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A DIFERENÇA ENTRE O GIRAR, O CLICAR E O DESLIZAR1
Prof. MSc. Franz Kreüther Pereira
Antigamente, poucas coisas fazíamos funcionar usando apenas um dedo ou dois:
apertar o botão da campainha ou o botão de chamar o elevador é um bom exemplo.
Também podemos incluir aí o “tirar“ uma foto ou discar um número de telefone.
Isso sem falar do trabalhoso ato de escrever com as velhas Olivetti ou Remington -
coisa que algumas pessoas conseguiam usando apenas e tão somente dois dedos.
Ah, e também com um dedo indicador se ordenava silêncio! Mas isso quase
sempre era acompanhado de um sonoro Psssssssiiiu!!... (Franz Pereira)
Como sabemos, o que é relativo aos dedos dizemos “digitais” (do latim dígitus).
Com os dedos podemos fazer movimentos específicos e únicos, como o ato de premir
botões com suavidade; girar um compasso ou pinçar pequenas coisas, como um piolho,
um grão ou um fio de cabelo. Os dedos são ferramentas delicadas e precisas com as
quais o Homem conquistou a Terra e transform(ou)a o mundo.
É claro que por detrás de toda conquista humana está a inteligência, o cérebro. E
o cérebro quer tudo ao alcance das mãos, porque isso é muito cômodo e ele pode se
dedicar a outras tarefas. Eis, pois, a razão de os telefones celulares se tornarem o gadget
mais presente em nosso dia a dia. Tamanha é a dependência que o homem moderno tem
do celular que alguns sequer conseguem trabalhar ou resolver suas maiores
necessidades sem esse bendito aparelhinho, que vai muito além de um telefone sem fio2.
1 Palestra apresentada na XI Jornada de Estudos e Pesquisas sobre Envelhecimento Humano na Amazônia-JEPEHA,
realizada em agosto de 2013 no Centro de Convenções Benedito Nunes, da Universidade Federal do Pará. 2 O telefone sem fio foi idealizado pelo padre brasileiro Landell de Moura, que patenteou sua invenção em 1904, nos
EUA. Sim, isso mesmo! O telefone sem fio é invenção antiga. E não é norte-americana, não. É de brasileiro, e sinta orgulho disso. Contudo o celular não é a evolução desse telefone. O que é um telefone senão um aparelho que transmite a distância (tele) o som da voz (fone) e permite a troca simultânea de informações entre emissor e receptor?
Os modernos telefones celulares fazem muito, muito mais que isso... *Foto: http://culturaproletaria.wordpress.com/2014/01/26/el-telefono-movil-mas-comunista-de-lo-que-usted-imagina
O telefone sem fio do cientista Leonid Ivanovich Kupriyanovich, apresentado na década de 1950*
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O fato é que em nosso cotidiano como cidadãos da “sociedade da informação”,
como indivíduos de uma comunidade mundializada e cada vez mais afetada pela
chamada “revolução tecnológica”, nos encontramos cercado pelas tecnologias digitais
com predominância para as tecnologias da informação e comunicação, da qual o celular
é o expoente. A esse respeito a ONU informa que “dos 7 bilhões de habitantes do
mundo, 6 bi têm celulares, mas 2,5 bi não têm banheiros”3, e a União Internacional de
Telecomunicações – UTI nos diz que “há mais de 100 países com penetração da
telefonia móvel superior a 100% – e em sete a densidade já ultrapassa os 200%”4. Em
breve haverá mais celular em operação no planeta que indivíduos...
A sociedade digital em botão
A modernidade começa com a hegemonia ou onipresença dos botões, coisa que,
como se sabe, aconteceu no século XX com o advento do capitalismo e a exaltação ao
consumismo. Também já vimos que é cada vez maior o número de usuários da telefonia
celular; isso sem falar do crescimento das vendas de computador pessoal (desktop,
notebook, laptop, tablet, ultrabook). E não esqueçamos da TV, presente em 95,1% dos
domicílios brasileiros5 e dos aparelhos de som e vídeo, dos micro system e consoles de
videogames. Mesmo em lares mais humildes é comum encontrar alguns deles, todos
com seu próprio controle remoto, um dispositivo cheio de funções que ativamos pelo
premir de botões. Paralelamente também cresce o número de usuários de cartões de
crédito - que no Brasil já é cerca de 80% da população economicamente ativa - e outros
tipos de cartões magnéticos, que todos sabem necessitam que seu possuidor digite uma
senha para poder utilizá-lo.
