a descolonização da Ásia e da África

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Canêdo, Letícia Bicalho A descolonização da Ásia e da África Bate-papo com a autora Letícia Bicalho Canêdo, mineira de Muriaé é a quarta de uma família de oito irmãos (descendentes de políticos tradicionais do interior do Estado), viu transcorrer sua adolescência entre um teclado de piano e um escritório eleitoral (do PSD). A pacata vida de interior, somada à perspectiva de ter que adequar suas aspirações aos limites de uma família, deixavam aflita a moça que lia muito, adorava cinema e sonhava em ser regente de orquestra. Chegou a fazer um curso de regência de coral em Belo Horizonte, mas, a solução para sair definitivamente de Muriaé, Letícia encontrou-a na inscri- ção para o vestibular. Por que História? "Porque eu não sabia matemática, física ou química, além de ter forte ligação com a literatura — cresci lendo Stendhal, Tolstoi, Thomas Mann, Machado de Assis". "Como naquele tempo não havia cruzinhas para marcar nas provas e sim dissertações, con- segui a aprovação para apresentar como um fato consumado à minha fa-

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Page 1: A Descolonização da Ásia e da África

Canêdo, Letícia Bicalho

A descolonização da Ásia e da África

Bate-papo com a autora

Letícia Bicalho Canêdo, mineira de Muriaé é a quarta de uma família

de oito irmãos (descendentes de políticos tradicionais do interior do Estado),

viu transcorrer sua adolescência entre um teclado de piano e um escritório

eleitoral (do PSD). A pacata vida de interior, somada à perspectiva de ter

que adequar suas aspirações aos limites de uma família, deixavam aflita a

moça que lia muito, adorava cinema e sonhava em ser regente de orquestra.

Chegou a fazer um curso de regência de coral em Belo Horizonte, mas, a

solução para sair definitivamente de Muriaé, Letícia encontrou-a na inscri-

ção para o vestibular. Por que História? "Porque eu não sabia matemática,

física ou química, além de ter forte ligação com a literatura — cresci lendo

Stendhal, Tolstoi, Thomas Mann, Machado de Assis". "Como naquele

tempo não havia cruzinhas para marcar nas provas e sim dissertações, con-

segui a aprovação para apresentar como um fato consumado à minha fa-

mília."

Mesmo assim, o coração balançou durante muito tempo entre a Mú-

sica e a História. Trabalhou como professora na Escolinha de Arte do Brasil

e em outras escolas, mas "por necessidade de sobrevivência, fiquei mesmo

com a História, que aprendi a sentir e viver melhor dentro da ação política

estudantil".

Formada, logo interessou-se, como pesquisadora, por estruturas orga-

nizacionais que procurassem introduzir modificações na sociedade e seu pri-

meiro tema foram os movimentos sindicais brasileiros. Tem vários trabalhos

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publicados, entre eles "O Sindicalismo Bancário em São Paulo", pela Edi-

tora Símbolo, e "O Ensino da História", in Informativo do Conselho de

Pais, Centro Educacional de Niterói.

Letícia é formada em História pela Universidade Federal do Rio de Ja-

neiro, é Mestre em História pela USP e Doutora em Ciência Política tam-

bém pela USP.

A seguir, Letícia responde a quatro questões:

P. A descolonização, de que trata este livro, foi um fenômeno típico da Ásia

e da África, continentes distantes do nosso milhares de quilômetros. Que

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tem esse assunto a ver com a realidade brasileira?

R. Procurei mostrar, neste livro, como a formidável expansão do capita-

lismo, ao criar um mercado mundial, acabou por acarretar a dominação,

direta ou indireta, da Ásia e da África por algumas nações industrializadas.

Também a América Latina, onde se situa o Brasil, viveu esta situação

de dominação. Só que, enquanto a Ásia e a África precisaram ser conquis-

tadas com violência para se abrirem à orientação externa, as estruturas eco-

nômicas e sociais da América Latina, desde muito, já haviam se constituído

em função das necessidades externas.

Existem duas situações que precisam ser distinguidas para se perceber

o que a descolonização, descrita neste livro, tem a ver com a realidade brasi-

leira. Uma é a situação colonial clássica, contra a qual os países africanos e

asiáticos lutaram para se libertar. A outra é o neocolonialismo vivido pelas

ex-colônias e apresentado como sobrevivência do sistema colonial, a despeito

da independência formal. Uma situação sustentada por uma elite interna que

ocupa, no poder, o lugar do antigo colonizador, favorecendo a continuidade

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da dominação externa. Foi o processo de descolonização da Ásia e da África

que colocou, com muita clareza, esta distinção para todos os países subde-

senvolvidos, apesar da especificidade de cada um. E um problema comum:

a necessidade de uma independência real, baseada num desenvolvimento

autônomo.

Sofremos, tanto quanto qualquer país recém-saído da colonização di-

reta, os efeitos de um progresso, isto é, de um pseudodesenvolvimento reali-

zado através da "ajuda'' econômica de países alicerçados no poder científico

e tecnológico. Através dessa "ajuda", que nações "superiores" devem às

"inferiores", continuamos a ser explorados, pois somos obrigados a obe-

decer às ordens do capital investido.

P. A descolonização foi um processo de libertação nacional ou de simples

troca de colonizadores?

R. Considero importante fazer uma distinção entre luta de libertação na-

cional contra um elemento estrangeiro e luta de libertação nacional com

preocupação social, além da anticolonialista.

Para o primeiro caso, talvez coubesse a substituição da expressão

"simples troca de colonizadores" por uma outra: mudança de cor e de

nacionalidade da elite dirigente dos novos Estados emergentes.

Já nos países onde houve preocupação social, ocorreu muito mais do

que simples troca de colonizadores ou de dirigentes oficiais. Os exemplos

maiores são os da China e do Vietnã, que deram um enorme salto para a

verdadeira independência. No caso do Vietnã, isto ficou evidente no vigor

com que a população repeliu as imposições de um país considerado cientí-

fica, técnica e materialmente o mais forte e importante do mundo.

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Page 4: A Descolonização da Ásia e da África

P. A miséria, a fragilidade e a dependência dos pequenos Estados africanos

não os tornam presa fácil de ditadores cujo exemplo mais evidente terá sido

ldi Amin Dadá? Em caso afirmativo, não teria sido melhor continuarem

essas pequenas nações vinculadas a Estados europeus poderosos?

R. A miséria, a fragilidade e a dependência tornam qualquer Estado presa

fácil de ditadores. Os exemplos existem também na América Latina e na

Ásia. Quem nunca ouviu falar de Ferdinando Marcos, de Somoza, de

Strossner, só para citar os mais famosos? São tão excêntricos e ferozes

quanto os africanos. Só que não são negros e seus comportamentos não cho-

cam tanto os padrões ocidentais.

Qualquer regime só pode partir da sociedade de que surgiu. Os regi-

mes ditatoriais africanos saíram de sociedades sem formação nacional e pro-

fundamente destruídas pelos colonizadores europeus. Qual o sentido de per-

manecerem vinculadas à que as destruiu?

A grande tragédia da descolonização foi ela ter se realizado sem o

rompimento com o passado colonial. Se houve algum rompimento foi com o

passado real que a maioria dos dirigentes, de forma autoritária e violenta,

procura manter desconhecido. Isso ocorre, talvez, pelo fato de o passado

estar cheio de exemplos de solidariedade e provas de capacidade de uma vi-

vência autônoma dentro da comunidade das nações.

P. Quais são as perspectivas das pequenas nações africanas e asiáticas num

mundo em que os pequenos Estados se tornam inviáveis mesmo na Europa

desenvolvida?

R. O movimento lançado em Bandung em 1955 iniciou uma primeira mobi-

lização dos países africanos e asiáticos para a resolução dos seus problemas

comuns. E revelou a possibilidade de esses muitos mundos, que compõem

estas pequenas nações, combinarem suas forças em ações políticas comuns.

Page 5: A Descolonização da Ásia e da África

A partir de Bandung, muitas reuniões se realizaram, embora, até o

momento, as soluções das questões apresentadas tenham ficado muito mais

nas palavras do que nas ações. Entretanto, os imperativos da sobrevivência

econômica e o fato de a unidade se haver tornado um mito impulsionador

para as categorias sociais mais dinâmicas, levam a crer na possibilidade de

uma solução política e econômica unitária para o conjunto desses países. Em

outras palavras: ultrapassar a etapa do nacionalismo europeu do século XIX,

para desembocar nas coletividades multinacionais, como já o fizeram as na-

ções capitalistas desenvolvidas.

Há ainda várias forças a serem consideradas, além .das dos políticos

profissionais, dos tecnocratas e dos chefes tribais, quando se pensa num mo-

vimento de solidariedade e resistência. Existem as forças das organizações

dos trabalhadores e de outros setores da sociedade civil, capazes de inventar

uma nova orientação para a compreensão internacional.

1. a descolonização

numa foto em negativo

Não sei se existe ainda, em Boma, antiga capital do Reino do Zaire,

uma árvore gigante, um baobá. Até pouco tempo, os botânicos estimavam

ter ela 4.000 anos de vida. Um especialista em questões culturais afro-asiá-

ticas — Van Praag — escreveu certa vez que as pessoas, ao passar pelo

baobá, costumavam gravar seus nomes no casco da velha árvore. Entre elas,

Stanley, aquele viajante inglês que no século passado conseguiu atravessar o

continente africano de leste a oeste. A inscrição de Stanley data de 1875.

Page 6: A Descolonização da Ásia e da África

Numa árvore de 4.000 anos chega a parecer uma inscrição de ontem.

Foi, portanto, numa África carregada de história que os europeus che-

garam como colonizadores, como dominadores. Uma história construída ao

longo de milênios, de que resultaram modos de vida e mentalidades bem

complexas, dentro de uma diversidade étnica e cultural que os colonizadores

não respeitaram. Da mesma forma que não respeitaram os milênios de his-

tória da Ásia, forjada através de lutas, de grandes movimentos demográficos

e de explosões místicas de povos que construíram e derrubaram impérios,

e nos legaram os princípios básicos de nossa civilização, os progressos funda-

mentais da humanidade: domesticação dos animais, agricultura, cerâmica,

metalurgia, papel, pólvora, bem como as instituições básicas da nossa vida

social (cidade, Estado organizado, moeda e escrita). Os invasores europeus

passaram por cima de tudo isto, por cima de toda a sabedoria oriental, fun-

dada no domínio do saber metafísico e da beleza, na experiência afetiva e

emocional do homem: mudaram os velhos padrões da sociedade, impuseram

o trabalho forçado e o racismo, isto é, a exploração do homem pelo homem,

base das estruturas coloniais.

Mas se os inventores europeus não respeitaram, os colonizados não

puseram uma pedra sobre o passado de suas terras. E a atitude dos europeus

contribuiu para transformar a dominação colonial européia na Ásia e na

África, entre meados do século XIX e a Segunda Guerra Mundial, num dos

fenômenos históricos de maior efeito traumático, principalmente no campo

psicocultural. Um impacto particularmente violento nas regiões de civiliza-

ção mais antiga, como a China, o Egito e o Vietnã. Tão traumático, que o

processo de revolta contra as metrópoles pode ser considerado uma das revi-

ravoltas mais rápidas que a história já registrou.

A corrida dos burgueses europeus — ingleses, franceses, holandeses e

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belgas — para adquirir colônias e formar grandes império coloniais teve

início ao longo do século XLK. Na véspera da Primeira Grande Guerra

(1914), o mundo estava, em sua quase totalidade, dominado, animado e

organizado pela Europa. No entanto, 30 anos depois, no fim da Segunda

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Guerra, já se podia escutar o sopro ardente dos continentes colonizados var-

rendo os dominadores e forçando a entrada no palco das relações interna-

cionais daqueles que antes, como colônias, só figuravam no cenário como

objetos. No final da década de 60, centenas de milhões de seres humanos,

como resultado de uma ação coletiva e determinada de mudar o sistema de

dominação, já haviam se tornado atores no processo de decisão de poder. E a

história das relações internacionais passou a ser influenciada pela emanci-

pação dos povos colonizados. O que existe de estupendo é o caráter mundial

dessa emergência. A ONU (Organização das Nações Unidas) conta hoje

com mais de 130 Estados, ao passo que sua antecessora, a Sociedade das

Nações, criada logo após a I Guerra Mundial, nunca reuniu mais de 50. Um

mundo novo que se abriu para a história, bem diferente daquele centralizado

pela Europa do século XLX.

É a esse processo histórico, que levou à liquidação dos impérios colo-

niais europeus e ao surgimento ou ressurgimento de povos que se consti-

tuíram em Nações e Estados, que se costuma dar o nome de descolonização.

Mas a colonização deixou marcas tão profundas que, ao se falar em

descolonização, não se fala em contrário de colonização. Separar colonização

da descolonização, numa linha de sucessão linear, é uma tarefa impossível.

Seria como separar água do vinho, depois de misturados.

Foi, com efeito, em contato com os colonizadores que os povos da

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Ásia e da África se descobriram diferentes e tomaram consciência de tudo o

que os diferenciava dos europeus: diferença nas condições materiais de vida,

diferença de cultura, enfim, diferença nas experiências históricas. A desco-

lonização não deixa, pois, de ser o choque de valores do Ocidente na Ásia e

na África — valores que atribuíam preeminência à técnica e aos bens mate-

riais — e a revolta da Ásia e da África contra o Ocidente que tentava arran-

car-lhes a identidade cultural, as riquezas e a autonomia. Uma expressão do

ódio e da humilhação pacientemente acumulados, do desejo de recuperar a

dignidade definida no plano internacional.

A revolta, entretanto, não desafiou os valores do Ocidente capitalista,

pois as armas foram buscadas em modelos europeus e não em suas próprias

tradições. Para se libertarem da dominação européia, estes povos recorreram

à principal ideologia da Europa do século XIX: o nacionalismo.

Assim, a luta pela independência libertou os povos da Ásia e da África

da dominação política européia, mas deixou surgir um novo sujeito histórico

sobre a cena política: o Estado Nacional. Resposta radical à colonização,

forma para se atingir a identidade nacional (que é o conceito comum da tra-

dição, da religião e da cultura), o Estado Nacional hoje se tornou uma ques-

tão. Uma descolonizada tunisiana, Hélé Béji, traduziu esta questão como a

passagem de uma sociedade dominada a uma sociedade não menos dominada

onde o dirigismo do Estado, parlamentar ou totalitário, encontrou possibili-

dades de aplicações inéditas.

No plano interno, conquistada a independência política, retiradas as 6

tropas estrangeiras, nacionalizado o aparelho administrativo, os serviços pú-

blicos, os bancos, as empresas agrícolas, as poucas indústrias existentes, a

característica fundamental da descolonização é o controle do aparelho de

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Estado por valentes burocratas, erguidos ao topo das magníficas máquinas

estatais que comandam a vida dos ex-colonizados. Uma camada social que

pensa em gerir sozinha, e em função dos seus interesses, uma sociedade

desmobilizada por promessas não mantidas. Uma sociedade onde o trabalho

humano continua instrumento da propriedade (privada ou do Estado).

Por outro lado, o Ocidente hoje é organizado pelos Estados Unidos e

as sociedades multinacionais, todas fundamentalmente norte-americanas,

que contam, como último recurso, com o poderio militar norte-americano

para garantir seus interesses e sua segurança. E este "primeiro mundo"

luta para que o "terceiro mundo" não adquira uma independência real,

baseada num desenvolvimento autônomo.

Quando o embargo estrangeiro se soma a um Estado Nacional que não

se adapta com rapidez suficiente aos problemas acumulados há séculos no seu

interior, as explosões repicam. São estas as explosões que aparecem nas

manchetes de jornais e no noticiário da televisão, revelando assassinatos de

chefes de Estado, guerras confusas, seqüestras e violências.

Este pequeno texto pretende ir um pouco além das manchetes dos

noticiários, na esperança de ajudar o leitor a perceber melhor este novo

mundo que surge, dinâmico e revolucionário, mas que só pode ser com-

preendido com uma dedicação maior ao trabalho de compreensão das ten-

dências históricas mais profundas, de significado mais duradouro.

Assim, existem dois propósitos na elaboração deste texto: 1) relatar,

em linhas gerais, o nascimento deste mundo novo, ainda prenhe de mudan-

ças, verificando a natureza dos movimentos de descolonização, seus obje-

tivos, seus fracassos e sucessos, bem como suas bases de classe e os traços

culturais com que foram talhados; 2) procurar entender até que ponto o fim

do velho colonialismo representou a libertação dos povos dominados e clas-

Page 10: A Descolonização da Ásia e da África

ses oprimidas.

Não se pretende, de forma alguma, esgotar um tema que envolve cen-

tenas de milhões de seres humanos espalhados por toda superfície da Terra.

O texto é somente uma introdução ao problema da descolonização. O obje-

tivo é chamar a atenção do leitor sobre alguns pontos que ele poderá apro-

fundar de acordo com seu interesse. Um desses pontos abre o texto: o colo-

nialismo, de cujas bases surgiu a independência nacional, cristalizada em

torno da ideologia do nacionalismo enquanto valor supremo.

2. colonização e descolonização:

água e vinho misturados

O primeiro momento de expansão transoceânica da história ocidental

ocorreu no século XVI, com o descobrimento dos caminhos marítimos para

o controle do comércio oriental. Foi desta primeira expansão européia que

surgiu a colonização da América e a formação dos impérios mercantilistas.

A revolta dos colonos ingleses da América do Norte, dos colonos espanhóis

e portugueses da América Central e Meridional assinalou o início da pri-

meira "descolonização", do desaparecimento dos impérios mercantilistas

europeus, entre os anos que vão de 1775 a 1825.

Mas existem diferenças entre os movimentos de emancipação do final

do século XVIII e os do século XX. Uma dessas diferenças situa-se na iden-

tidade dos insurgentes. Os movimentos americanos foram realizados por

populações de origem européia, de raça branca, vindas da metrópole. Já os

movimentos do século XIX foram gerados por populações autóctones, ali

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fixadas há milênios, diferentes dos europeus tanto no gênero de vida, nas

crenças e instituições como na cor da pele. Mas é inútil citar as demais dife-

renças se não se compreende a base delas. Esta base está assentada no caráter

capitalista da segunda onda expansionista européia, fruto da revolução in-

dustrial e do impacto do progresso científico e tecnológico na sociedade,

quer nacional, quer internacional.

A Expansão Capitalista e o Colonialismo

No século XIX, "os burgueses conquistadores", como os denomi-

nou o historiador Charles Morazé, senhores do capital, da ciência e da tec-

nologia, saíram pelo mundo e se apropriaram direta e indiretamente das

terras e mares do globo terrestre. A questão não era mais, como na época

mercantilista, somente a troca de manufaturas européias pelos produtos

tradicionais do Oriente e dos trópicos. No final do século XLX, a questão

principal não estava colocada nem mesmo na necessidade de fornecer escoa-

mento para as crescentes indústrias de ferro e aço, mediante a construção de

estradas de ferro, pontes e outras obras semelhantes. Além de saídas mais

seguras e mais lucrativas para o capital financeiro, os burgueses saíram pelo

mundo em busca de materiais básicos, sem os quais o capitalismo indus-

trial não podia continuar se desenvolvendo (cobre, estanho, manganês, bor-

racha, etc). Acabaram criando um mercado mundial, governado por preços

mundiais, interligando o mundo. E os problemas técnicos e econômicos, de

interesse dos países industrializados, passaram a ser regulamentados pelo

método dos acordos internacionais. Mas entre estes países industrializados e

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os "outros", os termos de troca resultaram em produto de uma relação de

forças.

Na esteira dessa força de expansão capitalista surgiu o colonialismo:

sistema de dominação política, de exploração econômica e de sujeição cul-

tural.

O colonialismo foi implantado pelas potências industriais, que dispu-

tavam mercados, matérias-primas, ocupação territorial, prestígio nacional e

solução para os efeitos do crescimento demográfico europeu. Todas as na-

ções industrializadas, incluindo os Estados Unidos e o Japão, participaram

da corrida colonial. Num clima de grande tensão, cheio de rivalidades e

desavenças, todas as potências industriais se consideravam com direito a

"um lugar ao sol", ou melhor, com direito a mais territórios que as demais,

a mais riquezas que as demais, a mais poder. Este direito elas pensavam ter

adquirido com suas forças industriais em expansão.

