a didÁtica e as exigÊncias do processo de escolarizaÇÃo

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Page 1: A DIDÁTICA E AS EXIGÊNCIAS DO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO

A DIDÁTICA E AS EXIGÊNCIAS DO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO:

FORMAÇÃO CULTURAL E CIENTÍFICA E DEMANDAS DAS PRÁTICAS

SOCIOCULTURAIS *

José Carlos Libâneo

Pontifícia Universidade Católica de Goiás

Este texto aborda uma das tensões existentes hoje no campo da

educação entre a exigência social e democrática de provimento de

escolarização formal a todas as crianças e jovens e a necessidade de as

escolas se organizarem de forma adequada para o acolhimento da

diversidade social e cultural que demarca as diferenças individuais e

sociais entre os alunos. Dado que as escolas precisam possibilitar a

todos os alunos o acesso ao conhecimento sistematizado e

desenvolvimento de capacidades intelectuais considerando, ao mesmo

tempo, suas necessidades individuais e sociais enquanto imersos em

contextos socioculturais e institucionais, a investigação em didática

precisa se por como tarefa discutir o lugar das práticas socioculturais,

tendo em vista o enriquecimento do conteúdo da didática. No tópico

inicial, são retomados os elementos constitutivos do trabalho didático

tal como se apresentam na investigação didática recente e seu lugar na

formação de professores. No segundo tópico, é trazido o entendimento

do papel do ensino na escola, explicitando um ponto de vista sobre o

papel político da escola na promoção da justiça social: a formação

cultural e científica dos alunos. No terceiro tópico, o texto apresenta a

emergência da problemática da cultura no campo do ensino, discutindo

o tema da interculturalidade dentro da ideia de escola como um dos

meios de promoção da justiça social.

*(*)Texto de conferência apresentado no III EDIPE – Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, Anápolis (GO), outubro de 2009.

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1. Os elementos constitutivos do trabalho didático na investigação

recente e na formação de professores

Na tradição da investigação pedagógica, a didática tem sido vista

como um conhecimento relacionado com os processos de ensino e

aprendizagem que ocorrem em ambientes organizados de relação e

comunicação intencional, visando a formação dos alunos. Segundo Karl

Stocker, pedagogo alemão (1964), “o processo didático (...) tem seu

centro no encontro formativo do aluno com a matéria de ensino”. É da

natureza da didática investigar os nexos e relações entre o ato de

ensinar e o ato de aprender. Desse modo, o entendimento atual em boa

parte das teorias do campo científico da didática é ver o ensino como

atividade de mediação para promover o encontro formativo, educativo,

entre o aluno e a matéria de ensino, para cuja compreensão se juntam

as teorias do ensino, as teorias do conhecimento, as ciências auxiliares

da educação e a epistemologia das disciplinas ensinadas.

Com que categorias lida a didática? Quais são os elementos

constitutivos do ato didático? A análise do ato didático destaca uma

relação dinâmica entre três elementos - professor, aluno, matéria - a

partir dos quais são feitas as clássicas perguntas: O que ensinar? Para

que ensinar? Quem ensina? Para quem se ensina? Como se ensina? Sob

que condições se ensina? (Libâneo, 1994).

Estas perguntas definem os elementos constitutivos ou categorias

da didática, e formam seu conteúdo. Obviamente, o significado de cada

um desses elementos e as relações que existem entre eles decorrem de

concepções filosóficas, epistemológicas, pedagógicas, formando as

tendências pedagógicas e didáticas.

“O que ensinar” remete à seleção e organização dos conteúdos,

decorrentes de exigências sociais, culturais, políticas, éticas, ação essa

intimamente ligada aos objetivos, gerais ou específicos, que expressam

a dimensão de intencionalidade da ação docente, ou seja, as intenções

sociais e políticas do ensino. A seleção dos conteúdos implica, ao

menos, os conceitos básicos das matérias e respectivos métodos de

investigação, a adequação às idades e ao nível de desenvolvimento

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mental dos alunos, aos processos internos de assimilação, aos

processos comunicativos na sala de aula, aos significados sociais dos

conhecimentos.

O professor põe-se como mediador entre o aluno e os objetos de

estudo, enquanto os alunos estabelecem com o conhecimento uma

relação de estudo. A par disso, professores e alunos estão implicados

numa relação social que se materializa na sala de aula mas, também, na

dinâmica das relações internas que ocorre na escola em suas práticas

organizativas.

O “como ensinar” e as “condições de ensino e aprendizagem”

correspondem aos métodos e formas de organização do ensino, em

estreita relação com objetivos e conteúdos, estando presentes, também,

no processo de constituição dos objetos de conhecimentos. Nas

condições em que se efetiva o ensino e aprendizagem, estão os fatores

socioculturais e institucionais.