Então é por isso, porque tudo começa e termina no simples clicar de um dedo
sobre um botãozinho, que dizemos estar vivendo numa sociedade digital? A resposta é
NÃO!. Estamos numa sociedade digital porque toda informação real, seja ela discreta
como símbolos (números e letras, por exemplo), ou contínua como sons e imagens, é
convertida na forma numérica binária, e assim armazenada, transmitida, compartilhada.
E isso só se tornou possível com a Tecnologia da Informação e Comunicação-TIC
baseada em rede e incorporada a uma estrutura de sincronicidade6. Foi ela, a
sincronicidade, que tornou realidade o vaticínio de Marshal McLuhan nos idos de 1960:
o mundo está se tornando uma imensa aldeia global.
Estamos vivendo num momento de transformações e adaptações característico
de todo processo de transição. As TIC fizeram surgir uma nova cultura e uma nova
estrutura, que Pierre Lévy denominou de “cibercultura” e “ciberespaço” (LÉVY, 1999),
e promoveram alterações na dinâmica das relações do homem moderno, reconfigurando
sua cosmovisão, sua maneira de ser e estar no mundo, sua percepção de tempo e espaço.
3 http://www.onu.org.br/onu-dos-7-bilhoes-de-habitantes-do-mundo-6-bi-tem-celulares-mas-25-bi-nao-tem-banheiros/
4 http://convergenciadigital.uol.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=32605&sid=8#.Uvd-TvldV8E 5 Fonte: Censo 2010. IBGE
6 O conceito de sincronicidade aqui não é o mesmo formulado por K. G. Jung. Refere-se ao fluxo simultâneo de dados entre os dois sujeitos ou dispositivos, os quais vão transformando esses dados em informação durante o processo. É o antônimo de assíncrono, ou seja, não simultâneo, como na comunicação por carta, por exemplo.
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De fato, o impacto dessa nova cultura atingiu a todos, adultos, idosos, jovens e
crianças, contudo de forma diferenciada; porém com maior efeito sobre os mais velhos,
os idosos, que na nova sociedade são chamados de “migrantes digitais”, enquanto que
os jovens e crianças são denominados “nativos digitais”.
Do binário ao quântico
Antigamente, as leis da física newtoniana estabeleciam a verdade do sistema e o
pensamento considerava a matéria dimensionada, definida como uma partícula. No
passado o pensamento cartesiano era o modelo para o método científico. Então veio a
nova física e nos apresentou o estado quântico, onde a realidade não é mais uma via
com uma direção e dois sentidos, como uma estrada de duas mãos, mas de infinitas
possibilidades. A realidade atual exige que nosso cérebro construa ou compreenda inter-
relações que antes não existiam, abandonando a certeza em detrimento das
possibilidades. Deve deixar de se comportar como partícula para ser como onda.
Assim, a nova cultura se ergue sobre um princípio novo e revolucionário, o
princípio da incerteza ou da indeterminação. Tais conceitos tendem a abolir o estado
binário (reducionista, compartimentalizador, limitador) então vigente, desestabilizando,
dessa maneira, o pensamento dos antigos. Por outro lado, nesse novo cenário as crianças
e jovens são os mais contemplados, visto que essas mudanças afetaram a maneia como
se relacionam entre si, com o mundo e com a própria família. Diante das novas
tecnologias digitais, a mente dos mais velhos parece sofrer um delay que não acontece
na dos jovens e crianças. Já dissemos que as TIC, garantindo informação e
conhecimento a qualquer hora e em qualquer lugar, transformou a maneira como nos
relacionamos social, política, profissional, cultural e economicamente. A compreensão
que o Homem tem de si mesmo, do mundo e de sua história nele sofreu um considerável
abalo, ou talvez possamos dizer upgrade. Eis que chegamos ao ponto de mutação7,
desenhado por Capra nos anos 1980.
