a (des)construção das identidades femininas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO ROSEMARY RAMOS RODRIGUES A (DES)CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES FEMININAS NAS TRAMAS DA TELENOVELA LAÇOS DE FAMÍLIA JOÃO PESSOA - PB 2006

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A (des)construção das identidades femininas nas tramas da novela Laços de Família

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

ROSEMARY RAMOS RODRIGUES

A (DES)CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES FEMININAS NAS

TRAMAS DA TELENOVELA LAÇOS DE FAMÍLIA

JOÃO PESSOA - PB

2006

ROSEMARY RAMOS RODRIGUES

A (DES)CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES FEMININAS NAS

TRAMAS DA TELENOVELA LAÇOS DE FAMÍLIA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba, Campus I, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Educação. Área de concentração: Educação Popular, Comunicação e Cultura. Linha de Pesquisa: Estudos Culturais e Tecnologias da Informação e Comunicação. Orientador: Dr. Luiz Pereira de Lima Júnior.

JOÃO PESSOA - PB

2006

ROSEMARY RAMOS RODRIGUES

A (DES)CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES FEMININAS NAS

TRAMAS DA TELENOVELA LAÇOS DE FAMÍLIA

Aprovada em: 10 de Novembro de 2006

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Pereira de Lima Júnior – UFPB

Orientador

___________________________________________________

Profª. Drª. Ana Maria Coutinho de Sales – UFPB

Examinadora

___________________________________________________

Prof. Dr. Severino Bezerra da Silva – UFPB

Examinador

Dedico este trabalho e todo o meu amor a você, que sempre dedicou seu

amor a mim e a todos ao seu redor. Agora me pego pensando e até me admiro na

dimensão que um amor pode alcançar. É naquele sorriso largo e franco que cura,

no Hello, what’s your name? My name is Mary Help, nas explosões de carinho,

no abraço que caímos na cama, nos conselhos preocupados, mas não

castradores, e na forma livre de criar que te amo cada vez mais, mais e mais.

Você sempre me deu asas para sonhar e voar em busca do que quero, mas

sempre volto porque é em você que encontro uma felicidade singela, meiga e

plena. Você é a minha Helena, a minha heroína da vida real, a mulher que,

depois de uma vida inteira dando asas a quem ama, aprendeu a voar. E porque

depois de tanto tempo?

Na infância, você foi a minha primeira semente de contestação e de não

aceitação dos lugares construídos para nós, mulheres. Por que, mainha, o seu

silêncio? Chegou um dia que seus gritos, antes silenciosos, machucaram os

ouvidos de todos nós. Foi nesse momento que você quebrou aquela identidade

fixa. Por isso e por tudo que você é, te dedico amor, prazer intelectual e carinho.

Eu te amo, minha mãe, minha amiga, minha pescadora de sonhos.

AGRADECIMENTOS

À força inexplicável que, particularmente, chamo de vida;

A mim, por amar, sonhar, gritar, lutar, sofrer, querer, roubar, buscar, abraçar, detestar,

desejar, desistir, dançar, chorar, pular, chocar, enfrentar, gargalhar, sentir, escrever, bater,

levar, fraquejar, trair, levantar, sorrir, brincar, beijar, correr, ficar, quebrar, gozar ... viver,

viver intensamente;

Aos meus pais, pelo carinho, luta, força e determinação. Sou feliz por sentir o amor

vindo de vocês em todos os momentos da minha vida. Obrigada!

Aos meus irmãos, Cleide e Daniel, por uma história cheia de vida, cores e alegrias,

construída de sorrisos, brigas, brincadeiras e cumplicidade;

A minha irmã, Bruna, e aos meus sobrinhos, Gabriel e Rafael, pela beleza de sorrir, de

correr, de pular e de abraçar. Vocês são vida!;

Aos meus avós. Em especial à vovó Alzira, por embarcar comigo nas brincadeiras de

menina e me fazer sentir criança até hoje. Lembra, vovó, quando eu dizia uma palavra e a

senhora cantava uma música? Eu acho que a senhora inventava umas músicas para me

enrolar. Obrigada por me deixar sonhar;

Às minhas tias e tios, primas e primos, por fazerem parte da minha vida e me

apresentarem várias trajetórias marcantes de vida;

Ao meu carinho, que em todos os momentos desse mestrado esteve comigo,

acompanhando as minhas vitórias e decepções. Você me deu força, sempre me dizendo Você

vai vencer, você pode e, às vezes, me perturbando. Mas sempre me elogiando, impulsionando-

me e me adorando. Mais uma vez te agradeço pela amizade, dedicação, gentileza, atenção,

incentivo e companheirismo;

À Campina Grande, por ser a minha referência de vida, felicidade, amizade, amor,

emoção...

Ao meu orientador, Luiz Júnior, pela amizade, dedicação, incentivo e, sobretudo, pela

aceitação das minhas colocações e escolhas;

A Nilda, minha orientadora da graduação, por ter me apresentado uma outra forma de

fazer História e de viver. Obrigada!;

A Élson, Walber e Kyara, pela amizade, loucuras, gargalhadas, histórias sem pé nem

cabeça, pelas conversas acadêmicas e o que vier nas nossas vidas.

A Maria Isabel, pela lealdade, cumplicidade e amizade; e a Herry, pela amizade.

Espero que possamos continuar sonhando com dias melhores;

À minha turma de História da Universidade Federal de Campina Grande – Renata,

Valéria, Maizona, Fátima, Uelba, Daniele, Verônica, Gracinha, Adriana, entre outros – por

uma história tão linda e marcante na minha vida;

Aos professores de História, em especial Sandrinha, Nilda, Fabinho G., Clarindo e

Silêde, pelas farras e por me apresentarem várias faces da História e da vida, com teorias e

metodologias diferentes;

À minha turma de mestrado, em especial Cidoca, Saula, Stella, Norma, Lebiam,

Walberto, Cláudia e Keila, pela nossa força, persistência e dedicação;

Aos professores do PPGE. Em especial a Ana Dorziat, pela dedicação aos alunos,

gentileza e educação;

À minha banca de defesa, Ana Coutinho e Severino Bezerra da Silva, e a Marcello

Bulhões, pelas sugestões e delicadeza;

A Izabel, pela ajuda nas tão odiadas regras da ABNT;

Aos funcionários do PPGE, coordenação e secretaria, por nos ajudar, tentar nos ajudar

e, às vezes, atrapalhar nas questões burocráticas e dúvidas pendentes;

À CAPES, por ter me concedido bolsa de estudo.

À Rede Globo, pela autorização da utilização das imagens que fazem parte do CD

anexado à minha dissertação, e a Manoel Carlos, autor de Laços de Família.

RESUMO

Esta pesquisa objetiva analisar a construção das identidades femininas presentes nas práticas

culturais e sociais, particularmente da mídia moderna/televisiva que constrói modelos de

identidades duráveis, partindo da apreensão dos discursos da telenovela Laços de Família.

Nesta direção, discuto a emergência das identidades no lastro das práticas culturais e sociais;

situo a construção das identidades femininas no bojo do discurso científico; cartografo as

identidades femininas nos discursos da telenovela Laços de Família. A hipótese parte da idéia

que as identidades femininas são construídas no lastro das práticas culturais e sociais, de

práticas discursivas e não discursivas, no evolver de relações de poder/saber. Estas relações

criam processos de naturalização da disciplina do corpo e da alma feminina com base em

normas e regulamentações. Desta forma, saliento a (des)construção das identidades femininas

e penso na emergência das identidades em fluxo, uma vez que a telenovela constrói

identidades duráveis. A pesquisa mostrou que, apesar das identidades viverem em fluxo, estas

são construídas na moldura moderna.

Palavras-chave: identidades femininas, telenovela.

ABSTRACT

This research intends to analyze the feminine identities construction presented on cultural and

social customs, particularly at the modern/televising media, which constructs durable

identities models, starting from the speeches apprehension of the soap opera Laços de

Família. In this way, I discuss the identities appearance at the foundation of cultural and

social customs; I point out the feminine identities construction at the core of scientific speech;

I map the feminine identities in Laços de Família speeches. The supposition starts from the

idea that feminine identities are constructed based on cultural and social practices, on

discursive and non-discursive customs, on the development of power/knowledge relations.

These relations create, naturally, processes of body and feminine soul discipline, based on

rules and regulations. In this manner, I emphasize a (de)construction of feminine identities

and I think about the manifestation of current identities, once the soap opera constructs

durable identities. The research showed that, despite the fact that the identities are mutable,

they are constructed in the modern frame.

Keywords: feminine identities, soap opera.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 09

2 IDENTIDADE E DIFERENÇA: A DOMA(DANA)ÇÃO DO OUTRO

E A AFIRMAÇÃO DO EU .................................................................................................... 19

2.1 IDENTIDADES DURÁVEIS OU SECULARES .............................................................. 23

2.2 IDENTIDADES EM FLUXO ............................................................................................ 30

3 IDENTIDADE FEMININA: CRIA DO DISCURSO CIENTÍFICO ............................. 38

3.1 DOS DISCURSOS RELIGIOSOS À CONSTRUÇÃO DE UMA

IDENTIDADE FEMININA NORMAL ................................................................................... 40

3.2 DOS DISCURSOS CIENTÍFICOS À CONSTRUÇÃO DE UMA

IDENTIDADE FEMININA NORMAL ................................................................................... 45

4 LAÇOS DE FAMÍLIA: AS TRAMAS DE UMA TELENOVELA

CONSTRUINDO E DISCIPLINANDO AS IDENTIDADES FEMININAS .................... 56

4.1 EU EM FRENTE À TELEVISÃO E UM MUNDO DE MAGIAS E ILUSÕES .............. 58

4.2 CENAS DE VIDAS CONSTRUÍDAS E DISCIPLINADAS EM

LAÇOS DE FAMÍLIA ............................................................................................................. 66

5 IMAGENS RECORRENTES ............................................................................................. 82

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 88

ANEXO – CD Room com as cenas referentes aos hiperlinks da dissertação ................... 91

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1 INTRODUÇÃO

No ano de 2003 concluí o curso de graduação em História e iniciei a minha

monografia da mesma forma que inicio a minha dissertação:

Gostaria que você, antes de ler o meu trabalho, se propusesse a ser uma folha em branco, não no sentido de discordar e questionar do que escrevo, mas no sentido de permitir que esta leitura possa lhe transpassar, lhe penetrar, lhe desnudar, lhe tocar, lhe emocionar e, até mesmo, lhe modificar. Espero que no final você possa queimar a concepção de que exista uma identidade feminina natural e terminal (RODRIGUES, 2003, p. 2).

Durante a minha vida acadêmica, sempre estive ligada aos estudos relacionados à

temática mulher. Uma das minhas preocupações iniciais era compreender a trajetória das

mulheres ao longo da história. Marcada, ainda, por uma visão positivista, procurava pelos

seus feitos e vitórias e, como toda pesquisadora desta temática é uma contestadora, ou seja,

não aceita os lugares construídos para si, eu tinha como preocupação resgatar a minha própria

história como mulher.

Posteriormente, comecei a questionar os lugares que foram e são construídos para nós,

mulheres, tentando mostrar que não nos enquadramos tão facilmente aos estereótipos

cristalizados na cabeça e no discurso das pessoas, principalmente dos homens. No ano de

2001, passei a fazer parte do projeto Cidades, Cultura e Modernidade – Campina Grande e

João Pessoa (1900-1950), que estudava os discursos de letrados de Campina Grande e João

Pessoa, das décadas de 20 a 50 do século XX, que criavam lugares para as mulheres e como

estas no seu cotidiano quebravam, burlavam as regras vigentes.

Meu projeto era intitulado Mulheres em territórios (des)regrados – Campina Grande e

João Pessoa (1920-1950), tendo como minha grande busca as mulheres transgressoras. Desta

forma, eu não entendia que além de nomeá-las e classificá-las de transgressoras, assim, eu

estava naturalizando o lugar de submissão, fragilidade e inferioridade delas, pois, para o meu

estudo, as transgressoras eram o outro da identidade normal de mulher, as que quebravam

com os códigos vigentes dessa época.

No mesmo ano, ingressei no grupo de estudo O Pensamento Pós-Moderno e a

Educação, no qual comecei a fazer leituras pós-estruturalistas. Neste grupo, tínhamos como

objetivo estudar as possibilidades que o Pensamento Pós-Moderno aponta para se pensar a

educação. Estudamos como foi construído o pensamento moderno e quais as suas implicações

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para a educação atual. Foi um estudo gratificante, que me levou a uma maior reflexão acerca

do poder do discurso.

No ano de 2002, passei a fazer parte da linha de pesquisa Estudos Culturais e

Educação. Nesta linha, fiz leituras pós-estruturalistas que envolviam estudos sobre

subjetividades, identidades, diferença, poder e representações.

Pela primeira vez fui me sentindo tocada, desnudada, penetrada e totalmente

emocionada. A leitura pós-estruturalista começou a mexer com os meus valores, quebrando as

concepções antes imutáveis que existiam em mim. Foi o encontro intelectual mais intenso e

prazeroso que tive na vida.

Este foi um momento de questionamentos, pois vi cair por terra muitas concepções,

baseadas no pensamento moderno, inerentes a mim. Porém, meu interesse com a temática

mulher continuou, só que desta vez acrescido da preocupação com a educação.

A posição do homem como superior é fortemente evidenciada na utilização do termo

homem – Humanidade – para designar homens e mulheres, ou seja, para designar uma

espécie. Buscando uma resposta para essa inquietação, sempre questionava meus professores

acerca do porquê da não utilização do termo mulher no lugar do termo homem para essa

generalização. As respostas dadas nunca eram satisfatórias, apresentavam-se como algo

natural é porque é.

Eu não compreendia que essa prática cultural e social, assim como outras, foi

elaborada por discursos interessados; neste caso, a partir do discurso da ciência.

Desta forma, partindo de uma preocupação pessoal, o porquê de as mulheres serem

diferentes culturalmente dos homens, na minha monografia de fim de curso, Mulher: A

Imagem Invertida de um Espelho Discursivo, discuti a construção das identidades1 femininas

e como a cultura escolar reforça essas identidades, tendo como referência o livro didático.

Trabalhei com o livro didático de história, enquanto artefato cultural, por compreendê-

lo como um grande subjetivador de identidades, visualizado nos sujeitos históricos2 e como

um instrumento propagador de verdades. Salientando que o livro didático é muito marcante

na cultura escolar, por ser o principal instrumento de estudo e pesquisa de alunas e alunos.

1 Compreendo as identidades como o resultado da relação poder/saber que pretendem nos definir enquanto sujeitos possuidores de certos atributos psicológicos, sociais e culturais. Porém, não as vejo como uma radiografia fixa dos corpos, das mentes e das almas das pessoas, ou seja, não acredito que as identidades sejam únicas e imutáveis, pois acredito em movimento de transgressão, de fluxo, o próprio movimento de vida e de ação. 2 Os sujeitos são considerados históricos nos livros didáticos não porque possuem historicidade, mas porque, ocupando o lugar do outro, lutaram e enfrentaram o eu. Os sujeitos históricos sacramentados pela historiografia positivista são: os negros, os patrícios, as cortesãs, os filósofos, os reis, os guerreiros, o proletariado, etc.

11

Este trabalho, que envolveu estudos sobre subjetividades, diferença, poder e

representações; teve como objetivo desnaturalizar o lugar da mulher como inferior, frágil,

submissa, etc. Desnaturalizar no sentido de apontar as identidades como uma construção

discursiva, não no sentido de afirmar que são ou não são isso ou aquilo.

Agora, no mestrado, procuro analisar a construção das identidades femininas presentes

nas práticas culturais e sociais, particularmente na mídia moderna/televisiva, que constrói

modelos de identidades duráveis, partindo dos discursos da telenovela Laços de Família3.

Sendo assim, observarei os discursos que construíram e constroem as identidades

femininas, tanto no período moderno, com iluministas; como na contemporaneidade, com o

discurso midiático.

Escolho a mídia e, mais especificamente a novela Laços de Família, como o artefato

cultural de análise porque as novelas brasileiras sempre fizeram parte do meu cotidiano,

embalaram os meus sonhos e me apresentaram modelos de beleza, de boa e má conduta, de

amor, de vida, ou seja, modelos de comportamento nos quais as minhas subjetividades4 eram

povoadas de identidades.

Vários personagens, principalmente os femininos, me causavam sentimentos intensos

e diferenciados. As protagonistas me causavam sentimento de admiração e, às vezes, de

identificação; e as vilãs, sentimentos de repúdio e desprezo. As Helenas5, mulheres que

sofrem, lutam e vencem, sempre foram modelos de identidade interessantes para inúmeras

mulheres.

Desde criança assisto às novelas globais e, na minha imaginação, já fui muitas

mulheres. Lembro que nas brincadeiras infantis, aos cinco anos, fui à dançarina de bordel

Ninon6, uma contestadora da moral e dos valores das famílias de Asa Branca. Já fui muitas

outras mulheres, mas tenho uma lembrança viva dessa personagem pelo fato da novela Roque

Santeiro ter sido marcante na minha infância.

3 A novela Laços de Família é de autoria de Manoel Carlos, exibida na Rede Globo de 05/06/2000 a 03/02/2001. Porém, deixo claro que as minhas referências capitulares são originárias da gravação da reprise, no Vale a Pena Ver de Novo, de 28/02/2005 a 23/09/2005. Portanto, devido aos cortes efetuados pela emissora, pode ser que as minhas referências não sejam compatíveis com os capítulos da primeira exibição. 4 As subjetividades são as sensações, o entendimento das pessoas e das coisas, ou seja, são os significados que damos ao mundo desde o momento em que a vida nos apresenta situações e emoções. Porém, as subjetividades são mutáveis, pois somos atravessados constantemente por discursos, pessoas, situações e sentimentos que nos resignificam. 5 São tipos construídos por Manoel Carlos,.autor de telenovelas da emissora Rede Globo de Televisão. 6 Personagem interpretada por Cláudia Raia na novela Roque Santeiro, de autoria de Dias Gomes.

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Engraçado, nunca imaginei que um dia utilizaria uma novela para escrever a minha

dissertação, pois, de fonte de entretenimento, de sonho, de imaginação, a novela, hoje, é fonte

de análise.

Com o tempo, percebi que essa relação de proximidade e intimidade com os

personagens das novelas não é apenas minha, pois a televisão brasileira é um dos veículos de

maior popularidade que possuímos, no qual os nossos folhetins são líderes de audiência. Ao

acompanharmos uma novela, temos a sensação de estar participando da sua trama,

vivenciando, naquele momento, a felicidade e a tristeza dos nossos protagonistas, como se

estes fossem pessoas do nosso cotidiano, ou seja, uma vizinha, uma amiga ou até mesmo uma

inimiga.

Parto do pressuposto que a mídia, principalmente a televisão, tem projetos explícitos e

implícitos. Esta está envolta pelo discurso do controle. Na sociedade de controle, as

modulações, teias de controle, são empregadas de formas fluidas, mutantes. Sendo assim,

saem do esquema da sociedade disciplinar em que os confinamentos são os moldes. Portanto,

Deleuze (1992, p. 222) aponta que “A velha toupeira monetária é o animal dos meios de

confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle”.

Logo, a sociedade de controle se torna atraente. Desta forma, a mídia visa ao

adestramento das identidades femininas e masculinas, ou seja, pretende apreender mulheres e

homens dentro de certos padrões de normalidade. Vale salientar que as novelas e suas

subjetividades estão presentes em toda a sociedade. Logo, não se pode negar o seu poder em

influenciar e criar novos hábitos e comportamentos.

Tenho necessidade de deixar bem claro que a mídia não é o meu objeto de estudo. Esta

é o artefato que elejo para compreender os discursos que constroem as identidades femininas,

pois os artefatos culturais – livros didáticos, revistas, charges, mídia, etc. – possuem o poder

de (re)criar, reforçar e até quebrar as identidades fixas.

Outro motivo, além da proximidade que tenho com as novelas, e que me levou a

escolher a mídia como foco de discussão, é o fato de que constantemente estamos sendo

bombardeados pelos seus discursos, seja o da informação, o da imagem, o da comunicação, o

do entretenimento ou o da ficção.

Não podemos negar a presença intensa da televisão, principalmente das novelas, na

vida de muitas pessoas no nosso país. Assim, observo essa influência na forma de as pessoas

se vestir, de falar e de agir, ou seja, na educação do povo brasileiro, principalmente na

educação dos jovens, que passam muito tempo em frente à televisão.

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Sendo assim, a televisão tem também uma função pedagógica informal. Uma das

preocupações em relação a essa função dos meios de comunicação e informação, entre elas a

televisão, é pensar uma forma de como transformar informação em conhecimento, pois a

mídia nos apresenta um mundo difuso e calcado no consumo.

Educadores e pais estão preocupados com a forma com que a televisão vem

apresentando e, até mesmo, ensinando às crianças e aos jovens sobre a vida, principalmente

no que diz respeito a aspectos morais, como gravidez na adolescência, drogas, doenças

sexualmente transmissíveis, casamento, traição, separação, entre outros.

Embora percebam os acontecimentos descritos acima, os pais e as mães põem na

televisão uma grande responsabilidade: a de educar e formar seus filhos para serem cidadãos

responsáveis. E também uma grande culpa: a de que os seus filhos são influenciados através

da violência exposta na TV. A suposta liberação sexual e a emancipação social e cultural

pregadas pela televisão, na visão dos pais, podem corromper a estrutura familiar.

As subjetividades produzidas pelos discursos da mídia, principalmente das novelas

brasileiras, e, possivelmente, reforçadas pelas nossas práticas culturais e sociais, devem ser

estudadas; tentando-se entender como são veiculadas as imagens de mulher mais recorrentes,

ou seja, como as novelas trabalham com as identidades femininas e como pretendem fixar

modelos de comportamento e formas de viver nas pessoas.

Não tenho como objetivo apenas discutir como as novelas constroem identidades

femininas, mas como discursivamente constroem modelos certos e errados de conduta, de

amor, de desejo, de obediência, etc., ou seja, como domam e adestram corpos e almas. Como

tenho uma preocupação filosófica no que diz respeito à filosofia da diferença, pretendo

discutir como os binarismos, principalmente de homem/mulher, circulam na sociedade.

Escolho a novela Laços de Família para análise porque esta apresenta claramente

algumas identidades femininas, posto seus personagens principais serem mulheres. Algo

interessante de se observar é que nas tramas de Manoel Carlos o nome Helena é recorrente

para as suas protagonistas e, como o próprio autor define, essas são as suas heroínas da classe

média.

A primeira Helena de Manoel Carlos foi Lilian Lemmertz em Baila Comigo (1981).

Desde então, com exceção de Sol de Verão (1982), todas as suas novelas possuem uma

Helena.

Porém, só a partir da novela Felicidade (1991), Helena é a protagonista das suas

tramas. Nesta, Manoel Carlos constrói um enredo centrado numa mulher interpretada por

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Maitê Proença, mãe solteira em busca da tão sonhada felicidade ao lado do seu amor, Álvaro

– Tony Ramos. Todavia, antes de alcançar seus objetivos, ela passa por vários problemas,

como um casamento fracassado com Mário – Herson Capri –, uma mãe conservadora – Ariclê

Perez –, uma inimiga de arrepiar os cabelos – Vivianne Pasmanter –, como também ter que

sustentar uma filha sem a presença de um pai, falta de dinheiro, etc.

A sua segunda Helena protagonista, interpretada por Regina Duarte, desfila em Uma

História de Amor (1995). Helena é uma mulher comum que luta pela sobrevivência, agüenta

desaforos de uma filha grávida, abandonada pelo namorado e rebelde, e, mais uma vez, tem

um segredo que envolve amor e mentira. Joyce – Carla Marins – não é sua filha legítima, mas

filha da sua irmã que, antes de morrer, pede para Helena criá-la como filha e nunca lhe contar

a verdade. Helena é separada e depois de vários relacionamentos se apaixona por Carlos –

José Mayer –, que é casado com uma mulher mimada – Carolina Ferraz – e tem uma ex-

namorada – Lília Cabral – que não larga do seu pé.

Mais uma vez, Regina Duarte é uma Helena de Manoel Carlos em Por Amor (1997).

Desta vez, a tão devotada mãe abre mão do seu segundo filho em nome do amor pela filha,

Maria Eduarda – Gabriela Duarte – e, de quebra, perde o homem que ama, Otílio – Antonio

Fagundes. Helena e Maria Eduarda engravidam no mesmo período e ganham bebês na mesma

noite. Devido a complicações no parto, sua filha não poderá engravidar novamente e, para

completar, seu filho morre. Helena se vê enlouquecida com a possibilidade de Maria Eduarda

não suportar a dor da dupla perda, já que a considera indefesa e frágil. E, num arroubo de mãe

heroína, troca os bebês. Este é mais um segredo das Helenas, que envolve filhos, abdicação,

amor e mentira.

Em Laços de família (2000-2001), Helena – Vera Fisher – abre mão duas vezes dos

homens que ama pela filha Camila – Carolina Dieckmann. Primeiro, quando Camila se

apaixona por seu namorado, Edu – Reynaldo Gianecchini –, então Helena decide sair de cena

para os dois viverem esse amor. Pela segunda vez, quando Helena engravida de Pedro – José

Mayer –, na tentativa de gerar um filho compatível com Camila, para salvá-la da leucemia, e

abre mão do seu amor Miguel – Tony Ramos. Outro segredo ronda a trama, Camila é filha de

Pedro, que só fica sabendo da verdade devido a sua doença e da tentativa de Helena salvá-la.

Em Mulheres Apaixonadas (2003), Helena – Christiane Torloni – não pode ter filhos,

mas adota Lucas – Victor Curgula – e vive uma vida estável com Téo – Tony Ramos.

Cansada do seu casamento sem grandes emoções, resolve deixar tudo para viver um amor do

passado – José Mayer. No desenrolar da trama, Helena descobre que Lucas é filho legítimo de

Téo com outra mulher – Vanessa Gerbelli. Na trama, há várias identidades femininas em

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ação, como a ciumenta Heloísa – Giulia Gam –, a professora alcoólatra – Vera Holtz –, uma

mulher atormentada pela violência doméstica – Helena Ranaldi –, a pulsante Lorena – Suzana

Vieira –, uma neta cruel – Regiane Alves –, etc.

