois daí

começaram a conhecer o mundo (1984, p.9). Para FROMM, nessa obra, a humanidade

evolui por “atos de desobediência”, confrontando o poder vigente e as opiniões antigas

que não se abrem ao novo. Se for possível “desobedecer” é possível criar novas formas de

viver a vida social e encontrar alternativas para dar movimento à dinâmica das relações

entre os seres deste conjunto chamado humanidade.

No que diz respeito às deficiências, pouco se estudou sobre a relação entre o indivíduo e

a sociedade (AMARAL, 1994, p. 94). A importante conexão que aqui se faz não foi uma

temática o suficientemente refletido, debatida, no conjunto das instâncias que se dedicam

ao entendimento das deficiências. O percurso histórico, nessa área, demonstrou que quando

se fala em deficiência se está pontuando déficits individuais. Há um importante e vigoroso

trabalho a se consolidar no sentido de desconstituir tais equívocos da história, no que tange

ao reconhecimento do valor humano daqueles que por portarem diferenças mais marcantes,

não deixam de ser constituídos, enquanto sujeitos, da essência comum à sua espécie.

Os meios de comunicação sempre exercem uma influência incisiva do meio sobre o

sujeito, através da veiculação de imagens, personagens marcantes vão deixando suas

mensagens de como deverá ser a forma “correta” de viver a vida, sobre quais os

comportamentos são adequado. Esses vão indicando qual a forma de avaliação

(julgamento) sobre os fatos da realidade deverão ser consagrados.

O meio de comunicação de massas se torna normativo, veicula normas e maneiras de

ser. Nesse particular, AMARAL faz uma análise significativa, da forma como esses meios

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de comunicação têm tratado a temática das deficiências, concluindo que isso acontece de

maneira preconceituosa, estigmatizante, reforçando a ideologia da normalidade e dos

estereótipos (1994 p.64). O portador de deficiência para ser considerado, sociologicamente,

tem que ser “super-herói” e fazer coisas extraordinárias para ser aceito.

AMARAL faz referência a uma análise significativa sobre um famoso desenho,

intitulado “Dumbo”. Nessa análise é pontuado o fato de Dumbo ser um elefantinho que

nasce com uma deformidade física nas orelhas. Elas são grandes demais em comparação ao

comum dos elefantes. Essas orelhas “grandes demais” não foram percebidas pela família

de imediato, até então, o elefantinho era bem aceito e bem quisto por todos. Na ocasião em

que o personagem principal espirra e suas orelhas saem de trás do corpo, se abrindo, todos

ficam consternados e começa um processo de rejeição ao mesmo, por parte de todos de seu

convívio (SATOW apud AMARAL, 1994, p.63).

“Dumbo” passa por inúmeras humilhações, zombarias, inclusive pelo fato de seu nome

ter sido trocado, inicialmente se chamaria Jumbo, e, passou em função da deficiência a se

chamar “Dumbo”, que significa tolo, estúpido. O elefantinho passou por um processo de

desconsideração e agressão, em seu ambiente de vida, num circo, que só teve fim quando

ele pode voar e se tornou uma estrela, um astro do circo. Teve ele, nosso herói, que superar

o comum dos mortais, para ser aceito, para ser considerado pelo social e assim essa história

infantil teve um final feliz. Pode-se analisar e perceber o estigma colocado na questão da

deficiência, nesse “simples” desenho, muito assistido por crianças em todas as partes do

mundo. A aceitação das deficiências passa por um esforço muito grande de auto superação

e superação da própria espécie humana, uma vez que tem que ir além dos limites atingidos

por aqueles que simplesmente vivem.

Os desenhos infantis, em geral, estão carregados dos diversos estigmas que permeiam a

visão da sociedade sobre a deficiência, de vítima à “super-herói”. Ainda valendo-se da

análise de AMARAL, várias situações representadas nas estórias assistidas por crianças

demonstram isto, vejamos: um exemplo de quando a idéia subjacente ao filme é a de

“culpabilização da vítima” – ursinhos são castigados ficando mudo ou mancos, por falar

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demais ou por incomodar as pessoas. A idéia de “correlação linear entre deficiência e

traços de caráter” – “o aleijado por ter um bom coração pode tornar-se um lindo rapaz

ou o menino cruel que passa a ser repulsivo”. Quando a mensagem é “a normalização

como saída – o patinho feio que se descobre afinal cisne” (1994 p.59).

Existem outras formas de visualizar os preconceitos que permeiam a representação da

deficiência, nas estórias e contos que situam a mesma como: a “solidão inexorável” – a

menina paralítica que só tem como interlocutor um pássaro. O deficiente/diferente no

lugar do exótico – o exemplo do elefantinho Dumbo. A idéia de “santificação” – o menino

é curado de seu mal por ser bondoso. Por fim, a visão da deficiência sob o prisma da

“necessidade de compensação desmesurada” – um pássaro que não voa, mas é sabido e

faz vôos imaginários (AMARAL, 1994, p.60). Todas essas imagens estão perpassadas

destes conteúdos eivados de subestimação da pessoa portadora de deficiência em seu meio,

como bem nos demonstrou esse autor na relação acima de correspondência entre a estória

infantil e seu significado.

O cotidiano é rico na repetição de valores, modelos, sentidos que se passam de maneira

implícita esses significantes subjacentes às mensagens. Rara vez se consegue ter

visibilidade de seus reais significados. Essa circulação simbólica de imagens e conceitos

contribui muito negativamente para o processo de conscientização do potencial criativo

que há na diversidade humana. Essas ideologias reforçam a igualidade, a padronização e a

“normalidade”. Como se poderá mudar as relações sociais se a simbologia que envolve as

mesmas continuar veiculando a expressão da estereotipia? Em que tipo de sociedade se

vive? Os valores que compõem o tecido social são valores realmente humanos? Se forem

humanos como podem excluir da vida pessoas, pelo fato das mesmas apresentarem

peculiaridades, déficits, diferenças?

O tempo histórico presente é marcado por miséria, desigualdades, concentração de

renda, de terra, de informatização, de poder. É marcado também por resistências, pelas

lutas dos movimentos sociais, pelo heróico enfrentamento das adversidades, por parte dos

excluídos de setores da vida. Na ideologia de um projeto societário neoliberal, está

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implícita a concepção de que cada um por si deve “resolver” sua vida sendo responsável

por seu fracasso ou sucesso. Isso perpassa as diversas relações que se estabelecem nos

grupos da sociedade.

A exclusão é resultado de um processo social que privilegia aqueles que tiveram

oportunidades de desenvolverem as potencialidades da expressão humana. Alguns estão

dentro do círculo social que se fecha em torno de uma minoria privilegiada. Outros tantos

estarão fora, excluídos, segregados. Para ANDERSON, que faz um balanço do sistema

político neoliberal, na contemporaneidade, acontece o seguinte:

“Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século como o neoliberal hoje. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes. A tarefa de seus opositores é a de oferecer outras receitas e preparar outros regimes” (1996 p.23).

O “regime” neoliberal é hegemônico, impõe à sociedade seu rítimo, sua disciplina e

uma determinada ordem. Todavia sempre há na realidade humana e nas construções sociais

um dinamismo que lhe permite ir desconstituíndo o que é dado no social. Se há uma

imposição de um modelo de vida, há também a força daqueles que podem se contrapor

pela consciência de suas reais condições de vida e pelas suas organizações e articulações

coletivas. As pessoas portadoras de deficiência se organizaram em várias partes do mundo

e através de seus movimentos e de suas práticas coletivas foram remodelando os matizes

de uma sociedade excludente, que os subjuga em suas subjetividades.

Sabe-se que muito ainda tem que se avançar no crescimento da consciência e nos

processos de conscientização acerca do reconhecimento das deficiências/diferenças na

engrenagem da vida social. Entretanto, todos os avanços e conquistas na área da inclusão e

a perspectiva da cidadania se devem aos movimentos daqueles que em condições de

desigualdades se articulam historicamente para revolucionar seu cotidiano e o curso de

nossa história.

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A exemplo disso, se tem o “ideal da igualdade de oportunidades” em todos os setores da

vida, que foi oficialmente promulgado pela ONU no ano de 1981. Posteriormente, esse

documento, vai servir de base para a Assembléia Geral da ONU aprovar o documento de

normas sobre a “equiparação de oportunidades”. Esses documentos pontuaram a exigência

de novas práticas na sociedade. Essas práticas deverão ser inclusivas, em respeito e em

consideração à diversidade da condição humana. As deficiências/diferenças deverão estar

incluídas no processo de organização do diversos setores da vida em comunidade.

SASSAKI (1997, p.148-3) defende a idéia do “desenho universal” como uma evolução

do desenho acessível. As construções acessíveis, com desenho arquitetônico sem barreiras,

estão sinalizando o lugar destinado exclusivamente para pessoas portadoras de deficiência.

Esse autor chama atenção para o aspecto contraditório que há nesse desenho. Se de um lado

é “muito bem vindo” para as pessoas portadoras de deficiência por se adaptarem a sua

realidade e lhes permitir o acesso, de outro lado ainda são estigmatizantes. O “símbolo

Internacional de Acesso” delimita o espaço destinado aos portadores, e de certa forma

marca um espaço institucional especial, lembrando o "modelo médico".

No desenho universal a arquitetura seria pensada de forma inclusiva considerando as

necessidades em geral das pessoas, tendo em vista suas diferenças e peculiaridades. Se o

planejamento arquitetônico fosse inclusivo, poderia dar conta de um maior número de

diversidades, de necessidades. O desenho inclusivo, pensado para todas as pessoas, deverá

considerar os déficits físicos, sensoriais tanto quanto qualquer outra necessidade humana

(SASSAKI, 1997, p.141).

Esse tipo de desenho é um ideal que já está sendo propagado pelos movimentos

inclusivistas e deve estar presente no debate sobre a questão das diferenças. A importância

dessa discussão se reflete no fato de demonstrar a possibilidade de um desenho universal

em contraposição aos modelos segregadores, que colocam uma delimitação entre os

portadores e os não portadores de deficiência. Sendo assim não haveria nada para registrar

o lugar do "especial".

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O debate em torno das possibilidades da acessibilidade conduz a um repensar do

conceito de autonomia. Não se deve reduzir o conceito de autonomia a uma perspectiva de

possibilidades individuais. Entende-se que esse conceito é mais bem concebido de forma

relacional, ou seja, considerando as circunstâncias contextuais dos sujeitos e suas múltiplas

imbricações. Isso quer dizer que o indivíduo para conquistar sua autonomia deve estar

inserido em um contexto que propicie igualdade de condições para tanto. As condições de

cada contexto específico sinalizarão as interdições que impossibilitam a inserção das

pessoas, com maior ou menor grau de autonomia.

Se o contexto for por demais impeditivo, pelas barreiras que colocam diante das

deficiências/diferenças, como se poderá falar em autonomia? Autonomia é também um

conceito relacional, que depende das relações entre os sujeito e a estrutura de seu ambiente.

O sujeito é capaz de transformar o contexto, de resistir às barbáries da cultura. Entretanto,

ao analisar o conceito de autonomia dever-se-á levar em conta além do indivíduo e sua

potencialidade, a forma como foram organizados, na sociedade, seus setores de acesso, ou

seja, a materialidade do social. Na dialética do cotidiano entre indivíduo e sociedade, a

individualidade mediada pela coletividade, será a expressão do coletivo como

representativo da autêntica individualidade, uma vez que o coletivo seja a expressão da

maioria, e não lei da minoria, ter-se-á uma sociedade humana.

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I I I - POLÍTICAS PÚBLICAS E A GARANTIA DE CIDADANIA E PERTENCIMENTO

Até o presente momento deste trabalho foram percorridos os conceitos, o entendimento

acerca dos significantes da temática em torno da diversidade humana. As relações sociais

foram consideras fator crucial para a análise das questões referentes aos indivíduos e suas

demandas singularizadas. Discutiu-se a conecção entre autonomia dos sujeitos e as

condições contextuais estarem mais ou menos favoráveis ao desenvolvimento da mesma.

Em função da grande interdição, posta no social, às singularidades, se faz necessário que

sejam construídas formas de inclusão social para atender àqueles que ficaram de fora.

O presente capítulo vai apresentar uma política pública para pessoas portadoras de

deficiência e de altas habilidades no Estado Do Rio Grande do Sul. A construção dessa

política é o resultado de vários movimentos sociais e vem a ser consolidada na gestão

pública de um governo popular, no período de janeiro de 1999 a janeiro de 2003. No

período de janeiro 1999 a agosto de 2002 se desenvolveu a pesquisa que dá origem a esta

tese de doutorado, tendo como um de seus campos de investigação a FADERS, que é

atualmente, a gestora dessa política pública. Nas linhas que seguem será desenvolvida toda

essa experiência de investigação e prática social e profissional.

3.1 PORTADORES DE UM SIGNIFICADO SOCIAL: EXCLUSÃO/INCLUSÃO NO CASO DAS

DIFERENÇAS VISIVELMENTE APARENTES

Pode-se constatar diariamente, conforme os padrões da sociedade, que o ser humano se

faz humano quando não se diferencia. Nesses padrões não é adequado apresentar a

incompletude, natural à espécie humana. “O homem seria homem se não fosse surdo, se

não fosse cego, se não fosse retardado mental, se não fosse negro, se não fosse

homossexual, se não fosse fanático religioso se não fosse indígena, etc. Nada mais

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absurdo” (SKLIAR, 1999, p.11). A incompletude é uma característica das pessoas, porém

é pouco tolerada ao se mostrar de forma visível e explícita. As pessoas portadoras de

deficiência foram (conforme visto no capítulo dois) relegadas à confinação em instituições

segregadoras, especializadas, fechadas, distantes das cidades, por demonstrarem de modo

visível essa incompletude.

O fato constatado acima significou que àquelas pessoas viveram por muito tempo, na

história, de modo a estarem apartadas do convívio com as demais pessoas da sociedade.

Seu contexto era segregatório e reservado àqueles outros considerados seus “iguais”. Nessa

situação, o significado social das pessoas portadoras de deficiência esteve permeado por um

olhar que não percebeu, na diversidade, a condição de ser humano. Falar em inclusão das

pessoas portadoras de deficiência demonstra o fato de um segmento populacional desta

sociedade, estar de fora da mesma. Pretende-se a inclusão, pois o que se passa no cotidiano

social é um brutal processo de exclusão, de expulsão das pessoas portadoras de deficiência

do convívio da sociedade.

Por um princípio humano a inclusão de qualquer pessoa em seu contexto deveria ser

uma condição natural de vida, algo que necessariamente deveria acontecer com todos os

sujeitos e não deveria estar em questão. Como pode ser discutido se as pessoas devem ou

não pertencer ao seu meio? Os processos sociais de exclusão são uma inversão do valor

humano, desconsiderando esse valor como único como primeiro.

Infelizmente a inclusão é uma questão não resolvida nos processos de convivência entre

as pessoas “ditas normais” com aquelas que se apresentam fora desse padrão de

“normalidade” e só faz sentido ter na pauta dos debates sociais essa temática, porque a

exclusão é uma realidade vivenciada por aqueles que apresentam singularidades mais

marcantes. Inclusão e exclusão são os dois lados de uma realidade desumana, presente

ainda hoje, como resultado da herança cultural do desconhecimento acerca das diferenças.

Seguindo o curso da história a palavra inclusão é posterior a palavra integração social.

Uma vem para superar à outra num sentido progressivo do convívio entre as pessoas. Sabe-

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se que posteriormente ao tempo da eliminação (em algumas culturas) das pessoas

portadoras de deficiência veio à fase asilar e segregadora. A superação da fase segregatória

se dá a partir do debate em torno da necessária integração dos portadores de deficiência no

contexto das relações sociais. As diversas instituições da sociedade começaram a aprender

a lidar com as diferenças de maneira a procurar um conhecimento específico, especializado

na área, e assim as instituições passam a se especializar, se tornando “especiais”. Assim

foram surgindo à escola especial, as classes especiais, os clubes sociais especiais.

Conforme SASSAKI (1997, p.31), a partir do final da década de 60 (do século XX)

houve um movimento para integrar as pessoas portadoras de deficiência no trabalho, na

família, no lazer, no sistema de ensino. Inicia-se, assim, uma nova abordagem sobre a

questão das diferenças, na qual o objetivo é a inserção do portador de deficiência em seu

contexto de vida. O que vai acontecer, nessas circunstâncias de integração, é uma ruptura

com o velho padrão de exclusão e segregação. Entretanto, existe uma questão importante a

ser ponderada nesse processo:

“A integração constitui um esforço unilateral tão somente da pessoa com deficiência e seus aliados (a família, a instituição especializada e algumas pessoas da comunidade que abracem a causa da inserção social), sendo que estes tentam torná-la mais aceitável no seio da sociedade” (SASSAKI, 1997, p.34).

A integração social ainda segue a lógica do chamado “modelo médico da deficiência”

que ressalta a patologia do sujeito, visando sua adaptação ao sistema da sociedade. Nesse

sentido, as pessoas portadoras de deficiência devem fazer um grande esforço de superação

pessoal para se capacitar ao convívio no meio ambiente. Ainda não se discute a necessária

adaptação da estrutura social, a acessibilidade do desenho arquitetônico das cidades e a

importância da ruptura com o padrão de normalidade, instituída pelo conjunto de normas e

valores que regem o modo de organização da sociedade. Em tal perspectiva, os diversos

setores da sociedade ficam isentos ainda de serem repensados, em sua forma de

organização e em suas práticas para atenderem aos direitos das pessoas portadoras de

deficiência.

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As décadas de 60, 70,80 (século XX) propiciaram o desenvolvimento dos princípios da

integração social. A partir de 1980 e durante a década de 90 é que se começa a repensar e

construir outros princípios que vão orientar a concepção da inclusão social. Um importante

princípio que orientou a perspectiva da integração social foi o chamado princípio de

“normalização” que pressupunha um ambiente mais comum ou normal à cultura das

pessoas portadoras de deficiência. Dá-se início ao processo de ruptura com a idéia de que

tudo tem que ser “especial”. O outro princípio dessa perspectiva é o da inserção, ou seja, as

pessoas devem estar inseridas no seu meio e não em instituições fechadas.

Quando se começa a pensar nas implicações dos processos sociais na questão das

diferenças, outros importantes princípios vão sendo propagados e vão orientar a perspectiva

da inclusão, tais como: “autonomia”, “independência” e “equiparação de oportunidades”.

Esses princípios estão presentes no relatório da ONU (1994). A origem desse documento

está nos movimentos sociais, liderados por grupos de pessoas portadoras de deficiência que

já vinham trabalhando com o movimento de vida independente e reivindicando o direito de

reconhecimento dessas questões (SASSAKI, 1997, p.36-8).

Os documentos internacionais da ONU, que apresentam relatórios com representações de

vários países do mundo, instituem em 1992, “um programa de ação mundial para as

pessoas com deficiência”, esse programa é orientado pelos princípios da “igualdade” e

“equiparação de oportunidades” (ONU, 1992). O principio de “equiparação de

oportunidades” pressupõe um ajuste do meio ambiente ao sujeito, uma vez que requer dos

diversos setores da sociedade uma maior disponibilidade para todos.

A igualdade de direitos para todas as pessoas demanda investimento em acessibilidade

para incluir as diversas questões das diferenças. A acessibilidade pode se traduzir pela

inclusão da escrita em Braille, da linguagem dos sinais e do rebaixamento dos níveis nas

ruas. Inicia-se, assim, a implicação dos segmentos sociais no processo de propiciar a

qualidade de vida e a possibilidade de expansão das potencialidades daqueles sujeitos até

então considerados “incapazes”, "desajustados”. A sociedade e seus meios de acesso à

participação dos indivíduos começa a ser pensada, questionada. A partir desses movimentos

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da própria sociedade surge a exigência de uma nova lógica de organização dos setores e

serviços comuns da rede social.

Segundo SASSAKI, “neste final de século, estamos vivendo a fase de transição entre a

integração para a inclusão” (1997 p.43). A inclusão se pauta no princípio de

reconhecimento da diversidade da condição humana, pois, repensa a condição contextual

dos sujeitos, aceitando suas diferenças, considerando-as, incluindo-as na organização da

vida social. A partir desses conceitos vai se delineando uma nova perspectiva de olhar para

o ser e o seu contexto, em que o pertencimento de cada um a sua comunidade passa ser

visto como um direito. Todas as pessoas têm o direito de fazer parte deste todo no qual se

desenvolvem enquanto seres do mundo.

MARX, pensador do século XIX, já dizia que o “indivíduo é o ser social” e expressou

esta idéia na seguinte formulação: “A vida humana individual e a vida-espécie não são

coisas diferentes, conquanto o modo de existência da vida individual seja um modo

necessariamente mais específico ou mais geral da vida individual” (1983 p.119). Este

pensamento parece expressar uma imbricação muito profunda entre o ser e seu conjunto seu

contexto. O indivíduo único portador de sua individualidade deve estar incluído nesse

conjunto, sob pena de desumanização das relações da sociedade.

Todavia, acompanhando ainda o pensamento marxiano, há um modo “necessariamente

mais específico” na existência individual apesar da imbricação com o contextual. É

justamente a característica específica que singulariza o ser humano, o diferencia de outro

ser humano, e que deveria ser reconhecida e contemplada pelo contexto. A relação dialética

entre o ser e seu mundo remete ao entendimento de que toda e qualquer problemática

humana é perpassada pelas relações sociais. De um lado, o contexto é integrador do sujeito,

faz parte de seu desenvolvimento para se tornar mais humano. Por outro lado o sujeito

precisa estar além do seu contexto, acima de tudo, preservando sua integridade individual,

que não é passível de padronização nem de coletivização.

Não é possível conservar, nos dias de hoje, uma opinião que centralize a patologia no

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sujeito. Não se pode mais considerar o "déficit", seja físico, sensorial, intelectual como o

todo ou o aspecto principal de uma pessoa. Faz-se necessário o reconhecimento da

importância de cada singularidade do sujeito e entender que a problemática, que a real

deficiência se localiza nas relações sociais e na estrutura da sociedade que, muitas vezes,

está impedindo a expressão e o exercício da diversidade. Não importa se há algum déficit, a

perfeição não existe mesmo. Todas as pessoas têm o direito de fazer parte deste mundo,

afinal a vida social deveria e deverá ser feita para os seres sociais que cada sujeito

representa.

É isso que parece estar na base, na filosofia da nova política pública para pessoas

portadoras de deficiência e de altas habilidades e é isso que o movimento organizado desse

segmento da população está reivindicando que seja garantido na prática dos atendimentos,

no cotidiano institucional e nas demais articulações que serão feitas pela instituição hoje

responsável no Estado do Rio Grande do Sul por essa política. Essa instituição serviu como

o cenário onde se desenvolve parte da pesquisa do presente estudo.

3.2 A FADERS COMO CAMPO DE PESQUISA: SEU SIGNIFICADO SOCIAL

O princípio que conduz aos percalços da compreensão de uma nova forma de pensar o

trabalho institucional e extrainstitucional na questão das chamadas pessoas portadoras de

deficiências é à busca de um projeto político que priorize a cidadania e a inclusão social. A

seguir, será situado, o contexto institucional no qual a investigação foi aprofundada, que se

denomina FADERS – Fundação de Articulação e Desenvolvimento da Política Pública para

Pessoas Portadoras de Deficiência e de Altas Habilidades no Rio Grande do Sul.

A FADERS vem ordenando suas ações de atendimento especializado às Pessoas

Portadoras de Deficiência – PPD e às Pessoas Portadoras de Altas Habilidades – PPAH. A

partir de 1989 a Fundação passou por uma reforma institucional, visando uma ação mais

dinâmica e humanista. Com objetivo de alterar as tradicionais atitudes assistencialistas para

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dar lugar a uma política de direitos humanos, procurando garantir aos sujeitos “portadores

de deficiência” e de altas habilidades, seu lugar de direito e de fato na sociedade, adotando

dessa forma uma política de inclusão. Essa Instituição está vinculada a Secretaria de

Educação do Estado do Rio Grande do Sul, com personalidade jurídica de direito privado,

autonomia administrativa, financeira e na gestão de seus bens.

No final do ano de 1998 houve a eleição para governador do Estado, com a vitória do

Partido dos Trabalhadores, que assumiu o governo em janeiro de 1999. Essa vitória

eleitoral teve repercussões significativas para a Fundação que é subordinada, em última

instância, ao governo do Estado. É um governo popular que assume a esfera estadual,

orientando-se “pelo princípio de um governo democrático, popular e participativo no qual

a sociedade civil organizada tem lugar assegurado na formulação de políticas públicas e

na gestão dos recursos públicos” (Programa de Governo, 1999, p.1).

Na gestão Democrática Popular (1999 a 2003), foi definido um “Programa Mínimo de

Governo” que propõe: definição de uma política Estadual Global, não restrita apenas às

“áreas tradicionais” da Saúde, Educação e Assistência Social, para integração das pessoas

portadoras de deficiência (PPD) e de altas habilidades (PPAH), com a participação direta

das mesmas; garantia da participação das PPD e das PPAH, por meio de suas entidades

representativas, no planejamento, execução e avaliação desta política estadual via conselhos

ou organismos similares; definição e regulamentação da lei relativa aos direitos dos

portadores de deficiência e altas habilidades; regulamentação de lei prevendo mecanismo

para punir aos que discriminem socialmente as PPD e PPAH; adoção pelo governo, em

cada uma das suas políticas públicas setoriais, dos preceitos contidos no “Programa de

Ação Mundial para as Pessoas Portadoras de Deficiência” da Organização das Nações

Unidas – ONU.

Historicamente a questão da deficiência vem sendo tratada de forma clientelista,

paternalista, oferecendo alternativas na linha do “mero atendimento”, sem propostas de

efetiva mudança social, sem uma política ampla e ao mesmo tempo específica para rever os

impedimentos que a vida social traz às pessoas portadoras de deficiência. O meio social é

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padronizado e segregador, dificultando ainda mais o acesso das PPD, a uma vida de

participação plena e igualdade de condições.

A sociedade está estruturada de forma inadequada às necessidades dos sujeitos

portadores de deficiência e de altas habilidades, não está organizada de maneira a

contemplar as diferenças dos sujeitos sociais. São muitas as barreiras sociais, econômicas,

políticas e culturais. Será preciso construir políticas públicas que visem promover a

“Equiparação de Oportunidades”.

O Programa de Governo do Estado do Rio Grande do Sul (FADERS, 1999), consolidou

novas propostas de atuação a partir do questionamento do fato dos programas de governo,

vigentes até então, serem inadequadas às necessidades dos sujeitos portadores de

deficiência. Tal inadequação foi expressa na forma restrita dessas políticas contemplarem

apenas às áreas da Educação, Saúde e Assistência. O que vinha acontecendo era uma

redução das necessidades do sujeito, excluindo-se outros significativos aspectos da vida

dos portadores de deficiência não foram contemplados por programas de governos

anteriores.

“É como se o universo de necessidades do indivíduo portador de deficiência coubesse dentro da Saúde, Educação e Assistência Social, como se esse indivíduo, por ser portador de uma ‘diferença restritiva’ não tivesse nenhuma necessidade nas áreas do trabalho, da agricultura, do transporte, da cultura, do desporto e do lazer, entre outras mais” (FADERS, 1999, p.3).

