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ANPUH XXV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA Fortaleza, 2009.
A dispensa de defeitos mecnicos dos vassalos luso-braslicos e a remunerao dos servios na luta contra os neerlandeses: prtica ou norma? Bahia e Pernambuco, c.
1641- c. 1680
Thiago Nascimento Krause1
Resumo Em 1640, a Restaurao demandou uma recriao dos laos de vassalagem entre a monarquia e seus sditos. A economia da merc exerceu ento um papel crucial. Servir a Coroa tornou-se um modo de vida e estratgia de ascenso social para certos grupos. Muitos dos vassalos, porm, eram oriundos de estratos sociais inferiores, marcados por defeito mecnico, o que, de acordo com os definitrios das Ordens Militares, deveria impedi-los de alcanarem os hbitos. Na prtica, porm, a quase totalidade dos suplicantes foi dispensada pelo monarca. Pretendo aqui compreender o porqu destas dispensas e explicar as diferenas de incidncia de defeito mecnico na Bahia e Pernambuco, assim como sua distribuio temporal. Deste modo, discutirei se a dispensa da mecnica era uma prtica to difundida que, apesar de contrariar a norma escrita, no acabaria por ser uma norma implcita. Palavras-chave: Mercs, nobreza, honra. Abstract In 1640, the Portuguese Restoration demanded a recreation of the bonds between the monarchy and its vassals. The economy of reward had then a crucial role. To serve the crown became a way of life and a strategy of social mobility to certain groups. A great deal of the vassals, though, were from lower social strata, and as such marked by defeito mecnico, what, according to the rules of the Military Orders, should stop them from achieving this honor. In fact, though, practically all of them were dispensed by the King. I intend here to understand the reasons of these dispenses and explain the differences among the Bahia and Pernambuco, as well as its chronological distribution. Finally, I will contend that dispensation for non-nobility was a practice so common that, though it contradicted the written norm, it ended up being an implicit norm. Keywords: Rewards, nobility, honor.
A norma explcita:
As Definies e estatutos dos cavaleiros e freires da Ordem de Nosso Senhor Jesus
Cristo, publicadas em 1628, estipulam no ttulo XVIII, Das pessoas que devem ser recebidas
a esta Ordem, e das suas qualidades, que
os que a ela forem recebidos, devem ser Nobres, Fidalgos, Cavaleiros, ou Escudeiros, limpos, sem mcula alguma em seus nascimentos, nem outros impedimentos e defeitos (...). E os Papas Pio V, e Gregrio XIII, no ano de 1572, proibiram, que nenhuma pessoa que descendesse de sangue de mouro, ou judeu, ou fosse filho de mecnico, ou mecnica, nem neto de av e av
1 Mestrando no Programa de Ps-Graduao em Histria na Universidade Federal Fluminense, sob a
orientao do Prof. Dr. Ronald Raminelli, que possibilitou o estgio de pesquisa em Portugal atravs do programa Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ. O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - CNPq Brasil.
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mecnicos, possam ser recebidos ao hbito desta Ordem: o que ordenamos, e definimos que assim se cumpra, e guarde inviolavelmente, sem dispensao, nem remisso alguma, por ser to necessrio autoridade e reputao da Ordem2.
De acordo com esta normativa (muito similar s Definies contemporneas das
Ordens de Santiago e Avis), era preciso que os cavaleiros fossem limpos de sangue e
nobilitados h ao menos trs geraes, requisitos que, a se julgar por esta passagem, teriam a
mesma importncia. A entrada apenas de pessoas de qualidade seria essencial, de acordo
com esta concepo, para a manuteno do prestgio das Ordens militares. Haveria, desta
maneira, uma crculo virtuoso: apenas homens honrados entrariam nas Ordens, de modo
que esta manteria sua autoridade, e os cavaleiros receberiam ainda mais honra por terem
sido recebidos nestas instituies, tendo sua limpeza e nobreza comprovadas atravs das
inquiries para admisso.