Por último, em Páginas da Vida (atualmente em exibição), Helena – pela terceira vez

Regina Duarte – é uma obstetra que descobre a traição do marido – José Mayer – e o expulsa

de casa. Vivendo há vinte anos a angústia de ter perdido uma filha de quatro anos, Helena faz

o parto de Nanda – Fernanda Vasconcellos – que, após ter um casal de gêmeos, sendo a

menina portadora de Síndrome de Down, morre. Helena se depara com o drama de uma

criança portadora de Síndrome de down e rejeitada pela avó. Decide, então, adotar a menina,

mas, para tanto, é conivente com a mentira de Marta – Lília Cabral –, mãe de Nanda, que diz

a todos que a menina morreu. Após cinco anos, Léo, o pai dos gêmeos – Thiago Rodrigues –

volta ao Brasil. Então, ela trava uma grande batalha pela guarda da menina.

Nessas seis tramas, o grande carro-chefe é a maternidade, através do qual as Helenas

são capazes de tudo por suas filhas ou filhos, até matar, morrer, mentir, abrir mão de tudo,

brigar, etc. Essa devoção é resumida na fala da Helena, de Laços de Família, no momento em

que ela justifica a Miguel a sua gravidez e a renúncia do seu amor.

[...] fiquei pensando em tudo que eu já fiz pela felicidade dos meus filhos e em tudo que ainda sou capaz de fazer. Não existem limites, não existem barreiras no meu amor por eles. Pra muita gente, eu tô errada, eu sei! Pode se dar tudo aos filhos, menos a nossa própria felicidade. Mas, como uma mãe pode ser feliz se a felicidade dos filhos não tá incluída nessa felicidade? A minha mãe era assim! Por amor a mim, ela me acompanhou, ela deixou a fazenda para vir comigo pro Rio, ela abriu mão de tudo e acabou perdendo o meu pai. Acho que essa renúncia pelos filhos é um mal de família. Na minha vida tem sido assim! Eu abri mão do Edu pela Camila e, pela Camila, abri mão de você7 (Cap. 141).

As Helenas do autor não são apenas mães exemplares, elas traem e abandonam um

homem apaixonado – Mulheres Apaixonadas; provocam abortos e são amantes – Uma

História de Amor; inventam gravidez e casam por interesse – Felicidade; matam um filho

vivo e tiram a possibilidade de um homem ser pai pela primeira vez – Por Amor; escondem a

verdadeira paternidade da filha e se dispõem dos sentimentos dos outros como bem querem –

Laços de Família; e concordam com a mentira de uma avó fria e traem o homem que amam –

Páginas da Vida. Ao mesmo tempo, são trabalhadoras, donas de casa, amantes, rivais de outra

mulher, amigas, pai e mãe ao mesmo tempo, etc.

7 Ao longo da dissertação, serão encontrados os trechos das falas dos e das personagens de Manoel Carlos destacadas na cor azul. Isso significa que são hiperlinks, ou seja, no CD, que vem em anexo, estão contidas essas cenas. Basta clicar no texto azul e assisti-las.

16

Mesmo as novelas nos apresentando modelos corretos e incorretos de identidades, ou

seja, educando os corpos e almas femininas, acredito que as identidades estão em fluxo8 e que

não são naturais.

Parto do pressuposto que as identidades femininas foram construídas pelo discurso

moderno, que tem como base a ciência, sendo legitimada pela concepção de diferença. O ideal

de identidade feminina vem fracassando, pois esta não é fixa, imutável e homogênea como o

discurso normativo pretende. Além disso, a identidade feminina compartimenta várias outras

identidades, como a identidade de ser negra, de ser prostituta, de ser empresária, de ser

desocupada, de ser desempregada, de ser amante, de ser adúltera, de ser analfabeta, etc. Essas

outras identidades quebram com a imagem fixa da identidade feminina.

As novas identidades são construídas constantemente, através das subjetividades

produzidas por dispositivos culturais e sociais; sendo um desses a mídia, que possui o poder

de construir modelos de identidade a serem seguidos ou repelidos, principalmente nas

propagandas e nas novelas. Nas propagandas são apresentados produtos a serem consumidos

em nome da beleza, seus garotos e garotas propaganda são sempre jovens, saudáveis e

bonitos.

Já as novelas nos apresentam modelos de beleza, de educação, de comportamento, de

moda, etc, apontando que estes são os modelos ideais a serem subjetivados. Os personagens

de bom caráter são sempre bonitos, elegantes, bondosos, educados e portadores de uma moral

incontestável; em contraposição ao seu outro, os vilões, portadores de um caráter duvidoso.

Estes, sempre ao final da novela, se dão mal, pois são castigados por possuírem uma má

conduta9.

Desta forma, as novelas nos apontam o caminho a ser seguido e os modelos a serem

subjetivados, criando novas identidades, que se apresentam como passageiras. Essas novas

identidades são revestidas de novas roupagens e sempre são reatualizadas. Porém, reforçam os

velhos estereótipos de mulher. Sendo assim, em geral, os autores das novelas não se

preocupam em questionar as identidades e diferenças, pelo contrário, reforçam as

desigualdades culturais e sociais.

Essas novas identidades são ditadas pelo consumo – da beleza, do bem-estar, do

modelo de namoro, da moda, do entretenimento, etc. –, ou seja, são construídas a partir dos

modelos de subjetividade apresentados pela mídia. Todavia, mesmo estando calcadas nas 8 Identidade em fluxo é vida, é prática, é transgressão. Sendo assim, não podemos afirmar que essa é fixas e durável. 9 Temos como exemplo de novelas feitas nesses moldes as da Rede Globo, nas quais os heróis e as heroínas terminam felizes com o seu amor; e os vilões e as vilãs morrem, ficam loucos, paralíticos ou são abandonados.

17

identidades duráveis, se apresentam como passageiras porque a mídia está em constante

mudança.

Em um mês está em ascensão um determinado grupo de pagode que valoriza os

atributos físicos femininos, como a bunda; no outro, já estão na moda grupos de funk que

desvalorizam a imagem feminina, comparando-a a cachorras. Apesar dessas novas

identidades, forjadas pelo discurso musical de pagodeiros e funkeiros, apresentarem-se como

algo novo, essas imagens femininas reforçam a secular concepção de mulher-objeto.

Essas subjetividades circulam na sociedade, onde as práticas culturais e sociais

reforçam as identidades ditas passageiras, porém duráveis, e os binarismos. Os binarismos já

são uma marca do nosso ensino, principalmente no de história, pois são nas narrativas

históricas que os personagens de diferentes identidades – os negros, os brancos, o

proletariado, os judeus, as prostitutas, etc. – são apresentados com maior evidência. Porém, as

subjetividades produzidas pelas narrativas, não só históricas, circulam em toda a escola.

No binarismo homem/mulher, suas subjetividades circulam através de diferenças

salariais, da fixação de trabalhos distintos, de brincadeiras, de piadas, de comentários, etc. em

todos os âmbitos sociais, como em casa, na sala de aula, no emprego, na rua, etc. Nesse

sentido, a identidade feminina é diferente e desigual da identidade masculina, pois foi

construída pelo eu10 como o outro11. Porém, as identidades femininas passaram e passam por

constantes reelaborações.

Minha hipótese é que as identidades femininas são construídas no lastro das práticas

culturais e sociais, de práticas discursivas e não discursivas, no evolver de relações de

poder/saber. Essas relações criam processos de naturalização da disciplina do corpo e da alma

feminina com base em normas e regulamentações. Desta forma, saliento a (des)construção das

identidades femininas e penso na emergência de identidades em fluxo, uma vez que a

telenovela constrói identidades duráveis.

Porém, não é pelo fato das novelas construírem identidades que essas devam ser vistas

como modelos ou obrigatoriamente constituídas de personagens representantes de uma

identidade única ou correta. Um exemplo é a identidade das pessoas que desejam pessoas do

mesmo sexo. Organizações, nomeados de movimentos gays, cobram dos autores das novelas a

veiculação de homossexuais sempre bem resolvidos, pois alegam que essa imagem ajuda em

uma visão menos preconceituosa da população com relação aos mesmos. 10 O sujeito construído na relação binária como superior: o homem, o branco, o cristão, o racional, o bonito, o rico, etc. 11 O sujeito construído na relação binária como inferior: a mulher, o negro, o judeu, o irracional, o feio, o pobre, etc.

18

Também não é interessante o inverso, ou seja, ser veiculada apenas a imagem

estereotipada desses corpos livres, ou seja, a biba louca e a mulher machão. Na vida, temos

uma variada gama de identidades homossexuais. Nem todo homem e nem toda mulher que

não se adequa ao padrão heterossexual é bem resolvido, possui um bom emprego ou é vulgar

e promíscuo.

No momento em que as novelas nos apresentam apenas exemplos de gays bem

resolvidos, estão criando um modelo de como se deve ser homossexual, ou seja, cria uma

identidade fixa, na qual só há espaço para um corpo padronizado, educado pela mídia. Desta

forma, os que não se enquadrarem nesse padrão serão vistos como o outro de uma identidade

já estabelecida.

Outro ponto importante que deixo claro é que não tenho a preocupação em discutir se

as novelas são influências negativas ou positivas na vida das pessoas, ou seja, não endeuso e

nem demonizo a imagem da mídia e da televisão brasileira. Acredito que estas possuem

aspectos positivos e negativos nos seus discursos e programações. Não me detenho no debate

se a televisão dissemina a violência ou se é propulsora de alienação.

Neste percurso, farei uma análise dos discursos da telenovela Laços de Família, a

partir da narrativa, enredo, diálogos, etc., tentando situar como foram construídos

discursivamente os personagens femininos – Helena, Alma, Capitu, Íris e Camila – e como

esses personagens reforçam a regra do normal, ou seja, como legitimam alguns estereótipos

femininos, como a imagem da mãe perfeita, a da filha ingrata, a da doidivanas, etc.

Sob a égide da análise em tela, divido o texto da seguinte forma:

No capítulo I – Identidade e Diferença: a doma(dana)ção do outro e a afirmação do eu

– discuto a emergência das identidades no lastro das práticas culturais e sociais;

No capítulo II – Identidade Feminina: cria do discurso científico – situo a construção

das identidades femininas no bojo do discurso científico;

No capítulo III – Laços de Família: as tramas de uma novela construindo e

disciplinando as identidades femininas – cartografo as identidades nos discursos da telenovela

Laços de Família.

Por fim, vislumbro fluxos de identidades efêmeras frente às identidades duráveis.

19

2 IDENTIDADE E DIFERENÇA: A DOMA(DANA)ÇÃO DO OUTRO E A

AFIRMAÇÃO DO EU

Você não ficou surpresa com a nossa diferença de idade. Você ficou chocada. Num foi? Não precisa ficar tímida, minha filha. Você não me magoa com isso! Teu irmão ficou, as pessoas em geral ficam. As pessoas do prédio, os amigos, os conhecidos. Em qualquer lugar que a gente vá e quando a gente se beija no meio da rua, as pessoas olham feio pra gente. Querem agredir a gente (Helena, cap.11).

Neste capítulo, faço uma discussão sobre a construção das identidades e a filosofia da

diferença. Tenho como preocupação tentar compreender como as identidades foram

construídas e subjetivadas como naturais.

Os significantes identidade e diferença são conceitos carregados de significados, a

partir das subjetividades. No Novo Dicionário Aurélio (1975) encontramos as seguintes

definições:

Identidade. [Do lat. Escolástico identitate] S. f. 1. Qualidade de idêntico: Há entre as concepções dos dois perfeita identidade. 2. Conjunto de características próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais, etc. 3. Reconhecimento de que um indivíduo morto ou vivo é o próprio. 4. Carteira de identidade. 5. Mat. Relação de igualdade válida para todos os valores das variáveis envolvidas (FERREIRA, 1975, p. 743, grifos do autor).

Diferença. [Do lat. differentia]. S. f. 1. Qualidade de diferente. 2. Falta de semelhança ou igualdade; dessemelhança; dissilimitude: Não há diferença entre os gêmeos. 3. Alteração, modificação: Nota-se diferença na cor do leite. 4. Diversidade, disparidade, variedade: Grande era a diferença das cores. 5. Desconformidade, divergência, desarmonia: Notava-se no grupo uma viva diferença de opiniões. 6. Transtorno, prejuízo: É claro que o resultado me faz diferença. 7. Distinção (1): Não faz diferença entre os amigos: a todos trata muito bem. 8. Desproporção, desigualdade: Era sensível a diferença no tratamento dispensado às filhas. 9. Mat. Resultado da subtração de duas quantidades. 10. Mat. Conjunto de elementos que pertencem a um conjunto, mas não pertencem a outro nele contido. ~ V. diferenças. ◊ Diferença de potencial. Eletr. Trabalho necessário para levar de um ponto a outro (no espaço ou num circuito elétrico) uma unidade de carga elétrica. [Abrev.: d.d.p] (FERREIRA, 1975, p. 476, grifos do autor).

Esses conceitos atestam legitimidade de classificação e exprimem definições com dois

sentidos opostos, porém relacionais. Nesse sentido, a identidade atesta igualdade e

semelhança e a diferença, o seu oposto. São relacionais no sentido que as classificações são

20

construídas e se legitimam a partir dos parâmetros de semelhança ou não. Sendo assim, as

pessoas são enquadradas a estereótipos da igualdade ou da diferença, ou se é igual ou se é

diferente de certos modelos de normalidade.

O ato de conceituar e classificar é perpassado por relações de saber/poder, ou seja,

envolve o ato de proferir um discurso. O discurso, segundo Foucault (2004, p. 10),

[...] não é aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; é visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.

Porém, o próprio significado de conceito é discutível, pois este pode ser concebido

como algo que exprime uma verdade científica ou como uma elaboração de discursos

baseados na ciência, ou seja, há uma relação direta entre conceito e ciência e conceito e

verdade.

Para o discurso científico, a história das ciências é antes de tudo uma história

conceitual, pois a formação dos conceitos define uma racionalidade, ou seja, o conceito

exprime a normatividade desse discurso. Nesse sentido, um conceito atesta uma verdade que é

o propósito final da ciência.

Mesmo a ciência tendo esse propósito, o de afirmar uma verdade, segundo Machado

(1981, p. 20):

[...] a ciência não pode ser encarada como um fenômeno natural nem mesmo como um fenômeno cultural como os outros. A ciência não é um objeto natural, um objeto dado; é uma produção cultural, um objeto construído, produzido. Também não pode ser ‘naturalizada’ por uma redução a seu aspecto institucional. Naturalizar a ciência é confundi-la com seus resultados e, pior ainda, com os cientistas. [...] A ciência é essencialmente discurso, um conjunto de proposições articuladas sistematicamente. Mas, além disso, é um tipo específico de discurso: é um discurso que tem a pretensão de verdade.

A ciência é um discurso que constrói identidades e diferenças e legitima desigualdades

e exclusões, tendo sempre a pretensão de criar lugares a partir dos seus procedimentos de

verdade. Assim, o próprio conceito de verdade passa a ser questionável, pois também passa a

ser visto como um lugar construído, elaborado, produzido pelo discurso da ciência.

21

O discurso científico constrói identidades baseado numa ontologia12, numa essência,

tendo como pressuposto a existência de diferenças, sejam elas étnicas, sexuais, raciais, etc. As

identidades, assim, tendem a se fixar a partir das subjetividades e das práticas culturais e

sociais.

Extrapolando esse tipo de perspectiva, podemos dizer que as identidades só adquirem

sentido a partir do momento em que a linguagem passa a instituí-las como verdadeiras e

distintas, demarcando territórios de desigualdade e exclusão. Portanto, as identidades são

entendidas como construções discursivas que seguem uma série de procedimentos a partir das

intencionalidades de quem as constroem. Esses procedimentos podem ser de exclusão,

classificação, nomeação, etc.

Você já parou para pensar no poder do discurso?

Estamos sempre em busca de afirmar uma verdade e acreditamos que estamos sempre

representando essa verdade, através dos signos. Entretanto, essa representação13 se concebe a

partir de um discurso que possui intencionalidades, que nunca é inocente, aleatório ou

desinteressado. Logo, Foucault (2004, p. 8-9) diz:

[...] em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

Este excerto mostra que o próprio discurso possui procedimentos de exclusão e que

segue uma ordem certa de acontecimento, ou seja, todos precisam se enquadrar à ordem do

discurso. Esse ritual da palavra vai além do ofício do falar, extrapolando os muros da simples

comunicação para se transformar numa máquina de poder.

Nessa relação de poder, o mais importante não é em si o falso ou o verdadeiro, mas

sim a política da verdade. Esse movimento pode ser observado na evolução científica do saber

médico-jurídico-psiquiátrico.

Entre o final do século XIX e início do XX, psiquiatras, detentores da verdade sobre a

mente humana, prescreviam a lobotomia14, entre várias outras técnicas, como forma de

diminuição ou, até mesmo, como cura dos males da mente. Na atualidade, essa prática não é 12 Pensamento que tem a concepção de que exista uma natureza comum a todos e a cada um dos seres, ou seja, acredita na existência de uma essência. 13 Entendo como representação não um atestado ou radiografia do que chamamos de realidade, mas como algo que dá sentido, a partir das narrativas, aos fatos, aos acontecimentos, às identidades, às diferenças, etc. 14 Psicocirurgia, comumente praticada entre o final do século XIX e início do XX, que retirava parte do cérebro do paciente considerado possuidor de algum distúrbio mental.

22

mais utilizada. Porém, a lobotomia não é considerada como um erro da ciência médica, mas

como um estágio evolutivo para se chegar ao que hoje consideram como verdade no

tratamento da loucura.

Na política da verdade, a instituição médica prescreve nos corpos dos monstros

humanos15 um discurso marcado por práticas violentas, que instaura a verdade médico-

jurídica e, assim, uma realidade construída e vivenciada em clínicas e hospitais psiquiátricos

por pessoas enquadradas como possuidoras de distúrbios ou anomalias mentais.

Desse ponto de vista, o discurso possui o poder de instituir o real. A linguagem não é

mais vista como uma disciplina do currículo escolar ou apenas como uma forma de

comunicação entre homens e mulheres. Com a virada lingüística16, a linguagem deixou de ser

vista como uma representação ou reflexo da realidade, passando a ser vista, a partir do seu

caráter construcionista, como um signo que produz significantes e significados.

Os significantes são todas as nomeações e classificações que fazemos sobre as pessoas

e as coisas. Na medida em que criamos subjetividades para os significantes, podendo ser de

formas distintas, estamos dando-lhes significados. Portanto, quando produzimos uma

narrativa sobre as pessoas e as coisas, estamos instituindo uma realidade.

A linguagem possui o poder de nomear e classificar, separando e ordenando os

opostos, construindo os binarismos homem/mulher, bonito/feio, branco/negro,

heterossexual/homossexual, normal/anormal, rico/pobre, eficiente/deficiente,

colonizador/colonizado, trabalhador/vagabundo, inteligente/ignorante, civilizado/ bárbaro,

entre outros.

Baseados na tradição do pensamento moderno, o que encontramos nos artefatos

culturais (livros didáticos, revistas, mídia, imagens, etc) são representações do real. Esses

artefatos culturais sempre nos apresentam identidades fixas, homogêneas e imutáveis,

demarcando lugares hierárquicos a partir de um discurso pautado na diferença. Essas imagens

reforçam o lugar de superioridade do primeiro termo em detrimento do segundo, que possui o

lugar de inferioridade.

Nos dois pontos a seguir, venho discutindo o que denomino de identidades duráveis e

identidades em fluxo.

15 Primeira figura apresentada por Foucault na constituição da anomalia humana. 16 A virada lingüística passou a ser processada no início do século XX com Ferdinand Saussure, o qual concebia a linguagem como um sistema de significação, vendo seus elementos (signo, significante e significado) de uma forma relacional.

23

2.1 IDENTIDADES DURÁVEIS OU SECULARES

Discutirei a emergência das identidades duráveis e como os discursos pretendem

prender as identidades a lugares fixos.

Pensar nas identidades na atualidade e todas as suas imagens recorrentes é nos remeter

a um projeto pensado por iluministas e suas mutações ao longo da nossa história, ou seja, a

construção das identidades está intimamente ligada ao nascimento do sujeito moderno17.

A partir do período nomeado como moderno, a noção de sujeito passa a ser constituída

através do discurso moderno, que coloca o homem no centro do universo, deslocando o poder

que antes era divino para o humano. Este seria o sujeito construído pelo discurso Iluminista,

ou seja, o sujeito moderno.

Segundo os discursos modernos, o homem deveria se afastar de todos os dogmas e das

superstições existentes, passando a fazer uso da razão. O uso da razão teria como função dar

subsídios ao homem para este alcançar sua liberdade e autonomia e chegar ao ideal de

civilização. Quanto maior o uso da razão, maior seria o nível de civilização. O ideal de

civilização estaria pautado no progresso e na evolução humana, ou seja, o homem deveria ser

um indivíduo livre e autônomo, consciente, capaz de se auto-determinar e transformar o

mundo.

O próprio termo Iluminismo18 surgiu em oposição às trevas, às superstições e aos

dogmas, referente à concepção dos modernos em relação à Idade Média, indicando um

período de luz e claridade, que seria alcançado através do uso da razão, que proporcionaria a

conscientização.

Com base nesse discurso, o homem já nasceria com uma consciência adormecida, que

seria libertada pelo conhecimento, pela ciência e pela educação, ou seja, já teria inerente na

sua natureza a racionalidade, em outras palavras, a capacidade de aprender, de ser autônomo e

de conhecer a realidade. Desta forma, só o que lhe faltaria seria o despertar em vista ao

progresso humano, ocorrendo, a partir daí, o seu enriquecimento intelectual e

desenvolvimento do coletivo, ou seja, da sociedade e da nação.

17 O sujeito moderno é uma construção discursiva que passou a ser constituída a partir do século XVI pelos pensadores modernos como Descartes, Hegel, Rosseau, etc. Este seria um sujeito dotado de razão, consciência, livre e com capacidade de se auto-determinar e, tendo em vista o progresso, transformar o mundo. 18 O Iluminismo é consagrado pela historiografia como um movimento cultural, artístico e filosófico europeu dos séculos XVII e, principalmente, XVIII. O pensamento Iluminista é caracterizado pela ênfase colocada na razão e na experiência, pela desconfiança em relação à religião e às autoridades tradicionais e no ideal de sociedade liberal e democrática.

24

A preocupação com a educação e a sua supervalorização vem acompanhando ao longo

da história a noção de civilização e progresso humano. Sendo assim, o discurso iluminista

vem se atualizando e não cessa de se renovar com os discursos da modernidade.

A educação é vista como a salvadora de todos os males sociais e culturais. Porém,

Foucault (2004, p. 44-45) aponta que todo o sistema de educação possui procedimentos de

manutenção e apropriação dos discursos.

[...] O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação da palavra e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?

Sendo a educação uma modalidade política carregada de poderes e saberes, possui o

poder de disciplinar e de controlar, formando corpos dóceis e adequados a regras e a normas.

São rituais que se materializam na hora de entrar e sair da escola, cadeiras enfileiradas, ter

boas notas escolares, ter bom comportamento, ter que usar uma farda, etc. O não

cumprimento das regras resulta em punição: castigo, diminuição das notas, expulsão de sala

de aula ou da escola, reprovação do ano letivo, etc.

Concomitantemente à noção de educação, o Iluminismo teria como função a formação

do homem enquanto sujeito, sendo contra qualquer tipo de autoridade que não fosse pautada

na racionalidade e na experiência. A religião configurava-se como um empecilho para o

progresso e a evolução humana, já que, nessa concepção, o homem estaria subordinado a

crenças irracionais e a uma autoridade baseada em dogmas e superstições. Levando-se em

consideração que a existência de Deus não pode ser provada pela ciência como algo material,

o homem não deveria se submeter a essa força.

O período moderno é um momento não só calcado numa razão absoluta e

inquestionável, mas também na experiência19 e na prova. Um fato para ser considerado como

verdadeiro teria que ser experimentado e provado cientificamente. O pensamento moderno

não concebe a verdade como uma construção discursiva interessada, mas como um dado da

realidade.

A noção de sujeito iluminista, segundo Hall (2001, p. 10) diz que: “O sujeito do

Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo

totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação,

cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior [...]”. 19 Os maiores defensores do método experimental foram René Descartes e Francis Bacon, os quais objetivavam um método que evitasse o erro e colocasse o homem no caminho do conhecimento correto e verdadeiro.

25

Contrapondo-se ao projeto iluminista, este se constituía como uma invenção histórica,

pois havia, durante o período moderno, todo um discurso que o elaborava como sujeito.

A noção de sujeito moderno nos remete a uma identidade fixa, homogênea, imutável,

ou seja, fechada em si; haja vista não permitir a emergência de outras formas de identidade.

Então, uma questão vem à tona: a partir de que as identidades duráveis são

construídas? A partir de discursos pautados na diferença, ou seja, o eu pontua o que o outro

tem de diferente de si a fim de construir e naturalizar seu lugar de superioridade. Na leitura

dialética de Hegel20, o eu é definido como a negação do outro.

Hegel faz uma análise, em Fenomenologia do Espírito (1807), sobre a auto-

consciência ou consciência de si, mostrando que o eu só pode ser construído a partir do outro.

Para tanto, ele utiliza a metáfora do Senhor e do Escravo, apontando para uma identidade

relacional na qual o Senhor reconhece o seu inferior, dependendo também do reconhecimento

do Escravo, ou seja, o Senhor tem que ser reconhecido como superior.

Um exemplo de como a identidade é construída como relacional é a identidade negra,

ela é o outro da identidade branca. A identidade negra só existe a partir de algo exterior a si,

portanto, depende e difere da identidade branca. Da mesma forma ocorre com a identidade

branca, que depende e difere da identidade negra. Como podemos constatar, as identidades

são marcadas pela diferença e sustentadas pela exclusão, ou seja, se você é negro, não pode

ser branco, e vice-versa. Essa exclusão é acompanhada das desigualdades sociais e culturais,

pois temos várias práticas cotidianas que demarcam os territórios de exclusão.

