a descoberta do brasil - faustino fonseca

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Page 1: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca
Page 2: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

LIBRARY

^NSSACWí,

1895

Page 3: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca
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A Descoberta do Brasil

Proprietário da segunda edição : Livraria Central de Gomes de Car-

valho — 1)8, Rua da Prata, i6o — Lisboa.

Composto e impresso na Typ. de A. J. da Silva Teixeira, Successora

— Rua da Cancella Velha, jo — Porto.

Page 6: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

OBRAS DE FAUSTINO DA FONSECA

Lypa da Mocidade (Primeiros versos), i8q2. Esgotado, i vol.

Tres mezes no Limoeiro (Notas da prisão), 1896, 2.* edição. 1 vol.

O descobrimento do caminho marítimo para a Índia, 1898. 1 vol.

A descoberta da índia (Drama histórico em 5 actos), 1898. 1 vol.

O escândalo do drama do concurso do centenário da índia, 1898. 1 vol.

Regresso ao lar (Romance), 1900. 1 vol.

A descoberta do Brasil, 1900, i." edição. Esgotado, i vol.

Pedro Alvares Cabral, 1900. 1 vol. '

Ignez de Castro (Romance histórico), 1900, i.* edição. Esgotado. 4 vol.

ignez de Castro (Romance histórico), 1903, 2.* edição (popular), t vol.

Escravos (Romance), 1901. 1 vol.

Padeira de Aljubarrota (Romance histórico'}, 1901. 2 vol.

As mulheres portuguesas na Restauração de Portugal (Romance histórico),,

1903. 3 vol.

El-Rei D. Miguel, 1905. 1 vol.

Os filhos de Ignez de Castro (Romance histórico em collaboração com Joa-

quim Leitão), 1905. 1 vol.

Anecdotas de reis, príncipes e outras personagens portuguesas e estran-

geiras, 1905. I vol.

Bons ditos de reis, príncipes e outras personagens portuguesas e estran->^

geiras. 1906. i vol.

Os bravos do Mindello (Romance histórico), 1906. i vol.

A Arraia Miúda (Romance histórico), 1906. 1 vol.

Beijos por lagrimas (Romance histórico). 1 vol.

Na Prisão (Traducção de Máximo Gorki), 1905. i vol.

Viagem Maravilhosa (Romance histórico), 1907. i vol.

O Atheismo (Traducção de Félix Le Dantec), 1907. I vol.

Page 7: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

FAUSTINO DA FONSECA

A Descoberta do Brasil

2.^ EDIÇÃO

1 908

Livraria Central de Gomes de Carvalho, editor

158, Rua da Prata, 160

LISBOA

Page 8: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca
Page 9: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

Escrito na febre de dias

improrogaveis para a com-

memoração do quarto cente-

nário do Descobrimento do

Brasil, com o intuito de rei-

vindicar a obra da civilisa-

ção portuguesa, menosca-

bada pela incapacidade de

escriptores nacionaes, e peia

ignorância e malevolencia

de extranhos, estava desti-

nado a desapparecer este

livro, como esboço de lar-

Page 10: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

gos estudos especiaes a res-

peito de cada uma das prin-

cipaes phases dos descobri-

mentos.

Condemnaram-o porém

á vida o grande êxito obtido,

a acceitação das suas de-

monstrações, as múltiplas re-

ferencias e largos extractos

em diversas obras, e por

isso reapparece tal como

está.

Page 11: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

Ao escrever em iS^S alguns trabalhos comnmnora-

tivos do descobrimento do caminho marítimo para a

índia, convenci-me de que estava por faz^er a historia

das empresas maritimas de Portugal. Não voltaria po-

rém tão depressa ao assumpto, que exige uma aturada

investigação, se não reconhecesse a necessidade de affir-

mar, de uma forma indiscutível, o direito de Portugal

à descoberta do 'Brasil,

Além do interesse histórico, ha o alcance sociológico

de tal reivindicação.

Da mesma forma que pelo centenário de Colombo,

em que Portugal foi jungido ao carro triumphal do ge-

novês e amesquinhado malevolamente na obra colossal

Page 12: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

do século XV, sem que se procurasse a verdade de tal

assumpto com o empenho, com o ardor, com o enthu-

siasmo, com a emoção de quem disputa a gloriosa he-

rança de um grande povo aos que procuram atassalhal-a ;

pretendeu fa^er-se do centenário do brasil a consagra-

ção dos navegadores hespanhoes companheiros e continua-

dores de Colombo, deprimindo-se propositadamente o pa-

pel de Pedro Alvares Cabral, o representante de Portu-

gal naquelle solemne momento histórico.

Ao ter conhecimento dos trabalhos, dos esforços e, o

que é mais, das resoluções tendentes a exaltar esses na-

vegadores, humilhando os portugueses de hoje nos portu-

gueses de então, resolvi escrever este livro em que os

Page 13: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

próprios documentos hespanhoes affirmam a descoberta

portuguesa, e em que o confronto dos testemunhos contem-

poraneos, registando o procedimento de uns e de outros,

constitue a apotheose de Cabral e da civilisação lusitana.

E com este trabalho venho concorrer para a celebra-

ção do quarto centenário do descobrimento, em homena-

gem a laboriosa colónia portuguesa do Brasil', a pátria

brasileira, a obra prima da colonisação portuguesa, a

continuação da nossa terra e da nossa lingua, a prova

do fecundo passado, o monumento da nossa civilisadora

missão.

Faustino da Fonseca.

Prologo da 1.* edição.

Page 14: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca
Page 15: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

Para se comprehender na sua grandeza o plano

colossal das descobertas marítimas dos portugueses,

essa obra de quasi um século, realisada sem desfal-

lecimentos mas sem precipitações, sem exclusivismos

de raça mas sem subordinação a outras iniciativas,

sem regeição de auxilio estranho mas sem subordina-

ção a elle;para comprehender a razão do projecto

do infante D. Henrique e a causa que levou Pedro

Alvares Cabral ao Brasil, é preciso ir buscar as ori-

gens da nova cruzada, estudar desde o principio os

descobrimentos, averiguar os limites da terra conhe-

cida pelos antigos, apreciar as dificuldades materiaes

a vencer: deficiência de material, falta de instrumen-

Page 16: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

tos apropriados, lendas no mar, terror nos marinhei-

ros; é preciso abranger o conjuncto para reconhecer

a unidade de concepção, o methodo experimental, a

orientação determinada, a ideia inicial, o rigor scien-

tifico, a paciente persistência, que permittem a expli-

cação cabal de vários pontos, de outra forma obscu-

ros, a reparação de grandes injustiças, a demonstra-

ção de verdades contestadas, a abolição terminante

da palavra— acaso — com que até aqui se tem sa-

tisfeito a indolência cerebral de muitos escriptores.

Estamos em face de um assumpto de que se tem

escripto muito, mas de que se tem quasi sempre

escripto mal.

Page 17: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

Como se nada existisse, ha que reconstituir pe-

los documentos, pelas fontes, os factos que de perto

se relacionam com as descobertas, e pôr de parte

as chronicas officiaes, quando em contradicção com

esses materiaes, únicos em que se pode baseiar a

historia. Relações de auctores contemporâneos dos

factos, ou próximos d'elles, no tempo e no local;

noticias indirectas, memorias, passagens dos pró-

prios chronistas que sirvam de commentario ou am-

pliação aos documentos com que estiverem de

accordo, constituem verdadeiras fontes e, como taes,

devem ser aproveitadas.