O procedimento a ser seguido nestas inquiries detalhadamente descrito nas
Definies, inclusive com as perguntas a serem feitas a cada uma das testemunhas. Duas delas
tratam da nobreza dos habilitandos: se sabe que nobre, e o foram seus quatro avs? e se
filho ou neto de oficial mecnico?, enquanto apenas uma trata de sua limpeza de sangue: se
tem raa alguma de mouro, ou judeu, ou se disso infamado? (Definies, 206). O primeiro
ponto de interesse que apenas a pergunta sobre a pureza de sangue explicitamente menciona
a necessidade de inquirir no s sobre o fato, mas tambm sobre a infmia: isso j poderia nos
dar pistas de que o defeito no sangue percebido como mais grave. No mesmo sentido vai
uma instruo sobre a conduo da investigao: achando-se o rumor de alguma inabilidade
(maiormente sendo no sangue) far toda a diligncia humana para alcanar a verdade
(Definies, 205, nfase minha). Exatamente devido gravidade da impureza de sangue,
apenas o Papa estava autorizado a dispens-la. No havia, porm, tal restrio ao perdo do
defeito mecnico, que dependia apenas do monarca ainda que as Definies no
coadunassem nenhum tipo de dispensa.
Defeito mecnico nos vassalos luso-braslicos:
Uma leitura desavisada da regra supracitada poderia fundamentar uma viso sobre a
rigidez da sociedade lusitana e a inflexibilidade da hierarquia social no Antigo Regime.
2 Definies e estatutos dos cavaleiros e freires da Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo [1628], p. 203
(acertar referncia). Para uma anlise deste documento em um artigo pioneiro sobre a Ordem de Cristo, cf. DUTRA, 1970.
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Entretanto, a historiografia recente tem demonstrado que as possibilidades de ascenso eram
mltiplas, muitas vezes sancionadas pelo prprio centro poltico. No caso da Ordem de Cristo,
a historiadora Fernanda Olival j demonstrou a existncia de um nmero crescente de
dispensas, ainda que com significados distintos, variando de dispensas de fcil obteno,
como a de maioridade (quando o habilitante passava dos cinquenta anos), a perdes muito
mais raros, como para os descendentes de cristo-novos3.
Especificamente no caso do defeito mecnico, Olival mostrou um crescente aumento
da porcentagem dos cavaleiro dispensados por defeito mecnico na Ordem de Cristo, como
podemos perceber na tabela abaixo (elaborada a partir de OLIVAL, 2001, 183):
Perodo Dispensados por defeito mecnico
1641-50 4%
1651-60 7,2%
1661-70 14,9%
1671-80 18,9%
O professor Francis Dutra encontrou uma tendncia semelhante, ainda que
significativamente mais pronunciada, ao examinar a Ordem de Santiago (elaborada a partir de
DUTRA, 2006):
Perodo Dispensados por defeito mecnico
D. Joo IV (1641-56) 18%
D. Afonso VI (1657-67) 31%
D. Pedro II (1667-1706) 47%
A partir destes dados e das reflexes elaboradas por estes autores, partamos agora para
a anlise especificamente do objeto aqui em questo: os defeitos mecnicos dos vassalos luso-
braslicos (nomeadamente dos moradores e naturais de Pernambuco e Bahia) e suas dispensas.
interessante percebermos, em primeiro lugar, quantas vezes tal defeito era percebido nas
investigaes realizadas a mando da Mesa da Conscincia para a admisso s trs Ordens.
3 As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, Merc e Venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa:
Estar, 2001, maxime pp. 283-400.