As diferenças não são um dado da natureza, ou seja, algo natural e que possui uma

essência, mas sim uma construção discursiva e histórica, pois se localiza num momento

específico no tempo. Como o essencialismo21 fundamenta-se na história e na biologia, as

identidades podem ser criadas baseadas num determinado passado – identidades nacionais,

étnicas e religiosas – ; e também na biologia – identidades de gênero e de raça.

Mas, quais as intencionalidades do discurso moderno em construir discursivamente as

diferenças?

20 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) – pensador que influenciou o desenvolvimento do pensamento ocidental do século XIX no que diz respeito á filosofia, à teoria social e política. Hegel criou o conceito de dialética, cujo raciocínio parte do pressuposto de que um conceito e o seu oposto, em conjunto, originam uma idéia posterior que representa o que é essencial em ambos. Mas esta, por sua vez, gera o seu oposto, e, assim, recomeça o processo de transição dialético. 21 Pensamento que busca compreender o fundamento da realidade de uma substância primeira, a essência. Segundo o essencialismo, a essência, seja individual ou coletiva, não se altera ao longo do tempo, permanece imutável e estática.

26

No discurso científico, o outro é visto como a fonte de todo o mal, ou seja, o exterior

ao ideal de sujeito Iluminista. Segundo Duschatzky e Skliar (2001, p. 123):

A modernidade inventou e se serviu de uma lógica binária, a partir do qual denominou de diferentes modos o componente negativo da relação cultural: marginal, indigente, louco, deficiente, drogadinho, homossexual, estrangeiro, etc. Essas oposições binárias sugerem sempre o privilégio do primeiro termo, e o outro, secundário nessa dependência hierárquica, não existe fora do primeiro, mas dentro dele, como imagem velada, como sua inversão negativa.

As diferenças causam-nos mal-estar e nos subjetivam uma identidade normal, pois os

apontados como diferentes são caracterizados pelo espelhismo da normalidade, ou seja, se

caracterizam como o oposto da identidade normal; sendo estes agrupados a partir de critérios

estabelecidos pela ciência moderna. O outro seria o perigo e o mal a serem domados e

enquadrados aos lugares construídos para si, sendo nomeados e classificados como diferentes.

Através dos binarismos, o outro tem a função de mostrar quem somos, apresentando o

nosso lado negativo, ou seja, o pobre confirma nossa riqueza; o louco, nossa razão; o velho,

nossa juventude; etc. Duschatzky e Skliar (2001, p. 124, grifos do autor) apontam:

O outro diferente funciona como depósito de todos os males, como o portador das falhas sociais. Este tipo de pensamento supõe que a pobreza é do pobre; a violência, do violento; o problema de aprendizagem, do aluno; a deficiência, do deficiente; e a exclusão, do excluído.

O discurso sobre os nomeados e classificados como louco, que é o outro da nossa

razão, serenidade e sanidade, reforça a concepção de que somos portadores de uma identidade

normal. A identidade normal existe em contraposição á identidade do louco, que, segundo o

discurso científico, não tem capacidade de viver no mundo real.

No final do século XIX e início do XX, momento de medicalização da loucura, o

discurso médico-científico patologiza o louco e a loucura, criando um discurso que inventa

um lugar para este, apresentando-o como o outro que deve ser tratado e excluído da

sociedade. Para aplacar o medo e a perturbação que o louco nos causa, foram criadas casas de

reclusão que têm a função de controlar o seu corpo e a sua mente.

No caso da figura feminina, o saber médico não apenas patologizou as nomeadas e

classificadas como loucas, mas também criou um distúrbio mental praticamente exclusivo

27

para as mulheres: a histeria, que possuía uma íntima relação com a madre22. Para médicos e

legistas, o corpo feminino, com os seus fenômenos naturais como a menstruação, a gravidez,

o parto e o pós-parto, estava fisiologicamente predisposto a doenças mentais. Para Engel

(2002, p. 343):

A visibilidade e os significados da concepção segundo a qual a histeria seria em sua própria essência uma doença feminina encontram-se profundamente vinculados à tradição que – presente na medicina hipocrática, passando pelos médicos medievais – identificava o ‘mal histérico’ à ‘sufocação da madre’.

Nesse período, a madre era a chave de todos os males. Foram lançadas várias teses

negando o prazer sexual feminino. A mulher que sentisse prazer sexual era tida como

ninfomaníaca, porém não podia repudiar a ato em detrimento da maternidade, que poderia

salvá-la da doença mental. Outras teses foram lançadas, porém mais escassas, reconhecendo o

prazer sexual da mulher e a necessidade de realizá-lo, já que a sua falta ou ineficiência

poderia causar a prática da masturbação e, conseqüentemente, a histeria.

Os alienistas acreditavam que a maternidade seria capaz de curar distúrbios psíquicos

relacionados à sexualidade, assim como intervenções cirúrgicas ginecológicas, pois havia uma

grande associação entre a loucura e o útero (mater). Nessa concepção, o útero definia a

mulher e determinava seu comportamento emocional e moral. O discurso médico apreendia a

identidade feminina a um corpo estranho, perigoso e labiríntico, sendo, assim, passível de se

explorar, domar e disciplinar.

As mulheres classificadas e nomeadas como loucas ou histéricas eram tidas como

diferentes. Porém, as identidades não são construídas apenas como diferentes, mas também

como desiguais, pois o discurso moderno encontrou no saber científico o lugar da experiência

e da prova para justificar as diferenças e, desta forma, legitimar as desigualdades.

As identidades são diferentes apenas em si, pois foram construídas, discursivamente e

culturalmente, ao longo do tempo como diferentes e desiguais. Para esse discurso, o outro não

é apenas diferente, mas também desigual. A desigualdade só existe a partir do discurso da

diferença.

As marcas do discurso da diferença são a desigualdade e a exclusão. Uma pessoa vista

como diferente nunca é aceita com igualdade pelo normal. O pobre é excluído de boas

escolas, de uma boa alimentação, de atendimento médico e de lugares, pois este já possui o

22 A madre era entendida como a geradora de todo o bem feminino, maternidade e todos os males como a perversão moral e social e os distúrbios mentais. Em síntese, a madre era o órgão sexual e reprodutor feminino. Porém, definia ou carregava em si as marcas de normalidade ou anormalidade das mulheres.

28

seu lugar pré-estabelecido a partir de discursos, que pretendem mostrar seu lugar de

inferioridade em contraponto ao rico.

Segundo Woodward (2000, p. 14), “a marcação simbólica é o meio pelo qual damos

sentido às práticas e as relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é

incluído”.

As práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder,

pois determinam lugares para as identidades.

Temos também como exemplo a identidade do oriental, o outro da identidade do

ocidental, no qual o Oriente configura-se como um corpo escrito e construído. Said (1990)

discute como o Oriente foi construído pelo Ocidente e quais as intencionalidades do discurso

ocidental em falar do e pelo outro, apontando que o Oriente, de início, era o desconhecido

ameaçador, que, numa relação de poder e saber, deveria ser controlado.

Desta forma, baseado na tradição ocidental em construir a história do outro a partir de

suas verdades, o Oriente foi descrito como irracional, estranho, anormal, etc. em contraponto

a um Ocidente racional, conhecido, progressista, virtuoso, maduro, etc. O Ocidente se

autodenomina como lugar da superioridade, da dominação e da autoridade; opondo-se a um

Oriente inferior, submisso e incapaz. O Ocidente nomeia e classifica o Oriente a partir de si,

criando a identidade deste outro como uma imagem invertida.

Calcado numa noção de identidade relacional, Said (1990, p. 14) aponta:

[...] O Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem, idéia, personalidade e experiência de contraste. Contudo, nada desse Oriente é meramente imaginativo. O Oriente é parte integrante da civilização e da cultura materiais da Europa. O Oriente expressa e representa esse papel cultural e até mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de instituições, vocabulário, erudição, imagística, doutrina e até burocracias e estilos coloniais.

Além desse discurso baseado numa diferença cultural, temos o discurso que é marcado

pelo corpo, ou seja, as deficiências humanas, no qual todo um saber científico e técnico

define, nomeia, classifica e cria identidades para os deficientes; dando-lhes características

específicas, as redes de significação vão se multiplicando, criando e recriando a cada dia

novas identidades.

Paulo, filho de Miguel, possui no corpo as marcas da exclusão e da desigualdade.

Quando adolescente, sofreu um grave acidente de carro que vitimou a sua mãe e lhe trouxe

várias seqüelas, como problemas de locomoção e de dicção. Ao longo dos anos, com muito

trabalho e determinação, foi conseguindo melhoras, porém não se livrou dos preconceitos.

29

Paulo: Eu só queria saber uma coisa, mas que você me falasse a verdade. Miguel: O que que é, meu filho? Diz. Paulo: Se é verdade que as pessoas têm pena de mim. Miguel: Meu filho, de onde é que você tirou isso? Paulo: A Ciça fala isso muitas vezes e falou hoje na frente de uma moça. Miguel: E aí? Paulo: A moça olhou pra mim e falou ‘coitado’. Miguel: Aí, meu filho, você nunca ligou pra nada que a que a sua irmã fala e você sabe muito bem que lá em casa ninguém dá a menor importância pras implicâncias da Ciça. É ou não é? Paulo: Mas, eu também percebo as pessoas comentando. Miguel: Mas, comentam o que, meu filho? Que você tem limitações, que você tem problemas? Mas, você tem mesmo, meu filho. Tem e você sabe disso antes e melhor que qualquer um (Cap. 43).

Paulo, enquanto um homem que carrega deficiências físicas, se configura como um

anormal; nesse caso, um anormal aceitável, mas, na concepção de Ciça, incapaz de se

relacionar com Capitu, pois “ela é muita areia pra o seu caminhãozinho” (Cap. 45). Nesse

sentido, os relacionamentos devem ocorrer com os seus devidos pares: se Capitu é normal

fisicamente, deve amar um igual a ela.

Nesse discurso, o diferente configura-se como alguém a ser tolerado, o que mascara as

desigualdades, mas não coloca em questão as exclusões. O discurso da tolerância e do

respeito se esconde atrás de um véu lingüístico, constituído de palavras mais brandas e

suaves. Contudo, esses discursos apenas reforçam as diferenças, pois não põem em xeque as

identidades, ou seja, estas continuam sendo vistas como naturais, não como uma construção

discursiva localizada num determinado tempo.

Entre os sujeitos envolvidos na relação identitária há o que quer ditar o certo e o

errado. No exemplo a seguir, Ciça quer ditar ao pai o caminho que ele deve seguir, pois ela

não considera adequado ele ser educado, passivo e compreensivo demais. Porém, Miguel

possui o poder de pai e, assim, o direito de encaminhá-la á obediência e à aceitação das suas

decisões.

Ciça não se conforma por Helena não ter aceitado o pedido de casamento do seu pai e

ter terminado o relacionamento sem explicações convincentes. No dia do aniversário de

Miguel, Helena vai à livraria para parabenizá-lo, porém não o encontra e é expulsa por Ciça.

Miguel fica sabendo que Helena foi lá e pede explicações a sua filha.

Ciça: Eu num consigo, pai, eu num consigo ver tudo isso sem fazer nada, eu num consigo. Você é compreensivo demais, você é passivo demais, você é educado demais, gentil demais. Não se deve ser assim, pai. Eu amo você demais pra ver você sofrer sem fazer nada. Miguel: Olha, minha filha, uma vez eu te disse. Lembra-se? Quando a gente ama, quando a gente ama uma pessoa, a gente aceita essa pessoa do jeitinho que ela é, com todos os seus defeitos, diferenças, maneiras de ser, com tudo isso. Porque esse

30

é o verdadeiro amor. Já te falei isso. Só que eu e você somos diferentes. Não queira que eu haja, que eu pense, que eu faça tudo, todas as coisas que você imaginar na tua vida, segundo a sua visão, de acordo com aquilo que você quer. Não, porque nós somos diferentes, diferentes. Olha, minha filha, eu acho que é até bom, já que você não consegue conviver com as nossas diferenças, é bom a gente dá um tempo pra você. Você sair um pouquinho do Rio, ficar um pouco longe de mim. Quem sabe viajar. Nova Iorque, por exemplo, lá na casa do Nelson. Pronto! [...] Ciça: Não, você não tá falando sério? Miguel: Tô sim, minha filha, muito sério. Eu acho que é bom sim. Já que você não consegue conviver tanto com as nossas diferenças. Seria importante isso, você dá um tempo. Tempo do seu pai, tempo pra você, inclusive, tempo do Rio de Janeiro. Você queria tanto viajar, talvez seja a hora agora. Viajar, sair um pouco. Quem sabe até você passa, vai passar a aceitar um pouco melhor o seu pai. Né? Vai aceitar do jeitinho que eu sou, vai aceitar com as minhas manias, com as nossas diferenças, os meus defeitos. Quem sabe você depois que voltar vai passar a encarar o teu pai de uma outra maneira. Ham? Agora desce, desce. Vai trabalhar, vai ocupar a sua mente. Faz bem trabalhar, faz bem. Vai. Mais tarde nós conversamos (Cap. 137).

Miguel carrega a noção de que as pessoas não são iguais, mas que devem se respeitar

mutuamente. Nesse caso, a diferença é assumida como algo natural, aceitável e tolerável.

Ciça, nesse momento, se transforma num corpo a ser disciplinado. A viagem é uma forma de

castigo: excluí-la do seu convívio é discipliná-la a aceitar e a tolerar as diferenças.

Todavia, as identidades não são tão fixas, homogêneas, imutáveis e incontestáveis

como o discurso moderno pretende, pois as identidades vivem em fluxo e são constantemente

reelaboradas. Debruçar-me-ei, portanto, sobre as identidades em fluxo.

2.2 IDENTIDADES EM FLUXO

Apresentarei os fluxos de identidades e os movimentos de deslocamento dos corpos

femininos e masculinos.

Como já vimos anteriormente, um dos projetos do Iluminismo era formar um sujeito

composto de atributos emancipatórios, ou seja, o sujeito, através do uso da razão, alcançaria o

progresso e a evolução e, desta forma, a felicidade humana. Porém, apesar do progresso

material que temos, criado pela ciência e pela tecnologia, temos uma má qualidade de vida.

Contrariando a noção do sujeito iluminista, Alma, após o acidente que Edu sofre23,

chega à conclusão que o ser humano não possui o comando da sua vida como supunha ter e

23 Edu, após um longo período sem treinar saltos, monta e resolve saltar. Ao se distrair com a chegada de Helena, sofre um acidente. Edu é submetido a uma cirurgia bem sucedida, porém passa um bom tempo sem os movimentos dos braços e das pernas.

31

que somos constantemente pegos de surpresa por alguns acontecimentos que não podemos

prever ou evitar.

Quando acontece uma coisa assim, eu fico pensando na fragilidade do ser humano, na nossa precariedade. Nós levantamos todo dia da cama cheios de planos, muitas vezes cheios de empáfia, de orgulho, sem saber o que nos aguarda antes mesmo do café da manhã (Cap. 28).

As próprias metanarrativas24 não foram alcançadas, pois as promessas do Iluminismo

vêm se distanciando cada vez mais da sua concretização. É em nome da racionalidade

científica que o homem tornou-se mais egoísta e autoritário, se auto-destruindo. A ação

humana destrói a natureza e constrói bombas atômicas e armas nucleares, o que coloca em

risco a sua própria existência. Temos um mundo mais conturbado e à beira de um colapso, o

que coloca em questão a Razão Transcendental.

Para o discurso moderno, o homem seria libertado pelo conhecimento, pela ciência e

pela educação. Porém, segundo Veiga-Neto (1995, p. 09):

Atravessando tudo isso, está a sensação de que as instituições – tais como os vários aparelhos estatais, a pesquisa científica e a educação escolarizada – estão cada vez mais limitadas para dar soluções a médio e longo prazos para esses problemas.

A crise na escola moderna e na educação se localiza no não acompanhamento dos

fluxos de desejos e necessidades das pessoas envolvidas na educação.

A linguagem da escola moderna fala através do seu currículo, da sua metodologia, do

seu prédio, da sua organização em sala de aula, e, principalmente, a partir do discurso do

professor ou da professora e do livro didático. A linguagem da escola não é inocente,

desinteressada, possui intencionalidades explícitas e implícitas.

Um dos seus objetivos é formar e preparar o homem para a vida. Numa visão liberal,

preparar o homem para o mercado de trabalho, no qual, durante toda a sua vida, adquire

aptidões, competências, capacidades e habilidades. Desta forma, a escola molda o homem e a

mulher a partir de dispositivos de poder-saber.

A escola moderna vigia, pune e pretende controlar os gostos, os gestos, os

sentimentos, as vontades, os passos, os horários, o comportamento, ou seja, pretende controlar

a vida dos alunos e alunas.

Veiga-Neto (1995, p. 26) afirma que na escola há mecanismos de controle que operam

de forma sutil e contínua: 24As metanarrativas são as promessas do Iluminismo para um futuro mais próspero.

32

[...] No caso das disciplinas, são as determinações e delimitações dadas pela disposição dos saberes que constroem os critérios de verdade/falsidade e normalidades a que submetem os enunciados. Além disso, a organização institucional do conhecimento opera em todos os processos [...] no sentido de rarefazer e hierarquizar os locutores com direito a enunciar o discurso e dele usufruir.

Além de a escola moderna possuir esse lugar de autoridade, as oposições binárias são

uma marca do seu ensino. O nosso currículo está sempre reforçando e subjetivando as

diferenças e que devemos tolerá-las e respeitá-las.

Assim, a escola não alcança o grande objetivo do projeto Iluminista, o de formar

cidadãos livres e autônomos, pois vem cada vez mais aumentando as desigualdades e

exclusões, reforçando, portanto, as diferenças, apresentando-as como naturais e

incontestáveis.

A crise da escola moderna é apontada tanto por grupos intitulados de direita quanto

por grupos de esquerda. Os primeiros apontam que a escola não está preparando cidadãos

competentes para o mercado de trabalho. Já os segundos afirmam que a escola está cada vez

mais aumentando as desigualdades e legitimando as exclusões sociais e culturais. Portanto, a

escola se insere no contexto geral dessa crise.

Juntamente com uma crise globalizada, temos uma crise de identidade causada pela

sensação de desalento e insegurança, na qual as identidades passam a ser contestadas. Estas

são contestadas a partir do momento em que é verificado que as identidades não são estáticas

e imutáveis como se imaginava, assim como também é verificado que o homem não exerce

mais o papel central que o sujeito Iluminista exercia, pois as suas identidades passam a viver

em fluxo e são constantemente reelaboradas e reinventadas.

Alguns teóricos, como Kathryn Woodward (2000), falam de uma crise de identidade e

outros, como Stuart Hall (2001), falam de um sujeito pós-moderno, ambos movimentos

característicos das sociedades contemporâneas ou da modernidade tardia25.

Woodward (2000) trabalha com a noção de crise de identidade, na qual tem como

pressuposto que essa crise é ocasionada pelas mudanças constantes no cenário da

globalização, que ora produz novas identidades, baseadas nos deslocamentos; ora reforça

identidades locais e nacionais, sendo abaladas quando é constatado que as identidades vivem

em fluxo.

Essa autora aponta, ainda, três pontos para se pensar sobre as crises de identidade: a

história, as mudanças sociais e os novos movimentos sociais. 25 Nesta concepção, a modernidade tardia exprime um novo período histórico característico da sociedade globalizada.

33

A busca por uma verdade histórica ou um passado autêntico está na base da

legitimação das identidades nacionais e étnicas. Essa concepção nos remete a uma história

estática e com uma verdade cristalizada. Nesse sentido, a crise se localiza na perda de uma

identidade legítima, pois, a partir da interação entre o passado, geralmente glorioso, com o

presente modificado, vão se formando novas e fragmentadas identidades.

No cenário global e local têm-se mudanças em todos os âmbitos sociais, que vão de

mudanças econômicas e de mercado de trabalho a mudanças familiares e sexuais; o que

corresponde a novos posicionamentos das pessoas na sociedade e a uma nova relação com as

várias situações cambiantes. Para Woodword (2000, p. 29), a crise surge de um mundo difuso,

ou seja:

As crises globais de identidade têm a ver com aquilo que Ernest Laclau chamou de deslocamentos. As sociedades modernas, ele argumenta, não têm qualquer núcleo ou centro determinado que produza identidades, em vez disso, uma pluralidade de centros.

Nos novos movimentos sociais, o que se tem é uma política de identidade, ou seja, são

transpostas as barreiras entre o pessoal e o político. Os movimentos como o feminista, o

racial, o sexual, etc, a partir da década de 60, passaram a reivindicar mudanças sociais que

implicam mudanças culturais, a partir do âmbito local.

Os movimentos sociais se dividem em duas categorias. O primeiro grupo são

movimentos que se valem de certezas essenciais, como a biologia, afirmando que há um

apanhado de características que os definem enquanto tal. O segundo grupo são movimentos

que vão de encontro às concepções essencialistas, ou seja, não compreendem as identidades

como fixas e imutáveis.

Nesse caso, a crise se localiza no questionamento do sentimento e estrutura de

pertencimento a um grupo ou a uma única identidade. Se um sujeito possui várias identidades,

como ele pode pertencer a um único grupo? Um exemplo são as mulheres negras que

transitam, entre várias outras, entre a identidade racial e a identidade de gênero.

Focaliza Hall (2001) três tipos de sujeitos pertencentes à modernidade tardia: o Sujeito

Iluminista, já discutido anteriormente, o Sujeito Sociológico e o Sujeito Pós-moderno.

O Sujeito Sociológico26 se constitui como sujeito a partir da relação entre o seu

interior e seu exterior, ou seja, a partir da sua interação com a sociedade. Nessa concepção, o

sujeito não é mais autônomo e auto-suficiente, pois sua identidade só existe a partir do

26 Nesta visão, o sujeito não é visto como uma construção discursiva, mas como uma construção social.

34

diálogo com os mundos culturais, seguindo modelos de conduta que condizem com os seus

ideais e os ideais de conduta e de moral da sociedade.

Mas, essa noção de sujeito ainda possui um cunho essencialista27, pois, apesar de o

sujeito estar em transitoriedade a partir das experiências, das vivências e de outros modos de

ser, ele não perde a sua essência originária. Essas experiências, vivências e modos de ser se

incorporam a uma forma progressiva de identidade, ou seja, o diálogo com o exterior constitui

um eu real.

O Sujeito Pós-moderno se constitui como um corpo fragmentado, no qual o sujeito não

é mais único e centrado, pois a sua identidade vive em fluxo, sendo atravessada por várias

outras identidades. Desta forma, passa a possuir várias identidades, às vezes contraditórias,

pois os deslocamentos identitários são constantes.

Argumenta Hall (2001, p. 87) que essa mudança na concepção de sujeito e,

conseqüentemente, de identidade, foi ocasionada pelas rupturas, na modernidade tardia, dos

discursos do pensamento moderno.

Ela (a globalização) tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas.

Para o referido autor, os postulados do pensamento moderno passam por um

movimento de deslocamento, no qual o homem deixa de ser um sujeito centrado, universal e

essencial; sua identidade não é mais concebida como algo fixo e inato desde o nascimento,

quando as redes de significações, simbólicas e de identificação, passam a ter um papel

importante; a linguagem passa a ser entendida como um sistema que cria significados

mutáveis nos nossos sistemas culturais, não mais um sistema individual.

As identidades posicionais28 se inscrevem no momento em que o sujeito assume

diferentes posições de identidade de acordo com a necessidade do momento. A identidade

feminina carrega em si uma série de significações e papéis culturais e sociais a desempenhar.

Porém, essa mesma mulher no seu dia-a-dia apresenta uma identidade posicional no sentido

27 Pensamento que busca compreender o fundamento da realidade a partir de uma substância primeira, a essência. Segundo o essencialismo, a essência, seja individual ou coletiva, não se altera ao longo do tempo, permanece imutável e estática. 28 Eve Sedgwick (1993, p. 253, apud Louro, 2004, p.54, grifos de Louro) exemplifica muito bem as contradições das identidades e dos seus marcadores simbólicos: “O uso do nome de casada por uma mulher torna evidente, ao mesmo tempo, tanto sua subordinação como mulher quanto seu privilégio como uma presumida heterossexual”. Nesse sentido, o marcador simbólico – nome de casada – assume significados diferentes em dados momentos. Esses deslocamentos se inscrevem cotidianamente na vida das pessoas.

35

que pode ser mãe, profissional, amante, gostar de mulheres, filha, etc. Essas múltiplas

identidades serão vivenciadas de formas diferentes para cada momento.

O conceito de deslocamento é muito interessante para se pensar sobre as identidades

em fluxo ou fragmentadas, em parte proporcionadas pela abertura e inovações das tecnologias

da informação e comunicação, como a mídia televisiva e a Internet, ou as chamadas

ciberidentidades29.

Para Woodward (2000, p. 17-18), o processo-chave para essas identidades em fluxo ou

fragmentadas é o discurso da mídia, que se utiliza dos sistemas simbólicos e das redes de

significação para criar modelos a serem subjetivados e seguidos. Essa autora afirma:

A mídia nos diz como devemos ocupar uma posição-de-sujeito particular – o adolescente ‘esperto’, o trabalhador em ascensão ou a mãe sensível. Os anúncios só serão ‘eficazes’ no seu objetivo de nos vender coisas se tiverem apelo para os consumidores e se fornecerem imagens com as quais eles possam se identificar.

Douglas Kellner (2001, p. 303) também acredita que as identidades estão em

constantes mudanças, onde podemos observar modelos cambiantes ditados pela mídia. O

discurso da mídia, através de suas imagens, sons, enredos, histórias e narrativas, possui

ideologias e significados variados, exercendo a televisão um grande fascínio nos

telespectadores.

As pessoas assistem com regularidade a certos programas e eventos; há fãs das várias séries e estrelas com um grau incrível de informação e conhecimento sobre o objeto de sua fascinação; as pessoas realmente modelam comportamentos, estilos e atitudes pelas imagens da televisão[...].