Verifica-se que, a partir dos elementos constitutivos do ato

didático, há uma intensa articulação com outros campos científicos tais

como a teoria do conhecimento, a psicologia da aprendizagem e do

desenvolvimento, a sociologia etc., visando à compreensão do

fenômeno ensino. Desse modo, a didática se assume como disciplina de

integração, articulando numa teoria geral de ensino as várias ciências

da educação e compondo-se com as metodologias específicas das

disciplinas curriculares. Ou seja, combina-se o que é geral, elementar,

básico, para o ensino de todas as matérias com o que é específico das

distintas metodologias, em estreito vínculo com a teoria do

conhecimento e a psicologia aplicada ao ensino.

Para que um professor transforme as bases da ciência em que é

especialista, em matéria de ensino, e com isso oriente o ensino dessa

matéria para a formação da personalidade do aluno, é preciso que ele

tenha: a) formação na matéria que leciona; b) formação pedagógico-

didática na qual se ligam os princípios gerais que regem as relações

entre o ensino e a aprendizagem com problemas específicos do ensino

de determinada matéria.

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Como ação de mediação, a razão de ser do ensino é assegurar os

meios e as condições para que ocorra o encontro formativo - afetivo,

cognitivo, ético, estético - entre o aluno e o objeto de conhecimento, ou

seja, a confrontação ativa, cognitiva e afetiva, do aluno com a matéria.

O trabalho do professor consiste em fazer a mediação entre os aspectos

externos e os aspectos internos da educação e do ensino. Para Danílov:

(No ensino), “a experiência social em toda sua multilateralidade e complexidade se transforma em conhecimentos, habilidades e hábitos do educando, em idéias e qualidades do homem em formação, em seu desenvolvimento intelectual, ideológico e cultura geral” (DANÍLOV, 1984, p.26).

A mediação didática viabiliza a relação entre a experiência

sociocultural da humanidade expressa em saberes, procedimentos,

modos de agir, valores, e a internalização dessa experiência, implicando

quatro elementos: a) o conhecimento, já que o ensino trabalha com o

conhecimento; b) o desenvolvimento e a aprendizagem do aluno; c) o

ensino, propriamente dito; as condições de ensino e aprendizagem.

Tudo o que se espera, com base nesses elementos, é alcançar a

aprendizagem dos alunos. Autores pertencentes à tradição da teoria

histórico-cultural mostram a mediação didática visando a ativação do

processo de aprendizagem. Klingberg, por exemplo, escreveu que o

caráter científico do ensino é dado pela condução do processo de

ensino com base no conhecimento das leis que governam o processo de

conhecimento. Segundo ele:

O processo docente do conhecimento - embora somente em alguns casos se descubra o novo de forma objetiva – é um insubstituível campo de exercício para o desenvolvimento das forças cognoscitivas dos alunos, para sua curiosidade, sua alegria pela investigação e as descobertas, sua capacidade de poder perguntar, de ver problemas e chegar metodicamente à sua solução (1972, p. 47).

Na mesma direção segue o didata alemão Lompscher (1999), para

quem a organização didática visa a promover a atividade de

aprendizagem dos alunos: “A organização didática dos processos de

aprendizagem (...) deve ser orientada em direção à atividade dos

alunos”. A efetividade do ensino, portanto, se revela ao assegurar as

condições e os modos de viabilizar o processo de conhecimento pelo

aluno, ou seja, a aprendizagem.

Yves Lenoir reconhece, na relação educativa escolar, a existência

de dois processos de mediação: “aquele que liga o sujeito aprendiz ao

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objeto de conhecimento (relação S – O), chamado de mediação cognitiva,

e aquele que liga o formador professor a esta relação S – O, chamado de

mediação didática” (cf. Lenoir, 1999, p.29). Sobre isso, escreve D´Ávila:

A relação com o saber é, portanto, duplamente mediatizada: uma mediação de ordem cognitiva (onde o desejo desejado é reconhecido pelo outro) e outra de natureza didática que torna o saber desejável ao sujeito. É aqui que as condições pedagógicas e didáticas ganham contornos, no sentido de garantir as possibilidades de acesso ao saber por parte do aprendiz educando (2008, p. 31).

Tem-se, assim, certa subordinação da mediação didática à

mediação cognitiva, que é o processo de aprendizagem, um processo de

objetivação do real que se dá na relação entre sujeito(s) e objeto(s),

num contexto espaço-temporal determinado. A mediação didática

consiste, assim, em estabelecer as condições ideais à ativação do

processo de aprendizagem, ou seja, assegurar as melhores condições

possíveis de transformação das relações que o aprendiz mantém com o

saber. Em síntese, eis uma definição da didática.

A didática é uma disciplina pedagógica, um ramo da pedagogia (...) é uma matéria de estudo e um instrumento de trabalho docente que se ocupa de investigar as relações entre o ensino e a aprendizagem. Ela faz a ponte entre a teoria pedagógica e a prática educativa escolar. Inclui, portanto, a reflexão teórica proporcionada pela teoria pedagógica e os elementos científicos e as características do processo de ensino no seu conjunto e das suas peculiaridades conforme cada matéria de ensino (Libâneo, 1989).