Na obsecação dos documentos ha quem julgue

Page 18: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

que descobril-os, decifral-os e compilai- os é fazer

historia. Tem que se discutir, commentar, compa-

rar, desenvolver, generalizar; reconstituir por elles

as intenções, os propósitos, os desígnios, a maneira

de ser, o modo de proceder, os meios de operar, os

homens, as coisas, os conhecimentos, as relações,

os interesses, a época emfim, em toda a amplitude

da esphera de acção, em toda a ligação com o mo-

vimento inicial do passado, e com o resultado do

esforço no futuro.

Omittem os chronistas diversos descobrimentos

;

faltam na Torre do Tombo muitos documentos rela-

tivos aos trabalhos do século XV; não invalidam

Page 19: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

essas omissões os factos positivos que os elemen-

tos existentes podem estabelecer; não se deve

admittir a negativa de passagens confirmadas por

provas indirectas ou por indícios, sem que se esta-

beleça claramente a contradicção.

Não pôde annullar a carência de provas dire-

ctas os indícios do conhecimento de algumas terras,

manifestados indirectamente em factos e em docu-

mentos, embora a descoberta d'essas terras seja

officialmente marcada em época posterior.

Não se deve julgar os indivíduos e os aconte-

cimentos pelo critério de hoje, em face das ideias e

dos costumes actuaes; mas é preciso não esque-

Page 20: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

cer que esses antepassados não adivinhavam, não

tinham o dom da presciência, não decifravam o fu-

turo, não possuiam a sciencia innata, só procediam

em face de conhecimentos adquiridos; e que os

seus actos que parecem uma antecipação não cons-

tituem mais do que uma revelação. E preciso não es-

quecer que esses feitos foram a consequência de

trabalhos e de estudos coUectivos, de esforços accu-

mulados por muitos annos, de repetidas e árduas

tentativas, que pôde representar um nome n'um de-

terminado local, num dado momento, mas que são

sempre a synthese da obra nacional.

Não se deve esquecer que os homens de outr'ora

Page 21: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

eram creaturas praticas, positivas, como as de hoje

;

que os seus actos, de que nos occupamos, são fun-

dados, lógicos, consequentes, naturaes, simples,

arriscados mas realisaveis, e que então já havia as

actuaes noções de utilidade, de interesse, de bem

estar, de apego á vida.

E preciso banir da narrativa das viagens a pa-

lavra acaso, pôr de parte a repetida explicação do

temporal, abolir para sempre as pomposas expres-

sões à ventura, ao som do vento, confiando apenas em

Deus, e outras equivalentes, que se davam habitual-

mente como causa das descobertas, porque muitos

julgavam engrandecer Portugal pondo-o a navegar

Page 22: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

ás cegas, a tropeçar em terras e em ilhas, suppu-

nham que diminuía a gloria dizer que os mareantes

se guiavam por cartas e se orientavam por instru-

mentos, como se a superioridade, o valor dos indi-

víduos e das nações estivessem nos azares da for-

tuna, em vez de consistirem no trabalho, no estudo,

no saber!

Vae este livro de encontro a muitas opiniões

consagradas, a muitas versões estabelecidas, a mui-

tas razões geralmente acceites, o que não será motivo

para as discutir, para as negar, nem para as referir

sequer. Trata- se de factos e não de palavras.

Ha quem em semelhantes trabalhos accumule

Page 23: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

termos technicos, conserve aos documentos uma or-

thographia que os torna quasi indecifráveis sem os

revestir de maior authenticidade, mantenha uma ari-

dez que não dá mais authoridade ao assumpto,

chegue a empregar caracteres que originam confu-

sões, palavras archaicas, formas antiquadas, que os

tornam incomprehensiveis para o grande publico.

Não procurando alardear fácil erudição e dese-

jando ser comprehendido, tenho que empregar pala-

vras e phrases de uso geral, embora não rigorosa-

mente próprias ; tenho que entrar em explicações e

detalhes, inúteis para os conhecedores, mas cuja ne-

cessidade serão os primeiros a reconhecer.

Page 24: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

Baseia-se este livro principalmente em doações,

tratados de limites, correspondências ofíiciaes, ro-

teiros, mappas, relações, cartas de testemunhas dos

acontecimentos e outros documentos da Torre do

Tombo e dos archivos hespanhoes.

Introducção da 1.* edição.

Page 25: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil

As lendas geographicas da antiguidade

Só com as descobertas marilimas dos portu-

gueses no século XV, entrou a geographia no

campo verdadeiramente experimental.

Surprehendida, occupou-se a Europa das via-

gens no mar desconhecido, e só n'essa época de-

senharam os cartographos nos velhos mappas as

novas ilhas, os trechos do littoral africano e foram

raspando, pouco a pouco as ficções, as lendas e os

terrores.

Se alguma vez se realisaram, não deram o me-

nor resultado pratico, para o conhecimento da ter-

ra, as faladas navegações da antiguidade, como se

vê consultando livros de geographia, portolanos, re-

Page 26: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil

lações de viagem, cartas e outros documentos da

edade media.

Apenas conheciam incompletamente os europeus

dois terços do seu continente, o sudoeste da Ásia

e o norte da Africa, mantendo-se ha muitos sé-

culos quasi estacionários esses escassos conheci-

mentos.

Repetia-se o que diziam os livros gregos, acres-

centava-se-lhes um pouco do que os árabes sabiam

do oriente, exageravam-se as fabulas.

Por um invencível espirito de rotina, limita-

vam-se no geral os debuxadores a copiar as anti-

gas cartas, desaproveitando as indicações colhidas

por um ou outro viajante.

Pouco influíam nos christãos os conhecimentos

geographicos obtidos pela extensão do dominio po-

litico e religioso dos árabes.

Receiava-se que, em vista da curvatura da su-

perfície da terra, os navios que viajassem para

oeste descessem, tornando-se-lhes impossível volta-

rem porque não poderiam subir.

Tolhia este pavor, como muitos outros, o co-

nhecimento das regiões occidentaes.

Era por terra, de occidente para oriente, o pouco

que se avançava.

Page 27: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 23

Realisaram-se de oriente para occidente pelo

mar largo, de norte para sul pela costa d'Africa e

em seguida de occidente para oriente, pelo mar das

índias, os descobrimentos portugueses.

Não só desconheciam os antigos grande parte

do globo, mas também espalhavam ideias absurdas,

contrarias ao desejo de o explorar.

Dividiam a terra em cinco zonas, duas polares,

duas temperadas e a tórrida, considerando inhabita-

veis a zona tórrida por causa da visinhança do

carro do sol e as glaciaes pela baixa temperatura.

Só as zonas temperadas permittiam a existência

;

mas alguns geographos ainda exceptuavam d'ellas

toda a região ao sul do Atlas, e outros levavam o

seu exagero a considerar impossível a vida humana

em todo o hemispherio austral.

Acceitando as extremas consequências d'estas

theorias, havia geographos que collocavam a Africa

toda ao norte do equador.

Ignorava-se o contorno d'esse continente. Da-

vam-lhe uns a forma de trapézio, outros a de

triangulo rectângulo ; e terminavam-n'o ora por

uma ponta ao occidente da longitude de Gibraltar,

ora por um grande alargamento para o sul, no sen-

tido de oriente e de occidente, ora por uma extensa

Page 28: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

24 A Descoberta do Brasil

curvatura para leste até um cabo que formava um

estreito com a península de Malaca.