Para esse autor, a televisão tem uma importância inegável na reestruturação das

identidades e exerce a função de um espelho de identificação. Isto ocorre devido à

proximidade das pessoas com esse objeto, criando as mesmas um vínculo afetivo com esse

meio de comunicação.

Apesar de a televisão apresentar-se como um meio de entretenimento, ela vai além

desse ofício, pois molda gostos, sentimentos e atitudes. Esse ofício de moldar não é encarado

pela televisão de uma forma inocente e despretensiosa. Programas e novelas são direcionados

a grupos específicos de sexo, de idade e de condição social na intenção de educar e adestrar os

29 Saliento que a ciberidentidade não é a identidade do mundo tecnológico, mas apenas mais uma possibilidade entre os vários fragmentos e deslocamentos.

36

corpos e as almas dos telespectadores, criando uma dinâmica de mundo. Logo, a sua

dimensão educativa se concentra no controle e na disciplina.

Para Deleuze (1992, p. 221-222):

Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como de um deformador universal.

A televisão, enquanto um modulador universal do mundo ocidental, nunca cessa de se

revestir de um discurso atraente. A atração que o discurso televisivo propaga tenta se

aproximar do sentimento de proximidade e de identificação das pessoas que estão do outro

lado da tela. A televisão é um mecanismo de controle contínuo, ou seja, os deslocamentos

circulam em prol da manutenção do controle.

No caso dos deslocamentos pensados a partir do mundo virtual, em especial a Internet,

temos as ciberidentidades, em que essas identidades são forjadas pela rapidez das mudanças

no ciberespaço30 e pela abertura que proporciona para as pessoas se posicionarem de

diferentes formas e, conseqüentemente, se posicionarem enquanto pessoas possuidoras de

múltiplas identidades.

No discurso das tecnologias da informação e comunicação, o ser é moldado a partir de

dispositivos técnicos, como os computadores e as telecomunicações, e passa a viver, pensar e

agir a partir da dinâmica do ciberespaço, que lhe proporciona um mundo de imagens, sons,

simulações e possibilidades para a construção de várias identidades.

As pessoas conectadas podem criar outras identidades para si na Internet. Nas salas de

bate-papo, pessoas de todas as idades – crianças, jovens, adultos e idosos – falam de si e de

atributos físicos que podem ser desejados como algo interessante. O adolescente que se sente

feio pode se transformar em um homem alto, moreno e sensual; a mulher madura pode criar

para si a identidade de uma jovem de seios fartos; meninas podem ser meninos e vice-versa;

etc.

Nas salas de bate-papo são criadas novas linguagens e dinâmicas. São ativados e

desativados namoros, amizades e são criadas comunidades em torno de interesses comuns,

como esporte, sexo31, música, baladas, etc.

30 Termo utilizado pela primeira vez em 1984 por William Gibson. Ciberespaço é definido como o espaço virtual, ou seja, o conjunto dos elementos contidos na rede e o resultado da interconexão dos computadores e dos seus usuários. 31 Percebo que este assunto é de interesse de grande parte dos usuários das salas de bate-papo.

37

Um dos grandes fenômenos da internet é o orkut32. Os seus membros criam redes de

amigos que se multiplicam a partir de convites de amizade. Cada participante pode deixar o

seu recado e ler os dos demais. O dono da conta pode colocar fotos e participar de várias

comunidades33. O espaço fica aberto para o relacionamento hipertextual.

Outro fenômeno são os blogs, que são diários que retratam o cotidiano do blogueiro ou

este aborda assuntos específicos ou variados, que quebram com a dimensão do privado e de

intimidade que os convencionais diários possuíam, pois os blogs são abertos a quem quiser

visitá-los e com possibilidade de envio de comentários. Segundo Marthe (2005, p. 88):

Os blogs levam as últimas conseqüências dois princípios da Internet. Um deles é a interatividade. Cada texto postado num blog vem acompanhado de uma janela para que os leitores façam comentários, o que torna essas páginas espaço de debate por excelência. O outro é a formação de comunidades que vão se ampliando e se sobrepondo.

O orkut e os blogs são locais de circulação de subjetividades e identidades, pois as

pessoas se relacionam diretamente, eliminando as barreiras de espaço. Pessoas do mundo

inteiro se relacionam através do hipertexto e se apresentam enquanto consumidores das

tecnologias de informação e comunicação, tendo a liberdade de criar para si várias

identidades.

Depois de pensar um pouco sobre a construção das identidades, no próximo capítulo

ater-me-ei mais especificamente à identidade feminina, tentando compreender como os

discursos pretendem prender as identidades femininas, assim como as demais, a lugares fixos

e homogêneos.

32 Orkut é uma rede de interatividade na internet que interliga pessoas de distantes localidades e em blocos de amizade. No geral, já se conhecem as pessoas que são seus amigos dessa rede, mas também pode fazer amigos virtuais. Essa rede possui restrições impostas pelo dono da conta, como excluir pessoas ou negar convites de amizade. Mas, em contraponto, qualquer pessoa que possui uma conta no orkut pode ver o seu perfil, seu álbum de fotos, suas comunidades e seus recados recebidos ou enviados, pois nessa página o diálogo é aberto. Recentemente o Ministério Público vem tentando excluir o orkut da internet, por alegar que nessa rede há comunidades que veiculam conteúdos de pedofilia e que o seu trabalho vem sendo prejudicado pelo seu gerenciador, o Google, que não fornece informações dos autores. 33 As comunidades têm uma variedade enorme no seu tema e conteúdo, vão da cultura ao entretenimento, lazer, culinária, política, racismo, futilidades, moda, relacionamento amoroso ou sexual, etc.

38

3 IDENTIDADE FEMININA: CRIA DO DISCURSO CIENTÍFICO

Eu espero que você não se arrependa do que você tá fazendo. Uma mulher pode significar a salvação ou perdição, dependendo de você escolher a que é certa pra uma coisa ou pra outra. E você tá escolhendo a que acaba com a vida de um homem (Alma, cap. 5).

Discutirei como a identidade feminina foi construída. Pensarei como o discurso

moderno construiu a identidade feminina como o lugar da inferioridade, fragilidade,

submissão e emoção em contraponto com a identidade masculina, como o lugar da

superioridade, força, independência e razão.

A construção da identidade feminina está intimamente ligada ao nascimento do sujeito

iluminista, pois a mulher era compreendida como o inverso da identidade masculina. Sendo

assim, o sujeito iluminista é antes de tudo masculino, pois o discurso moderno só dá conta da

formação do sujeito enquanto homem, excluindo a mulher desse ideal de sujeito, mas

construindo outros modelos de identidade a serem subjetivados por esta a partir dos seus

valores e pretensões.

De que forma, portanto, o discurso da ciência construiu a identidade feminina?

A partir do século XIX, momento de organização do pensamento ocidental e

fragmentação dos saberes, o discurso científico foi construindo, através da linearidade, a

história da humanidade. Colocando à experiência e à prova as descobertas ocorridas,

elaboraram a história de seus antepassados, nomeando e classificando o primeiro período

histórico de pré-história e seus antepassados de hominídeos, no qual estudavam a evolução

humana ao longo do tempo. Os termos hominídeo, humano e humanidade derivam do

significante homem, que passou a designar homens e mulheres, ou seja, passou a designar a

espécie humana, homogeneizando os lugares que deveriam ser diferentes.

Essa construção apresenta-se como natural e não como uma elaboração discursiva

localizada no século XIX. Essa generalização aponta, nessa relação binária, a superioridade

masculina em detrimento à inferioridade feminina. A partir das experiências cotidianas, essa

generalização foi se naturalizando e sacralizando-se como verdadeira e incontestável, pois o

próprio discurso já havia criado um lugar hierárquico para essa construção. Portanto, definiu-

se quem possui o poder e quem deve obedecer.

39

Baseada na concepção de que os discursos possuem intencionalidades, Costa (2001, p.

33) aponta:

[...] Quando se descrevem, explicam, desenham ou contam coisas, quando variadas contextualidades falam sobre pessoas, lugares ou práticas, estes estão sendo inventados conforme a lógica, o léxico e a semântica vigentes no domínio que produz o discurso.

Desta forma, foi a partir da linguagem que a mulher foi nomeada e classificada como

diferente. O discurso da ciência elaborou e elabora várias imagens de mulher, distintas das do

homem, a partir das diferenças biológicas, e acredita numa diferença de racionalidade, de

sentimentos, de moral, de sabedoria e de desejos perante as distinções sexuais.

O discurso de ser masculino34, em uma relação alteritária, pontuou e pontua o que o

seu outro tem de diferente, a fim de naturalizar seu lugar de superioridade em contraponto ao

lugar de ser mulher como inferior, frágil, submissa e, sobretudo, mais emocional que racional.

Nessa perspectiva, instaurou-se uma relação de poder35 tanto do ponto de vista discursivo

quanto cultural.

Observo que as identidades, seja qual for o binarismo, são construções discursivas que

denotam uma relação de poder entre o eu e o outro, que não pode ser dissociada da política de

verdade. Sendo assim, Foucault (2005, p. 179-180) afirma:

[...] em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que não podem se dissociar, se estabelecer sem uma produção, uma circulação e um funcionamento do discurso. Não há possibilidade de exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcione dentro e a partir desta dupla exigência. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercê-lo através da produção da verdade.

A partir das verdades científicas e sacralizadas, foram e são criadas estratégias de

regulação e de contenção da alteridade na tentativa de enquadrar esses outros às identidades

fixas, homogêneas, ontológicas, imutáveis, etc, pois o outro, seja a mulher, o negro, o

homossexual, o drogado, o idoso, o índio, o pobre, o marginal, o aleijado, etc., é sempre visto

como o que causa a perturbação, o que foge à regra do normal.

Pensando no poder do discurso e nas formas de adequação às identidades, discutirei

como os discursos mitológico e religioso construíram a identidade feminina baseada na

34 Estou me referindo ao que Michel Foucault chama de História dos Saberes. 35 Estou trabalhando com a noção de poder na perspectiva genealógica de Michel Foucault, na qual este analisa o poder e como ele atua no campo da moral, da política, do conhecimento, do desejo, etc.

40

contradição entre o bem e o mal; como o discurso moderno construiu a identidade feminina

baseada na fragilidade e inferioridade e como esses discursos circulam na sociedade.

3.1 DOS DISCURSOS RELIGIOSOS À CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE

FEMININA NORMAL

Para se pensar na construção da identidade feminina, é necessário atentar para vários

discursos que ora se entrecruzam e ora se distanciam. O fato de as mulheres serem vista, ao

longo da história, como seres de cabelos longos e idéias curtas36, um ser incompleto e

mutilado37, um ser de mente e alma confusas, incompreensível e inconstante38, etc., não

significa que assim sejam por natureza ou por essência.

Essas colocações não são dados da natureza e nem devem ser vistas como algo posto

do nada. Ao longo da nossa história, os discursos moldaram um corpo a ser vigiado e

disciplinado, pois o feminino, nessa trajetória, sempre simbolizou o medo e a perturbação.

Para o discurso mitológico, a perturbação vinda de uma figura feminina é

personificada por Pandora e, para o discurso religioso, essa figura é personificada por Eva.

Ambas simbolizam a desobediência, a curiosidade, a sedução, a fraqueza por terem caído em

tentação, etc.

Fundamentado no mito da criação do mal no mundo grego, Pandora se inscreve como

uma identidade reveladora da negatividade, pois foi criada por Zeus39 como um castigo a

Prometeu40 e aos homens.

Depois que Prometeu desafiou Zeus, dando-lhe os ossos cobertos de gordura do

sacrifício de animais, o ser humano foi privado do fogo, que simboliza a sabedoria. Porém,

Prometeu mais uma vez engana Zeus e rouba o fogo sagrado para o homem. Como forma de

castigo, Zeus cria a mulher, símbolo do mal. Segundo Hesíodo, no século VIII a.C. (apud

LAURIOLA, 2005):

36 Frase do filósofo alemão Arthur Schopenhauer. 37 Idéia do século XVIII, que afirmava que a mulher é um homem invertido. Porém, inferior anatomicamente. 38 Idéia que circula nas subjetividades e discursos, principalmente, masculinos. 39 Divindade suprema do Olimpo, era conhecida como o deus dos deuses e dos homens. 40 Titã que simbolizava a humanidade e a sua vontade por conhecimento. A palavra Prometeu significa em grego “previdente” ou “prudência”, mas também possui um sentido de enganador, embusteiro.

41

Ele [Zeus] fez este lindo mal para equilibrar o bem, Então ele a levou aos outros deuses e aos homens ... eles ficaram boquiabertos, deuses imortais e homens mortais, quando eles viram A arte de seduzir, irresistível aos homens. Da sua raça vem a raça das mulheres fêmeas, Esta raça mortífica e população de mulheres, Uma grande infestação entre os homens mortais, Que vivia com riqueza e sem pobreza. Acontece o mesmo com as abelhas nas suas colméias Alimentando os zangões, conspiradores maus. As abelhas trabalham todo dia até o pôr do sol, Ocupadas o dia inteiro fazendo pálidos favos, Enquanto os zangões ficam dentro [da colméia] nos favos vazios, Enchendo o estômago com o trabalho dos outros. Foi assim como Zeus, o alto senhor do trovão, Fez as mulheres como uma maldição para os homens mortais, Conspiradoras do mal. E ele juntou outro mal Para contrabalançar o bem. Qualquer um que escape ao casamento E à maldade das mulheres, chega à velhice Sem um filho que o mantenha. Ele não precisa de nada Enquanto viver, mas quando ele morre, parentes distantes Dividem seus bens. Por outro lado, quem se casa Como é mandado, e tem uma boa esposa, compatível, Tem uma vida equilibrada entre o mal e o bem, Uma luta constante. Mas se ele se casa com uma mulher abusiva Ele vive com dores no seu coração o tempo todo, Dores no espírito e na mente, o mal incurável.

Porém, o advento do mal no mundo grego não se dá apenas com a criação de Pandora,

mas também com a sua atitude de abrir a caixa ou jarra que carregava todos os males do

mundo. Pandora, num ato de curiosidade, abre a caixa e deixa sair todas as desgraças que

vieram abater o homem: a doença, o trabalho, o sofrimento, o egoísmo, etc. Ao perceber que

cometera um erro, Pandora fecha a caixa, mas o que resta é a esperança.

O discurso mitológico inscreveu no corpo da que possui todos os dons a contradição.

Ao mesmo tempo que é portadora do mal inevitável, ela conserva na sua caixa a esperança.

Até hoje circula nas nossas subjetividades, principalmente masculina, a alma feminina como o

desconhecido, pois carrega em si o inesperado e o contraditório.

Na tradição judaico-cristã, temos a imagem de Eva, que já denota um sentido de

inferioridade no momento da sua criação, pois foi criada da costela de Adão. Assim, não

representaria a imagem divina como Adão, mas sim a semelhança divina. Eva surgiu no

mundo para ser a companheira de Adão, porém se revelou como o mal pela sua

desobediência, curiosidade e ao se entregar às tentações.

A simbologia do ato de comer o fruto proibido não se apresentou apenas como mera

curiosidade, mas como uma vontade de saber. Ao comer o fruto proibido, o mundo do bem e

42

do mal se abriria e a mulher e o homem se tornariam deuses e conhecedores de tudo. Ao se ter

o saber, se conquistaria o poder. Na Bíblia (Gênesis, 3: 1-7), veremos:

A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha formado. Ela disse a mulher: ‘É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore do jardim?’ A mulher respondeu-lhe: ‘Podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Vós não comereis dele, nem o tocareis, para que não morrais’. ‘Oh, não! – tornou a serpente – vós não morrereis!’ ‘Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal’. A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. Então os seus olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira, ligaram-nas e fizeram cinturas para si.

Entre dois paralelos, a imagem de Eva foi construída. O de que a mulher foi fraca,

desobediente e propensa ao erro, por sucumbir à tentação personificada pela serpente; e o de

que Eva foi ardilosa, sedutora e persuasiva ao convencer Adão a comer o fruto proibido e,

conseqüentemente, introduzi-lo no pecado. Nessas duas concepções, Eva foi a culpada pela

perda do paraíso.

Nesse sentido, o discurso religioso afirma que a alma feminina possui caminhos

desconhecidos e perigosos, sendo de natureza essencialmente imperfeita, por derivar de Adão

e por ser pecaminosa. O mau uso que Eva faz do seu livre arbítrio ou liberdade de escolha é o

caminho para o seu aprisionamento, ou seja, surge a noção de que os corpos e almas

femininos devem ser encaminhados e disciplinados.

Em adequação à concepção de que a mulher possui uma essência maléfica, Sílvia,

após desconfiar que Pedro está tendo um caso com Íris e se separar, vai à casa de Alma para

se vingar. Não vai apenas denunciar o suposto caso que está ocorrendo no haras de Alma, mas

põe em xeque o próprio caráter e a honestidade de Pedro.

Sílvia: Ele não é a pessoa que você imagina. Alma: Como assim? Sílvia: Você sempre confiou muito nele, inclusive pra pagamentos. Alma: Claro! É claro que sim! Sílvia: Eu tenho dúvidas sobre a honestidade dele. O Pedro tem sempre mais dinheiro do que possa parecer, fala muito em comprar uma fazenda. O que com o salário dele isso não seria possível. E também... Alma: Peraí, peraí, peraí, peraí, Sílvia. Eu não tenho nenhuma razão pra duvidar da honestidade do Pedro. Você está levantando suspeitas graves e sem nenhum fundamento. [...]

43

Sílvia: Eu sei que eu tô fazendo o papel da mulher que foi abandonada e que quer se vingar, mas não é nada disso. Inclusive não foi ele que saiu de casa. Eu o botei pra fora e mandei trocar a fechadura pra ele não ter a petulância de querer entrar. Alma: Tudo bem, tudo bem. Isso é problema de vocês. Vocês resolvem como vocês quiserem. Quanto ao caso da menina, eu vou averiguar, eu vou saber o que tá acontecendo. Mas pára por aí, Sílvia. Porque levantar suspeitas sobre a honestidade dele me parece, me parece realmente um ato de vingança e eu não quero participar disso. Nem como ouvinte (Cap, 38).

Sílvia, mesmo sendo considerada uma mulher doméstica, apresenta-se como uma

mulher capaz de se vingar, usando da mentira, por sua essência traiçoeira e maléfica. Nesse

sentido, a mulher é o mal e o perigo a serem domados, pois carrega o estigma e a culpa do

pecado original.

Desta forma, a mulher deveria se aproximar da imagem de Maria, mãe de Jesus Cristo,

ideal de mulher, a que dedica e abdica da vida em nome do seu filho. Em contraponto, deveria

se afastar da imagem de Eva, a mulher sedutora e pecaminosa, que se entregou às tentações,

causando todo o mal da humanidade.

A partir dos séculos XI e XII, o mundo ocidental se depara com um novo culto, o culto

a Maria, a Nova Eva. Foi nesse período que houve a sua popularização a partir de sermões,

poemas e, principalmente, narrativas de milagres. Esse tipo de narrativa é de cunho

essencialmente moralizante, ou seja, cada narrativa apresentava a quebra da normalidade e,

posteriormente, caminhos a serem seguidos. Nessa literatura, Maria é representada como uma

bela donzela e como a portadora das bênçãos divinas e dos milagres.

Maria, enquanto o oposto de Eva, surge como o símbolo da obediência e da redenção

da humanidade. Apesar de imagem singularizada, Maria representava tudo o que uma mulher

deveria seguir: amor, obediência incondicional, fé, abdicação, pureza, castidade, etc. Entre a

santa e a satânica, a vida da mulher deveria ser uma guerra constante contra o mal e o pecado,

ou seja, deveria se afastar da imagem da despudorada e maléfica Eva.

Helena, como símbolo de mãe perfeita, abdica do seu amor em prol da filha. No dia do

noivado de Camila, Helena deixa bem claro a Alma que abriu mão de Edu por Camila, não

por ter compreendido que não dariam certo.

Alma: Eu fico feliz que você tenha superado tudo que você sentia pelo Edu e que tenha compreendido os meus propósitos e todas as palavras que eu disse pra separar vocês dois. Helena: Eu não compreendi as suas palavras. Eu só aceitei o que você disse porque percebi que a minha filha tava muito envolvida com o Edu. Já ele não tanto com ela. [...] Alma: Você é uma mulher forte. Helena: Eu sou uma mulher apaixonada. Pelos meus filhos em primeiro lugar, os outros vêm depois, inclusive os homens que eu amei. Eu nunca coloquei ninguém na

44

frente do Fred e da Camila. Sei que muita gente acha errado renunciar à própria felicidade pela felicidade dos filhos. Mas que felicidade pode haver quando os filhos são infelizes? Eu me pergunto ‘que mãe pode rir quando um filho chora? Que mãe pode ir a uma festa quando um filho tá doente, com febre? Que mãe vê o filho chegando da escola chorando e não vai pôr em pratos limpos o que aconteceu com a professora? Que mãe come quando o filho sente fome?’. Nenhuma que eu conheço. Até as cobras são boas mães. Alma: Quer dizer que você renunciou ao Edu por causa da Camila e não porque você compreendeu que esse romance não ia dar certo? Helena: E por que não daria certo? (Cap. 81).

Nesse sentido, Helena se assemelha a Maria, ou seja, possui uma identidade baseada

na normalidade. É uma mãe ideal, a que ama acima de tudo e de todos, os filhos.

Na Idade Média, as identidades femininas anormais são as que fogem do ideal de

mulher, ou seja, as bruxas, as feiticeiras, as concubinas, as guerreiras, as mundanas, etc. Essas

são sempre a representação do mal, as que estão mais próximas à imagem de Eva, ou seja, as

que causam o medo e a perturbação; sendo assim, as que devem ser domadas e controladas.

Segundo o discurso religioso, que pretende apresentar uma realidade maniqueísta,

essas mulheres carregam em si uma essência traiçoeira, mesquinha, maléfica, etc. Elas são as

portadoras do caos. Esse discurso pretende resgatar a normalidade destas, indicando caminhos

como a virgindade antes do casamento, o casamento e a maternidade.

Para Engel (2002, p. 332), falando já do século XIX e do discurso científico, mas que

também se encaixa na realidade discursada e construída pelo discurso religioso:

A mulher transformava-se num ser moral e socialmente perigoso, devendo ser submetida a um conjunto de medidas normatizadoras extremamente rígidas que assegurassem o cumprimento do seu papel social de esposa e mãe; o que garantiria a vitória do bem sobre o mal, de Maria sobre Eva.

Na Idade Média, a mulher era vista como o mal sob o ponto de vista da religião. Sendo

assim, mesmo o discurso religioso tendo construído a identidade feminina pautada na

negatividade e na inferioridade, o discurso científico é mais pesado, aprisionante e

determinante, pois, na Idade Moderna, a mulher passa a ser vista como inferior e passível de

submissão sob o ponto de vista da ciência, pois, nessa perspectiva, a mulher não possuía, entre

várias outras características desqualificantes, uma racionalidade igualável à do homem.

45

3.2 DOS DISCURSOS CIENTÍFICOS À CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE

FEMININA NORMAL

Discutirei como o discurso científico construiu a identidade feminina como o lugar da

inferioridade e da submissão sob o ponto de vista da ciência.

Para o discurso científico, o outro é a representação do exterior do eu, ou seja, aquele

que está fora da identidade normal, que não pertence ao ideal de sujeito. Sendo assim, este,

estando fora da normalidade, comprometeria as metanarrativas.

As metanarrativas só seriam possíveis de serem alcançadas com o uso da razão. Na

relação binária entre homem e mulher, esta era considerada, pelo discurso científico, o outro

da razão masculina, na qual precisava ser enquadrada a certos modelos de identidades, para

que fosse aplacada a angústia da diferença. Desta forma, seria mantida a ordem social, no qual

a mulher não atrapalharia mais o ideal de civilização criado para o sujeito moderno, pois o

perigo e a inconstância de um sujeito emocional estaria controlado.

Numa visão antropológica, a mulher estaria mais próxima da natureza, dos instintos e

dos desejos, enquanto o homem da cultura, da razão e da ciência. Além da diferença ser

marcada por uma diferença cultural, ela também é marcada pelo corpo, ou seja, a partir de

verdades biológicas.

Na perspectiva biológica, o corpo estabelece fronteiras e diz quem somos. Uma marca

de diferenciação, definida pelo discurso que se pauta nas diferenças biológicas, entre homens

e mulheres é a maternidade, posto só a mulher ser capaz de gerar uma criança no ventre.

Afirma Louro (2004, p.20-21, grifos da autora):

O argumento de que homens e mulheres são biologicamente distintos e que a relação entre ambos decorre dessa distinção, que é complementar e na qual cada um deve desempenhar um papel determinado secularmente, acaba por ter o caráter de argumento final, irrecorrível. Seja no âmbito do senso comum, seja revestido por uma linguagem ‘científica’, a distinção biológica, ou melhor, a distinção sexual, serve para compreender – e justificar – a desigualdade social.

A marca de diferenciação entre homens e mulheres diz quem somos e qual o nosso

lugar na sociedade e na nossa cultura. Nessa perspectiva, a maternidade possui a função

resgatar uma verdadeira essência feminina ligada aos ideais de normalidade de e em

conformação com a sua função de mulher. A maternidade é o momento auge de afirmação da

identidade feminina.

46

Camila, no diálogo com Edu embriagado, apresenta-nos a concepção de que a

maternidade, assim como a paternidade, é algo natural e inerente ao ser humano como uma

função ou regra da própria condição feminina. Fica subentendido que ser mulher é ser mãe.

Edu “Se eu cair nessa piscina, eu fico bom na hora”. Camila “Nada de idéias suicidas, Edu”. Edu “Por que que vocês, mulheres desde criança, têm instinto maternal, hein?” Camila “Acho que é porque desde cedo sabemos que vamos ser mães”. Edu “Mães. Mas a minha tia nunca foi mãe, sabe que não pode ser, mas tem instinto maternal”. Camila “Coisa de mulher, Edu. Vocês, homens, também têm instinto paternal”. Edu “Tá me gozando, é?” (Cap. 47).