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Perodo Bahia Pernambuco Conjunto
1641-50 22,7% 4,5% 13,6%
1651-60 18,2% 27,3% 23,6%
1661-70 52,9% 22,7% 35,9%
1671-80 33,3% 50% 39,1%
Perodo Bahia Pernambuco Conjunto
D. Joo IV (1641-56) 21,6% 17,9% 19,7%
Regncia D. Lusa de Gusmo (1657-62) 28,6% 19% 21,4%
D. Afonso VI (1662-7) 45,5% 30% 38,1%
Regncia D. Pedro (1668-83) 37,5% 31,2% 35%
O primeiro ponto que devemos encarar aps o exame destes dados a maior
participao dos mecnicos, comparativamente a totalidade dos que ingressavam na Ordem de
Cristo, aproximando-se mais do percentual de mecnicos da Ordem de Santiago. Entretanto,
se examinarmos apenas o hbito de Cristo, o percentual de mecnicas por hbito, h que se
notar uma diferena significativa:
Ordem Mecnicos Cristo 18,6% Avis 36,8% Santiago 36,7%
Salta a vista aqui, portanto, como, proporcionalmente, o nmero de mecnicos na
Ordem de Cristo era significativamente menor. Esta diferena refora a concepo de que a
Coroa concedia os hbitos de Avis ou Santiago queles vassalos de qualidade inferior. A
grande maioria destes hbitos, porm, foi concedida no perodo anterior a 6 de Agosto de
1658, quando um alvar declarou que os Comendadores e cavaleiros das Ordens Militares
no so isentos de pagar dzimos no Brasil (Colleco Chronolgica, VIII, 22). Esta lei foi a
resoluo de uma disputa que j durava cerca de uma dcada, perodo em que a Coroa evitou
conceder hbitos a moradores e naturais do Brasil, no importa sua qualidade. De modo geral,
de finais da dcada de 1640 at 1658, receberam hbitos de Cristo apenas pessoas que
realizaram servios excepcionais ou fidalgos, por ser o hbito de Cristo que lhes pertencia
por sua qualidade, argumento que estes homens utilizaram com freqncia, embora nem
sempre acolhido pela Coroa.
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Alm da preocupao da qualidade na atribuio de hbitos, um ponto central para
explicar esta diferena a quantidade significativa de hbitos de Avis e Santiago concedidos
como dote ou mesmo por servios de parentes, pois na maioria dos casos os beneficirios
eram homens que haviam ascendido rapidamente atravs da acumulao de capital econmico
em atividades mercantis (DUTRA, 2001). Mais importante, porm, talvez seja o fato de que
muitos dos que receberam estes hbitos eram soldados da fortuna, homens que galgaram
diversos postos em longas carreiras militares, partindo geralmente de patamares sociais mais
baixos. Exatamente por esta origem modesta, no conseguiram ascender aos mais altos
postos, participando valorosamente, mas de modo secundrio, nas principais batalhas e
confrontos do seu tempo. Por isso, uma parte considervel destes homens recebeu os hbitos
de Avis e Santiago, mesmo talvez sem um desgnio consciente do Conselho Ultramarino e do
monarca neste sentido, mesmo porque, ao deliberar sobre a merc, eles no possuam
informaes detalhadas sobre a qualidade dos suplicantes.
A diferena entre Pernambuco e Bahia pode ser explicada a partir da maior proporo
de soldados da fortuna nesta ltima, por esta ser a cabea do Estado do Brasil, cuja defesa
era fundamental e que recebeu o maior nmero de reforos enviados do Reino desde 1625,
com a Restaurao de Salvador. Em Pernambuco, por outro lado, o Exrcito retirou-se para a
Bahia com o fim da resistncia contra os flamengos, e vrios dos militares que haviam
participado da resistncia acabaram por se estabelecer em Salvador. Embora alguns dos
soldados tenham se estabelecido em Pernambuco aps a Restaurao desta capitania, seu
nmero foi proporcionalmente inferior aos que se estabeleceram na sede do governo-geral.
Entretanto, mesmo se considerssemos apenas a Ordem de Cristo, a porcentagem de
defeitos mecnicos dentro do nosso recorte ainda significativamente mais elevada que no
conjunto da Ordem examinado por Fernanda Olival. Por que isso ocorria, mesmo em reas
com uma aucarocracia estabelecida, como a Bahia e Pernambuco?