Affirmava Ptolomeu, em cuja obra se resumem

os conhecimentos geographicos dos antigos, que se

estendia sem interrupção a Africa até ao polo an-

tárctico, não havendo portanto communicação com o

oceano Indico, reduzido assim a um mar interior e

até a um lago, como pretendiam alguns.

Sob o nome genérico de índia comprehendiam

o Indostão, a Indo China, as ilhas e as regiões ex-

tremas do oriente, de que se espalhara a fama de

grandes riquezas: montanhas de pedrarias, muralhas

de prata, torres de oiro fino, echo exagerado pela

distancia do fausto oriental.

Localisava-se ahi a lenda do Preste João, so-

berano christão que reunia o poder temporal ao

espiritual, e era considerado o pontifice do oriente ^.

Marcavam alguns geographos o paraiso n'uma

ilha com esse nome ; outros na Africa ou na Asia^

* Parece hoje certo que o famoso Preste João era um chefe

dos Monges-Keraítas, convertido ao christianismo por missio-

nários nestoria,nos, e morto em 1203, depois de derrotado por

Gengfis-Khan.

Page 29: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 25

e ainda outros fora da terra conhecida. Tinham tam-

bém os seus logares o purgatório e o inferno.

Traziam mais os mappas a ilha de Salomão

onde se dizia estar o cadáver d'esse rei, n'um pa-

lácio maravilhoso; a ilha dos homens e a ilha das

mulheres, habitadas por indivíduos do mesmo sexo,

indo os homens todos os annos visitar as mulheres

e voltando depois á sua ilha; a tão falada Atlânti-

da, de onde viera, segundo Platão, uma invasão ter-

rível contra a Grécia ; e outras egualmente phantas-

ticas.

Durante o século XV,. apezar das descobertas

portuguesas, ainda apresentavam povos monstruo-

sos: pygmeus e cyclopes, hermaphroditas com um

seio de homem e outro de mulher; amazonas, mu-

lheres que fecundavam sem necessidade de marido;

homens com uma perna só, com a cabeça e a boca

no peito, sem cabeça, tendo os olhos nos hombros,

sem lingua, sem orelhas, com quatro olhos, com lá-

bios tão grandes que serviam de guarda-sol ; outros

que viam o sol de noite, que o podiam encarar frente

a frente, que só viviam cinco annos, que nasciam

com cabellos brancos tornados negros ao enve-

lhecerem ; os povos de Gog e de Magog, gigantes

descommunaes, que viriam, como guarda de honra

Page 30: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

20 A Descoberta do Brasil

do Antichristo, praticar as maiores devastações,

precedendo o juizo final.

Determinavam os pontos onde havia sereias, es-

phinges, gryphos, phenix, faunos, satyros e basiliscos.

Era considerado completamente innavegavel o

Atlântico, tratado por mar tenebroso, mar da escu-

ridão e mar verde.

Estava, segundo uns, coalhado de escolhos e co-

berto de plantas marinhas, tinha pequena profun-

didade e o fundo de lodo ; segundo outros, at-

tingiam n'elle as vagas uma elevação de serranias,

e abriam fauces de abysmos ao debaterem-se em

furiosos temporaes; ora o consideravam impossivel

de transpor pela sua absoluta calmaria, porque

estavam presos os ventos em varias regiões e

nem uma aragem enfunaria as velas ; ora o sup-

punham perigosissimo para a navegação pela fúria

dos ventos, pela violência dos tufões. Diziam-n'o

povoado de monstros, de prodígios, de terrores e

coberto de vapores perigosíssimos; para lá de cer-

tas latitudes não se podia ver o caminho; o sol ao

mergulhar nas aguas, como um ferro em brasa,

produzia um enorme estridor.

Inundava um hemispherio inteiro o mar da

noite, estava em ebulição na zona tórrida, occupava

Page 31: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta âo Brasil 21

todo o Equador como uma grande facha, impedia

por completo a communicação do hemispherio norte

com o sul.

Não bastava aos geographos antigos limitar a

tão pouco a extensão do mundo, abrir-lhe um te-

meroso abysmo ao sul e ao occidente; para dissua-

dir os que quizessem alargar os limites da terra co-

nhecida semeavam-o de estatuas, columnas e legen-

das que prohibiam aos navegadores ir mais além.

Fechavam o caminho do Atlântico as columnas

de Hercules, e a entrada do Mar da índia outras

duas columnas num pretendido estreito formado

pela península de Malaca e a ponta de Africa.

Mandavam retroceder o navegante, sob pena de

morte, três estatuas, verde, amarela e negra, na ilha

de Salomão; duas figuras de bronze sobre columnas

de pedra de cem covados de altura, nas ilhas Afor-

tunadas; três figuras monstruosas próximo da ilha

de Saida. Era um ninho de serpentes, promptas a

devorarem quem se approximasse, o cabo Bojador,

cujos rochedos brilhantes attraíam.

Representa o mappa de Marco Polo o estado

dos conhecimentos geographicos em 1 295-1298. AAfrica apparece traçada ao acaso ; o mar da noite,

innavegavel, impossível de transpor, termina o

Page 32: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

28 A Descoberta do Brasil

mundo pelo sul como a terra da noite o fecha pelo

norte. Na ilha de Ceylão ha o tumulo de Adão,

no mar de Java 7:448 ilhas das especiarias, e no

mar das índias outras 12:700; no extremo oriente

a cidade de Kiasay a que se refere Toscanelli na

sua carta e a ilha de Cypango aonde Colombo jul-

gou ter chegado.

No mappa catalão, de 1375, vê-se que a costa

d'Africa só era conhecida desde Ceuta até ao cabo

Bojador.

O mappa de André Bianco (1436J, um dos mais

curiosos documentos geographicos da antiguidade,

reproduz muitas das lendas e das figuras da edade-

media, um mixto religioso e pagão : esphinges, dra-

gões, o nascimento de Christo, Jerusalém no centro

do mundo e até o paraiso terrestre, em cuja situa-

ção Colombo também acreditava, como afinal acre-

ditava em todos os erros e fabulas da antiguidade.

Reunida n'um só continente a terra conhecida, tudo

o que fora d'ella apparecesse era considerado como

ilha. Istp, e o grande numero de ilhas do mappa de

Marco Polo explicam a razão porque, ao começo,

os vários pontos da costa da America eram toma-

dos por ilhas.

E marcado como um mar interior o Oceano In-

Page 33: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta âo Brasil 2g

dico, vem o Nilo lançar um braço no Atlântico, fi-

}jura Cata}^ no extremo oriente. A transição da ve-

lha geographia para o exacto conhecimento das ter-

ras que os portugueses andavam percorrendo já se

manifesta nas ilhas do Atlântico, onde apparecem

os archipelagos ; n'uma nova terra lançada em

frente ao continente africano, já na cercadura do

mappa; na caravela que vae em direcção ao sul

tendo pintada nas velas a cruz de Christo.

Desvendou Portugal o oceano em todos os sen-

tidos, regressou do cabo Não, esmagou as serpen-

tes do Bojador, zombou dos monstros do Mar das

Trevas que durante séculos tinham conservado pri-

sioneira a Europa; dissipou os vapores, desfez as

intrincadas vegetações, despedaçou columnas e esta-

tuas, e foi erguendo padrões em seu logar.