Não é à toa que as novelas e os variados programas que circulam na televisão

exploram tanto essa temática. São sempre temas que abordam o amor entre mães e filhos, o

que uma mulher é capaz de fazer em nome do amor pelos filhos, as privações que uma mãe

passa para dar uma vida melhor aos filhos, etc. Em contraponto a esses temas que estão em

adequação a uma identidade normal, circulam temas que falam de mães que abandonam ou

desprezam os filhos, mães que tratam mal os filhos, mães que não se preocupam com o futuro

dos filhos, etc.

As imagens representativas de adequação a uma identidade normal não nos chamam

tanto a atenção quanto as imagens de mães desregradas, pois as mães normais apenas estão

cumprindo com o seu papel social e cultural padronizado. As mães desregradas sempre nos

incomodam, pois vão de encontro a todas as imagens cristalizadas de que a mãe simboliza o

amor, a doação, a entrega, o sacrifício e a dor do parto à criação, etc.

Porém, a maternidade não deve ser concretizada a qualquer momento na vida de uma

mulher. Outro princípio de adequação à identidade feminina é o casamento. A mulher para

concretizar a maternidade precisa ser casada. Assim, Pascoal e Ema, pais de Capitu,

sintetizam a importância da maternidade para uma mulher e a condição para ela engravidar.

Pascoal: Gravidez é uma bênção na vida de uma mulher. Ema: Se for casada, é uma bênção; se for solteira, é um sacrilégio (Cap. 88).

Na cultura ocidental, as conformações de maternidade, virgindade e casamento ainda

são muito fortes e circulam nos discursos em geral, ou seja, da Igreja, da mídia, da escola, da

família, etc. As meninas ainda são criadas de forma distinta dos meninos. Aos homens são

reservados os prazeres carnais desde a adolescência. Não é de se estranhar ver pais

47

incentivando a iniciação sexual dos meninos desde cedo. Às meninas estão reservados o bom

recato e a discrição.

Na nossa sociedade, a virgindade feminina é vista como um bem. Cuidado para não

perder o seu valor; Pense bem se você está perdendo a virgindade com a pessoa certa; Será

que esse é o momento certo?; a primeira vez tem que ser com o homem que verdadeiramente

se ama; Quando se perde a virgindade, perde-se a inocência, etc. Essas são algumas

chamadas, entre várias outras, que levam meninas a ter medo de cometer erros.

Além do medo de se cometer um erro, tem-se o medo da gravidez indesejada, das

doenças sexualmente transmissíveis, do abandono pelo namorado e da velha culpa cristã. Será

que estou pecando?; Se meus pais descobrirem, será uma grande decepção para eles, etc.

Mesmo com a transformação do ritmo da vida, temos várias Emas que circulam na nossa casa,

na casa de uma amiga, na esquina, no supermercado, no shopping, na escola ou faculdade, etc.

Nos desejos de Ema habitava o sonho de ver Capitu entrando na Igreja com um

vestido de noiva feito pelas suas mãos. Viu o seu sonho desmoronar quando Capitu, solteira,

engravidou. Porém, Pascoal acha que ainda está em tempo, pois Capitu é jovem e ainda tem

muito o que viver. Ema afirma que não aceita: “Com filho no colo? Ah, não! Nessas coisas eu

não me importo ser chamada de antiquada. Mas eu acho que de noiva, de branco com véu e

grinalda, só virgem” (Cap. 2).

Nesse sentido, Capitu foi de encontro aos padrões de normalidade para uma mulher.

Capitu deixou de ser virgem antes de casar, foi mãe solteira e abandonada pelo pai do seu

filho, Maurinho e, de quebra, ainda era garota de programa.

Com base numa imagem reveladora de identidades normais e anormais, permeia nas

nossas subjetividades a concepção de que o ideal de mulher está sustentado no tripé – mãe,

esposa e dona de casa –, ao qual Capitu não se adequou. Essa construção é baseada na

concepção de a mulher estar mais próxima da natureza e que a sua função social caminha

naturalmente, ou seja, a mulher nasce para exercer o seu papel principal na sociedade: a

mulher-família.

Por mais que o ritmo de vida esteja mudado, nunca nos acostumamos com imagens de

mulheres que não possuem zelo pelos filhos e filhas, marido e casa. O fato de possuir uma

jornada diária de oito horas ou mais fora de casa, não a libera da jornada doméstica. A mulher

tem que dar conta do seu trabalho, dos afazeres da casa, das atividades colegiais do filho ou

da filha e, no fim da noite, se apresentar como uma boa amante.

O novo ritmo de vida borra as margens da distinção entre o espaço público e o espaço

privado. A concepção de que está reservado à mulher o lar e a família e ao homem, a rua e

48

todas as suas instâncias, como a social, a política e a econômica, remonta a noção de que o

sexo define os nossos lugares na sociedade e demarca territórios de exclusão.

No início do século XX, mesmo com a abertura das portas do espaço público à

mulher, havia, como hoje ainda há, códigos de conduta que determinavam e distinguiam

mulheres que iam à rua e mulheres da rua.

Desta forma, as identidades também se inscrevem nas significações simbólicas a partir

das subjetividades, como também nas práticas sociais e culturais. Os pensadores nomeados de

modernos se delimitam no saber científico para justificar as diferenças e legitimar as

desigualdades e exclusões entres os sexos. Para o discurso masculino, a mulher não é apenas

diferente, mas também desigual. São diferentes física e psicologicamente e desiguais social e

culturalmente.

Mesmo a mulher já tendo há algum tempo alcançado o mercado de trabalho, ainda há

empregos que são marcados pela distinção sexual, ou seja, há empregos que são apenas para

homens e outros apenas para mulheres. Não existe mais um discurso que fale sobre uma

suposta incapacidade feminina em assumir altos cargos, mas um discurso que afirma que há

problemas em contratar uma mulher, a mulher tem cólica, a mulher engravida, o filho adoece,

etc. Sendo assim, o seu acesso ainda é difícil e os salários em empresas privadas, são mais

baixos.

Cíntia é uma ótima veterinária, mas tem que provar que é competente, pois, na

concepção de Pedro, cuidar de cavalos é trabalho de homem e não de mulher.

Alma: O Alex já trouxe o substituto pras férias dele? Pedro: Ficou de trazer depois das festas, agora no comecinho do ano. E é uma substituta: mulher, sócia dele. Eu num gostei muito não. Nesses assuntos aqui, eu prefiro lidar com homem. Fico mais à vontade. Alma: Huuummmm. Nesses assuntos, é? Ah,ah,ah,ah. Qual é o assunto que você prefere tratar com mulher, Pedro? Pedro: Oh. Alma: Não precisa falar que eu já imagino qual seja. Ah, você é machista, né? Você num percebeu que as mulheres já tomaram conta do mundo? Até aqui, no haras, as éguas se destacam dos cavalos (Cap. 3).

Durante a novela, Cíntia prova a Pedro que tem competência profissional. Assim, é

legitimado o discurso da modernidade sobre a mulher. Esse discurso nos apresenta um ritmo

de progresso e evolução, ou seja, a mulher conquistou o mercado de trabalho, a mulher

conseguiu votar e, até mesmo, ser representante do povo; a mulher ganhou espaços do

homem, a mulher conquistou o espaço público e, assim, sucessivamente.

49

Esse discurso também reforça a existência de um mundo dualístico, no qual existem

lugares destinados aos seres humanos. O homem, como representante do sexo forte, tem

inteligência, é superior, pode entrar e sair, nada lhe pega e já conquistou o seu lugar; a

mulher, como representante do sexo frágil, vem conquistando aos poucos seu lugar na relação

com o marido, com os filhos, no mercado de trabalho, na política, etc.

Temas polêmicos como traição carregam em si o estigma de quem pode e quem

perdoa. Nesse sentido, a mulher, enquanto submissa e inferior, finge que não sabe de uma

traição e até perdoa. Já o homem, enquanto superior e provedor, não aceita uma traição.

Mexendo com os seus brios de homem macho, é capaz até de matar. Até a década de 70, era

muito comum a absolvição de homens que alegavam ter matado a esposa em legítima defesa

da honra.

No diálogo a seguir, percebemos o peso da traição para os pares opostos

homem/mulher, mostrando que na nossa cultura há lugares reservados para os

relacionamentos e sentimentos.

Alma: Eu acho traição um ato vil e imperdoável. Danilo: Depende, depende. Há traições e traições. [...] Glória: Danilo, não considerar sexo traição é uma tremenda bandeira. Danilo: Eu não considero mesmo. Ué! Fazer o quê? Não considero. Pelo menos não com esse peso todo que principalmente as mulheres dão. Alma: Ah, as mulheres não, não, não. Os homens! Num é? As mulheres têm muito mais capacidade de perdoar um pulinho de cerca do marido. Mas os homens, ah, me aponta um, fala, um só que tenha a capacidade de fingir que não aconteceu nada, de aceitar de bom grado (Cap. 40).

As identidades distintas de ser homem e de ser mulher são observadas nas nossas

práticas culturais excludentes de diferenciações de territórios e papéis a serem desempenhados

por nós desde a infância, ou seja, subjetivamos a diferença desde o nascimento, primeiro pelo

nome que recebemos, masculino ou feminino, depois pela cultura de vestir meninas de rosa e

meninos de azul e pelas diferentes formas de brincar, onde as meninas são estimuladas a

brincam de boneca e de casinha e os meninos, de bola e de carrinho.

É reforçado o discurso que esteja reservado à mulher o privado e, ao homem, o

público. O menino pode brincar na rua e desde cedo lhe é ensinado a comandar, ou seja,

dirigir carros, ter força física em brincadeiras de luta, etc. Nas brincadeiras infantis, as

meninas são ensinadas a serem mães e donas de casa; as suas bonecas, como bebês, precisam

comer, dormir, tomar banho, se vestir e morar numa casa organizada. A pequena mamãe

aprende desde cedo as suas obrigações.

50

Essas e várias práticas culturais reforçam o discurso da superioridade masculina, no

qual o poder de ser homem é visto em todas as dimensões da vida, seja de uma forma mais

explícita, seja de uma forma mais implícita, como o caso do racismo no Brasil, que se

configura como um travestismo discursivo41 e é camuflado através do discurso da tolerância42.

A partir desse discurso, o negro não passa a ser visto como um igual, mas como alguém a ser

respeitado. Porém, esse discurso de que devemos respeitar o outro apenas reforça as

diferenças.

Em relação à mulher, na atualidade, temos um discurso que vem sendo reelaborado no

sentido de quebrar com o estigma de que lugar de mulher é em casa. Porém, as desigualdades

e exclusões não foram quebradas por completo, pois ainda temos muitas práticas culturais que

reforçam a identidade feminina baseada na negatividade.

Sendo o masculino o lado positivo da relação binária homem/mulher, serve de

parâmetro de comparação. Severino, tratador de cavalos do haras de Alma, sempre se admira

como Íris e Cíntia montam bem cavalo e acha que elas montam como homens. Nas

subjetividades de Severino, o homem monta cavalo melhor que a mulher. Sendo assim, Íris e

Cíntia são mulheres admiráveis por se igualarem, nesse sentido, ao homem. Já Cíntia

desconfia dessa certeza e pergunta a Severino quem lhe disse isso.

Essas e várias outras subjetividades, produzidas pelo discurso masculino, são

reforçadas pelo discurso da escola, da mídia, da família, da Igreja, da justiça, etc. Esses

discursos nos apresentam imagens preconceituosas da mulher, reforçando a imagem de que

sejam inferiores, frágeis, submissas, etc, assim como reforçam as identidades de negro, de

índio, de homossexual, de pobre, de deficiente, de prostituta, de travesti, como inferiores.

O binarismo entre homens e mulheres é fortemente impregnado na sociedade

ocidental. Sair do roteiro identitário é adentrar no perigo. Louro (2004, p. 48, grifos da autora)

afirma:

[...] a concepção fortemente polarizada dos gêneros esconde a pluralidade existente em cada um dos pólos. Assim, aqueles homens que se afastam da forma de masculinidade hegemônica são considerados diferentes, são representados como o outro e, usualmente, experimentam práticas de discriminação ou subordinação.

41 Este conceito é utilizado por Duschatzy e Skliar (2001, p. 119) para designar um discurso social que se reveste de novas palavras e se disfarça com véus democráticos. Segundo este, o ‘travestismo discursivo’ é uma marca da atualidade. 42 O discurso da tolerância não tem como objetivo desnaturalizar o lugar do outro como diferente, mas amenizar a alteridade.

51

Esta colocação me faz lembrar que as identidades são posicionais e que o poder é

exercido de forma pulverizada, ou seja, o poder é vivenciado nas várias instâncias sociais e

entre os vários sujeitos que circulam. Esse poder não se dá apenas de cima para baixo, mas em

todas as suas camadas.

Portanto, as identidades, sejam de mulher ou de homem, têm como pressuposto outros

discursos, como o discurso da diferença de raça, da diferença de idade, da diferença de

sexualidade, da diferença de religião, etc.

Lloret (1998, p. 19) fala que a idade determina as imagens recorrentes de mulher:

[...] encontraremos a projeção do olhar e do desejo masculino relacionados com os atributos sexuais, estéticos e procriativos que também determinam posições do grupo social: a menina, a donzela, a mulher mais ou menos jovem, amante, esposa ou mãe, e a velha.

No discurso moderno, a menina precisa ser dirigida, pois não possui capacidade

intelectual para discernir o certo do errado e, desta forma, de tomar decisões, por isso, esta

tem que ser tutelada; a donzela precisa ser protegida para não cair em tentação; a mulher mais

ou menos jovem tem que ser enquadrada no modelo ideal de identidade feminina, ou seja, a

que é frágil, dócil e meiga; a amante tem que ser sustentada, pois também tem que depender

do homem; a esposa e mãe tem que ser obediente, responsável e dedicada aos filhos; e a velha

tem que ser vigiada.

Esse excerto evidencia a sociedade disciplinar. Acreditando que “o poder é o que

reprime a natureza, os indivíduos, os instintos, uma classe”, Foucault (2005, p. 175) trabalha

com a noção de que os corpos e as mentes são disciplinados.

A sociedade disciplinar está calcada no discurso, ou seja, é a sociedade do discurso por

excelência. Foucault (2005, p. 189) afirma:

As disciplinas veicularão um discurso que será o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra ‘natural’, quer dizer, da norma; definirão um código que não será o da lei mas o da normalização; referir-se-ão a um horizonte teórico que não pode ser de maneira alguma o edifício do direito mas o domínio das ciências humanas; a sua jurisprudência será a de um saber clínico.

Desses moldes de disciplinas emergem as identidades. Sendo assim, na perspectiva de

que as identidades são terminais, a escola moderna opera no sentido de encaminhar os corpos

femininos e os corpos masculinos a um lugar/caminho adequado à normalidade.

52

A escola moderna por excelência nasceu no século XIX, nele ocorreu a fragmentação

do saber. Todo o saber foi dividido a partir de critérios científicos, que colocavam o homem

no centro do conhecimento.

Aponta Silva (1995, p. 245):

[...] A escola está no centro dos ideais de justiça, igualdade e distributiva do projeto moderno de sociedade e de política. Ela não apenas resume princípios, propósitos e impulsos; ela é a instituição encarregada de transmiti-los, de torná-los generalizados, de fazer com que se torne parte do senso comum e da sensibilidade popular. A escola pública se confunde, assim, com o próprio projeto da modernidade. É a instituição moderna por excelência.

Sendo assim, o discurso da escola moderna é a própria representação da ciência, pois

incorpora todos os seus preceitos, inclusive o de verdade e de lugar de autoridade. A ciência é

o lugar da verdade, possuidora do poder de construir identidades e diferenças, legitimando as

desigualdades e exclusões. Ela legitima os saberes a partir das classificações de veracidade e

de engano, construindo hierarquias para os saberes e para os grupos de pessoas que assim se

relacionam no seu meio.

Nesta relação, a escola moderna dissemina as idéias do projeto Iluminista, apontando o

ideal de civilização e de sujeito. A escola, portanto, é o lugar onde são criados e recriados

novos saberes e formados cidadãos competentes. Esses cidadãos, através do conhecimento,

estariam afastados da ignorância e da barbárie e próximos da civilização.

Porém, um dos grandes problemas da escola é que, segundo Corazza (2001, p. 90), a

linguagem escolar é fechada e estável:

[...] acredita que sua linguagem descreve a realidade, tal como ‘a realidade realmente é’ – ou numa variação religiosa, como o ‘próprio Deus a conhece’. Que ela ‘mostra’ o mundo. Que ela é uma espécie de ‘espelho’, que revela o interior dos sujeitos, reproduzindo seus pensamentos e sentimentos; e que retrata suas condutas e relações, que se servem da linguagem para se objetivar e se transmitir.

Desta forma, a escola não concebe as narrativas como construtos do discurso moderno,

ou seja, não concebe as suas disciplinas curriculares como saberes selecionados a partir dos

procedimentos da ciência para serem construídos e legitimados como saberes verdadeiros e

normativos.

No universo escolar há lugares reservados aos diferentes integrantes do seu espaço

físico e subjetivo. A partir desses lugares é determinada a posição identitária e, desta forma, o

lugar de superioridade ou inferioridade de cada um.

53

Os alunos e as alunas não podem sair da regra do normal. Desta forma, muitos são

nomeados e classificados de deficientes, de problemáticos, de rebeldes, de burros, etc.

Enquanto os que não saem dessa regra são os inteligentes, os eficientes, os capacitados, os

que terão um futuro brilhante.

Mostra Deleuze (1992, p. 225, grifos do autor) que os mecanismos de controle operam

na vida das pessoas em todos os níveis institucionais, como no regime das prisões, no regime

das escolas, no regime dos hospitais e no regime das empresas.

Vejamos o que ele afirma em relação aos mecanismos da escola:

No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da ‘empresa’ em todos os níveis de escolaridade.

Essas formas de controle são dirigidas para que seja perpetuado o lugar de autoridade

de uns e de submissão de outros.

Os educandos são adestrados e disciplinados para não contestar as falas dos

professores e das professoras e dos livros didáticos, ou seja, do próprio universo escolar. Eles

não precisam fazer suas escolhas por si, pois todo o saber que lhes garantirá um futuro

brilhante já foi selecionado e organizado pelos detentores da verdade e do saber.

Porém, os corpos e as mentes inquietas das crianças e dos jovens não se moldam

facilmente, quanto o projeto educacional moderno pretende. Os fluxos de desejos e de

identidades deixam fissuras nesse corpo institucional. As práticas cotidianas das alunas e dos

alunos ultrapassam as barreiras do permitido na escola; práticas como os namoros, os toques

velados ou ditos, as brigas entre colegas, os beijos, as fofocas, etc.

Fugindo ao ideal de disciplina e de controle, a escola se transforma num local de

contestação, ou seja, as crianças e os jovens não se enquadram às normas, subvertem, dessa

forma, o posto como correto e obrigatório43.

É muito comum vermos em sala de aula piadas de mau gosto, que apontam a cor da

pele de um, a preferência sexual de outro, defeitos físicos ou mentais de um menino, a estética

de uma colega, etc. Essas práticas circulam como algo comum. Mais recentemente, com o

multiculturalismo, professores e professoras vêm cobrando dos alunos e das alunas o respeito,

afirmando que o outro é alguém a ser tolerado.

43 Na minha época de estudante de ensino médio, a minha turma era uma amostra das artes de quebrar as regras da escola.

54

E como os corpos das meninas são adestrados em sala de aula? Louro (2004, p. 63) faz

as seguintes perguntas:

Afinal, é ‘natural’ que meninos e meninas se separem na escola, para os trabalhos de grupo e para as filas? É preciso aceitar que ‘naturalmente’ a escolha dos brinquedos seja diferenciada segundo o sexo? Como explicar, então, que muitas vezes eles e elas se ‘misturem’ para brincar ou trabalhar? É de esperar que os desempenhos nas diferentes disciplinas revelem as diferenças de interesse e aptidão ‘características’ de cada gênero? [...].

Tendo a noção de que “a linguagem não apenas expressa relações, poderes, lugares,

ela os institui; ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças”, Louro (2004,

p. 65, grifos da autora) afirma que, desde cedo, as meninas aprendem que o masculino é a

regra, ou seja, a generalização do masculino para designar meninos e meninas e o

ocultamento do feminino, a partir da linguagem, constrói um lugar de naturalidade.

As meninas que são boas em matemática, física ou química são tidas como

extremamente esforçadas nos estudos, pois nas nossas subjetividades habita a concepção de

que às meninas estão reservadas as ciências humanas e, aos meninos, as ciências exatas.

Sendo assim, os meninos que se aproximam das ciências exatas são vistos a partir do olhar da

normalidade, pois estão cumprindo o seu papel. São brilhantes e admiráveis por uma

propensão do seu sexo.

Mas o lugar onde é mais legitimada a diferença entre meninos e meninas é nas aulas

de educação física. Nessas aulas, utilizando-se de justificativas biológicas, meninos e meninas

são separados. Nesse sentido, o feminino é considerado inferior fisicamente ao masculino.

Nessas aulas, geralmente, os corpos são vigiados no sentido de não se encaminharem a uma

anormalidade sexual.

O fato de uma menina preferir esportes tidos como masculino ou um menino preferir

esportes tidos como femininos se transforma numa fonte de preocupação, pois os corpos,

gestos e gostos são adestrados para se adequarem ao posto como normal.

Louro (2004, p. 79) ainda diz: “[...] a separação entre meninos e meninas é, então,

muitas vezes, estimulada pelas atividades escolares, que dividem grupos de estudo ou que

propõem competições [...]”.

Além dessas práticas escolares, constantemente são apontados pelos meninos os

lugares femininos, ou seja, através de piadas, afirmam que lugar de mulher é em casa

tomando conta das crianças, lavando roupa, cuidando da casa e obedecendo ao marido.

55

Portanto, o ideal de identidade feminina, construído pelo discurso científico e

naturalizado nas nossas práticas sociais e culturais, tem sempre como pressupostos a

submissão, a inferioridade e a fragilidade da mulher perante a sua imagem positiva, ou seja, a

identidade masculina.

Preso a um arcabouço que oscila entre o bem e o mal e a outro baseado na fragilidade

corporal e emocional e na inferioridade, o corpo feminino foi construído como o lugar da

desigualdade e da exclusão.

Na procura por essas identidades discursadas na prática, particularmente na telenovela

Laços de Família, buscarei compreender onde os discursos construídos por Manoel Carlos,

personificados pelas falas de seus e de suas personagens, apresentam-se como uma construção

da identidade feminina, haja vista que os discursos constroem, revelam e reforçam as

identidades.

56

4 LAÇOS DE FAMÍLIA: AS TRAMAS DE UMA TELENOVELA CONSTRUINDO E

DISCIPLINANDO AS IDENTIDADES FEMININAS

Você é uma pessoa plácida, doméstica, como as boas donas de casa, que são cada vez mais raras (Alma, Cap. 38); [...] E você sabe o que acontece com as mulheres que se oferecem? (Helena, Cap. 47); As mulheres têm muito mais capacidade de perdoar um pulinho de cerca do marido (Alma, Cap. 40); Porque que vocês, mulheres, desde criança têm instinto maternal, hein? (Edu, Cap. 47); Ah, porque ela finalmente está mostrando que é uma mulher sensata, de bom senso (Alma, Cap. 44); Eu fui criada pra ser esposa (Sílvia, Cap. 38).

A telenovela é um artefato cultural que institui lugares e identidades. Portanto,

desnaturalizarei as imagens que são postas por ela para representar a identidade feminina e o

seu lugar de verdade, demonstrando que os discursos midiáticos partem de um lugar cultural e

social. Estes acabam por construir a imagem da mulher a partir de lugares recorrentes, como o

da boa moça, da rebelde, da meiga, da casada, da viúva, etc.

Sendo assim, de início apresento uma breve sinopse dessa telenovela:

Laços de Família é uma novela que apresenta dramas familiares e o cotidiano de

pessoas da classe média moradoras do Rio de Janeiro às vésperas do século XXI. Manoel

Carlos escreve uma trama que possui vários personagens principais, principalmente

femininos, ou seja, deixa a entender que cada pessoa é protagonista da sua própria história.

Essas histórias se passam no presente, mas se entrecruzam com o passado, mostrando que os

dramas familiares possuem raízes no passado. Sua personagem principal é Helena, uma

mulher de 44 anos, mãe de Camila e Fred. Helena é mãe solteira, foi expulsa de casa e teve

que sustentar sozinha os seus filhos. Envolve-se com um jovem recém-formado, Edu, de 26

anos. Esse relacionamento passa por muitos problemas. Primeiro, é reprovado pela tia de Edu,

Alma, por causa da diferença de idade e, depois, Camila se apaixona por ele. Helena se vê

entre a sua felicidade ou a felicidade da sua filha e termina abrindo mão do seu amor carnal

pelo amor maternal. Camila engravida e se casa com Edu, mas logo perde o bebê e descobre

que está com leucemia. Começa toda uma luta para encontrar um doador compatível com

Camila. A sua grande esperança é que Fred seja o seu doador, por pensar que este é seu irmão

57

legítimo. Porém, vem à tona uma história do passado. Camila não é filha do pai de Fred, mas

de Pedro, primo de Helena, que escondeu esse segredo a vida toda. Helena, nesse momento, já

está feliz com Miguel, mas decide acabar o relacionamento para tentar ter um filho

compatível com Camila. Passa uma noite com Pedro, mas não lhe conta que ele é o pai de

Camila. A verdade só é revelada a Pedro e Camila quando Helena tem certeza que está

grávida. Depois de muita luta e sofrimento, a filha de Helena nasce, Vitória, e é compatível

com Camila, que recebe o transplante e se salva. Nesse meio tempo, acontecem outras

histórias. Alma é uma mulher de personalidade muito forte e dominadora, que já se casou

quatro vezes, pois já enviuvou três vezes. Após a morte dos pais de Edu e Stella, ela cuida dos

sobrinhos como se fossem seus filhos. No passado, Alma teve um casal de gêmeos que não

sobreviveram. Ela é traída por Danilo com a empregada, que engravida de gêmeos e morre no

parto. Por causa da sua obsessão por gêmeos, Alma se reconcilia com Danilo e cria os bebês

como se fossem seus filhos. Outra história interessante é a de Capitu, vizinha de Helena, uma

jovem, mãe solteira e garota de programa. Seu grande amor é Fred, mas ele já é casado com

Clara e tem uma filha, Nina. Capitu tem uma vida muito perturbada, pois vive em crise por

não se sentir bem com a sua profissão. Além de viver sendo vigiada por seus pais, ela se

envolve com um homem rico e agressivo, Orlando, e vive sendo ameaçada por Maurinho, pai

do seu filho. Capitu passa por muitos momentos de humilhação, mas deixa de ser garota de

programa e se casa com Fred, que já está separado e lhe dá muita força. Íris é uma menina

criada na fazenda, mas que está ligada ao mundo pelo computador. Ela é muito rebelde e

apaixonada por Pedro, que não a suporta. Não há barreiras para Íris quando o assunto é

conquistar Pedro e infernizar a vida de Camila. No final da novela, depois de aprontar muito,

Íris se arrepende de tudo que fez e vence Pedro pelo cansaço. Porém, antes tem que enfrentar

Sílvia, esposa de Pedro, no início, e Cíntia, uma mulher que ama a liberdade e os animais.