Uma resposta provisria relaciona-se a prpria mobilidade espacial caracterstica da
sociedade colonial. Se as possibilidades de ascenso social eram mltiplas em Portugal, creio
que o fossem ainda mais no Brasil, fronteira de Portugal no dizer de Jorge Pedreira (2001).
A formao relativamente recente das elites locais e a contnua incorporao de recm-
chegados (inclusive os originrios de atividades mercantis) favoreciam que membros da elite
pudessem experimentar uma ascenso social relativamente rpida, em uma ou duas geraes,
que o hbito vinha a sacramentar. A prpria mobilidade geogrfica podia fazer com que no
houvesse notcia alguma na Amrica da ascendncia no-nobre do vassalo, de modo que este,
por haver vivido no Brasil a lei da nobreza e receber o hbito, podia ostentar uma fictcia
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nobreza antiga, de igual para igual com aqueles que j haviam se nobilitado h vrias
geraes. A maioria dos defeitos advinha do lado reinol, especialmente do av paterno (como
SILVA, 2005, p. 108 afirma), demonstrando que, na maioria dos casos, os pais destes homens
j haviam passado a viver a lei da nobreza, afastando-se dos ofcios mecnicos. A ascenso
social era possvel e frequente, mas media-se, na maior parte dos casos, em geraes, no em
anos.
Outro ponto interessante que enquanto nas habilitaes de menos de 1/5 dos naturais
de Pernambuco foram encontrados defeitos mecnicos, o mesmo ocorreu em cerca de 1/3 das
habilitaes de naturais da Bahia. Nesta, a realizao de servios pela aucarocracia
estabelecida foi consideravelmente inferior, por seu envolvimento na guerra contra os
flamengos haver sido apenas lateral. Em todos estes casos, ao menos um dos pais do
suplicante havia se estabelecido recentemente na sede do governo-geral. Mesmo assim,
interessante que em 8 dos 10 casos, estes homens com defeito mecnico faziam parte da
aucarocracia, sendo inclusive membros de destaque dela, como os ricos senhores Cristvo
de Burgos e Francisco Gil de Arajo. Apesar de esta amostra ser significativamente reduzida
e certamente no aleatria, talvez seja possvel pensar que a aucarocracia baiana era mais
aberta e fluida que sua contraparte pernambucana, algo j sinalizado h dcadas pela
historiografia (MELLO, 2008, 125-79; FLORY & SMITH, 1978). No caso de Pernambuco,
aparentemente apenas um dos mecnicos era membro da aucarocracia: a guerra contra os
flamengos ofereceu tambm, portanto, possibilidades de ascenso para diversos homens
situados num patamar social inferior, ainda que nem todos tenham conseguido efetivar a
merc, quando possuam outros defeitos, como o mulato Pascoal Gonalves de Carvalho,
filho de uma negra4.
Assim, em Pernambuco membros da aucarocracia no tiveram defeitos mecnicos
apontados em suas habilitaes, na quase totalidade dos casos. Embora esta amostra seja,
novamente, reduzida (apenas cerca de 45 indivduos) e definitivamente no-aleatria, talvez
possa reforar a idia de que a aucarocracia pernambucana j estava mais sedimentada e
menos aberta a recm-chegados que sua contraparte baiana, apesar da ascenso de alguns
senhores em razo da turbulncia do perodo holands, sendo Joo Fernandes Vieira o mais
excepcional exemplo (MELLO, 2000).
4 BNL, cd. 156, f. 147; AHU, cd. 83, f. 179v-180 e 355; IPR, II, 356. Mesmo assim, aps 50 anos de
servios militares foi nomeado capito-mor do Rio Grande em 1685, servindo at 1688. DH, v. X, pp. 270-2.