A didática e as didáticas específicas, cujo objeto de estudo é a

mediação das aprendizagens ou as relações entre a aprendizagem e o

ensino, tornam-se, desse modo, os saberes mais importantes da

formação profissional de professores.

Dentro do entendimento buscado nos estudos de Vygotsky e

seguidores, a didática é a sistematização de conhecimentos e práticas

referentes aos fundamentos, condições e modos e realização do ensino

e da aprendizagem, visando o desenvolvimento das capacidades

mentais e a formação da personalidade dos alunos.

Reconhece-se como seus elementos constitutivos: o que ensinar,

para quem ensinar, o como ensinar, em que condições ensinar. O mais

importante, no entanto, é compreender a didática como mediação da

mediação cognitiva, ou seja, mediação das relações do aluno com os

objetos de conhecimento, razão pela qual o conceito nuclear do didático

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é a aprendizagem. O trabalho dos professores é o ensino visando a

aprendizagem, ou seja, promover mudanças qualitativas no

desenvolvimento mental do aluno. O professor realiza plenamente seu

trabalho quando ajuda o aluno a adquirir capacidades para novas

operações mentais e a operar mudanças qualitativas em sua

personalidade.

Portanto, a especificidade da análise pedagógico-didática diz

respeito às formas pelas quais práticas sociais formam o

desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos indivíduos sendo que o

resultado social, pedagógico, cultural, da escola, expressa-se nas

aprendizagens efetivamente consumadas. Escola e ensino existem para

promover e ampliar o desenvolvimento mental e a formação da

personalidade. Formar capacidades cognitivas é formar o pensamento

teórico-cientifico por meio de abstrações e generalizações, que levam às

categorias e aos conceitos, que são procedimentos mentais para nos

relacionarmos com o mundo. Desse modo, a atividade pedagógica

somente é pedagógica se ela mobiliza as ações mentais dos sujeitos,

visando a ampliação de suas capacidades cognitivas e a formação de

sua personalidade global.

Ou seja, o trabalho de mediação atua na aprendizagem dos alunos

sendo que aprender é aprender a pensar e a atuar com conceitos. É

formar ações mentais ou novos usos de uma ação mental, o que requer,

por parte dos alunos, uma atividade reflexiva, e, dos professores, a

mediação didática, precisamente a intervenção intencional nos

processos mentais do aluno.

Caracterização do campo teórico e investigativo da didática hoje

As investigações sobre o campo teórico e prático da didática hoje

podem ser sistematizadas nos seguintes pontos:

− A didática é a teoria e a prática do processo de ensino. É

uma disciplina unitária, incluindo em seu campo de estudos

a didática, as didáticas especificas, as metodologias

especificas de ensino e a prática de ensino.

− O centro do trabalho didático é o conhecimento, pois o

ensino tem por função ajudar o aluno a desenvolver seu

próprio processo de conhecimento. Mas, conhecimento no

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sentido de “procedimento mental”. O ensino, portanto, diz

respeito ao aspecto docente do processo de conhecimento

pelo aluno. O caráter científico do ensino está em que o

processo de ensino se dá sobre a base das leis do processo

do conhecimento. Daí a ligação intima entre didática e

epistemologia.

− A didática, as didáticas específicas, as metodologias e as

práticas de ensino têm a mesma tarefa: explicitar o

processo docente do conhecimento por meio da

investigação das leis e regularidades desse processo, da

determinação de conteúdos da cultura, da ciência e da arte,

a serem ensinados, dos métodos de sua transmissão e

assimilação, das formas de desenvolvimento da

personalidade do aluno.

− Em resumo, a didática estuda as relações entre o ensino e a

aprendizagem. Ela consiste nos modos e condições de

assegurar aos alunos a interiorização, pelo processo de

comunicação docente, dos conhecimentos sistematizados e

o desenvolvimento de suas capacidades mentais.

Estes modos e condições são os planos e programas das matérias,

os métodos e meios de ensino, as formas organizativas do ensino, o

papel educativo do processo docente, assim como as condições que

propiciam o trabalho ativo e criador dos alunos e seu desenvolvimento

intelectual, afetivo, ético, estético.

O conteúdo da didática e os novos temas

A emergência no mundo contemporâneo de novas condições

econômicas, sociais, culturais, levam à ampliação dos elementos

constitutivos da didática, tais como os socioculturais, antropológicos,

lingüísticos, estéticos, comunicacionais, midiáticos. Desse modo, são

incorporados ao trabalho didático a pesquisa cultural, onde estão

presentes temas como a linguagem, a diferença, a interculturalidade,

que serão abordados mais adiante neste texto.

2. A escola e seu papel na promoção da justiça social.

Vimos, no tópico anterior, que a didática existe para assegurar a

aprendizagem, ou seja, o processo de conhecimento pelo aluno,

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Page 8: A DIDÁTICA E AS EXIGÊNCIAS DO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO

formando capacidades intelectuais através dos conteúdos, sendo a

escola o lugar adequado para por em prática esse objetivo.