As gentes nascidas na década de 1940/50, e que hoje estão na terceira idade,
costumam dizer que na sua época as coisas eram mais fáceis. E eram! Talvez em razão
do que pincelamos acima; talvez seus cérebros adotassem parâmetros, digamos,
mais duros8 (hard) e, por conseguinte, mais condizente com a tecnologia do estado
binário ou dicotômico (o tal das duas escolhas) vigente. E por isso mesmo mais simples.
Claro está que a realidade do mundo moderno não é mais a realidade de nossos avós:
concreta e definida pela certeza de duas direções (sim/não; é/não é; bom/ruim...). Isto
posto, podemos compreender que a mente dessa nova geração tende a trabalhar com
parâmetros por assim dizer mais suaves (soft), o que lhes confere habilidades e
competências para lidar, de maneira eficiente, com as tecnologias de sua época. Afinal,
já dizia o eminente físico David Bonh, “o meio ambiente é uma extensão do
pensamento”.
7 Vide “O Ponto de Mutação”. CAPRA, Fritjof. 8 Talvez possa entender melhor esse conceito no tópico a seguir.
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Estamos num mundo real convivendo com um mundo virtual9 ou é o contrário?
Já mostramos que, no passado, nossa compreensão de mundo era baseada na lógica
aristotélica Se/Então: cogito ergo sun; se vejo, logo existe; se sinto, logo é real.... Então,
conforme já exposto, nosso pensamento era binário e a tecnologia daqueles tempos
também era bipolar, porquanto reflexo de nossa forma de pensar. Em outras palavras, as
coisas antigamente se resumiam a dois estados distintos: ligado ou desligado; sim ou
não; certo ou errado; bom ou ruim; tudo ou nada; luz ou escuridão...
O girar, o clicar e o deslizar
Nessa perspectiva, podemos dizer que a tecnologia do século passado era linear
e polarizada, isto é, a ação do sujeito sobre objetos tecnológicos obedecia a uma
sequência lógica e acontecia, invariavelmente, entre dois polos. Por exemplo, os
aparelhos do passado que usavam energia elétrica funcionavam com relés, disjuntores,
chaves, válvulas, potenciômetros. Para começar a funcionar, tais aparelhos deveriam
vencer certa condição inicial de inércia. Por conta disso precisavam “esquentar”, eram
lentos, pesados e consumiam muito mais energia. Hoje podemos ligar um rádio, uma
televisão, um telefone e mesmo outros aparelhos e dispositivos apenas clicando sobre
um botão, deslizando a ponta de um dedo sobre determinado local ou, até mesmo,
dando uma ordem de voz. Mas na época de nossos avós a coisa não era tão simples e
prática.
Tomemos, à guisa de ilustração, uma ação simples do cotidiano da maioria da
população mundial: ligar o rádio. Antigamente ligava-se o aparelho girando um botão,
até ouvir um “clic” (como se pode ver já tínhamos o clicar, naquela época), que
indicava o estado de ligado/desligado. Aí, esperávamos “esquentar” as válvulas. E a TV,
então? Trocar de canal era uma operação ruidosa, barulhenta, que exigia certo esforço.
O telespectador tinha que girar o seletor de canais, o que feito rapidamente mais parecia
o pipocar de uma metralhadora. O surgimento da TV com controle remoto foi
comemorado como uma carta de alforria do telespectador. Paradoxalmente, escravizou
ainda mais o indivíduo.
Seguindo nosso raciocínio temos, até o momento, duas ações distintas diante da
tecnologia: o clicar e o girar. Espero ter demonstrado que o girar é uma ação linear,
isto é, uma ação que se processa sempre em duas direções (horizontal ou vertical) e em
dois sentidos: da esquerda para a direita ou vice-versa. Por conseguinte, binária. Em
sendo assim, é fácil perceber que o ato de girar é gradual enquanto o clicar é imediato.