De origem portuguesa ha apenas duas lendas :

o gigante Adamastor a defender o cabo das Tor-

mentas e o cavalleiro de. pedra no rochedo da ilha

do Corvo.

Emquanto as figuras pavorosas ameaçavam o

navegante para que não fosse mais alem, mandava-o

este avançar, apontava-lhe confiadamente o cami-

nho, designava-lhe o rumo da America, incitava-o a

demandar novas regiões.

Page 34: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

30 A Descoberta do Brasil

Creação da poesia popular, como o Adamastor

da poesia épica, representava a confiança na pró-

pria força, a esperança no futuro, o desprezo das

yiendas e terrores, o enthusiasmo pela conquista do

desconhecido. Era o symbolo da ideia das desco-

bertas esse cavalleiro a arrojar-se dos penhascos do

ultimo rochedo do occidente.

Page 35: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

II

o projecto do Infante D. Henrique

Quando tomaram Ceuta os portugueses, termi-

nou o trafico importante de géneros do sertão, a

malagueta e o marfim, e de especiarias que vinham

pelo Mar Vermelho, até Berenice, de onde seguiam

em caravanas passando por Tombuctu.

Mandou D. Henrique emissários a Tunis para

indagarem o caminho dos productos, cujo commer-

cio desejava empolgar, e obteve entre os naturaes

da Berbéria alguns informadores com quem se cor-

respondia assiduamente.

Conheceu assim as principaes vias do commer-

cio oriental: na origem do Indus compravam os

árabes as mercadorias da índia e as do extremo-

Page 36: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

22 A Descoberta do Brasil

oriente, trazidas até ali pelos mongoes ; desciam o

Amou-Daria, percorriam o seu antigo leito até ao

Mar Caspio que atravessavam, subiam o rio Koura,

passavam em caravanas a Sarapana, desciam o rio

T^ion até ao Mar Negro, e vinham então a Constan-

tinopla; traziam-n'as por mar até ao Golfo Pérsico,

subiam os rios Chatt-el-arab e Euphrates, seguiam

em caravanas por Alep para Alexandrette, e d'ahi

para Constantinopla; vinham embarcadas até ao

Mar Vermelho, descarregavam em Berenice, d'ahi

passavam em caravanas ao Nilo, desciam este rio

e iam por um canal a Alexandria.

Terminavam no Mediterrâneo as três importan-

tes vias commerciaes, e os mercadores das republi-

cas italianas tinham de comprar sempre aos mes-

mos intermediários, que faziam pagar a especiaria

três vezes mais cara, e o incenso cinco vezes.

Excommungára um papa os que commerciassem

com os infiéis, mas havia continuado o trafico pela

mesma forma.

Misturavam-se nos documentos officiaes, nas pa-

lavras dos chronistas, nas bulias os assumptos espi-

rituaes e temporaes.

Eram o necessário complemento da victoria o

saque, a posse dos bens materiaes do inimigo.

Page 37: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta áo Brasil 33

Em cada acontecimento histórico ha um pheno-

meno económico a salientar.

Dominava então, como sempre, a noção utilita-

rista, interesseira, commercial. Sabiam bem os sol-

dados christãos que se vence com o ouro, que para

fazer a guerra se precisa de dinheiro. Não se sus-

tentavam de bulias pontificaes, não se batiam sim-

plesmente para obter indulgência plenária os exér-

citos numerosos dos cruzados : discutiam o saque e

as compensações antes de se lançarem ao inimigo.

Na tomada de Silves, por exemplo, tiveram gra-

ves questões com os portugueses por causa do sa-

que de que pretendiam apossar-se totalmente os

cruzados que, de passagem para a Terra Santa, au-

xiliaram o exercito de D. Sancho I; no tempo de

D. Sancho II levaram outros guerreiros da cruz a

avidez a saquear Lisboa, tendo de ser combatidos

e presos para restituírem os furtos.

Fazia-se pagar aos mouros o custo das expedi-

ções que os atacavam em nome da fé, como hoje

se impõe a indemnisação para as despezas da

guerra ás nações derrotadas.

Ao irem depois á índia tratavam os hoUandeses

apenas de commerciar ; ao iniciarem os descobri-

mentos procuravam os portugueses alargar a fé

3

Page 38: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

34 -4 Descoberta do Brasil

gfuerreando os mouros, destruindo-lhes as riquezas,

desviando-lhes o commercio.

Levavam os navios frades para a catechese e

mercadores para as feitorias; paramentos para as

egrejas e barretes e guisos para attrair os africa-

nos; indulgências e absolvições, espingardas e ca-

nhões, pólvora e bala.

Nas instrucções para a exploração do reino de

Angola mandava-se insistir com o rei para se con-

verter ao christianismo, e averiguar se havia ouro

ou alguma coisa para trocar.

Registava com jubilo um chronista que os pre-

tos da Mina, com a isca dos bens temporaes, acceita-

vam a fé.

Convertiam-se régulos d'Africa para receberem

presentes, ou terem nas suas guerras o auxilio dos

christãos: como os saxonios do tempo de Carlos

Magno que abraçavam o christianismo sempre que

precisavam de uma túnica nova.

Eram os descobrimentos portugueses úteis á fé

e ao reino, traziam « almas » para o grémio da

egreja e especiaria para a casa da Mina, serviam

ao mesmo tempo a religião e o thesouro.

Procediam de egual forma os pontífices, profes-

sava o chefe da egreja as mesmas ideias.

Page 39: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 35

Enviou o papa Clemente vil um breve a

D. João III pedindo-lhe que diminuísse o preço da

especiaria, o que seria muito agradável a Deus ^.

Não partiam á toa, em multidão desordenada,

mendigando ou roubando pelo caminho como os

maltrapilhos de Pedro o Eremita, os cruzados do

século XV.

Custavam os soldos, o armamento dos navios, o

equipamento das frotas, muito dinheiro, obtido a

custo dos pedidos votados de má vontade pelas cor-

tes, das terças tiradas á egreja com descontenta-

mento do clero, e dos rendimentos da Ordem de

Christo.

Procurava-se fazer pagar essas pesadas despe-

sas aos mahometanos contra quem eram dirigidas,

no interesse da religião christã, em defeza da civi-

lisação europeia ameaçada continuamente.

D'ahi os tributos cobrados á força, os saques,

as presas, os ataques ao seu monopólio commercial,

porque os grandes lucros do trafico da especiaria

permittiam aos musulmanos lançar constantemente

contra a Europa soldados e navios.

^ Breve de 9 de abril de 1524.

Page 40: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

3"6 A Descoberta do Brasil

Vista a impossibilidade de empolgar no Medi-

terrâneo a corrente commercial, que fugiu aos por-

tugueses quando julgavam tel-a adquirido com a

posse de Ceuta, resolveu-se ir buscal-a á própria

origem, á índia de onde as informações diziam que

saía.

Era preciso mudar para o oriente o theatro da

guerra.

Apesar de dispor de bons navios, de excellen-

tes marinheiros, custaria muito a Portugal susten-

tar a distante campanha.

Para ir ao oriente conheciam- se apenas as vias

que por terra partiam do Mediterrâneo. Tinha por-

tanto que percorrer o Mar Tenebroso, de tentativa

em tentativa, até descobrir um caminho maritimo

para a índia.