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A temporalidade do defeito mecnico:
Uma questo que ainda exige resposta, levantada pelas tabelas acima, o porqu da
significativa variao temporal do defeito mecnico, seja dividido por dcadas, seja por
monarca. O total de homens com defeito mecnico cresce ininterruptamente no perodo em
anlise, tanto no cmputo mais geral das ordens de Cristo e Santiago quanto especificamente
em nosso recorte. As diferenas entre as capitanias, porm, so significativas. Parece-me que
a diviso atravs dos reinados mais significativa do que a arbitrria diviso em dcadas, que
no respeita conjunturas polticas. Mesmo assim, procurarei analisar ambas as divises.
notvel que na dcada de 1640 o defeito mecnico muito raro nos vassalos
moradores ou residentes em Pernambuco. A explicao reside no fato de que nesse perodo a
maioria dos vassalos recompensados eram membros da aucarocracia, com uma participao
muito reduzida dos soldados da fortuna, grupo este no muito numeroso mesmo na Bahia,
neste perodo. Na dcada de 50, porm, especialmente na fase final da guerra contra os
flamengos e imediatamente aps sua expulso do Recife, sua participao no nmero de
cavaleiros aumentou significativamente, no final, portanto do reinado de D. Joo IV e incio
da regncia de D. Lusa de Gusmo, aumentando a quantidade de habilitandos com defeito
mecnico. O aumento significativo no reinado de D. Afonso VI e na regncia de D. Pedro me
parece consequncia dos cavaleiros que alcanaram o hbito neste perodo, sendo muitos
destes soldados da fortuna e homens que receberam o hbito como dote, atravs de
casamentos, questo j mencionada acima. Mas resta uma questo central: o aumento na
quantidade de mecnicos devia-se a uma maior tolerncia da Coroa, concretizada nas
dispensas, ou em algum outro fator?
Mercs, dispensas e servios:
Fernanda Olival afirmou que em Portugal quase no existiram reprovaes por
mecnicas, apesar da abundncia deste tipo de impedimentos (OLIVAL, 2001, p. 193). Isto
ocorria desde o incio da dinastia de Bragana e mesmo antes. Os casos que constam na minha
pesquisa no se afastam desse padro: os mecnicos que no foram dispensados tinham sem
exceo outro defeito mais grave, como rumor de serem cristo-novos ou falta de notcia de
alguns de seus ascendentes. Em todos os outros casos, ou o habilitando era dispensado
imediatamente, ou aps recorrer, apresentando seus servios para a Mesa da Conscincia e
Ordens, que na maioria das vezes recomendava a dispensa rgia, inevitavelmente concedida.
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A concluso, portanto, que o fator mais importante no foi um relaxamento dos
requerimentos para a entrada nas Ordens, porque estes, no que toca ao defeito mecnico,
nunca foram dos mais rgidos; mais significativo foi o aumento no nmero de agraciados com
a merc dotados de defeito mecnico. Por que isso ocorria?
Procurarei oferecer uma hiptese a partir da anlise dos 254 casos includos na minha
pesquisa, dos quais 147 conseguiram hbitos, alm de possuirmos informaes sobre defeito
de outros 17, observados no s a partir da documentao das Ordens, utilizada
prioritariamente at aqui, mas tambm das consultas do Conselho Ultramarino sobre seus
servios e das portarias que tiravam das mercs recebidas.
Parece-me que a razo deste aumento originava-se da necessidade de remunerar os
servios e no fato de que, na maioria dos casos, o Conselho Ultramarino e o monarca no
possuam informaes sobre a qualidade dos vassalos ao concederem as mercs, exceto em
casos em que os suplicantes fossem fidalgos ou, em sentido oposto, negros, ndios
(RAMINELLI, 2008) ou notoriamente cristo-novos. Mesmo quando os vassalos
apresentavam-se como nobres, recorrendo inclusive a certides para prov-lo, tais alegaes
podiam ser e eram provadas falsas pelas inquiries das Ordens. Temos o caso, por
exemplo, do licenciado Joo Leito Arnoso, morador do Pernambuco ante bellum e que se
transferiu para a Bahia aps os neerlandeses terem consolidado seu domnio territorial em
1637. Arnoso afirma ser homem nobre e tal argumento inclusive utilizado pelo Conselho
para justificar a merc do hbito de Cristo, mas em sua habilitao consta que seu av paterno
fora sapateiro, defeito de falta de nobreza do qual prontamente dispensado, em 1647,
tomando o hbito no mesmo ano5.