Era assim também que estas nações capitalistas em expansão justifi-

cavam o estabelecimento de dispositivo militar nos territórios invadidos,

representando o poderio incontestável da metrópole.

O leitor talvez se recorde de ter assistido algum filme na televisão

sobre a Legião Estrangeira. Talvez tenha até lido um livro intitulado Beau

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Cartaz do filme "Beau Geste", sobre a Legião Estrangeira.

Geste de autoria de P. C. Wren. Este romance de aventuras se passa na

Legião Estrangeira, organizada para esmagar toda e qualquer rebelião dos

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povos das regiões africanas, colonizadas pela França. Ela era composta de

marginais que queriam se livrar da perseguição da justiça francesa. Eram

perdoados desde que se alistassem na famigerada Legião e fossem lutar na

África, contra os africanos. Pois bem, foram dispositivos como a Legião

Estrangeira e outros semelhantes que sustentaram a presença de delegados

metropolitanos encarregados de administrar a exploração em grande escala

Page 14: A Descolonização da Ásia e da África

nas regiões colonizadas, e de transformar os povos asiáticos e africanos em

"simples instrumento criador de riqueza'', aos quais cabia apenas uma par-

cela dos rendimentos.

Esta máquina administrativa de domínio e exploração colocou a mão-

-de-obra colonial a serviço da nação colonizadora, construindo pontes, ferro-

vias, estradas, canais e portos, a fim de favorecer o escoamento dos minérios

e dos produtos das plantações até os locais do embarque, sem nenhum cui-

dado com as necessidades da população local. Esta máquina, da mesma

forma, facilitou às grandes Companhias européias a comercialização dos pro-

dutos, com a rede orientada para a metrópole que impunha às colônias a

monocultura (borracha na Indonésia, vinho na Argélia, etc). Ao longo do

período colonial, este sistema impediu às colônias toda e qualquer possibili-

dade de acumulação interna. Não é preciso insistir em dizer que este sistema

acarretou a subalimentação da população local e a erosão do solo.

Por estas razões houve necessidade de justificar este tipo de exploração

perante a opinião pública européia, revoltada com as atrocidades que esta-

vam sendo cometidas nas colônias. Para justificar e, ao mesmo tempo, con-

solidar a dominação, os europeus introduziram critérios étnicos na máquina

social.

Os critérios étnicos introduzidos criaram distinções entre dominadores

(brancos) e dominados (de outra cor). Para tanto, uma série de pretextos

foram invocados: superioridade da raça branca, incapacidade dos "nativos"

dirigirem ou explorarem por conta própria seus recursos naturais, e até

mesmo a grande missão de levar aos povos "de cor'' ignorantes as "vanta-

gens" da cultura intelectual, social, científica, industrial e artística das raças

brancas superiores. É o famoso tema do "fardo do homem branco", para

quem a superioridade cria obrigações.

Page 15: A Descolonização da Ásia e da África

Em conseqüência, surgiu uma quantidade imensa de literatura e teo-

rias cantando as glórias e o fardo do homem branco, procurando demonstrar

como ele se desincumbia de suas obrigações, levando a civilização para os

povos fracos, feios e pouco inteligentes. Um desses escritores, talvez o mais

famoso, foi Rudyard Kipling, que o leitor já deve conhecer. Um outro, foi

um religioso, o cardeal Mercier, para quem a colonização devia ser consi-

derada como "um ato coletivo de caridade que, num determinado mo-

mento, uma nação superior deve às raças deserdadas''!

As Armas dos Colonizadores nas Mãos dos Colonizados

Por ironia, indiretamente, estas foram as armas que os próprios colo-

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nizadores colocaram nas mãos dos colonizados para contestar a dominação.

Veja só: costumes, pensamentos e instituições ocidentais foram espalhados e

impostos através dos imigrantes, dos missionários e dos escritores. Estes,

em nome do Cristianismo e da democracia, diziam que todos eram iguais

perante Deus e perante a Lei, fornecendo as noções de liberdade vigentes na

sociedade liberal ocidental. Ensinaram também que a pobreza não era resul-

tado da vontade divina, mas da deficiência técnica. Criaram universidades e

através delas difundiram um ensino que acabou revelando a grandeza e a

glória do passado das colônias. Até a um ponto em que a minoria de privi-

legiados, filhos das camadas dirigentes tradicionais, assim instruídos, come-

çou a se interrogar sobre a ausência de liberdade, a falta de oportunidade de

acesso à saúde, à educação, à cultura, ao conforto e à humanização para a

maioria da população colonizada. Mais do que tudo, interrogou-se sobre a

ausência de oportunidades para os instruídos assumirem as funções adminis-

Page 16: A Descolonização da Ásia e da África

trativas a que julgavam ter direito. Quando estas contradições vieram à

tona, ficaram declarados o inconformismo e a luta pela afirmação do colo-

nizado.

Em traços sintéticos, foi assim que a burguesia capitalista levou a ex-

pansão da Europa até os confins da Terra. Foi assim também que ela, com

suas próprias armas, suscitou a oposição e a revolta entre os povos colocados

sob seu domínio.

Tudo muda, diz um célebre poema de Bertolt Brecht. E muda mesmo,

pois a História é feita pelos homens, mas, como acrescenta o poeta: "o que

acontece, porém, fica acontecido: a água que pões no vinho, não podes mais

separar".

E o que será tratado a seguir: procura-se relatar o que aconteceu

quando o capitalismo, na sua "etapa superior" — o imperialismo — atra-

vessou os oceanos; e qual a reação dos colonizados diante das transforma-

ções, irreversíveis, ocorridas em suas sociedades.

3. processo de conquista

e ocupação colonial

, A ocupação colonial pelas nações européias foi um ato de conquista

como foi visto acima. Mas os métodos de penetração variaram, pois depen-

deram das possibilidades do colonizador e das próprias condições locais. Em

outras palavras, estes métodos refletiram as condições geográficas, políticas,

econômicas e culturais das sociedades pré-coloniais, conjugadas com os inte-

resses imperialistas. Por isso, considera-se importante, para a compreensão

Page 17: A Descolonização da Ásia e da África

do fenômeno da formação das novas sociedades, verificar: a) o processo de

conquista e de ocupação colonial; b) a forma como se deu o contato dos eu-

ropeus com as populações locais; c) a organização dessas sociedades pré-co-

loniais; d) os recursos de que dispunham estas sociedades.

Na história do capitalismo, esses processos de conquista e ocupação

colonial receberam o nome de partilha da África e da Ásia.

Partilha da Ásia

Foi no ano de 1886 que Lord Salisbury, um grande senhor, culto,

muito elogiado por sua vida parlamentar e por sua atuação na diplomacia

britânica, disse com orgulho: "Há lugar na Ásia para todos nós". Dita por

tal pessoa, a frase define a extensão do domínio ocidental na Ásia no século

XIX e a rapidez das conquistas.

No início do século XIX, dos antigos impérios mercantilistas da Ásia,

somente a Grã-Bretanha permanecia a grande potência marítima, aliás con-

siderada a "dona da índia". Os portugueses já haviam sido eliminados do

Oceano Índico e do Pacífico, só lhes restando estabelecimentos em Goa,

Macau e Timor. Os holandeses controlavam o comércio da península malaia

e, através das índias neerlandesas (Indonésia) mantinham relações comer-

ciais com a China e o Japão. A França possuía entrepostos e pequenas feito-

rias na índia. Nenhuma dessas nações possuía grande influência política nes-

sas regiões, mesmo porque o objetivo mercantilista era a troca comercial.

A situação se modificou em meados do século XIX, em decorrência da

expansão da economia capitalista. Foi quando as potências resolveram usar

de violência maior para atingir a completa dominação. O processo foi ini-

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ciado pela Inglaterra, que conquistou a índia entre 1845-1848. Mas só após a

primeira crise de superprodução do sistema industrial (década de 70), que

tomou corpo o movimento imperialista inglês. Neste período, a Rainha Vi-

tória chegou até a ser coroada Imperatriz da índia.

Após a conquista da índia, a Inglaterra anexou a Birmânia (1886) e a

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Malásia, numa tentativa de limitar a influência francesa na região. Isso por-

que a França havia ocupado a Indochina, hoje Vietnã, Laos e Cambodja.

Nesta região, a França instaurou o regime de protetorado, que é uma forma

mais atenuada de colonização, ou melhor, o Estado, apesar de dependente,

era reconhecido juridicamente.

Fortalecidas com estas conquistas, estas nações voltaram-se, com vio-

lência, contra a China.

A China, desde a "guerra do ópio" (1835-1842), já havia sido obri-

gada, diante do potencial de fogo dos ingleses, a assinar tratados desiguais,

isto é, tratados nos quais ela concedia vantagens à Europa sem contrapar-

tida. Para conseguir um desses tratados, o de 1860, tropas francesas e britâ-

nicas chegaram até mesmo a destruir o Palácio de Verão de Pekin, um

dos tesouros artísticos insubstituíveis da humanidade. Conta-se que este fato

impressionou tanto aos chineses que, logo após a Revolução Chinesa de

1949, o governo da República Popular da China chegou a dizer que mais dia

menos dia ainda acertaria esta "conta" com os europeus. E parece que só

não conseguiu "acertar a conta" porque uma indenização dessas não tem

preço. O certo é que após o saque de Pekin, um inglês foi indicado para

"assistir" a administração de toda a receita da alfândega chinesa. Vários

portos foram abertos, mercadores estrangeiros receberam liberdade de movi-

Page 19: A Descolonização da Ásia e da África

mento e imunidades diante da lei chinesa.

Este método de penetração tão violento adveio do fato de a China,

diferindo da índia, possuir uma unidade política, com um imperador fazendo

sentir sua autoridade sobre as províncias mais distantes. Basta dizer que, até

antes da chegada dos europeus, ela recebia tributos da Coréia, do Vietnã e de

outras monarquias da região: Sião, Laos, Birmânia e Nepal. Na verdade, era

o império mais elaborado e mais antigo de todos os Estados monárquicos da

Ásia Oriental. Por essas razões, a China sempre se recusara a admitir rela-

ções com o resto do mundo em posição de desigualdade. E manteve-se fe-

chada a qualquer tipo de comércio com o Ocidente. Foi a "guerra do ópio''

que marcou o início da preponderância ocidental na China.

Mas o desmembramento da China aconteceu mesmo quando o Im-

pério, enfraquecido com os tratados desiguais, teve que enfrentar uma guerra

com o Japão (1895). Foi "salvo'' do desastre pela intervenção das potências

européias. Como reconhecimento do serviço prestado, as nações européias

receberam concessões econômicas e territoriais. A partir daí, a China passou

a ser um território dividido em áreas de influência das potências ocidentais.

Não só a França e a Inglaterra penetraram no território chinês, como tam-

bém a Rússia, a Alemanha e até os Estados Unidos.

A penetração econômica se precipitou rapidamente com a construção

de linhas de estradas de ferro, concessão de minas, estabelecimentos indus-

triais e bancos. E a soberania chinesa transformou-se numa ficção. 13

O Caso do Japão

Page 20: A Descolonização da Ásia e da África

Diferente foi o caso do Japão. Preocupado com a derrota da China, ele

resolveu compreender os segredos do poderio do capitalismo ocidental. Um

intelectual japonês, do século XIX, de nome Sakuna, ilustrou bem o acon-

tecido. Consternado com a decadência chinesa frente aos europeus, ele per-

guntou: "Como é possível que as nações européias tenham sido capazes, por

seu amor à ciência, de alimentar suas forças a ponto de poderem vencer até

mesmo o país de Confúcio?'' E ele mesmo respondeu: "É que sua ciência é

racional e a ciência chinesa não o é". E então passou a ser dever patriótico

japonês inspirar-se no Ocidente, com missões de informações técnicas sendo

constantemente enviadas à Europa.

O singular da experiência japonesa situou-se no fato de que a moderni-

zação do Japão, operada com a chamada Revolução Meiji (1868), isto é,

revolução das luzes, não foi operada com o rompimento com o passado. A

imitação do Ocidente impôs-se mesmo foi na área científica e técnica, com a

sabedoria de preservar sua civilização.

Ao tomar a iniciativa da reforma, o Japão pode ser considerado o único

país da Ásia que conseguiu preservar sua independência: no início do século

XX, a independência chinesa era fictícia, a Índia era uma colônia da Coroa

da Inglaterra, a Indochina era um protetorado francês e as índias neerlan-

desas estavam nas mãos da Holanda, que conservou a herança do velho im-

pério mercantilista.

Partilha da África

Até o século XIX, o interesse europeu na África estava orientado para

a exportação de escravos, fato que transformou este continente, durante três

Page 21: A Descolonização da Ásia e da África

séculos e meio, na fonte mais sacrificada de acumulação primitiva do capita-

lismo europeu e americano. Por esta razão, o interior do continente só tinha

alguma ligação com as zonas costeiras, através do comércio de escravos.

Como disse o próprio Lord Lugard, um dos construtores do Império Britâ-

nico, foi a necessidade de matérias-primas que levou as potências à corrida à

África no final do século XIX: "A partilha da África deve-se essencial-

mente, estamos todos de acordo quanto a isso, à necessidade econômica de

aumentar o fornecimento de matérias-primas e de víveres para saciar as ne-

cessidades das nações insatisfeitas da Europa". Para tanto, houve necessi-

dade de conhecê-la melhor.

Na África Negra este desconhecimento tem uma justificativa na geo-

14

grafia: uma região muito pouco favorável ao homem. O acesso é difícil com

um litoral pouco hospitaleiro, sobretudo do lado do Atlântico: rios muito

rápidos e de penetração complicada, uma floresta densa, dificultando o per-

curso humano. O deslocamento do homem na região só era facilitado através

das savanas e das estepes. Mas, para atingi-las, o europeu do século XIX

precisava conhecer o curso dos rios de penetração. Daí a preocupação dos

europeus com o conhecimento do curso do Niger, do Congo e do Nilo,

considerados as vias naturais de penetração para o continente. Daí também a

atenção com que uma seleta assistência, reunida no Royal Geographical So-

ciety de Londres, em 1857, ouviu uma exposição de David Livingstone sobre

sua exploração da África Central.

Missionários e Exploradores

Page 22: A Descolonização da Ásia e da África

Na verdade, a violenta invasão dos europeus sobre a África foi prece-

dida, sintomaticamente, não só pelos interesses científicos como também

pelos religiosos, consubstanciados em numerosas viagens de missionários e

exploradores que se embrenharam em regiões completamente desconhecidas

pelos europeus. David Livingstone foi um desses missionários. Ele explorou

uma vasta região situada entre o Rio Zambeze e as nascentes do Nilo, e aca-

bou, depois de uma terceira viagem, desaparecendo sem deixar rastros. Stan-

ley foi outro explorador. Ele atravessou o continente de leste a oeste, explo-

rou o curso do rio Congo e recebeu a missão do rei Leopoldo II, da Bélgica, de

estabelecer uma ligação entre o curso superior do Congo e o Oceano Atlân-

tico. De posse dessa ligação, em 1876, este rei belga fundou a Associação In-

ternacional Africana, promovendo um dos mais cruéis e devastadores em-

preendimentos da colonização: entregou o Congo a Companhias internacio-

nais. Dez anos depois, este rei era soberano absoluto do Congo, que deixou

como herança aos belgas.

O marco da corrida colonial foi a famosa conferência de Berlim, reu-

nida por Bismark, o chanceler da Alemanha. O ato principal desta Confe-

rência (26/02/1885) foi a carta de partilha amigável da África entre as na-

ções européias. A carta regulou a navegação e o comércio nas bacias do

Congo e do Niger, decidindo que as prioridades seriam dadas aos estabeleci-

mentos costeiros. Determinou ainda que toda nova extensão territorial de-

veria ser notificada às outras potências e que nenhuma anexação seria reco-

nhecida se ela não se traduzisse em ocupação efetiva. A partir de então, a

África deixou definitivamente de ser fornecedora de escravos. E o africano

ganhou o privilégio de ser explorado na sua própria terra. As resistências

15

Page 23: A Descolonização da Ásia e da África

Caricatura alemã, onde aparece Leopoldo II cercado de crânios e dinheiro, atestando uma das

faces mais terríveis da colonização belga no Congo,

Page 24: A Descolonização da Ásia e da África

africanas foram tratadas com violência e as indústrias européias progrediram

com o cacau, o amendoim, a bauxita, o manganês, o ouro e demais matérias-

primas retiradas da África.

Assim, no início do século XX, a Inglaterra, na África Oriental,

já havia se apoderado do Quênia e de Uganda, ocupado o Egito, o Sudão,

o Chipre e a Somália. Na África Ocidental, instalou-se na Costa do Ouro e

na Nigéria; na África do Sul anexou o interior da Colônia do Cabo. Em

1902, conquistou Transvaal e Orange.

A França dominou a África do Norte, ou melhor, o bloco formado

pelo Maghreb (Marrocos, Argélia e Tunísia), povoado por árabes e berbe-

res. A Argélia tornou-se a colônia mais trabalhosa para a França. Tunísia e

Marrocos foram transformados em protetorados. Do Saara até o golfo da

Guiné, ela dividiu a região, para fins administrativos, em duas federações:

África Ocidental Francesa e África Equatorial Francesa. Anexou também

Madagascar, no Oceano Índico.

Em menos de 50 anos, um quinto da área terrestre do globo encon-

trou-se reunido nos domínios imperiais das potências européias. A maior

área, perto de 20 vezes a superfície da França, estava dominada pelos fran-

16

17

ceses. A menor área coube à Alemanha, mas, mesmo assim, seus territórios

totalizavam dois milhões e oitocentos mil metros quadrados, com uma popu-

lação de 13 milhões de pessoas. A Holanda era a a mais orgulhosa da sua

Page 25: A Descolonização da Ásia e da África

18

obra colonial, considerada o modelo de organização na hoje ainda sofrida

Indonésia. Portugal era a mais pobre nação imperialista: conservou Angola,

Moçambique, o arquipélago do Cabo Verde e a Guiné.

O mais rico e poderoso era o Império Britânico que dominava a pro-

dução mundial de arroz, cacau, chá, cobre, ferro e, ainda, o petróleo do

Oriente Médio. No entanto, um perigo de ordem demográfica ameaçava

este império: 85% dos seus habitantes eram constituídos por populações

"indígenas".

A Política Colonial

A colonização se revestiu de formas variadas de dominação direta e

indireta, em função do nível de desenvolvimento histórico das populações

sobre as quais se exerceram as políticas do Ocidente capitalista.

Page 26: A Descolonização da Ásia e da África

As potências coloniais apoiavam príncipes e chefes dispostos a colaborar com seus inte-

resses. Na foto, Lorde Curzon, representante do governo britânico na Índia e o marajá

de Patíala.

Na indireta (britânica), a administração era exercida pelas autoridades

coloniais, através de governos autóctones. No sistema direto (francês), os

autóctones só ocupavam funções subalternas. De qualquer forma, esta dife- 19

rença não elimina o fato de os aliados do sistema colonial, nos dois casos,

terem sido procurados entre as mesmas camadas de dirigentes tradicionais.

Page 27: A Descolonização da Ásia e da África

De uma maneira geral, embora houvesse variantes locais, a política das po-

tências coloniais, para conservar sua supremacia, se baseou no apoio a prín-

cipes e chefes que estivessem dispostos, em seus próprios interesses, a cola-

borar com as potências ocupantes. A fórmula, como preconizou Lyautey, o

general francês, seria: "Associar a classe dirigente aos nossos interesses".

As Formas de Administração nas Colônias

Estes dois sistemas existiram nas chamadas colônias de exploração,

que se destinavam a explorar produtos exóticos e matérias-primas (Índia, por

exemplo) para a Europa. Em outras palavras, eles existiam nos Estados ricos

que deveriam "auxiliar'' a Europa em suas dificuldades econômicas. A pre-

sença européia nestas colônias praticamente se reduzia aos quadros adminis-

trativos, militares, técnicos e comerciais.