Cíntia vive com Pedro uma louca paixão, mas não troca a sua liberdade por nada e, assim, não

se deixa prender por homem algum. Esses são apenas alguns exemplos de personagens e

histórias das suas vidas, pois ainda existem outras histórias dentro da narrativa.

Para se chegar a um enredo recheado de identidades femininas e que caiu no gosto

popular, Manoel Carlos trilhou um percurso de quarenta e nove anos – hoje cinqüenta e cinco

anos – de história da telenovela brasileira. Esta história acaba por revelar o gosto do

telespectador e da telespectadora brasileira e a grande identificação que há entre estes e a

telenovela. Sendo assim, apresentarei um pouco dessa paixão nacional.

58

4.1 EU EM FRENTE À TELEVISÃO E UM MUNDO DE MAGIAS E ILUSÕES

As telenovelas, como exemplo Laços de Família, são reveladoras e subjetivadoras dos

caminhos que todos devem trilhar, seja nas identidades de gênero, de raça, de classe, etc.

Sendo assim, discutirei o fascínio que a telenovela proporciona aos telespectadores e a

questão da identificação.

Desde a década de 50 e, com mais intensidade, na década de 70, o Brasil vem se

rendendo aos vários enredos e dramas das telenovelas. No mundo da ficção televisiva, as

margens do encantar, fascinar e prender ganharam proporções jamais imaginadas.

Desde a primeira telenovela brasileira, Sua Vida me Pertence – 1951, TV Tupi, Walter

Foster –, exibida ao vivo e duas vezes por semana; até a lançada mais recentemente, Páginas

da Vida – 2006, TV Globo, Manoel Carlos –, o Brasil vem acompanhando muitas mudanças

nos dramas televisivos, tanto na área tecnológica quanto na sua estrutura e nos seus enredos.

É importante frisar que as telenovelas são herdeiras dos folhetins, das fotonovelas, das

radionovelas e das soap-operas44 e que foram impulsionadas pela necessidade mercadológica.

Com a intenção de vender produtos, empresas de marketing patrocinavam as novelas. Essas

eram destinadas ao público feminino – donas de casa –, pois, nos lares, a mulher possuía e

possui um maior poder de decisão na hora das compras. As novelas e as propagandas

objetivavam o gosto feminino.

Com a introdução do videoteipe, foi lançada a primeira telenovela diária, 2-5499

Ocupado – 1963, TV Excelsior, Alberto Migré, com adaptação de Dulce Santucci –, mas a

sua popularização ocorreu com O Direito de Nascer – 1965, TV Tupi, Félix Caignet, com

adaptação de Teixeira Filho e Talma de Oliveira.

Vê-se, então, surgir um elo mais intenso de proximidade entre telespectador e

telenovela, pois esta passa a fazer parte do dia-a-dia das pessoas e, conseqüentemente, das

suas vidas. É pertinente ressaltar que, de início, a televisão brasileira se concentrou no eixo

Rio-São Paulo. Só a partir de 1965, com a criação da Embratel – Empresa Brasileira de

Telecomunicações – e com o seu slogan a comunicação é a integração, é que surge a

preocupação com a unificação nacional. Porém, só em fevereiro de 1972 ocorreu a primeira

transmissão em cores para todo o Brasil. 44 Telenovelas norte-americanas diárias veiculadas pela rádio e difundidas na década de 1920 e, posteriormente, veiculadas pela televisão, que relatam o cotidiano ficcional de determinados grupos de pessoas. Essas novelas possuíam uma longa duração e, apresentadas como veículo de entretenimento, tinham por objetivo fazer propaganda de produtos domésticos.

59

O recurso utilizado para resolver essa deficiência tecnológica foi o videoteipe, que

transmitia a telenovela, mas não proporcionava a integração nacional, pois não era exibida

simultaneamente para todo o país. Portanto, poderia ocorrer o fato de telespectadores de uma

certa região assistirem à telenovela num nível mais adiantado do que em outra.

Extrapolando os dramalhões das décadas de 50 e 60 importados da Argentina, México

e Cuba, os enredos eloqüentes e os cenários irreais, Beto Rockefeller – 1968-1969, TV Tupi,

Bráulio Pedroso – configurou-se como a primeira telenovela genuinamente brasileira e

realista, pois se aproximou mais da realidade cotidiana e dos dramas sociais, incorporando no

seu enredo fatos corriqueiros, como fofocas e acontecimentos em jornais, e uma linguagem

mais coloquial e mais próxima do telespectador.

O protagonista, Beto – interpretado por Luís Gustavo –, era um exemplo de homem

brasileiro e o primeiro anti-herói da nossa ficção televisiva. De origem modesta, buscava,

através da sua astúcia e de um casamento por interesse, a ascensão social. Pela primeira vez

uma novela correspondia ao gosto masculino.

Além das mudanças no enredo, houve uma grande inovação na forma de se produzir

uma novela. Em Beto Rockefeller os diálogos são mais dinâmicos e soltos, pois os atores

tinham a liberdade de atuar de forma mais livre e com certa improvisação. Passou-se a utilizar

mais cenas externas e o posicionamento das câmeras mudou.

Dando a receita de novela popular, essa fórmula foi bem absorvida pela TV Globo,

criada em 1965, através da ajuda do governo brasileiro e da associação Globo-Time-Life;

porém, fortalecida em 1969. Aliada à idéia de modernização, a TV Globo apresentou uma

mudança significativa em termos tecnológicos, chegando ao que hoje conhecemos como

Padrão Globo de Produção.

A década de 70 é marcada pela intervenção do Estado, surgindo a cobrança do

fortalecimento de uma identidade brasileira e de uma televisão de alto padrão cultural. Nessa

década, desfilam novelas adaptadas da literatura brasileira, como Helena – 1975, TV Globo,

Machado de Assis –; Senhora – 1975, TV Globo, José de Alencar; A Moreninha – 1975-1976,

TV Globo, Joaquim Manoel Macedo; etc.

As telenovelas urbanas da TV Globo são de grande sucesso. Em Dancing Days –

1978-1979, TV Globo, Gilberto Braga – o telespectador se envolve de tal forma com o enredo

da novela que as pessoas passam a falar da sua trama de forma muito próxima de si. Júlia

Matos – Sônia Braga – passa a ser uma figura comum de discussão e uma personagem que

criou moda. A meia colorida usada pela personagem passou a fazer parte do guarda-roupa de

boa parte das mulheres brasileiras.

60

Na primeira versão de Selva de Pedra – 1972-1973, TV Globo, Janete Clair – ocorreu

um feito nunca visto antes na televisão brasileira e que não se repetiu. A audiência, no

capítulo 152, chega a 100%. Isso é algo incrível de se constatar, mostrando que o

telespectador se envolve com os dramas dos personagens e acompanha os seus desfechos.

Com a confusão que havia entre ficção e vida real, na época, Dina Sfat, vilã e algoz de

Simone – Regina Duarte –, é várias vezes agredida na rua por telespectadores insatisfeitos

com as maldades e perversidades da sua personagem.

A telenovela é uma paixão nacional.

Nesse período, as emissoras de televisão conviveram com a censura, pois o Regime

Militar passou a se preocupar com o material que era veiculado na televisão, utilizando o

argumento de que isso era uma preocupação com a cultura do país. A Censura Federal ditava

o que era permitido ou não na televisão brasileira, porém não utilizava critérios escritos e

definidos.

Nos anos de 1975 e de 1976, respectivamente, novelas como Roque Santeiro – TV

Globo, Dias Gomes – e Despedida de Casado – TV Globo, Walter George Durst – foram

censuradas. A primeira foi censurada por, segundo o Jornal do Brasil (1975), conter "ofensa à

moral, à ordem pública e aos bons costumes, bem como achincalhe à Igreja". E a segunda,

em nome da moral e dos bons costumes, pois falava de separação, amor livre e atrito entre

gerações.

Mesmo com a censura, as telenovelas não deixaram de falar de assuntos instigantes e

provocadores. Esse foi um período duro, mas hoje convivemos com a sociedade de controle.

Na televisão, como em todas as instâncias sociais e culturais da sociedade, há ditos e não

ditos, permitidos e não permitidos.

A década de 70 foi um momento de grande preocupação de se escrever sobre a

realidade, os valores e os padrões comportamentais de um Brasil em fase de mudanças. O

Brasil deixa de ser representado nas telenovelas pelo bucólico e pelo rural.

Portanto, foi o momento de afirmação da novela como veículo de encantar e de formar

opiniões. Esse encantar deixou de ser apenas o encantar o feminino, mas o masculino

também, pois os homens já haviam se rendido aos enredos menos melodramáticos e mais

realistas.

Como forma de controle sedutor, a televisão vai se revestindo de novas roupagens e

linguagens mais capturantes. No final dessa década, foram lançados seriados que retratam o

dia-a-dia de pessoas comuns, como Carga Pesada – 1979-1981 –; Plantão de Polícia – 1979-

1981 –; e Malu Mulher – 1979-1980.

61

Numa tarde de 1995, quando ainda adolescente, assistindo à reprise de Malu Mulher,

me surpreendi, foi um misto de choque e de prazer: Malu – Regina Duarte – deu uma tapa na

cara do seu até então marido, Pedro Henrique – Denis Carvalho. Pensei: que mulher corajosa!

Choque maior para o público foi na sua exibição semanal em 1979/1980. Ia ao ar pela

primeira vez na televisão brasileira uma série que contava a dor e o prazer de uma mulher de

aproximadamente 30 anos, que era socióloga, recém separada, lutava pela sobrevivência, se

apaixonava por outros homens e sustentava e vivenciava os dramas de uma filha adolescente

– Narjara Turetta.

Seus temas eram sempre instigantes e geravam muitas polêmicas. Temas como

divórcio, aborto, prazer feminino – foi exibido o primeiro orgasmo feminino na televisão

brasileira –, traição, métodos contraceptivos, etc. foram ao ar pela primeira vez. Inclusive

muitas mulheres achavam que esse seriado era prejudicial à família brasileira, pois mostrava a

dissolução dos bons costumes.

O episódio Ainda não é hora, exibido no dia 14 de junho de 1979, às 22:00 horas, que

mostrava uma adolescente grávida – Lucélia Santos – que opta pelo aborto numa clínica

clandestina, gerou uma verdadeira manifestação contra a decisão da adolescente e da ajuda de

Malu. Para o consenso geral, a série deveria mostrar a aceitação de um filho não planejado e

um discurso moralizante contra o aborto.

Episódios como esse geraram a discussão sobre o papel das telenovelas e dos seriados,

apontando que a televisão tem uma função social além do entretenimento. Nesse

direcionamento, deve apresentar modelos de conduta corretos em detrimento de condutas

anormais.

O grande sucesso não apenas da década de 80, mas de todos os tempos, foi finalmente

lançada. Roque Santeiro – eleita por críticos como a melhor novela brasileira – só foi gravada

e exibida em 1985, com o fim do período militar no Brasil. Nessa trama, Dias Gomes e

Aguinaldo Silva fazem uma crítica ao modelo político que temos. Na cidade de Asa Branca,

quem manda é o poder político, representado pelo coronelismo, pela Igreja e pelo capital.

A cidade gira em torno de um mito construído por esse poder, o mito de Roque

Santeiro – José Wilker –, que supostamente morreu em defesa do seu povo e da cidade.

Baseado nesse mito, há uma viúva, Porcina – Regina Duarte – que nem mesmo conheceu

Roque; um comércio de imagens e similares de Roque; e até a produção de um filme sobre a

sua vida.

O Roque da história de Asa Branca, que depois de supostamente morto se torna santo

e milagreiro e que de santo não tem nada além do nome, não corresponde ao Roque

62

vivenciado por um homem que não morreu. A volta de Roque à sua cidade natal corresponde

a um provável fim do mito e de toda sua estrutura econômica e política. Sendo assim, os

poderosos da cidade querem silenciá-lo de todas as formas possíveis, até com a morte.

Roque Santeiro não apenas teve uma audiência muito elevada, mas também lançou

moda e bordões. A figura de Sinhozinho Malta ficou conhecida como o coronel que

chacoalhava o relógio, emitindo o som de uma cascavel, e soltava o bordão Tô certo, ou tô

errado? O Brasil inteiro passou a imitá-lo. Mas quem lançou moda foi Viúva Porcina, com

suas roupas muito extravagantes, muita cor, muito brilho, muitos babados e muitos acessórios.

Nessa década, foram produzidas várias novelas de grandes audiências, como: Baila

Comigo – 1981, Manoel Carlos –; Guerra dos Sexos – 1983, Sílvio de Abreu –; Vereda

Tropical – 1984, Carlos Lombardi –; A Gata Comeu – 1985, Ivani Ribeiro –; Ti-ti-ti – 1985,

Cassiano Gabus Mendes – ; Roda de Fogo – 1986-1987, Lauro César Muniz –; Brega e

Chique – 1987, Cassiano Gabus Mendes –; Vale Tudo – 1988-1989, Gilberto Braga – ; Tieta –

1989/1990, Aguinaldo Silva –; etc.

Os anos 90 se iniciam com um problema para a TV Globo. A novela Pantanal – 1990,

Manchete, Benedito Ruy Barbosa – passa a ser uma ameaça surpreendente, pois atingiu

grande sucesso em uma emissora de pouca tradição em telenovelas. O desafio de não deixar a

audiência cair foi de Sílvio de Abreu com Rainha da Sucata.

Essa década foi marcada pela variedade de temáticas. Regionalistas, de Aguinaldo

Silva – Pedra Sobre Pedra (1992), Fera Ferida (1993-1994) e A Indomada (1997) –; de

imigrantes de Benedito Ruy Barbosa – O Rei do Gado (1996-997), Terra Nostra (1999-2000)

–; Polêmicas, como de Glória Perez – Barriga de Aluguel (1990-1991) e Explode Coração

(1995-1996) –, de Sílvio de Abreu – A Próxima Vítima (1995) – Manoel Carlos – Por Amor

(1997-1998), etc.

Outro ponto forte foram os remakes, que desfilaram no horário das 18 horas. Entre

outros, foram exibidos Mulheres de Areia – 1993, original de Ivani Ribeiro –, A Viagem –

1994, original de Ivani Ribeiro –, Irmãos Coragem – 1995, original de Janete Clair –, Anjo

Mau – 1997, original de Cassiano Gabus Mendes –, etc.

E, desembarcando no ano 2000, percebemos o quanto a telenovela mudou desde o seu

surgimento. O que começou com improvisação, transformou-se numa indústria de lucros e de

alta tecnologia. Nesse momento, a teledramaturgia da TV Globo está totalmente sedimentada,

mas a luta pelos índices do Ibope é constante.

63

Nesse percurso desde 1951 até o momento, o Brasil vem se rendendo à

teledramaturgia e já está habituado a ver casais da tela se unirem na vida real – Glória

Menezes e Tarcísio Meira, Eva Wilma e John Herbet, Cláudia Raia e Edson Celulari, etc.

Em torno de personagens e atores giram amor e ódio por parte dos telespectadores.

Como exemplo de amor temos Regina Duarte que, em 1971, com a novela Minha Doce

Namorada – TV Globo, Vicente Sesso – foi eleita a namoradinha do Brasil. Em contraponto,

temos artistas que apanharam na rua, como Suzana Vieira interpretando Nice, de Anjo Mau –

1976, TV Globo, Cassiano Gabus Mendes –, André Gonçalves interpretando o homossexual

Sandrinho – A Próxima Vítima –, etc.

O personagem de Carolina Dieckmann, Camila, de Laços de Família, ganhou a

antipatia do público. Foram criados sites,como exemplo Eu odeio Camila, nos quais a lista de

motivos de desprezo pela personagem ia desde o fato dela ter se apaixonado por Edu e, assim,

traído a confiança da mãe até a sua constante cara de tédio.

Quem ultimamente vem arrepiando os cabelos do telespectador é a personagem de

Páginas da Vida, Marta – Lília Cabral –, e seus arroubos de mãe fria e totalmente fora do

contexto do padrão de mãe ao qual estamos habituados. Marta mobiliza o telespectador no

sentido de gerar a polêmica se realmente existe uma mãe tão fria e ruim como ela. Ressurge a

velha questão: a vida imita a arte ou a arte imita a vida?

Há uma grande confusão, por parte dos telespectadores, entre a ficção e a vida real.

Mas, de repente, numa manhã de dezembro de 1992, os telespectadores se deparam com o

assustador e catastrófico: o ficcional se concretizou. Em De Corpo e Alma – 1992-1993, TV

Globo, Glória Perez – os limites entre o ficcional e o real haviam sido rompidos com a morte

de Daniela Perez.

Na trama, Yasmin, Daniela Perez, era dançarina e tinha um namorado violento e

ciumento, Bira, Guilherme de Pádua. As cenas entre o casal eram sempre recheadas de

agressividade e um de ciúme doentio. O telespectador acompanhava as várias discussões e

torcia por um final feliz.

Na noite de 28 de dezembro, Guilherme de Pádua e a sua esposa matam a tesouradas

Daniela Perez. Ninguém achava uma explicação convincente: será que ele confundiu a ficção

com a realidade? Será que eles tinham um caso? Será que a sua esposa havia descoberto esse

suposto caso?

O certo é que ninguém encontrava uma explicação lógica para tal acontecimento. E o

perturbador para o telespectador veio à tona: Glória Perez forjou, em nível ficcional, a morte

64

da sua própria filha, ou seja, através do seu enredo, escreveu o caso de amor e violência entre

Yasmin e Bira. Nesse momento, se Bira matasse Yasmin na trama não seria nada excepcional.

Todavia, esse fato não ocorreu na ficção, mas na vida real. Esse foi um caso de

comoção nacional. Todos comentavam, lamentavam o terrível assassinato e se comoviam com

imagens de sofrimento de Glória Perez e de um viúvo inconformado, Raul Gazolla.

Também temos casos em que uma novela mobilizou todo um país: Selva de Pedra –

100% de audiência –, O Astro, 1977-1978, TV Globo, Janete Clair – ‘Quem matou Salomão

Hayalla?’ –; Vale Tudo, 1988-1989, TV Globo, Gilberto Braga – ‘Quem matou Odete

Roitman?’; – A Próxima Vítima, 1995, Sílvio de Abreu – ‘Quem será a próxima vítima e

quem é o assassino em série?’ – Por amor – ‘Helena foi correta em ter trocado seu filho vivo

pelo filho morto de Maria Eduarda?’.

Às vezes, é desconcertante deixar as lágrimas fluírem diante de cenas de puro

sofrimento. Cenas como o fim de um relacionamento no qual ainda há amor, de enfermidade,

da partida do homem ou da mulher amada, são motivos de soluços. Mas nada se compara ao

fascínio e ao medo da morte. Passar na novela a morte de uma pessoa amada, principalmente,

se for a morte de um filho ou de uma mãe, são Ibope e choro certos.

Nesse momento, entra em pauta o grau de envolvimento de cada um com a trama e

com a identificação que há com o personagem. É muito comum nos colocarmos no lugar do

personagem e, nesse momento exato, assimilarmos toda a dor e perda deste. Na relação entre

o telespectador e a telenovela entra em jogo a questão da identificação.

Porém, a influência que a telenovela exerce não é descontextualizada do universo

pessoal e subjetivo dos telespectadores e das telespectadoras. Ora se apropriando e ora

rejeitando comportamentos, atitudes e personagens, quem assiste à televisão se vale das

mediações entre o produto audiovisual e suas experiências pessoais. Nessa relação, entra em

jogo a interação entre o discurso televisivo e o repertório simbólico de cada um. Baccega

(2002, p. 76) afirma:

O universo de cada indivíduo é formado pelo diálogo entre os discursos nos quais seu cotidiano está inserido. E é a partir da materialidade discursiva que se constitui a subjetividade. Logo, a subjetividade nada mais é que o resultado da polifonia que cada indivíduo carrega.

Desta forma, os modos de pensar, sentir e agir dos homens e das mulheres

contemporâneos não são apenas propagados e influenciados pelos meios de comunicação e

informação de um determinado momento histórico e cultural, mas, sobretudo, mediados por

65

estes. A partir da relação dos mundos culturais do cotidiano e dos discursos midiáticos

(visuais e auditivos), são construídas, reconstruídas ou desconstruídas novas sensibilidades,

sociabilidades, identidades e subjetividades.

A televisão adentra nos lares brasileiros e muitas vezes está mais próxima das crianças

e dos jovens do que os próprios pais. Esta torna-se uma companhia constante das pessoas e

muitas vezes é utilizada pelos pais como forma de se livrar dos seus filhos por algumas horas

do dia.

A televisão pode ser vista ou entendida a partir de dois ângulos relacionais: como um

meio de comunicação que influencia no comportamento e na percepção de mundo das

pessoas; e como um meio que pretende ser um espelho revelador das nossas práticas culturais

e sociais, ou seja, na medida que molda, ela tenta se aproximar da realidade das pessoas.

A aproximação entre telespectador e telenovela ocorre na medida em que o discurso

novelístico apela para o que se tem de mais latente e pulsante nas pessoas: os desejos e as

paixões.

É apostando nessa paixão e identificação do povo brasileiro, que Manoel Carlos

constrói uma novela nos moldes humanitários. Com o slogan sua vida pode ser uma novela,

Laços de Família apela para a aproximação entre o telespectador e os dramas de cada

personagem, apontando que essa novela é o mais próximo possível da vida de cada um.

Nas suas tramas é muito comum o apelo ao merchandising social. Nesse caso

específico, o seu merchandising se concentra no apelo à doação de medula. No meio da

novela, quando tudo parecia ir bem, Camila, grávida e casada com Edu, descobre que está

com leucemia aguda. Na eliminação da possibilidade de Fred ser o seu doador, começa uma

batalha por um doador compatível.

Até então no Brasil, o conhecimento da população sobre a doação de medula era muito

restrito. Manoel Carlos mostrou que essa doação não é igual às demais, ou seja, não se retira

um órgão, mas células que se reconstituem rapidamente. Vendo todo o sofrimento de Camila,

o telespectador se comovia. Os índices no registro de doadores deram um salto espetacular.

Essa preocupação com o merchandising social surgiu a partir de uma necessidade

mercadológica, da disputa pelo ibope e pela aceitação de que as novelas possuem o poder de

subjetivar nas pessoas atitudes tidas como corretas ou não. O discurso veiculado pelas novelas

de modo algum é inocente, aleatório ou desinteressado.

Através dos traçados dos autores de novelas, são-nos apresentadas identidades

adequadas e inadequadas tanto para o feminino quanto para o masculino. Esses personagens,

66

mocinhos ou vilãos, se encarregam de narrativamente nos encaminhar para o caminho da

normalidade.

É por isso que, ao final das tramas, os vilãos sempre se dão mal e os mocinhos e

mocinhas, mesmo tempo sofrido a trama toda, são recompensados por trilharem o caminho do

bem. Esse desfecho, esperado para todas as novelas, é punitivo por um lado e valorativo por

outro.

No momento em que a telenovela apresenta identidades a serem seguidas ou

rejeitadas, extrapola o seu sentido de apenas veículo de entretenimento. Sendo assim, a

telenovela passa a ter um cunho educador. Educar não no sentido formal do termo, mas

educar formas de ser e a forma como as pessoas se relacionam consigo e com o mundo.

Nas tramas das novelas são instituídos e veiculados lugares pré-estabelecidos do eu e

do outro, que são facilmente reconhecidas nas tramas televisivas, ou seja, geralmente essas

são as protagonistas, o eu, e as antagonistas, o outro. Agora, mostrarei mulheres de diferentes

identidades, mas que carregam em si o jogo entre o eu e o outro.

4.2 CENAS DE VIDAS CONSTRUÍDAS E DISCIPLINADAS EM LAÇOS DE FAMÍLIA

Na nossa sociedade, os discursos, através da mídia, da Igreja, da política, da família,

etc. vêm reforçando vários estereótipos de mulher, de homem, de homossexual, de criança, de

velho, de belo, de pobre, etc. Porém, esses discursos não circulam apenas nas instâncias

institucionais, mas também nas esquinas, nos bares, nas praças, nos supermercados,

mostrando que os poderes se multiplicam e se pulverizam no discurso não oficial, não

institucionalizado.

Na intenção de um discurso verdadeiro, Manoel Carlos escreve uma novela que

pretende apresentar um cotidiano que se aproxima da realidade. Porém, apresenta um

cotidiano construído de poderes aprisionantes e disciplinares. Nas imagens reveladoras de

valores e intencionalidades, em Laços de Família, circulam mulheres de diferentes

identidades.

Na sua novela, as margens de diferença entre a protagonista e a vilã são borradas.

Todas as suas personagens são revestidas de discursos que ora as aproximam do modelo de

adequação a uma identidade normal, ora as distanciam. Mas, sempre indicando caminhos de

67

adequação e lições morais para o encaminhamento desses corpos rebeldes, como no caso de

Capitu e Íris. Sendo assim, começo com a figura de Helena.

Helena: Eu sou uma mulher apaixonada. Pelos meus filhos em primeiro lugar, o outro vem

depois... (Cap. 81).