Para assegurar esse caminho, e poder commer-

ciar em concorrência com os musulmanos, tinha

que combater; e como para esses combates lhe era

necessária uma alliança, necessitava de encontrar o

alliado natural, a christandade indiana, o reino do

Preste João.

Fizera comprehender a sua possibilidade o es-

tudo do problema, mostrava-o exequivel a intuição

das circumstancias económicas.

Page 41: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 37

Importava o projecto as seguintes vantagens

:

dispensa do intermediário e dos trasbordos, rapidez

do transporte, possibilidade de conduzir mais carga,

substituição do dorso do cameilo pelo bojo do ga-

leão. Denunciava isto espirito pratico e accentuava

um grande progresso.

Partiu tudo d'este projecto que revolucionou o

systema do mundo.

Provem d'esta origem as explorações para o sul

e para o occidente; as grandes viagens do occidente

e do oriente; o encontro das duas passagens a leste

e oeste: o Cabo da Boa-Esperança e o estreito de

Magalhães; as descobertas da costa d'Africa e das

ilhas do Atlântico, da America do Norte e do Brasil.

Obedece tudo a este propósito, subordina-se tudo

a este projecto, são tudo soluções ao problema: os

conselhos de Toscanelli e de Monetário, o erro

de Colombo, a audácia de Magalhães.

É tudo o desenvolvimento d'essa ideia que, com

a Imprensa e a Reforma, torna maior o mundo,

marca uma nova época na historia da civilisação.

Page 42: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

III

Á descoberta

Foram saindo para o sul pouco a pouco algu-

mas caravelas, contornaram a costa africana, des-

cobriram para além dos limites conhecidos, e em

vez dos pavores receiados encontraram por toda a

parte o mesmo mar e o mesmo céo.

. Quiz um dia o Infante que partissem para o

occidente, para o mar alto, sem a terra para abrigo,

sem a vista das costas para se orientarem, sem por-

tos para refugio; mandou-os fazer ao largo, muito

ao largo, que só vissem o vasto lençol verde, a

immensa cúpula do azul, até acharem terras da ín-

dia, a falada riqueza, climas novos, povos diversos,

Page 43: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 3q

e poderem certificar depois ao mundo inteiro que

não havia monstros no ignoto oceano, e que o

mesmo sol illuminava o circuito das aguas, de que

era centro a caravela.

Da epopeia do mar regista a historia algumas

datas dos descobrimentos, quando muito os nomes

dos descobridores; não fala dos sacrifícios, dos

perigos, dos trabalhos, da tortura d'esses homens

á mercê dos elementos, perseguindo a linha do ho-

risonte n'um profundo olhar perscrutador.

Eram dias e dias de mar alto sem uma vela,

sem uma ave; noites e noites receiosas, correndo,

sem saber por onde, em risco de bater n'um ro-

chedo; adornando-se a caravela na crista das vagas,

alagando-se nos abysmos abertos entre ellas; ran-

gendo lugubremente no vergar dos mastros, no

comprimir do cavername.

Datavam de ha quinze annos as viagens das

descobertas. Apezar das murmurações contra os

projectos do Infante, começava o mar a ser o grande

factor da vida portuguesa.

Quando açoitava o vendaval as povoações da

costa, amaldiçoava então o povo essas emprezas,

recordava as pavorosas lendas do Mar das Trevas,

e como que avistava horrendas figuras passeando-o

Page 44: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

40 A Descoberta do Brasil

de fauces escancaradas, promptas a tragarem o te-

merário que se atrevesse.

Andavam agora á descoberta as caravelas de

Gonçalo Velho, que seguia teimoso para occi-

dente.

Viram um dia rebentar mais alto as vagas, lan-

çando nuvens de espuma, atirando-se impetuosas

contra uns rochedos como se quizessem amorta-

Ihal-os, arrazar-lhes as provocadoras agulhas. Mas

resistiam, e ficavam coroados de flocos alvíssimos,

contrastando com o escuro do granito, os impassí-

veis bastiões^de pedra.

Eram muitos, espalhavam-se ao longe esses pon-

tos negfros, como cabeças de monstros marinhos a

espreitarem á tona de agua. Chamou-lhes Gonçalo

Velho Formigas, e voltou d'ali a um anno, no mesmo

rumo, até que um dia, ao dissipar-se a neblina da

manhã, viu como que uma pequena nuvem raste-

jando pela linha do horizonte.

Correram para ella. Augmentava de volume,

avultou como uma ilha que era, em ribas escarpa-

das e desprovidas de vegetação. Contornada en-

controu-se um recorte na costa, e n'elle um cabeço

onde está hoje a Villa do Porto, como uma ave que

poisasse em cima de um rochedo. Era o dia 15 de

Page 45: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 41

agosto de 1432. Em attenção ao calendário cha-

mou-se á ilha Santa Maria.

Tempos depois visitaram, em dia de S. Miguel,

uma grande ilha de suave contorno, coberta de ve-

getação.

Da Terceira encontrada viu-se mais outra,^

S. Jorge, e ao passar ao norte d'ella tiveram os

navegadores o espectáculo surprehendente de cinco

ilhas, essas duas a Graciosa, o Pico e o Fayal.

Eram desertas. Apenas gritavam nas penedias

bandos de milhafres que foram tomados por Aço-

res.

Outras duas ilhas appareceram mais além: Flo-

res, surprehendente no seu aspecto; Corvo, aonde

o espirito nacional foi coUocar uma alegoria a no-

vos descobrimentos, alegoria valiosíssima na época

em que tudo se representava por symbolos, neces-

sitando da forma para se impor á ingenuidade das

multidões: o cavalleiro posto na crista do rochedo,

encarando o oceano na insensibilidade da pedra,

apontando além, mandando seguir para o occidente

os cavalleiros de Christo.

Ficaram também os Açores frota symbolica de

caravelas rondando o grande mar; galeões firmes

nas ancoras, petrificados, arvorando a bandeira por-

Page 46: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

42 A Descoberta do Brasil

tuguêsa, tripulados pelos descendentes das fortes

guarnições; vedetas ao romperem audaciosos o

oceano na formidável campanha do futuro; avança-

das nos rudes assaltos á tenebrosa fortaleza do des-

conhecido; balizas da passagem entre dois mundos,

servindo no Atlântico para acertar os rumos e na

historia para affirmar a prioridade na descoberta

da America; sentinellas perdidas na vasta solidão

das aguas, mostrando o que valeu o passado, o al-

cance da nossa missão social, a obra da civilisação

lusitana.

Page 47: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

IV

Prioridade dos portugueses na descoberta da America

É a descoberta da America uma das consequên-

cias da procura do caminho maritimo para a índia,

e portanto do plano português.

Consideravam os antigos geographos a Ásia

mais extensa, menor a circumferencia da terra, pe-

quena portanto a distancia entre as costas da Eu-

ropa e as praias da índia, nome generalisado ás

regiões do extremo oriente.

Era esta a versão ensinada e acceite por todos

quando começaram os descobrimentos portugueses

;

acreditada ainda por alguns, apezar d'elles, durante

o século XV; e só posta inteiramente de parte de-

Page 48: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

44 A Descoberta do Brasil

pois que deu a volta ao mundo o português Fer-

não de Magalhães.