Nada mais importante hoje, na área da educação, do que declarar

que a função das políticas de educação é tornar nossa sociedade mais

justa. A educação, em particular, a escola, constitui um meio

indispensável de promover a justiça social, papel esse que, conforme os

próprios dados oficiais do governo federal, não tem sido cumprido.

Como a escola promove a justiça social? Justiça social significa o

provimento das condições para que todos os alunos se apropriem dos

saberes produzidos historicamente junto com o desenvolvimento

cognitivo, afetivo e moral dos alunos. Ao cumprir sua tarefa básica de

planejar e orientar a atividade de aprendizagem dos alunos, a escola se

torna uma das mais importantes instâncias de democratização social e

de promoção da inclusão social.

A organização da atividade de aprendizagem pressupõe, por sua

vez: a) um conjunto de saberes produzidos na experiência

sociohistorica da humanidade, a cultura em sentido amplo1; b) as

disposições individuais dos alunos, visto que a internalização dessa

experiência é individual; c) procedimentos pedagógico-didaticos

(mediação didática) que viabilizam o encontro do aluno com o os

objetos de conhecimento.

Este conjunto de pressupostos constitui os elementos da didática,

tal como vimos anteriormente. Acontece que quando falamos da

mediação cognitiva, que são as disposições individuais dos alunos,

estamos nos referindo à subjetividade do aluno. Sabemos que a

subjetividade é um composto de uma cultura subjetiva e uma cultura

objetiva, já que a mente humana é social. Eis, pois, que nos

encontramos frente a um aluno que possui características individuais

singulares que são, ao mesmo tempo, psicológicas e sócio-culturais.

1 No quadro conceitual de Davídov, este conjunto é chamado de “conhecimento teórico” ou “conhecimento teórico-cientifico”. Para mais além do entendimento convencional de “teórico” como o saber especulativo, esse autor considera conhecimento teórico ao mesmo tempo como produto do desenvolvimento histórico e processo mental. Conhecimento teórico são, então, as categorias mentais que tornam possível lidar com os objetos de conhecimento da realidade, ou seja, um procedimento lógico da mente, isto é, conceitos gerais possíveis de serem aplicados a situações particulares.

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Charlot ajuda a compreender três sentidos da educação que não podem

ser dissociados:

É o processo por meio do qual um membro da espécie humana, inacabado, desprovido dos instintos e capacidades que lhe permitiriam sobreviver rapidamente sozinho, se apropria, graças à mediação dos adultos, de um patrimônio humano de saberes, práticas, formas subjetivas, obras. Essa apropriação lhe permite se tornar, ao mesmo tempo e no mesmo movimento, um ser humano, membro de uma sociedade e de uma comunidade, e um indivíduo singular, absolutamente original. A educação é, assim, um triplo processo de humanização, de socialização e de singularização. Esse triplo processo é possível apenas mediante a apropriação de um patrimônio humano. Isso quer dizer que educação é cultura, em três sentidos que não podem ser dissociados (2000).

O cumprimento da justiça social por meio do ensino - conforme a

idéia vygotskiana de que o ensino promove o desenvolvimento da

capacidade mais genuinamente humana que é a capacidade reflexiva,

mental – implica uma relação pessoal entre o professor e o aluno

visando o aprimoramento da mediação cognitiva deste último. Ao

mesmo tempo, como a escola ensina a sujeitos concretos, é preciso que

a aprendizagem de conteúdos e de procedimentos mentais esteja ligada

à experiência sociocultural e à atividade psicológica interna dos alunos.

O lema que resume este pensamento é a expressão retirada de Gimeno

Sacristán: uma escolarização igual, para sujeitos diferentes, por meio de

um currículo comum (2000, p. 68).

Desse modo, por um lado, acredita-se na universalidade da

cultura escolar de modo que à escola cabe transmitir a todos aqueles

saberes públicos que apresentam um valor, independentemente de

circunstâncias e interesses particulares, em função da formação geral.

Mas, por outro lado, como a escola lida com sujeitos diferentes, cabe

considerar no ensino a diversidade cultural, a coexistência das

diferenças, a interação entre indivíduos de identidades culturais

distintas. Eis, portanto, quatro ingredientes absolutamente

imprescindíveis para que o ensino esteja à altura dessa missão da

escola: a) os conteúdos; b) o desenvolvimento das capacidades

intelectuais; c) as características individuais e sociais do aluno; d) os

fatores socioculturais e institucionais da aprendizagem.

As considerações sobre o campo teórico da didática apresentadas

anteriormente confrontam-se com outros enfoques bastante diferentes,

os quais põem peso maior em um ou outro dos quatro ingredientes

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mencionados. Interessa, aqui, destacar apenas um deles, precisamente

aquele que põe como objetivo da escola, não a apropriação dos

conteúdos, mas as relações sociais, ou seja, o modo como a criança se

relaciona com a escola. Este enfoque tem ganho receptividade entre

diversos segmentos do campo da educação, em nível internacional e

nacional, principalmente a partir de posições visando a negação da

pedagogia tradicional e, em conseqüência, do formato de escola

consolidado a partir da pedagogia tradicional.