Helena não é modelo de perfeição como supomos ser uma protagonista. A mocinha da

nossa trama não apenas sofre, mas também ataca e faz outras pessoas sofrerem. Helena se

reveste de ações que seu próprio criador, Manoel Carlos, revelando Cimino (2006), define

como características unificadoras de todas as suas Helenas:

Todas são o mais verdadeiras possível. Melhor: o mais verdadeiras que eu consigo

fazer. Todas, sem exceção, mentem, enganam, trapaceiam, traem e são traídas. Tudo

por amor. Ou, supostamente, por amor. Por isso são tão reconhecíveis pelas

mulheres que assistem às minhas novelas.

Helena é uma esteticista bem sucedida que passou por muitas privações para criar seus

dois filhos e chegar onde está. De beleza exuberante, ao longo da sua vida se relacionou com

vários homens e sempre amou intensamente, mas em primeiro lugar sempre vieram os seus

filhos.

Na tentativa de apresentar um modelo de como deve ser uma mãe, Helena assume esse

papel. Sendo capaz de tudo pelos filhos, ela põe em xeque a sua própria felicidade. Nesse

sentido, uma mãe, para ser feliz, depende da felicidade do filho. Helena acredita que está

reservada às mães uma paz própria: a dos filhos na segurança do lar.

O momento-auge de mãe abnegada e de prova de amor pelos filhos é quando Helena

engravida de Pedro na tentativa de gerar um filho compatível com Camila. Não preocupada

com o seu relacionamento com Miguel, pois “o sofrimento de uma mãe é doce quando é para

fazer os filhos felizes” (Cap. 81), ela se baseia num caso de uma mãe norte-americana que

engravidou para salvar a filha.

Seu filho mais velho, Fred, é formado em engenharia, mas não consegue um bom

emprego. Esse fato faz da sua vida um tormento, pois é cobrado dia e noite por Clara, sua

68

esposa. Essa é a primeira grande preocupação de Helena em relação ao filho: a falta de

segurança financeira e o casamento problemático de Fred. Helena fala a Camila:

A coisa que eu mais prezo é a liberdade de um filho, a independência. ‘Filhos independentes, pais tranqüilos’. Esse é o meu lema. Você sabe como eu sofro com a insegurança do Fred. Eu preferia mil vezes que ele não precisasse de mim. Eu faço com amor, mas sem prazer (Cap. 42).

Quando Fred se separa, surge outro problema: Fred está se envolvendo com Capitu,

seu antigo amor e, no momento, garota de programa. O que uma mãe deve fazer diante de um

fato desses? Esse é o seu dilema.

Sendo assim, a sua identidade está baseada, principalmente, na maternidade. Porém, a

sua identidade também está muito próxima da mulher que luta pela sobrevivência. Nessa

relação, fica evidenciado que a emancipação feminina só é conquistada com muita luta e

determinação.

Nas telenovelas, os binarismos, homem/mulher, rico/pobre, branco/negro,

heterossexual/homossexual, jovem/idoso, são considerados as verdades, entre os jogos de

relação de poder, de determinados momentos históricos e, até mesmo, a máquina propulsora

das suas narrativas e dos seus enredos. Nessa perspectiva, as histórias ficcionais só acontecem

a partir das lutas de poder entre os grupos relacionais dos binarismos.

Helena, ao ser expulsa de casa e depois de ter perdido o pai de Fred, teve que ir à luta,

pois teve que sustentar dois filhos. Ivety resume o que Helena teve que assumir: “Eu acho que

a Helena acabou assumindo muitos papéis, sabe? Mãe, pai, chefe de família. Deve ser muito

difícil a pessoa conciliar disciplina e carinho sozinha”. (Cap. 26).

Mas, para tanto, teve a ajuda da sua mãe. Helena sempre deixa claro que a sua mãe foi

muito importante para a sua vida e que nunca foi abandonada por ela. Tendo como exemplo a

mãe, ela acredita que a sua renúncia pelos filhos é um mal de família.

Sabe, quando a minha mãe morreu, eu pensei que o mundo fosse acabar. Minha mãe era tudo pra mim. Porque era ela quem ficava com eles quando eu ia trabalhar, fazer alguns cursos para ter uma profissão. Ela era a minha mãe, o meu pai, minha irmã e minha amiga. Foi duro, muito duro, mas eu tive que levar a minha vida adiante (Cap. 19).

Durante a novela, Helena possui ligações amorosas com Edu, Pedro e Miguel. Edu é

um grande amor, porém inadequado pela idade e pela paixão de Camila. Pedro foi o seu amor

de juventude, mas eles não deram certo por possuírem objetivos de vida distintos e serem

diferentes.

69

Miguel se apresenta como o homem adequado a Helena. Assim Ema aponta, “É. Mas

o Miguel é que era um bom partido pra Helena. Um homem mais velho, bem de vida, bem

apessoado” (Cap. 55). Miguel é um homem de cultura, é viúvo, já possui filhos e é mais velho

que Helena. Sendo assim, se adequando ao seu par perfeito, Helena se casa com Miguel.

Alma: Eu não gosto de contrariar a natureza, a ordem natural das coisas (Cap. 48); Eu

sobrevivi feliz a três casamentos porque eu num me apaguei diante de marido algum (Cap.

38).

Alma não se caracteriza como uma vilã nos modos convencionais, pois esta se

apresenta como uma mulher de personalidade extremamente forte, o tipo que é amada ou

odiada e nunca tratada de forma indiferente. Desde o início da trama ela tem o seu objetivo

traçado, ver seus sobrinhos, Edu e Stella, formados, casados e com filhos. Nesse ponto,

Helena atravessa os seus sonhos e objetivos. Porém, Alma não utiliza meios violentos, no

sentido corporal da palavra, para alcançá-los.

Na sua concepção, a família é o pilar de tudo, por isso não aprova a relação de Edu e

Helena, pois a vê como uma ameaça ao futuro profissional e familiar de Edu. Alma tenta

demover o sobrinho de seu interesse por Helena e se explica:

Alma: Eu não sou preconceituosa Edu, você sabe muito bem disso. Mas Helena é... Ah, ela é velha pra você. Edu: Você tá se repetindo. Alma: Pra ver se entra na sua cabeça. Quando eu digo velha, Edu, eu não tô me referindo à idade civil, cronológica, mas à experiência, à vivência, ao uso. Você precisa de uma jovem da sua idade, que sonhe os seus sonhos, que faça projetos pro futuro, como qualquer mulher que tá começando a vida ao lado de um homem. Que não fique olhando pra você embasbacada com a sua beleza, com a sua juventude. Mas que vá à luta, que tenha um ideal, que faça projetos pro futuro e que queira e possa ter filhos. A Helena é... a Helena é usada. Edu: Chega, não pode falar assim dela e de ninguém. Eu não admito que se comporte como se fosse a minha mãe (Cap. 5).

Alma coloca a família acima de tudo e de todos. Ela compreende que a junção entre

Edu e Helena não é propícia à constituição de uma família, pois Helena é vinte e dois anos

mais velha que Edu e já possui a sua família. Sendo assim, Helena não trará a felicidade que

uma jovem pode proporcionar a Edu, ou seja, lhe dar filhos e uma vida baseada na

normalidade.

70

Na classificação que LLoret (1998) faz em relação á mulher e à sua idade e,

conseqüentemente, ao olhar que o homem lança sobre ela, Helena deveria se localizar na

adequação de uma identidade normal, deveria se envolver com um homem da sua idade ou

mais velho. Nesse sentido, Alma acredita que as idades determinam as posições de sujeito na

sociedade e que cada pessoa deve se relacionar afetivamente com pessoas próximas a si, ou

seja, com idades, projetos e idéias parecidas.

A nossa idade nos prende a certos padrões de comportamento. O sentimento de

pertencimento a um determinado grupo e a imposição cultural e social fazem com que nós

sejamos impelidos a assumir e aceitar um padrão de comportamento e de vivência, ou seja,

são assumidos e reforçados os estereótipos da normalidade e da anormalidade. Para Lloret

(1998, p. 14):

Mais do que ter uma idade, pertencemos a uma idade. Os anos nos têm e nos fazem; fazem com que sejamos crianças, jovens, adultos ou velhos. E isto, apesar da relativa flutuação das fronteiras culturais, legislativas ou administrativas, nos situa uns e outros em grupos socialmente definidos.

A partir dos parâmetros cronológicos, a nossa vida passa a ser regida pelo que pode ou

não numa determinada idade. Você é muito nova para assistir a certos tipos de filmes; Você

ainda não pode sair à noite; Fulana está muito velha para usar minissaia; Cicrano já passou

da idade de casar; etc.

Estando preocupada com a cronologia do tempo e com a adequação das idades, Alma

sonha para o seu sobrinho uma jovem cheia de planos e sonhos de uma vida em família. Uma

jovem que possua todos os atributos da identidade normal, ou seja, que queira casar na Igreja,

ter lindos filhos, viver uma vida tranqüila e possuir sonhos em comum com o seu marido.

Para separar Edu de Helena, Alma tem como meio a aproximação de Edu e Camila. Camila é

a escolhida por justamente corresponder a esses atributos. Alma não esconde de ninguém a

sua opinião:

É jovem! Essa é a maior qualidade da Camila. Ah, eu sonho com isso há tantos anos. Eu, entrando na Igreja de braço dado com Edu, e ele subindo ao altar, ao encontro de uma jovem linda como ele e cheia de planos. E depois, os filhos. Ele pode ter sorte como os pais dele, ter um menino e depois uma menina (Cap. 28).

Discursivamente, Alma constrói a identidade de Helena entre dois paralelos: a mãe de

família – “Ela podia ser sua mãe” (Cap. 7) – e a mulher para os prazeres – “Mas uma coisa eu

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te digo, Edu. Eu espero, pro seu bem, que essa felicidade fique restrita à cama daquela mulher

e nada mais que isso” (Cap. 6).

Helena, enquanto uma mulher madura e livre, tanto no sentido financeiro quanto no

estado civil, configura-se como um corpo propício aos prazeres passageiros da vida. Helena

não é a mulher adequada para se casar com Edu. Essa idéia é presente nas nossas

subjetividades, pois é comum vermos jovens afirmarem que mulheres mais velhas passam

experiência sexual, mas não é comum vermos esses mesmos jovens fazendo planos para se

casarem com essas mulheres.

Alma também acredita que há mulheres destinadas a determinados lugares na vida de

um homem. Helena foi uma etapa passageira na vida de Edu. “Eu falei, eu sabia, eu tinha

certeza que esse caso ia acabar logo, logo. A Helena foi um objeto de desejo. Um objeto

merecedor de adoração, tá bom! Mas com prazo de validade. Isso é o que Edu tem que

entender e aceitar” (Cap. 54).

Para Alma, com o passar dos anos, Helena só representará os instintos maternais da

mulher, pois o desejo sexual se localiza nos atributos físicos e psíquicos da mulher jovem. A

mulher mais velha está reservada primeiramente aos amores familiares: amar filhos e netos.

Em contraponto, Alma é uma mulher que foge do convencional, pois já enviuvou três

vezes e está no seu quarto casamento, mas não possui filhos. De personalidade forte e

dominadora, surpreende com atos inesperados. Como exemplo, perdoar Danilo e assumir o

seu casal de gêmeos.

Sendo até mesmo contraditória, Alma é casada com um homem bem mais jovem que

ela, mas acredita que esse caso é diferente, pois Danilo não tinha outra alternativa de vida

mais interessante do que estar casado com ela. Alma argumenta sobre a diferença que há entre

a sua relação com Danilo e a de Edu com Helena:

Em primeiro lugar, a diferença de idade entre nós é pequena. Em segundo lugar, o Danilo não tinha onde cair morto, não era ninguém, como num é até hoje, né? Então, eu fui e continuo sendo a tábua de salvação dele. Ele não tinha futuro, então eu virei o futuro dele. Com você é exatamente o contrário. Ela já não tem futuro e você está enterrando o seu (Cap. 7).

Afirmando que Danilo não tinha futuro, Alma anuncia o seu lugar de superioridade

frente ao marido mais jovem, porém pobre. Na relação de poder entre Alma e Danilo estão em

jogo a condição financeira e o status social. Nos jogos de poder entre homem e mulher

perpassam outros códigos, além da distinção sexual.

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Quando descobre a traição de Danilo, expulsa-o de casa, mas, quando o casal de

gêmeos nasce, perdoa-o. O seu perdão vem do reencontro com o seu instinto de mãe. No

passado, Alma teve um casal de gêmeos que sobreviveu apenas vinte dias. Sempre escondeu

esse acontecimento de todos pelo fato de o pai dos bebês ser pai de Stella e Edu. Depois da

morte dos seus filhos, Alma perde o seu amor, pois ele se apaixona e casa com a sua irmã.

Seu final é a realização dos seus instintos maternais, pois, mesmo afirmando que foi

mãe e pai de Edu e Stella, sempre carregou a dor e a perda dos gêmeos. Na sua concepção,

Guida e Alvinho – nomes dos seus pais – são uma nova chance que a vida lhe proporciona.

Camila: Eu não tenho essa segurança. Nunca tive! (Cap. 67); Eu num vou morrer, mãe! (Cap.

111).

Camila não é uma personagem que possui uma trajetória linear, pois ela é apresentada

de duas formas distintas. Em primeiro momento, como uma menina insegura e cheia de

dúvidas. No segundo momento, após saber que está com leucemia, como uma mulher cheia de

coragem e segurança.

Na primeira fase, Camila se configura como um corpo a ser educado/encaminhado.

Alma se apresenta como um modelo de segurança e determinação. Camila, enquanto o oposto

de Alma, a vê como um caminho a ser seguido. Alma representa o saber/poder de uma relação

em que dita as normas.

Camila: Eu não tenho essa segurança. Nunca tive! Alma: Ah, mas as pessoas num nascem seguras. É um aprendizado como outro qualquer. E você vai chegar lá, esteja certa. Camila: Será? Alma: Ah, claro que sim, Camila. Basta que você me escolha como professora. (Cap. 67).

Nessa relação, vemos a figura da professora como a detentora do conhecimento e do

poder do encaminhamento intelectual do seu aluno. Sendo assim, Alma tem o poder de ser a

professora porque é a dona do saber – nesse caso, Alma tem experiência de vida e,

conseqüentemente, tem segurança – e Camila será a depositária desses conhecimentos, que

serão adquiridos gradativamente.

73

Mas, quem não fica satisfeita com esse novo aprendizado de Camila é a sua mãe.

Helena acha que Alma, no intuito de separá-la de Edu, está manipulando Camila. Na

percepção da mãe protetora, Camila é uma jovem facilmente manipulável, pois ainda não

possui a experiência necessária para perceber as intenções de Alma.

Que tristeza que me dá, minha filha. Ver você se curvando diante daquela mulher que me hostilizou tanto, daquela mulher que tentou impedir de todas maneiras que eu fosse feliz. E ela te ofendeu também. Não sei se você se lembra. Você saiu de lá aos prantos. Foi uma situação dura, difícil. Até o Edu teve que sair de lá pra ir morar num hotel. Será que você se esqueceu de tudo isso? (Cap. 37).

A paixão de Camila por Edu é um ponto de conflito entre mãe e filha e, sendo assim,

representa um conflito de gerações. Mas, nessa disputa quem ganha é a juventude, ou melhor,

quem ganha é o amor de mãe e toda a sua capacidade de doação. Helena, quando percebe o

amor de Camila, acaba o relacionamento com Edu em nome do seu amor pela filha.

Ao longo de toda a novela há um grande duelo entre a juventude e a experiência. Entre

esse jogo, ora se tem a valorização de uma e ora da outra. Fica anunciado que até as relações

binárias, assim como as identidades, são posicionais.

Quando tudo parecia ir bem na vida de Camila – casada com o homem que ama,

grávida e ainda em lua-de-mel – vem a primeira reviravolta na sua vida: Camila aborta o

bebê. Desconsolada, ainda sem saber da grave doença, Miguel, citando Steinbeck, em As

Vinhas da Ira, envia-lhe flores com o seguinte cartão:

Pra mulher tudo corre sem parar, como num rio, cheio de redemoinhos, turbilhões e pequenas cachoeiras. Mas correndo sem parar. É assim que a mulher encara a vida. Não se entrega, continua. Pode até mudar um pouco, mas continua firme [...] (Cap. 109).

Observando o trecho acima do cartão de Miguel, encontramos a concepção de que o

corpo feminino possui caminhos tortuosos, biológico, cultural e socialmente inscrito com

funções e papéis a serem desempenhados. Nesse caso específico, revelando a maternidade

como um caminho natural para a mulher. Portanto, Camila não iria contrariar a natureza

feminina: seria mãe.

Inicia-se a segunda fase de Camila quando ela descobre que está com leucemia aguda.

Aquela menina sempre insegura se transforma numa mulher cheia de vontade de viver e cheia

de coragem para vencer a doença e ser feliz ao lado de Edu e da sua família.

Nessa nova fase, Camila se torna uma decepção para Alma, passando a ser um corpo

enfermo a ser separado e, conseqüentemente, excluído. Acabando com os sonhos de ver Edu

74

casado com uma jovem saudável e com filhos, Alma acha que Edu deve pedir a anulação do

casamento, pois, quando casou, Camila já estava doente. Nesse momento não estão em jogo

os sentimentos de Edu e Camila, mas o futuro familiar do seu sobrinho.

Alma acha que a doença de Camila será um fardo na vida de Edu.

Alma: Eu me preocupo com você, Edu, com a sua vida, com o rumo que ela vai tomar. Edu, você tem toda uma vida pela frente e você tem obrigação e você merece vivê-la em toda sua plenitude. Você não pode se apagar, se arrasar, você não pode ficar enclausurado naquele hospital 24 horas por dia, Edu. Edu: Estou cuidando da minha mulher. Alma: Eu sei, eu sei que você está... Meu Deus, mas não é justo você perder o melhor da sua juventude por causa disso. Edu: Tia, foi uma fatalidade, aconteceu. Ninguém pode prever. Também ninguém pode mudar isso. Né? Alma: Podemos, nós podemos, sim! Edu, quando essa doença se manifestou, você e a Camila estavam casados há menos de uma semana. Isso quer dizer que a Camila já estava doente quando vocês se casaram. Edu: Sim? E daí? Alma: E daí que isso é um fardo pesado demais pra você carregar, Edu. Você não merece isso. Esse casamento pode ser anulado (Cap. 116).

Para Alma, um casamento entre jovens necessita de uma felicidade plena que só pode

ser concretizada com saúde e com a vinda dos filhos. Alma, inclusive o telespectador, fica na

expectativa se Camila poderá gerar filhos: “[...] Eu só espero que ela tenha saúde pra

engravidar de novo e levar essa gravidez até o final, porque o Edu casou pra ter filhos” (Cap.

109).

Depois de muito sofrimento, Camila recebe o transplante da irmã, que veio ao mundo

para salvá-la. Nesse sentido, o nascimento de uma criança simboliza a vida, a renovação e a

própria salvação. Camila se cura, mas ainda não pode ter filhos. Essa foi a grande expectativa

do telespectador: será que Camila será mãe no final da novela? Portanto, o seu ciclo de vida,

enquanto mulher, ainda não está fechado.

Capitu: Eu fui fraca. Eu sei. Eu tinha que ter resistido... (Cap. 99).

Capitu é o exemplo de como se deve disciplinar um corpo desviado. Sendo construída

como uma boa moça, porém distante do caminho da normalidade, Capitu compõe uma

identidade desviante. É boa mãe, mas mente para os seus pais; ama apenas um homem, mas

75

faz sexo com outros; ajuda financeiramente os pais, mas se prostitui; tem uma vida fácil, mas

sofre, etc.

Recebendo atributos de uma identidade baseada no caminho incorreto, Capitu é a

personagem mais romântica da trama de Manoel Carlos, o que às vezes pode até parecer

estranho. Essa característica dá a entender que Capitu possui na sua essência a leveza, a

meiguice, a docilidade, a pureza, etc. Ela não é apresentada como uma Eva despudorada, mas

como um corpo a ser resgatado do mau caminho.

Capitu, em meio às lágrimas, fala um pouco dos seus sonhos, demonstrando os seus

medos, sofrimentos e insatisfações:

Pois é, mas aí você, você vê que todos os planos que você fez, durante uma vida inteira, ficaram pra trás. Sabe? Foram postos de lado, suplantados, mas não morreram. Meu pai é que costuma dizer que sonhos não morrem jamais. E eu tenho muitos. Viu? Eu tenho sonhos de menina, sonhos de mulher, sonhos de príncipes encantados, sonhos de amor. Só que eu tenho medo! Eu tenho medo que esses sonhos lindos jamais se tornem realidade (Cap. 46).

Ela mesma não se sente digna de ser feliz e merecedora do amor de Fred, pois vê a

prostituição como algo sujo, indigno. Helena, ao perceber o sério envolvimento de Fred com

Capitu, a procura e fala das suas preocupações de mãe, pois acredita que Capitu tem que

revelar a Fred o seu segredo e, se ela realmente o ama, terá forças para deixar essa vida.

Capitu, mesmo afirmando que ama e sempre amou Fred, tenta tranqüilizar Helena.

Não precisa se preocupar não. Tá? Porque eu não sou digna do Fred, Helena. Hoje eu não sou mais digna de ter o Fred [...] Eu tenho muita vergonha, Helena. Eu tenho muita vergonha de mim, muita vergonha do que eu preciso fazer pra sustentar essa casa, sustentar meu filho, meus pais. Eu juro que eu queria que tudo fosse diferente. Desculpa, desculpa por tá causando mais esse problema pra você (Cap. 77).

A vida que Capitu leva incomoda e preocupa seus pais e amigos, que procuram

caminhos para ajudá-la. Depois do diagnóstico do mal de Capitu, vem a prescrição de Fred:

“Se você quer ser uma mãe digna pro seu filho, você tem que enfrentar o mundo, você tem

que reagir” (Cap. 105).

Em meio à preocupação e à angústia da descoberta que Capitu é garota de programa,

Camila não entende como uma garota tão legal entra na prostituição e não sabe como ajudá-

la.

76

Camila: Ai, depois de toda essa situação tô me sentindo confusa, mãe. Chocada mesmo! Num sei o que eu posso fazer pra ajudar. Helena: Olha, não tendo preconceito, você ouvindo e dando o teu carinho já ajuda bastante (Cap. 46).

Capitu carrega uma marca no seu corpo, o de ser uma garota de programa, e acredita

que, mesmo abandonando essa vida, nunca vai ser vista como uma pessoa normal, sempre

será um corpo a ser vigiado, disciplinado e punido pela sociedade. Pelo fato de ser o outro,

Capitu sofrerá na própria carne a exclusão cultural e social e nunca será vista com igualdade.

Capitu revela a Fred os seus medos:

Será que tem saída, Fred? Será que algum dia você e os meus pais vão conseguir olhar pra mim do mesmo jeito que antes? A sensação que eu tenho é de que eu vou ficar marcada pra sempre, como se fosse uma criminosa. As pessoas até podem torcer pra que eu mude, mas nunca vão acreditar na minha reabilitação. Vão tá sempre me olhando, me vigiando, desconfiados, certos de que eu terei uma recaída. Sabe por que? Porque no fundo as pessoas acham que a fraqueza sempre vence, Fred. Talvez eu também ache isso, porque eu não sou forte o suficiente (Cap. 105).

Nesse sentido, Capitu sempre será atormentada pela eminência de uma recaída, pois se

foi fraca uma vez, sempre será. A fraqueza está associada à identidade feminina, dando a

entender que essa característica faz parte da essência feminina.

Capitu, assim como Eva, caiu em tentação. Em vez da serpente, veio o dinheiro e, em

vez da perda do paraíso, veio a perda da sua dignidade e felicidade. Na sua explicação, Capitu

adentrou no mundo do pecado e do erro por necessidades financeiras:

Aconteceu, Fred. Num tem nem explicação, nem desculpa, nem porcaria nenhuma. Eu me senti sem saída, sem dinheiro, querendo coisas pro meu filho, pro meu pai, pra minha mãe, pra mim. Tudo o que eu conseguia, um trabalho, qualquer outra coisa, era mixaria. Num dava pra nada. Sempre faltando tudo. Em um mês cortavam a luz, no outro mês, o gás, no outro, o telefone. Meu pai trabalhando, minha mãe trabalhando, mas todos sempre reclamando que não tínhamos isso, que não tínhamos aquilo, sempre faltando uma coisa ou outra. Durante dois anos eu tranquei a matrícula na faculdade. Depois, eu conheci o Maurinho, engravidei, ele sumiu. Aí é que num dava mesmo pra estudar, e trabalhar, e cuidar de filho, pagar as contas. Um inferno, um inferno. O último emprego que eu tive foi como balconista numa loja de um shopping. Eu tirava entre 400, 500 reais por mês (Cap. 99).

Preocupada com o filho, sempre afirma que tudo o que faz é pelo bem de Bruninho.

Ser uma boa mãe é mais uma característica pulsante de Capitu. Para ela, o amor e o zelo pelo

filho demandam sacrifícios que um dia serão reconhecidos por ele. É com os seus programas

que Capitu cria e educa o filho sem nenhum tipo de privação econômica.

77

Mas, para tanto, Capitu causa grande decepção e tristeza aos pais. A sua mãe, Ema,

sempre foi muito rígida, e o seu pai, Pascoal, compreensivo demais. Depois de ser humilhada

em público, Clara, na festa de casamento de Camila e Edu, vai ao microfone e revela a todos

que Capitu é garota de programa, seus pais finalmente descobrem o que já estava posto desde

o início da novela.

Sendo Capitu a sua alegria e a sua dor, Pascoal, na perspectiva que um filho é o

resultado da criação dos pais, acredita que fracassou como pai, mas não sabe onde errou, pois

deu tudo o que um pai pode dar a uma filha: amor, carinho, educação, boa alimentação, etc.

Pascoal, em meio à revolta, se culpa:

[...] Oh, meu Deus do céu, você mentiu inúmeras vezes, inúmeras vezes mentiu. Agora chega. Nós também permitimos que você mentisse tanto. No fundo, no fundo, eu desconfiava, mas não tinha coragem de admitir, não tinha coragem de encarar os fatos de frente. Fingíamos que acreditávamos em tudo que você dizia. A culpa também foi nossa (Cap. 106).