Escrevia Toscanelli em 1475 a D. Aífonso V,

referindo as regiões e cidades da índia, aonde se

chegaria depois de atravessar o Atlântico de leste

a oeste. Considerava muito pequena a distancia a

transpor « brevíssimo caminho por mar que ha

d'aqui ás índias, onde nascem as especiarias» e

explicava n'estas palavras a razão theorica do ca-

minho do occidente « não vos admireis que chame

poente ao paiz onde nasce a especiaria, que com-

mummente se diz nascer no levante; porque, os que

navegarem para o poente, sempre acharão no

p<jente os referidos logares; e os que forem por

terra, para o levante, sempre os acharão no le-

vante.

»

Ao insistir com D. João II para que mandasse

procurar a índia pelo occidente fazia Monetário

essas citações : « Aristóteles confessa em fim do li?

vro segundo De ceio et mundo. E também Séneca,

Quinto livro dos naturaes, e Pedro de Aliaco, car-

deal mui lettrado na sua edade, e outros muitos

varões esclarecidos confessam, digo, o principio do

oriente habitável ser achegado assaz ao fim do oc-

cidente habitável. » Era tão breve para elle como

Page 49: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 45

para Toscanelli o caminho « se prova aquelle mar

em poucos dias navegar-se contra Catay oriental».

Allude Duarte Pacheco a estes e outros conse-

lhos nas seguintes palavras: « Muitas opiniões houve

n'estes reinos de Portugal, nos tempos passados,

entre alguns lettrados, acerca do descobrimento

das ethiopias de Guiné e das índias; porque uns

diziam que não curassem de descobrir ao longo da

costa do mar, e que melhor seria irem pelo pego

(mar largo) atravessando o golfam até topar em

alguma terra da índia, ou visinha d'ella, e que por

esta via se encurtaria o caminho. » ^

Estavam todos de accordo em considerarem pe-

quena a distancia a transpor, sendo acatados como

auctoridades irrecusáveis os philosophos em que se

baseiavam taes asserções.

Assim, na opinião geral, não só havia um cami-

nho por occidente mas era o mais curto, o mais fá-

cil, o mais útil para chegar ao oriente.

Para muitos era tida por impossivel a viagem

* Esmeraldo de situ orhis, por Duarte Pacheco Pereira,

edição de Augusto Epiphanio da Silva Dias (Sociedade de Geo-

graphia de Lisboa), pag. 137.

Page 50: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

46 A Desjoherta do Brasil

da índia pelo sul d'Africa. Diz o Esmeraldo «Ptolo-

meu escreve na pintura de suas antigas taboas da

cosmographia o mar Indico ser assim como uma

lagoa, apartado por muito espaço do nosso mar

oceano occidental que pela ethiopia meridional

passa; e que entre estes dois mares ia uma ourella

de terra, por impedimento da qual para dentro,

para aquelle golfam Indico, por nenhum modo ne-

nhuma nau podia passar; outros disseram que este

caminho era de tamanha quantidade, que por sua

longura se não podia navegar, e que n'elle havia

muitas sereias e outros grandes peixes e animaes

nocivos, pelo qual esta navegação se não podia fa-

zer. »^

Convenceu os marinheiros portugueses a expe-

riência adquirida em muitas viagens ás terras do

occidente de que não era a praia occidental essa

falada índia; mas ao começo da realisação do plano

seguiam os livros antigos de que não tinham moti-

vos para descrer.

Trouxe ao regressar, em 1428, o infante D. Pe-

^ Esmeraldo, ed. Epiphanio, pag. 151.

Page 51: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 47

dro \ que em 1418 fora viajar pela Europa, com-

batera contra os turcos e percorrera o Egypto, o li-

vro das viagens de Marco Poio, que o senado de

Veneza liie oíferecera ao recebel-o solemnemente ^

Dando á Ásia uma extensão para oriente muito

maior do que ella tem em realidade, punha o Catay

no Atlântico, a pequena distancia da Europa, o ce-

lebre livro. « Prolongando consideravelmente a Ásia

para o oriente, fez nascer o Catay o pensamento

de attingir as costas e chegar aos ricos paizes da

índia singrando directamente para o occidente. »*

Segundo Marco Polo, a ilha de Cipango, e as

^ « E no tempo que ho Infante dom Pedro de gloriosa.

memoria vosso tyo chegou a Veneza. E depois das grandes fes-^

tas e honrras que lhe forom feitas pellas liberdades, que elles

tem nos vossos regnos, como por ho elle merecer : lhe offerecerõ

em grande presente ho livro de Marco Paulo, que se regesse

por elle, poys desejava de veer e andar pello mundo. » O livro

de Marco Polo, por Valentim Fernandes allemão, Lisboa, 1502.

Dedicatória a D. Manuel.

2 Da livraria de D. Duarte consta já uma traducção em

português : « Marco Paulo, latim e linguagem, em 1 volume. »

3 Opinião de Walckenaer. Livro de Marco Polo, por M*.

G. Pauthier.

Page 52: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

_^8 A Descoberta do Brasil

ilhas das especiarias ficavam no oceano, isto é no

Atlântico, eram banhadas pelo mesmo mar que ba-

nhava a Europa : « aquelle mar onde está a ilha de

Cipangfo é mar oceano e chama-se Cyn, que quer

dizer mar de Man^y, porque a província de Mangy

é nas margens d'elle. Em este mar onde é Cipango

estão outras muitas ilhas, as quaes com diligencia

contadas pelos marinheiros d'aquella terra é achado

que são sete mil quatrocentos e quarenta e oito,

das quaes a maior parte são povoadas. » ^ « Tenho

portanto contado das naus que vão para o mar

oceano e para as ilhas d'India. » ^ « Sypanga é uma

ilha no oriente que está no mar alto, longe da terra

firme mil e quinhentas milhas e é muito grande

ilha. » ^ « E digo-vos que elles levam um anno em

lá ir, porque partem no inverno e regressam no ve-

rão. » * «E como já vos disse chamam a este mar o

de Cyn, mas elle é o grande mar do occidente. »^

' Livro III, cap. viii da edição portuguesa citada.

2 Edição de Pauthier, Livro iii, cap. clviii.

3 Idem, idem, cap. clviii.

* Idem, idem, cap. clx.

^ Idem, idem, idem.

Page 53: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 49

Para os chinezes ainda hoje o Atlântico é « o mar

do grande occidente ».

Querendo explicar ainda mais claramente que

era o Atlântico o mar onde estava Cipango,

o mar de Cyn, dizia : « Mas elle tem este nome

assim da mesma forma que se diz o mar da

Inglaterra neste paiz. E também dizem n'outra

parte o mar da índia, mas todo elle é o mar do

occidente ».

Constituíam estas indicações do viajante, em con-

cordância com opiniões e theorias anteriores e pos-

teriores de geographos e philosophos, com as cita-

ções d'essas auctoridades, os fundamentos da opi-

nião de Toscanelli, que descreve pelo livro de

Marco Polo as regiões do occidente aonde aconse-

lha D. Affonso V a mandar os seus navios; e da

convicção de Colombo que possuia um exemplar,

com varias annotações, e que em todos os seus

^ctos revela o perfeito conhecimento das suas

narrativas por cujas indicações se guia cega-

mente.