Havia, ainda, as colônias de povoamento, ligadas ao problema do cres-

cimento demográfico europeu que dobrou em sessenta anos. Estas colônias

deveriam resolver o problema da incapacidade da Europa em alimentar mais

bocas e não poder oferecer trabalho a um contingente grande de pessoas que

a revolução industrial e a técnica agrícola estavam dispensando. A saída foi a

emigração. Naturalmente, estas colônias não existiram na Ásia, superpo-

voada. Na África, elas deram origem a situações e conflitos particularmente

agudos (Argélia, Rodésia, África do Sul, Angola, Moçambique e Quênia).

Isto porque os colonizadores aí expropriaram as terras dos camponeses.

Além disso, neste tipo de colônia, as minorias européias ocupavam posições

sociais e econômicas dominantes e afastavam os autóctones até mesmo das

funções administrativas mais subalternas. Os funcionários subalternos eram

Page 28: A Descolonização da Ásia e da África

brancos, e todos os brancos, fossem empregados ou operários, recebiam sa-

lários mais elevados do que os trabalhadores negros.

O outro tipo de dominação é aquele onde a penetração não atentou,

aparentemente, contra a independência política, isto é, as ambições ociden-

tais não eram propriamente políticas, apenas se propunham objetivos eco-

nômicos, comerciais, industriais e financeiros. Os casos da China e do Egito

são exemplos típicos. O Egito, por exemplo, um principado virtualmente

independente, foi vítima de sua riqueza agrária e da sua situação estratégica

(situado entre o Oriente Médio e a África Negra). A sua riqueza agrária in-

tegrou-o na economia européia como fornecedor de produtos agrícolas. A

vasta expansão do comércio egípcio atraiu levas de homens de negócios e

-aventureiros prontos a conceder créditos ao governo, que pensava em trans-

formar o Egito num poder moderno. Mas os homens de negócios extorqui-

ram o povo egípcio e, quando os egípcios não puderam mais pagar os juros 20

dos empréstimos, a gestão das finanças públicas passou para o estrangeiro,

com a desculpa de o governo egípcio estar comprometido com enormes des-

pesas e incapacitado de pagá-las. Como não havia FMI na época, foi insti-

tuído um condomínio franco-inglês. Nominalmente, como na China, a inde-

pendência política subsistia, mas gradativamente os funcionários britânicos

passaram a administrar a polícia, as finanças, as comunicações, as alfândegas

eos portos.

O Significado da Administração Colonial

Seja como for, qualquer desses tipos de administração, na prática, sig-

Page 29: A Descolonização da Ásia e da África

nificava mera dominação. E isto os grupos colonizados, familiarizados com a

língua e a técnica do colonizador, não podiam deixar de perceber. Se, no

governo indireto, o objetivo da Inglaterra era atenuar o impacto do colonia-

lismo, colocando na administração chefes ou príncipes, o efeito mais ime-

diato foi isolar estes administradores, como agentes da autoridade colonial,

de seus súditos. Se, como no caso da China e do Egito, tentava-se manter a

dinastia tradicional, apoiando-a nas lutas contra rebeldes ou invasores, o

resultado era o descrédito delas e uma atuação da população contra o gover-

nante tradicional. Se, como agia a França, a tática era formar elites educadas

no Ocidente, para obter delas a colaboração, acabava-se por enfraquecer as

únicas forças que poderiam ter interesse na permanência do domínio colo-

nial. Chegou-se a um ponto em que estes ocidentalizados se revoltaram

contra o fato de terem de continuar subordinados aos funcionários da potên-

cia ocupante. É isto que explica o papel dos funcionários de segundo escalão

na África Tropical de fala francesa na luta pela independência.

4. as sociedades colonizadas

É difícil um critério para classificar as sociedades colonizadas. Elas

sempre estiveram longe de serem homogêneas. Existiam e existem ainda

várias Ásias e várias Áfricas, com estágios históricos bastante diferenciados

dentro até de uma mesma zona geográfica.

Pensando na África Negra, por exemplo, fica-se preso num emara-

nhado complexo de etnias com limites de difícil definição. Veja: só no pla-

Page 30: A Descolonização da Ásia e da África

nalto de Camarões, onde muitas correntes de origens diversas interferiram

no povoamento, podem-se observar, na cidade de Mora, com 2.000 habi-

tantes, sete grupos étnicos diferentes. A estrutura da maior parte dessas

sociedades, famílias reagrupadas em clãs e tribos, acentua esta impressão de

pulverização. E a diversidade lingüística ajuda a confusão: avalia-se em 6.000

o número de línguas e dialetos "negro-africanos", repartidos em três con-

juntos principais: bantos, sudaneses e nilóticos. Algumas dessas línguas

chegam a ser faladas por mais de um milhão de pessoas; outras por poucas

pessoas, o que leva a uma situação interessante: dada esta floresta lingüís-

tica, até hoje existem tribos que, no mesmo território, para se comunicarem,

necessitam de intérpretes.

Mas existem traços que dão unidade a estas sociedades. Entre eles, a

agricultura. Eram todas sociedades rurais, da África à Ásia. É uma herança

que ainda permanece viva no meio desses povos bruscamente colocados em

presença do mundo técnico europeu.

Estas sociedades rurais estavam fundadas na apropriação coletiva das

terras, que pertenciam ao grupo social dominante: família, clã, tribo ou Es-

tado. E a coesão grupai estava assegurada pela solidariedade imposta pelo

trabalho agrícola em comum e pelo culto dos ancestrais.

E aí cessam as semelhanças. Enquanto nas regiões de população densa

(Mandchúria, China do Norte, Deltas Indochineses, Egito, etc.) o trabalho

consagrado à terra era extraordinário, com técnicas de grande engenhosi-

dade, nas regiões de fraca densidade de povoamento (Malásia, África Negra,

etc.) os camponeses até hoje ainda vivem de cultura itinerante.

Nas regiões de população densa, a irrigação do solo sempre foi preocu-

pação essencial, mesmo porque ela è indispensável nas zonas que conhecem

uma alternância regular, invariável, entre a estação das chuvas e a estação

Page 31: A Descolonização da Ásia e da África

das secas. Este tipo de clima, prevalecente nestas regiões densamente povoa-

das, leva à necessidade de repartir a água ao longo do ano e prever as reservas

para a estação seca. Isto supõe um esforço coletivo incessante para a cons-

tração dos diques e canais. Por isso, nestas regiões, o Estado exerce um

papel relevante, como senhor absoluto das terras e responsável pela conser-

vação dos diques e canais. E é o que explica também por que uma burocracia

22

de letrados reinava soberana nesses Estados: cabia a ela o planejamento das

funções ligadas à irrigação.

Um critério classificatório

O critério classificatório utilizado para essas sociedades colonizadas

costuma basear-se nas características culturas e demográficas pelas razões

expostas acima. Embora este não seja o critério mais perfeito, ele permite a

compreensão dos diversos caminhos tomados pelos movimentos de descolo-

nização.

Neste sentido, podem-se dividir as áreas colonizadas em:

1) densamente povoadas ou de fraca densidade de povoamento.

2) dominadas pela influência do Islã ou por influência hindu ou por influên-

cia chinesa.

As regiões densamente povoadas mantiveram contatos mais ou menos

diretos e intermitentes com países e povos da Europa ocidental desde muitos

séculos. Possuíam uma estrutura social complexa e constituíam Estados or-

ganizados, dotados de uma forte burocracia, surgida da necessidade técnica

de coordenação e supervisão da produção. Situam-se nesta classificação

Page 32: A Descolonização da Ásia e da África

grande parte dos Estados da Ásia, do Oriente Próximo e do Norte da África.

As regiões de fraca densidade de povoamento possuíam muitos níveis

distintos de evolução histórica e de civilização. Situa-se nesta classificação,

predominantemente, a região da África Negra, aquela situada ao sul do

Saara. Aí, a organização social predominante era o tribalismo, também bas-

tante diferenciado. A autoridade nas tribos encontrava-se em mãos dos mais

idosos, mas limitada por assembléias compostas de chefes de família e chefes

de aldeia, isto é, não havia um poder despótico.

Eram sociedades rurais. A terra era objeto de apropriação coletiva e

pertencia ao grupo social dominante, família, clã ou tribo. Vários clãs liga-

dos, em geral, pela comunidade de línguas constituíam uma etnia. A solida-

riedade era o traço fundamental, assentada na família, que era a comunidade

de sangue e de trabalho. Da família ao clã, do clã à tribo, o círculo se alar-

gava, mas os princípios eram os mesmos: comunidade de sangue, de língua e

mitos originais.

A economia era de subsistência, com métodos de cultivo muito elabo-

rados em matéria de seleção de sementes. Mas as técnicas eram rudimenta-

res e não se comparavam com a agricultura de várias regiões da Ásia, e

mesmo com a de alguns pontos da África do Norte, onde foram implantadas

técnicas asiáticas de cultura intensiva. Mas também é preciso levar em conta

23

Page 33: A Descolonização da Ásia e da África
Page 34: A Descolonização da Ásia e da África

Nas regiões densamente populosas da África e Ásia, a necessidade da irrigação legou ao

Estado um papel relevante, como senhor absoluto das terras e responsável pela conser-

vação dos diques e canais.

que, nas regiões de flprestas, o renascimento rápido da vegetação e a pobreza

do solo forçavam os povos à migração. Somente nas estepes e savanas os

24 povos se fixavam.

Embora este fosse o sistema de numerosas sociedades da África Negra,

mesmo nesta região havia também formas de organização política e econô-

mica mais vastas e evoluídas. Estas formas de organização existiram no Su-

Page 35: A Descolonização da Ásia e da África

dão, onde recursos minerais alimentavam um comércio voltado para o ex-

terior do continente: forneciam ouro, metais e pedras preciosas ao mundo

muçulmano e, através dele, à Europa Medieval. Era um circuito comercial

complexo e inteiramente organizado no próprio local, pelos autóctones. O

que nos leva a crer, ao contrário dos estereótipos do "fardo do homem

branco'', que a África estava bem madura para servir de interlocutora válida

aos parceiros internacionais. Sobre as grandes rotas comerciais, que permi-

tiram acumulação de excedentes e a manutenção de categorias sociais espe-

cializadas em certas tarefas, constituíram-se as sociedades estatais. Gana (sé-

culo VI-XI), Mali (século XII-XVI) e Goa (século XVIII-XVI) foram os

reinos mais famosos de que se tem notícia. Na região de Tanganica, de Quê-

nia e da Somália subsistem ainda importantes vestígios de cidades mortas,

que foram no passado centros animados do comércio do ouro e de escravos.

Mas estes reinos foram desagregados, após profundas crises, alguns

antes da chegada dos europeus. Outros desapareceram com o progresso da

conquista colonial (reino Yoruba e o reino Daomé, por exemplo). E houve

até os que se constituíram em pleno período colonial, procurando virar o

curso da história. Você já deve ter ouvido falar do famoso reino zulu, cujo

rei, o herói Chaka, chegou a criar um grande conjunto político supratribal.

Este conjunto serviu até para cunhar a África como ''terra dos guerreiros'',

dado o famoso exército ali organizado por Chaka. Este reino foi destruído

pelos europeus, naturalmente.

Embora os Estados tenham desaparecido, a estrutura familiar, de clã

ou tribal, subsistiu e os europeus até se esforçaram para aprofundar as rivali-

dades tribais. Os colonizadores sobrepuseram à antiga subordinação das et-

nias simplesmente o trabalho compulsório, os impostos, a obrigatoriedade

de se inscrever perante a autoridade branca e as leis dos homens brancos. É a

Page 36: A Descolonização da Ásia e da África

velha máxima: ' 'Dividir para melhor dominar''.

As Tradições Culturais

De uma maneira geral, pode-se também destacar uma zona dominada

pelo Islã, que se estende do Marrocos à Ásia Central. Em seguida, a Ásia do

Sudeste, com países de influência hindu, chinesa ou islâmica, que se estende

da Birmânia ao Vietnã.

Quando se fala em influência chinesa, está se referindo às concepções

do filósofo Confúcio que, no século VI, propôs um ideal de sabedoria aos

25

chineses. O fato fundamental para esta filosofia é a relação entre os homens,

não enquanto indivíduos, mas enquanto partes integrantes dos grupos so-

ciais. A abertura para o social, para este filósofo, era importante por ser

considerado o melhor caminho para se escapar das desilusões da existência.

Diferente, portanto, do pensamento hindu e islâmico, mais especulativo e

religiosos, o pensamento chinês, influenciado pelo confucionismo, era mais

prático, mais social e mais político. Os estudiosos da descolonização costu-

mam dizer que a transição, sem choques, dos chineses ao marxismo deve-se

ao confucionismo, com sua elaboração de uma moral do Estado e a negação

da especulação sobre o Além. Segundo eles, a dialética marxista encontrou

nos povos sob a influência chinesa um terreno preparado. Existia neles o

mesmo gosto pelas explicações globais, a mesma recusa ao transcendente, o

mesmo deleite no terra-a-terra.

"0 marxismo não confundia o espírito dos confucionistas, ao centrar

Page 37: A Descolonização da Ásia e da África

a reflexão do homem nos problemas políticos e sociais: a escola confucionista

não fazia outra coisa. Ao definir o homem pela totalidade das suas relações

sociais, o marxismo pouco chorava os letrados, que consideravam que o

objeto do homem é assumir concretamente suas obrigações sociais (...). Os

militantes marxistas por sua vez retomam de boa vontade por sua conta o

moralismo político dos confucionistas. A idéia de que os responsáveis devam

dar mostras de uma moralidade exemplar está profundamente arraigada nos

países confucionistas e os militantes marxistas dos nossos países continuam

a tradição dos letrados célebres dos tempos antigos, dando-lhe uma signifi-

cação diferente."

Nguyen Khac Vien — ''Confuncionisme et Marxisme ". In: Expé-

riences vietnamiennes — Éditeurs français réunis, Paris, 1970.

Esta facilidade o marxismo não encontrou nas terras islâmicas.

O Islã, diferentemente, é tanto fé religiosa como regra de vida. Na

verdade, designa um tipo de comunidade civil, guiada pelas leis do Corão. O

Corão é o livro sagrado que contém as revelações feitas por Deus (Alá) e

transmitidas a seu profeta Maomé (Muhammed), em 611. Escrito em árabe,

a verdadeira língua religiosa do Islã, ele contém regras de vida definitivas

para os homens. A melhor tradução da palavra Islã seria submissão, ou

melhor ainda, entrega a Deus. Assim, a submissão do crente à vontade de

Deus é total, sem apreciação nem discussão, semelhante àquela de Abraão no

momento de sacrificar Isaac. Por isso, diferente do chinês, pouco religioso, é

muito difícil para um muçulmano fazer a divisão entre a fé e a organização

social. No mundo islamizado, questões profanas e problemas religiosos estão

estreitamente ligados através do Livro Santo, que é também a fonte de toda a

organização política. Em outras palavras, não existem distinções precisas

entre os domínios do espiritual e do temporal.

Page 38: A Descolonização da Ásia e da África

Em princípio, e não na prática, todos os crentes são iguais. E é este

igualitarismo, unido ao principio do Estado Teocrático, que é o aspecto im-

26 portante para a avaliação do papel político e ideológico desempenhado pelo

26

Islã na África e nas regiões de influência hindu.

No sistema hindu, a ordem social está fundada na desigualdade social,

isto é, o sistema de castas criou uma série de camadas sociais, desde a mais

alta até a mais baixa, composta de pessoas que haviam recebido a mesma

situação de seus pais. As hierarquias no sistema hindu se definem, portanto,

em função da geração e não do indivíduo. Assim, as castas impediam toda e

qualquer ascensão social. Embora independentes da religião, as castas devem

a ela a sua rigidez. Daí as pessoas de baixas castas rapidamente se conver-

terem ao Islã. Elas trocavam o hinduísmo pelo islamismo a fim de fugirem da

pior miséria social.

E este aspecto também levou a expansão do Islã pela África Negra. O

Islã dava respostas, por sua simplicidade e pela firmeza da fé, às necessidades

espirituais de indivíduos bruscamente desenraizados e desorientados e ao

desejo de reintegração numa comunidade. A flexibilidade da religião permi-

tia que as confrarias muçulmanas reunissem as tradições negras. O que o

cristianismo, implantado pelos europeus, não conseguia, por exemplo. Mas

a força maior do Islã, na África, residia no fato de ela não ser oriunda do

Ocidente e, portanto, poder aparecer como uma expressão de resistência ao

branco.

O outro aspecto importante do Islã, de interesse para o fenômeno da

descolonização, é o sonho de realizar um Superestado, que compreenderia

todos os crentes. Assim, por mais diversos que sejam os grupos que formam

Page 39: A Descolonização da Ásia e da África

uma comunidade, como religião, o Islã pretende reuni-los numa imensa fa-

mília. Ora, esta união só pode ser realizada por um movimento político. É

por isso que o sonho dos dirigentes políticos das regiões islamizadas nunca se

baseou na realidade dos grupos étnicos ou lingüísticos, mas no Estado, capaz

de proclamar o Islã como religião oficial.

Foi nessa direção que, a partir de 1933, os muçulmanos indianos pen-

saram em construir um Estado independente. Chegaram até a imaginar o

nome para o Estado: Paquistão, que significa país dos puros. Naturalmente,

a Inglaterra instigou a rivalidade entre hindus e muçulmanos, procurando

dividir o movimento de independência. Assim, a Índia acabou por se partir

em duas, em 1947: o Paquistão e a União Indiana.

Na África independente, a influência do Islã — que elimina de sua

ação a existência das etnias — em conjunto com a persistência das rivali-

dades étnicas incentivadas no período colonial vem contribuindo para pro-

blemas sérios na formação dos Estados Nacionais, mesmo considerando que

estes Estados têm na frente do governo jovens intelectuais instruídos à moda

européia.

27

Page 40: A Descolonização da Ásia e da África

Na foto, o Santuário da Caaba, em Meca, centro religioso do Islã. A foto atesta o alcance

da mensagem e da civilização islâmica.

Dominique Desanti, uma jornalista francesa, reencontrou na África

um jovem africano islamizado que ela havia conhecido estudante em Paris.

Conta ela que, em Paris, este jovem estudava física. Ele pertencia a grupos

anticolonialistas e sonhava com a independência do seu país e com a funda-

Page 41: A Descolonização da Ásia e da África

ção, nele, de um laboratório de pesquisas nucleares. Acreditava que este

laboratório suscitaria a criação de outros centros através de todo continente

libertado: "Após a independência, dizia ele, eu demonstrarei, nós demons-

traremos, à Europa que o ' 'negro'' não é desprovido de espirito científico,

de dons matemáticos, de espírito de geometria''.

Quando a jornalista reencontrou Gao, o físico, em seu país indepen-

dente, ele ocupava a função de deputado. E ela se espantou: um físico, único

daquele nível em todo seu país, abandonar a ciência para um posto político!

A explicação do amigo demonstrou a dificuldade de ser, na África, um

' 'indivíduo'' à européia: Mediem Gao havia cedido ao poder de seu grupo

de origem. Ele justificava o fato de ser deputado porque sua família precisava

representar sua etnia no governo, sob pena de perder a influência, ou me-

lhor,\o poder, para outras etnias. ' 'Um 'burocrata' na família e todo mundo

se acredita poderoso '' — disse o amigo.

(Adaptado do texto de Dominique Desanti ' 'Quand l 'Africain revient

28

d'Europe" — In: Le dossier Afrique, Verviers, Marabout Üniversité,

1962.)

Page 42: A Descolonização da Ásia e da África

Cidade de Tichitt, no Saara mauritânio, testemunho de uma civilização outrora próspera,

situada no cruzamento das grandes rotas de caravanas que ligavam Magreb ao Sael.

Page 43: A Descolonização da Ásia e da África

5. transformações sociais

nas sociedades colonizadas

M

A introdução do capitalismo através da colonização trouxe profundas

transformações para as sociedades da Ásia e da África, determinando parti-

cularmente o surgimento de novas camadas sociais.

A desarticulação da agricultura tradicional, a apropriação privada da

terra (desconhecida na maioria das regiões), o aparecimento do trabalho as-

salariado e sobretudo a urbanização criaram condições para nova estratifi-

caçâo social: pequena burguesia de comerciantes e intermediários, agentes

políticos e econômicos do poder colonial, plantadores ricos, elites letradas de

tipo moderno, funcionários subalternos e proletariado agrícola ou industrial.