A origem histórica da FADERS está atrelada à divisão de ensino especial da Secretaria

de Educação do Estado do Rio Grande do Sul. No ano de 1973 foi criada a FAERS

(FUNDAÇÃO RIO-GRANDENSE DE ATENDIMENTO AO EXCEPCIONAL). Esta fundação recebeu

a incumbência de supervisionar e acompanhar as escolas estaduais especiais desse Estado.

Em 1988 a FAERS foi extinta sendo criada em sua substituição a FADEDS, naquela época

com a função de coordenadora da educação especial no Estado. O problema que aqui surge,

na própria origem desta instituição, remete ao próprio sentido da educação especial, como

já foi visto no capítulo dois. Conforme esse estudo concluiu-se que na educação especial há

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uma preocupação em "assistir" as demais áreas da vida do sujeito, fato esse que não

acontece no ensino dito "normal".

A educação, nesta perspectiva, requer atenção a outras incumbências extrainstitucionais

(assistência social, saúde, trabalho, etc.). A educação "comum" não se responsabiliza pelas

outras necessidades dos alunos. A educação especial com a preocupação de atender

aspectos variados da vida do sujeito acumula encargos e deixa de lado seu aspecto essencial

que é garantir o desenvolvimento cognitivo, a aprendizagem. As controvérsias do ensino

especial sugerem o equívoco de sua própria institucionalização. O que acontece é a falência

de um modelo de ensino que foi criado de modo a produzir a segregação das diferenças, em

um momento crucial da vida do sujeito, que é o ingresso escolar. Quando o sujeito deveria

ter a oportunidade de exercer sua singularidade compartilhando-a com a outras

diferenciadas singularidades, ele é impedido.

Aqui o social, através de suas instituições consolida uma interdição significativa, que

isola, segrega, separa e impossibilita a expressão e a convivência com as diferenças de cada

um. As escolas especiais têm funcionado como "muro" que separa os ditos "normais"

daqueles que são considerados fora da normalidade. As contradições históricas da FADERS

remetem-se a essa ligação com o ensino especial. Ao segregar um determinado segmento

da sociedade, por colocá-lo no lugar de especial, se "tornou necessário" criar uma estrutura

que atendesse "especialmente" aos sujeitos em questão.

O espaço público, o Estado passa a responder a esta demanda de forma separada. As

repartições públicas que assim se fazem por áreas de necessidades da população passam a

atender por características da população. No caso das pessoas portadoras de deficiências, é

criada uma estrutura para atender especificamente "aos deficientes". Aqui está o equívoco e

o que foi qualificado pela atual administração da FADERS como "mini Estado". Segundo

se pode constatar a partir da opinião que segue:

"A FADERS se constituiu a partir de uma concepção de atendimento baseada no entendimento de que, por suas especificidades, as demandas das PPD e PPAH deveriam ser solucionadas através de procedimentos e ações isoladas das ações dirigidas à população em geral. Este

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entendimento, de atender em separado, ainda que tivesse o objetivo de inserir socialmente as PPD, oferecendo serviços de habilitação e ou reabilitação, educação especial, etc. acabou por criar uma espécie de “mini Estado” exclusivo para esta população" (Entrevista realizada em nov. de 2001).

O Estado deveria atender a todos sem demarcação de um lugar especial a fim de

promover cidadania e "equiparação de oportunidades". O fato de o atendimento acontecer

de forma em separado para pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades

constitui a FADERS como uma espécie de gueto, um mundo à parte do convívio social.

Dessa forma, a lógica do mini Estado exclusivo para aquela população, cria uma espécie

"mundinho especial" que acaba segregando. Não há como incluir socialmente, as pessoas, a

partir de um processo reabilitatório que separa e exclui do convívio. Um outro aspecto

problemático deste modelo institucionalizado de atender às deficiências/diferenças pode ser

avaliado e sintetizado na opinião de um funcionário da área de assessoria de planejamento

da FADERS:

"Este modelo não consegue dar conta da demanda, pois, por um lado, a Fundação não está estruturada para atender a demanda crescente regionalmente, não possui orçamento suficiente. E, por outro lado desobriga as demais instituições e a própria sociedade de se relacionar, acumular conhecimento ou mesmo aceitar e conviver produtivamente com a diferença. É fundamental para romper este ciclo, capacitar órgãos públicos e privados para o atendimento desta população, junto com os demais, oportunizar a todos uma relação cotidiana com a PPD e PPAH para desmistificar medos e incompreenções" (entrevista realizada em jan/2002).

A criação de uma instituição que se ocupou especificamente com as questões relativas a

um segmento da população aconteceu em um tempo no qual o procedimento segregatório

era tido como o mais adequado para atender às pessoas portadoras de deficiências. Na sua

trajetória de mais de 20 anos, instituição FADERS vem tentando se reordenar, buscando

consolidar uma concepção de cidadania do seu público-alvo o que sistematicamente vem

sendo discutido entre os seus trabalhadores e seus dirigentes. Na atual administração estão

sendo constituídos importantes avanços para a concretização de tal mudança.

A atual direção da Fundação teve como meta: constituir a FADERS como comando

único definidor da política para as pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades.

Dessa forma ela se torna à instância de interlocução com a sociedade civil, definidora e

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articuladora das ações de governo para esse setor social, formadora e capacitadora de

recursos humanos para o conjunto do governo. Esse é o contexto de propostas em que se

encontrava a FADERS na ocasião da pesquisa.

Apesar das propostas de mudança, a instituição apresenta em seu funcionamento

institucional todo um legado histórico cultural, no qual se faz presente um cotidiano de

práticas muito fragmentárias. Tais práticas ainda não contemplam ações mais globais e

específicas, ou seja, que considere tanto a amplitude das necessidades, quanto a

singularidade de cada sujeito social. Ações assistencialistas por muito tempo trataram a

questão da deficiência, se reportando mais a um “não-sujeito” do que a um sujeito que tem

limitado alguma faceta de sua vida social. Na “Função de Execução Especializada

Complementar”, a FADERS, possui 11 (onze) unidades de atendimento que desenvolvem

suas atividades nas áreas de prevenção, estimulação precoce, diagnóstico e tratamento,

escolarização e preparação para o trabalho. A seguir as unidades da FADERS, em POA:

Centro de Avaliação, Diagnóstico e Estimulação Precoce – CADEP;

Centro de Treinamento Ocupacional de Porto Alegre – COPA;

Centro de Atendimento Especializado para Deficientes da Audição – CAEDA;

Escola de 1º Grau Professora Lígia Mazzeron para Educação Especial

Centro Louis Braille – CLB;

Escola de 1° Grau Incompleto INTERCAP;

Núcleo de Atendimento da FADERS na Zona Sul – PAM/3;

Núcleo de Atendimento ao Portador de Síndrome do Autismo;

Núcleo de Atendimento às Pessoas de Altas Habilidades.

As unidades da FADERS se constituem em um potencial campo de trabalho para os

trabalhadores da área social, em que os mesmos desenvolvem suas ações em conjunto com

equipes técnicas de diferentes áreas. Nessa prática social, há toda uma luta por um trabalho

de humanização das relações sociais que envolvem os sujeitos em questão. A FADERS, até

o presente momento, ainda se mantém com um trabalho fragmentário, do ponto de vista do

conjunto de suas Unidades. Cada Unidade tem uma ou mais equipes de trabalho, que por

vezes, tem uma metodologia diversa da outra, inclusive diferenças bem marcantes nessas

metodologias. Uma equipe, por exemplo, trabalha centrando sua ação no aspecto clínico

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dos atendimentos, sem muita referência às redes sociais. Uma outra equipe trabalha

fundamentalmente com as redes, com a concepção do trabalho contextual.

Outro aspecto marcante da instituição é que cada unidade, núcleo ou escola trabalha

especificamente em uma única área da deficiência, como foi descrito acima. A integração

entre as diversas áreas da deficiência não é a ideal. O fluxo de comunicação e parceria entre

os diversos setores, também, nem sempre corresponde ao esperado. Todos estes aspectos

críticos, estão na pauta do dia das reflexões do corpo técnico e se pretende transformar essa

realidade institucional, na possibilidade de uma FADERS coesa, com uma integridade

maior. Os aspectos históricos e conjunturais das administrações anteriores, como foi visto,

contribuíram para esse modo de organização fragmentária da dinâmica institucional.

Existem, entretanto, projetos e vontade política para que essa realidade se torne diferente.

No processo desta nova gestão se problematizou algumas questões da prática social de

implementação de um novo projeto político na FADERS. Houve uma intenção política, por

parte dos novos dirigentes, de modificar a realidade institucional, na qual a mesma

começasse a representar uma ruptura com um histórico segregador. Por outro lado, por

parte de seu corpo funcional, há o entendimento de que os profissionais, ao longo de todos

esses anos, vêm acumulando um saber específico na área das diferenças. Muito embora,

uma certa fragmentação nas ações institucionais seja característica do contexto das práticas

de trabalho dos profissionais, isso não tira o mérito do conhecimento adquirido nessas

ações. Sendo assim a grande discussão atual acontece em torno da possibilidade do trabalho

técnico da FADERS, a partir de suas unidades de atendimento se tornarem "unidades de

referência" no Estado de um trabalho desenvolvido na área das deficiências.

"A FADERS, hoje, é o gestor estadual de uma política de direitos – a Política Pública Estadual para PPD e PPAH – e sua principal atribuição é promover a garantia dos direitos desta população propondo e articulando a implantação desta política. Em decorrência, todo o trabalho da FADERS neste sentido é, principalmente, extrainstitucional. Mesmo no que se refere ao atendimento direto nas Unidades, a parceria com as ONGs e OGs se faz necessária, na medida em que o atendimento prestado visa a constituição de espaço de pesquisa e produção de conhecimento, o que implica em integração com outras instituições e com a população alvo da política, principalmente" (Entrevista realizada em nov. de 2001) .

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A dinâmica institucional está passando por um processo de reordenamento técnico para

adequação interna da instituição à nova lei da FADERS. Em setembro de 2001 foi aprovada

a nova lei da FADERS. A mudança da legislação vem adequar a lei aos movimentos da

sociedade que questionam as históricas formas de segregação institucional (Ver no anexo 4

a nova lei da FADERS). Em cada unidade estão sendo realizados vários debates sobre o seu

funcionamento e os novos parâmetros institucionais. Esse espaço tem sido nomeando de

“Interunidade”.

Os profissionais estão tendo a possibilidade de refletir sobre suas práticas, enquanto se

estabelece a comunicação entre as diferentes unidades da FADERS. Aproveita-se esse

espaço fecundo de debate como um dos campos de pesquisa, no qual foi possível

aprofundar a reflexão em torno da temática: A diversidade da condição humana sob a ótica

das relações sociais e seus processos de exclusão/inclusão que envolve as

deficiências/diferenças.

Com a técnica de seminário e de entrevistas foram abordadas as Unidade da FADERS,

conforme será explicitado no capítulo cinco deste trabalho (que trata da metodologia de

pesquisa).Dessa se consolida um debate sobre o novo perfil da instituição, em que se

chegou a determinados resultados, os quais a seguir serão expressos através algumas falas

selecionadas. No debate com os profissionais que trabalham na área da educação,

destacam-se algumas dificuldades que estiveram presentes na reflexão e avaliação dos

técnicos da Fundação:

"As outras crianças da escola regular não aceitam as crianças diferentes. As professoras, por vezes, reforçam esse mal estar. A primeira rejeição começa em casa, portanto temos que fazer um grande trabalho de sensibilização para que esta criança seja vista em seu potencial: mostrar seu trabalho, visitar outras escolas, fazer parcerias com diversos setores dos órgãos públicos e privados (centro cultural, CTG, Jardim Botânico, etc..); levar as crianças para rua; receber visita na escola de outras escolas de ensino regular; permitir que a criança portadora de deficiência mental seja vista e possa conviver com os outros. No ensino regular os professores não estão preparados para trabalhar com as deficiência. Sentem medo e rejeição e aí está a importância de nosso trabalho" (seminário realizado em dez. de 2001). "Nós os profissionais da educação sempre fomos os que mais excluímos. Somos responsáveis pela exclusão. Ainda bem que estamos nos

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dando conta disso. Quando o pai usa a lei para forçar o filho a ficar "incluído" na escola regular, a criança fica excluída da turma, o professor nem sempre ajuda a incluí-lo" (seminário realizado em dez. de 2001).

Uma dificuldade muito comum que fica expressa no atendimento à crianças portadoras

de deficiência se refere ao fato das escolas muitas vezes solicitarem o apoio técnico da

FADERS para manter as crianças na escola. Ou seja, o que acontece é um condicionamento

da criança ao tratamento para manter-se na escola. Isso é uma situação que demonstra a

dificuldade da inclusão e da permanência das crianças na escola.

Há um processo "sutil" de exclusão e até de expulsão em função do comportamento

diferenciado de crianças portadoras de alguma deficiência. Essas crianças são

estigmatizadas, deixadas de lado. Nesse sentido o debate entre os profissionais da FADERS

aponta a necessidade de um respaldo substancial em várias políticas inclusivas para que se

garanta a permanência das crianças nas escolas, contemplando suas diferenças. Faz-se

necessário uma ampla interlocução entre os diversos setores do governo para garantir a

inclusão.

De outra forma a instituição FADERS deve trabalhar colocando em pauta o potencial do

sujeito, mostrando seu trabalho, sua capacidade criativa e de autonomia. É um amplo

trabalho que começa com as famílias, perpassando as diversas áreas da socialização. No

caso dos portadores de deficiência mental, por exemplo, ainda são muito marcantes os

preconceitos que levem a uma imagem da pessoa incapacitada para o convívio com os

demais, impossibilitadas da capacidade de criatividade e produtividade. Os depoimentos a

seguir refletem esse aspecto, respectivamente de um funcionário da FADERS e de um

usuário:

"Uma professora levou as crianças de uma escola com portadores de deficiência mental para uma atividade na praça e uma senhora que estava com seu filho se retirou, retirando até o cachorro do local. A impressão que sempre fica é essa que as pessoas rejeitam, que elas tem medo dessas crianças diferentes, como se essas crianças não"servissem" para o convívio com os "normais" (seminário realizado em out. de 2001).

"As pessoas deviam entender que nós não somos excepcionais, todo mundo é irmão, não devia ter tanta discriminação, outro dia eu fui dar um

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beijo no rosto de uma senhora e ela virou a cara" (entrevista realizada em out. de 2001).

Os depoimentos acima sinalizam as barreiras sociais que distanciam as pessoas por suas

condições singulares. Sinalizam também a reflexão que os profissionais da FADERS estão

fazendo acerca da necessidade de trabalhar para além da instituição e para além da pessoa

portadora de deficiência. É um trabalho com a sociedade, suas organizações, suas

instituições que precisa ser concretizado. Não são apenas as condições materiais da

sociedade que precisam ser trabalhadas, também sua condição simbólica, suas

representações, especialmente no que diz respeito às deficiências É preciso aprender uma

outra forma de olhar para a diversidade das características humanas e as reconhecer como

parte do mundo humano e não como "um mundo à parte".

É, necessário, nesse sentido trabalhar na construção de espaços de cidadania, que podem

se traduzir por participação, pelo exercício do pertencimento do sujeito ao seu meio. Há um

certo consenso entre os trabalhadores da FADERS, sobre a análise, que se faz necessário

investir em um trabalho que propicie a visibilidade da pessoa portadora de deficiência nos

espaços do social, a fim de as pessoas não fiquem confinadas à instituição, separadas do

contexto. O depoimento de uma assistente social que segue exemplifica esse entendimento.

"Aqui no nosso centro de atendimento os usuários vêm a instituição como passagem, um lugar onde eles estão para o tratamento e depois voltam para suas casas. Não há mais aquela velha idéia de confraternizar na instituição, de fazer "festinhas", reuniões entre os "seus". Eles sabem que devem estar nas ruas, no social. Aqui é apenas um lugar de referência para o atendimento de suas questões específicas mas não para seu confinamento" (seminário realizado em abril de 2001).

Acontece um processo de reflexão, uma auto-análise por parte dos profissionais que se

dão conta dos processos de segregação que são criados na instituição. Na própria prática

dos profissionais de diferentes áreas que, por muito tempo reforçaram atitudes paternalistas,

que acabam esvaziando o sentido da cidadania em ações "cuidadoras" em um olhar para o

outro não o reconhecendo como um outro de potencialidade e possibilidades. Isso ficou

evidente no seminário em uma das unidades da FADERS, que trabalha com oficina para o

trabalho. Nesse debate a análise pontuou uma a reflexão sobre uma prática que hoje busca

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desenvolver atividades com pessoas portadoras de deficiência mental no sentido de uma

ocupação "mais adulta". Isso significa dizer que o trabalho vai se voltar para atender

aqueles usuários considerando sua capacidade de fazer escolhas, de dizer o que querem

desenvolver em suas atividades.

O espaço propiciado vai ser caracterizado como preparação para o trabalho e não mais

como uma escola para crianças grandes, como ocorria no passado. Sendo assim, ao invés de

se priorizar atividades festivas (tipo Juninas), a prioridade será promover seminários para

comemorar e debater sobre o significado do dia do trabalho. Essas mudanças de prioridades

vão mudando a prática institucional e o sentido dado à concepção das deficiências. As

pessoas portadoras de deficiência mental, em geral eram tratadas, (ainda são) como "eternas

crianças". Os métodos institucionais não avançavam no exercício de uma outra condição,

reduziam a possibilidade criativa a uma menoridade, infantilizando o sujeito.

Na linha de auto análise institucional pode se destacar também o entendimento que quer

romper com a imagem dos "profissionais do bem" legada aos que trabalham com pessoas

portadoras de deficiência. BRIZOLA (2000, p.188) menciona o fato do professor de

educação especial ser caracterizado, como um "indivíduo especial" para o atendimento aos

"especiais", um ser "benevolente e amável". Esse é um olhar lançado aos profissionais

dessa área que indicam a descaracterização do aspecto profissional, o substituindo pela

característica da "bondade", da "boa vontade".

Por detrás da idéia de que é necessário um "dom" especial para trabalhar com as

deficiências se colocam questões de desqualificação e superqualificação ao mesmo tempo

desse trabalho, conforme será demonstrado no que segue. O que está em pauta nesse

processo é o fato de acontecer uma redução dos "possíveis" profissionais que "estão aptos"

para o ofício, apenas os especialistas. Nessa perspectiva os lugares de atendimento, em

geral, sejam na área da saúde, da pedagogia, da psicologia e outras áreas interditam a

possibilidade de atendimento àqueles que são considerados "especiais". A conseqüência da

perspectiva da superespecialização nas áreas das deficiências é a exclusão.

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Em geral, o argumento utilizado pelos serviços públicos e privado para o não

atendimento das pessoas portadoras de deficiência é o fato de "não haver qualificação,

preparo para tanto". Como se a pessoa por portar uma deficiência fosse um ser à parte do

conjunto humano, precisando de uma tecnologia "tão especial", quanto sua suposta

condição "especial" de ser humano. Isso parece ser um grande resquício da idéia de

excepcionalidade, algo para além ou para aquém do humano.

Esse processo está hoje em um embrionário processo de revisão. De outro lado, os

profissionais que se "dedicaram" à área específica das deficiências, por serem considerados

requisitos de bondade, estão desqualificados no aspecto do profissionalismo. Os méritos

desses profissionais são interpretados como habilidade em lidar com uma situação menos

profissional do que "humanitária". Aqui acontece uma desvalorização do trabalho que é

visto como "capacidade de suportar o déficit" e não como produção de um processo de

trabalho, enquanto tal. Esses aspectos podem ser ilustrados na fala de uma pedagoga da

FADERS:

"Existem muitas frases que já ouvimos para caracterizar o que pensam do nosso trabalho, tais como: 'vocês são umas heroínas por abraçar esta causa; Deus vai recompensar vocês pela dedicação ao trabalho; Ainda bem que existem pessoas como vocês para realizar esta árdua tarefa'. Frases como essas demonstram que os profissionais não são respeitados tanto quanto não há respeito pela condição de cidadão de nossa clientela. Já é hora de mudar esta história" (seminário realizado em out. de 2001).

A política pública deve garantir a possibilidade da inclusão, deve penalizar os atos

discriminatórios. O trabalho técnico da FADERS deve estar voltado para uma lapidação da

sociedade para se adaptar ao sujeito portador de deficiência, se trata de um processo de

trabalhar as instâncias sociais, nas diversas ações institucionais e especialmente

extrainstitucionais. Esse é o resultado para o qual se encaminha a síntese do debate que

atualmente pode ser travado com aqueles que trabalham com a questão da deficiência.

A política pública e a lei em si não garantem a inclusão, se faz necessário, um trabalho

de face-a-face com as diversas instituições sociais para uma mudança de mentalidade e de

disponibilidade de mudança com a questão em pauta. Nessa perspectiva a FADERS, como

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articuladora da política pública da área das deficiências e das altas habilidades, tem a

função de organização de redes de atendimento, de articulação de fluxos de inserção dos

usuários de seu serviço na rede pública do Estado. Um outro exemplo, da preocupação

quanto a divulgação da política pública e do como se lida com a situação da deficiência, se

coloca no depoimento abaixo:

"É preciso perder o medo das deficiências, o medo de falar no assunto, o medo de saber como se lida com elas, de aprender como tratar de uma pessoa que é portadora de deficiência. Ela precisa de ajuda, o fato de ajudá-la não vai ferir sua cidadania. Precisamos ensinar a sociedade a trabalhar com esse assunto é a diferenciar que um cego quando vai atravessar uma rua precisa de ajuda, mas um cadeirante numa esquina parado não significa que esteja pedindo esmolas. O que tem que ser aprendido é que a pessoa mesma vai dizer como ela deve ser ajudada, são coisas básicas, mas que quem não viveu uma situação de deficiência desconhece. É por aí nosso trabalho educativo" (seminário realizado em set. de 2001).

Um aspecto polêmico e problemático, das reformulações institucionais, dizem

respeito ao fato da política pública contemplar tanto as deficiências quanto às pessoas com

altas habilidades (parte deste debate já foi apresentado no capítulo um desta tese).

Conforme já foi explicitado a FADERS é oriunda da educação especial e sendo assim,

como no modelo do ensino especial, trata das questões referentes às deficiências tanto

quanto da superdotação. Entretanto, há uma dificuldade institucional de incorporação da

demanda das altas habilidades. Em função da maior demanda vir das questões referentes às

deficiências e pelo fato das diferentes unidades da FADERS se ocuparem dessa demanda

há um processo de estranhamento quanto às altas habilidades. Todavia no debate com a

unidade que trata das questões referente à área da superdotação, há a seguinte

argumentação sobre o assunto:

"O problema dos portadores de altas habilidades é o fato de não ter reconhecido sua identidade na instituição, ele não é visto e portanto não é defendido, não é considerado, não é tratado. Na política pública para portadores de deficiência e de altas habilidades, este último fica em detrimento do portador de deficiência. Há uma disputa irracional, a política é para a deficiência e não para a diferença. Em 1999 se criou uma política pública para portadores de deficiência e de altas habilidades, na prática ainda não se viu muitos avanços para os portadores de altas habilidades (seminário realizado em dez. de 2001).

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A avaliação colocada acima é demonstrativa do descontentamento por parte daqueles

que colocam em pauta questões referentes às altas habilidades. É uma questão que não está

resolvida nessa política pública. A maior parte das ações está voltada para a causa das

deficiências. Concretamente o que se tem de ações se refere à capacitação na Secretaria de

Educação do Estado para trabalhar no ensino regular, considerando a especificidade de

alunos portadores de altas habilidades.

Há também um projeto que envolve várias secretarias do Estado aproveitando o espaço

do museu do Estado para colocá-lo à disposição dessa demanda. A conclusão desse debate,

trazida por aqueles que trabalham especificamente com esse segmento institucional, avalia

as ações como restritas se comparadas a todas as articulações que estão sendo

desencadeadas na área das deficiências. O sistema social exclui, retirando muitas vezes a

possibilidade de expressão da criatividade e do potencial, tanto para as deficiências como

para os talentos.

3.3 O SIGNIFICADO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA

A atenção à área das deficiências/diferenças sempre esteve na lateralidade da

preocupação dos governos. O esforço do governo atual, referente ao período da pesquisa, se

deu no sentido de situar a discussão no centro das preocupações e debates da política

pública desenvolvida pelo governo do Estado do RS para atender essa área. No segundo

seminário anual das políticas públicas para PPD e PPAH constata-se na declaração do

presidente do fórum permanente das políticas públicas para PPD e PPAH a expressão de

um sentimento de ambigüidade em relação ao avanço dessas políticas:

"De um lado o desenvolvimento da política para PPD e PPAH traz muitas mudanças às ações do governo e pequenas 'revoluções'. De outro lado há ainda muita exclusão da saúde, do trabalho, do lazer, da educação e de diversas áreas da vida das pessoas que portam deficiências e singularidades marcantes. Estamos avançado na política pública, entretanto, os avanços tornam-se pequenos diante da magnitude das

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dificuldades que foram criadas na sociedade ao longo da história para tratar destas questões (Diário de Campo, nov. de 2001).

O que se precisa é de uma política que garanta cidadania para superar a marca

assistencialista existente nas instituições que trabalham com a questão das deficiências. No

horizonte de uma nova política o norte indicado é: "as pessoas portadoras de deficiência e

de altas habilidades precisam de equiparação de oportunidades e não de amparo"

(Caderno de Resoluções 2001, p.5). Nesse sentido, a nova atribuição da FADERS, na

qualidade de gestora da política pública dessa área, esteve passando por um reordenamento

técnico para se adequar às novas atribuições políticas e a nova lei. Uma das maiores

controvérsias dessa Fundação é o fato de apesar de mencionar no próprio nome uma

abrangência de caráter Estadual, funciona apenas na capital porto-alegrense.

Todo o direcionamento do trabalho institucional desenvolve-se na cidade, ficando o

interior do Estado sem atendimento na área. BRIZOLA (2000, p.74), em seu estudo sobre a

política pública na área da educação especial, pontuava, de forma crítica, a situação da

história da educação especial estar reduzida a um enfoque porto-alegrense A mesma

situação foi reproduzida na história da FADERS. Ao longo dos 28 anos de existência da

FADERS uma parcela pequena de pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades

foram atendidas. Esse fato trouxe como conseqüência a pouca visibilidade institucional. A

nova política pública tem como objetivo tornar referência, de atendimento na área das

deficiências e altas habilidades, as unidades da FADERS. Há, também, a função de

articular a rede de atenção nessa área, construindo uma ampla interlocução com diversos

setores governamentais e não governamentais para qualificar a atenção às demandas da

área.

A FADERS se torna órgão gestor da política pública aproveitando os recursos do

Estado. No novo modelo de gestão foi instituído: O FÓRUM PERMANENTE DA POLÍTICA

PÚBLICA PARA PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA E DE ALTAS HABILIDADES. Esse

fórum presidido pela FADERS reúne instâncias do governo e da sociedade civil, as diversas

organizações e entidades representativas de pessoas portadoras de deficiência e de altas

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habilidades. (ver no anexo 4, a Legislação referente à pessoa portadora de deficiência, em

compêndio elaborado pela FADERS).