Creio, portanto, que embora houvesse durante o reinado de D. Joo IV e a regncia de
D. Lusa de Gusmo uma inteno de reservar o hbito de Cristo para as pessoas de maior
qualidade (OLIVAL, 2001, pp. 140-1) e, no caso do Brasil, evitar conced-lo exceto aos
possuidores dos mais relevantes servios, devido questo dos dzimos (OLIVAL, 2001, p.
174), havia certas dificuldades em realizar tal intento. Isto ocorria devido falta de
informaes sobre a qualidade dos suplicantes e por esta no ser a preocupao fundamental
dos Conselhos e do rei. Para as Ordens de Avis e Santiago, sequer havia esta preocupao,
embora um nmero considervel de vassalos de maior qualidade tenha sido desviado para
estas ordens at 1658, em razo do problema dos dzimos; consequentemente, homens como
Pedro Camelo de Arago Pereira, importante membro da aucarocracia baiana, certamente
5 AHU, cd. 79, fls. 357-360; IPR, I, 187; ANTT, HOC, Letra J, mao 91, n. 3; COC, L. 35, fls. 119, 377v-
378v e L. 36, f. 373v-374.
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orgulhoso de sua nobreza, e Joo de Mendona, homem de negcio do Recife, filho e neto de
mercadores (e cristo-novo inteiro), ostentaram o hbito de Avis, apesar das significativas
diferenas entre eles6.
Penso, assim, que as principais razes do aumento da quantidade de defeitos
mecnicos eram um crescente engajamento de vassalos dos mais variados nveis sociais em
busca de mercs e a necessidade que a Coroa tinha dos servios destes homens. No havia,
portanto, um desgnio consciente da Coroa, mas apenas uma resposta s condies imediatas
que ela enfrentava. O resultado foi a virtual normatizao das dispensas de defeito mecnico,
por mais grave que fosse, mesmo que para isso os vassalos precisassem fazer peties de
rplica e servir mais alguns anos. Mesmo assim, a nfase na limpeza de mos presente nos
estatutos das Ordens e nas inquiries continuaram a produzir efeitos sociais: atravs delas,
foi possvel manter a imagem das Ordens por um longo tempo como um certificado de
nobreza, o que potencializava a ascenso social dos mecnicos que ostentavam estes hbitos,
apagando seu passado, sem prejudicar diretamente queles nobilitados h trs ou mais
geraes.
Fontes manuscritas: Arquivo Histrico Ultramarino (AHU):
Cdice mercs gerais, ns. 79-85.
Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT):
Habilitaes da Ordem de Avis (HOA)
Habilitaes da Ordem de Cristo (HOC)
Habilitaes da Ordem de Santiago (HOS).
Chancelaria da Ordem de Avis (COA)
Chancelaria da Ordem de Cristo (COC)
Chancelaria da Ordem de Santiago (COS)
Registro Geral de Mercs (RGM)
Biblioteca Nacional de Lisboa:
Coleo Pombalina, cdice 156.
Fontes publicadas: Archivo Nacional Torre do Tombo. Inventrio dos Livros das Portarias do Reino (1639 a 1664). Lisboa: Imprensa Nacional, 2v., 1909-1912.
6 Para Arago Pereira: COA, L. 14, f. 260-260v, 365v; COC, L. 46, fls. 155-156; para Mendona: ANTT,
HOA, Letra J, Mao 1, n. 17; HOC, Letra J, Mao 91, n. 59, COA, L. 14, f. 631, 709v-710v, 713-713v COC, L. 18, fls. 115-116, 130v-131. Ambos posteriormente receberam o hbito de Cristo.
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