A migração para a cidade, decorrente da deterioração da vida no

campo, exerceu poderoso efeito destruidor no sistema social tradicional: a

disciplina rígida da família e o poder dos anciões foram quebrados pelos jo-

vens trabalhadores assalariados; e os quadros subalternos das administrações

cortaram os laços com os chefes tradicionais. Embora a oferta limitada de

emprego na cidade ainda obrigue, na maioria das vezes, o trabalhador a

manter laços com sua aldeia de origem, esta situação é irreversível, mesmo

porque a cidade tornou-se o laboratório dessas novas sociedades em gesta-

ção. Na África, por exemplo, uma pessoa ao percorrer 50 km de sua aldeia

Page 44: A Descolonização da Ásia e da África

A migração para a cidade exerceu efeito destruidor no sistema social tradicional. A criança

negra vive o mesmo destino de pária de seus pais.

até a cidade mais próxima, atravessa, de fato, séculos de evolução técnica.

Ela abandona um mundo de lazer e de tempo visto sem pressa, dividido por

estações de chuva ou seca, de colheita ou plantio, por outro tempo dividido,

30

dissecado e explorado como uma matéria-prima. Desta pessoa vão exigir um

trabalho contabilizado em horas, com a observação seguida do: "Sabe que

Page 45: A Descolonização da Ásia e da África

horas são?".

Dentro do que interessa ao tema de descolonização, podem-se levan-

tar, portanto, dois fatos mais significativos no quadro das transformações

sociais: a introdução da propriedade privada da terra e a criação de uma nova

elite, que o colonialismo fortaleceu em ampla medida.

Estas novas elites, inicialmente formadas de filhos de chefes tradicio-

nais, foram educadas segundo os padrões europeus. A elas se juntaram, cada

vez mais numerosos, os comerciantes e funcionários administrativos. Bas-

tante heterogêneos em suas rendas, eram elementos estáveis da população

urbana; seu comportamento traduzia a vontade de ascender ao nível de vida

dos europeus. Mais do que tudo, pretendiam ter acesso a funções políticas

que consideravam serem-lhes destinadas de direito.

Foram estas elites urbanas que se tornaram o centro da oposição à do-

minação colonial.

Isto porque, a nível da população, o campesinato, na luta pela preser-

vação da sua economia de subsistência e de seus valores tradicionais, fechou -

-se aos colonizadores e a seus agentes. Na cidade, onde as contradições eram

mais evidentes, dada a convivência forçada de colonizadores e colonizados,

a população estava separada por barreiras tacitamente aceitas e bairros exclu-

sivos de europeus e de "indígenas". O proletariado, especialmente, aí pas-

sou a se reagrupar por etnias, ou por famílias, uma vez que se necessitava

sustentar numerosos membros da família, em idade produtiva, desempre-

gados ou semi-empregados, trazidos pelo êxodo rural.

Assim, foi o colonizado urbano de certo nível social e cultural que

mais se ressentiu com os efeitos do traumatismo colonial, pois tinha condi-

ções de perceber, com consciência, o fenômeno colonial, os métodos de

dominação do colonizador. Estas minorias urbanas europeizadas haviam se

Page 46: A Descolonização da Ásia e da África

submetido aos valores do colonizado, adotando suas normas e suas lingua-

gens, mesmo dominados pelo sentimento de vergonha, de inferioridade e de

humilhação. Mas foi inútil; a cor da pele sempre os denunciava. E tiveram

que reconhecer que seus traços físicos os identificavam com seus conter-

râneos. Apesar da tentativa de dissimular o desprezo que sentiam pelos seus,

não conseguiam evitar a agitação do "sangue cúmplice'' em suas veias. Daí

a atração e o ódio pelo mundo branco. Daí, mesmo, usando as normas e a

linguagem do colonizador, terem assumido a liderança na transformação do

ressentimento existente contra o estrangeiro e sua superioridade através de

movimentos nacionalistas, organizados em escala maciça. A ideologia revo-

lucionária nasceu, portanto, em contato com os europeus.

6. luta contra

a dominação colonial

As primeiras resistências à colonização foram processadas com dificul-

dades maiores ou menores, de acordo com o nível de organização política das

diversas regiões. Por exemplo, elas foram fracas na África Negra, onde os

europeus não encontraram Estados fortes constituídos. Já na África do

Norte, na Indochina, na índia, na China e na Indonésia, as reações chega-

ram a preocupar os europeus, mesmo não estando organizadas em movi-

mentos efetivos e coerentes.

A reação inicial dessas sociedades com tradição estatal foi a de se refu-

giar na tradição, convertida em ideologia da resistência. As elites letradas e

principalmente o clero, guardião das tradições, exaltaram o passado e prega-

Page 47: A Descolonização da Ásia e da África

ram a certeza de tempos melhores. Com a derrota frente à ocupação colo-

nial, a ideologia da resistência consistiu em procurar manter inviolados os

valores tradicionais. Foi essa, por exemplo, a reação das velhas classes diri-

gentes da Índia para expulsar os ingleses (revolta dos Cipaios); a dos rajhás

da Indonésia que se "suicidavam" ao se lançarem diante das belas holande-

sas; e mesmo a reação, em 1900, dos ''bóxers'' na China.

A Elite Colonial e as Tradições Locais

Porém logo este conteúdo ideológico se transformou, com os europeus

veiculando, através de uma burguesia ocidentalizada, um novo elemento

para o mundo colonizado: o nacionalismo. Na esteira do nacionalismo veio a

reivindicação, a exemplo da Europa, de formas parlamentares ou republi-

canas de governo e a constituição de partidos políticos à moda ocidental.

Esta fachada democrática, evidentemente, só atingiu as camadas urbanas

que conviviam com os colonizadores, comerciavam com as grandes Compa-

nhias Ocidentais e foram educadas segundo os padrões do Ocidente. Esteve

distanciada do proletariado urbano e rural que constituía a maioria da popu-

lação. Isto não deve surpreender, pois o ideário dos colonizadores (liberdade,

igualdade, fraternidade, parlamentarismo, soberania popular, livre empresa)

só podia mesmo se apresentar como elementos da classe dominante local.

Os líderes dos movimentos nacionalistas foram instruídos pelas nações

conquistadoras: Jinnah, o chefe da Liga Muçulmana; Nehru, o líder do Par-

tido do Congresso da índia; Dato Onn Bingaafar, na Malásia; Nkhrumah, na

Costa do Ouro; Burguiba, na Tunísia, e Forhat Abbas, na Argélia. Eles

Page 48: A Descolonização da Ásia e da África

conheceram a filosofia política ocidental através do ensino, da imprensa, das

longas permanências nas prisões das potências coloniais e nos contatos man-

tidos com os partidos políticos ocidentais.

32

Assim, a classe dominante colonial descobriu pertencer também a

uma realidade nacional. Ela adotou fervorosamente a ideologia nacionalista,

reivindicou um governo representativo e protestou contra os favores conce-

didos às empresas metropolitanas em detrimento das congêneres nacionais.

Ao adotar as idéias liberais, filhas da Europa, ela rejeitou, pretensiosamente,

todas as conseqüências da colonização, da mesma forma que se afastou das

tradições locais. Na índia, o Partido do Congresso, nascido em 1885, como

resultado do projeto inglês de preparar quadros administrativos formados

dentro das máximas liberais, interessou-se em desenvolver até mesmo uma

política de colaboração anglo-indiana. Ele mudou de orientação em 1920,

reivindicando a independência, mas dentro dos mesmos princípios liberais,

sem pretensões sociais. Na China, o movimento de revolta liderado por Sun-

-Yat-Sen, que proclamou a República, em 1911, era somente uma adap-

tação da ideologia democrática, ao reivindicar o direito dos povos de dispor

de si mesmos, a instituição de um governo representativo e o estabeleci-

mento de uma democracia social. O Egito, também, simplesmente adotou,

em 1922, uma legislação moderna, pondo fim ao Protetorado, com um sobe-

rano constitucional, o rei Fuad.

A Preocupação dos Colonizadores

Da mesma forma que a atitude dos letrados ou dos religiosos não inco-

Page 49: A Descolonização da Ásia e da África

modou seriamente aos colonizadores, esta fachada democrática das elites

burguesas não alterou em nada a sociedade nacional, pois não eliminou nem

as normas culturais do Ocidente e nem a miserável "situação das mas-

sas". Foi necessária uma atitude bem mais radical — a do marxismo, em

sua versão leninista e burocrática — para lançar as bases do que ficou conhe-

cido como movimento nacionalista revolucionário, que se coloriu de preocu-

pações econômicas e sociais e, portanto, de repressão pelas nações imperia-

listas. O caso do Vietnã é um exemplo clássico.

A evolução dos nacionalismos nas colônias foi marcada pelas caracte-

rísticas específicas das sociedades colonizadas em suas diversidades, conju-

gadas com o interesse imperialista. É o que explica os diferentes processos de

descolonização e libertação, marcados ora pelo caráter pacífico, ora pela vio-

lência, ora por preocupações com transformações profundas na sociedade,

ora evitando estas transformações em favor de regimes conservadores. Em

suma, fatores internos e externos contribuíram para os diversos caminhos

dos movimentos nacionalistas de independência, na Ásia e na África, e para

a formação do que ficou conhecido como "Terceiro Mundo''.

7. os movimentos de libertação:

ainda um desafio

Foi em 1968 que os Beatles cantaram a famosa música ''Revolution'',

fazendo sucesso ao som de um instrumento hindu, a citara, aliado à guitarra

elétrica. Nessa década, a música adquiriu dimensões planetárias e enterrou o

velho conceito de "som musical": a década se apropriou de todas as mani-

Page 50: A Descolonização da Ásia e da África

festações sonoras. E exprimia o novo mundo que se impunha, com ramos

americanos, japoneses, africanos e indianos se cruzando, se interpondo no

panorama da história contemporânea. A "mancha branca'' que tanto amea-

çara os continentes asiáticos e africanos parecia perder a força em contato

com a sombra amarela e a preta que, de forma revolucionária, tomava conta

da Terra, tentando mudar o mundo.

Esta tentativa os Beatles conseguiram transformar em música, escre-

vendo em sons a história de uma década. Uma década que não foi só de luta

pela paz como sonhava o grupo, mas também de guerras, de opulências e

também de misérias, de repressão e de luta pela libertação.

Nesta década, trinta nações africanas irromperam no cenário mundial.

Só nos doze primeiros meses da década; conhecidos como "O Ano da

África", dezessete países conseguiram sua independência política: Cama-

rões, Congo Francês e Congo Belga, Gabão, Chade, República Centro Afri-

cana, Togo, Costa do Marfim, Daorné, Alto Volta, Niger, Nigéria, Sene-

gal, Mali, Madagascar, Somália, Mauritânia e Suazilândia.

Do outro lado, no Vietnã, a guerra popular resistia bravamente à mais

poderosa nação imperialista, utilizando a mesma forma de combate que de-

cidiu a independência da Indochina francesa e da Argélia na década de 50 —

a guerrilha. E a República Popular da China, com 20 anos de vida, 9.550.000

km2 de território, mais de 700 milhões de habitantes, aparecia armada com

200 milhões de soldados e explodia a Revolução Cultural.

A mesma década que assistiu a revolução do som e as contestações

políticas assistiu também a uma outra guerra, travada nas salas de reuniões e

nos plenários das conferências: em 1964, pela primeira vez, países do Ter-

ceiro Mundo, a maioria recém-saída de uma situação de subordinação colo-

nial, assinava um documento em conjunto — o Manifesto dos 78. Como

Page 51: A Descolonização da Ásia e da África

resultado, em 1969, na Conferência de Comércio e Desenvolvimento, os dez

países mais ricos tiveram que concordar em admitir que as relações interna-

cionais eram injustas e precisavam ser discutidas e reformuladas.

Era a esperança de um mundo novo que se abriu para a história; um

mundo que se confundia na busca da meta da descolonização e do desenvol-

vimento, realçado pelas alterações que se operaram nas relações de poder,

logo após a Segunda Guerra Mundial.

Com efeito, nos anos seguintes ao final da guerra, até 1954, a maioria

34

dos países asiáticos alcançou a independência, em condições diversas: Índia,

Indonésia, Indochina.

A emergência do continente africano se dá após 1955, isto é, após a

Conferência de Bandung (Indonésia), onde países emergentes da Ásia se

comprometeram a ajudar a libertação dos povos oprimidos ali representados.

O Magrheb, com exclusão da Argélia, alcançou a independência em 1956.

No ano seguinte, a Costa do Ouro, que tomou o nome de Gana, tornou-se o

primeiro país da África Tropical a conquistar sua soberania, enquanto a

Guiné, respondendo "não" ao referendum sobre a Comunidade Francesa,

organizada por De Gaulle, tornava-se o primeiro Estado independente entre

as possessões da África Ocidental francesa. A descolonização britânica avan-

çou e se ampliou de 1957 até o princípio da década de 60, quando a quase

totalidade dos países dominados tiveram assegurada sua independência for-

mal.

Embora a quase totalidade dos movimentos de libertação nacional ti-

vesse sido de tipo anticolonialista, sem objetivos de transformação social

profunda, a primeira fase desses movimentos assinalou o triunfo da Revo-

Page 52: A Descolonização da Ásia e da África

lução Chinesa (1949), que apresenta características totalmente diversas da

maioria. Como disse um estudioso das lutas de libertação nacional — Gerard

Chaliand — "foi uma revolução que sacudiu um quarto da humanidade,

agrupado em uma nação homogênea, herdeira de uma civilização excepcio-

nal, povoada por um campesinato com tradições de trabalho e de engenhosi-

dade admiráveis e, finalmente, de uma intelligenzia de primeira ordem".

E houve também duas semivitórias: a do Vietnã (1945) e a da Coréia (1954).

Esta parte do livro relatará a evolução dos nacionalismos nas colônias e

os movimentos de libertação nacional. A descolonização será caracterizada

pelas aspirações de independência dos povos submetidos, influenciados pelos

conflitos de ordem ideológica e político-militar entre capitalismo e socia-

lismo; pelo declínio dos países europeus como potências imperialistas, pela

ascensão da hegemonia norte-americana e pela ausência ou presença de con-

teúdo social nas independências.

8. movimentos nacionalistas

e influências externas

Os movimentos nacionalistas amadureceram na Ásia após a Primeira

Guerra Mundial. Após a Segunda Guerra fizeram rápidos progressos até

mesmo na África, onde os movimentos organizados nasceram tardiamente.

Nesta evolução rápida, as guerras européias tiveram influência deci-

siva, ou como melhor expressou o historiador Barraclough: "A emancipa-

ção da Ásia e da África e o progresso da crise européia andaram de mãos

dadas".

Page 53: A Descolonização da Ásia e da África

Na realidade, o edifício colonial foi abalado por motivos que se encon-

tram na história de todos os impérios coloniais da época.

Rivalidade Entre as Potências Coloniais

Depois da eclosão da Primeira Guerra, as próprias potências européias

encorajaram os movimentos nacionalistas em territórios coloniais, com o

Page 54: A Descolonização da Ásia e da África

A vitória do Japão sobre a Rússia (1904-1903) simboliza a destruição do mito da superio-

ridade ocidental.

objetivo de causar embaraços a seus inimigos. Os alemães, por exemplo,

incitaram os nacionalistas do Maghreb a se levantarem em armas contra a

França. Dessas rivalidades, os movimentos nacionalistas tiraram proveito 36

para se desenvolverem.

A fraqueza do antigo sistema colonial já se manifestara por ocasião da

vitória do Japão sobre a Rússia (1904-1905), que logrou destruir o mito da

superioridade dos brancos. O acontecimento torna-se mais importante ao se

lembrar que o Japão fora o único país asiático a resistir ao domínio colonial

europeu. Mais tarde, durante a Segunda Guerra, a facilidade com que esta

''nação amarela" ocupou militarmente algumas colônias orientais (Indoné-

sia, Malásia e Indochina) confirmou definitivamente a vulnerabilidade dos

senhores brancos. Com tudo isto, o Japão provou que os povos "de cor"

podiam se emancipar e se modernizar.

Propagação das Idéias da Rússia Revolucionária

Entre 1919-1939, as forças que se opunham ao colonialismo se forta-

Page 55: A Descolonização da Ásia e da África

leceram com o êxito da revolução russa. Conduzida por uma liderança de

pensadores marxistas e por um operariado reduzido, num país atrasado e

arruinado pela guerra, a revolução desempenhou um papel importante para

estender por todo o mundo a agitação antiimperialista. Partiu da Rússia

revolucionária, tendo à frente o Partido Bolchevique, o primeiro pronuncia-

mento pelo direito de autodeterminação dos povos, com condenação a toda e

qualquer anexação territorial. Com base nas análises de Lenin, o imperia-

lismo ''parasita por natureza'' foi apresentado como a exploração do homem

pelo homem. A partir daí, colocavam-se dois objetivos: nos países indus-

trializados, a luta do proletariado contra a burguesia; nos países colonizados,

a luta dos povos dominados contra o domínio estrangeiro. Mais do que isso,

o Komintern (assembléia periódica dos representantes dos Partidos Comu-

nistas internacionais) se comprometeu, a partir de 1919, a auxiliar todas e

quaisquer lutas revolucionárias nos países colonizados, consideradas como

favoráveis à desagregação do imperialismo.

A força da influência da revolução russa nas colônias assentava-se na

sua preocupação ética de justiça social, de igualdade entre os homens, senti-

mento de não-discriminação com base no sexo, cor, raça ou classe, isto é,

na tentativa de extinguir o capitalismo. O novo sistema político inaugurado

procurava concretizar estes ideais com a destruição da dominação burguesa e

instauração da "ditadura do proletariado", a ser alcançada através da atua-

ção de um Estado autoritário, mas submetido à vontade da classe trabalha-

dora.

Estas preocupações contrastavam de maneira formidável com o argu-

mento ocidental de que certos países não estavam "maduros" para o go-

37

Page 56: A Descolonização da Ásia e da África
Page 57: A Descolonização da Ásia e da África

Lenin procurou redefinir perspectivas revolucionárias no quadro da estratégia marxista,

desenvolvendo a teoria do partido de vanguarda, a qual teve grande influência nos movi-

mentos de libertação da África e Asia. Na foto, Lenin na clandestinidade.

verno autônomo. Foram idéias que, naturalmente, causaram enorme im-

pressão nos líderes políticos da Ásia e da África. Mais do que tudo porque

Lenin procurou redefinir perspectivas revolucionárias no quadro da estraté-

gia marxista, desenvolvendo a teoria do partido de vanguarda. Em outras

palavras, Lenin definiu a necessidade e o modelo de um partido composto de

revolucionários profissionais, de intelectuais e de semi-intelectuais, operá-

rios ou não. Foi um modelo de partido de vanguarda que atingiu em cheio

as aspirações de muitos dirigentes dos movimentos nacionais nas colônias,

compostos, na sua maioria, de intelectuais exasperados pela humilhação pro-

veniente do expansionismo ocidental.

Mobilização da População Colonial nas Guerras Mundiais

As guerras exigiram a participação das colônias (campanha da produ-

ção, durante a Segunda Guerra) e o alistamento das populações colonizadas

nos exércitos que lutavam na Europa, no norte da África e na Ásia, ou me-

lhor, a guerra permitiu a centenas de milhares de soldados indianos ou afri-

canos, que lutaram para libertar as nações européias, comparar suas condi-

38

ções de vida medíocres com as das populações dos países europeus. Aumen-

tou-lhes o desejo de liquidar com a exploração econômica e conquistar a

Page 58: A Descolonização da Ásia e da África

liberdade.

A Segunda Guerra provocou, de fato, a ruptura dos elos coloniais. As

potências coloniais saíram extremamente enfraquecidas do combate, não só

pelas perdas de guerra (um passivo superior a 100 milhões de seres huma-

nos, além das imensas perdas materiais), mas também pela degradação da

autoridade moral frente às vitórias temporárias dos alemães e dos japoneses.

O próprio desenrolar da guerra foi decisivo para revelar as possibili-

dades concretas de rompimento dos laços de dependência.