O empenho em refuncionalizar ou resignificar as funções da

escola surgiu de diferentes intencionalidades ideológicas e políticas

desde os anos 1980, passando pela Europa, Estados Unidos e América

Latina. É sabido que no campo liberal, foi e tem sido notória a atuação

do Banco Mundial, como mostram inúmeros estudos produzidos no

Brasil. Mas tem sido significativa, em nosso país, a presença de

posições no campo sócio-crítico a favor de uma escola voltada para a o

desenvolvimento da “socialidade”, ou seja, uma escola em que seu

funcionamento se caracteriza por relações sociais assentadas em

formas de convivência e compartilhamento de práticas solidárias e não

pela ênfase na formação cultural e científica2.

Vejamos a posição neoliberal, presente nas orientações do Banco

Mundial para a América Latina, em programas educacionais de alguns

Estados brasileiros e em boa parte da política educacional atual

(Governo Lula). É sabido o impacto das orientações neoliberais em

relação à educação pública do mundo ocidental globalizado. A educação

em países da America Latina é vítima da globalização neoliberal,

reduzida à condição de mercadoria e serviço, dentro da lógica

economicista: preparar trabalhadores empregáveis, flexíveis,

adaptáveis, competitivos. A concepção de educação pública adotada no

Brasil é expressa, na prática, nos seguintes pontos: correção do fluxo

escolar, organização em ciclos, flexibilização da avaliação, integração

da escola de alunos portadores de deficiências, avaliação em escala.

2 De alguma forma, embora nem sempre com as mesmas premissas teóricas, são incluídos nesta posição autores como Oder José dos Santos, Miguel Arroyo, Luis C. Freitas, Nilda Alves, Antonio Flávio Moreira, entre outros. Ver a esse respeito, Libâneo, 2005.

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Porque foram adotadas essas medidas? Os organismos

financeiros internacionais passaram a condicionar a liberação de

recursos a mudanças no sistema de ensino. Difundiu-se a idéia de que o

insucesso da escola pública se devia ao fato de ser “tradicional”, de

estar baseada no conteúdo, na exclusão dos menos favorecidos, na

reprovação, no autoritarismo, práticas que levariam muitos alunos ao

fracasso escolar ou ao abandono da escola. Surgiram, então, novos

modelos, novas teorias, novos objetivos, novos formatos de

funcionamento escolar. Com o apoio em premissas pedagógicas

humanistas, concebeu-se uma escola que primasse, antes de tudo, pelo

respeito às diferenças sociais e culturais, diferenças psicológicas de

ritmo de aprendizagem, de flexibilização das práticas de avaliação

escolar, tudo em nome da intitulada “educação inclusiva”. A idéia seria

introduzir na pedagogia tradicional o fator “humano”. 3. Em texto de

2005, Miranda assinala a principal mudança na educação de massas em

decorrência das reformas educativas neoliberais iniciadas por volta de

1980. Segundo ela:

(...) a escola constituída sob o princípio do conhecimento estaria dando lugar a uma escola orientada pelo princípio da socialidade. O termo “socialidade” está sendo adotado aqui para ressaltar que a escola organizada em ciclos se situa como um tempo/espaço destinado à convivência dos alunos, à experiência da socialidade, distinguindo-se dos conceitos de socialização e de desenvolvimento da sociabilidade tratados pela sociologia e psicologia (2005).

Assim, não se mais de uma escola assentada no conhecimento,

isto é, no domínio dos conteúdos e na formação das capacidades

cognitivas, mas de uma escola que valoriza formas de organização das

relações humanas, nas quais prevalecem práticas de valores sociais tais

como a convivência entre diferentes, o compartilhamento de culturas, o

encontro e a solidariedade entre as pessoas. Nesse tipo de escola, o

aluno não usufrui do conhecimento e das condições que poderiam

promover o seu desenvolvimento mental, mas sim do espaço “social”

3 Há no Brasil pesquisas mostrando que a utilização do sistema de ciclos como formas de correção do fluxo escolar, ou seja, mantendo uma progressão continuada entre as séries escolares, evita a repetência e isso produz economia ao sistema educacional. Não é de todo improvável que os sistemas oficiais de ensino de vários países latino-americanos, incluindo o Brasil, defendam para a opinião pública a adoção de critérios pedagógicos humanistas para organização das escolas, quando de fato, o que se pretende é reduzir as despesas com educação. Na verdade, as agencias financeiras internacionais entenderam que seria oneroso continuar mantendo padrões da pedagogia tradicional, que buscariam padrões de exigência difíceis de serem sustentados financeiramente pelo setor público.