No Fórum acima mencionado foram debatidos todos os assuntos referentes a essa

política e as ações previstas e desenvolvidas, é uma instância de participação e deliberação.

Esse espaço de debate e proposição tem sido construído de modo a superar a lacuna de

atenção ao interior do Estado. De forma estratégica o Fórum funciona de forma rotativa,

sendo realizado em diversas regiões do interior do Estado. Dessa forma a política pública

pretende atingir o Estado como um todo e superar seu traço de atenção porto-alegrense (ver

no anexo 5, o documento da FADERS: o significado do Fórum e as ações desenvolvidas a

partir do mesmo). O depoimento abaixo é demonstrativo do debate que tem ocorrido nesse

espaço:

"A tarefa das pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades é propor a instauração de um novo olhar da sociedade sobre si mesma, propor que a sociedade seja capaz de reconhecer, aceitar a questão das diferenças. A quase totalidade das pessoas enfrenta a questão das diferenças e a segregação que daí provenha causa sofrimento. Em nosso inconsciente há um vasto elenco de crenças: o racismo, o machismo, as atitudes paternalistas diante das deficiências e dos idosos. Isso tem origem no inconsciente. O poder público precisa assumir esta tarefa de (re)construção da subjetividade coletiva que gerou a discriminação. Realizar ações técnicas de políticas integradas. Projetos na educação, na cultura em busca da autonomia" (Diário de Campo, nov.2001).

Um amplo debate tem acontecido em torno do reconhecimento e do necessário exercício

do "protagonismo da pessoa portadora de deficiência". A tendência histórica das

instituições foi o paternalismo e o "falar por", "falar em nome de", hoje o movimento

organizado das PPD não quer mais que se repita essa história e quer se colocar no

protagonismo das lutas e das ações que possam levar a autonomia e a cidadania dos

sujeitos. De um lado o necessário protagonismo que coloca à frente das deliberações, o

sujeito portador de deficiência. Por outro lado à articulação do movimento das PPD com as

demais instâncias sociais, a fim de que não haja isolamento e a perpetuação da segregação.

Na seqüência analisam-se dois depoimentos de participantes das reuniões do Fórum

Permanente, opiniões que demonstram a reflexão sobre aspectos mencionados:

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"A ppd deve ser agente ativa. Depende de nós como sujeitos ativos, reivindicar seus espaços, ocupando aquilo que a sociedade nos nega. Por vezes as ppd introjetam os sentimentos de impossibilidade que são colocados socialmente. A discriminação contra o negro, o índio, a mulher é reconhecida pela sociedade mais que a questão do deficiente. A questão do deficiente ainda se confunde com a questão da assistência versus cidadania. Não podemos correr o risco de tornar este Fórum, um gueto das ppd, devemos nos articular com os diversos conselhos que estão na sociedade. No Fórum já existe uma autocrítica por parte das pessoas portadoras de deficiência em relação a si mesma, para uma necessidade de abertura do movimento, do seu esforço de integração, de superar a tendência a auto segregação" (Diário de Campo, agosto de 2002).

"O movimento das ppd deve conversar com os diversos órgãos do governo para sugerir adequações segundo a demanda das pessoas portadoras de deficiência e altas habilidades. É um protagonismo necessário, por isso a importância do Fórum destacar esse protagonismo para construção de um novo olhar sobre a diferença. Nossa grande estratégia é mesmo nosso protagonismo. O marco constitucional é um avanço que ainda não garante a inclusão" (Diário de Campo nov.2001).

O sujeito protagonista de sua história é aquele que busca e encontra a possibilidade de

gerenciar sua própria vida, de realizar suas próprias escolhas e decisões. Conforme já foi

dito inúmeras vezes este ideal de protagonismo esteve interditado, pois sempre havia outras

pessoas para falar pelas pessoas portadoras de deficiência. Nas instâncias sociais, em geral,

se fala em nome das mesmas, o que caracteriza uma prática tutelar muito comum a essa

situação. Na contraposição a essa vivência de "proteção" se abrem os horizontes de

protagonismo, no qual o sujeito indica os caminhos a serem percorridos por aqueles que

quiserem se agregar a luta por um mundo de maior acessibilidade e reconhecimento da

diversidade humana. Nessa perspectiva o Estado, controlado pelos cidadãos, num exercício

permanente de participação, é o propulsor dessa proposta.

Se assim fosse, como nesse ideário, todos deveriam fazer parte de uma construção

coletiva do projeto político a ser implementado pelas instâncias governamentais. A

concepção de cidadania em pauta no debate da política pública para pessoas portadoras de

deficiência e de altas habilidades está permeada na concepção aqui retratada. Conclui-se,

então, que não se constrói cidadania com benesses, com distribuição de cadeiras de rodas,

com fornecimento de próteses e órteses ou com benefício continuado para pessoas

diagnosticadas como "incapazes" ou "inválidas". Devido à segregação histórica desse

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segmento da população, alguns recursos da política de assistência social precisam ser

garantidos. A tônica das reivindicações do movimento organizado das pessoas portadoras

de deficiência requer, entretanto, como a palavra de ordem deste momento histórico, a

cidadania.

A questão das deficiências foi sempre tratada unicamente como uma questão de

assistência. O que se coloca agora é o reconhecimento que a pessoa portadora de uma

deficiência, como qualquer outra, tem necessidades inerentes às diversas áreas da vida

humana. A constituição Federal garante os direitos dos cidadãos. Os portadores de

deficiência, como cidadãos são, portanto, constituídos de direitos. Uma política

diferenciada é discriminatória, porém, ainda é requerida e considerada necessária pelo

movimento social das PPD. Tal necessidade provém do processo histórico das relações

sociais que deixou uma imensa dívida com amplos setores sociais que sofrem

discriminação étnica, de gênero, de idade ou outra condição específica.

Fundamentalmente, será necessário que se considere aos dispositivos presentes na

POLÍTICA NACIONAL PARA INTEGRAÇÃO DE PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA,

indicando em seus princípios, no artigo 5º, inciso III: "respeito às pessoas portadoras de

deficiência, que devem receber igualdade de oportunidades na sociedade por

reconhecimento dos direitos que lhes são assegurados, sem privilégios e sem

paternalismos" (BRASIL, 2000, p.196).

A grande tônica, dessas reivindicações, recai sobre a necessidade de acesso ao poder

público o que requer uma adaptação do mesmo às necessidades deste segmento que, por ter

sido relegado à exclusão, precisa de algumas ações compensatórias. E, por essa razão

justifica-se a construção de uma política específica para área das deficiências, o que não

significa privilégios ou paternalismo para a mesma. Na opinião que segue é apresentado o

seguinte argumento:

"A sociedade é muito competitiva. O deficiente não pode competir de igual para igual com outra pessoa que não é deficiente. Sempre estará em desvantagem. A lei que garante cota para o emprego de pessoas com deficiência é justa, porque só assim o deficiente concorre com outros em

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condições de igualdade. A competitividade e a exclusão da sociedade vai afetar as pessoas em geral e aos deficientes será bem sofrível. Para as crianças que estão nas ruas não há recursos que dirá para os deficientes" (Entrevista realizada em jun. de 2001).

Na entrevista acima está sendo feita uma referência à legislação que garante

percentagem (reserva de mercado) nas empresas para pessoas portadoras de deficiência. Na

Constituição Federal8 já há uma previsão de cota determinada de vagas para pessoas

portadoras de deficiência em empresas e concursos públicos. A legislação Estadual e

Municipal, também, dispõe de leis que referem a essa reserva de vagas. Há o entendimento

que o governo deva garantir acesso ao mercado de trabalho, através da legislação (ver no

anexo 4, já mencionado, a legislação específica da área).

Foi implantado (Lei 11.393/99, legislação Estadual) um programa denominado:

PROGRAMA PRIMEIRO EMPREGO (PPE), que se constitui em uma parceria entre a FADERS e

a Secretaria de Trabalho Cidadania e Assistência Social e reserva em torno de 800 vagas

em todo o Estado no mercado formal. Entretanto, apesar do esforço inclusivo dessa política

ainda há várias dificuldades de implementação, tais como está expressa na avaliação, que

segue:

"O mercado de trabalho está muito fechado para os cegos, mesmo com a lei de reserva de mercado, as vagas acabam ficando para os deficientes físicos, os surdos. Uma pessoa vesga, por exemplo, é considerada deficiente visual e será preferida a um cego. A pessoa que não tem um dedo também pode ser considerada deficiente física e assim as vagas são preenchidas com aqueles que estão em melhores condições" (entrevista realizada em nov.2001).

8 Esfera Federal: Lei 8112 de 11/12/91 - art.5º; Lei 8213 de 24/07/91 - art.93; Resolução 01do ministério público Federal de 04/08/94; Decreto Federal 3298 de 20/12/99 - art.36. Esfera Estadual: Lei 8064 de 29/11/85; Lei 10228 de 06/07/94. Esfera Municipal: Lei complementar 346 de 17/04/95.

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O mercado de trabalho é por si só um campo que se fecha cada vez mais em exigências

de produtividade condizentes com as leis do mercado. Uma legislação que interfira nessa

lógica se faz permeada das contradições do próprio sistema já estabelecido que é

excludente. A exclusão é a característica do funcionamento deste modelo social, sendo uma

de suas marcas. Muito embora a legislação não garanta por si só a inclusão, é uma forma de

pressionar os mecanismos sociais às mudanças. Alguns avanços significativos, a partir do

momento em que é promulgada a lei da FADERS, podem ser exemplificados.

A FADERS é procurada, atualmente, por gerentes de lojas de grande porte, para

obterem subsídios sobre a melhor forma de adaptar os estabelecimentos que atenda também

às pessoas portadoras de deficiência. A Fundação é solicitada a prestar orientação sobre

como montar cursos aos funcionários de estabelecimentos comercias, para ensiná-los a lidar

com a questão das deficiências. Cópias da legislação estão sendo requeridas, por diversos

órgãos públicos e privados, o que permitirá que a lei seja estudada e aplicada. Contudo,

apesar dos avanços não se pode deixar de considerar o que é trazido no depoimento abaixo:

"O PPE para deficiente mental não funciona direito. Para as exigências do mercado o deficiente mental não preenche as expectativas. É um trabalho artesanal para colocá-los no mercado de trabalho. A lei dos 10% os empresários usam para os deficientes físicos. Os deficientes mentais ficam de fora por não trabalharem com números e coisas abstratas. A idéia de uma cooperativa foi uma alternativa de produção e prestação de serviços" (Seminário realizado em maio de 2001).

Parece ocorrer um processo de avanços legais e de concepções que ainda não está

acompanhado pela materialização das possibilidades de concretização da inclusão que é

pensada e prevista nos códigos legais. Todavia, está acontecendo um movimento maior, na

comunidade em geral, para compreender a situação das deficiências e organizar alternativas

de adequar o meio ao sujeito. Aqui se trabalha na perspectiva dos processos sociais, pois

começa entrar em questão a sociedade e seus mecanismos.

Nessa proposta, não é mais sobre o sujeito que recai o déficit. Retira-se do mesmo a

marca da falha e problematizam-se os déficits ambientais. Trata-se da valorização do

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aprendizado sobre as deficiências. Força-se o "social" a colocar-se como mediação de

possibilidades para o sujeito ter acesso ao mundo. De outra forma obteve-se também no

resultado desta pesquisa, opiniões divergentes quanto ao mérito dessa luta política. Existem

algumas opiniões que remetem a uma outra lógica de pensamento, como se poderá apreciar

abaixo:

"Descrevo abaixo algumas leis que considero discriminatórias: Constituição Estadual -Art. 19, inciso V - reserva de mercado; art.192 e art.214, parágrafos 1° e1°; Lei 8064/85 - ingresso de PPD no serviço público; Lei 10.288/94 - ingresso de PPD no serviço público; Lei 8899/94 - Passe livre interestadual; Lei 7713/88 - Imposto de Renda; Lei 8989/95 - Isenção de IPI na aquisição de automóveis, alteradas pelas leis 9144/95 e 9317/96; Lei 10869 - isenção pagamento IPVA para pessoa portadora de deficiência física; Decreto Legislativo 10315/99 - isenção de ICMS para veículos de PPD" (Entrevista realizada em out. de 2001).

As considerações feitas acima são demonstrativas do descontentamento, por parte de

alguns, quanto os aspectos de lei que foram mencionados. Alguns funcionários da

FADERS consideram que determinadas leis, a exemplo das referidas no depoimento,

fornecem privilégios aos que são portadores de deficiência. A reserva de vagas em cargos

públicos, determinadas isenções de pagamento de impostos, como no caso de impostos

sobre a compra e manutenção de veículos, é apontada como política de privilégio.

Além desse aspecto, essas leis são consideradas, também, de cunho discriminatório,

pois, pressupõe a incapacidade da pessoa de conquistar seus espaços sem o amparo legal. O

argumento trazido em considerações, como aquelas acima mencionadas, está atravessado

pela recusa das leis pontuais e específicas para as pessoas portadoras de deficiência. A idéia

subjacente aqui é de que o conceito de cidadania, por si só, pudesse dar conta da questão do

acesso ao mundo. Conforme se pode analisar na continuidade daquele depoimento:

"O que é realmente necessário são leis que assegurem a acessibilidade e igualdade de condições sem discriminações, seja para concorrer a um cargo público através de concurso ou vestibular, como qualquer outro cidadão; também pagando seus impostos, adquirindo bens sem precisar isenção, assim exercendo sua cidadania" (Entrevista realizada em out. de 2001).

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O que se pode objetar, no debate, com essa perspectiva de cidadania que recusa

"benesses", é o fato de que dada às condições de extrema desigualdade consolidadas na

sociedade, as pessoas portadoras de deficiência situam-se na contextualidade com uma

enorme desvantagem, que a lei poderia amenizar. O objetivo que está subjacente a essa

legislação não é o paternalismo ou uma política de privilégios e sim a "correção" do atraso

histórico que propiciou essa condição de desigualdade e segregação, em que vivem as

pessoas portadoras de deficiência.

Fazendo uma analogia à Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que pressupõe

uma série de medidas compensatórias aos segmentos historicamente excluídos dos bens

sociais, conforme seus princípios e diretrizes, há uma preocupação de: "Respeito à

dignidade do cidadão, a sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de

qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer

comprovação vexatória de necessidade" (BRASIL, 2000, p.35).

Considera-se, portanto, que não há nessas medidas legais a intenção ou o estímulo a

práticas assistencialistas que possam ferir a cidadania ou levar a privilégios. Trata-se de

entender como direito das pessoas acessar políticas, que minimamente, devolvam aos

sujeitos o espaço de acesso que as instâncias sociais foram lhe interditando. Na mesma

linha de argumentação contrária às leis de garantia de cotas para pessoas portadoras de

deficiência e isenção de impostos, há uma outra opinião, que a seguir se apresenta. Tal

opinião revela o descontentamento com as medidas que dispõem sobre as adaptações nos

ônibus da região metropolitana.

Em algumas cidades brasileiras, alguns transportes coletivos estão sendo adaptados para

responder as necessidades de pessoas que são portadoras de deficiência. Por parte de

algumas pessoas contrárias a essas medidas de adaptação arquitetônica, tal

descontentamento se torna demonstrativo do quanto é complexo contemplar as diferenças

no conjunto das relações sociais, como se pode analisar:

"Os ônibus adaptados tiram espaço dos que não são deficientes, são três lugares para uma cadeira e muitas pessoas de pé. Os trabalhadores

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cansados no final do dia têm que ficar mal acomodados e muitas vezes nenhum deficiente pega o ônibus. Há rampas, ônibus adaptados e não há espaço. A exigência de direitos acaba se tornando um privilégio (Seminário realizado em maio de 2001).

O social deveria ser o lugar onde todo o sujeito tivesse a possibilidade de inserção.

Quando se discute a significação da inclusão, para determinados setores populacionais, na

verdade se está discutindo algo que nem deveria estar em questão. Segmentos marcados por

diferenças específicas ficaram à margem de muitos processos da sociedade e hoje há um

movimento para recuperar essa possibilidade de inserção. Opiniões divergentes a essa luta

são demonstrativas da complexidade das relações sociais e da capacidade de uma sociedade

de pensar a si mesma como um espaço para todos.

Sem um trabalho se sensibilização social e conscientização do que é direito e do que é

dever não será possível comportar um mundo humano. A construção de uma política

pública para pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades é uma oportunidade de

se ter esse assunto em pauta. De igual forma, é uma maneira de alimentar reflexões e ações

que possam significar um permanente (re) pensar sobre as verdadeiras possibilidades do

social se tornar um espaço de humanização das relações.

Representantes do movimento organizado das PPD fazem uma crítica significativa ao

próprio movimento que muitas vezes não engrenou em estratégias de inserção social.

Houve um certo engessamento do movimento às ações paternalistas de vários governos. O

público em geral estava em busca de benefícios e não de direito ao acesso à educação, à

saúde, esporte, lazer, etc. Não havia uma busca das áreas de atuação.

Algumas associações de portadores de deficiência reproduziram o direcionamento

assistencialista das instituições, centrando sua atenção em distribuição de recurso e

prestação de assistência. As organizações de pessoas deficientes não foram gerenciadas por

pessoas portadoras de deficiência e sim tuteladas, em geral, por pessoas envolvidas com a

questão como familiares ou profissionais da área. Esse é um fator de crítica e auto-análise

que atualmente representantes do movimento das PPD estão afirmando.

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Um outro aspecto crítico desse movimento social foi apontado como a não vinculação

da discussão do movimento "pelas deficiências" à estrutura social e a falta de uma

discussão estrutural, que colocasse em questão as condições da sociedade para se adequar

às demandas da diversidade. Os dirigentes das entidades de PPD tinham um funcionamento

fechado em si mesmo, sem uma interlocução maior com os movimentos sociais em geral.

Essa situação teve como conseqüência à chamada "cultura de guetos", ou seja, grupos de

cegos, grupos de surdos, grupos de deficientes físicos e assim por diante. Daí provem um

tipo de movimento que não vislumbrava uma "política para todos". Com essa dificuldade

não se colocava em questão a denúncia das relações sociais de discriminações e barreiras

arquitetônicas e culturais. A tônica dada à discussão era da integração dos portadores de

deficiência à sociedade e não da revisão das interdições sociais9.

"Não é pelo fato da pessoa ser portadora de deficiência que ela não tenha ideologia, que não defenda esta ou aquela política, de direita ou de esquerda, muitas vezes a própria entidade de deficientes está desenvolvendo uma política segregadora, de exclusão, não adequada ao social" (Entrevista realizada em jan.2002).

De outra forma, a construção dos recursos políticos para uma nova perspectiva de

cidadania dos portadores de deficiência são construídos pelas próprias pessoas portadoras

de deficiência. O dinamismo do movimento entre as pessoas e a possibilidade de ampliação

da conscientização de determinados processos que se desenvolvem no social vão

transformando o tom dos discursos e das práticas sociais. Foi isso que aconteceu quando se

passou de um momento de práticas assistencialistas e segregatórias, no próprio movimento

social das PPD, para um outro momento de busca de direitos e revisão do social. Algumas

associações de deficientes carregam toda a história de preconceito. O atendimento fica na

linha do paternalismo, numa visão da ppd como incapaz. Essas idéias foram sendo

recicladas e superadas e o movimento social foi se emancipando da visão assistencialista,

conforme indica a opinião que segue.

9 A construção da argumentação referente aos movimentos sociais das PPD se fez com base no debate feito com pessoas ligadas às diferentes entidades de PPD. Essa construção se construiu, também, a partir da observação e participação nos fóruns representativos das PPD e deliberativos sobre a nova política pública para pessoas portadoras de deficiência e altas habilidades.

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"Quando as próprias ppd passaram a coordenar suas entidades a velha idéia começou a mudar. A Associação Riograndense de Paralíticos e Amputados (ARPA) e a Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes, foram pioneiras na idéia do protagonismo da ppd. Foi uma briga no início para o próprio portador de deficiência poder coordenar missas, por exemplo, para participar concretamente e não apenas receber ajuda, mas avançamos" (Entrevista realizada em jan.2002).

O depoimento acima é ilustrativo das superações de contradições existentes nos

movimentos sociais. A sociedade vai avançando no embate de diferentes perspectivas e no

desenrolar dos emaranhamentos da teia social. A possibilidade de se obter maior

visibilidade no conjunto das relações sociais, aumentará a capacidade de buscar alternativas

de resolutividade, para às questões referente ao social, que não centralizem o déficit no

sujeito.

A ARPA (Associação Riograndense de Paralíticos e Amputados), é uma associação que

investe no desporto e no desempenho do potencial de pessoas portadoras de deficiência

física. Desde 1969, quando foi fundada, busca trabalhar com os aspectos sadios e potenciais

das PPD. Propiciar aos portadores de deficiência dar visibilidade ao fato de ser possível

exercer atividades físicas compatíveis com suas condições. Atualmente, a mesma, está

utilizando uma estratégia de articulação com as escolas de ensino fundamental que visa

superar o preconceito.

A estratégia de articulação escolar se fez no sentido de levar para as escolas e, portanto,

para as crianças e adolescentes a imagem positiva da deficiência. Sendo assim, as crianças

das escolas são convidadas a assistir jogos de basquete em cadeira de rodas, corrida entre

cadeiras de rodas e outras atividades do tipo. Essa medida é uma forma de mudar a velha

visão de confinamento, que se dá em geral a uma cadeira de rodas. Na circunstância de

atividades esportivas é possível perceber o quanto em uma cadeira de rodas é possível ter

mobilidade, agilidade e a mesma participação no social. Será possível demonstrar, portanto,

que o fundamental, é propiciar as condições adequadas às pessoas e suas peculiaridades.

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Todo esse movimento de transformações na maneira como se pode construir uma outra

interlocução com a diversidade da condição humana requer atitudes políticas de novos

"contratos sociais". Há uma exigência do movimento que faz a sociedade de mudar e

romper com velhos muros que separam e dividem às pessoas por suas diferenças. No

Estado do Rio Grande do Sul (no caso da FADERS) houve um significativo avanço

político, quando essas questões passam a ser tratadas no âmbito da cidadania.

É um avanço tardio, se for considerar o tempo histórico em que se está vivendo. Os

processos sociais, entretanto, possuem um ritmo próprio que, na maioria das vezes é

moroso e com inúmeros retrocessos após trabalhosas superações. O processo de

conscientização e capacitação das sociedades, para consolidar uma forma de viver, em que

o sujeito esteja em primeiro lugar, não se faz de forma linear. É um caminho a ser

construído, num permanente ensaio de superação de muitos padrões e estruturas

historicamente configuradas por todos os seres.

A FADERS é uma instituição que tem um significativo papel político a desempenhar na

sociedade. Como uma Fundação que representa a causa das Diferenças, deverá se empenhar

em articular inúmeras ações que se encaminhem para uma atenção adequada aos interesses

e necessidades diferenciadas daqueles sujeitos que dela venham a utilizar seus serviços. Os

seres humanos não são iguais e algumas pessoas, por serem portadoras de diferenças mais

marcantes, não estão do lado oposto da normalidade. A pesquisa realizada no contexto

específico dessa instituição poderá levar ao entendimento de outros contextos da sociedade

em geral, se for considerada a possibilidade de encontrar ressonâncias entre o que se passa

no universo institucional, e o que se dá de forma mais geral.

A cultura da dita “normalidade”, infelizmente é algo que diz respeito a uma construção

histórico social, mesmo sendo essa diferente da realidade subjetiva dos seres humanos.

Normalidade não faz sentido, se for considerada a magnitude e a singularidade da vida

humana. Levando-se em conta a imprecisão e o inacabamento de tudo que diz respeito ao

humano, a palavra normalidade se esvazia, se perde em meio a um dinamismo que não se

enquadra em nenhum padrão. Todas as pessoas são diferentes umas das outras,

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incompletas, imperfeitas e assim se faz a caracterização de seres humanos, em um dia-a-dia

com inúmeras “restrições impeditivas”. Espera-se que o trabalho com as diferenças sirva

para desinventar os impecilhos que restringem a expressão da vida e para desmontar o mito

da perfeição, que se estiver presente nos “céus”, não o estará na Terra, por certo.

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IV - ACESSIBILIDADE: "UM MUNDO PARA TODOS"

Um dos resultados desta pesquisa, a partir de depoimentos e de estudos tanto

documentais como teóricos conduz ao entendimento do significado e da relevância da

acessibilidade. Como foi visto no capítulo dois, desde a década de 60 (século XX), de uma

forma internacional, começa o debate em torno da inclusão das pessoas portadoras de

deficiência e de altas habilidades. A discussão é frutífera, em seu desenrolar vão surgindo

novas práticas sociais e novas formas de conceber o significado das deficiências. A questão

da acessibilidade vem na esteira das análises que ampliam os horizontes acerca do conceito

de déficit, incluído a responsabilização dos processos sociais que criam as interdições. No

que se segue, se fará a exposição do apreendido no estudo em torno das interdições e da

necessária consolidação de uma nova cultua. Sendo que se almeja, que a mesma, seja capaz

de criar um "mundo acessível para todos".

4.1 ACESSIBILIDADE E A QUESTÃO SOCIAL

Para a discussão em torno da acessibilidade se tem como ponto de partida que: os

lugares da sociedade são em sua maioria inacessíveis, impondo inúmeras restrições. O

modelo de ensino é discriminatório, preconceituoso, suas metodologias não são inclusivas.

As políticas públicas nessa área têm sido compensatórias, residuais e não têm incidido

sobre uma direção que organize os setores sociais de maneira a abarcar as necessidades de

todos os seus cidadãos.

O ponto fundamental de conexão entre todos esses fatores que dificultam a vida das

pessoas portadoras de deficiência talvez pudesse ser sintetizado em uma frase: o não

reconhecimento das diferenças individuais. Há que se percorrer um longo caminho social,

passar por uma grande desconstituição da cultura do “ser humano padrão”, ainda vigente, a

fim de que amadureçam as concepções que consolidem o entendimento da diversidade da

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condição humana e para a compreensão de que uma das características fundamentais da

humanidade é a diferença.

Antes de adentrar mais profundamente na questão da acessibilidade como resposta à

diversidade se pode fazer alguns alertas quanto ao "espetáculo da diversidade".

THOMPSON considera que: "Não podemos nos deixar cegar pelo espetáculo da

diversidade a tal ponto que sejamos incapazes de ver as desigualdades estruturadas da

vida social" (1995 p.426). Qual a reflexão que se pode fazer a partir deste enunciado?

Existe uma especificidade dos sujeitos, quanto à raça, etnia, gênero, questões referentes às

deficiências, a homossexualidade e tantas outras formas peculiares dos sujeitos se situarem

no social. As políticas públicas nem sempre estão atentas a esta diversidade e tratam de

todas as questões de uma foram homogêneas.