Clicar é uma ação aplicada num único e determinado ponto por vez. Podemos mesmo
dizer que clicar é uma ação tópica. Enquanto o clicar exige conhecimento,
seleção, precisão, exatidão, o girar é uma ação mais lenta, que exige um pouco mais de
esforço. Talvez por isso não esteja mais presente nos modernos aparelhos e dispositivos
da era digital.
9 É virtual toda entidade “desterritorializada”, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem, contudo, estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular. (Lévy, op.cit., p. 47).
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Na tecnologia do século 21 vemos a supremacia do suave sobre o duro, e o
antigo ato ligar um aparelho pelo girar de um botão, que havia se tornado um simples
clicar sobre uma tecla, transforma-se no gracioso e delicado deslizar de um dedo sobre
uma superfície sensível ao toque. O clicar e o deslizar são as maneiras atuais de se
ligar/desligar a maioria dos equipamentos digitais.
Percebe-se que o deslizar está mais para algo que acontece no plano espacial,
posto que sua ação está delimitada, circunscrita, a uma área do espaço, como por
exemplo a tela touchscreen de um celular, de um computador ou de uma televisão. E
usando de uma analogia quântica, podemos afirmar que o deslizar está para a onda
assim como o clicar está para a partícula, e descreve o comportamento tecnológico do
futuro: suavidade, graça, leveza, silêncio. Por isso costumo dizer que somos do tempo
do girar vivendo na época do clicar, e já nos encaminhamos para outro tempo, o
do deslizar.
Podemos apresentar um exemplo desses três estágios da tecnologia digital com o
telefone. Os telefones antigos eram compostos de duas partes básicas; uma por onde se
falava e ouvia, e a outra onde ficava o dispositivo de discagem, composto de um disco
giratório10
com 10 orifícios correspondendo aos dígitos de 0 a 9. Para fazer uma ligação
levava-se a parte com o microfone à boca e o autofalante ao ouvido e esperava-se o
sinal de linha. Depois era preciso discar o número desejado, o que se fazia girando com
o dedo indicador o disco com os números. Hoje, com o celular, basta clicar suavemente
sobre uma telinha para falar com outro telefone. Existe coisa mais fácil e simples?
Simples? Nem tanto. Os aparelhos celulares atuais são cada vez mais complexos
e completos, tipo all-in-one. Há telefones com reconhecimento de voz, de rosto e de
movimento; com relógio e despertador, com calendário e agenda de compromissos, com
acesso a internet, tradutores de idiomas, sistema de navegação GPS, mapas de cidades
com estradas e serviços, TV digital, rádio FM, câmera fotográfica de alta resolução,
projetor e jogos. Com ele você pode gravar vídeos com áudio, checar seus e-mails,
trocar mensagens de texto ou voz, tirar e compartilhar suas fotos, armazenar suas
músicas ou filmes favoritos, acompanhar a novela na TV, pagar contas, ligar e desligar
aparelhos, abrir portas, fazer seu checkup e os cambaus. Saber usá-los exige habilidades
e competências que a geração atual parece já nascer sabendo.
Hoje é comum observarmos uma criança com menos de dois anos pegar um
celular e passar o dedinho sobre a telinha para ativá-lo. Ela SABE que deve deslizar o
dedo naquela superfície, daquela maneira, naquela determinada direção. Elas têm o
mundo na ponta dos dedos. Essa é a diferença que, por enquanto, separa a sociedade em
duas categorias: os imigrantes digitais e os nativos digitais11
. O fato é que ambos
convivem no mesmo espaço e tempo, mas não na mesma realidade.
10 A partir de 1960 surgiram telefones com teclas alfanuméricas no lugar do disco. 11 Termos criados em 2001 por Marc Prensky, um educador, escritor e pesquisador americano de 66 anos.
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Referências
CAPRA. Fritjof. O Ponto de Mutação. Cultrix, 1989.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo. Editora 34, 1999.
Sites consultados
1 - http://www.onu.org.br/ (acessado em 10/02/2014)
2 - http://convergenciadigital.uol.com.br/ (acessado em 10/02/2014)