Além d'esse livro, de tão grande alcance como

determinante das viagens do occidente, trouxe o in-

fante D. Pedro ao infante D. Henrique um mappa,

provavelmente o de Marco Polo, em que as regiões

Page 54: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

50 A Descoberta do Brasil

do oriente estavam muito próximas das do occi-

dente.

Fora primeiramente redigido em francês em

1298 e começara logo a circular por toda a parte,

reproduzido pelos copistas, o livro do celebre via-

jante. Mesmo que só tivesse chegado a Portugal em

1428, dera aos nossos navegadores a indicação da

índia ao occidente 47 annos antes do que Tosca-

nelli a apresentasse como uma ideia nova, 64 annos

antes que em sua busca partisse Christovão Co-

lombo.

Certamente foram logo procuradas no Atlântico

pelos navios portugueses essas ilhas da índia, tão

grandes, tão numerosas, que não seria difficil encon-

tral-as.

Regista Martim Behaim numa inscripção do

globo de Nuremberg os propósitos de descobrir ter-

ras ao occidente. Eis as palavras que emprega ao

falar dos Açores: «No anno de 1431, quando o

principe Pedro era regente, dois navios foram equi-

pados com o necessário para dois annos pelo prin-

cipe Henrique, para irem aos paizes para além do

cabo Finisterra, e navegando para o occidente por

espaço de umas quinhentas léguas descobriram

aquellas ilhas. >

Page 55: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 51

Diz Diogo Gomes, de Cintra: ^ «Em tempo o

infante D. Henrique, desejando conhecer as regiões

afastadas do oceano occidental, se acaso haveria

ilhas ou terra firme além da descripção de Ptolo-

meu, enviou caravelas para procurar terras. »

Das viagens realisadas ao começo n'essa direc-

ção sabe-se apenas directamente das de Gonçalo

Velho em 1431 e 1432, mas vêem-se os resultados

no conhecimento de sete ilhas até 1439. Quan-

tas não foram precisas para encontrar os insignifi-

cantes rochedos das Formigas, ilhas tão pequenas

como os Açores? Não se satisfizeram decerto as

aspirações do infante com o encontro d'essas terras

desertas, e de tão pequeno valor que ficaram aban-

donadas por muitos annos.

Já tinham muita pratica de trabalhos maritimos

os portugueses. Em 1293 andavam á baleia, uma

pesca do mar largo ; em 1336 navegavam para as

Canárias; em 1353 celebravam com o rei Eduar-

do III um tratado a respeito das pescarias que iam fa-

^ As relações do descobrimento da Guiné e das ilhas dos

Açores, Madeira e Cabo Verde, versão do latim por Gabriel Pe-

reira, pag. 28.

Page 56: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

52 A Descoberta do Brasil

zer aos mares da Bretanha e da Inglaterra; em

1405, segundo a relação da viagem de um extran-

geiro, João de Bettencourt, eram quem melhor co-

nhecia os portos, regiões e navegação d'Africa. Em

1379 ha em Lisboa entre os marítimos um Machico,

nome íixado na Madeira. Estavam portanto habi-

tuados de ha muito a percorrer o oceano em gran-

des extensões.

Não era tão difficil como parece o problema que

se lhes apresentava. Nada mais simples effectiva-

mente do que descobrir a America, auxiliando as

correntes e os ventos geraes a marcha para occi-

dente, sendo pequena a distancia, 350 léguas dos

Açores á Terra Nova e 470 léguas das ilhas de

Cabo Verde ao Brasil, havendo sempre terra por to-

dos os rumos, sendo mesmo impossível deixar de

encontrar, depois da persistência de alguns dias,

essa costa que chegava de norte a sul, quasi de polo

a polo, impedindo completamente o caminho, apre-

sentando ao navegador por toda a parte uma bar-

reira.

A difíiculdade de descobrir a índia caminhando

para occidente não estava em não encontrar terra,

consistia exactamente em encontral-a sempre, segui-

damente, uma terra que não a deixava alcançar.

Page 57: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 53

O problema do occidenle não era o problema

de tomar terra, era exactamente o de não a encon-

trar ; não estava em tocar numa costa, mas em abrir

uma passagem; não consistia em descobrir países

novos, mas em desvendar um rápido caminho para

as velhas regiões do oriente, já conhecidas pelos

seus productos e pelas narrações de viajantes.

É preciso insistir n'estes pontos, para que se

comprehenda bem o problema a que se pretendia

dar solução.

Não se contando com a America, procurava-se

a Ásia por um caminho mais curto do que poderia

haver pela costa d'Africa. Esse caminho era de 350

léguas, partindo dos Açores. Um dos navios de

Gaspar Corte Real fez a viagem de ida e volta en-

tre Lisboa e a America do Norte em 5 mezes.

Ora o caminho para a índia era de 4:000 lé-

guas * e levava dois annos a percorrer. Até ao Cabo

da Boa-Esperança havia uma distancia de 1:885 lé-

guas, que Bartholomeu Dias gastou IQ mezes a

vencer.

1 Carta de doação a Vasco da Gama, em 10 de janeiro

de 1502.

Page 58: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

54 ^ Descoberta do Brasil

Esta, as de Diogo Cão e todas as grandes via-

gens á Africa, bem como todas as dos Açores, Ma-

deira e Cabo Verde faziam-se pelo alto mar. Os que

negam a prioridade da descoberta da America pe-

los portugueses, dizendo que os nossos pilotos re-

ceiavam fazer-se ao largo, perder a terra de vista,

correr em pleno oceano entre mar e céo, desconhe-

cem por completo o que seja navegar. É preciso

ser profundamente ignorante para julgar que os nos-

sos navios, que dispunham de bússolas e cartas, an-

dassem como os barcos de pesca ou como os da

navegação de cabotagem, pegados ás praias, sem-

pre á vista de terra, como se fosse possivel realizar

assim extensas navegações.

Então os portugueses que em 1487 já faziam

viagens de 1:885 léguas e de um periodo de 19 me-

zes, tentando um caminho que os antigos lhe diziam

impossível, não se atreveriam a seguir n'esse rumo

do occidente, que todos os philosophos e geogra-

phos indicavam, que alguns aconselhavam com em-

penho, e, ao fazer as tentativas, cuja authenticidade

ninguém recusa, não seriam capazes de transpor

350 léguas, cinco vezes menos que a viagem ao

Cabo, onze vezes menos que a distancia da diffi-

cultosa navegação da índia?

Page 59: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 55

O exemplo de Colombo, fazendo a primeira via-

gem de ida e volta ás Antilhas em seis mezes (1493),

devia leval-os a seguirem para a pretendida índia

€sse caminho, três vezes menor do que a viagem ao

Cabo, se não o tivessem já percorrido sabendo per-

feitamente que não era a índia a terra de além

mar.

Pelo contrario, depois de Colombo regressar a

segunda vez das Antilhas, que teimava em conside-

rar a índia, partiu Vasco da Gama (1497), com vi-

veres para dois annos, a percorrer o caminho marí-

timo pelo Cabo, tão distante, tão difíicil de trans-

por, que Duarte Pacheco dizia no Esmeraldo : « qua-

tro mil léguas de tão perigosa navegação como é

de Portugal ás índias.»

Era bem differente o perfeito conhecimento que

os portugueses tinham das navegações do occidente

e das terras da America, da ignorância de Colombo

que morreu (1506) convencido de que chegara á ín-

dia.