Faz-se necessário atender mais peculiarmente a cada demanda. A situação das pessoas

portadoras de deficiência é uma ilustração de uma singularidade localizada na

contextualidade, como os demais segmentos sociais e suas características próprias. Embora

exista toda essa diversidade há, entretanto, algo comum às diferenças e esse aspecto se

localiza na estrutura da sociedade, repercutindo na vida de todos. Eis, um ponto crucial, que

está sendo demonstrado neste trabalho: o fato da adversidade das condições de vida de

diferentes pessoas estarem sob uma condição que é similar a todos.

A estrutura social é composta de forma a gerar as desigualdades de condições de vida e

a consolidar os processos de exclusão. A sociedade não é algo abstrato, se faz na totalidade

das relações dos seres sociais, na força da conjugação dos múltiplos movimentos dos

sujeitos que nela se inter-relacionam e a transformam constantemente. A vida humana tem

uma dimensão concreta, o desenvolvimento histórico das condições dos meios produtivos

de vida das pessoas. O modo de vida dos sujeitos das sociedades está atravessado por

diversos fatores concretos tanto quanto pelos fatores de ordem imaterial.

A materialidade da vida social é vivida de forma a expressar uma organização desta

sociedade, em que os sujeitos, em uma grande maioria, se encontram em uma situação de

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não acesso aos bens necessários, primários e secundários. São várias as estatísticas que

apontam os altos índices de miséria, de analfabetismo, de corrupção, de descaso com as

políticas públicas e com o social. De outra forma, a riqueza que tem sido produzida no

mundo nos últimos anos, é bastante significativa. A tecnologia se hiper-desenvolve desde a

década de 80, a concentração de renda se torna cada vez mais intensa.

A produção da riqueza social e a produção da miséria social, da exclusão são dois

processos que fazem parte do mesmo contexto de sociedade, permeada pela mesma

estrutura econômica. Temos uma sociedade na qual a constituição das relações entre os

sujeitos é mediada pelo capitalismo. Isso significa que as relações sociais são mediadas pela

lei da concentração da terra, do capital de giro e atualmente da informatização, nas mãos de

uma restrita minoria.

Segundo IAMAMOTO (2000, p.27), a contradição fundamental da sociedade capitalista

é o fato do trabalho ser coletivo, a produção social é cada vez mais coletiva, em

contrapartida, há uma forte apropriação privada da atividade, das condições e dos frutos do

trabalho. Na relação capital trabalho, a questão social é produzida, o capital se apropria do

trabalho, ocasionando assim fortes desigualdades nos meandros da sociedade.

A riqueza é socialmente produzida por uma coletividade de trabalhadores que a

produzem nos mais variados setores da sociedade. Entretanto, seu produto final, ou seja,

sua própria produção fica concentrada em poder de uma minoria restrita, que são os donos

dos meios de produção, os grandes capitalistas, os mega empresários. O sistema social que

está consolidado onde os sujeitos desenvolvem suas vidas. É um sistema onde prevalece a

concentração de renda, de terra, de informação e informatização. A questão social se

expressa de maneira contraditória. “Na tensão entre a produção da desigualdade e a

produção da rebeldia” (IAMAMOTO, 2000, p.28).

De um lado, se avalia a necessária leitura das opressões e da exclusão vivida pelos

sujeitos e de outro lado às criações, as alternativas construídas por esse mesmo sujeito para

o enfrentamento deste contexto de vida. A questão social, na sua forma mais diversa, em

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variadas expressões cotidianas, poderá ser analisada: “tais como os indivíduos a expressam

no trabalho, na família, na área habitacional, na saúde, na assistência social pública,

etc.”.

De acordo com IAMAMOTO (2000) apreender a questão social é entender também as

múltiplas formas de pressão social, de invenção e (re) invenção da vida construída no

cotidiano. A exclusão e a inclusão são processos que fazem parte do mesmo universo. A

desigualdade produzida nas relações sociais é enfrentada por movimentos dos sujeitos desta

sociedade que lutam pela inclusão.

A inclusão só é uma meta por essa não acontecer naturalmente, como deveria ser, nas

sociedades. Uma vez que cada sujeito é parte do seu contexto, essencialmente deveria

poder estar pertencendo ao mesmo. Toda a luta pelos direitos humanos é uma luta por

pertencimento, é uma luta das pessoas para que possam estar inseridas em seu contexto de

vida. A sociedade civil, em seus diferentes movimentos, se organiza para reivindicar os

direitos dos seus diversos segmentos sociais. Os sujeitos vão consolidando práticas sociais

que fortalecem a coletividade das relações em áreas específicas das necessidades humanas.

De acordo com o movimento contraditório que pode ser lido no real, se percebe que o

social é campo da expressão de inúmeras limitações postas pelo contexto aos indivíduos.

De outra forma, o social, se caracteriza por ser campo da possibilidade de expressão dos

sujeitos. Ser e contexto são as duas faces da mesma moeda onde gira a vida humana. Não

há dicotomia possível entre esses dois lados da existência, o que há é um enorme elo que

liga cada particularidade ao um universo maior. O social é parte do universo da vida dos

seres, não é uma abstração por si só, existe em função da movimentação dos seres em seu

contexto. Apresenta-se, esse social, em conformidade com os movimentos que vão fazendo

seus agentes em seu tempo histórico.

O social se transforma constantemente, em conformidade com a intenção e ação de seus

protagonistas, os sujeitos. O social é campo da expressão de cada um e de todos os sujeitos

que nele vão organizando sua forma de viver, o modo de vida e os meios de produzi-la no

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conjunto de sua imensa dinâmica humana e coletiva. Em uma visão marxiana sobre a

realidade humana, o indivíduo concreto é uma síntese das inúmeras relações sociais. A

individualidade humana se encontra atravessada por uma diversidade de vetores externos à

interioridade, esses permeiam a consciência individual dos seres.

Os diversos vetores são construídos historicamente, em contextos culturais específicos a

cada época e a cada povo. O indivíduo é único e indivisível, se constitui enquanto tal, na

trama das múltiplas relações da sociedade. Não há dicotomia entre indivíduo e sociedade,

entre sujeito e objeto, singular e universal. Há uma interdependência entre o sujeito e seu

contexto natural e social. Existe uma forte conexão entre as partes e o todo, ou seja, entre o

ser que é uma parte do universo e todo este conjunto que consolida a vida humana,

situando-a no universo natural, político, ideológico, cultural, social, econômico e mais uma

vez humano.

“..Todas as suas relações humanas com o mundo – ver, ouvir, cheirar, saborear, pensar, observar, sentir, desejar, agir, amar-, em suma, todos os órgãos de sua individualidade, como órgãos que são de forma diretamente comunal, são, em sua ação objetiva (sua ação com relação ao objeto), a apropriação desse objeto, a apropriação da realidade humana..” (MARX, 1983, p.120).

O ser social é o sujeito que pertence a seu contexto. O indivíduo singular é um ser

genérico, ou seja, pertencente ao gênero humano. DUARTE (2000, p.122) considera que a

vida dos indivíduos deveria traduzir a universalidade e a liberdade já conquistadas pelo

gênero humano. O sujeito se objetiva em suas atividades criativas e materializa sua

subjetividade em atos, no meandro de suas relações sociais. A criação de espaços e recursos

para o desenvolvimento da vida humana é uma conquista histórica de seres que constróem a

história, portanto, em respeito a generacidade da condição humana, deveria ser universal o

acesso de todas as pessoas, neste espaço construído e conquistado. Cada ser, por condição,

tem direito a participar, a fazer parte do seu mundo, de seu contexto.

Tendo em vista o entendimento da questão social e suas conseqüências não se pode

perder, na leitura da diversidade, o horizonte de toda a estrutura da sociedade. Necessário

se faz considerar a cultura, a diversidade, as singularidades, as questões de gênero, da livre

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expressão sexual, da deficiência e todas as particularidades no conjunto do social.

Não se pode perder de vista na particularidade, a visibilidade de um contexto onde cada

situação se localiza de alguma forma em conexão com as demais situações e com o todo

articulado que cria determinadas estruturas. Estruturas, essas, que mesmo tendo sido criadas

na história por sujeitos, por isso mesmo, podem ser transformadas, uma vez identificadas e

trabalhadas no sentido de sua superação. No horizonte dessa perspectiva se analisa a

condição colocada na situação das pessoas portadora de deficiência:

"Deficiência é a perda ou limitação de oportunidade de participar da vida comunitária em condições de igualdade com as demais pessoas. Assim além das perdas inerentes à própria deficiência, a pessoa se torna incapaz em função de seu meio e de muitas atividades organizadas da sociedade, como informação, comunicação e educação, que dificultam que pessoas com deficiência participem em condições de igualdade" (FREC, 2000, p. 2).

As condições do meio social são os maiores impecilhos para a participação e expressão

das pessoas que tenham algum tipo de deficiência. O contexto desfavorável limita ainda

mais uma condição que requer formas alternativas para sua expressão. As pessoas

pertencentes à classe sócio-econômica precária, já passaram por uma série de processos de

exclusão tem ainda maior dificuldade de incluir um filho portador de deficiência nas

instâncias institucionais dessa sociedade.

A falta de conhecimento sobre os direitos, sobre a legislação é um grande distanciador

do acesso ao social. A maioria das instituições não atende as pessoas, quando as mesmas,

apresentam algum tipo de deficiência. As características específicas e diferenciadas da

pessoa portadora de alguma deficiência, associada ao grande desconhecimento que se tem

acerca destas características cria inúmeros muros de separação. A conseqüência direta do

desconhecimento é o difícil acesso ao mundo para quem porta alguma deficiência.

"Os familiares percorrem diversos locais em busca de atendimento para seus filhos. Na maioria encontram-se desesperançados de ter sua demanda de atendimento suprida. É muito árdua a busca de recursos nesta área, pois há poucos locais de atendimento na esfera pública" (Seminário realizado em nov. de 2001).

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Os familiares, muitas vezes, também têm dificuldade de entender uma criança

"diferente". Os mesmos oscilam entre dois extremos: ou superprotegem a criança,

dificultando a sua "saída" para o mundo ou a relegam ao abandono. Na família começa um

processo de interdição que é reforçado nos diferentes lugares do social. A falta de recursos,

presente nas condições de vida de quem não tem acesso aos meios sociais vai limitando a

possibilidade de expressão do potencial que existe nas pessoas que apresentam ou déficit ou

talento diferenciado do demais.

"Estas pessoas passam por diversos processos de exclusão, desde o vizinho ou usuário do ônibus que encara a mãe com olhar de reprovação (como se as características típicas da condição do filho fossem falta de cuidado e de educação) até a inclusão da criança ou adolescente em recursos da comunidade" (Seminário realizado em nov. de 2001).

Esse tipo de situação, posta no social, vai minimizando o potencial pessoal que precisa

ser explorado e expressado. De igual forma, essas experiências, vão distanciando a pessoa

do exercício da participação e inscrição no social. Nenhuma deficiência impede que a

pessoa seja cidadã, os impecilhos para essa vivência estão nas barreiras arquitetônicas,

atitudinais e culturais do mundo social. Os muros que são levantados em uma cultura que

contempla a existência de outras belezas parecem significar a ausência do reconhecimento

das diferenças como parte da vida. Essa realidade leva a um sentimento que será expresso a

seguir e que aponta para o primeiro potencial não reconhecido, pela sociedade, em uma

pessoa portadora de deficiência, que é:

“O fato de ser pessoa, o portador de deficiência não é considerado gente, e provo o que digo com exemplo: os engenheiros ao projetar um edifício não se perguntam quanto custa a prevenção de incêndio, mas se perguntam quanto custa a acessibilidade. Isto é não considerar o portador de deficiência gente, com necessidades humanas de acesso, de estar incluído. Não crer na pessoa, cria uma sociedade culturalmente egoísta, que trabalha com um padrão de ser humano que não existe, cria um espaço físico separador que permite alguns irem outros não. Cria um sistema de locomoção individual, segregador (Entrevista realizada em out. 2000).

O depoimento acima apresentado é uma denúncia de um modo de vida social que exclui

as pessoas portadoras de deficiência de sua própria condição humana, de ser pessoa. Há que

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se refletir muito profundamente nos diversos setores sociais, comunais e das relações

pessoais sobre os significados sociais das deficiências/diferenças. Bem como, será

importante refletir sobre a própria condição humana e suas múltiplas formas de expressão,

ou a ausência da possibilidade dessa expressão.

A sociedade e suas instâncias estão distantes do entendimento aproximado do que

significam as diferenças em seus matizes peculiares. Ainda será necessário muito trabalho

para transformar a cultura da “normalidade” e abrir espaço ao entendimento de que ser

diferente não significa ser inferior. A fim de que seja possível olhar as diferenças sem os

sentimentos diminutos, sem a menosvalia que traz a impressão do ser menor, menos

importante, menos humano. Conforme se pode analisar:

"As instituições de identificação ainda colocam na carteira de identidade, no espaço para a assinatura, o carimbo escrito analfabeto, ainda que o portador de deficiência visual seja alfabetizado. Nas escolas uma criança com visão subnormal cursando a 1ª série do ensino fundamental, sendo esta sua primeira experiência escolar, é colocada sentada no fundo da sala (Entrevista realizada em out. 2000).

Todas essas experiências são muito comuns, nessa área, onde o sujeito é desqualificado

de sua condição humana. No desenrolar das relações sociais o lugar ocupado pelas

diferenças individuais não condiz com a condição de cidadania. Um exemplo disso, pode se

apontar no fato das pessoas, geralmente, diante de um deficiente visual e seu acompanhante

dirigem a palavra ao acompanhante, se referindo ao deficiente visual na terceira pessoa,

como se ele não pudesse falar por si, não reconhecesse suas necessidades ou não tivesse

opinião própria. "Acho que o modo como a exclusão se torna visível, revela uma cegueira

do social. O social fica impedido de ver a criança, o jovem, a mulher, o homem que estão

antes da deficiência visual” (Entrevista realizada em out. 2000).

O resultado desse processo é a discriminação e a segregação. Há um campo imenso para

ser explorado no setor da conscientização e sensibilização das comunidades acerca das

pessoas portadoras de deficiência. As oportunidades de refletir, de debater sobre essas

questões serão importantes para um processo de conscientização. Os movimentos sociais

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organizados têm um relevante papel na desconstituição de uma cultura que aponta a

possibilidade de acesso à vida por uma única via, a da “normalidade”.

Existem formas alternativas para desenvolver o modo de organização da vida social que

não se reduzem somente ao que foi instituído como o possível para as pessoas que se

enquadram em tais “possibilidades”. Os espaços dentro das cidades precisam passar por

uma maior abertura de adequação às necessidades das pessoas que portam alguma

deficiência.

As atuais políticas públicas, como foi visto no capítulo três, estão trabalhando no

rompimento das barreiras arquitetônicas. Entretanto, vários aspectos ainda precisam ser

superados. Será fundamental atingir mais profundamente a questão dos fundamentos dessas

barreiras, que têm origem no não reconhecimento das diferenças. Para que se trabalhe de

forma mais efetiva, a adaptação tem que ser feita contemplando as múltiplas formas de

necessidade de expressão.

Todas as adaptações possíveis têm que ser planejadas. A exemplo das singularidades das

deficiências, foi colocado, em uma entrevista: "É preciso que se entenda que os cegos não

enxergam, mas ouvem e falam. A dificuldade e a falta de habilidade em lidar com os

portadores de deficiência já começa na família que não está preparada para isso"

(Entrevista realizada em maio de 2002).

O fundamental, para o reconhecimento das diferenças, é que as pessoas portadoras de

deficiência possam estar circulando pela cidade, nas ruas, nos bares, nos restaurantes, nas

escolas, no cinema, nos clubes, nas igrejas, nos locais de trabalho, enfim, no mundo da

vida. Cidadania é um exercício de pertencimento e, na área das deficiências, tem que ser

exercido ainda com maior vigor para poderem se consolidar. "Quanto maior o número de

pessoas com deficiência visual estiverem, nos restaurantes, por exemplo, maior será a

obrigatoriedade destes oferecerem cardápios em BRAILLE" (Entrevista realizada em junho

de 2002).

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O mesmo pode acontecer com aqueles que são portadores de deficiências físicas e tem

alguma limitação em partes dos movimentos do corpo, precisando utilizar acessórios como

cadeiras de rodas, bengalas, órteses e próteses em geral. Nessa condição as pessoas não

estarão condenadas a não se locomoverem, caso os locais da sociedade sejam acessíveis.

Os locais públicos e privados deverão ser planejamentos incluindo a questão da

acessibilidade, quando se levar em conta a "equiparação de oportunidades". As diferenças,

as singularidades devem ser contempladas a fim de que as pessoas portadoras de alguma

deficiência possam exercer sua singularidade e o direito à cidadania, à participação em

todos setores da sociedade.

Se o fato da diferença for constitutivo da humanidade for reconhecido como verdadeiro

a sociedade deverá apreender as formas de adaptar seus espaços para todos os seus sujeitos.

Para tanto será importante conhecer as inúmeras possibilidades existentes em termos de

tecnologia assistida, recursos de comunicação, adequação ambiental, etc., que possam

oferecer às pessoas portadoras de deficiência e altas habilidades condições de equiparação

de oportunidades às outras pessoas.

"A sociedade deve ser orientada no que diz respeito sobre a acessibilidade das PPD, por exemplo: as rampas de acesso, a divulgação das Libras – Língua Brasileira de Sinais, simbologia BRAILLE, etc.. Trabalhar com o paradigma da Cidadania faz com que eu enquanto agente social precise estar intimamente ligado aos grupos a qual me proponho a trabalhar, respeitando sua cultura, sua especificidade, não buscar somente o clínico, mas o “ser social” (Entrevista realizada em out. 2000).

Diante de todas essas reflexões e depoimentos se conclui que a situação colocada nas

deficiências requer uma transformação no tipo de relação social que está estabelecida. "E a

sociedade que tem que se organizar de forma a contemplar a diversidade que a constitui,

talvez o correto seja falar em reconstrução social e não em inclusão e integração"

(Entrevista realizada em dez. de 2002). A necessidade de reconstruir a sociedade se

demonstra também pelo fato de que as condições deste social são impeditivas tanto na

situação de algum déficit como na situação dos talentos.

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O resultado desta pesquisa e a experiência profissional na área têm trazido, na questão

das altas habilidades, o quanto o contexto poderá desperdiçar o talento. Na área das altas

habilidades determinados mitos não obstaculizam menos o potencial das pessoas que a

possuem, do que os mitos em relação às deficiências. Por exemplo, o mito da perfeição e

de que o potencial não se perde, desconsidera o fato de que se uma pessoa não tiver um

ambiente favorável e acolhedor seu talento não terá espaço para expressão e

desenvolvimento.

"Nós costumamos comparar duas situações atendidas por esta equipe: um menino de 17 anos, talentoso na área lingüistica, é um poeta, está terminando o 2º grau, é pobre, negro, se considera feio e se queixa que apesar de seu talento (mais de 400 poesias escritas), não consegue estágio e diz que as vagas são preenchidas por outros jovens com mais poder aquisitivo, brancos e bonitos. O outro menino também de 17 anos, com talento na área acadêmica, com pais universitários, bom nível econômico, viveu parte de sua vida no exterior e tem planos de receber uma bolsa de iniciação científica" (Seminário realizado em out. de 2002).

Na ilustração acima se analisa a situação de dois jovens que são talentosos e apresentam

uma condição de vida diferenciada. Tal condição de vida está impedindo o primeiro a

incluir seu talento no social e poder desenvolvê-lo. O contexto social favorece ou

desfavorece as condições do sujeito. O segundo rapaz, daquele exemplo, está inserido na

escola, no trabalho e na possibilidade de projetar seu futuro, tem suas características

pessoais respeitadas. A exclusão social e política sofrida pela classe popular levam a uma

realidade de privações e interdições da potencialidade humana.

Voltando a mencionar o estudo do Dr. SACKS, que foi apresentado no capitulo

primeiro, esse autor considera que o talento e a arte não reconhecida continuará

"definhando em enfermarias", se referindo à situação de um menino, portador da síndrome

de autismo e com altas habilidades artísticas10, o mesmo considera que: "Stephen pode ser

limitado, esquisito, idiossincrático, autista, mas lhe foi permitido alcançar o que poucos de

nós conseguimos, uma significante representação e investigação do mundo" (1995 p.251).

10 No capítulo I, item 1.3 Diversidade da Condição Humana, desta tese, foi apresentado o estudo feito por Drº SACKS sobre Stephen.

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O fundamental para o desenvolvimento humano é o reconhecimento da humanidade que

existe em cada um e o espaço para a expressão da humanicidade dos sujeitos. Para

transformar condições de vida urge que se invista em práticas educativas, que no dizer de

MARTINELLI:

"É uma prática que se despoja da visão assimétrica dos sujeitos com os quais se trabalha e que se posiciona diante deles como cidadãos, como construtores de suas próprias vidas. É, portanto, prática do encontro, da possibilidade do diálogo, da construção partilhada" (1995 p.147).

As condições de vida que relegam os sujeitos ao abandono e a miséria são geradoras de

impossibilidades e crueldades diversas. A problemática das diferenças e das deficiências se

potencializa, se maximiza na estrutura e nas relações sociais que segrega, separa, distância,

coloca fora e não congrega o ser social em seu conjunto. A globalização que caracteriza o

sistema econômico social internacional, congrega o mundo do mercado e do consumo, ao

mesmo tempo em que propicia a fragmentação dos sujeitos, afastando uns dos outros, os

distanciando. Será função de uma política pública, comprometida com a cidadania, educar a

sociedade civil e a mídia na construção de novas representações do humano que não estejam

apenas pautadas em um padrão fixo de produtividade e beleza.

4.2 ACESSIBILIDADE E A QUESTÃO DA HETEROGENEIDADE

Quando a sociedade estiver educada na compreensão das deficiências e suas

características poderão compreender que as pessoas com alguma deficiência não se

constituem enquanto um grupo homogêneo. Há vários tipos de deficiência, em cada uma

delas há características não semelhantes e que requerem um enfrentamento das barreiras

colocadas a elas adequadas a sua condição específica. Para as pessoas com profundas lesões

físicas, sensoriais ou mentais mais acentuadas existem barreiras ambientais e culturais,

impedindo mais ou menos o seu cotidiano do que a outras pessoas com as mesmas lesões,

mas em grau menos acentuado.

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Os fatores como gênero, etnia/raça, são classificações válidas, do ponto de vista

biológico e localizam as pessoas em um grupo específico, sem ferir sua humanicidade. Ao

contrário os padrões de "normalidade" são construções histórico sociais e que ao classificar

criam a linha divisória da discriminação social. Na questão das deficiências há divisão por

áreas, tais sejam: deficiência física, deficiência sensorial (visual e auditiva), deficiência

mental e deficiência orgânica médica. Cada uma dessas áreas vai comportar subdivisões.

As pessoas portadoras de deficiência, como todos os seres, são heterogêneas em suas

condições. Deve se evitar a massificação da forma de entendimento e enfrentamento das

situações que se apresentem e que são peculiares e não iguais.

Essa peculiaridade é demonstrativa de que as pessoas portadoras de deficiência não

constituem um grupo único e a parte na sociedade, mas, em última análise fazem parte

deste conjunto de características heterogêneas próprio da humanidade. "Acontece muito de

falarem gritando comigo como se eu fosse surdo, ou ao me conduzirem, me erguem como

se eu tivesse uma deficiência física, eu tenho que explicar que sou apenas cego" (Entrevista

realizada em jan. de 2002). Tem-se, nesse depoimento a ilustração da forma como as

pessoas em geral lidam com a diversidade, não percebendo suas nuanças. Em verdade, o

próprio termo "pessoa portadora de deficiência", ainda é bastante genérico para designar a

questão, mas é o que parece mais adequado, nesta conjuntura, ao menos de forma didática

para delimitar um lugar no social que não desconsidere a condição peculiar das

deficiências.

Muito embora não se possa esquecer que "ninguém é igual a ninguém" e não existe um

único ser que não tenha alguma ou várias limitações e "imperfeições", mesmo que essas

não sejam visíveis. Na pesquisa se pôde constatar que diferenças de gênero têm similitudes

em determinadas atitudes diante da deficiência. Uma situação muito comum que foi

relatada na ocasião dos seminários e das entrevistas diz respeito ao fato das mulheres, em

grande maioria, que não são portadoras de deficiência estarem abertas a serem

companheiras de homens portadores de deficiência.

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A cultura do padrão estético se reproduz numa situação onde os homens cultuam na

feminilidade as normas estabelecidas pelo social para a escolha da parceira. Um homem,

em geral, busca a "perfeição das formas" e dificilmente se colocaria no lugar do "cuidador".

Existem exceções para este fato, mas são situações esporádicas, não é o comum, ver um

homem (não portador de deficiência) como parceiro de uma mulher portadora de

deficiência. Um casal onde o homem é portador de deficiência e a mulher não é portadora

de alguma deficiência, é algo absolutamente comum. E, mesmo os homens que são

portadores de deficiência, geralmente, preferem mulheres que não tenham algum déficit.

"A reabilitação da mulher cega parece muito mais rápida do que a do homem cego. Parece ser cultural o fato da mulher aceitar melhor as dificuldades. Um outro fator muito marcante, em nossa experiência destes anos todos de trabalho na área, é que muitas mulheres videntes casam com homens cegos, mas os homens videntes raramente aceitam parceiras cegas. O homem cego também geralmente prefere se unir a uma mulher vidente" (Seminário realizado em julho de 2001).

O aspecto da função cuidadora e maternal na figura da mulher, que é da cultura, fica

transparente na situação das deficiências em alguns aspectos marcantes que se repetem no

cotidiano da vida social. Uma situação muito freqüente para quem trabalha em instituições

que atendam estas questões é constatar, quase que exclusivamente, a presença da mulher

como responsável por um filho portador de deficiência. Um discurso muito comum na falas

dessas mulheres é que seus parceiros não aceitaram a condição de uma criança que foge aos

padrões. Percebe-se que é difícil para o homem enfrentar situações que fogem da

"normalidade", como se pode observar: "Quando um filho nasce com alguma diferença

normalmente quem assume é a mãe, o pai quase sempre vai embora, deixando claro que o

motivo é esse" (Seminário realizado em julho de 2001).

Uma outra situação muito comum, nesta mesma linha de dificuldade, é o fato de: "No

caso da cegueira adquirida após o casamento, na maioria das vezes, se acontece com a

mulher há a separação. Ao contrário, se for o homem que adquirir a cegueira, a mulher

permanece ao seu lado" (Seminário realizado em julho de 2001). Essas situações peculiares

são demonstrativas de que, de uma certa forma, a cultura molda os comportamentos porque

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atravessa a subjetividade das pessoas tendo uma conseqüência direta na materialidade de

seu modo de viver.

Embora haja uma força propulsora no movimento das relações sociais para que as coisas

não sejam sempre as mesmas, a tendência a reprodução é um fato. Todavia, a criatividade

humana ultrapassa todos os limites e nas mais diversas situações é sempre possível

transformar o real. Na situação particular dos surdos, por exemplo, existe uma forma

peculiar de viver essa singularidade que não se enquadra na forma comum de oralidade que

está presente no tipo de comunicação que se estabelece em nossa sociedade, como já foi

abordado no capítulo dois.