Nas colônias francesas, por exemplo, houve a necessidade de promes-

sas substanciais de mudanças a fim de se obter o apoio das populações nativas

contra o governo de Vichy. A intenção era conseguir o apoio dos "evoluí-

dos" das colônias na luta pela "França livre". Demonstrando que a preo-

cupação era somente com a libertação da França, a Conferência de Brazza-

ville (1944) reuniu, sem representação autóctone, os governadores das colô-

nias africanas e de Madagascar, e formulou um programa de promoção eco-

nômica e social, sem tocar no problema da autonomia das colônias. Em

compensação, no ano seguinte, a denominação Império Colonial foi substi-

tuída pelo termo União Francesa. A Constituição de 1946, por fim, conce-

deu a cidadania francesa aos colonizados, bem como uma representação na

Assembléia Nacional. Entretanto, entregou a administração, como antes, a

governadores responsáveis somente perante o Ministro do Estado, e não

perante a população interessada. De fato, não de direito, esta cidadania

nunca foi reconhecida. Como a Holanda, a França não quis ver a amplitude e

a profundidade dos movimentos nacionais, principalmente na Indochina.

Page 59: A Descolonização da Ásia e da África

A Inglaterra, ao contrário, procurou resignar-se ao irreparável, a fim

de preservar a salvaguarda dos seus interesses econômicos. A estratégia in-

glesa foi a de conduzir os territórios coloniais ao estágio de Self Government

responsável no seio da Commonwealth, aliás, como já havia feito com suas

antigas colônias do povoamento. Para os ingleses, a evolução política deveria

preparar quadros locais para a constituição de governos independentes, de

forma gradativa. O desenvolvimento político seria acompanhado da colabo-

ração econômica inglesa, o que fortaleceria os laços de interesse entre os

produtores locais e os negociantes ingleses.

Atitude dos Estadistas nas Decisões Diplomáticas

39

No decorrer da guerra, os próprios aliados, sob a liderança dos Estados

Unidos, chegaram a propor abrir mão de "seus direitos" adquiridos num

determinado momento. A carta do Atlântico proclamou o ''direito de todos

os povos de escolher a forma de governo sob a qual queiram viver''. Contra

esta proclamação, Winston Churchill se manifestou em discurso de 5/10/

/1941: "Não me tornei Primeiro-ministro de Sua Majestade a fim de pro-

ceder à liquidação do Império Britânico''. Apesar do antagonismo de pontos

de vista entre Estados Unidos e Grã-Bretanha, a Conferência de Moscou

(1943) fixou o "princípio da internacionalização das antigas colônias e a

organização de um sistema de tutela para os chamados territórios autôno-

mos". A conferência de São Francisco (maio-junho de 1945) previu, sob a

liderança dos Estados Unidos, o encaminhamento para a independência dos

povos dependentes, sob o controle de uma Assembléia das Nações. O docu-

Page 60: A Descolonização da Ásia e da África

mento final que selou o final dessa reunião foi a Carta da Organização das

Nações Unidas (ONU). Os membros da nova organização internacional se

dispuseram, por um compromisso assumido, a pôr em prática um sistema

internacional capaz de assegurar a paz no mundo e a proteger os direitos do

homem por toda a parte. Isto significava renunciar ao emprego da força,

salvo diante de uma ameaça à segurança mundial.

Em resumo, as rivalidades entre as potências, o prestígio das vitórias

da União Soviética, defensora dos povos coloniais e os estímulos de estadis-

tas americanos aos chefes dos movimentos nacionalistas contribuíram para a

resistência das colônias quando os colonizadores quiseram reforçar sua auto-

ridade. O reforço colonialista não tinha mais sentido depois que o final da

guerra assistiu à perda do controle e da iniciativa da Europa na política inter-

nacional. Em 1945 estavam nítidos os dois pólos de poder, detentores das

armas e da técnica: Estados Unidos e União Soviética. Estas duas potências

passaram a representar, através de suas idéias, o capitalismo, como sinônimo

de democracia e liberdade, e o socialismo, como sinônimo de instrumento de

luta pela libertação dos povos e classes historicamente oprimidas.

Consciência da Separação Entre Ricos e Pobres

As alterações que se operaram nas relações de poder trouxeram à luz o

grande fosso que separava ricos e pobres (entre países e entre classes sociais),

reacendendo o ideal de igualdade entre os homens que teria condições de se

concretizar com a "opção socialista". O exemplo da União Soviética, no

apogeu do seu prestígio, estava patente não só como condutora da vitória na

guerra contra o nazismo mas como exemplo de um outro caminho para

Page 61: A Descolonização da Ásia e da África

atingir o desenvolvimento, de vencer a miséria social: a eliminação do sis-

tema de mercado, no qual parecia residir a fonte de toda a alienação do

homem, e a implantação em seu lugar de um rígido e centralizado sistema de

40 planejamento econômico e social, capaz de promover um rápido desenvol-

vimento.

Aos olhos dos povos dominados esta parecia a solução ideal do pro-

blema das relações entre povos de desigual desenvolvimento econômico e

cultural.

Assim, para os povos dominados, a União Soviética passou a simboli-

zar a libertação e as democracias ocidentais, o signo da dependência. As de-

mocracias liberais contribuíram elas mesmas para confirmar este julgamento

dos povos coloniais, pois até mesmo os Estados Unidos esqueceram-se dos

compromissos da Carta de São Francisco, passando a negar o apoio aos movi-

mentos nacionalistas e denunciando os como movimentos comunistas.

A Guerra Fria

As divergências profundas entre os Estados Unidos e a União Sovié-

tica ficaram evidentes após a restauração da paz: de aliados transformaram-se

em inimigos potenciais.

A vitória soviética e o estabelecimento de democracias populares na

Europa Oriental e Central ampliaram o "campo do comunismo", inquie-

tando a potência americana. A disputa pela hegemonia entre as duas potên-

cias acabou por se tornar pública em março de 1947, quando foi anunciada a

"Doutrina Truman". O discurso do presidente dos Estados Unidos, na

Page 62: A Descolonização da Ásia e da África

ocasião, especificou o seu intento em conter o ''comunismo'' e a influência

soviética, argumentando que "regimes totalitários", impostos a povos li-

vres, solapariam a paz internacional e por isso mesmo a segurança dos Esta-

dos Unidos. Após este discurso, os dois blocos em disputa procuraram es-

tender suas concepções de mundo aos vários países, com marca impressa em

todas as manifestações, quer políticas, sociais e econômicas, quer culturais,

acarretando o agravamento das tensões. A situação tensa que passou a pre-

valecer convencionou-se chamar de Guerra Fria. O mundo ficou dividido e

ameaçado com a presença do terror das armas atômicas.

Um dos momentos de maior tensão ocorreu com o triunfo da Revolu-

ção Chinesa (1949). O peso da transformação da China foi grandemente

sentido pelos países ocidentais, principalmente os Estados Unidos, que con-

tinuaram a apoiar a manutenção de uma chamada China Nacionalista, esta-

belecida na ilha de Formosa.

Esta atitude foi um dos pontos altos da Guerra Fria, junto com a defi-

nição do Kominform (Comissão Comum de Informação) de coordenar a ação

dos diferentes partidos comunistas do bloco oriental com base na condenação

do imperialismo e no apoio aos movimentos revolucionários das colônias.

Por estas razoes, a guerra da Coréia (1953-54) surgiu como ameaça de

uma Terceira Guerra Mundial, com a possível destruição da espécie hu-

mana. Nessa ocasião, os Estados Unidos invadiram a Coréia, contra o movi- 41

mento socialista coreano e em apoio ao governo militar que havia sido esta-

belecido, sob sua tutela, no sul do país. A guerra terminou com a divisão da

Coréia em duas: Coréia do Norte e Coréia do Sul.

Page 63: A Descolonização da Ásia e da África

Solidariedade dos Países Emergentes

A polarização do mundo pela Guerra Fria fez surgir uma estratégia

dos países que lutavam pela independência. Esta estratégia foi definida na

Conferência Afro-asiática de Bandung, em 1955, que acabou por simbolizar

a recém-encontrada solidariedade da Ásia e da África, contra o Ocidente.

Nesta conferência, vinte e nove representantes dos países dos dois conti-

nentes pronunciaram-se pelo neutralismo, isto é, o "não-alinhamento"

com os blocos de poder existentes, e se comprometeram com a libertação dos

povos dependentes.

A partir de 1960, o declínio progressivo da liderança da União Sovié-

tica sobre o campo socialista e o rompimento militar sino-soviético (1959),

de um lado; de outro lado, a contestação de De Gaulle da ordem atlântica e o

reconhecimento da China pelos Estados Unidos assinalaram o fim da Guerra

Fria e uma nova etapa das relações internacionais.

Foi entre estes dois períodos, no decorrer de duas décadas contur-

badas, que ocorreu a liquidação da grande maioria dos impérios coloniais na

Ásia e na África e a emergência de países que até então haviam estado total-

mente submetidos à tutela de algumas nações industriais do Ocidente.

9. movimentos de libertação

1.ª Fase: a descolonização da Ásia

A maioria das colônias asiáticas atingiu a independência no período

1945-1954. As lutas pela independência se desenvolveram contra metrópo-

Page 64: A Descolonização da Ásia e da África

les que haviam perdido a preeminência do mundo capitalista, ao saírem en-

fraquecidas econômica, militar e politicamente da guerra contra o nazismo e

do expansionismo japonês na Ásia e no Pacífico.

Com efeito, o Japão, dentro das suas ambições expansionistas, logo

após a declaração de guerra aos Estados Unidos (1941), em poucos meses

destroçou todos os impérios coloniais do Ocidente: ocupou a Malásia e Sin-

gapura, as Filipinas, a Indochina, a Indonésia, a Birmânia, chegando às por-

tas da Índia. Quando as potências européias, terminada a guerra, vieram

ocupar novamente os territórios que lhes estavam submetidos, encontraram

esses países controlados por forças revolucionárias anticolonialistas, fossem

japonesas ou européias: grupos comunistas, sob influência da União Sovié-

tica, estavam constituídos na Indochina, na Malásia e na Indonésia.

É o que explica a inesperada proclamação, em Hanói, da indepen-

dência do Vietnã (2/9/45), sob a liderança de Ho Chi Minh. A atitude da

França, diante do fato, foi tão desastrosa que a levou a atolar-se numa guerra

colonial só encerrada em 1954, com a sua completa derrota em Dien Bien

Phu.

Na Malásia, onde viviam grupos raciais diversos (chineses, malaios e

indianos), as tropas britânicas conseguiram esmagar uma insurreição comu-

nista, sustentada por uma minoria chinesa, para então conceder a indepen-

dência às camadas dominantes malaias muçulmanas. A luta na Malásia du-

rou de 1948 a 1960, dado o fato de as riquezas da região (estanho e borracha)

terem um peso fundamental na economia inglesa, além de Singapura ser um

ponto estratégico entre o Indico e o Pacífico. Em 1960, a Malásia transfor-

mou-se em bastião contra a influência chinesa na região.

A Índia obteve sua independência em 1947, em meio às tensões insu-

fladas pelos britânicos, entre hindus e muçulmanos, do que resultou a cisão

Page 65: A Descolonização da Ásia e da África

do país (União Indiana e Paquistão).

Em Sri Lanka (ex-Ceilão), em 1947, o governo britânico concedeu ao

parlamento e ao governo da ilha o self government completo no âmbito da

Comunidade Britânica.

Assim, da Índia Britânica, neste período, nasceram quatro

Estados: três permaneceram na Comunidade Britânica (a Índia, o Paquistão

e Sri Lanka); já a Birmânia, ao se recusar a integrar a Comunidade, obteve,

em 1949, o reconhecimento do seu Estado soberano — a República da União

Birmanesa.

A Indonésia se libertou em 1949, após uma bem-sucedida guerra de 43

guerrilha contra a dominação holandesa.

As independências dessa primeira fase foram alcançadas, portanto, em

condições diversas, embora todas tivessem um denominador comum: o na-

cionalismo. Seguir os cursos desses movimentos iria muito longe. Consi-

dera-se importante, no entanto, relatar dois desses processos de indepen-

dência — índia e Indochina — como exemplos de caminhos diferentes que

influenciaram os movimentos anticolonialistas da segunda fase (1956 até

meados dos anos 60), quando a quase totalidade dos povos dominados teve

assegurada sua independência formal.

A Índia

Foi na década de 20 que o tema da independência chegou às "massas''

indianas e popularizou-se. Entretanto, vinha de 1885 o movimento do Par-

tido do Congresso, criado por uma elite anglo-indiana, que procurava um

Page 66: A Descolonização da Ásia e da África

canal de expressão a favor de uma representação política para o elemento

hindu. Esta corrente de opinião culta, letrada, composta de antigos estu-

dantes das velhas universidades britânicas, sonhava com o self government,

raciocinando em termos de instituições britânicas.

De Movimento de Elite a Movimento de Massa

A política colonial da Coroa Britânica sempre fora, em teoria, muito

liberal, dentro do modelo ocidental: a imprensa foi deixada livre e as famílias

dos notáveis enviavam seus filhos para escolas inglesas contra promessa de

participação na administração dos negócios indianos. Na prática, claro, esta

política não funcionava, pois qualquer colonização, em si mesma, é domi-

nação a ser eliminada. Assim, os jovens indianos bem providos de diplomas,

apesar de reclamarem dentro do Partido do Congresso — órgão essencial da

oposição — estavam sempre relegados a funções subalternas. Na verdade,

como movimento nacional de elite, o Partido do Congresso apenas conse-

guiu, até a década de 20, algumas reformas superficiais.

Depois da Primeira Guerra, o movimento se tornou mais ativo, ao

atingir camadas mais amplas da população. Isto porque, durante a guerra, os

ingleses tiveram necessidade da Índia para fornecer soldados e matérias-pri-

mas. Em troca, prometeram reformas mais profundas. A paz chegou e as

reformas tão esperadas não se concretizaram. A recusa da Coroa Britânica

gerou profunda decepção entre os indianos e com razão, pois a guerra, da

qual haviam participado, havia agravado os encargos financeiros, provocado

a alta de preços, tornado a vida mais difícil, principalmente para a população

Page 67: A Descolonização da Ásia e da África

urbana, que crescia assustadoramente sem que a indústria pudesse fornecer 44

trabalho necessário. Só a título de ilustração: em Bombaim (1941), 69% da

população total dispunha apenas de um único quarto para alojar uma média de

4,5 pessoas. O quadro fica mais terrível quando se volta para a grande massa

de habitantes constituída de camponeses miseráveis que sofriam os efeitos da

penetração colonial. No campo, os ingleses liquidaram com as comunidades

camponesas, ao substituir o imposto proporcional às colheitas por um tributo

fixo em dinheiro. Endividados, os camponeses acabaram sendo obrigados a

transferir suas terras para as mãos dos cobradores de impostos (zamindari).

O resultado foi o aparecimento de uma classe de latifundiários explorando os

camponeses sem terra e oprimidos por dívidas. Uma miséria que cresceu

mais ainda com a ruína do artesanato rural frente à concorrência das impor-

tações européias.

A Liderança de Gandhi

Foi dentro deste quadro que Mahatma Gandhi, o "apóstolo da não-

-violência'', começou a impor-se frente às massas populares.

Membro de uma poderosa família indiana, Mahandas Karamchand

Gandhi havia se formado em direito na Inglaterra. Ao regressar à índia, em

1915, empreendeu a organização da resistência ao ocupante, de dentro do

Partido do Congresso. Pretendia restaurar as tradições indianas e opor ao

triunfo da técnica industrial os valores morais da índia. Seu ideal era essen-

cialmente uma busca moral de reformas das consciências, de vida simples e

patriarcal, mediante o retorno à terra e à velha civilização indiana. Estava

persuadido de que a salvação da Índia viria de uma transformação espiritual.

Page 68: A Descolonização da Ásia e da África

Neste sentido, mostrava-se indiferente às reformas sociais. Preconizava, en-

tretanto, para a libertação do jugo inglês, formas de ação bastante originais:

a desobediência civil e a não-violência.

A Desobediência Civil

Desobediência civil, como o próprio nome indica, representa a deso-

bediência dos cidadãos, em sua sociedade, diante das leis que os ofendem ou

os agridem. Os seguidores da desobediência civil repudiam a violência e a

injustiça, isto é, diante de uma lei injusta, considerada um ato de agressão,

eles agem de forma não-violenta, desobedecendo as leis que humilham, que

são injustas, que discriminam raça, religião, cultura, sexo, etc. Eles consi-

deram que o não à violência é a maior força a ser empregada em defesa dos

45

Page 69: A Descolonização da Ásia e da África

Mahatma Gandhi com suas vestimentas típicas na fria Inglaterra, à entrada do Palácio de

Saint James, por ocasião da conferência sobre a independência da Índia de 1931.

direitos da pessoa humana. Dessa forma, mantém-se uma agitação contínua,

em favor da dignidade humana, respondendo, de forma superior, à violência

das leis ilegítimas e do governos.

Desde 1920, o programa para a libertação da índia, proposto por Gan-

dhi e outros líderes do Partido do Congresso (especialmente Jawaharlal

Nehru e Mohammed Ali Jinnah), tinha um ponto central: a não-colabora-

ção com o colonizador inglês. Dizia Gandhi: "A primeira coisa, portanto,

é dizer-vos a vós mesmos: Não aceitarei mais o papel de escravo. Não obe-

decerei às ordens como tais, mas desobedecerei quando estiverem em con-

Page 70: A Descolonização da Ásia e da África

flito com a minha consciência. O assim chamado patrão poderá surrar-vos e

tentar forçar-vos a servi-lo. Direis: Não, não vos servirei por vosso dinheiro

ou sob ameaça. Isso poderá implicar sofrimentos. Vossa prontidão em sofrer

acenderá a tocha da liberdade que não pode jamais ser apagada''.

A prática da desobediência civil foi iniciada em 1920, quando Gandhi

adotou o plano de boicote dos tribunais, das legislaturas, das instituições de

ensino, e o não-pagamento dos impostos, conseguindo o primeiro bloco de

reformas administrativas. Durante esta campanha, 30.000 indianos foram

presos por motivos políticos, entre eles Gandhi. Mesmo assim, o movi-

mento já havia se fortalecido o suficiente para exigir a independência com-

pleta e, em 1935, assistir à outorga de uma Constituição para a Índia. Esta 46

Constituição foi o primeiro grande passo dado pelos ingleses para conceder a

independência gradativa. Mas os indianos a repudiaram, considerando-a ile-

gítima.

A Solidariedade Nacional Abalada

Frente ao crescimento do movimento, o imperialismo inglês apoiou-se

na minoria muçulmana, agrupada ao redor da Liga Muçulmana, criada em

1906.

O líder muçulmano era Ali Jinnah. Também havia estudado direito

em Londres e pertencido ao Partido do Congreso. Ele desligou-se do movi-

mento liderado por Gandhi após as primeiras reformas da década de 20,

temeroso da sorte das minorias muçulmanas pobres em face do nacionalismo

indiano que buscava suas fontes hindus (sobrevivência do sistema de castas).

Page 71: A Descolonização da Ásia e da África

Com estes temores, Jinnah rompeu com o Partido do Congresso e se filiou à

idéia federalista para a Índia, em defesa dos muçulmanos (24% da popu-

lação).

Em 1937, a Liga se transformou num partido de luta, colocando ofi-

cialmente a constituição de um Paquistão independente. Rompeu-se desta

maneira a solidariedade nacionalista da Índia. Para Jinnah, a luta verdadeira

não era antiimperialista e sim contra o hinduísmo.

O deflagrar da Segunda Guerra Mundial encontrou uma Índia fa-

minta, descontente e hostil à Constituição outorgada. Quando, em 1939, o

governo inglês, sem consulta aos representantes do país, declarou a Índia

beligerante, o Partido do Congresso recusou-se a cooperar com a guerra. E

os líderes do Partido e mais 60.000 pessoas foram presas.