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que a escola lhe oferece. Desse modo, quanto mais a escola desvincular-

se de sua dependência com a aquisição de conhecimentos, mais tempo

terá para propiciar aos alunos o clima de convivência e

compartilhamento. Em entrevista publicada em 2004, eu fazia uma

crítica à implantação dos ciclos:

Se alguém acredita que a escola deva ser principalmente um espaço de socialização dos alunos, que seja um lugar de encontro e compartilhamento entre as pessoas, que seja um lugar para que sejam acolhidos seus ritmos, suas diferenças, suas inclinações pessoais, então, nesse caso, o sistema de ciclos é ótimo, a flexibilização da avaliação é coerente. É claro que essas coisas são importantes, mas penso que escola para a democracia e para a emancipação humana é aquela que, antes de tudo, através dos conhecimentos teóricos e práticos, propicia as condições do desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos alunos. E que faça isso para todos os que disponham das competências físicas e intelectuais requeridas para isso. Aprender, então, consiste no desenvolvimento de capacidades e habilidades de pensamento necessárias para assimilar e utilizar com êxito os conhecimentos. (...) Sendo assim, a tarefa das escolas fica muita clara, que é assegurar as condições para que a aprendizagem escolar se torne mais eficaz, mais sólida, mais consolidada, enquanto ferramenta para as pessoas lidarem com a vida (Libâneo, 2004).

Acontece que parte dos segmentos progressistas no campo da

educação no Brasil também se entusiasmaram com as perspectivas de

mudança da escola, como alternativas à escola tradicional. Se do lado

conservador difundiu-se uma visão psicologizada em que essa nova

forma de concepção de escola valorizaria as especificidades do

desenvolvimento humano, por exemplo, seguindo o ritmo do

desenvolvimento conforme as faixas etárias (idéia mestra dos ciclos de

escolarização), do lado progressista, entendeu-se que a organização

escolar conforme ciclos favoreceria o desenvolvimento de novas

relações sociais em contraposição às relações sociais vigentes numa

sociedade desigual. Ou seja, tal como ressaltou Miranda (2005), a escola

seria um espaço de resistência a formas de dominação e exploração

vigentes na sociedade.

Eis que se fundem projetos liberais à direita e experiências

sociabilizantes e solidárias à esquerda. Enquanto isso, Miranda (2005)

aponta um incrível paradoxo: o mesmo sistema educacional que

refuncionaliza a escola por meio da organização escolar conforme os

ciclos do desenvolvimento humano, colocando em segundo plano o

conhecimento por meio da formação cultural e científica, introduz as

avaliações em escala visando corrigir as distorções do sistema. Eis que

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os instrumentos de avaliação em escala não visam avaliar níveis de

progresso dos alunos na convivência, no compartilhamento cultural, na

mudança de valores, mas níveis de escolaridade. Cai-se, assim, numa

forma mais sub-reptícia de exclusão social e escolar, pois são os pobres

que estarão despreparados para disputar vagas no ensino médio, na

universidade e no mercado de trabalho.

Estas características que acabamos de apontar estão presentes na

política educacional difundida pelo Ministério da Educação desde os

anos 1990, mantidas nos oito anos do governo Lula. É este o sistema de

ensino que vigora há 20 anos, marcando toda uma geração de alunos e

cujos resultados aparecem nos próximos índices de desempenho do

sistema escolar divulgados pelos órgãos oficiais brasileiros.

Do ponto de vista da concepção histórico-social, as conseqüências

da adoção dessa concepção de escola baseada “socialidade”, na

convivência, no respeito às diferenças, etc., são calamitosas. Em

primeiro lugar, com a desvalorização da formação cultural e científica e

do papel da escola na formação das capacidades cognitivas, há um

ocultamento da dimensão cultural e humana da educação. Em segundo

lugar, com isso, dissolve-se a relação entre universalismo e diferença

cultural, quer dizer, do direito de ser ao mesmo tempo diferente

culturalmente e semelhante (igual) em termos de dignidade e

reconhecimento humano. Em terceiro lugar, o desprezo ao papel da

escola em relação ao conhecimento faz aumentar as desigualdades

sociais do acesso ao saber, ocultando o efeito nocivo de fatores intra-

escolares nas aprendizagens. Eis que desse modo fabricadas as vítimas

preferidas da globalização: os pobres, as minorias étnicas, as famílias

marginalizadas, os filhos de migrantes.

Em relação às políticas educacionais orientadas pelo liberalismo

econômico, os prejuízos ao processo de escolarização são reforçados

pela redução das responsabilidades do Estado em relação à educação

(como, também, à saúde e assistência social), diminuindo os

investimentos públicos afetando, entre outras coisas, os salários e a

formação profissional dos professores.

3. A problemática da cultura no campo do ensino. O multiculturalismo e

a interculturalidade

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A partir da crítica que fizemos à idéia de escola incorporada pelo

sistema de ensino brasileiro e por muitos educadores, alguns leitores

poderiam perguntar: trata-se, então, de voltar à escola tradicional, à

escola dos conteúdos? Trata-se de defender a reprovação, as provas de

avaliação, ao invés da promoção automática? E onde fica a subjetividade

dos alunos, as necessidades e ritmos psicológicos individuais? Onde

fica o respeito às diferenças sociais e culturais, a consideração da

experiência social dos alunos, a rede de saberes em que os alunos estão

inseridos em sua vida cotidiana?