O mundo dos ouvintes, da comunicação oral não é um mundo acessível àqueles que têm

um déficit auditivo e não podem ouvir. Entretanto, estes sujeitos pelo fato de não poderem

ouvir não estão impossibilitados de se comunicarem com o mundo, desde que a

comunicação possa se dar de formas alternativas, peculiares, adequadas a estas

singularidades.

"O que é mais interessante sobre as crianças surdas não é o fato de que seus ouvidos não funcionam, mas a rapidez com que aprendem através de formas visuais da linguagem quando têm oportunidade. Contudo, a educação para as crianças surdas ainda está centrada basicamente na condição de seus ouvidos e não nos caminhos abertos a seu aprendizado" (WRIGLEY, 1996, p.100).

O limite para o conhecimento e a inserção esteve nas imposições e concepções sociais

que os impediram, em um determinado tempo histórico, de exercer sua singularidade. Ou

seja, se eles uma vez surdos, não podem se valer da linguagem oral (padrão), criam uma

linguagem própria, a dos sinais e gestos. Tal linguagem deve ser incluída nos processos

sociais o que implica em se transformar em uma linguagem aceita, considerada e não

apenas utilizada em lugares restritos e em contextos específicos.

“A surdez, como déficit biológico, não priva os surdos da faculdade da linguagem, mas

total ou parcialmente, da língua oral” (SKLIAR, 1999, p.127). Se esta sociedade

possibilitasse a coexistência de uma linguagem alternativa adequada às peculiaridades de

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uma comunicação não oral, seria possível às crianças que nascem com o déficit biológico

da surdez, inserir-se na linguagem.

“O modelo bilingüe propõe, então, dar acesso à criança surda às mesmas possibilidades psicolingüísticas que tem a ouvinte.. O objetivo do modelo bilíngüe é criar uma identidade bicultural, pois permite à criança surda desenvolver suas possibilidades dentro da cultura surda e aproximar-se, através dela, à cultura ouvinte” (SKLIAR, 1999, p.144).

Tem-se no modelo apresentado pelo autor acima referido, um caminho inclusivo na

questão das diferenças que acontecem em função da surdez. Esse modelo se reporta às

experiências escolares que poderão trabalhar de forma a contemplar em seus currículos a

inclusão de duas línguas, duas culturas diferentes, dois contextos diferenciados de modo de

vida. Atualmente o movimento social organizado dos surdos exige o reconhecimento de

que a pessoa surda é um sujeito com identidade surda. Querer tornar o surdo igual ao

ouvinte é uma forma de desrespeito a transpirar identidade e condição de cidadão.

É fundamental, para acessibilidade dos surdos, a veiculação de meios visuais e

tecnologia privilegiando os sinais. A Língua dos sinais11 vai ao encontro do direito, que o

surdo tem, de usar a comunicação visual. A cultura surda se expressa na sua linguagem

peculiar e precisa ser incentivada entre os surdos, em respeito às suas diferenças. Os

direitos reivindicados pelos surdos, estão expressos no documento abaixo (ver anexo 6, o

documento na íntegra), que requerem, conforme se destaca:

"(...) Considerar que a integração/inclusão é prejudicial à cultura, á língua e à identidade surdas (...) Considerar que a integração da pessoa surda não passa pela inclusão do surdo em ensino regular, devendo o processo ser repensado (...) Propor o fim da política de inclusão/integração, pois ela trata o surdo como deficiente e, por outro lado, leva ao fechamento de escolas de surdos e/ou ao abandono do processo educacional pelo aluno surdo(...) (FENEIS, 2000, p.17).

11 "Compreende-se como Língua Brasileira de Sinais o meio de comunicação de natureza visual-gestual, com estrutura gramatical própria, oriunda da comunidade de pessoas surdas do Brasil, sendo a forma de expressão dos portadores de deficiência auditiva e a sua língua natural" (Diário Oficial: Porto Alegre/ RS, 03/01/2000).

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O destaque feito às considerações, acima referidas, acentua o fato quase paradoxal de

estar sendo requerido, pelos surdos, um movimento contrário à inclusão, que tem sido a

tônica dessas análises. Entretanto, a pluralidade das características de cada especificidade e

a história dessas, por si só justificam o enfrentamento que assim se coloca, mesmo sendo

esse colocado na contramão do debate consolidado. Para os surdos garantir cidadania e

pertencimento ao mundo passa pela preservação da sua identidade e cultura surda. Isso

significa a demarcação da singularidade de modo que alguns espaços sejam de fato

específicos, como no caso da educação.

Conforme a Declaração Internacional de Montreal sobre Inclusão: "o acesso igualitário

a todos os espaços da vida é um pré-requisito para os direitos humanos universais e

liberdades fundamentais das pessoas”. (2001, p.1). Dessa forma se compreende a

exigência da preservação da identidade surda como uma forma de garantir sua inserção no

mundo social12. Entretanto, para além das diferenças, a possibilidade de concretização da

cidadania requer um preparo das pessoas, das instituições, de suas técnicas e dos diversos

setores da sociedade para lidar com a diversidade da condição humana.

Problematizando um pouco mais sobre a questão da inclusão se pode dizer que incluir

não significa apenas juntar no mesmo ambiente físico diversidade de culturas e idéias. Faz-

se necessário que aconteça a conexão e uma real relação entre as diferenças, para que se

efetivem práticas inclusivas. Nem sempre apenas a consolidação de política estabelecerá

uma lei consegue garantir a inclusão. "Pelas novas legislações as instituições são

obrigadas a aceitar as pessoas portadoras de deficiência, mas em que condições isso se

faz?" (Entrevista realizada em jan. de 2002) É preciso realizar um trabalho que vá à raiz da

dificuldade em interagir com as diferenças. Isso requer a transformação de velhas

concepções e a garantia de acesso à recursos adequados a fim de que a diversidade possa

ser contemplada nos espaços sociais. O que, por sua vez, pressupõe investimento

econômico e cultural.

12 "Em dezembro de 1999, pela lei n.º 11.405, é oficializado em nosso Estado (RGS) a LIBRAS assim como os demais recursos de expressão a ela associados, como meios de comunicação objetiva e de uso corrente. Fica assegurado aos surdos o direito à informação e ao atendimento em toda a Administração pública, direta e indireta por servidor em condições de comunicar-se através da LIBRAS" (BRIZOLA, 2000, p.223).

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"A lei diz que toda a escola não pode discriminar crianças

portadoras de deficiência. Entretanto, na prática as escolas

não têm recursos e não estão preparados para receber as

diferenças, os professores não estão preparados para receber

a criança com algum déficit no desenvolvimento ou com

alguma síndrome. As coisas são feitas mais na boa vontade

do que com condições estruturadas adequadas" (Entrevista

realizada em jan. de 2002).

Analisando essa fala se pode ilustrar a complexidade da inclusão, que é atualmente uma

afirmação de legislações e declarações internacionais, como tem sido apontado ao longo

deste trabalho. Contudo, o cotidiano de pessoas com deficiência denuncia o despreparo de

um mundo que não foi feito para todos e sua "lógica" de funcionamento ocasiona a

separação entre as pessoas. Para CECCIM (2000), se pode incluir crianças em uma sala de

aula e essa continuar segregada, se ela não for atendida em sua necessidade de expressão.

Para o mesmo, "(des) segregar" é tirar a segregação e essa última é o que tem que ser

alterado.

A inclusão pode acontecer, mantendo a segregação, o que não muda a situação das

pessoas. "Se um aluno negro estiver em sala de aula, mas ninguém falar com ele, se ele não

for solicitado a participar, ele continuará segregado dentro do grupo onde está incluído"

(Diário de Campo, maio de 2000). A verdadeira inclusão tem que garantir o fim da

segregação, da separação e propiciar como parte de seu movimento, a diversidade.

A grande dificuldade da vivência escolar das crianças portadoras de algum tipo de

deficiência, segundo SKLIAR (1999), é resultado do “modelo clínico terapêutico”, e

conforme SASSAKI do “modelo médico da deficiência” x “modelo social da deficiência”

(1997). Há entre esses "dois modelos" um similar limite, que é a ênfase em uma visão

clínica da deficiência. Em uma “obsessão curativa da medicina” não são consideradas as

possibilidades educativas das crianças, a visão está centrada no aspecto "cura-doença".

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O “modelo clínico terapêutico” luta contra o déficit, contra a deficiência e, nesse

processo, há uma baixa expectativa pedagógica em relação à criança, um superinvestimento

clínico em detrimento do investimento pedagógico. Não se desenvolve uma reflexão que

implique o sistema de ensino e seus métodos. A criança é jogada para fora da escola pela

“necessária” visita a inúmeros especialistas, terapeutas que devem dar respaldo ao

desenvolvimento destas crianças, que são portadoras de algum déficit. Quantas crianças

freqüentaram a escola e ao fisioterapeuta, ao neurologista, ao psiquiatra, ao fonaudiólogo,

ao psicólogo, ao terapeuta de família e a outros especialistas, tudo ao mesmo tempo.

No caso das crianças surdas, muitas foram obrigadas a sair das salas de aula para

transitar pelos médicos com o objetivo de “corrigir os defeitos da fala” (SKLIAR, 1999,

p.111). A super valorização de uma visão na qual a deficiência é uma doença e a obstinação

em “vencer” o déficit é equivalente a uma não aceitação dos limites humanos significa se

trata de uma rejeição das possibilidades de construir alternativas de potencialidades dentro

das restrições que alguns déficits produzem. O “modelo médico” de igual forma acentua o

déficit, centra seu entendimento e sua técnica na patologia do sujeito. “O modelo social da

deficiência”, apontado por SASSAKI, questiona o modelo anterior, de modo que:

“Pelo modelo social da deficiência, os problemas da pessoa com necessidades especiais não estão nela tanto quanto estão na sociedade. Assim, a sociedade é chamada a ver que ela cria problemas para as pessoas portadoras de necessidades especiais, causando-lhes incapacidades (ou desvantagem) no desempenho de papéis sociais ..” (1997, p.47).

A questão da acessibilidade se impõe como uma prerrogativa para uma sociedade que se

pretenda democrática e que queira cumprir os princípios da ONU da “igualdade e

equiparação de oportunidades”. Nessa perspectiva de inserção, se tem uma implicação

contextual para responder às demandas dos indivíduos e a responsabilidade de incluir nos

processos sociais, a característica singular do seres. Não é mais o sujeito patológico que se

percebe, a estrutura da sociedade é que deve ser abrangente e abarcar as diferenças de seus

sujeitos. Sendo assim inverteu-se a lógica do “modelo médico” e da necessária adaptação

do sujeitos ao seu meio e a uma cultura previamente determinada.

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Nesta ótica talvez seja possível compreender, conforme SACKS, que: uma criança

portadora de alguma deficiência se desenvolve como qualquer outra criança, por outro

percurso, de outra maneira, por outros meios. Para o pedagogo é importante estar ciente da

singularidade desse caminho (1995 p.17). A padronização de conceitos, de métodos de ação

não mais responde às diversas e diferenciadas necessidades dos sujeitos desta sociedade.

Inverter essa lógica levará a encontrar sentido na convivência com singularidades

diferenciadas entre os indivíduos. Deveria ser construído um lugar, no qual, a expectativa

sobre a vida social possa ser o encontro das singularidades individuais muito mais do que

de uma igualidade entre os sujeitos.

4.3 ACESSO A UMA OUTRA CULTURA

Uma vez mais se pode aproveitar a arte ou um expoente dessa para tematizar sobre a

questão da diversidade e as relações sociais. A referência que se vai utilizar para iluminar

essa análise será a figura de CHARLIE CHAPLIN, no que diz respeito a um aspecto de sua

vida. Trata-se de um ator inglês, considerado um dos mestres da comédia cinematográfica.

O governo britânico pretendia homenagear no ano 195613 esse artista pela genialidade de

sua arte. Entretanto, a condecoração foi suspensa por sugestão do corpo diplomático

britânico, que na época considerou perigoso ofender a opinião pública americana.

O governo americano, através de uma investigação da Comissão parlamentar "Un-

American" apontou CHAPLIN como "defensor notório de causas esquerdistas" e

comunista, em 1952. Na época este ator inglês ao sair dos Estados Unidos foi proibido de

voltar e se estabeleceu na Suíça. "Um Chaplin frágil e em cadeira de rodas recebeu a

distinção real de cavaleiro da Rainha Elizabeth mais de duas décadas depois, em 1975, 18

meses antes de morrer" (exclusivo/noticias/ terra/ online/2002/07/21; p.1).

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O que se tem com o esse exemplo ilumina duas facetas de uma reflexão que se enquadra

na linha de pensamento desenvolvida nesta tese. Primeiramente, a relação entre sujeito e o

contexto. Um sujeito, independentemente do fato de sua genialidade ou de seu déficit, se

não corresponder às expectativas do meio social, fica fora do mesmo, em algum aspecto.

Foi o que aconteceu com CHARLIE CHAPLIN, muito embora fosse ele um dos maiores

mestres da história do cinema, toda sua genialidade foi reduzida a seu "mau

comportamento". Uma vez que o artista demonstra contraposições ao que estava

estabelecido na ordem do social não recebera as condecorações oficias, as quais têm direito,

pela importância social de sua obra. E, aqui se tem o necessário enquadre em um molde,

sob pena da exclusão.

Dentro dessa linha analítica uma outra face da questão se demonstra no fato de

CHAPLIN após se apresentar como uma figura "frágil", do ponto de vista da imagem

pessoal se torna então "apto" para ser condecorado. O artista já não significa uma ameaça

ao sistema estabelecido e "merece" ser premiado por estar em uma condição de

"desvantagem" pessoal: velho e em cadeira de rodas. A condição de menoridade reportada

a situações de deficiência e também a condição da terceira idade minimizam o significado

político de uma pessoa que teve uma história com essa marca. Portanto, sendo assim, o

artista pode ser homenageado sem ofender as autoridades norte-americanas e sem colocar

em risco a diplomacia britânica.

TOMAZ (2000, p.95) considera que não se pode pensar que a questão em relação à

diversidade cultural se reduza a "tolerância e ao respeito". A colocação assim referida

remete ao fato de se tratar o assunto no âmbito de "sentimentos nobres" que obscurecem a

própria realidade acerca das diferenças. Nas escolas, em geral, pode acontecer algo assim:

"apenas uma das professoras aceitou acolher em sua sala uma menina em cadeira de

rodas, foi considerada uma heroína, tinha paciência de carregá-la, levá-la ao banheiro,

fazer os outros colegas aceitá-la. Ela aceitou uma dura tarefa". (Diário de campo, ago. de

2002).

13 Segundo informações de arquivos recém-desclassificados divulgados pelo escritorio de Registros Públicos,

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Circunstâncias como essa demonstram a dificuldade de inserção, nas principais

instituições do social e de grande importância para a participação do sujeito, de pessoas que

se encontram em situação diferenciada das demais. A primeira situação, geralmente, é a de

fechamento do acesso. A segunda situação é do "acolhimento", da "tolerância" para com a

diferença, quando se consegue chegar a essa. Nessa ótica acontece um encobrimento das

relações de poder que permeiam os processos sociais que produzem tanto a identidade

quanto a diferença. A idéia que perpassa o conceito de tolerância parece saturada de

sentimentos paternalistas e de superioridade. Esses são conceitos que não demonstram o

caráter político presente nas relações sociais e nos fatos do cotidiano e da historia.

A chamada "tolerância para com a diferença" situa a estranheza diante do outro como

algo natural e não relacional. Não se faz a conexão entre sujeito e contexto. A preocupação

que parece estar permeando tais conceitos leva a se considerar, que: "(...) o outro é o outro

gênero, o outro é a cor diferente, o outro é a outra sexualidade, o outro é a outra raça, o

outro é a outra nacionalidade, o outro é o corpo diferente" (TOMAZ, 2000, p.97). Tudo

aquilo que não condiz com o pensamento oficial e hegemônico de uma época significa "o

outro".

Tolerar significa aceitar a diferença como algo ainda de fora dessas relações sociais e

não como algo constitutiva das mesmas. A diversidade cultural é uma questão social e

política, com esse entendimento se conclui que não se trata de respeitar e/ou tolerar a

diversidade e sim reconhecer a mesma como condição humana e social dos seres. Portanto,

necessário se faz à construção de uma nova cultura ou de uma "reconstrução social", que

comporte a real dinâmica dos sujeitos e do movimento em seu contexto.

"A questão cultural dos preconceitos é muito forte, é um grande entrave. Hoje em dia já existem comissões para avaliar as barreiras arquitetônica dos prédios da cidade, mas não existe nada para avaliar a situação dos preconceitos e concepções. A questão cultural do culto à normalidade e a uma estética determinada é muito forte (Diário de Campo, ago. de 2001).

citados no jornal SUNDAY TELEGRAPH, Grã Bretanha (exclusivo/noticias/ terra/ online/2002/07/21; p.1).

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THOMPSON (1995, 175-181), em seu estudo sobre os diferentes sentidos da cultura,

acentua, denominando de "concepção simbólica", que a análise da cultura pressupõe a

percepção de "camadas de significados". Significados esses que os indivíduos estão

"produzindo, percebendo e interpretando” em ações e expressões diárias. A produção de

uma prática social significativa para os indivíduos se traduz na possibilidade dessa

produção de sentido se concretizar nas vivências e trocas entre os sujeitos ou na

impossibilidade disso acontecer.

A produção do significado é reproduzida no cotidiano, ou seja, se cultua os significantes

e a tendência é repeti-los até que seja possível construir novos significados. A produção da

cultura está imersa em relações de poder e inseridas em contextos históricos-sociais

determinados. Nesses contextos podem estar explícitos ou implícitos relações de poder que

são produzidas e reproduzidas, no meio onde o sentido é criado na vivência e a experiência

social se reflete no sentido. Cultura e contexto social estão em uma conexão direta, onde a

inter-relação entre ambos é permeada pela estruturada da sociedade.

"Quando relações de poder estabelecidas são sistematicamente assimétricas, então a situação pode ser descrita como de dominação. Relações de poder são sistematicamente assimétricas quando indivíduos ou grupos de indivíduos particulares possuem um poder de maneira estável, de tal modo que exclua - ou se torne inacessível, em grau significativos a - outros indivíduos ou grupos de indivíduos, não importando a base sobre a qual esta exclusão é levada a efeito" (THOMPSON, 1995, p.199-200).

Na temática em questão, acerca da diversidade da condição humana e das deficiências

nesse contexto, a exclusão e o não acesso ao social vêm na esteira da produção simbólica e,

de uma cultura de normalidade que atinge a materialidade do modo de vida dos grupos

desta sociedade. Um modo de vida, no qual a exclusão é uma tonalidade marcante para

todo aquele ser que não corresponde ao molde imaginado para as pessoas se enquadrarem.

As relações de poder que permeiam a questão da produção da cultura vão balizar a forma

como os seres se situam na complexidade de seu convívio. O lugar que cada qual vai

ocupar na totalidade da vida em sociedade é apontado por esta construção. Lugar esse que

dá e/ou tira a possibilidade de acesso ao social.

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Portanto, a conexão entre a produção simbólica e a expressão prática da vida das pessoas

está atravessada pela estrutura social que criou as condições de acesso e de interdição. Daí

se pode concluir que, para as pessoas portadoras de deficiência terem acesso a uma nova

condição de vida será necessário ter acesso a produção de uma nova cultura. E, será

fundamental a transformação daquilo que se cultiva ou se cultua no meio social. Essa

transformação é requerida constantemente nas falas das pessoas portadoras de deficiência,

como se pode constatar:

"No elevador quando se chega de cadeira de rodas eles querem te mandar para o elevador de carga: pô! eu não sou carga eu sou gente! Há um enorme desconhecimento da sociedade, uma cultura que não contribui para que as condições sejam melhores para a PPD" (Entrevista realizada em dez. 2001).

Nesta altura do debate se podem retomar algumas considerações de GOFFMAN (1982),

no sentido de fazer um contraponto ao mesmo, a partir do resultado obtido na pesquisa

desta tese de doutorado. Esse autor faz algumas recomendações sobre determinadas

habilidades que os "estigmatizados" podem adquirir para se relacionarem com os

"normais". Tais habilidades vão servir para seu "bom ajustamento" no meio social, para não

"tornar constrangedor" o convívio com os demais. Conquistar, essas habilidades, se torna

um esforço que o sujeito portador de um "estigma" poderá fazer a fim de ser aceito e

compreendido pelas pessoas, em sua situação, sem maiores distanciamentos.

Há, nesses pressupostos, um sentido de adaptação, no qual a pessoa estigmatizada

deverá se moldar a uma sociedade que não está preparada para conviver e reconhecer a

diversidade. Nessa perspectiva, será preciso, desenvolver habilidades para responder

positivamente ao padrão colocado na vigência das relações sociais. Caberá ao sujeito e não

ao meio a transformação das condições que estão colocadas. Tal entendimento pode ser

analisado, nas palavras de GOFFMAN:

"(...) Observações indelicadas de menosprezo e de desdém não devem ser respondidas na mesma moeda. O indivíduo estigmatizado deve não prestar atenção a elas, ou, então, fazer um esforço no sentido de uma reeducação complacente do normal, mostrando-lhe, ponto por ponto, suavemente, com delicadeza, que a despeito das aparências, é, no fundo, um ser humano completo (...) quanto mais o estigmatizado se desvia da

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norma, mais admiravelmente deverá expressar a posse do eu subjetivo-padrão se quiser convencer os outros de que o possui (...) (1982 p. 127).

Na linha de raciocínio do trecho acima destacado está colocado a tolerância que a pessoa

dever adquirir em relação ao seu contexto e aos "outros" desse contexto. O "outro" aqui é

aquele que está na posição social "correta" em contraposição ao "desvio" apresentado por

quem porta um "estigma". A tolerância que vai significar a capacidade de compreender a

incapacidade, do social, de entender que as diferenças e as deficiências não significam a

impossibilidade do ser pertencer ao mundo humano. O fato dele se diferenciar da "norma-

padrão", não o faz menos humano.

O que perpassa a perspectiva, em questão, é a necessidade de ajustamento ao social. Ao

contrário desta visão, atualmente é colocado com ênfase, pelo atual movimento social das

pessoas portadoras de deficiência, pela nova política pública para PPD e PPAH, que é a

sociedade que deve se adaptar às singularidades individuais. A "posse do eu subjetivo

padrão" é contrariada pelas idéias mais progressistas, que hoje em dia se colocam, acerca

do debate da diversidade, como foi demonstrado ao longo deste trabalho. A exemplo disso,

se pode apreciar em um trecho da entrevista que segue, o seguinte:

"Um cego para atravessar uma rua precisa de ajuda, mas ajudá-lo não é sair empurrando qualquer cego que se vê pela rua, tem que perguntar para ele se quer ser ajudado e qual a forma mais adequada de prestar esta ajuda, só a pessoa pode dizer. O treinamento das pessoas, em geral, para conhecer as reais necessidades da PPD é fundamental para melhor a inserção da mesma e o desconhecimento é o maior entrave" (Entrevista realiza em maio de 2002).

Não se trata de trabalhar com as pessoas portadoras de deficiência para que elas

aprendam a entrar na engrenagem social, mas de ampliar os horizontes desta engrenagem.

Só assim se poderá construir uma sociedade verdadeiramente democrática onde se possa

exercer o direito à cidadania. Aproveitando aqui o conceito de cidadania formulado por

MARTINELLI (1998, p142-145), situa a cidadania na esfera do "pertencimento das

pessoas à sociedade", em contraposição a idéia de cidadania atrelada ao mercado

econômico e ao poder de consumo. Ser cidadão é poder pertencer ao seu mundo, fazer parte

do mesmo. A problemática posta na questão das deficiências, no emaranhado das relações

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sociais, é justamente a interdição desse pertencimento. Para reversão deste quadro social

será preciso que haja maior conhecimento, nas instâncias da sociedade, acerca das

adaptações necessárias do ambiente e da cultura para incluir as pessoas que portam

deficiências ou quaisquer diferenças menos habituais.

"Se nas lojas os vendedores fossem mais preparados poderíamos ir mais às compras, se os guardas de rua receberem treinamento saberão abordar de forma adequada um cego, um surdo. A sociedade precisa crescer no contato com gente diferente (Entrevista realizada em dez. de 2001).

Na entrevista acima, se constata que o acesso da pessoa aos lugares depende do fato de

que haja nos mesmos uma outra maneira de recepção, alternativas diferenciadas de

abordagens entre as pessoas, algo que pode ser criado de acordo com a necessidade do

outro. A possibilidade do convívio entre as diferenças e a "troca das cores" poderá

consolidar o conhecimento acerca desta questão e a permanência do diverso na dinâmica

relacional entre as pessoas. O acesso das pessoas ao seu meio está imbricado na

oportunidade de convivência e conhecimento. O molde de convivência apresenta regras

fixas de ser e se comportar nos grupos, fora desses se corre o risco de segregação. Eis o

aspecto das relações sociais que precisa ser revisto e reinventado.

"Eu aprendi a me comunicar com minha noiva surda olhando para os movimentos da mão dela. Cada vez que eu olho para os gestos que ela faz mais eu aprendo o que ela diz" (Entrevista realizada em nov. de 2002).

O que se pode inferir desse exemplo, será o fato de olhar para o outro, tal qual ele se

apresenta e, a partir daí ser possível a percepção do reconhecimento, enquanto sujeito,

desse outro. Na experiência pessoal informada acima a pessoa aprende a entender seu

parceiro a partir do momento em que se dispõe a decifrar seus gestos. Isso é possível,

quando se abrirem os horizontes da expectativa acerca do que deve ser o outro, ou seja,

quando se supera o objetivo de que todas as pessoas estejam aptas ao enquadramento no

molde que define o que é ser humano. As pessoas precisam ter ocasião de se encontrarem

umas com as outras em de novas práticas sociais e não unicamente naquela que está

estabelecida previamente pelas convenções sociais.

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"A prática social, dialeticamente concebida, na perspectiva que a estamos trabalhando,

é, por excelência, a possibilidade de operar com projetos políticos que tenham por

horizonte a consolidação da democracia e da cidadania" (MARTINELLI, 1995, p.148).O

novo rumo a ser tomado afim de que se tenha "um mundo para todos" requer essa

tonalidade de prática social mencionada pela autora. Uma prática social que abra espaço

para o pertencimento de todos os seus sujeitos sociais.

Pertencimento é um direito de todo o ser pelo simples fato de já fazer parte da

humanidade, uma vez que seja humano. Todavia, se tem uma construção social que segrega

uma infinidade de pessoas do convívio em sociedade, por todos os fatos já mencionados

neste trabalho. Para as pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades ter um lugar

garantido no contexto da vida em comunidade requer acessibilidade. A construção

arquitetônica e simbólica das cidades não se concretizou incluindo as diferenças marcantes.

Acessibilidade significa tornar a sociedade capacitada, apta a reconhecer que a diversidade

faz parte de seu movimento e será preciso criar estruturas, em suas instâncias, que

comportem as múltiplas variações da expressão humana.