Em vez de se afastar da vida que leva, como seus pais querem, Capitu vai morar com

Orlando. Para Ema, essa será a salvação de Capitu, pois acredita que Orlando está se

separando da esposa para levar uma vida normal com a sua filha. Já Pascoal não acredita

nisso, “Vai nada, filha! Mas será que você não compreende que vai continuar cedendo aos

caprichos, desejos de um homem por dinheiro?” (Cap. 106).

Depois de muito sofrimento e muitos problemas, a sua redenção só é conquistada com

a sua inserção na normalidade. A partir desse momento, Capitu começa a lutar pela felicidade

e a realizar os seus sonhos de menina, mulher e mãe. É interessante notar que Capitu passa

por um ritual de purificação, pois, para se livrar de um passado marcado pelo desregramento,

ela se livra de Maurinho e Orlando de uma só vez e perde tudo o que conquistou através dos

programas que fazia: dinheiro, jóias, carro e roupas.

Na perspectiva de que o trabalho enobrece o homem e de que o estudo é o caminho do

enriquecimento intelectual e, conseqüentemente, do progresso material, Capitu parte em busca

da sua purificação. Para tanto, volta a cursar jornalismo, seu sonho desde menina, e pede um

emprego a Miguel na livraria.

Eu quero trabalhar e eu queria saber se você pode me arrumar um emprego aqui, na livraria. Miguel, eu num tô querendo mais do que você acha que eu posso fazer. Qualquer coisa. Eu voltei pra faculdade. Agora eu tô levando a sério, pra valer mesmo. Sabe? Eu, eu tô de vez na casa dos meus pais com Bruninho e eu tô querendo recuperar o tempo perdido, quase que a vida perdida. Né? É isso, eu quero recuperar a minha vida e eu sei que tem que ser devagar, por baixo, tentando crescer

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aos pouquinhos, convencendo a mim e aos outros que eu mudei, que eu mudei de verdade e que eu não corro risco de uma recaída (Cap. 148)

Desta forma, Manoel Carlos dá um sentido moralizante na sua história na medida em

que a personagem perde todos os seus bens materiais conquistados dos seus programas e se

encaminha para viver uma vida adequada aos nossos padrões de identidade feminina. Capitu

não vai apenas em busca do seu sustento através do trabalho e do estudo, mas também atrás

da sua aceitação social.

A prostituição é apresentada como uma anomalia social, que deve ser controlada.

Capitu, mesmo com toda a facilidade financeira, não tinha paz e felicidade, pois era

chantageada por Maurinho e agredida, física e emocionalmente, por Orlando.

Capitu, por se enquadrar à normalidade, tem como prêmio o homem que ama e

constitui a sua família – ela, Fred, Nina, Bruninho e o bebê que nascerá. No fim da trama,

Capitu termina muito feliz, casada e grávida.

Íris: Penso no agora. Sabe? No hoje (Cap. 51); Não sou o tipo de pessoa que esquece fácil

uma surra de chicote não (Cap. 35).

Enquanto Capitu é o exemplo de como se deve disciplinar um corpo desviado, Íris é o

exemplo de como é disciplinado um corpo rebelde, transgressor. Durante a trama, Íris apronta

muito e não deixa ninguém a sua volta em paz. Porém, vive na busca da sua aceitação. Quer

ser amada e desejada por Pedro, admirada por Helena e aceita por todos como uma menina

legal. Mas, para tanto, ela tem que purgar os seus pecados. É rejeitada e excluída. Para

alcançar os seus objetivos, ela tem que trilhar pelo caminho da bondade.

Íris não corresponde ao estereótipo da mulher feminina, pelo contrario, é

constantemente comparada a um moleque. Sempre vestida de macacão e botas, não possui

vaidades, mas sempre deixa claro que, na conquista de Pedro, tem como aliada a juventude.

No exemplo abaixo, Íris quer sair, mas Pedro não deixa, pois acha que uma moça não

deve sair sozinha pela noite.

Pedro: Não vai sair mesmo. Só se for por cima do meu cadáver. Íris: Não seja por isso. Eu passo e ainda cuspo em cima. Tá? Pedro: Malcriada. É uma moça, tem que ser feminina. Como é que se comporta feito moleque, hein ? (Cap. 103).

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O fato de a filha não se adequar ao padrão feminino sempre preocupa Ingrid, pois

acredita que rebeldia e impulsividade são características masculinas. Íris se torna uma ameaça

no sentido de não corresponder ao modelo de docilidade, fragilidade e meiguice esperado das

mulheres. Ingrid, um dia antes de morrer, anuncia:

Me preocupo tanto com a Íris. Sabe? Tenho tanto medo do que possa acontecer com ela por causa do gênio que ela tem. Você viu como ela enfrenta todo mundo, mesmo na minha frente? É o atrevimento que ela puxou do pai de vocês, que não era fácil. Meu Deus do céu, eu é que sei. Mas ele era homem e velho. Agora, ela sendo mulher e tão nova ainda, eu fico pensando onde vai parar quando ela tiver 21, 22 anos e se sentir a dona do próprio nariz (Cap. 69).

A sua mãe não consegue prendê-la a valores convencionais, pois Íris se apresenta com

várias facetas – louca, carente, inconseqüente, criança, perversa, mulher, rebelde, apaixonada,

etc. Íris é a eterna preocupação de Ingrid e, após a morte do seu pai, decide sair da fazenda e ir

morar no Rio de janeiro.

Socorro: A senhora acha mesmo que ela vai ficar lá, no Rio? Que vai agüentar lá por muito tempo? Ingrid: Eu nunca sei o que pode acontecer com essa minha filha. Às vezes, eu, eu fico achando que ela tá pensando numa coisa, mas ela tá pensando noutra. Fico imaginando que ela vai pegar a direita, mas ela acaba pegando a esquerda. Nesses dezoito anos de vida, ela me escapou das mãos todas as vezes que eu quis pegar. E nem com dezoito anos de vida, mais dezoito anos de vida, vezes dezoito anos de vida, eu vou conseguir conhecer Íris melhor do que hoje (Cap. 33).

Íris, indo morar no Rio, o que deixa para sua mãe são a incerteza e a angústia, pois

Ingrid sabe que Íris irá arranjar muita confusão. Na concepção de Íris, o Rio de Janeiro

significa outra forma de viver e, conseqüentemente, outro mundo. É atrás desse mundo,

vivenciado pela internet, revistas, cd’s e livros, que Íris vai em busca, mas sobretudo é atrás

de Pedro que Íris vai.

Seu encontro com esse mundo diferente do seu é marcado pelo encantamento inicial e,

depois, pela violência e sofrimento. Nos traçados de Manoel Carlos, Íris tem que pagar pelas

suas maldades.

Íris é construída como um anjo diabólico, pois é muito dissimulada. Quando quer, tem

cara de menina desprotegida e até sofrida. Seu alvo principal é Camila. Íris não aceita o fato

de Camila se apaixonar pelo namorado de Helena. Sendo assim, usa esse argumento para

transformar a vida de Camila num verdadeiro inferno, sempre invadindo a sua privacidade,

insultando-a – JUDAS (Cap. 63) – e rogando-lhe pragas.

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Seu grande objetivo de vida é conquistar Pedro. Nessa busca, Íris não mede esforços.

Acredita que a sua juventude é o seu maior aliado e não vê problemas em se relacionar com

um homem mais velho.

A sua primeira adversária é Sílvia, esposa de Pedro. Em meio às várias confusões –

chicotadas e até fazer a sua adversária subir em um cavalo e assustar o bicho para acabar

literalmente com Sílvia – Íris anuncia que não desistirá:

Íris: [...] Num se faz muito amada não, pra não sofrer quando o Pedro te der o fora. Ah,ah,ah. Sílvia: Eu não tenho medo de você, sua piralha oferecida. Íris: Eu vou crescendo e eu vou ficando cada vez mais mulher, mais bonita. Hã? Mais interessante. Num tenho pressa não. Mais cedo ou mais tarde, eu tiro ele de você. Sílvia: Eu mato você, eu mato você. Íris: Mas vai ter que matar mesmo se quiser ficar com o Pedro, porque eu tenho tempo, tenho todo o tempo do mundo e o Pedro vai me esperar. Sílvia: Eu te odeio, eu te odeio (Cap. 8).

Sua segunda rival é Cíntia. Seu argumento de vantagem, e até de superioridade perante

a rival, é a sua virgindade. Mesmo Íris não estando presa ao convencional, ela tem a sua

virgindade como um bem, pois afirma que é virgem de boca e de corpo e que o único homem

que a terá será Pedro. Anuncia que a virgindade é algo favorável a ela, pois Cíntia só serve

para divertimento.

Cíntia: Eu vou pra cama com ele quantas vezes eu quiser. Eu vou viver uma história de amor com ele porque ele é o homem que eu quero pra mim. Deu pra você entender? Íris: Só que ele não te quer. Ele vai te usar, vai te levar pra cama, sim. Usar, lambuzar e vai te jogar fora. O Pedro não te ama. Cíntia: Ele vai ter que escolher. Ou você ou eu, menina. E eu não tenho medo de você, não tenho medo das suas ameaças baratas. Íris: Mas entre eu e você, ele vai me escolher. Sabe por que? Porque eu sou jovem, porque eu sou virgem, eu tô me guardando pra ele. Você consegue entender isso? Eu, eu tô me guardando pra ele (Cap. 114).

Por último, vem Helena. Íris tem uma verdadeira adoração pela irmã, mas, no dia em

que descobre que Helena passou a noite com Pedro, tudo muda. Íris se sente traída por quem,

ela afirma, mais ter amado. É nesse momento que Helena começa a não mais acreditar em

Íris. Nessa altura da trama, a sua mãe já morreu, ela está sofrendo a rejeição de Pedro, Cíntia e

Camila, seu cavalo está doente, etc.

Uma das primeiras fases de purgação dos pecados de Íris foi a perda da mãe. Ingrid

doa a sua vida em nome da filha, mostrando que uma mãe é capaz de extrapolar todos os seus

limites e sentidos, inclusive da vida. Ingrid viaja ao Rio para ver como a filha está e planeja

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reconstruir a sua vida nessa cidade. Mas, no dia da sua volta ao Sul, acontece uma tragédia.

Íris e Ingrid são pegas como reféns por um bandido armado e em fuga. Durante as

negociações com a polícia, Ingrid implora para que o bandido solte a sua filha, pois ele decide

levá-la na fuga. De nada adianta, mas consegue convencê-lo a levá-la também como refém.

Na hora de entrar no carro, o fugitivo tenta descartá-la da fuga. Para salvar e defender a sua

cria, Ingrid se joga em frente ao bandido e é mortalmente atingida.

Por fim, vem a redenção. Como Camila foi a sua maior vítima, Íris tenta se redimir

perante a família através do arrependimento e de uma boa ação:

Eu fui no laboratório tirar sangue. Eu queria muito fazer a doação da medula pra tentar salvar a vida da Camila. Depois, eu fui até o hospital tentar falar com ela. Eu queria contar o que eu tinha feito, queria dizer que eu tava sem raiva, queria pedir pra ela me desculpar e também explicar as minhas razões, explicar o que eu tinha sentido durante esse tempo todo (Cap. 145).

A paz e a normalidade se instalam, Íris se arrepende das suas maldades e deixa de ser

uma mocinha má. Ocorreu uma transformação drástica na vida de Íris: de rebelde, passou a

ser domesticada. Como uma mulher de vida doméstica e rural, Íris passa a viver ao lado de

Pedro.

Analisando as identidades femininas contidas em Laços de Família, fica evidenciado

que essas não são postas de forma aleatória e despretensiosa, pois fazem parte de um projeto

de adestramento de corpos e almas e, sendo assim, fazem parte de um projeto educativo. Mas,

educar as identidades femininas no sentido de encaminhá-las para uma identidade estável e

terminal.

Afirma Deleuze (1992, p. 223): “[...] as sociedades de controle operam por máquinas

de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a

interferência, e, o ativo, a pirataria e a introdução do vírus”.

Nesse contexto, o vírus pode ser compreendido como o próprio poder apelativo do

discurso da mídia. Este tem o poder de criar verdades e modelos adequados de identidade, ou

seja, formas de ser homens e de ser mulheres na modernidade.

Esta trajetória de análise dessas cinco personagens – Helena, Alma, Camila, Capitu e

Íris – veio a corroborar a minha hipótese; haja vista que o discurso da telenovela apresenta

seus personagens como um reflexo da nossa sociedade. Desta forma, evidenciaram-se as

relações de poder/saber inscritos nas práticas sociais e culturais do universo de Laços de

Família.

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5 IMAGENS RECORRENTES

Você sabe? Incrível! Existe uma quantidade fantástica de mulheres dentro de você, Helena. Quando eu te vi pela primeira vez, no dia do acidente, eu conheci ali a primeira Helena. Algum tempo depois, durante a nossa viagem ao Japão, eu conheci uma outra e depois vieram outras Helenas: a mãe, a filha, a profissional. Hoje, no cinema, eu me deparei com uma outra Helena, outra e agora aqui, novamente, outra Helena, outra (Miguel, Cap. 82).

O que é uma conclusão? O fim de um percurso? A constatação de uma verdade? Um

apanhado de idéias resumidas? O fechamento de uma pesquisa? O ponto final?

Esta última parte do meu trabalho não vem carregada de uma proposta de fim, de

fechamento, de conclusão, de encontro com a verdade sobre isso ou aquilo. Trago uma

proposta de transcorrer livremente sobre o que penso acerca da identidade feminina. A

proposta de uma não conclusão surge da concepção de que há muito mais a perguntar, sonhar

e buscar.

Concluir é acabar por legitimar o conhecimento como o lugar da veracidade ou do

engano, é afirmar que, na relação escritora/pesquisadora e leitor/leitora, detenho o poder de

falar em nome do saber científico e dizer que o que escrevi foi posto à prova, portanto é

verdadeiro e totalmente natural.

Contra a naturalização e contra a aceitação de que as coisas, os pensamentos, as

palavras e as práticas de vida estão numa ordem correta de acontecimento, neste momento,

detenho-me no escrever aleatório. Mas me vem à memória o que afirmei sobre o discurso: ele

não é aleatório, desordenado. O discurso passa por uma série de rituais, interesses, poderes,

saberes, etc.

Logo, busco pensamentos. Êpa!! Mas o meu pensamento é fluido, mutável,

inconstante. Amanhã recomeçarei a escrever essas páginas em branco, assim como novos

significados são (re)inscritos nos nossos corpos e nas nossas mentes. Dessas escrituras, monto

um mapa – ou os seus rabiscos – de que somos corpos disciplinados, mas que vivemos a

quebra cotidiana das normas.

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Em pleno horário nobre da televisão brasileira, passa uma cena de novela em que a

menina rebelde agride e roga pragas a uma frágil grávida. O discurso moderno, apresentado

pelo folhetim, afirma que esse corpo deve ser punido: desprezo, surra, perda trágica da mãe,

etc. Depois o arrependimento: salvo um corpo anormal.

Logo em seguida, uma mãe faz tudo pela felicidade da filha e esquece da sua própria

felicidade. Depois, essa mesma mãe se desespera e luta pela vida da filha, mais uma vez é

capaz de tudo por esse amor. Vem a recompensa: sua filha se cura e seu amor a perdoa. A

felicidade plena.

Nas subjetividades das telespectadoras e dos telespectadores circulam identidades

normais e anormais. Depois de todo esse encaminhamento à normalidade, a novela cumpriu o

seu projeto de disciplina e controle: ensinou o caminho de adequação à identidade essencial

de ser mulher.

Na construção das identidades entram em cena os vários interesses de ordem política e

subjetiva. Pensar no eu e no outro é perceber interesses que emergem de discursos nada

inocentes e de lugares sociais e culturais.

Quando afirmo que o eu e o outro surgem da relação entre identidade e diferença,

assumo um lugar construído historicamente a partir do jogo de poder e de saber. Classificar e

nomear o outro é construir o meu lugar de superioridade diante da relação binária. Nesse jogo

relacional, o eu e o outro se vêem a partir de um espelho invertido.

Se sou rico, não sou pobre; se sou branco, não sou negro; se sou homem, não sou

mulher; se sou mulher, não posso amar mulheres. Extrapolando esse sentido, se sou

construída como um corpo fixo, não sou natural, sou um corpo marcado de significações,

construções e nomeações.

No discurso moderno, as identidades são construídas como um desenho rabiscado dia

após dia, que se reveste de novos contornos e novas cores. Este desenho é reproduzido para os

vários corpos, que se pretende que se fixem nessas molduras. Desta forma, para esse discurso,

não há espaço para o diferente.

O diferente agride, assusta e é justamente o que não queremos ser. Assim, desejamos o

outro longe e controlado; num lugar reservado aos que não se enquadram ou que não podem

ser incluídos no espaço dos que estão em concordância com o lugar da normalidade e do

aceitável.

Talvez seja até mais cômodo pensar que o meu eu é construído como um sujeito com

caminhos prontos, em vez de uma identidade descentrada e em fluxo. Ficar na fronteira ou

pular o muro do convencional causa mal-estar, pois na nossa sociedade o convencional é o

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normal. Ser o outro de um mundo que pretende enquadrar a todos é ser visto como o

transgressor, o anormal, o imoral, etc.

E ser um corpo feminino? Carregamos marcas, cicatrizes e pesos. Nos trilhos do

pensamento ocidental e moderno, possuímos papéis bem definidos. Aos homens está

reservado isso e às mulheres, aquilo. Entre o isso e o aquilo, as identidades são fixadas a

lugares sociais e culturais.

Aos homens não estão reservados apenas as glórias e uma liberdade plena. Estes

também possuem seus papéis bem definidos: provedores, machos, viris, protetores,

trabalhadores, etc. Acho que também deve ser muito pesado para os homens ter que exercer

seus papéis.

Mas, a materialidade do discurso masculino é muito mais temível, pesado e sufocante

para as mulheres: punição física e moral, adestramento contínuo, caminhos já bem definidos,

etc.

Quando nascemos, somos apenas corpos. A partir da constatação de que esse corpo é

feminino ou masculino, constroem-se identidades distintas para cada sexo. São os nossos pais,

os parentes, os vizinhos, ou seja, é a sociedade que vai nos moldando a partir do estigma de

ter nascido com um pênis ou uma vagina.

Portanto, o tão aclamado e pretendido determinismo não é determinante na forma de

viver, desejar, agir e sonhar. Esse se dá a partir do determinismo discursivo, ou seja, a partir

da concepção de que menino é isso e menina é aquilo.

As chamadas – menina não brinca de carrinho e menino não brinca de boneca;

menino não chora; lugar de menina é em casa; menino não usa rosa; etc. – são mais

aprisionantes do que se possa imaginar. Qual será o sentimento de uma menina ao se constatar

que gosta de carrinhos e de um menino que gosta de bonecas? Nenhum, se não houvesse

discursos e práticas que colocam gostos, sentimentos e atitudes no lugar da anormalidade e da

marginalidade.

Vamos crescendo e subjetivando que possuir um órgão sexual feminino ou masculino

determina poderes e concessões.

São muitas as exigências!

Além de todas as cobranças e imposições de séculos, agora temos que nos adequar ao

discurso da estética perfeita. O bombardeio de que devemos ser magras e jovens é constante e

frustrante, pois cada corpo é uma anatomia. A mídia se encarrega muito bem de mostrar um

padrão de beleza calcado na magreza, juventude, versatilidade, leveza, etc. Uma tripla

jornada: casa, trabalho e academia.

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O ser feminino demanda muita disciplina!?

Penso que a disciplina e o controle são molas-mestras na construção das identidades.

Mas que essas não são únicas, totalizantes e homogêneas, pois possuímos uma pluralidade de

identidades que se cruzam e até se chocam.

As certezas de lugares bem definidos entre homens e mulheres são constantemente

abaladas por outras formas de se vivenciar a sexualidade. Para essas certezas, as pessoas que

gostam de pessoas do mesmo sexo concentram-se entre o ser e o não ser. Ficando na fronteira

ou se deslocando do padrão, essas pessoas perturbam o que, para a maioria, está dado como

natural.

Essa é uma questão que daria uma nova pesquisa, uma nova dissertação. Mas já tenho

amigos – Élson, Kyara e Walber –, cada um com seu enfoque, que se encarregam dessa

pesquisa. Os três se preocupam com os homens que gostam de homens. E as mulheres que

gostam de mulheres?

Vamos adiante!

Chega a noite, a família se senta em torno da televisão e da Rede Globo: novela das

cinco e meia, novela das seis, novela das sete e novela das nove – momentos-auge de reunião

da família. Isso sem se falar nas minisséries de início de ano e nas novelas de outras

emissoras.

Às cinco e meia da tarde, um bando de adolescentes com hormônios em ebulição; as

seis, mocinhas sonhadoras e príncipes encantados; às sete, muita confusão e a busca por

dinheiro a qualquer custo; às nove, grandes dramas humanos – esse horário tem que agradar

gregos e troianos. Em todos os horários: paixões arrebatadoras, mocinhos e vilões, pessoas

bonitas, ricas, talentosas e o seu oposto. Cada horário, um estilo de acordo com o perfil de

seus telespectadores.

Uma pergunta a vocês, leitores e leitoras: o que será que a novela tem que atrai e

consegue capturar as pessoas?

Pode até parecer exagero, mas muitas pessoas no dia-a-dia assistem a novelas,

comentam os seus acontecimentos e até seguem determinados personagens. É um magnetismo

surpreendente. Apenas argumentar que a televisão é a maior fonte de lazer não nos dá

resposta alguma, pois há uma variação muito grande de programas na TV. Outras atrações

poderiam ser eleitas a rainha da televisão brasileira.

Talvez a paixão pela novela se concentre no espelho de identificação ou no sonho de

viver as histórias. Logo, a novela ora se aproxima da realidade de cada um, ora se distancia.

Mas esse distanciamento abre as portas para o imaginar e o sonhar. Uma pessoa pobre pode se

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imaginar no lugar de um personagem milionário, saudável, esbanjador e cheio de mulheres

bonitas. Nesse exato momento, não há amarras ou barreiras para a imaginação.

A ficcionalidade não apenas diverte o telespectador. Ela molda comportamentos e

gostos. Quando estava passando Laços de Família, as mulheres passaram a usar brincos

enormes e a pintar as unhas de cores escuras como a personagem Capitu.

Os vários bordões das novelas são usados nas ruas, em casa, nas esquinas, na escola,

etc. Tô certo ou tô errado? – Roque Santeiro, Sinhozinho Malta –, Não é brinquedo,

não! – O Clone, Dona Jura –, Mistéeeeerio – Tieta, Dona Milu –, etc. foram alguns dos

vários bordões repetidos por muita gente na época em que estavam passando as suas

respectivas novelas.

Um dos grandes problemas que encontramos é que a escola não acompanha o fluxo

identitário nem o fluxo televisivo. Os alunos e as alunas vivem num mundo cercado de

imagens e mensagens dos vários programas de TV, porém não encontram espaço na escola

para problematizar os vários temas apresentados pela mídia.

Portanto, o grande desafio na relação educação e televisão é pensar como trabalhar

com uma gama variada de alunos e de alunas que estão constantemente sendo bombardeados

pela mídia e as suas várias apelações discursivas. A escola moderna continua cerrada nos seus

próprios portões, projetos e concepções, impondo o que se deve discutir na escola e o que é

bobagem, perda de tempo.

A nossa escola continua trabalhando com um currículo que se apresenta

multidisciplinar, mas não está atenta aos desejos e necessidades dos envolvidos no ensino e na

aprendizagem. Nesse sentido, todo o conhecimento necessário para o encaminhamento

intelectual e, futuramente, material das alunas e dos alunos obedece a uma lógica e uma

ordem correta de acontecimento.

O discurso da escola moderna contesta e problematiza os conteúdos, porém não

historiciza o seu próprio conhecimento. Segundo o saber da mesma, o seu conhecimento já

está numa ordem certa do discurso. Sendo assim, as subjetividades acerca das identidades são

cada vez mais reforçadas e tidas como naturais.

Segundo Corazza (2001), a linguagem da escola gagueja por não assumir outras

linguagens, ou seja, está baseada em velhos cânones modernos, como sua crença na verdade.

A linguagem binária, por excelência da escola moderna, subjetiva na mente dos seus alunos e

das alunas as desigualdades e exclusões, sempre reforçando que há uma identidade superior e

uma inferior.

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Com base numa suposta identidade única e homogênea, os corpos emoldurados por

esse discurso vão se revestindo de ares contemporâneos, como no caso das identidades

femininas de Laços de Família. O exemplo mais claro é o de Helena, uma mulher que é bem

sucedida no emprego e vive várias paixões, mas está calcada no estereótipo da mãe exemplar.

Porém, mesmo vendo que as identidades são construídas discursivamente no lastro das

práticas sociais e culturais, vejo que estas são posicionais: vivem em fluxo. Fluxo é vida, é

transgressão.

A telenovela sendo produto e, ao mesmo tempo produtora cultural e social, reveste-se

da sedução da sociedade de controle para propagar um discurso que se apresenta como

emancipatório, mas que não libera e, sim, aprisiona. Entre o dito e o não dito das telenovelas,

as teias da captura e da sedução vão se multiplicando e apresentando que as identidades são

construídas no entrelaçamento da relação de poder/saber.

Chego ao final deste capítulo da minha novela e não cumpro o que anunciei no quarto

parágrafo desta não conclusão – proferir um discurso aleatório. Mais uma vez afirmo: o

discurso não parte de uma mera curiosidade, mas sim de intencionalidades.

Sendo assim, na intenção de desvendar aquela velha resposta do meu professor de

biologia da sexta série – é porque é – que escrevo esta dissertação. Aquela resposta, que

colocava as nossas práticas sociais e culturais num lugar de natural e essencial, trouxe-me

inquietações de uma vida. O engraçado é que para os meus e as minhas colegas de classe, o

inquietante e o imbecil eram a minha pergunta – professor, por que o homem e não a mulher?

Hoje, após treze anos, a anormal da sala de aula responde: é porque foi construída.

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REFERÊNCIAS

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ANEXO – CD Room com as cenas referentes aos hiperlinks da dissertação