No fim da guerra, o governo britânico, já sem razões econômicas tão

poderosas para lutar pela garantia do controle total da Índia, e assoberbado

com dificuldades no Egito, na Palestina e na Malásia, assistiu a uma apro-

ximação entre o Partido do Congresso e a Liga Muçulmana. Estes dois movi-

mentos estavam assustados com o crescimento dos movimentos populares e

com as idéias marxistas que, apesar da vigorosa resistência dos costumes

religiosos, ameaçavam penetrar no meio operário. Aproximaram-se por não

dispor de meios para controlar os embates populares, gestados no ventre da

fome. O governo inglês apressou-se, então, nas negociações. Em 15 de julho

de 1947 foi votada pelo Parlamento Britânico a Lei de Independência e, a 15

de agosto, foram formados os governos interinos: um para a Índia, outro

para o Paquistão. A partilha foi realizada na mais completa desordem, mar-

cada por atos de violência entre hindus e muçulmanos. O próprio Gandhi foi

vítima do fanatismo suscitado pela divisão: acabou assassinado por um corre-

Page 72: A Descolonização da Ásia e da África

ligionário que lhe reprovava a atitude conciliatória com os muçulmanos. Os 47

morticínios de agosto causaram mais de 100.000 vítimas sob o olhar "com-

placente" da Grã-Bretanha que passou, a partir de então, a desempenhar o

papel de árbitro.

O Poder nas Mãos da Burguesia

Na União Indiana, o governo passou para as mãos do Partido do Con-

gresso, representante da alta burguesia hindu. Os hindus europeizados con-

servaram a antiga máquina administrativa, a mesma burocracia, os tribu-

nais, a polícia do regime britânico. A política econômica e social também

Page 73: A Descolonização da Ásia e da África

A Índia mobiliza seus recursos para passar mais rapidamente da era dos carros de boi à

era espacial, mas milhões de crianças ainda vivem em condições de pobreza física e intelec-

tual. Na foto, uma "creche móvel" de Nova Delhi ocupa-se da saúde e educação das

crianças, cujas mães trabalham nos canteiros de obras das redondezas.

não ficou muito diferente daquela desenvolvida pelos ingleses: a grande pro-

priedade permaneceu e os poderosos investimentos estrangeiros continua-

ram a gozar de proteção; os príncipes foram poupados, recebendo impor-

48

tantes postos na administração e na diplomacia. Só não foram poupados os

Page 74: A Descolonização da Ásia e da África

sindicatos e as associações camponesas, cujos membros encheram as prisões.

O Prestígio Internacional da índia

O nascimento da República soberana independente da Índia, o se-

gundo Estado do mundo pela sua população (extremamente miserável), bem

como o desenvolvimento de suas forças produtivas (bem elevado), aliado à

existência de uma burguesia antiga e poderosa e de um proletariado concen-

trado, asseguraram-lhe uma posição de primeira ordem nas relações inter-

nacionais. A República empreendeu esforços para provocar um armistício

na Coréia (1951) e para uma solução, em Genebra, da guerra do Vietnã

(1954). Sua vontade declarada de não aderir a qualquer bloco, de permanecer

fora da Guerra Fria e de se empenhar para impedir o rompimento entre as

duas potências mundiais (Estados Unidos e União Soviética) valeram-lhe um

grande prestígio internacional.

A Indochina

A tradição é um aspecto muito importante para explicar fenômenos

revolucionários diversos. Por exemplo, costuma-se considerar a espirituali-

dade hindu — repousada na aceitação do mundo, onde as leis são fixadas de

maneira imutável — para o entendimento das dificuldades da índia na pro-

moção de transformações sociais profundas (resignação ao sistema de castas,

entre outras). Na Indochina, procura-se levar em conta a influência cultural

chinesa para explicar as transformações revolucionárias ocorridas no Vietnã.

Page 75: A Descolonização da Ásia e da África

Na verdade, comparado à Índia, tanto no domínio da independência

nacional como no plano social, o Vietnã apresenta diferenças qualitativas.

Os aspectos da tradição, entretanto, não esgotam as explicações do

fenômeno ocorrido tanto no Vietnã como na Índia. No âmbito do movi-

mento de libertação nacional, é necessário também levar em consideração as

estruturas sociais fundamentais, os objetivos nacionais — num contexto de

agressão, ocupação ou dominação — e, enfim, a existência de um partido

implantado nas massas populares, munido ou não de uma ideologia revolu-

cionária. A ideologia revolucionária, até hoje, tem sido inspirada no mar-

xismo-leninismo.

A Solidariedade Comunal Vietnamita

49

No Vietnã, de influência chinesa, a estrutura social fundamental era a

comunidade de aldeia, com uma autonomia relativa em face do poder central

e toda uma solidariedade particular com origem na comuna e reforçada pela

necessidade de trabalhos coletivos para construção e manutenção de um sis-

tema de diques, vital para sobrevivência da população. Esta solidariedade

sempre se manifestou em todos os planos da vida social, tanto que qualquer

sucesso ou desonra, ligados a um membro da aldeia, forçosamente repercu-

tiam sobre a aldeia inteira. E ver-se excluído de sua comunidade ainda repre-

senta a pior das condições para um camponês vietnamita. A coesão da comu-

nidade era tão forte que costumava-se mesmo rejeitar a autoridade do go-

verno central quando este praticasse qualquer política oposta à tradição da

comuna. A autoridade da comuna estava representada no conselho de no-

táveis, não-hereditário.

Page 76: A Descolonização da Ásia e da África

Estas características da sociedade vietnamita contribuíram para que os

incessantes trabalhos hidráulicos, de importância vital para os arrozais do

delta, desenvolvessem a engenhosidade e as qualidades de trabalho minu-

cioso que caracterizam, até hoje, o camponês vietnamita. Este trabalho

transformou o Vietnã numa rica colônia agrícola e de investimentos finan-

ceiros para a França.

A França se instalou no mundo indochinês numa época em que a

concorrência capitalista estava no apogeu. Esperava da região conquistada

matérias-primas custosas, o desenvolvimento das plantações (arroz, borra-

cha, chá e café) e a exploração de minérios. O Tonquim forneceu carvão, por

exemplo. Como em outros territórios da Ásia e da África, o colonialismo

deixou aí o caos implantado.

Falando em termos econômicos, o capital investido era de origem fran-

cesa, significando que a quase totalidade dos lucros era reexportada, sem

trazer nenhuma vantagem para a colônia. A extração dos minerais ou o

trabalho forçado reclamavam pouca mão-de-obra; os produtos exportados da

França impediam a criação de indústrias locais, e as populações, portanto,

permaneceram basicamente rurais. A partir da década de 20, os investimen-

tos franceses cresceram na região, e muitas sociedades receberam vastas con-

cessões de terras, deixando aos pequenos plantadores locais uma parte bem

reduzida das terras. Como em todo o resto da Ásia, a colonização arruinou

as instituições comunais, com a economia mercantil permitindo a constitui-

ção de grandes domínios.

Tal situação alimentou o sentimento de frustração e descontentamento

entre os vietnamitas. Na verdade, este povo de tradições fortes nunca cessou

de manifestar estes sentimentos, desde a conquista francesa. E não era para

menos, pois a resistência que os vietnamitas impuseram às diversas invasões

Page 77: A Descolonização da Ásia e da África

de seu território (mongóis, chinesas, etc.) já havia marcado sua combativi-

50

Page 78: A Descolonização da Ásia e da África

Na foto, primeiro grupo de resistência armada vietnamita (liderado por De-Tham) ao do-

mínio francês no Vietnã.

dade e os acostumado a um esforço paciente neste aspecto. Estas resistências

contribuíram para uma consciência nacional desenvolvida.

Os Objetivos Nacionais de uma Elite Ocidentalizada

A política francesa seguida na Indochina era, até 1939, uma política de

assimilação, que visava transformar o país num "prolongamento" da Fran-

ça na Ásia. Mas as duas sociedades, evidentemente, nunca se interpenetra-

ram. E uma elite criada pelo colonialismo, instruída nos princípios liberais

franceses, passou a exigir uma política de associação, reformas dos abusos,

principalmente da arrecadação de impostos (os capitais e os cidadãos ociden-

tais eram isentos de impostos) e a difusão de um ensino que não desvin-

culasse a criança da tradição nacional:

Uma série de revoltas, desencadeadas por sociedades secretas, eclodiu

no ano de 1918, confiantes na tradição liberal da França. O malogro das

reformas reivindicadas levou as sociedades secretas à criação de partidos

nacionalistas clandestinos.

Em meio a estes partidos, constituiu-se o comunista, dirigido por

Nguyen Ai Quoc (o futuro Ho-Chi-Minh), que havia, como tantos revolu-

cionários da época, estudado na França. 51

A partir dos anos 30, o Partido Comunista Vietnamita — que se tor-

Page 79: A Descolonização da Ásia e da África

naria o Viet-Minh — mobilizou as massas camponesas esfomeadas, que se

uniram ao nacionalismo tradicional da elite intelectual.

Em 1941, durante a ocupação japonesa, grupos nacionalistas vietna-

mitas, de variadas tendências, se reuniram em território chinês e fundaram a

Liga das Organizações Revolucionárias do Vietnã, com atividades dirigidas

tanto contra os japoneses como contra a autoridade francesa. A exaltação

nacional, no contexto de agressão, de ocupação e de dominação foi muito

importante para a mobilização da população. Mas não se pode deixar de

constatar o papel decisivo exercido pelo Viet-Minh.

O Partido Revolucionário e as Aspirações das Massas Camponesas

O Viet-Minh era o principal dos grupos nacionalistas, o único a pos-

suir, em todo o país, uma série de redes de informações e elementos ativos, o

que lhe permitiu forjar os meios de pôr fim, vitoriosamente, ao colonialismo.

Os meios utilizados pelo Viet-Minh estavam ligados à mobilização das

massas em torno de algumas idéias-mestras: independência nacional e es-

forço de edificação econômica para modernizar o país. A transformação pro-

posta às massas visava modificar a condição do conjunto da população, e não

privilegiar exclusivamente uma camada social, como foi o caso da índia e da

maioria dos países do Terceiro Mundo. Em outras palavras, a ideologia vei-

culada baseava-se no nacionalismo e no marxismo-leninismo, isto é, na ên-

fase na independência política e econômica, na luta de classes, na direção nas

mãos de uma burocracia dirigente, na repartição igualitária dos bens.

De acordo com muitos estudiosos, esta ideologia mobilizadora só teve

resultado pelo fato de a realidade vivida pelas massas não contrastar com os

slogans, tanto que só foi operada com sucesso na Ásia de cultura chinesa

Page 80: A Descolonização da Ásia e da África

(China, Vietnã e Coréia). Senão, veja só o ocorrido.

Em setembro de 1945, Ho-Chi-Minh proclamou a independência do

Vietnã. No ano seguinte, a França reconheceu o Vietnã como um Estado

livre, com seu governo, seu parlamento, seu exército e suas finanças inte-

grado na Federação Indo-chinesa e na União Francesa. Comprometeu-se,

ainda, a evacuar suas tropas de Tonquim. Desastradamente, estes compro-

missos foram violados, por ocasião do bombardeio de Hayphong pelas tropas

francesas, o que levou à entrada na clandestinidade do governo de Ho-

-Chi-Minh.

Estes fatos deram início a uma guerra árdua, semelhante à que opôs as

tropas de Mao-Tse-Tung ao governo chinês de Chiang Kay-Chek, na qual

52

Page 81: A Descolonização da Ásia e da África

A guerra de guerrilhas revelou a capacidade de organização e liderança de Ho-Chi-Minh

frente ao campesinato. Na foto, Ho-Chi-Minh discursa em Hanói

vigoraram os princípios da guerrilha. Invisível e permanente, o exército de

guerrilheiros, auxiliado por toda uma população com tradição de solidarie-

dade na comuna camponesa, humilhou o bem equipado exército francês: ''o

exército vietnamita estava na população como o peixe no mar", disse um

observador político, lembrando-se do caso chinês.

A guerra de guerrilha revelou a capacidade de organização e liderança

de Ho-Chi-Minh, na frente de libertação representada pelo Viet-Minh. No

entanto, ao adquirir caráter socializante, junto com a ascensão de Mao-Tse-

-Tung na China, o Vietnã tornou-se pião da Guerra Fria. E os Estados Uni-

dos passaram a enviar material de guerra cada vez mais abundantes, para

auxiliar os franceses. De forma infrutífera, pois as aldeias eram, durante o

dia, controladas pelas tropas francesas e, à noite, pela República Democrá-

tica do Vietnã:"Em cada família há membros do Viet-Minh", lamentou

Page 82: A Descolonização da Ásia e da África

um enviado americano.

A derrota total dos franceses aconteceu em Dien-Bien-Phu, em maio

de 1954, isto é, nove anos após iniciada a guerra. Uma guerra que assumiu

um caráter bem diferente de uma simples guerra de libertação da dominação

estrangeira: transformou-se numa guerra contra a expansão do comunismo

na Ásia, ''um aspecto da grande cruzada americana", como afirmou o his-

toriador Mousnier.

O acordo de Genebra dividiu o Vietnã, pelo paralelo 17, em dois Es- 53

tados: o do Norte e o do Sul.

O Vietnã do Sul se impôs com a "ajuda" financeira norte-americana,

instaurando um regime policial apoiado pelos Estados Unidos. Retomou aos

camponeses os dois milhões de hectares de terra distribuídos pelo Viet-Minh

durante a guerra contra os franceses e, em 1956, proibiu a todas as aldeias

eleger seus próprios representantes. Esta situação gerou o desencadeamento

daquilo que os vietnamitas chamaram de "segunda resistência". Assim

apareceu a Frente de Libertação Nacional, provocando temores aos Estados

Unidos e a sua posterior agressão a toda Indochina.

No Vietnã do Norte, as modificações devidas à organização e à ideo-

logia do novo regime vieram ao encontro da estrutura de base da sociedade

vietnamita, pois o regime não destruiu a estrutura camponesa, sua coesão,

sua solidariedade, ao transformar as terras comunais em pequenas coopera-

tivas, com autonomia de gestão. Na verdade, costumam dizer os especia-

listas em questões vietnamitas, a unidade econômica e cultural da aldeia

tornou-se até mais estreita que outrora. Os diques se multiplicaram. Os tra-

balhos hidráulicos, o melhoramento da irrigação e da drenagem permitiram

que se passasse de uma a duas e até três colheitas por ano. Permitiu também

Page 83: A Descolonização da Ásia e da África

a criação de um mercado nacional. Em termos de educação e saúde, veja

só: em cada aldeia uma escola e um posto sanitário com seu médico auxiliar;

nos distritos, escolas de segundo ciclo e hospitais equipados; nas províncias,

escolas de terceiro ciclo e hospitais capazes de realizar intervenções com-

plexas.

Foi esta ampla descentralização em proveito do campo, facilitada pelas

tradições comunitaristas da aldeia, ajudada por um notável nível técnico,

além da existência de uma ideologia revolucionária que permitiu ao Vietnã

do Norte resistir, na década de 60, à grande potência tecnologicamente mais

avançada do mundo, e vencer, colocando limites na hegemonia norte-ame-

10. movimentos de libertação

2.ª Fase: descolonização da África

M

A segunda fase das lutas de libertação das colônias iniciou-se imedia-

tamente após a Conferência de Bandung (1955), prolongando-se até princí-

pios da década de 60, ou melhor, até a intervenção direta das tropas norte-

-americanas no Vietnã (1966).

Neste período, a grande maioria dos países africanos alcançou a inde-

pendência formal.

Os movimentos de independência desta fase foram muito influenciados

por dois fatores: 1) fim do confronto violento no Vietnã e começo da também

violenta luta de libertação da Argélia (1954); 2) prestígio das técnicas de luta

Page 84: A Descolonização da Ásia e da África

política não-violenta, desenvolvidas na Índia.

Dos confrontos violentos nasceu um duplo medo: medo da invasão

militar pelos países capitalistas e o medo de uma verdadeira revolução social.

Isto explica, em parte, a tentativa de "não-alinhamento" dos países emer-

gentes com os blocos existentes, sobretudo após a conferência de Bandung.

Explica também uma descolonização rápida e sem bravura: as metrópoles,

sob pressão dos acontecimentos externos (Bandung, guerras da Indochina e

da Argélia) e internos (movimentos nacionalistas), outorgaram a indepen-

dência à grande maioria dos países.

Da luta política indiana, apesar das circunstâncias deploráveis, que ro-

dearam a independência do país, e das chacinas por ocasião da sua divisão,

ficou a impressão da personalidade de Gandhi e do seu movimento de não-

-cooperaçâo. Ficou também a impressão da posição de neutralidade desen-

volvida pelos líderes indianos. A Índia, entretanto, figurava como aliada da

União Soviética.

A Índia gozava de grande prestígio na década de 50. A opinião pública

internacional idealizara sua independência conquistada sob os auspícios da

não-violência, bem como sua democracia parlamentar, que dissimulava um

mundo impiedosamente estratificado e violento. A Índia era encarada por

muitos países, sobretudo pelos Estados Unidos, como uma tentativa original

de busca de uma ''terceira via'' entre o capitalismo e o socialismo, destinada

a servir de modelo de desenvolvimento democrático, em oposição à China

"totalitária".

As elites africanas, preocupadas antes de tudo com a independência

política, confiaram nas concepções institucionais adotadas pela Índia, isto é,

começaram a falar usando a linguagem, os princípios e os métodos políticos

das metrópoles. Dessa forma, a identidade nacional, colocada como aspira-

Page 85: A Descolonização da Ásia e da África

ção legítima de rompimento com a instância legítima — o colonialismo —

saiu, de forma contraditória, em guerra contra a própria sociedade africana.

55

As elites dirigentes dos movimentos nacionalistas possuíam parco

conhecimento das realidades locais. Formadas no exterior, isoladas de sua

própria sociedade, elas formularam um discurso em termos da unidade na-

cional, negando a existência do tribalismo, por exemplo. Os textos oficiais

dos movimentos nacionais chegavam mesmo a considerar as tribos como

verdadeiros demônios: anti-sociais, imaturas e antinacionais. Nestes discur-

sos, as tensões sociais, ligadas à pobreza e à demografia, por exemplo, eram

interpretadas como taras de uma sociedade tribal anacrônica a ser destruída

através da unidade nacional. Entretanto, é a realidade tribal que explica o

esmigalhamento dos movimentos em organizações rivais que, em numero-

sos países, facilitou a perpetuação do colonizador.

A primeira independência registrada na África localizou-se no Ma-

ghreb, especificamente na Tunísia, protetorado francês. Na África Negra,

o movimento de independência teve início na África Ocidental Inglesa

(Costa do Ouro), logo estendendo-se aos Estados de expressão francesa e

depois à África Belga e aos territórios britânicos da África Oriental e Cen-

tral.

Desses movimentos serão relatadas, em grandes linhas, as indepen-

dências no Maghreb (Tunísia, Marrocos e Argélia), a independência de

Gana (antiga Costa do Ouro), da Guiné e do Congo. A tentativa é a de

apresentar processos que, no geral, foram comuns a boa parte das colônias

africanas, nesta fase.

Page 86: A Descolonização da Ásia e da África

A Independência na Terra dos Árabes do Ocidente

Politicamente dividido, o Maghreb é um conjunto geográfico muito

individualizado, entre a imensidão saariana e o Mediterrâneo. Mas outros

elementos, além da geografia, dão uma certa unidade à região. Entre eles, o

Islã.

A islamização do Maghreb teve início quando os árabes invadiram a

região, no século VIII. Primeiro na Tunísia, daí se expandindo para o Mar-

rocos, a islamização foi acompanhada da arabização: língua e dialetos árabes.

No início do século XIX, o Maghreb estava povoado por árabes e ber-

beres. A presença dos berberes na região é muito antiga. Eles já aí se encon-

travam por ocasião da conquista romana. Não se conhecem bem suas ori-

gens, mas possuem um tipo físico bem diferente do conhecido na África: são

altos, louros e de olhos azuis. Pobres agricultores, os berberes logo se dife-

renciaram dos árabes, cujas atividades, historicamente, estiveram mais cen-

tradas no pastoreio, no comércio, no artesanato e na burocracia. Com a che-

gada dos árabes, os berberes se concentraram nas montanhas do interior,

pobres e áridas. As férteis planícies ficaram sob o domínio dos pastores

árabes.

56

A Penetração Francesa

A situação se modificou com a conquista francesa. Na Tunísia ocor-

reu algo semelhante ao caso egípcio: a intervenção francesa deveu-se à uma

Page 87: A Descolonização da Ásia e da África

cobrança de dívidas. Quanto ao Marrocos, cobiçado também por alemães,

ingleses e espanhóis, foi oficializado protetorado francês em 1921.