De acordo com a CARTA PARA O TERCEIRO MILÊNIO14: "No terceiro milênio, a meta de

todas as nações precisa ser a de evoluírem para sociedades que projetam os direitos das

pessoas com deficiência mediante o apoio ao pleno empoderamento e inclusão delas em

todos os aspectos da vida" (1999, p.1). Conforme o demonstrado ao longo deste trabalho há

um movimento internacional que requer, para as PPD, a inclusão do direito a fazer parte do

mundo. O que por si só já indica o nível de distanciamento de uma vida realmente humana,

no qual se encontra a sociedade.

Tendo em vista que a requisição desse direito significa que, em pleno século XXI, ainda

não se organizou um modo de vida social comportando os diferentes sujeitos em sua

constituição enquanto tal. Sendo assim, a acessibilidade arquitetônica e cultural é a via pela

qual a heterogeneidade dos sujeitos poderá ser incluída. Na história da humanidade e, como

14 Esta Carta foi aprovada no dia 09 de setembro de 1999, em Londres, Grã-Bretanha, pela Assembléia Governativa da REHABILITATION INTERNACIONAL, estando Artur O' Reilly na Presidência e David Henderson na Secretaria Geral.

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um resultado da questão social, foram criadas inúmeras interdições e barreiras que

impediram determinados sujeitos de ter acesso ao mundo. O reconhecimento, embora

tardio, de toda essa interdição é um traçado que conduz a desconstituição das interdições a

partir da transformação da cultura e das condições materiais estabelecidas até então.

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V- O DESENHO DA PESQUISA E SEU FUNDAMENTO TEÓRICO-METODOLÓGICO

O percurso percorrido até está altura do desenvolvimento desta tese será descrito neste

último capítulo. Serão descritos os passos desenvolvidos nesta travessia, em que se pôde

dialogar com os diversos sujeitos que deixaram suas opiniões e reflexões acerca da temática

da diversidade e as relações sociais. Refletindo sobre as diferentes áreas das deficiências

procurou-se a necessária interlocução com os sujeitos que vivenciam suas diversas

diferenças, enquanto uma limitação física, sensorial ou psíquica nos processos desta

sociedade.

A pesquisa proposta tornou-se viável graças à interlocução com as pessoas portadoras de

deficiência em suas áreas diversas, com profissionais da FADERS e com gestores da

política pública para pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades. A partir desse

debate, foi possível realizar uma construção conjunta de formulações acerca do significado

das diferenças e do processo social de exclusão/inclusão que envolve essa questão. Neste

capítulo serão explicitadas as concepções que deram base à metodologia de pesquisa e os

procedimentos desenvolvidos em sua implementação.

5.1 CONCEPÇÕES ACERCA DA CONSTRUÇÃO DESTA TRAVESSIA

A temática desta tese versou sobre a diversidade na perspectiva das relações sociais,

tendo sido desenvolvida a partir da vivência e da interpretação de uma investigadora na

área de atuação do Serviço Social. Um dos campos de pesquisa, a FADERS, foi o locus

específico de prática social, muito embora a especificidade da área social esteja justamente

em uma perspectiva de abranger diversos ângulos e aspectos do real. Na qualidade de

assistente social e investigadora deste social almejou-se desvendar e revelar os meandros

nebulosos do contexto de ação, com o objetivo de dar maior visibilidade nas situações

apresentadas e enfrentadas no real.

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A partir da superação progressiva da opacidade que cerca os processos sociais e da

aproximação sucessiva daquilo que pode ser o real e sua problemática principal. A

finalidade da pesquisa foi a de poder encaminhar estratégias de ações na trilha da

transformação permanente das situações demandas pelo real, um trabalho que não pode ser

pensado de forma solitária e que só poderá tomar corpo no conjunto, nas parcerias que se

vão consolidando ao trilhar os caminhos. A pesquisa apresentada ao longo deste trabalho

foi construída em uma abordagem qualitativa, será explicitada neste capítulo.

Algumas palavras são consideradas "chaves" para a compreensão das mais

significativas características de uma abordagem qualitativa na pesquisa, para a apreensão

do conteúdo que dá sentido ao que diversos autores denominam de qualitativo. Essas

palavras vão dando sentido e forma àquilo que se vai pesquisar e ao instrumental que se irá

dispor para equipar tal investida. Na perspectiva qualitativa o dispositivo metodológico em

si não se constitui na parte principal da pesquisa, mas é o que pode dar mobilidade a

investigação, é o que pode levar ao real, de forma a poder abordá-lo estrategicamente, de

um jeito organicamente pensado, a fim de submeter o real às inúmeras indagações do

investigador e daqueles outros sujeitos implicados no processo de investigação.

As palavras que se destacaram para explicar o entendimento sobre este tipo de

abordagem, foram: processo; significados; descrição; interpretação; ambiente natural;

revelação; prática social; fortalecimento; conexão; relação; cotidiano-sociedade e

transformação. Em torno dessas palavras, desenvolve-se, uma concepção sobre o

significado da pesquisa qualitativa em uma abordagem social.

O substancial dessa investigação foi a discussão sobre os processos sociais de uma

sociedade que suprime as diferenças e quer submeter as subjetividades individuais a um

padrão ideal e irreal de ser humano. Pretendeu-se indagar esses processos sociais que se

desenvolveram, de forma a não permitir a inclusão e a condenar a presentificação dos

sujeitos em seu contexto, os relegando à exclusão e ao isolamento.

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As pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades, por apresentarem suas

diferenças de forma mais visível, sofrem de um brutal processo de exclusão social,

exatamente pelo fato de significarem, também, a expressão da condição de vida real que se

contrapõe a vida social idealizada do homem perfeito, em um padrão da dita “normalidade’.

A visibilidade dos chamados “defeitos” e daquilo que é considerado fora do padrão de

“normalidade” põe em cheque esse próprio conceito e todo o processo social de uma

sociedade histórica e culturalmente organizada para atender e incluir o ser humano

“perfeito”, “normal”, “possuidor” e “belo”.

A prática da pesquisa é apresentada, também, em caráter estratégico para que se dê o

processo de fortalecimento de todos aqueles sujeitos envolvidos no processo da

investigação. No desenrolar da investigação, se faz necessário realizar parcerias, com a

finalidade de encontrar novas alternativas para abordar a questão em pauta. Trata-se de um

somatório de forças para atingir um objetivo em comum que é tornar determinado lugar um

local de expressão do sujeito, enquanto um ser político participativo e dotado do direito de

estar incluído, de fazer parte, de se presentificar no mundo ao qual pertence. Na palavra

chave, transformação, se encontra o propósito do processo de trabalho e o próprio sentido

do investigar.

Para que compreender se não for para mudar? Ou melhor, para mudar o real é preciso

conhecê-lo mais concretamente, e por isso é preciso indagá-lo, perscrutá-lo, revisá-lo

constantemente. Nesse sentido a prática institucional, cotidiana e social na qual, a

pesquisadora, se inseriu como trabalhadora e investigadora do social, deve ser uma prática

sempre revisionada, questionada, desconstituída e reconstruída a fim de que se faça jus ao

movimento dinâmico e contraditório presente na realidade da vida social e subjetiva.

A realidade estruturada e concreta inclui relações ocultas e invisíveis entre os elementos

do todo, a serem desvendadas. O que é dado ou oculto não significa uma forma eterna de

existência. O que é, pode deixar de ser na fase posterior, considerando a provisoriedade da

história. Para LOWY (1978) o estruturalismo histórico indica a importância da apreensão

das leis ocultas do todo em sua historicidade.

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183

O método dialético é apropriado para captar o evoluir histórico de um fenômeno social

desde seu interior, realizando as conexões necessárias, relacionando as partes entre si e

situando-as na totalidade concreta. Esse método adentra no “âmago” de um fenômeno, em

busca de sua essência. Sai da superfície e aparências iniciais, não se contentando com a

primeira impressão ou com afirmativas isoladas sobre a contextualidade, procurando

entender o dinamismo da realidade social. Propõe-se à crítica e autocrítica constantes.

O fenômeno se apresenta na experiência imediata, separado do seu contexto, do seu

significado e de sua essência. O imediatismo e a evidência dos fenômenos do cotidiano

penetram a consciência dos indivíduos, segundo KOSIK (1976 p.210). Na relação entre

fenômeno e essência, a essência não se manifesta diretamente aos investigadores porque

fenômeno e essência não se dão ao mesmo tempo.

A essência, apenas sob certos aspectos, de forma parcial, se manifesta no fenômeno. O

fenômeno esconde a essência, ao mesmo tempo em que a indica de alguma maneira. A

“coisa em si”, “a estrutura oculta da coisa” deverá ser desvendada por quem quer

compreender o real. Esse precisará desmontar o caráter imediato e derivado dos fenômenos

para explicar o mundo de forma crítica e “destruir a pseudoconcreticidade” que, para

KOSIK, significa o mundo das criações fetichizadas.

“.. não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí chegar aos homens em carne e osso. Parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida” (MARX, 1993, p. 37).

A fim de que seja possível adentrar o âmago dos fenômenos se faz necessário encontrar

as conexões no modo de vida dos sujeitos que vivem e fazem a história da humanidade. O

contexto humano é relacional. Há uma conexão entre os indivíduos sociais e a sociedade.

MARX (1993) parte, em seus pressupostos, da forma como as pessoas organizam os meios

de produzir e reproduzir o necessário para suas vidas, constituindo assim sua vida social,

que é essencialmente prática.

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Considerar o aspecto prático da vida social é incluir a análise do conjunto de

circunstâncias que envolvem a atividade dos sujeitos. Perceber a possibilidade de alteração

das atividades é considerar que o sujeito pode introduzir mudanças em sua própria vida e

no contexto social. No cotidiano da vida de cada um os fenômenos se apresentam como se

fossem objetivos, absolutamente reais e concretos. A aparência não é igual à essência. O

método dialético se propõe a um desmonte, a destruição da aparente “objetividade do

fenômeno”. Pretende conhecer a verdade do fenômeno por detrás de sua aparência. Para se

chegar ao conhecimento da realidade ou a “verdade aproximativa” desta realidade, se faz

necessário, deslocar os fatos do seu contexto real, isolando-os e tornando-os independentes.

KOSIK (1976, p.15), denomina de decomposição do todo o movimento da investigação

em que cada elemento do objeto em estudo, suas reificações, suas transformações, devem

ser compreendidas a partir de sua situação no conjunto. Desconsideram-se tanto conceitos

gerais quanto fatos puramente individuais. O desmonte é aproximativo, pois, a realidade é

complexa o bastante para possibilitar a análise do conjunto dos dados concretos, mesmo

com o objeto desmontado. O que acontece são aproximações sucessivas “no vai e vem

permanente entre o todo e as partes” (GOLDMANN, 1986, p.36).

Vai-se avançando no conhecimento geral dos fatos à medida que se melhor conhece seus

elementos, assim será possível, o retorno “ao conjunto de maneira operatória”. Para

compreender o sentido dos fatos do real e sua estrutura é preciso tomar distância dos

mesmos e submetê-los à própria prática: “o homem só conhece a realidade na medida em

que ele cria a realidade humana e se comporta antes de tudo como ser prático”

(GOLDAMANN, 1986, p.22).

No caráter prático indicado acima está também o caráter concreto que sugere a

descoberta do homem que vive a sua vida diária, por detrás da realidade reificada e da

cultura dominante. Para se chegar a este concreto, é preciso negar a imediaticidade, a

“concreticidade sensível”, ou seja, o conhecimento que se tem no momento inicial de

aproximação com as situações que se colocam no cotidiano, aprofundando as primeiras

impressões e indo em busca dos desvendamentos necessários das obscuridades do real, de

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suas tramas e inter-relações.

Realiza-se um movimento contínuo de oscilação entre o conjunto e as partes, do todo

através da mediação da parte na localização do específico, do singular no todo. O

materialismo dialético-histórico considera o específico, o singular, o particular, a totalidade.

Considera a atividade concreta dos seres humanos, atividade em seu conjunto, em seu

movimento histórico sem isolar as partes. Busca perceber as relações internas dos

fenômenos na conexão entre seus elementos.

“... é o movimento do todo para a parte e da parte para o todo, do fenômeno para essência e da essência para o fenômeno, da totalidade para contradição, da contradição para a totalidade, do objeto para o sujeito, do sujeito para o objeto” (KOSIK, 1986, p.30).

No dinamismo do método dialético se considera um outro aspecto fundamental: o

caráter total da atividade humana que indica a ligação entre história dos fatos econômicos

sociais e a história das idéias. A realidade social não pode ser recortada em partes

estanques, segmentalizadas, a mesma é dinâmica, complexa, concreta, totalizante.

Aceitando a totalidade, como categoria do método dialético, se percebe a realidade como

um todo estruturado, não caótico, com leis íntimas, que deverão ser desvendadas por

conexões necessárias, que possam mostrar o lugar ocupado pelos fatos no contexto em que

a realidade se apresenta.

Sendo assim um fato pode vir a ser compreendido, entretanto, mesmo que todos os fatos

fossem desvendados, o conjunto deles não indicaria a apreensão da totalidade, que não é a

soma de todos os fatos. A infinitude dos aspectos e propriedades da realidade indica que

essa é incognoscível em sua totalidade concreta. O todo estruturado não é perfeito, nem

acabado, vai sendo criado em um processo que apresenta um movimento em espiral. Para

KOSIK, na concepção do materialismo dialético, não se pretende conhecer o quadro total

da realidade, nem todos os aspectos da realidade. A totalidade aparece como categoria de

análise do real e suporte metodológico e o: “... conhecimento de fatos e conjuntos de fatos

vem a ser conhecimento do lugar que eles ocupam na totalidade do próprio real” (KOSIK,

1986, p41).

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Na sociedade capitalista não há autonomia da economia, nem autonomia das relações

sociais. Há uma complexidade social de implicações e conexões entre as várias esferas da

vida social com a unidade formada pela estrutura econômica. Acontece o que FRIGOTTO

(1989) denomina de “imperativo do modo humano de produção social da existência”. A

teoria do materialismo histórico considera o significado da estrutura econômica e

demonstra a influência do mesmo sobre as demais esferas da vida e com isso o referido

"imperativo do modo de produção", como algo presente no cotidiano. Esses conceitos não

relegam a segundo plano as outras esferas da vida social, nem tampouco as consideram de

ordem inferior.

Não há nenhuma redução, na perspectiva dialética, da consciência social, da filosofia, da

arte, da cultura às condições econômicas. O que acontece é uma investigação profunda dos

fatos e de suas conexões. Trata-se de uma atividade analítica que pretende o

desmascaramento do “núcleo terreno das formas espirituais” (KOSIK, 1976). O

radicalismo da filosofia dialética materialista significa o fato de seu método buscar a raiz da

realidade social, ou seja, busca entender o homem como sujeito objetivo, concretamente

histórico, que cria a realidade social, a partir do próprio fundamento econômico. “O caráter

social do homem, não consiste apenas em que ele sem o objeto não é nada, consiste antes

de tudo em que ele demonstra a própria realidade em uma atividade objetiva” (KOSIK,

1976, p.113).

O método dialético com base em MARX não faz nenhum reducionismo à economia,

apenas parte da atividade prática objetiva dos homens para desenvolver e explicitar os

fenômenos culturais e demais fenômenos da vida social. A indicação da dimensão social

no estudo dos fatores humanos é também apontada por GOLDMANN que entende o

pensamento dialético acentuando o caráter total da vida social e não considera possível

separar “seu lado material do seu lado espiritual” (1986 p.66). Para esse autor a

predominância dos fatores econômicos acontece na relação dialética do homem como ser

vivo e consciente, situado no mundo, no ambiente de realidades econômicas, sociais,

políticas, intelectuais e religiosas.

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GOLDMANN amplia o sentido da palavra econômico, de acordo com MARX,

observando o sentido relacional dessa palavra. A forma de relação de produção da

existência social, como uma forma de relação dentro do contexto da sociedade, vai

“determinando a consciência dos homens”. Essa determinação fica bem explícita por

KOSIK (1976) que nos fala do recíproco intercâmbio de pessoas e coisas, a personificação

das coisas e a coisificação das pessoas. Na vida cotidiana, é comum, situar-se diante do

“fetiche” do consumo, das máquinas, da sociedade industrial, eletrônica, informatizada, que

foi tomando lugar da sociedade humanizada, gerenciada por leis éticas que reconhecem o

valor do homem em primeiro lugar. Isso indica, conforme KOSIK:

“.. às coisas se atribuem vontade e consciência, e por conseguinte o seu movimento se realiza consciente e voluntariamente e os homens se transformam em portadores ou executores de movimento das coisas” (1976, p. 174).

A vida fechitizada é apenas uma faceta da vida humana. O homem é o sujeito capaz de

romper com o que está estruturado. Tem a possibilidade de transformar, por suas ações, a

construção social que ele mesmo realizou, através da consciência e da ação. Entender esse

potencial significa reconhecer um fato humano vivenciado histórica e concretamente. A

história demonstrou inúmeras vezes o poder de superação e transformação do ser humano e

social, na dialética da existência social.

O fato de considerar os vários aspectos da totalidade social e, nesta ótica, entender os

conflitos da vida social, suas contradições, não deve significar compreender apenas o lado

da impossibilidade. A característica fundamental da contradição é a inclusão dos aspectos e

não a parcialidade. O conceito de contradição não encerra nenhuma limitação

intransponível, mas justamente a pulsão conflitiva que poderá levar a importantes

superações:

“... De repente, tem-se a noção de que o termo contradição tudo justifica, mas igualmente, tudo limita. Ao invés de ser tratado teoricamente na leitura do contexto profissional, o conceito serve ao assistente social para fechar qualquer questão...” (KARSH, 1989, p.167).

O tratamento dado, na perspectiva dialética, ao conceito de contradição é dirigido ao

processo de conscientização que poderá levar aos desvendamentos necessários da realidade

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social. A denúncia da perversão do sistema de produção e convivência entre as pessoas, não

leva a paralisação das ações, nem tampouco ao engessamento das perspectivas de seu

enfrentamento. Entretanto, se considera de fundamental importância metodológica o

entendimento das contradições sociais.

A situação das pessoas portadora de deficiência, que foi demonstrada nesta pesquisa

aponta para o movimento de superação histórica dos sujeitos, que vai do extermínio a

construção de políticas públicas de acessibilidade. E, também, o avanço da discussão nesta

área que hoje remete à necessária transformação cultural e ao entendimento de que é o

social e não o sujeito que deve se adaptar. O movimento social das PPD, bem como a nova

tendência na literatura da área, tem apontado para a necessidade da "reconstrução social",

como se demonstrou nos capítulos anteriores.

Na Ideologia Alemã, MARX (1993) dizia que a realidade é inclusiva. Nela convivem

tanto os elementos da conservação como os da transformação. Portanto, convivem ao

mesmo tempo forças para preservar a ordem arcaica das coisas, como para impulsionar uma

nova ordem. As contradições da sociedade mostram os conflitos e a existência de forças

antagônicas. Nesta luta entre humanismo e perversidade social, seus sujeitos precisam

apostar na dialética do possível e construir estratégias de superações do cotidiano que tende

a repetir antigos padrões.

5.2 O DESENHO DA PESQUISA

Na perspectiva do materialismo histórico se pode, didaticamente, vislumbrar um núcleo

conjugado de três elementos inseparáveis. É possível também falar de uma unidade que

congrega três elementos. Esses elementos ou dimensões do movimento da realidade

constituem-se em: uma posição ética, um método e uma práxis. Tais dimensões da

intervenção no real, no caso a pesquisa, estão imbricadas em uma dinâmica de múltiplas

relações. A ética, nessa perspectiva, é uma ética libertária, que almeja um determinado tipo

de sociedade, na qual haja espaço para expressão da subjetividade dos seres. Nesse espaço

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cada qual poderia se encontrar livre das opressões de uma estrutura social que cria diversos

impedimentos ao desenvolvimento dos sujeitos. É uma ética que considera fundamental a

luta pela autonomia dos sujeitos, pela sua livre expressão na sociedade.

Quanto ao método, significa a forma de chegar ao real por meio de várias estratégias e

articulações que sejam construídas situcionalmente, ou seja, de acordo com as

circunstâncias, para ultrapassar o imediato. O método é o movimento das estratégias para

buscar a concretização da finalidade das ações. Tendo em vista uma ética libertária serão

necessárias alternativas de construções de mediações que sejam direcionadas para

superação das obscuridades do real. O método, na perspectiva dialética, é pensado para o

desmonte do fetichismo das relações sociais, para se obter clareza dos processos de

alienação e ao mesmo tempo para o trabalho de conscientização, que é o contrário da

alienação.

Quando se fala na dimensão da práxis estão incluídas as duas dimensões anteriores da

ética e do método. A sociedade, a vida humana está sempre em movimento, em constantes

mutações. A transformação faz parte dos processos humanos e sociais. A práxis é o

movimento das atividades que não se limitam às ações repetidas, reiteradas e reificadas. A

perspectiva da revolução do cotidiano também pode estar presente na prática da pesquisa,

como uma práxis. Conforme afirma Souza: “... quem tem o princípio descobre o método

(1993 p.144). O princípio de cidadania e de "equiparação de oportunidades" poderá

conduzir a métodos de pesquisa que percorram naquela direção.

Não que se possa hiperdimensionar a capacidade de uma pesquisa de mudar as coisas do

real, no imediato. O que se pode é entender que a orientação ética vai balizar os métodos

escolhidos e vai direcionar a investigação para alguma intenção determinada. A postura

ética, o método e a práxis não são elementos que se separem, estão interligados. A conexão

é inevitável, o método não é algo que se isole da intencionalidade e da necessidade de

direcionar o conjunto de ações planejadas na direção que é apontada por uma ética e por

uma filosofia. A ética expressa a visão que se tem do sujeito e da sociedade onde se insere

este sujeito, bem como o compromisso com a dignidade da vida humana.

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A consideração dos valores humanos e, portanto o aspecto qualitativo na investigação

leva a seu caráter de revelação. O cotidiano do pesquisador com todos os seus significados

e significantes desenvolvidos no seu “ambiente natural”, se torna uma variável considerável

ao processo de pesquisa. O pesquisador tem certa familiaridade com os fenômenos que irá

investigar e o desenrolar da pesquisa vai revelar suas percepções parciais. Essas vão se

ampliando a partir dos chamado “insight” que acontece posteriormente a uma descrição

minuciosa. Deve ser realizada uma análise cuidadosa e profunda dos dados encontrados e

da inclusão de todos os aspectos existentes no contexto onde se dá a relação sujeito–objeto

e sujeito-sujeito. Nesse sentido é preciso ter consciência dos valores e ideologias que

permeiam as pesquisas nos processos históricos que envolveram os fenômenos estudados.

“Ninguém hoje ousaria negar a evidência de que toda ciência é comprometida. Ela veicula interesses e visões de mundo historicamente construídas e se submete e resiste aos limites dados pelos esquemas de dominação vigentes (MINAYO,1998, p. 21).

Torna-se imprescindível o reconhecimento de que o fenômeno ideológico permeia o

campo de conhecimento e o campo de ação, especialmente no que diz respeito a ciências

humano - sociais. A ideologia é algo que invade as ciências sociais, de modo intrínseco.

Não dar atenção a esse fato significa não perceber o sujeito enquanto ator principal do

conhecimento. GOLDMANN considera que nas ciências humanas, além das dificuldades

comuns às ciências físico-químicas, enfrentar-se-á também “dificuldades específicas

provindas da interferência da luta de classes sobre a consciência dos homens, em geral, e

sobre a sua própria em particular” (1986 p.49).

O pesquisador não está isento de sua ideologia e seus interesses pessoais ao se propor a

uma investigação. De um determinado lugar, de uma posição específica do social, o

pesquisador, estará intervindo nesse real, é preciso ter consciência desses elementos que

estão presentes na pesquisa. Para além da consciência, os trabalhadores do social devem ter

o compromisso, em suas investigações de demonstrar, denunciar os processos sociais de

exclusão, de exploração, de injustiça, de dominação, de discriminações e preconceitos a fim

de que as ações destes possam se dirigir com o propósito e no sentido da movimentação

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desses processos sociais. Na perspectiva qualitativa, se entende que as circunstâncias estão

em constante transformação e se poderá acompanhar essa dinâmica a partir de um radical

conhecimento do real.

A ampliação da consciência é um processo necessário à pesquisa. Igualmente

significativo será o reconhecimento das reais condições de vida das pessoas e da conexão

dessas condições com os condicionamentos historicamente construídos em um determinado

tipo de sociedade. O Atual sistema social se consolidou em uma estrutura de desigualdades,

onde os sujeitos não estão todos com as mesmas oportunidades para se desenvolverem

enquanto sujeitos. Muitos dos indivíduos desta sociedade não estão incluídos, não tem

acesso as mesmas possibilidades do que outros, para a participação em tudo àquilo que dá

dignidade à vida humana como: alimentação, vestuário, moradia, educação, saúde, lazer,

esporte, cultura, liberdade de escolha.

Há uma conexão entre o cotidiano de inúmeras pessoas à conjuntura e à estrutura social,

essa conexão precisa ser revelada, desnudada em cada pesquisa que se atente a uma

finalidade transformativa. Os vários olhares lançados aos fenômenos do real devem ir

mudando o olhar inicial, reconstituindo a forma de analisar determinados conceitos, nesse

caminho se vai superando a interpretação inicial. Nesta superação estão incluídas as

diversas vozes que são consideradas na pesquisa. A perspectiva dos pesquisados é

importante e vai moldando a investigação qualitativa, as respostas vão sendo construídas a

partir do como os outros da pesquisa percebem a realidade. Tem–se uma construção prévia

a ser considerada e contextualizada.

“Na pesquisa qualitativa, todas as pessoas que participam da pesquisa são reconhecidas como sujeitos que elaboram conhecimentos e produzem práticas adequadas para intervir nos problemas que identificam. Pressupõe-se, pois que, elas têm um conhecimento prático, de senso comum e representações relativamente elaboradas que formam uma concepção de vida e orientam as suas ações individuais. Isto não significa que a vivência diária, a experiência cotidiana e os conhecimentos práticos reflitam um conhecimento crítico que relacione esses saberes particulares com a totalidade, as experiências individuais com o contexto geral da sociedade” (CHIZZOTTI, 1998, p. 83).

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As construções dos pesquisadores e pesquisados estão em uma interação dialética e em

um processo permanente de reconstrução, em que a conscientização, a investigação, a

capacitação técnico-política vão consolidar em novas descobertas. O aspecto da

capacitação técnico-política diz respeito à percepção das contradições e das conexões entre

os fenômenos do real. Quando se percebe essa conexão, se pode ter uma ampliação da

análise e evitar as interpretações fragmentárias dos fatos sociais. Há uma necessária ruptura

com o padrão da lógica formal, recebida das ciências positivistas e, nesse sentido, uma

superação das análises tradicionalmente estudadas.