Minha resposta é de que não há incompatibilidade entre a

formação cultural e científica e a consideração dos fatores

socioculturais na aprendizagem. Mas eu queria me posicionar de modo

mais claro sobre isso.

Desde o início dos anos 1990, no Brasil e na América Latina,

cresceu a importância dos componentes culturais no mundo

contemporâneo. A cultura vista é vista não apenas como formas de

expressão da vida em sociedade, um subproduto da estrutura social,

mas como um campo de atuação humana, um espaço que constitui

realidades, um espaço de lutas. Disso tudo resulta a problemática

cultural a partir da diferença, a cultura vista como esfera de lutas, de

diferenças, das relações desiguais de poder, diferenças que são de

classe social, étnicas, de linguagem, políticas, físicas, sexuais. É

precisamente isso que tem sido chamado de multiculturalismo. O

multiculturalismo é a expressão dessas realidades culturais. Do

multiculturalismo vem o termo interculturalidade, que é a análise dessa

problemática na educação e a busca de formas de intervenção

propositiva na realidade multicultural (cf. Candau, 2005).

Mas, a partir desse contexto, surgem proposições muito

diferentes para a escola. Há muitos entendimentos a partir das

inquietações em torno da problemática cultural sobre o papel da escola.

Uma primeira concepção de escola (e de currículo) propõe a

formação humana pela experiência provida nas situações educativas.

Conforme já mencionamos, trata-se de uma pedagogia das situações

experienciadas. A escola deve ser organizada por meio de práticas em

vivências multiculturais, de acolhimento das diferenças, de

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Page 15: A DIDÁTICA E AS EXIGÊNCIAS DO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO

conversações edificantes sobre questões do cotidiano. No limite, o

centro do currículo são os conhecimentos locais, a vida cotidiana das

classes populares, os saberes e experiências dos alunos e suas

famílias.4

A segunda posição defende a formação humana pela formação

cultural e científica. Ela destaca o papel do patrimônio cultural da

humanidade no desenvolvimento cognitivo dos alunos. Nesse caso, o

papel democrático da escola, sua função na inclusão social, é a de

promover e ampliar o desenvolvimento mental e a formação da

personalidade, por meio do domínio de saberes e instrumentos

culturais. Mas, além disso, essa concepção entende que ensinamos a

alunos concretos, então, é necessário vincular os conteúdos e os

processos de formação da personalidade às experiências socioculturais

dos alunos. Aqui se incorpora a contribuição da pesquisa cultural,

especialmente aquela de cunho marxista. Apóio-me, nestas questões, na

tradição da teoria histórico-cultural criada por Vygotsky, sobre as

relações entre cultura e desenvolvimento mental, a importância da

formação de conceitos visando o desenvolvimento mental.5

Está claro que o foco da primeira posição está na prática social

que acontece em contextos mais imediatos, ou seja, em características

culturais mais localizadas, não na cultura acumulada, nos saberes

sistematizados ou na prática propriamente pedagógica, que identifica a

segunda posição.

As duas posições representam uma evidente polarização entre o

universalismo e o relativismo, o primeiro referindo-se à existência de

uma cultura universal e de valores universais, o segundo ao pluralismo

4 Este posicionamento sobre funções da escola é bastante próximo às concepções de John Dewey para quem a escola é um prolongamento simplificado e organizado das atividades cotidianas, sociais. Também é certo que Paulo Freire deu uma expressiva contribuição a esta posição. Hoje, temos várias formulações originadas no pensamento pós-moderno como os estudos culturais de inspiração pós-estruturalista, a teoria curricular crítica, a concepção a do conhecimento em rede, entre outras.

5 As posições de Vigotsky e seguidores atribuem peso considerável aos conteúdos no processo de escolarização. Mas aqui, a valorização dos conteúdos (que também é uma característrica forte da pedagogia tradicional) não leva a um currículo monocultural. Na teoria histórico-cultural há, de fato, a ideia de que os seres humanos se tornam humanos pela interiorização da cultura social, enquanto expressão da atividade humana. Mas Vygotsky põe em evidência o papel do aluno nessa interiorização e, além disso, na aprendizagem compartilhada, na interlocução com parceiros - o outro como parceiro imprescindível para a aprendizagem.

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das culturas e das diferenças entre as pessoas. No entanto, cabe

questionar se a defesa dos conteúdos científicos e o desenvolvimento

do pensamento teórico dos alunos levaria a desconsiderar as culturas

particulares, as diferenças socioculturais. Ou seja, será possível

conciliar a posição relativista, em que os valores e práticas são

produtos socioculturais, portanto, resultantes do modo de pensar e agir

de grupos sociais particulares, com a exigência "social" de prover a

cultura geral, acessível a todos, independentemente de contextos

particulares? Seria pedagogicamente viável prover os alunos dos

conteúdos científicos sem deslegitimar os discursos dos alunos a partir

de seus contextos de vida? Haveria efetiva incompatibilidade entre a

aprendizagem dos conteúdos científicos associados aos processos de

pensamento e a incorporação no currículo da experiência sociocultural

e às características sociais e psicológicas dos alunos?