Ao contrário do Marrocos e da Tunísia, onde o Estado, apesar de

dependente, era reconhecido juridicamente, a Argélia ganhou estatuto de

departamento francês. A colonização aí se fez através da implantação de

fortes contingentes de colonos franceses agricultores. Foi o que deu à Argé-

lia características bastante peculiares, transformando a sociedade argelina

numa das mais espoliadas do mundo, do ponto de vista político, econômico e

cultural. Na Argélia, mais de um milhão de cidadãos, na maior parte france-

ses (os pied noirs), monopolizaram e exploraram as melhores terras das pla-

nícies, transformando-as em cultura de vinhas (a religião islâmica proíbe

beber vinho), ocuparam os empregos da cidade, principalmente as funções

públicas, que os "muçulmanos" não podiam pretender. A cultura francesa

foi introduzida ignorando os diversos grupos berberes e árabes, tratando-os

todos como ''muçulmanos''. Negados na sua identidade, os argelinos foram

também impedidos legalmente de estudar, nas escolas públicas, a língua da

maioria deles: o árabe. Mas foi das escolas francesas, de excelente qualidade,

que saíram os líderes que deveriam libertar o país da dominação francesa.

As Reações Contra a Dominação

As reações contra a ocupação francesa, naturalmente, partiram da

Argélia, já em 1847. Foi vencida, mas outras rebeliões se seguiram a esta.

Nas demais regiões, a reação foi também violenta, o que obrigou a França a

uma ação militar "pacificadora" contínua. Não é surpreendente, portanto,

constatar a formação, já na década de 30, de movimentos nacionalistas, es-

Page 88: A Descolonização da Ásia e da África

treitamente ligados à ideologia religiosa, e de partidos políticos muito ativos

no Maghreb. Da mesma forma, não deve trazer nenhuma surpresa o fato de

o governo francês, por longo tempo, ter se oposto aos movimentos de eman-

cipação.

Os movimentos nacionalistas foram conduzidos, no Marrocos, pelo

Partido da Independência (Istiqlal) e, na Tunísia, pelo Partido da Constitui-

ção (Destour). O Destour, após a Segunda Guerra Mundial, ressurgiu com

o nome de Neo-Destour, com dirigentes intelectuais formados nas universi-

dades francesas. O mais importante desses líderes foi Habib Bourguiba (ala

57

conservadora).

Os partidos políticos, depois da Segunda Guerra, pressionaram a

França. A vontade de resistência dos franceses chegou a ponto de raptar o

sultão de Marrocos (1955).

A atitude do governo francês, aliada à vontade do povo do Maghreb,

em simplesmente reconquistar a sua identidade, o direito de ser marroquino,

tunisiano ou argelino, ficou expressa na declaração de Bourguiba a uma

revista francesa Paris-Match, 4/6/1954: "Meus sentimentos de amizade e

mesmo de reconhecimento em relação à França não mudaram. É a França —

ou aqueles que a governam — que, querendo perpetuar pela força um re-

gime colonial ultrapassado, está em vias de comprometer esta amizade."

Os movimentos insurrecionais eclodiram inicialmente na Tunísia

(1952), depois no Marrocos e, por fim, na Argélia. O problema do prote-

torado da África do Norte foi então encaminhado para a ONU. Com dificul-

dades para enfrentar uma guerra popular, o governo francês ainda tentou

manter fórmulas de compromisso, como a "independência na interdepen-

Page 89: A Descolonização da Ásia e da África

dência". Acabou sendo obrigado a ceder a independência política completa

(1956) para conservar seus interesses econômicos.

A Guerra da Argélia

A ''questão argelina'' já foi bem mais complexa. A libertação da Ar-

gélia, da mesma forma que a sua conquista pela França, foi realizada através

de uma longa guerra, terminada com os acordos de Évian (março de 1962) e

com a saída da população francesa aí residente.

O movimento nacional argelino, até 1954, era legalista e reformista,

como o dos dois países vizinhos. A situação se modificou com a criação da

Frente de Libertação Nacional (FLN), que passou a liderar o movimento de

libertação, através de uma luta armada.

Embora conduzida contra a mesma metrópole (França) e também le-

vada a cabo por guerrilheiros, esta guerra diferiu qualitativamente da viet-

namita. Vejamos:

A 1.º de novembro de 1954, uma série de atentados foram realizados

em vários pontos do território argelino. Foi uma insurreição desencadeada

por homens pouco conhecidos, que viviam na clandestinidade. A população

camponesa deu-lhes apoio.

Os atentados, entretanto, não expressavam nenhuma teoria revolucio-

nária, como no Vietnã. A perspectiva era somente a independência, a recon-

quista da identidade. Apesar da presença camponesa, nenhuma palavra de

ordem de reforma agrária, por exemplo, existiu nos slogans de luta.

Os quadros de todas as organizações nacionalistas existentes na Argé-

Page 90: A Descolonização da Ásia e da África

lia, a partir de 1956, passaram a apoi'ajr,também a FLN. E o exército campo-

nês, vigoroso no início do processo, deixou de assumir papel político impor-

58

tante na condução da luta, que passou a ser dirigida a partir das cidades.

A guerra da Argélia só foi levada a sério pelos franceses em 1957.

Nesta data, a repressão nos centros urbanos, particularmente na que ficou

conhecida como "batalha de Argel", foi muito violenta. (Você viu o filme

com este nome, dirigido pelo italiano Gilo Pontecorvo?) A violência levou

os militantes da FLN a recuar para o interior. A direção do movimento,

entretanto, se refugiou na Tunísia. E no exílio utilizou suas fracas forças em

disputas de facções.

A instalação de aparelhos burocráticos no exterior acelerou a defasa-

gem entre a direção política e os combatentes. E assim, após a grande repres-

são de 1957, o campesinato assumiu sozinho a responsabilidade da guerra,

mesmo sem ver as terras mudar de mãos, como aconteceu no Vietnã. Em

1959, grande parte dos dois milhões de camponeses, reagrupados na FLN,

foi dizimada por forças francesas, sem conhecer as tensões existentes na

cúpula do movimento, localizada no exterior e isolada da realidade.

Depois de os franceses "pacificarem" o campo, o movimento voltou

às cidades e com grande vigor, ressaltando, de um lado, a unidade do povo

argelino em torno do movimento de libertação, de outro lado, a brutalidade

da repressão francesa.

Às vésperas da assinatura do acordo de Évian, restavam poucos guer-

rilheiros, duramente encurralados e sobrevivendo em condições precárias.

Bem diferente do que aconteceu no Vietnã, às vésperas do cessar-fogo.

A guerra da Argélia levantou a opinião pública mundial em favor dos

nacionalistas argelinos, contribuindo para que eles atingissem a indepen-

Page 91: A Descolonização da Ásia e da África

dência cheios de esperanças, principalmente em relação à justiça social e a

uma vida melhor, após sete anos de guerra.

O cessar-fogo trouxe à luz o que nunca foi abordado pela frente: o con-

teúdo social da independência. A unidade do movimento havia sido susten-

tada somente pelo objetivo da independência: não havia um partido político,

como o vietnamita, capaz de, além da exaltação da identidade, promover

também a modificação das estruturas sociais e combater o peso da tradição

(estatuto da mulher, por exemplo). A dividida direção da Frente estatizou os

grandes setores da economia para modernizar o país. Um modernismo essen-

cialmente técnico, pois conservador no plano social e cultural.

O emprego, apesar da industrialização empreendida pelo Estado, con-

tinua problema crucial da Argélia. E a reforma agrária, posta em execução

somente dez anos depois da independência, foi realizada sem mobilizações,

conduzida, vigiada e freada por uma elite administrativa "portadora de um

saber técnico moderno". Uma elite, como qualquer madrasta, sempre di-

zendo estar fazendo o melhor para o seu povo. No caso, a criação de um

59

Page 92: A Descolonização da Ásia e da África

Na Argélia, um aspecto chave na vida cultural do pais é o contraste entre a modernização

acelerada e a permanência da tradição.

setor moderno num todo arcaico. Como se fosse possível executar modelos

socialistas planificados com os pés fincados no pântano da tradição. Um

"socialismo científico'' ?

A tradição foi incentivada em nome da identidade nacional, havendo

um retorno ao islamismo. Este retorno, em parte, reflete a busca da identi-

dade de um povo que sofreu uma deculturação profunda. No fundo, repre-

senta a intenção dos dirigentes em neutralizar as lutas sociais. Considerando

que o islamismo não separa o que é religioso do que não é, não há lugar para

qualquer "luta de classe": todos devem se sentir unidos por um drama

Page 93: A Descolonização da Ásia e da África

comum — a garantia da identidade.

O retorno à cultura árabe-muçulmana é muito mal definida, pois em-

bora despertando eco no seio das massas, não impede às camadas urbanas

privilegiadas a adesão aos valores e modelos inspirados na Europa. Ao

mesmo tempo nega aos berberes o direito de aprenderem sua língua na es-

cola. Na verdade, a manipulação da tradição apenas mascara os problemas

sociais que a independência fez aparecer. Mascara também o fortalecimento

de uma elite administrativa que acompanhou a construção do Estado. Mais

que tudo, "é a forma ilusória pela qual o sistema aspira tornar-se total e

unitário".

O Processo de Independência na África Negra

Os movimentos nacionalistas na África Negra apresentam muitos 60

pontos em comum, mas o que os singulariza é o fato de terem se desenvol-

vido em sociedades sem formação nacional. O Estado, com suas instituições,

ficou no lugar da Nação.

Como cada colonizador desempenhou uma atitude diferente diante

desses movimentos, serão relatados aqui alguns casos de cada região coloni-

zada. Nos casos relatados estarão presentes também os problemas enfren-

tados pelos governos estabelecidos após as independências.

África de Expressão Inglesa

Da mesma forma que na Ásia, a Grã-Bretanha seguiu nas colônias

africanas a mesma "política de abdicação criadora", ou seja, "partir para

ficar mais seguramente". Um projeto seguido metodicamente pelos ingle-

Page 94: A Descolonização da Ásia e da África

ses. Tanto assim que, após a independência, as instituições políticas desses

países permaneceram completamente anglicizadas, e as relações econômicas

com a Inglaterra mais estreitas do que nunca.

Nas colônias de exploração (norte do Equador), as condições para levar

adiante este projeto político são explicadas no velho fato de a Inglaterra ter

sabido tirar proveito da ausência de unidade étnica e religiosa: multiplicou as

divisões administrativas, jogou chefes tradicionais contra evoluídos, as re-

giões de civilizações islâmicas (onde as forças do passado eram mais vigoro-

sas) contra regiões mais ricas e penetradas pelas idéias liberais.

A Nigéria e a Costa do Ouro, os países mais povoados da África, são

bons exemplos dessa situação.

A Nigéria é formada por nove grupos étnicos principais, 248 dialetos e

três grandes grupos religiosos. Nas regiões costeiras mais progressistas ainda

vivem os Yorubas, os Edos, os Ibos, os Idjaos e os Ouroubos, além de outros

povos de origem banta. No norte, onde ainda vingam as formas tribais, estão

os Tivs, os Haussas, os Fulanis e os Kanuris. Aí predominam os chefes

tradicionais muçulmanos, procurando preservar e ampliar seus poderes au-

tocráticos, políticos e religiosos sobre as massas rurais.

Estas fronteiras étnicas e religiosas não foram respeitadas pelos ingle-

ses, dando lugar a uma série de divergências internas que dificultam conce-

ber a Nigéria como um Estado e como uma Nação.

Pelo menos esta dificuldade foi sentida por um nigeriano — Obajeni

Awolowo — mais tarde ministro de Estado da Nigéria Ocidental. Ele orga-

nizou, em Londres, um movimento englobando o povo Yoruba e publicou

um jornal (1947) onde se lê: "A Nigéria não é uma nação. É apenas uma

expressão geográfica.''

Page 95: A Descolonização da Ásia e da África

Já a Costa do Ouro compreendia três regiões étnicas e administrativa-

mente bem individualizadas (a Colônia, os Axantis e os Territórios do Nor-

te). Para manter as tensões internas na região, a Inglaterra reconhecia a 61

autoridade dos 63 principais chefes tradicionais, alem de ter restaurado o

Trono de Ouro do povo Axanti.

Diferente da Nigéria, a Costa do Ouro era uma colônia bastante desen-

volvida. Possuía uma vida econômica de tipo moderno, baseada na produção

do ouro, diamantes, bauxita e sobretudo cacau. Às vésperas da indepen-

dência possuía uma burguesia não desprezível, cuja potência econômica pro-

vinha das plantações e do comércio de exportação. Possuía também sindica-

tos bem organizados e um número relativamente alto de diplomados, porta-

dores de um saber moderno.

A Independência de Gana

A Costa do Ouro foi a primeira colônia negra a se emancipar. Para

reconciliar-se com a história tomou o nome de Gana. Um nome histórico

fabricado pelos líderes nacionalistas, pois o antigo reino de Gana havia exis-

tido, mas não nesta região. Vale a pena deter-se um pouco no seu processo

de independência, onde tendências políticas diversas se opunham num mun-

do muito diferenciado: tanto havia conservadores aferrados às tradições,

como partidos políticos modernos.

O movimento ganense teve início com a formação do seu primeiro

partido político moderno, representante da rica burguesia de plantadores.

Foi constituído em 1947, com o nome de United Gold Coast Convention.

Para assumir o cargo de Secretário-geral do Partido foi chamado o Dr.

Page 96: A Descolonização da Ásia e da África

Kwame Nkrumah, futuro líder da independência de Gana.

Como os demais líderes nacionalistas, Nkrumah havia feito seus estu-

dos universitários no exterior. Nos Estados Unidos, onde se graduou, entrou

em contato com o movimento negro pan-africanista. Com 35 anos de idade

chegou a Londres e se envolveu com uma pequena equipe de jornalistas e

políticos africanos. Uma viagem a Paris lhe permitiu reencontrar líderes

africanos de expressão francesa, entre os quais Léopold Senghor.

Dois anos depois de voltar à Costa do Ouro, ele rompeu com o UGCC

e fundou o Partido da Convenção do Povo, ou CPP. Este Partido dirigiu-se a

uma população mais vasta e mais jovem do que a "burguesa" do UGCC.

O slogan do novo partido era Self-Government Now.

O sucesso do partido foi tal que, em 1958, o Congresso Pan-africano,

organizado por Nkrumah em Accra, agrupou mais de 80.000 pessoas repre-

sentando 50 organizações sindicais, cooperativas e centros culturais.

A ação política do CPP baseava-se na não-cooperação, isto é, na deso-

bediência civil. Não pretendia levar em conta oposições e diversidades étni-

cas, tribais e religiosas bastante vigorosas, principalmente no Norte e na

região Axanti: ''Eu mantenho'', declarou Nkruman,""que nas altas esferas

da nossa vida nacional, não há lugar para apelos aos Fanti, aos Axanti, aos

62

Ewe, aos Ga, aos Dagomba, aos 'estrangeiros', etc, mas nós devemos todos

nos sentir irmãos no seio da comunidade e formar o conjunto da nação de

Gana".

Nkrumah foi preso duas vezes. Da última vez, eleições triunfais o

fizeram sair para se tornar o chefe do governo provisório instalado pelos

ingleses. O fato teve profundo significado para toda a África: pela primeira

Page 97: A Descolonização da Ásia e da África

vez, um negro foi chamado à direção política de seu próprio país.

O último passo dado por Nkrumah para obter a independência do país

envolveu uma série de concessões feitas por Nkrumah à Inglaterra. Entre

elas, contrária às suas idéias centralizadoras, o reconhecimento das divisões

regionais da Costa do Ouro: território do Norte, Axanti, Togo, Província

Oriental e Província Ocidental da Colônia. Cada região passou a ter uma

assembléia eleita dotada de poderes efetivos em matéria de administração

local e uma assembléia de chefes tradicionais que deveriam ser consultados

para tudo o que dizia respeito ao costume local e à tradição.

A indenendência de Gana foi festejada a 6 de março de 1957.

Page 98: A Descolonização da Ásia e da África

Nkrumah foi preso duas vezes. Da última vez, uma intensa mobilização e eleições triun-

fais o fizeram sair para se tornar o chefe do governo provisório instalado pelos ingleses.

As Dificuldades para a Realização de Programas Nacionalistas

Após a independência, Nkrumah tentou cristalizar duas idéias: desen- 63

volvimento acelerado, através de processos revolucionários, e pan-africa-

nismo, capaz de reforçar a independência africana.

Entretanto, no âmbito do Partido Único de Gana, a burguesia aumen-

tou seu poder econômico e reforçou também seu poder político — poder que

Nkrumah se esforçou por golpear, sem sucesso.

O fracasso, acreditam alguns estudiosos, adveio do fato de Nkrumah

ter acreditado que a sua opção pelo "socialismo científico'' podia gerar uma

sociedade sem conflitos sociais. Nesse sentido, como acontece nos países da

Europa Oriental, as tarefas dos sindicatos, por exemplo, foram definidas so-

Page 99: A Descolonização da Ásia e da África

mente como de educação e propaganda, e as greves denunciadas como con-

tra-revolucionárias. Assim, sem ter preparado opções políticas e sociais em

suas ações, sem apoio da população, Nkrumah acabou derrubado pelas mãos

da burguesia ganense.

Os demais países de expressão inglesa da região, Serra Leoa e Nigéria,

tiveram a independência reconhecida em 1960. Regiões menos evoluídas do

que Gana, os partidos políticos ai tiveram antes de tudo caráter de agrupa-

mentos em volta de personalidades ou grupos étnicos. E as oposições foram

alimentadas pela divisão tribal e religiosa. É interessante observar no pro-

cesso de independência destas regiões como muitos grupos preferiam per-

manecer sob administração européia a cair sob o domínio de outra população

de cor, desprezada ou temida por eles.

A África Negra de Expressão Francesa

Comparadas aos territórios vizinhos, especialmente a Costa do Ouro e

a Nigéria, as possessões francesas, no seu conjunto, eram pobres em recur-

sos naturais e em fontes de energia, além de pouco povoadas. Nestas posses-

sões, a luta pela independência, na falta de uma burguesia de plantadores, ou

mercantil, foi conduzida pelos funcionários subalternos da administração co-

lonial. Após a independência, eles consolidaram seu poder através do apare-

lho de Estado, ao qual tiveram acesso através do saber que detinham.

A Pulverização Política e a Audácia da Guiné

Page 100: A Descolonização da Ásia e da África

A independência se desenvolveu durante a IV República (1946-1958),

pela Lei-Quadro de 1956. Esta Lei foi fruto do receio de que acontecesse na

África Negra o mesmo que na Indochina e na Argélia. A Lei-Quadro gene-

ralizou o sufrágio universal, africanizou os escalões administrativos e am-

pliou as atribuições das assembléias eleitas. Foi uma Lei que também deu fim

aos conjuntos da África Ocidental Francesa e da África Equatorial Francesa.

64

Em outras palavras, pulverizou a África em Estados sem força e sem poder

real, conforme expressão do próprio Léopold Senghor, líder do Senegal.

A Guiné foi o primeiro Estado da África de expressão francesa a alcan-

çar a independência, ao recusar, em 1958, fazer parte da "comunidade"

proposta pelo General De Gaulle. Parodiando um estudioso das questões

políticas africanas, foi o único Estado a romper o cordão umbilical com a

antiga metrópole, no conjunto da África Negra. Todos os demais territórios,

incluindo Madagascar, votaram "sim" ao "referendum" de 28 de setem-

bro de 1958. Com este "referendum", De Gaulle colocou para os territórios

africanos a questão da escolha entre a Comunidade Francesa e a separação.

Nesta ocasião, cada território fez sua opção pessoal.

Em 1960, resguardado o princípio de cooperação, foi concedida a inde-

pendência das antigas colônias francesas: Togo, Senegal, Mali, Costa do

Marfim, Daomé, Alto Volta, Niger, República Central Africana, Congo-

-Brazzaville, Gabâo, Chade, Madagascar e Mauritânia. Todos estes países

foram imediatamente admitidos na ONU.

O corte do cordão umbilical da Guiné tornou-se possível graças à exis-

tência de um partido de massas, o Partido Democrático da Guiné, sob a lide-

rança de Sekou Touré, recentemente falecido. Este Partido chegou a orga-

Page 101: A Descolonização da Ásia e da África

nizar grandes greves urbanas e lutas contra os agentes da administração

francesa colonial nas zonas rurais. Foi este Partido disciplinado que também

serviu como instrumento de mobilização após a independência, necessária

para enfrentar a audácia da sua oposição à situação colonial.