Segundo MINAYO (1998, p.22), a expressão qualitativo, para pesquisa é uma

redundância, pois toda a investigação deve se ocupar de aspectos quantitativos tanto

quanto de qualitativos. O qualitativo significa os aspectos humanos, o que se apreende das

relações humanas, os significados atribuídos pelos sujeitos desta sociedade ao seu modo de

viver, das formas como a vida social das pessoas é organizada. “Isto implica considerar o

sujeito de estudo: gente, em determinada condição social, pertencente a determinado

grupo social ou classe com suas crenças, valores e significados” (MINAYO, 1998, p.22).

Uma pesquisa que se ocupa dos sujeitos como parte do conjunto do qual o mesmo faça

parte, localiza as individualidades em sua contextualidade, em seu tempo histórico, na

construção cultural e estrutural desse tempo. Cada época histórica vai constituindo a vida

social de cada ser individual. O ambiente natural e o contexto que envolve os sujeitos da

investigação são aspectos relevantes a serem considerados na pesquisa qualitativa. Alguns

autores trabalham com estes conceitos de contexto e de "ambiente natural", destaca-se aqui

o estudo sobre a obra de EGON GUBA, realizado por CASTRO15 (1994, p.59)

No estudo referido acima, considera-se que, no ambiente natural, o objeto de estudo

adquire sentido e significado no seu contexto original de ocorrência. O pesquisador deve

abarcar todos os fatores e influências do contexto, através de uma observação prolongada e

15 As observações feitas neste ensaio sobre Egon Guba são o resultado do Estudo dirigido em Leitura Independente sobre: Pesquisa Qualitativa, com a Professora Dra. Marta L. S. de Castro que tem os seguintes textos sobre o autor: Metodologia da Pesquisa Qualitativa: revendo as idéias de Egon Guba, in Paradigmas e

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persistente, em uma tarefa exigente e complexa, que requer a apreensão da múltipla rede

relacional, a ser verificada e incluída no estudo. Na perspectiva naturalística, denominada

assim, por GUBA:

“... o processo de pesquisa é realizado por seres humanos, que vivenciam a experiência de uma forma holística e integrada. Assim todos os” “insights”, emoções, intuições são incorporados de uma forma sistemática no processo de pesquisa. Esse processo ocorre mesmo no paradigma tradicional, mas é colocado fora do domínio da ciência. No paradigma naturalístico é reconhecido e incorporado ao decurso da investigação. O pesquisador vem inteiro para a pesquisa e se modifica no seu decorrer” (GUBA apud CASTRO, 1994, p.57).

O pesquisador passará por um processo de ressocialização com os novos conceitos. Para

MINAYO (1998, p. 23) o investigador deve dispor de um instrumental significativo para

abordar a realidade de forma que possa submetê-la as suas questões e ter as chaves para

desvendá-la. A interpretação e análise são formas de aprofundar o entendimento de tudo

aquilo que foi coletado. Para tanto não se pode ficar a mercê de “divagações abstratas ou

pouco precisas em relação ao objeto de estudo” e para isto o investigador deverá ter a

capacidade pessoal “de fazer, das preocupações sociais, questões públicas e indagações

perscrutadoras da realidade” (MINAYO, 1998, p 23).

Perscrutar a realidade para quê? Essa questão parece ser significativa e deverá se

orientar pela perspectiva política que aponta o compromisso do pesquisador com os

interesses sociais dos sujeitos pesquisados. Nesse sentido, a pesquisa se torna uma prática

social em um processo de descrição, interpretação e revelação dos significados dos

fenômenos em seu contexto, em seu ambiente natural. Nessa revelação, demonstra-se a

conexão entre cotidiano e sociedade que propicia o fortalecimento dos sujeitos para o

enfrentamento da questão social, com a finalidade da transformação das condições dadas.

A partir do desenvolvimento da pesquisa, pretende-se fazer uso público das questões,

das problematizações e das respostas encontradas junto às diferentes vozes consultadas.

Essas vozes podem dizer do real significado da temática das deficiências/diferenças nos

Metodologias de Pesquisa em Educação, POA: EDIPUCS,1994. Ver também o texto: Colocando Em Prática o Paradigma Naturalístico, nov.1996.

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meandros das relações sociais. Como diz BADER “... é fundamental que as pessoas que

ainda partilham da utopia da emancipação dos homens das humilhantes condições de vida,

entrem em comunicação permanente” (1995 p.107). Diversas estratégias podem ser

lançadas para essa comunicação e, a pesquisa pode ser uma delas. Para todos aqueles que

desejam alternativas para a sociedade e o enfrentamento de toda a exclusão presente no

modo de vida de parte significativa da população, é preciso perscrutar o real. Faz-se

necessário aprofundar conhecimentos, construir articulações, projetos e parcerias.

Parece relevante poder dar visibilidade na questão das diferenças, a dois processos,

pelos quais passam as pessoas portadoras de deficiência: o processo de exclusão social; e

seu processo real de potencialidade. Nesse sentido, pretendeu-se tornar público, neste

trabalho, a voz daqueles que vivenciaram tais processos, para demonstrar mais uma vez o

grande déficit de uma sociedade que aprende muito morosamente a lidar com as

singularidades. A partir disso, esta pesquisa foi orientada: "(...) pela produção de novas

práticas sociais que tenham na consolidação da democracia e no fortalecimento da

cidadania a sua busca fundante...” (MARTINELLI, 1995, p.146).

Cidadania e democracia são princípios através dos quais se pode alcançar uma vida

verdadeiramente humanizada. Para tanto, será fundamental que a sociedade, em suas

diversas instâncias, esteja capacitada para reconhecer o potencial que há em cada

individualidade. Os processos de exclusão, pelos quais passam as pessoas portadoras de

deficiência, são o indício do despreparo e da incapacidade desta sociedade para o exercício

da real cidadania. A deficiência só é instalada, plenamente, quando são negadas as

oportunidades ao exercício do convívio comunitário e dos direitos básicos da vida. A

pesquisa foi mais um recurso para fazer esse debate.

5.3 OS PASSOS SIGNIFICATIVOS DA TRAJETÓRIA

Os pesquisadores têm a tarefa de superar a imediaticidade dos fenômenos e “adentrar

seu âmago” em busca de sua essência, daquilo que existe por detrás das aparências e não se

percebe no cotidiano. O cotidiano é um campo fundamental para o estudo e

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aprofundamento, exatamente pelo fato desse ser algo desvendável em seu conteúdo mais

profundo que não é dado a priori. Em função da nebulosidade do real é significativa a

escolha adequada da instrumentalidade que colocará em prática os fundamentos da

pesquisa. Pretende-se a seguir explicitar os passos desenvolvidos na trajetória da pesquisa,

que aqui se apresentou. Os fenômenos do real estão por toda à parte e não se mostram em

uma conexão aparente.

A complexidade e dinamicidade inacabada dos acontecimentos singular-sociais levam

os mesmos a se apresentarem de forma multifacetada e muitas vezes fragmentada. Como

desvendar o cotidiano? Como aprofundar os conteúdos essenciais para interpretá-lo e

conectá-lo à realidade conjuntural e estrutural da sociedade em geral?

Conforme já foi visto, na abordagem qualitativa, existe uma forma diferenciada da

forma tradicional para indagar o real, contendo alguns pontos importantes a serem

considerados. Na forma tradicional há uma preocupação com o controle dos dados, com a

generalização estatística do resultado da pesquisa, o que não será significativo para a

pesquisa qualitativa, que se preocupa em compreender múltiplas possibilidades e suas

conexões e não com leis universais.

E, nesse sentido, os resultados podem servir para uma interpretação e generalização

analítica, que podem explicar outros contextos com características semelhantes. A ênfase é

dada a uma compreensão profunda dos contextos onde se inserem os fenômenos estudados,

procurando contemplar o entendimento e a variação máxima de elementos que fazem parte

do todo. O importante, nessa abordagem, é a localização de cada parte no todo, em uma

visão de totalidade e de conjunto. O conhecimento sobre a realidade, jamais se esgota, uma

vez que a mesma é construída por seres humanos sociais em movimento. A totalidade,

também, não poderá ser apreendida completamente, pois sempre estará além do

conhecimento possível de se obter acerca da mesma.

A instrumentalidade requer a possibilidade de apreensão dos significados atribuídos e

expereciados pelas pessoas abordadas na pesquisa. O tom dado à investigação, que aqui se

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196

apresenta, se expressa na demonstração dos sentidos produzidos pelos sujeitos

investigados. Procurou-se demonstrar como as pessoas, em uma condição de diversidade

visível, expressam sua forma de entender a sociedade à qual pertencem. Através de vários

depoimentos colhidos - nas entrevistas, nos debates, nos fóruns de organização das pessoas

portadoras de deficiência, nas histórias reais e fictícias sobre a forma de viver uma

singularidade em um contexto que exige o "enquadre no molde social”, consolidou-se a

tese, em tono da temática da diversidade.

Para embasar a busca de apreender o sujeito por detrás de sua experiência de vida, pode-

se recorrer a MARTINELLI, quando a mesma considera que “... se a pesquisa pretende ser

qualitativa e pretende conhecer o sujeito, precisa ir exatamente ao sujeito, ao contexto em

que vive sua vida" (1994 p.14). Para essa autora, as pesquisas quantitativas contribuem para

dar visibilidade aos aspectos circunstanciais da vida das pessoas e as condições materiais

dessas. No entanto, em uma abordagem qualitativa, é possível que se obtenha o

conhecimento sobre "modo de vida" das pessoas. MARTINELLI acena desta forma, com a

possibilidade de através da pesquisa, adentrarmos no entendimento acerca da "experiência

social" dos sujeitos. Sendo assim, será possível entender e expor como os sujeitos estão

construindo e vivendo suas vidas.

“Será necessária uma grande perspicácia para compreender que as idéias, as concepções e as noções dos homens, numa palavra, a sua consciência, mudam de acordo com qualquer modificação registrada nas suas condições de vida, nas suas relações sociais, na sua existência social” (MARX, 1979, p.12).

Na citação acima, Marx sugere a significativa observação das condições de vida e do

modo de vida do sujeito para a compreensão da realidade do mesmo. É importante

considerar a localização do sujeito em sua cultura e verificar os diversos aspectos de sua

vivência. Na perspectiva da pesquisa qualitativa se busca aprofundar o entendimento

relacional e conectado entre os fatos do cotidiano e os sujeitos. Tal qual os analisas sociais,

os sujeitos do cotidiano refletem e analisam suas vidas e a dos demais. Esse processo

interpretativo por parte do sujeito é denominado por THOMPSON (1995, p. 359) de "pré-

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interpretação", que segundo o mesmo será "re-interpretado" pelos analistas sociais ou

pelos pesquisadores.

A interpretação social, nessa ótica, será o resultado de uma "re-interpretação" de algo

que já está previamente "pré-interpretado". O interessante, nessa perspectiva, é que a

interpretação das palavras, dos significados dessas e das vivências dos sujeitos, considera

os sentidos atribuídos pelos mesmos. Através das diversas falas que ilustraram a exposição

desta tese, se esteve demonstrando esse processo de interpretar o mundo vivido pelos seus

diferentes sujeitos. De forma muito expressiva, esses sujeitos, demonstram a interpretação

que construíram sobre suas experiências e seu contexto.

Um outro aspecto a ser considerado é o fato de que as hipóteses formuladas pelos

pesquisadores tradicionais são, normalmente, uma formulação resultante de um processo de

acumulação do conhecimento teórico e sensível do mesmo, em determinado campo do real.

Há um fundamento prévio, uma teoria precursora que vai desencadear o processo da

pesquisa. Na pesquisa qualitativa, o tom metodológico será dado pela sua “característica

emergente”, ou seja, não serão definidas questões a priori, como no caso das hipóteses.

O início é dado pela delimitação de um foco inicial que vai ser definido no decorrer da

investigação. Não estarão definidos, nem determinados, nem estabelecidos previamente os

passos da pesquisa. O foco inicial poderá sofrer alterações transformando assim os rumos

da pesquisa. O foco vai sendo mais bem definido a partir do desenvolvimento do processo

de coleta e análise de dados que não se separam, quando começam a emergir determinados

elementos, que, também, se tornam mais freqüentes. É, também chamada de “design”

emergente, a forma, o desenho que vai definindo a amostra intencional e configurando os

caminhos da pesquisa. Conforme diz CASTRO:

“A dicotomia entre coleta e análise de dados, característica da pesquisa tradicional, se transforma. Os dois processos são realizados de forma simultânea, levando a autodefinição da própria dinâmica do processo de pesquisa. À medida que vai se realizando a coleta, vai sendo construída a interpretação, até ser alcançado um nível de redundância das informações que indicam que o pesquisador conseguiu o máximo de variação possível sobre um dado contexto” (1994 p. 56).

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Há uma constância na coleta e análise de dados durante o ato de investigar, este

movimento vai delimitar a amostra que não será aleatória e nem terá sua tônica com base

em quantidades numéricas. A amostra é construída a fim de contemplar informações

relativas ao contexto, nesse sentido é intencional, pois relacionada aos dados, pretende

explicá-los de forma conectada. Para responder às indagações da pesquisa, se busca

intencionalmente um conjunto de condições: “... sujeitos que sejam essenciais, segundo o

ponto de vista do investigador, para o esclarecimento do assunto em foco; facilidade para

se encontrar com as pessoas; tempo dos indivíduos para as entrevistas etc.” (TRIVIÑOS,

1987, p.132).

A tônica se coloca na variedade de explicações, em entender e explicar os fenômenos,

no detalhamento da multiplicidade e especificidades de cada contexto que o faz singular,

único. Cada fenômeno em seu contexto está envolto em uma complexidade relacional, em

uma teia imensa de interconexões, que se pretende desvendar, para explicar e para

transformar o real. As informações iniciais são buscadas em fontes que tenham explicações

sobre o estudo em questão, de maneira que na continuidade se complemente o

conhecimento anterior. Em função dessas características não é necessário um rigor no

tratamento estatístico dos dados e sim a procura daquilo que possa dar sentido aos dados.

Segundo MARTINELLI:

"Como não estamos procurando medidas estatísticas, mas sim tratando de nos aproximar de significados, de vivências, não trabalhamos com amostras aleatórias, ao contrário, temos a possibilidade de compor intencionalmente o grupo de sujeitos com os quais vamos realizar nossa pesquisa" (1994 p.15).

Conforme a orientação dos autores acima referidos foi possível compor para esta

pesquisa uma amostra intencional formada por: profissionais das diversas unidades da

FADERS, gestores da política pública para pessoas portadora de deficiência e alta

habilidades e por pessoas portadoras de deficiência (nas diferentes áreas). As questões

norteadoras para o estudo e que deram origem aos processos de pesquisa e a escolha dos

instrumentos, são as seguintes: Como os conhecimentos específicos, dos profissionais

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especializados na área poderá ser utilizado, congregando esforços para a implementação de

uma política pública para PPD e PPAH, onde a tônica esteja na cidadania e na inclusão?

Como a FADERS poderá contribuir na construção de novos processos sociais que incluam

as diferenças, que permitem a expressão de subjetividades singulares e que não submetem

as pessoas à ditadura de um padrão de “normalidade”? Como as pessoas portadoras de

deficiência e de altas habilidades estão vendo seu processo se cidadania no conjunto das

relações sociais?

O desdobramento da temática desta pesquisa coloca esse conjunto de questões, acima

referido, que foram trabalhadas no processo reflexivo, onde se pretendeu intensificar o

debate. A dinâmica institucional esteve passando por um processo de reordenamento

técnico. Em cada unidade foram sendo realizados vários debates sobre o seu funcionamento

e os novos parâmetros institucionais. Esse espaço tem sido nomeado de “Interunidade”. Os

profissionais tiveram a possibilidade de refletir sobre suas práticas e de estabelecer

comunicação entre as diferentes unidades da FADERS.

Um espaço para o debate que foi amplamente aproveitado como um dos campos de

pesquisa, no qual foi possível aprofundar a reflexão em torno da temática: a diversidade da

condição humana sob a ótica das relações sociais e seus processos de exclusão/inclusão

que envolve as diferenças (pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades). E,

com esse debate foi possível, também, realizar uma auto-reflexão por parte dos

funcionários da Fundação.

A operacionalização desse processo aconteceu através de uma técnica de seminários que

foram realizados nas unidades da FADERS, utilizando um instrumento como base para o

debate. Sendo assim, foi possível apresentar neste trabalho as opiniões referente a questão

em pauta e consolidar o aprofundamento da construção teórico-prática, como um resultado

da pesquisa. Para consolidar a pesquisa de forma mais abrangente foram utilizados três

distintos instrumentos direcionados aos profissionais das diversas unidades, aos dirigentes,

aos administradores da Fundação, seus assessores de diversas áreas, planejadores, os que

fazem o elo entre a Fundação e os setores do Governo Estadual que deram respaldo a

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construção do projeto político da FADERS; as pessoas portadoras de deficiência nas áreas:

física, sensorial e psíquica.

Dessa forma, se compõem os sujeitos que tiveram voz nesta pesquisa. No caso dos

sujeitos portadores de deficiência, o grupo de pessoas que foram entrevistadas não ficou

restrito unicamente aos usuários do serviço da FADERS, foram ouvidas também, outras

pessoas ligadas a temática que não utilizam esse serviço. O estudo e aprofundamento das

argumentações poderão se transformar em importante subsídio para a construção e

implementação da nova política para as PPD e PPAH, que está sendo gestada e coordenada

pela FADERS (ver no anexo 7, sobre a nova política pública, projeto de lei da nova

FADERS).

O instrumento número um, é formado por questões de identificação e questões para o

debate, direcionado para os técnicos da FADERS (ver anexo 8). As questões para o debate

remetem à reflexão em torno do entendimento das características e do modo de vida das

pessoas, que utilizam os serviços da FADERS; para uma análise das condições

institucionais de oferecer um serviço orientado para a cidadania; sobre o sentido do

trabalho em termos de política pública para PPD e PPAH; sobre as interlocuções

necessárias com outras instituições para viabilizar tal política e sobre o acompanhamento

desses profissionais nos processos sociais de exclusão/inclusão das pessoas portadoras de

deficiência e altas habilidades que tenham procurado os serviços da FADERS.

O instrumento número dois é dirigido às pessoas portadoras de deficiência, contendo

questões de identificação e questões para o debate (ver anexo 9). Nessas últimas, a reflexão

é sugerida em torno: das vivências e das limitações que o contexto oferece; das

potencialidades e possibilidades que a sociedade não reconhece nas PPD e PPAH;

indagações quanto a avaliação sobre as instituições que pretendem atender suas demandas;

como deverão ser essas instituições; o que deve contemplar uma política pública nessa área;

quais os preconceitos em relação às diferenças, presentes na sociedade; vivências em

processos sociais de exclusão/inclusão e em movimentos sociais significativos em busca

dos direitos sociais.

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O instrumento número três é direcionado aos planejadores, assessores, dirigentes e

pessoas que são responsáveis pela gestão da política pública para PPD e PPAH (ver anexo

10). As questões para o debate indagam a respeito da visão dos dirigentes sobre as pessoas

que utilizam o serviço da FADERS e seu modo de vida; sobre as ações que são necessárias

desencadear para problematizar com a sociedade a questão das diferenças, dos processos

sociais de exclusão/inclusão e para implementar uma política nessa área; sobre as

articulações necessárias para implementação desta política e as interlocuções

extrainstitucionais.

Muito embora, haja uma especificidade dos instrumentos para cada segmento da

pesquisa (profissionais, gestores e sujeitos portadores de deficiência), utilizada na

investigação, no momento da exposição dos resultados optou-se por não diferenciar as

categorias, nas respostas. Ao longo do trabalho se vai conjugando as respostas das pessoas

de acordo com o assunto desenvolvido nos capítulos. São apresentadas as falas, os

depoimentos, as opiniões que foram colhidas no sentido de demonstrar o que está sendo

pensado na multiplicidade de análise sobre o tema. Não se fez diferenciações pela

especificidade do instrumento, na ocasião da demonstração dessas falas. A análise dos

dados foi construída por categorias reflexivas em cima daquilo que emergiu da pesquisa.

Nem sempre a opinião revelada condizia com a opinião da pesquisadora, o que não

inviabilizou a demonstração da mesma, enquanto dado presente no real.

Para CHIZZOTTI a pesquisa qualitativa privilegia algumas técnicas de pesquisa:

observação participante, observação da vida cotidiana em seu contexto ecológico, história

ou relatos de vida, análise de conteúdo, entrevista não diretiva, a escuta de narrativas,

lembranças e biografias, análise de documentos (1998 p.85). Essas técnicas aliadas a

criatividade do pesquisador, sua habilidade em trabalhar com os dados e transformá-los em

conhecimento sobre o real, faz parte do instrumental que contribui na produção do

conhecimento e a validação da pesquisa.

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Para maior dinamicidade, na pesquisa, foi sugerido por GUBA, (apud CASTRO, 1994,

p.62) que, na operacionalização, se disponha de algumas técnicas, tais como: descrição

consistente; observação continuada; envolvimento do pesquisador em seu contexto;

discussão com colegas; análise de caso por àqueles que tem opinião contrária ao já

encontrado na investigação; inclusão dos que participaram da pesquisa na construção dos

resultados e triangulação dos dados. O rigor investigativo com que é processada a pesquisa

qualitativa, em seu diferencial metodológico, demonstra o esforço para atingir seus fins de

descrição e interpretação do real, bem como sua validade investigativa.

O processo de pesquisa que consolidou esta tese de doutorado se desenvolveu no

período de março 2000 a agosto de 2002. Nesse período, foram utilizados como

instrumental, conforme já mencionado acima: as entrevistas semi-estruturadas, seminários

reunião e debates, relatório dos seminários, técnica de análise de conteúdo das entrevistas e

reuniões; seminários em grande grupo para apreciação da análise de conteúdo e dos

resultados finais da pesquisa. A construção desta tese de doutorado se fez a partir do

conjunto desse debate e da revisão bibliográfica e documental. Há que se fazer um destaque

para o que é chamado de observação participante, como um recurso fundamental, nessa

trajetória.

Tendo em vista o fato da pesquisadora estar inserida na instituição FADERS, e fazer

parte do movimento social das pessoas portadoras de deficiência, o locus de pesquisa é

campo do processo de trabalho cotidiano, um lugar ao qual se busca aprofundar o

desvendamento de seus significantes, com o objetivo de ampliar as possibilidades de

concretização da cidadania e da inclusão. O Diário de Campo se tornou em um importante

instrumento onde se colocaram as anotações da escuta cotidiana institucional. A

participação nos fóruns e outros espaços de deliberações acerca da nova política pública

para pessoas portadoras de deficiência e altas habilidades, foram de igual forma registradas

no Diário de Campo. Essas anotações deram base para vários momentos de análise e

demonstração da tese que aqui foi afirmada.

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O principal foco desse estudo foi à própria instituição FADERS, estudá-la significou

utilizar aquele espaço para realizar, o que é denominado em pesquisa de "estudo de caso".

Para TRIVIÑOS (1987, p.133), o estudo de caso é um dos tipos mais relevantes, de

pesquisa qualitativa. O objeto desta categoria de pesquisa “é uma unidade que se analisa

aprofundadamente”. Pelo que indicam vários autores o estudo de caso é uma forma de

estudar as situações de forma a buscar uma apreensão complexa, múltipla, que pretende

reconhecer de forma conjunta o real, ter a percepção de todos os aspectos possíveis que

estão interagindo naquela realidade.

Na investigação apresentada neste trabalho se utilizou o que é denominado por

TRIVIÑOS de “estudo de caso de Análise Situacional”, que se refere a eventos específicos

que podem ocorrer numa organização. O pesquisador quer conhecer os pontos de vista e

circunstâncias que são peculiares aos diversos sujeitos envolvidos no fenômeno (1987

p.136). A realidade empírica da instituição é explorada por diferenciados ângulos e se

busca em várias outras fontes uma fundamentação para explicar essa realidade. As

evidências empíricas da instituição são aproveitadas, pelo investigador, para demonstrar

alguns aspectos de sua temática e estabelecer correlações com múltiplos contextos.

O estudo de caso que aqui se apresenta é referente a FADERS, que é uma instituição que

tem um significativo papel político a desempenhar na sociedade. Como uma Fundação que

representa a causa das diferenças, deverá se empenhar em articular inúmeras ações que se

encaminhem para uma atenção adequada aos interesses e necessidades diferenciadas

daqueles sujeitos que dela venham a utilizar seus serviços. Os seres humanos não são iguais

e algumas pessoas, por serem portadoras de diferenças mais marcantes não estão do lado

oposto da normalidade.

Estudar esse contexto institucional específico poderá levar ao entendimento de outros

contextos da sociedade em geral, uma vez que existe a possibilidade de encontrar

ressonâncias entre o que se passa nesse universo institucional e o que se dá de forma mais

geral. A cultura da dita “normalidade”, infelizmente é algo que diz respeito a uma

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construção histórico social, mesmo sendo essa diferente da realidade subjetiva dos seres

humanos.

A análise pode se diferenciar em uma macroanálise, provinda daquelas temáticas que

sejam mais abrangentes e sirvam para uma generalização analítica, para um número

significativo de contextos. E, em uma microanálise que orienta um entendimento singular,

específico de um determinado contexto, serve para explicitar singularidades com

profundidade. As explicações encontradas no movimento do desvendamento, tem um

núcleo de argumentação, este núcleo deve estar suficientemente esclarecido para o

pesquisador, na ocasião da exposição das explicações encontradas para os fenômenos do

real e para que possa deixar claro como foram construídos os argumentos.

O processo de coleta/análise e teorização vai se desenrolando até que “variação natural

do fenômeno” diminua sua potencialidade e os dados comecem a se repetir, então acontece

o que é denominado de “redundância”, onde a “variação básica do fenômeno foi

identificada”. Neste momento a pesquisa se encaminha para o seu término. Com uma

argumentação similar a esta MARTINELLI menciona o "ponto de saturação", como o

momento em que "conseguimos identificar que chegamos ao conjunto das informações que

poderíamos obter em relação ao tema" (1994 p. 15).

O processo e o resultado desta pesquisa remete ao entendimento de que investigar o

locus onde se vive de alguma forma o cotidiano é uma forma de se distanciar e se

aproximar ainda mais do mesmo. A banalização do vivido leva a perda dos seus

significantes. Encontra-se sentido nos fatos do real se a atenção estiver voltada para seu

movimento mais sutil. O cotidiano tende a encobrir o extraordinário, que na verdade faz

parte de seu emaranhado. Um recorte deste real, formalizado na pesquisa e em seus

dispositivos de apreensão dos meandros deste real poderá levar a uma compreensão onde se

ampliam alguns horizontes.

A idéia de que o sujeito se inclina a métodos que sejam a extensão das suas atividades

vitais: olhar, escutar, falar, ler; e as atividades intelectuais: pensar, intuir, analisar, etc.,

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justificativa os métodos qualitativos, enquanto os mais adequados aos pesquisadores. É

possível reconhecer que as características subjetivas e ideológicas do pesquisador estarão

presentes na pesquisa. O pesquisador usa todos os seus sentidos e nesse aspecto sua própria

potencialidade humana, ao se presentificar, se faz meio de encontrar os caminhos de

apreensão do real. Algo semelhante a esse raciocínio, se encontra nas colocações de um

pensador do séc. XIX, no que segue:

“O vendedor de minerais só vê seu valor comercial, não sua beleza ou suas características particulares; ele não possui senso mineralógico. Assim, a objetificação da essência humana, tanto teórica quanto praticamente, é necessária para harmonizar os sentidos humanos, é também para criar os sentidos humanos correspondentes a toda a riqueza do ser humano e natural” (MARX,1983, p.122).