Minha posição em relação a essas perguntas situa-se para além da

polarização, visando superá-la, com base na proposição de Gimeno

Sacristán: uma escolarização igual, para sujeitos diferentes, por meio de

um currículo comum. Por um lado, trata-se de assegurar o direito à

semelhança, vale dizer, à igualdade, pelo provimento da formação

cultural e científica, isto é, o domínio do saber sistematizado junto dom

o desenvolvimento das capacidades intelectuais. Por outro, trata-se de

considerar a diferença, pois essa formação se destina a sujeitos

diferentes. A diferença aqui é encarada não como uma

excepcionalidade, mas como condição concreta do ser humano e das

situações educativas, ponto de partida para uma aprendizagem com

sentido para o sujeito que aprende.

Concordamos com Boaventura Santos em que a desigualdade

material está profundamente entrelaçada com a desigualdade não

material, ou seja, as desigualdades sociais e diferenças possuem íntima

relação com o acesso ou não ao conhecimento. São desigualdades de

natureza educativa, de capacidade representacional, de capacidade de

comunicar-se e expressar-se, desigualdade de oportunidades, de

capacidade para organização, participação social e tomada de decisões

(Cf. Santos, 1997). Para ser mais justa e democrática, a sociedade

contemporânea clama, entre outras causas, por processos de ensino

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que ajudem os alunos no seu desenvolvimento, cultural, científico,

ético e afetivo. A aprendizagem escolar deve ser um fator de ampliação

das capacidades dos alunos de promover mudanças, em si e nas

condições objetivas em que vivem, fundamentando-se na ética da

justiça social. Por outro lado, a aprendizagem escolar deve atender as

novas exigências de formação geral e de elevada capacidade de

pensamento conceitual.

Considerações finais

As apostas em favor da escola para todos devem ter como

referência um entendimento muito explícito de que o trabalho

pedagógico pressupõe intencionalidades políticas, éticas, didáticas, em

relação às qualidades humanas, sociais, cognitivas, a serem formadas

pelos alunos. Face aos clássicos temas da didática como a relação

conteúdo e forma, a ênfase ora nos aspectos materiais ora nos aspectos

formais do ensino, entre a formação cultural e científica e a experiência

sociocultural dos alunos, cabe, ainda em tempos de mudanças, a aposta

na universalidade da cultura escolar, no sentido de que cabe à escola

transmitir a todos, saberes públicos que apresentam um valor,

independentemente de circunstâncias e interesses particulares, em

função da formação geral. Mas, junto a isso, permeando os conteúdos,

cabe considerar a diversidade cultural, a coexistência das diferenças, a

interação entre indivíduos de identidades culturais distintas.

Proponho, assim, uma didática critica atravessada (traspasada)

pela perspectiva intercultural, em que se articulam, num mesmo

processo, o universalismo e relativismo. A unidade entre a formação

cultural e científica e as práticas interculturais, a meu ver, supõe uma

boa relação conteúdos/métodos, de onde decorre a importância da

formação de professores.

Dessa forma, não abro mão da função da escola e do ensino como

promotores do desenvolvimento mental, da formação do pensamento e

da formação moral, visando a formação da personalidade global. Formar

a personalidade significa considerar fortemente os motivos dos alunos.

Na prática significa que, ao lidar com os conteúdos, o professore

também deve remeter-se aos motivos, ou seja: a) considerar as

diferenças socioculturais entre os alunos, as identidades pessoais, o

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pertencimento a culturas específicas; b) preocupar-se com a formação

de motivos éticos e sociais, entre eles, por exemplo, a formação para o

respeito à diferença, para o compartilhamento, hibridismo cultural, etc.

Trata-se de estabelecer um patamar básico (formação geral

básica), necessário para a inclusão social e cultural, como requisito

indispensável para assegurar a democracia e a igualdade de direitos

para todos os membros da sociedade. Mas esta formação geral básica

deve estar em conexão com o os contextos socioculturais da

aprendizagem.

Para a didática, a questão crucial é saber como, nas interações

pedagógico-didáticas, ligar o conhecimento teórico-científico aos

contextos particulares dos alunos, ou seja: a) como organizar o

conteúdo de modo a, por meio deles, desenvolver capacidades

intelectuais; b) como usar o conhecimento teórico-científico para

analisar contextos concretos; c) como relacionar o conhecimento

teórico-científico aos contextos locais em que ocorrem as interações

pedagógico-didáticas.

Por fim: a escola continua sendo o melhor lugar e o melhor

caminho para a luta política pela igualdade e inclusão social. Não é

possível democracia econômica, social, política, intelectual, sem a

escolarização. Praticar justiça social hoje na escola é essencialmente

assegurar a cada aluno a qualidade cognitiva e operativa dos processos

de aprendizagem. A referência principal de qualidade das escolas é o

que os alunos aprendem, como aprendem, em que grau são capazes de

pensar e agir com o que aprendem.

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