A Guiné estatizou uma parte importante de sua economia, dispondo

do monopólio do comércio exterior, além dos projetos de planificação eco-

nômica. Foram aparências de socialismo, presentes desde o início da mobili-

zação popular. Na verdade, mais do que tudo, estas medidas contribuíram

para a corrupção, facilitada pela grandeza do setor estatal. Além do mais, os

recursos fundamentais do país permaneceram em mãos estrangeiras: bauxita

(França) e alumínio (Estados Unidos).

A África Ex-belga

Durante o processo de independência congolês, a riqueza da província

de Katanga (cobre, manganês, diamante e a todo-poderosa União Mineira

Belga) colocou o Congo diante de problemas complicados, contribuindo para

dramatizar uma situação já bastante perturbada pelo despreparo das elites

políticas congolesas.

O Congo era uma colônia dominada por três poderes: l)os trusts, que

detinham a economia; 2) a administração, com funcionários a serviço de um

sistema extremamente opressivo; 3) a missão católica, que formava a maio-

ria dos congoleses,

65

1) A exploração dos recursos naturais do Congo estava metodica-

Page 102: A Descolonização da Ásia e da África

mente organizada sob a direção de poderosas companhias privadas, contro-

ladas por grupos financeiros internacionais. As atividades dessas compa-

nhias se restringiam à exploração de produtos minerais e agrícolas, desti-

nados aos mercados exteriores. Uma exploração que negligenciava, dentro

dos clássicos padrões coloniais, a produção de gêneros alimentícios para a

população local e que nada deixava no país para seu desenvolvimento econô-

mico e social.

O padrão de vida da população local como um todo era muito baixo, os

congoleses, muito mal alimentados, apresentavam uma produtividade das

mais fracas.

Page 103: A Descolonização da Ásia e da África

Coletores de borracha mutilados, vítimas da dominação colonial no Congo Belga

2) O sistema colonial belga caracterizava-se pelo paternalismo. No

domínio econômico, o congolês era mantido sob.estrita tutela: o empregador

66

fornecia ao trabalhador e sua família o alojamento, o equipamento e os cui-

Page 104: A Descolonização da Ásia e da África

dados médicos. Só recebia remuneração mensal depois de haver demonstrado

bom comportamento no quadro social. No domínio político acontecia a

mesma coisa: não havia direito de voto, nem vida sindical, nem liberdade de

expressão, o que contrastava profundamente com o que acontecia nas colô-

nias inglesas. Era a administração belga que se encarregava de "defender" o

direito do trabalhador, considerando qualquer congolês incapaz por si mes-

mo. Um paternalismo contraditório pois a segregação racial era absoluta.

Nas cidades separadas, os negros não podiam entrar na zona européia depois

das 21 horas, por exemplo.

3) Em relação à educação, praticamente só existia o ensino primário,

em língua local, abandonado às missões religiosas subvencionadas pelo Es-

tado belga. Um ensino também bem diferente daquele que animava as de-

mais administrações européias na África. Não deixa de testemunhar a des-

confiança das autoridades com respeito à instrução geral, privilégio de uma

pequena elite, nem sempre negra. O ensino secundário e superior só foi

desenvolvido em meados da década de 50, e mesmo assim para evitar a ida à

Europa daqueles desejosos de ampliar seus estudos, principalmente no campo

da agricultura e da medicina. Desta maneira, evitava-se que o congolês ti-

vesse contato com o mundo exterior.

Como se estivesse dentro de um vaso fechado, sem contatos com o

exterior, a elite congolesa escutou os ecos nacionalistas que agitavam a inte-

lectualidade africana.

A elite congolesa estava impedida de ver o que acontecia na África. O

mesmo não aconteceu com a intelectualidade católica belga que se deparou,

de repente, com os "exemplos" da descolonização francesa e inglesa. E

passou a reivindicar a abolição da discriminação racial.

Os ecos dos movimentos nacionalistas africanos, entretanto, logo che-

Page 105: A Descolonização da Ásia e da África

garam aos ouvidos de alguns congoleses mais despertos. E assim, em 1965,

surgiu a ABAKO (Associação do Baixo Congo), presidida por J. Kasa-

wubu, pregando a constituição de partidos e a emancipação política do país.

A partir daí constituiu-se também o Movimento Nacional Congolês, sob a

liderança de Patrice Lumumba, o futuro mártir da independência do Congo.

Os acontecimentos se precipitaram após o Congresso Pan-africano de

Accra (1959), quando distúrbios graves eclodiram em Leopoldeville, a capital

do Congo. A Bélgica decidiu, então, preparar a independência. E em Bru-

xelas foi organizada uma mesa-redonda, agrupando políticos e juristas bel-

gas, além dos principais líderes dos partidos políticos congoleses e dos chefes

tribais. O resultado foram as eleições que deram vitória à ABAKO somente

na capital. No resto do país, o partido de Lumumba (MNC) foi mais presti-

giado. Um partido que pregava o unitarismo e se opunha às tendências fede^

ralistas da ABAKO e às separatistas dos grupos regionais e tribais.

67

A independência foi proclamada em 30 de junho de 1960.

Nasceu assim a República Congolesa, Estado Unitário, democrático e

parlamentar, sob a presidência de Kasawubu, tendo Lumumba como Pri-

meiro-ministro.

O projeto de Lumumba era transformar o Congo numa nação pode-

rosa e organizada. Mas a ausência de elementos instruídos dificultou a afri-

canizaçâo dos quadros burocráticos e o fortalecimento da famosa elite téc-

nica, comum a tantos Estados africanos. O próprio Lumumba era autodi-

data.

Mas o que torpedeou mesmo a independência do Congo, além da ine-

xistência de um partido revolucionário, foram as forças da província de Ka-

Page 106: A Descolonização da Ásia e da África

tanga, associadas aos interesses imperialistas. A secessão da província de

Katanga acarretou outros movimentos separatistas. Junto com a desorgani-

zação econômica causada pelos movimentos separatistas, o caos se instalou,

com tropas belgas ocupando as cidades e a ONU intervindo.

Para o mundo foi colocada a propaganda da imaturidade dos congo-

leses para a soberania. Entretanto "no Continente Africano, o único con-

Page 107: A Descolonização da Ásia e da África

Aula de leitura ao ar livre na República Popular do Congo. A ausência de uma política

de educação no período colonial impediu a elaboração de alfabeto e gramática locais, e os

adultos são alfabetizados hoje na língua do colonizador, a qual nem sempre conhecem bem.

68

Page 108: A Descolonização da Ásia e da África

Lumumba foi o primeiro mártir da luta anticolonialista. Sua prisão e assassinato, em 1961,

acelerou o movimento nacionalista negro.

fronto aberto ocorrido entre russos e americanos aconteceu no Congo,

quando Washington e Moscou tentaram modificar o mapa político em seu

favor, com cuidado, porém, de não provocar um conflito direto''.

Os Estados Unidos, conscientes da ameaça que constituía a projeção

ideológica de Lumumba, apoiaram o seu afastamento e incentivaram o forta-

lecimento de Kasawubu, um moderado. A União Soviética, por outro lado,

se apressou em responder com armas ao pedido de ajuda lançado por Lu-

mumba na sua tentativa de vencer a secessão da rica província de Katanga.

Golpes e contragolpes destituíram tanto Lumumba quanto Kasawubu

— terrível guerra civil se instalou, com intervenção externa. O coronel Mo-

butu tomou o poder e, em 1961, Lumumba foi preso e entregue às autori-

dades de Katanga, sendo assassinado logo a seguir, em circunstâncias muito

obscuras.

Depois dessa longa guerra civil, nasceu o Zaire (1965), com o reco-

nhecimento do governo do coronel Mobutu e condenação da ONU do sepa-

ratismo de Katanga. E o velho Congo, apesar da nacionalização da União

Mineira, do rebatizado das cidades do país e da africanização dos nomes,

continuou dependente dos grandes interesses do capitalismo internacional,

Page 109: A Descolonização da Ásia e da África

também assegurado por corruptos burocratas.

Ruanda-Burundi perderam a tutela belga em 1962, por decisão da

ONU. Hoje formam os Estados de Ruanda e de Burundi.

11. considerações finais

O elemento colonial e o elemento nacional

M

"Saídos da simplicidade da história, nós entramos na obscuridade do

mundo'', escreveu uma descolonizada tunisiana, Hélé Béji. É uma frase que

reflete toda a angústia sentida não só pelo deslocamento dos equilíbrios tra-

dicionais (econômicos, políticos, sociais e culturais), trazidos pela introdu-

ção do capitalismo através da colonização, como também pelo doloroso pro-

cesso de construção de uma identidade nacional. A frase sintetiza, pois, as

contradições do processo de luta pela libertação dos países anteriormente

coloniais.

A questão que se coloca, portanto, nestas considerações finais, diz

respeito à possibilidade de os países libertados da dominação colonialista di-

reta encontrarem o seu próprio caminho de afirmação política e de identi-

dade cultural. Para tanto, considera-se importante retomar, inicialmente,

alguns pontos do processo de independência das antigas colônias.

A Construção da Independência no Quadro do Velho Colonialismo

Page 110: A Descolonização da Ásia e da África

A luta pela libertação das colônias se desenvolveu num quadro colo-

nial profundamente contraditório.

No plano econômico, o processo colonial, pela primeira vez na histó-

ria, criou um mercado verdadeiramente mundial. Foi um progresso. Só que

provocou a dependência dos países dominados com relação ao capitalismo

avançado. Como você viu, a economia colonial, prolongamento da economia

capitalista, teve sua produção organizada em função das necessidades das

metrópoles. E elas impuseram às colônias a monocultura. Assim, os países

colonizados passaram a depender dos dominadores para vender seus pro-

dutos de exportação pelo preço imposto no mercado internacional. Um mer-

cado dominado pelos países industrializados que introduziram diversas for-

mas de exploração nas colônias, reforçadas pelo racismo. O resultado do

impacto e da dominação do capitalismo industrial nas sociedades coloniais

foi o rompimento da ordem e do equilíbrio tradicional.

Porém, ao mesmo tempo que deslocou os equilíbrios tradicionais e

criou a dependência com relação ao capitalismo avançado, o processo colo-

nial introduziu progressos: modernização política (separação do poder espi-

ritual do poder temporal, partidos, república), modificações na estrutura so-

cial (aparecimento de novas camadas), difusão de novas idéias (nacionalismo,

revolução social).

Resultado da expansão capitalista, o processo colonial não só semeou a

70

servidão como também lançou as sementes da liberdade de crítica, a exi-

gência de independência e a aspiração de igualdade: o sentimento de que

valia a pena lutar por um mundo sem exploração e sem opressão veio do

Page 111: A Descolonização da Ásia e da África

próprio Ocidente capitalista opressor.

Assimilando estes progressos, com base em suas tradições nacionais,

alguns países escaparam da dominação ocidental (China, Vietnã e Coréia do

Norte). Tradições burocráticas fortes, existência de sentimento nacional

vivo, influência do confucionismo (moral de Estado) e demografia densa,

foram fatores que contribuíram para que estes países pudessem adaptar as

contribuições da cultura ocidental sem temer a perda da identidade. Pude-

ram assim, sem deixar de exaltar a identidade nacional, erradicar o conser-

vadorismo social e cultural. E dessa maneira assumir uma outra atitude bem

mais radical (marxismo-leninismo) que aquela apontada pelo liberalismo.

Na África foi diferente. A heterogeneidade da população e a ausência

de nação, mesmo em formação, impediram que o caminho apontado pelo

Ocidente encontrasse correspondência nas sociedades africanas.

Os líderes da independência africana, entretanto, sem avaliar bem as

condições de suas sociedades, deram demasiada importância ao caminho que

o Ocidente lhes apontava: o nacionalismo, o parlamentarismo, o partido

político, o código civil, o capitalismo tecnocrático e até mesmo as ideologias

nascidas da contestação capitalista, como o socialismo. E tentaram inserir

estas conquistas nas sociedades tradicionais, onde atuavam forças tribais e

étnicas. Um processo que, na Europa, levou séculos para evoluir, foi con-

densado na África, em prazo curto. Daí a entrada na "obscuridade do

mundo", onde a sociedade se desagrega sem reconhecer sua própria liber-

dade.

Entretanto, os instrumentos utilizados para a rejeição dos velhos mo-

delos colonialistas foram eficientes: expulsaram a presença direta do coloni-

zador. Mas a sociedade africana não reconhece sua liberdade.

Este sentimento de prisão é real. Muitos dizem que ele advém da fi-

Page 112: A Descolonização da Ásia e da África

gura modificada do colonizador, resíduo do passado, representado pelo neo-

colonialismo. A morte do velho colonialismo não foi a morte do colonizado,

nem do colonizador, dizem muitos. É preciso manter a resistência nacional,

capaz de proteger as ex-colônias do perigo neocolonial.

Na verdade, no contexto sócio-histórico da descolonização, forças bem

mais profundas que o imperialismo se inscreveram e se misturaram, aten-

tando contra a liberdade social. Elas foram vistas no decorrer do relato das

independências. Vale a pena retomá-las em alguns pontos. Podem deixar

mais claras as diferenças acontecidas nos países de influência cultural chi-

nesa dos demais.

Reinvenção Nacionalista e Modernização no Contexto Neocolonial

O instrumento utilizado por todas as sociedades colonizadas para a 71

conquista da independência foi elaborado a partir do Ocidente: o partido

político. Criado por elites modernistas, educadas no Ocidente, ele possibi-

litou a organização da população para a luta contra o agressor. Representava

valores nacionais em face de um inimigo estrangeiro, que havia transtornado

as sociedades locais. O nacionalismo, veiculado através dos partidos polí-

ticos, representou a aspiração de um povo oprimido e humilhado. Foi uma

mensagem de resistência, uma força moral contra um agressor, um coloni-

zador. Forneceu resposta concreta a um problema real: a expulsão de um

inimigo estrangeiro.

Quando o colonialismo, monstro tutelar, perdeu sua forma histórica

conhecida, o nacionalismo deixou de ser mensagem de resistência a um in-

vasor. Nas sociedades libertadas, um problema real, concreto, foi desven-

dado: a desigualdade social. Para este problema, o nacionalismo não oferecia

Page 113: A Descolonização da Ásia e da África

resposta concreta.

Diferente dos países de influência cultural chinesa, que dispuseram de

uma tradição nacional e de uma ideologia capaz de dar um conteúdo social

revolucionário à independência, nos países africanos, sem tradição nacional,

o nacionalismo precisou ser reinventado. Melhor dizendo, ele se transfor-

mou em álibi dos privilegiados, que passaram a recorrer ao mito da totali-

dade nacional para não enfrentar o problema das desigualdades reais. Esta

totalidade passou a ser expressa pelo Estado Nacional, que se tornou o instru-

mento de garantia da estabilidade social e econômica. Foi assim que a reali-

dade nacional passou a ser fabricada pelo aparelho administrativo desse Es-

tado Nacional.

O controle do aparelho de Estado ficou nas mãos de uma camada social

detentora de um saber moderno. Aquela camada criada pelo colonialismo,

que encaminhou o processo de independência. Do alto dos aparatos do po-

der, erguidos pelo Estado Nacional, esta camada ''inventou'' tradições, fal-

sificou a cultura, supostamente de origem bem antiga, impedindo transfor-

mações profundas na sociedade.

Assim, as lutas de independência acabaram produzindo regimes nacio-

nalistas de tendências estatizantes, anticolonialistas e antiimperialistas, mas

preocupados em evitar transformações reais nas sociedades. Estas transfor-

mações, de acordo com a camada técnica detentora do poder, fariam aflorar

conflitos sociais e políticos a serem evitados em nome da unidade nacional.

Aos mesmos males, os mesmos remédios, costuma-se ouvir dizer. Se a uni-

dade nacional fora instrumento capaz de expulsar o colonizador, por que não

expulsaria também a miséria social?

A partir desse pensamento, a camada técnico-burocrática no poder

propôs a restauração da dignidade nacional e a promoção do progresso e da

Page 114: A Descolonização da Ásia e da África

modernização, isto é, do desenvolvimento'. Mas foi incapaz de levar adiante

as duas coisas. Em primeiro lugar, não conseguiu evitar atitudes negativas

em face da atividade produtiva, ou melhor, não houve modificações na estru-

72

tura fundiária colonial, que continua a atender às necessidades dos países

industrializados. Sem estas transformações, os países capitalistas continuam

a dominar e extrair lucros das ex-colônias, através de "ajuda" econômica.

Esta ajuda não eliminou as relações de trocas desiguais e nem a miséria e a

humilhação da maioria da população. A orientação econômica planificada

obedece às ordens do capital investido, continuando a dependência colonial.

Pela forma como foi utilizada, no plano político e social, a "ajuda"

estrangeira transformou-se em instrumento de corrupção. E é esta a carac-

terística fundamental do neocolonialismo: o fortalecimento de uma camada

dirigente cujos interesses estão associados aos do capitalismo ocidental. A

ajuda externa só vem agravando o endividamento dos países dependentes e

encurralando um número cada vez maior de nações dependentes no círculo

vicioso e sem saída do endividamento crônico.

Portanto, o que explica a miséria e a humilhação dos países emergen-

tes, o sentimento de prisão de sua população, é a recusa dos dirigentes locais

em se libertarem da dependência econômica externa. Para tanto, com base

numa falsa identidade nacional, eles imobilizam uma população heterogênea

em suas tradições inventadas ou reinventadas, temendo a perda do controle

social e a invasão do Ocidente, representado pelos Estados Unidos.

Page 115: A Descolonização da Ásia e da África

As intervenções estrangeiras (como a dos EUA no Vietnã) obrigam os governos das nações

recém -libertadas a dispender recursos que seriam utilizados para a saúde e educação.

No entanto, o meio dessas equipes administrativas alcançarem o poder

Page 116: A Descolonização da Ásia e da África

e obterem o apoio da população foi o objetivo proclamado de uma sociedade

73

menos desigual. Se houve abuso da denominação nacionalista e antiimperia-

lista, o abuso não foi menor no uso da denominação "socialista", e na nega-

ção do capitalismo como sistema social capaz de vencer o "atraso" (Gana,

Guiné e Argélia, por exemplo).

Mas não é surpreendente, dentro do quadro da independência neoco-

lonial, o comportamento da camada dirigente, pois a maioria dos países ob-

teve a independência outorgada, através de um grande número de conces-

sões feitas aos dominadores.

Como bem ressalta Gérard Chaliand, é por isso que estes regimes dife-

rem das três revoluções realizadas pelo Terceiro Mundo após a Segunda

Guerra Mundial: China, Coréia do Norte e Vietnã. Isto porque, enquanto

os regimes denominados "comunistas" se envolveram em processos que

modificaram de forma fundamental as relações sociais existentes, as revolu-

ções nacionais antiimperialistas só realizaram modificações menores nesse

aspecto.

Identidade Cultural e a Descolonização

Mas existe um ponto em comum entre estes regimes e os Estados

como a China ou o Vietnã: a amplitude do setor estatizado, controlado por

uma camada técnico-administrativa. Uma camada social que nega a exis-

tência de conflitos sociais em nome da garantia de uma falsa estabilidade

social. Uma garantia que dá uma coerência ilusória a uma sociedade desar-

ticulada, pois paralisa o jogo social, tentando uniformizar as consciências.

Page 117: A Descolonização da Ásia e da África

Mas este é um assunto que foge aos objetivos deste trabalho.

A descolonização com base nos velhos valores nacionalistas chegou ao

fim. A identidade nacional que continua a fundamentar regimes políticos

exteriores à realidade nacional não é mais suficiente para fundamentar a

legitimidade do poder, a justiça e a igualdade. Para que estas palavras assu-

mam seu real valor, o principal caminho seria a eliminação do temor da

mobilização dos recursos incertos, dispersos e fragmentários da vida social.

Só ela destruiria o imobilismo político, incentivado pelos dirigentes, faria

frente à tradição e aprofundaria a cultura da vida quotidiana para dar espaço

à verdadeira identidade social e cultural. Só assim o colonialismo chegaria ao

fim, ou melhor, só derramando a mistura criada pelo processo colonial ha-

veria espaço para a fabricação de um outro vinho, mais puro.