E, para que essa objetivação dos sentidos humanos aconteça, se faz necessário que seja

criada e cultivada a “riqueza da sensibilidade humana”. Na ocasião da pesquisa se tem uma

oportunidade de afinar os instrumentos, ou seja, a sensibilidade natural de toda a

subjetividade humana com a instrumentalidade dos dispositivos técnicos da pesquisa.

Evidentemente, o que deverá guiar esta composição da subjetividade com a objetividade,

será a intencionalidade que orienta o desejo da descoberta e o para onde se quer ir com

mesma.

O percurso desenvolvido, ao longo da trajetória da pesquisa, possibilitou o exercício da

inserção no mesmo contexto, no qual, campo de pesquisa e campo de processo de trabalho

da investigadora se aproximaram de forma complementar. Os dispositivos instrumentais

específicos escolhidos nesta abordagem de pesquisa contribuíram para delimitar o estudo e

aprofundamento do cotidiano institucional e extrainstitucional.

A experiência cotidiana no setor público de atendimento e construção de políticas

públicas demandadas pela área das deficiências e das altas habilidades sinalizou o caminho

para construção desta pesquisa. Portanto, a expressão "todos os sentidos humanos" estão

presentes neste processo, fala da presentificação que foi possível acontecer ao investigar

sobre a diversidade da condição humana na perspectiva das relações sociais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações humanas estão permeadas por contradições sociais e individuais. Os

indivíduos que compõem o social se imbricam em constantes conflitos que, por sua vez,

não se resolvem de forma imediata. Há uma necessária reconstrução da forma de viver em

grupo e em sociedade que se precisará aprender. Os grupos sociais vão se configurando de

acordo com o movimento dos seus indivíduos dentro deles, ao mesmo tempo esses

indivíduos se movimentam num espaço prefigurado, no qual terá menor ou maior

dificuldade em expressar seu potencial humano.

O ser humano é o ser social, aquele que não sobrevive fora de um contexto humano.

Cada um, desde que nasce convive com a emergência da presença do outro em sua vida.

Quiçá fosse possível para as pessoas sobreviverem sem a presença de alguém para sua

proteção, especialmente nos primeiros anos de vida. Alguns animais até conseguem, ao

serem abandonados por suas progenitoras, ensaiar seus primeiros passos e se desenvolver

sem o necessário respaldo de "cuidadores".

Os seres humanos são absolutamente dependentes uns dos outros, por condição de sua

própria existência. A vida associativa, em todos os tempos históricos da humanidade, é

elementar. Essa característica da vida humana leva a reflexão em torno da complexa arte

das relações humanas. Todavia, seja algo natural para os seres, a interdependência, o "ter

que estar uns com os outros", isso por si só não garante que as relações humanas sejam

satisfatórias para aqueles que dela dependam.

Constitui-se em uma dialética de opostos entre a necessidade de estar com o outro e a

possibilidade de que essa interdependência torne a vida das relações algo agradável,

equânime, justo, que proporcione bem estar a todos. As dificuldades da vida associativa são

inúmeras, entretanto, sem os outros não se pode existir. Na complexa teia da

interdependência entre as pessoas se encontra também o potencial da existência, dos

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movimentos de transformação do real e das possibilidades de superações dos emaranhados

que o convívio em sociedade proporciona a cada sujeito.

O ser constrói sua vida para um mundo já posto, em conjunção com outros seres, ao

mesmo tempo, semelhante e diferente dele. Cria-se a si mesmo criando o mundo, a

identidade pessoal se encontra atravessada por tudo que já foi criado na coletividade e seus

contextos históricos, econômicos, culturais, simbólicos. Aquilo que cada ser cria, pratica ou

produz repercute na vida dos demais, reflete na vida coletiva de seres individuais, porém,

igualmente sociais. Embora as pessoas vivam em seu cotidiano experiências singulares e

únicas, essas vivências têm algo incomum com as demais pessoas do conjunto social.

As pessoas são diferentes umas das outras. As experiências são construídas

particularmente, todavia, há algo comum a todos os seres: o fato da vida social ter uma

materialidade que deveria oferecer acesso para a expressão dos sujeitos. Ao contrário do

que deveria ser, acontece que essa vida social, muitas vezes, está interditando aquela

expressão. De qualquer forma, as experiências são processos em mutação, dialeticamente

transformáveis.

Na perspectiva das relações sociais, esta tese, versou sobre a questão das

deficiências/diferenças e em torno dessa temática foi desenvolvido um conjunto de

questões, para as quais encontraram-se algumas respostas e outras tantas indagações,

expressas ao longo dos capítulos deste trabalho. Conforme foi demonstrado na análise

apresentada, nessa trajetória de construção de uma interpretação do sujeito em seu contexto,

à questão das diferenças não é algo que esteja bem resolvido no campo social.

A primeira grande controvérsia trazida a este debate se expressa no fato de que apesar de

todos os seres terem o direito de pertencerem a seu mundo, pelo fato de fazer parte do

mesmo, isso se torna algo muito complicado quando este sujeito não corresponde ao padrão

esperado pelo social e pela cultura. As pessoas portadoras de singularidades marcantes, de

deficiências e de altas habilidades deparam-se com as inúmeras interdições do contexto.

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Tais interdições foram historicamente construídas e obstruem o desenvolvimento dos

sujeitos, limitam ou impedem o acesso aos diversos setores da sociedade.

Quando uma criança vem ao mundo apresentando alguma diferença significativa,

alguma deficiência, será inserida em um contexto, no qual as condições para o seu

desenvolvimento não serão as mesmas oportunizadas as outras crianças, consideras "não

diferentes". Na trama das relações sociais não se consolidou um espaço para o

reconhecimento da diversidade de características peculiares aos seres humanos. Portanto, as

condições de acesso ao mundo não são iguais para todas as pessoas.

Na grande maioria das vezes, uma criança portadora de deficiência será percebida como

um "problema" para a família e para escola. Conforme foi dito em uma entrevista,

mencionada neste trabalho, o filho esperado, quando nasce portador de alguma deficiência

será considerado um "troféu arranhado", expressão que indica a expectativa pré-

estabelecida na vida das pessoas, mesmo antes de nascer, de corresponder ao padrão social.

No caso de uma não correspondência entre a expectativa social e a expressão singular, a

conseqüência, em geral, é a exclusão/segregação das pessoas.

As pessoas que se enquadram na moldura criada pela cultura da “normalidade” têm

maior possibilidade de inserção social. Aqueles indivíduos que demonstram outra forma de

se presentificar na vida social, tem na mesma um grande desafio para vencer, conseguir

participar e, fazer parte dela, será sempre um esforço de superação das interdições. A

hostilidade que está perpassando a relação com as diferenças é demonstrativa do fato de

que ainda não se reconheceu a diversidade, enquanto característica peculiar da humanidade.

Na complexidade da vida em sociedade, desde o seu primeiro ambiente, ou seja, a

começar pela família se estabelecem relações cognitivas, em que se apreende uma forma de

ser e se colocar no mundo. Uma vez que esse aprendizado não seja favorável ao sujeito e ao

seu desenvolvimento posterior, enquanto, um ser capacitado para se presentificar em seu

contexto, será importante desaprender certas "lições". Quando uma criança for tratada com

desprezo, desconsideração, rejeição em função de sua condição social, de limitações físicas,

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psíquicas ou motivos de ordens diversas, isso poderá levá-la a uma inserção social hostil ou

submissa.

A escola e demais instituições, inúmeras vezes, rejeitam e excluem as crianças que não

correspondem ao "grau de normalidade", exigido por um padrão socialmente estabelecido.

As tramas sociais tecidas e reproduzidas perpassam todas as esferas da sociedade. Os

indivíduos, as famílias, as instituições estão todos interligados nessas tramas compondo a

organização do modo de viver das pessoas em sociedade. O conjunto formado, a partir daí,

não será uma totalidade fechada, irrevogável. O movimento dos indivíduos, no interior

desse conjunto, poderá mudar sua configuração.

Em função da possibilidade de mutabilidade é que se considera significativo o

desaprender de preconceitos e discriminações criados no cultivo de um padrão. Aquela

criança que aprendeu o pouco valor do ser humano, em situações diferenciadas, na medida

de um processo de conscientização, de reflexão e convívio com os demais, poderá

consolidar um novo aprender e perceber que tem direito a voz e a vez, tanto quanto todos os

outros seres do Planeta.

Nasce-se e se vive a partir dos grupos de origem para continuar a grande obra da vida

humana. Essa grande obra, porém, se consolida em pequenas práticas de cada sujeito em

seu contexto. Nos liames dessa prática, cada qual poderá tanto reproduzir o historicamente

construído ou buscar a transposição de tais construções. No desaprender, nas rupturas com

o que está estabelecido na sociedade, poderá estar contido o potencial de superações

históricas significativas para os sujeito que se perceberam "fora do mundo".

As transformações vão se dando na práxis social dos sujeitos e nesse processo vão se

colocando as possibilidades de expressão dos sujeitos, enquanto partes integrantes,

pertencentes ao seu contexto. A identidade pessoal passa por essa mediação pelo contexto,

com os grupos em que cada um se faz pertencente. O sujeito transita por uma coletividade

que lhe é externa tanto quanto o constitui como sujeito, se tornando parte dele. A arte de se

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relacionar com os demais, é também a arte de se encontrar em um mundo humano

produzido por quem o vive.

Ao mesmo tempo em que as individualidades criam o mundo, são submetidas a

determinantes extra-subjetivos, que ultrapassam a sua possibilidade de escolha. A

subjetividade humana se produz num contexto de materialidade e totalidade. Todavia, a

construção social da subjetividade não pressupõe um engessamento do indivíduo ao seu

meio, mas sim da capacidade dele se diferenciar, se individualizar a partir dessa

interdependência com os demais seres.

A consciência crítica e lúcida sobre os determinismos sociais será o fio condutor de uma

vida sem os mesmos. A reconstrução da vida social requer em primeira instância, colocá-la

em questão e o enfrentamento de suas contradições, através de rupturas com práticas sociais

não condizentes com a dignidade humana. Não se pode perder de vista que as grandes

alterações históricas, a forma de viver dos sujeitos sociais, se dão a partir de um caminho

conjugado e não no isolamento ou na fragmentação de atividades solitárias.

Na discussão da identidade e diferença, enquanto uma unidade, interpõe-se a ruptura

com a interpretação fracionária que considera o "outro" como o diferente. Trata-se aqui de

um entendimento que incorporou a perspectiva onde o eu e o outro são distintos, são

singulares, portanto, único. Todos os seres são diferentes uns dos outros, apesar de fazerem

parte de um conjunto humano com inúmeras semelhanças e, especialmente da premência da

igualdade de condições. Faz-se necessário, que as condições de acesso ao mundo sejam

iguais para todos. Isso inverteria a histórica "necessidade" de que as pessoas pudessem ser

iguais umas as outras.

No sentido da igualdade de condições surge o conceito de acessibilidade, no que diz

respeito às pessoas portadoras de deficiência e de altas habilidades. Uma vez que, ao longo

da história da organização social, foram interditadas as possibilidades de acesso ao social

por aqueles que não se enquadram no mesmo, ter-se-á que reconstruir esse modo de

organização, tendo em vista a acessibilidade de pessoas que portam diferenças marcantes.

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A questão da acessibilidade remete a uma nova forma de pensar a arquitetura das cidades, a

construção de formas alternativas de comunicação nas diversas áreas das deficiências, mas

especialmente na construção de uma nova cultura.

Construir um mundo acessível para todos requer desconstituir velhos conceitos de

homogeneidade e perceber a imensa riqueza presente na diversidade. Quando for possível

conceber: "(...) o social como processo e não como estrutura" (MARTINELLI, 1998,

p.146) poder-se-á considerar a urgência de revisar conceitos, métodos e práticas sociais que

cristalizaram uma única forma de relação possível entre as diferentes pessoas da sociedade.

Como bem indicou a autora, torna-se necessário entender esse campo, o social, no qual se

movem vidas humanas, como dinâmico, processual e, portanto, passível de transformações

permanentes.

A estrutura consolidada na sociedade, resultante do fazer dos seres, não torna o social

um lugar de estagnação das formas historicamente construídas. Há sempre espaço para a

mudança de hábitos, de culturas e de práticas. Na situação das pessoas portadoras de

deficiências, torna-se urgente que cada vez mais se superem os traços históricos de

segregação e os "muros" que separam os ditos "normais" dos "anormais". A materialidade

da organização social deverá abrir espaço para contemplar a diversidade das singularidades,

quando se pensar em criar um mundo verdadeiramente humano.

O indivíduo se constitui enquanto tal nas relações sociais e na experimentação do

mundo, ou seja, na sua relação pessoal com os objetos que o rodeiam, o externo a si

mesmo. A possibilidade de criar, de superar obstáculos, começa desde cedo, na infância,

quando a criança acessa os recursos externos e vai se capacitando para adentrar no lugar

estranho ao seu mundo interior, o seu contexto. Na relação sujeito-objeto, o primeiro vai

moldando o segundo, vai transformando-o em algo adequado a si mesmo. Esse movimento

se constitui em uma atividade, em uma prática, que por ser humana passa ser social.

Pelo fato do sujeito ser capaz criar e recriar os objetos de seu mundo externo e a partir

disso tornar os resultados desse movimento algo que vai influenciar a coletividade,

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transformando o real num constante movimento, se pode dizer que assim será consolidada a

práxis social. Isso significa, situar a atividade dos seres, na relação sujeito-objeto e nas

relações sujeito-sujeito, enquanto prática potencialmente transformativa. O meio e os

objetos sofrem constantes mutações a partir das ações humanas. Todos os atos e

organizações históricas são criações da humanidade.

"Os animais só constróem de acordo com os padrões e necessidades da espécie a que pertencem, enquanto o homem sabe produzir de acordo com os padrões de todas as espécies e como aplicar o padrão adequado ao objeto. Assim, o homem constrói também em conformidade com as leis do belo" (MARX, 1983, p.96).

No pensamento secular, acima referido, a práxis social poderá ser analisada enquanto a

capacidade produtiva dos indivíduos de responder às demandas humanas do ser. Sendo

assim, se considera a possibilidade em que os sujeitos possam adequar os objetos as suas

necessidades humanas. Uma vez que o ser seja capaz de produzir para responder as

demandas de "todas as espécies" e fosse capaz de ajustar esta capacidade construtiva "em

conformidade com as leis do belo" estaria, então, capacitado a construir um mundo

verdadeiramente humano.

Se for considerado que, a expressão "as leis do belo" daquela citação de MARX, possa

aqui nessa análise, ser interpretada como as leis de justiça, de equanimidade de condições

para todos os seres, então se teria que os seres humanos serão capazes de construir um

mundo em que haja possibilidade de inserção para todos os seus sujeitos. Nesse aspecto,

toda a temática desta tese, toma uma tonalidade de contraversão ao historicamente dado.

Seria preciso que se transformassem as formas relacionais e a cultura da "normalidade"

para a construção de uma nova práxis social, em que o "belo" significasse o

reconhecimento da diversidade da condição humana.

Será plenamente possível atribuir outro significado ao lugar ocupado pelas diferenças

no conjunto das relações sociais, a partir do momento em que se inicia o processo de

desconstituição da cultura e do mito da padronização dos indivíduos. Vários segmentos da

sociedade fazem atualmente esse debate e enfrentam a histórica barreira da divisão entre o

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que é normal/ anormal, igual /diferente, pertencente/ excluído. Na ocasião da pesquisa e da

construção desta tese de doutorado, houve a oportunidade de constatar, através de

entrevistas, depoimentos, estudos documentais e bibliográficos, que há um movimento

social de superação dessa lógica binária.

As pessoas portadoras de deficiência entrevistadas e escutadas nos depoimentos do

diário de campo revelam que atualmente estão mais conscientes de seus direitos de

cidadania e pertencimento. As novas concepções acerca das deficiências/diferenças

conduzem a conclusão acerca da necessidade de que a sociedade possa se adequar às

peculiaridades individuais. Supera-se, dessa forma, a antiga perspectiva de que o sujeito é

que deve estar capacitado e adequado ao real. Entretanto, esses avanços conceituais e até

mesmo em termos de legislação, ainda não são suficientes para superar toda uma história de

segregações e preconceitos com a questão das deficiências e diferenças.

A desigualdade de condições, uns poucos tendo acesso ao mundo e tantos outros sem a

possibilidade de inserção no mesmo é uma característica da sociedade contemporânea.

Esse aspecto é também resultado histórico das relações sociais que produzem a questão

social. Não são exclusivamente as pessoas portadoras de deficiência e altas habilidades que

foram compelidas à exclusão. O sistema social produz desigualdades gritantes e em seu

funcionamento, está priorizado o capital em detrimento dos sujeitos. O ser humano em

primeiro lugar, não é ainda o princípio que rege as práticas políticas e sociais internacionais

entre as nações do mundo atual.

Vive-se o tempo da urgência em inverter os valores que regem as práticas sociais e

convertê-los na possibilidade construtiva de valorização da vida. Através desta pesquisa se

teve a oportunidade de debater, em diferentes perspectivas, o papel hoje de instituições que

existem para atender às demandas da área das deficiências e altas habilidades. O resultado

desse debate foi demonstrado ao longo da tese que aqui foi exposta e conduz ao

entendimento de que: a cidadania, a autonomia, o protagonismo, o reconhecimento das

diferenças, enquanto características da humanidade, são conceitos chaves para uma nova

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cultura que aponte para um horizonte de maior amplitude e afirme a diversidade da

condição humana.

Em função dessas concepções acima referidas, as instituições que trabalham nessa área

devem superar o traço histórico do protecionismo, do assistencialismo e da segregação. No

Estado do Rio grande do Sul, a FADERS, tem tido o papel político de revisar as velhas

práticas e concepções acerca do atendimento às deficiências e altas habilidades. Foi criada

uma nova lei, a instituição passa por um reordenamento técnico. Busca adequar-se a nova

proposta de funcionamento a partir de uma construção conjunta entre os profissionais,

pessoas usuárias de seus serviços, entidades de portadores de deficiências e de altas

habilidades, organizações sociais e a sociedade civil em geral.

Apesar de todo o movimento que há em torno da mudança de perspectiva sobre a forma

como se deve entender e lidar com as deficiências/diferenças, o trabalho social de

conscientização, organização e capacitação para uma nova práxis social, se constitui ainda

em uma longa caminhada a percorrer. A história apresenta situações que tendem à

cristalização e devido a isso a sua superação pode levar muito tempo para acontecer.

Superar preconceitos, os padrões antigos que são passados de gerações para gerações, não é

uma tarefa simples e rápida de se concluir.

Determinados padrões historicamente consolidados são como mitos que, uma vez

criados, prendem as pessoas a sua figura. Pode-se concluir este trabalho recorrendo, uma

vez mais, a figuras ilustrativas. Uma figura da mitologia grega, o PAN, conhecido no

Ocidente pelo nome de diabo, serve aqui para a interpretação da analogia entre o padrão e

mito:

"A figura do diabo nos mostra um sátiro – criatura metade homem, metade bode – dançando ao som da gaita que está segurando com a mão esquerda. Na mão direita segura dois fios, amarrados ao pescoço de duas pessoas de tamanho menor. Essas pessoas – um homem e uma mulher – também tem chifres como os do sátiro e, embora tenham as mãos e os pés livres para dançar, estão presos às cadeias do medo e do fascínio pela música. A cena tem lugar dentro de uma gruta escura. As figuras que dançam, na realidade são livres se desejarem, pois as mãos estão soltas para retirar as correntes a qualquer momento. A servidão ao diabo é uma

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questão que o consciente pode resolver" (BURKE E GREENE, 1988, P.66).

A história desse mito da mitologia grega pode ser comparada a vivência das pessoas em

sociedade. Os padrões criados no social condicionam os seres a responder afirmativamente

a perspectiva colocada pelo mesmo. Acontece uma imposição de valores e idéias que são

cultuadas pelo contexto. O aprisionamento que se estabelece por ocasião dos padrões

sociais, parece ser voluntário como o que ocorre na situação do casal que está preso ao

PAN por uma corda, porém, se encontram com as mãos livres e poderiam se libertar.

O fato de o casal ter "as mãos e os pés livres para dançar" poderá ser comparado à

situação dos sujeitos que têm a possibilidade de a partir de uma tomada de consciência de

sua própria condição dentro de seu contexto, ir a busca da libertação daquela condição.

PAN é um grande fetiche, mas não é absoluto, mesmo em sua condição de sátiro que

subjuga e mantém seres sob seu domínio pode-se observar as possibilidades de saída e

afastamento do fascínio que sua música exerce sobre as pessoas.

Em nossa sociedade são inúmeras as situações que levam a reprodução de padrões e

mitos pré-fixados pela falta de clareza e consciência dos processos sociais que

desencadeiam tais situações. Tematizando sobre as diferenças e, portanto, sobre o

significado do "estranho" no conjunto das relações sociais padronizadas é possível ponderar

que a "estranheza" diante do diverso é conseqüência do desconhecimento que se tem acerca

da real condição dos seres humanos. O aprisionamento às idéias que cultuam a

"normalidade", enquanto o padrão de identidade acertado para todos os seres não permite

reconhecer, e por isso estranhar, que no outro tanto quanto no eu não há possibilidade de

padronização.

Afirmar a diversidade da condição humana significa expressar que tudo aquilo que vem

da possibilidade de ser e estar no mundo não tem como se encaixar em regras e rótulos

fechados como os que se pode colocar em objetos. A extraordinária dinâmica presente em

cada singularidade pessoal está muito além dos condicionantes. As imposições históricas às

pessoas que portam singularidades marcantes podem ter mutilado vidas e interditado o

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aceso de muitos ao mundo, todavia, jamais poderão alterar a característica própria a todos

os seres, sua particularidade inalienável.

A sociedade é composta, entre outros aspectos, pela diversidade de seus sujeitos e pela

estrutura consolidada pelas relações entre os mesmos. No emaranhado dessas relações os

padrões criados se fixam e se reproduzem na materialidade do modo de vida, tanto quanto

em seus símbolos, seus ritos, seus mitos. Se não é possível ainda reconhecer, no conjunto

das relações sociais, a diversidade como sua parte integrante, então se encaminham as

regras de convivência pela travessia da igualdade de comportamentos. Torna-se um

equívoco buscar igualdade entre os sujeitos, quando os mesmos são diferentes, por

condição.

O maior paradoxo de todo esse equívoco, entretanto, é o fato de não se considerar que a

maior necessidade, para as pessoas poderem expressar suas singularidades, está na

possibilidade da igualdade de condições. No decorrer da pesquisa realizada, na ocasião

deste trabalho, no debate com as pessoas portadoras de deficiências e com aqueles que

estão mais próximos dessa questão, pode constatar-se: que a estranheza causada numa

situação que foge ao ordinário e ao cotidiano dito "comum", acontece por falta de

oportunidade de convivência com as diferenças.

A condição de segregação e exclusão a que foram submetidas às pessoas portadoras de

deficiências e diferenças marcantes privou os "demais" do entendimento do significado da

diversidade. A grande riqueza e o potencial criativo contido em situações que não se

enquadram no comum é um universo ainda a ser desvendado, pelo conjunto da sociedade.

Há uma necessária inversão de concepção a ser feita, que substitua a idéia de que é um

"problema" ser diferente, pela descoberta de que nas diferenças se localizam as

possibilidades de mutação das diversas ordens do social.

Na qualidade de assistente social e de pesquisadora do campo de trabalho, encerramos

parte desse processo de construção da afirmação de uma tese, para colocá-la novamente na

condição de processualidade que poderá levá-la a novos desmontes. Foi possível realizar

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vários estranhamentos, no processo de consolidação das afirmações feitas, no decorrer

deste trabalho. O principal desses estranhamentos diz respeito ao fato do imenso

desconhecimento que se tem da condição peculiar à própria espécie. Ao lado desse, um

outro estranhamento significativo é considerar que a sociedade se organiza de uma forma

que não comporta seus sujeitos, em seu conjunto completo, deixando muitos de fora das

possibilidades de acesso a seus "bens". De fato, isso tudo é muito estranho.

Muito embora todas as críticas que se colocaram, nesta trajetória, no que diz respeito à

organização da sociedade e a dificuldade de construir um mundo humano, com espaço para

todos, não se perde no horizonte, a expectativa de que: "Ser jovem é um delito. A realidade

comete esse delito todos os dias, na hora da alvorada; e também a História, que cada

manhã nasce de novo" (GALEANO, 2001, p.130). A possibilidade de superação de toda a

estranheza que divide e segrega os seres, é um norte para a reconstrução social. No

desenvolver dos processos sociais, na contradição de seus movimentos, estão presentes as

forças que impulsionam as grandes transformações sociais, tanto quanto a conservação de

seus antigos padrões. A alvorada de um novo tempo se dará a partir da consciência que o

tom das relações sociais será enunciado por cada um de seus autores sociais.

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DOCUMENTOS

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Tradução Romeu Kazumi Sassaki. Congresso Internacional 'Sociedade

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FADERS. Proposta para uma nova FADERS. POA: 1999.

FENEIS. Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos. Projeto para

Educação dos Surdos. POA: Escritório Regional, 2000.

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FÓRUM PERMANENTE DA POLÍTICA PÚBLICA ESTADUAL PARA PESSOAS

PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA E DE ALTAS HABILIDADES. Regimento

Interno. POA: Governo do Estado do RS, 1999.

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Compêndio de leis organizado por Maria Cristina Schneider da Silva. POA:

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LEI NOVA DA FADERS. LEI 11.666, DE 06 DE SETEMBRO DE 2001.

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Thereza Christina F. Stummer. Editado por CEDIPOD-Documento disponível na

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RELATÓRIO AZUL. Portadores de deficiência. Assembléia Legislativa, POA: 1997.

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ANEXOS

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ANEXO 1 DEZ PROPOSTAS PARA UMA NOVA ABORDAGEM

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ANEXO 2

PARECER 658/77 CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

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ANEXO 3

DOCUMENTO DE SALAMANCA

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ANEXO 4

LEGISLAÇÃO REFERENTE À PESSOA PORTADORA

DEFICIÊNCIA/ COMPÊNDIO ORG. PELA FADERS

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ANEXO 5

DOCUMENTO DA FADERS SOBRE O SIGNIFICADO DO FÓRUM

PERMANENTE DA POLÍTICA PÚBLICA PARA PPD E PPHA E AS

AÇÕES DESENVOLVIDAS

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ANEXO 6

DOCUMENTO DA FENEIS

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ANEXO 7

NOVA LEI DA FADERS

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ANEXO 8

INSTRUMENTO DE PESQUISA I

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ANEXO 9

INSTRUMENTO DE PESQUISA II

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ANEXO 10

INSTRUMENTO DE PESQUISA III

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