Ora em 1505, indicando que para os antigos só

havia três partes do mundo, Europa, Ásia e Africa,

mostra o Esmeraldo que os portugueses conheciam

a quarta parte que tinham descoberto, a America :

« mas na quarta parte que vossa alteza mandou

Page 60: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

56 A Descoberta do Brasil

descobrir além do oceano, por a elles ser incógnita,

cousa alguma não falaram. » ^ A descripção da

America é feita por elle n'estes termos precisos

:

« uma tão grande terra firme com muitas e grandes

ilhas adjacentes a ella, que se estende a setenta

graus de ladeza (latitude) da linha equinocial con-

tra o polo árctico, e posto que seja assaz fora, é

grandemente povoada, e do mesmo circulo equino-

cial torna outra vez e vae além em vinte e oito

graus e meio de ladeza (latitude) contra o polo an-

tárctico, e tanto se dilata sua grandeza e corre com

muita longura que de uma parte nem da outra não

foi visto nem sabido o jpm e cabo d'ella ; pelo que

segundo a ordem que leva é certo que vae em cir-

cuito por toda a redondeza. » ^

Não fora obtido esse resultado pelos navegado-

res hespanhoes, era muito anterior ás suas desco-

bertas.

Mostra esse conhecimento da America, não de

uma maneira vaga, mas de uma forma precisa, o

mappa enviado de Lisboa em 1502 ao duque de

^ Esmeraldo, ed. Epiphanio, pag. 30. ,

^ Idem, idem, pag. 23.

Page 61: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 5T

Ferrara por Alberto Canlino. Encontram-se as va-

rias terras n'uma posição approximada da que lhes

marcam as actuaes cartas.

E o mais antigo mappa português que se conhe-

ce. Tem desenhada a costa do norte numa extensão

de 35 graus além do ultimo ponto tocado pelos hes-

panhoes, apresenta grande numero de terras que o

mappa de La Cosa não revela, e traçando a Ame-

rica desde a Groenlândia até ao sul do Brasil mos-

tra a península de Florida onde só em 1508 chegou

o primeiro navegador hespanhol, Sebastian d'Ocam-

po, e que só foi visitada por Ponce de Léon em

1513. D'ahi para o norte só em 1529 navegou Ayl-

lon e em 1525 Estevam Gomez.

Dá a seguinte informação da maior importância

Pietro Pasqualigo, em carta de 18 de outubro de

1501, narrando ao senado de Veneza a chegada de

um dos navios que partira com Gaspar Corte Real

na segunda viagem: «Crêem os da dita caravela

que a sobredita terra é firme e está ligada com a

outra, que o anno passado foi descoberta a oeste.

por outras caravelas de Sua Magestade, ainda que

não podessem chegar lá por estar o mar gelado

com grandíssima quantidade de gelo á similhança

de montes na terra. Também crêem estar ligada

Page 62: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

58 A Descoberta do Brasil

com as Antilhas, que foram descobertas pela Hes-

panha e com a terra dos papagaios (Brasil), ulti-

mamente achada pelos navios d'este reino que fo-

ram a Calicut. »

Denota Humboldt n'estas palavras o conheci-

mento de tão importante carta : « Provarei na Ter-

ceira Secção, publicando uma carta inédita e ex-

trahida recentemente por M. Ranke dos Archivos

de Veneza, que mesmo antes da viagem de Colombo

a Honduras e a Veragua, no mez de outubro de

1501, já se sabia em Portugal que as terras do

norte, cobertas de neve e de gelo, são contíguas

ás Antilhas e á Terra dos Papagaios novamente

achada. »

Produziu-lhe o notável documento o maior as-

sombro, como se vê das suas palavras : « Esta adi-

vinhação que proclama, apesar da ausência de tan-

tos elos intermediários, uma ligação continental en-

tre o Brasil... e as terras geladas do Labrador, é

muito surprehendente.

»

Limitava-se Humboldt a classificar de surprehen-

dente essa noção da unidade da America que consi-

derava uma adivinhação.

Ora, como os homens d'esse tempo não adivi-

nhavam, tal conhecimento da terra americana re-

Page 63: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 59

sultava dos esforços de grande numero de expedi-

ções, era a revelação de trabalhos de muitos an-

nos.

EUe bem sabia que nem hoje, nem então, se po-

dia prever o futuro, e reconhecia incidentemente a

necessidade de muitos elos intermediários para o

conhecimento da ligação das duas partes do grande

continente, mas limitava-se a fazer uma phrase onde

devia proceder a uma investigação.

Para conhecer a ligação eram precisos muitos e

grandes elos intermediários, tantos que preenches-

sem uma extensão de cerca de 100 graus, de quasi

6:000 léguas de costa, mais de 17 vezes a distancia

dos Açores á Terra Nova, 6:000 léguas percorridas

por entre numerosas ilhas, por dentro do golfo do

México e do mar das Antilhas, com o interesse de

quem procurou o annunciado caminho do occidente,

e só achou essa desesperadora continuidade de

terra que não deixava passar.

Para estabelecer a existência de taes elos era

preciso um tão grande trabalho que Humboldt

achava mais fácil chamar-lhe adivinhação.

Precisa de uma explicação positiva esse conhe-

cimento ; a explicação é a serie de viagens para

occidente, que constituem os elos necessários.

Page 64: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

6o A Descoberta do Brasil

Exposto o problema, a continuidade das explo-

rações maritimas tornava fácil a solução.

De 1434 a 144Ó houve um periodo de grande

actividade, chegando a sair 51 caravelas para as

explorações de além-mar. De 143 1 e 1432 conhe-

cem-se as viagens directas para occidente, já citadas.

Apresenta a oeste dos Açores a Antilia e ou-

tras ilhas, acompanhadas da seguinte indicação

:

« InsuUe de novo Reperte » (Ilhas de novo desco-

bertas), o mappa-mundi de Bechario (1435).

Mostram os resultados das primitivas explora-

ções: o mar da Baga, as Antilhas e o Brasil, o

mappa-mundi de André Bianco, de 1436, e as car-

tas do seu portulano.

Reproduz esse interessante mappa o mundo an-

tigo, com algumas das lendas da Edade Media, mas

regista os descobrimentos dos portugueses, que elle,

com Fra Mauro, estava incumbido de traçar.

Dá maior importância a taes indicações a sua

qualidade official.

Nas Antilhas, que apresenta n'uma das suas car-

tas, não ha apenas a reproducção da lenda de Pla-

tão, mas um grupo de ilhas dentro de um golfo,

como também apparecem no mappa, o que, nas

linhas geraes, é a verdadeira posição das Antilhas»

Page 65: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 6l

Nunca mais desapparece dos mappas portugue-

ses aquelle nome naquellas ilhas e, comquanto os

hespanhoes não o empregassem quando as occupa-

ram, continua a figurar nas nossas cartas, e é a de-

signação geographica que presiste ainda hoje.

Não é o Brasil apenas esta palavra sobre uma

ilha dos Açores, ou perto da Irlanda, como appare-

cia em algumas cartas ; é uma grande terra, embora

figurada como ilha, fora do mundo antigo, sem se

ligar ás costas da Ásia.

Dá Bianco na mesma data o mar da Baga, o

mar dos Sargaços, com a designação em português,

mostrando a descoberta portuguesa, que elle regista

como a das Antilhas e do Brasil.

Numa carta geographica do seu portulano, feita

em 1448, ao dar conta das descobertas portugue-

sas, torna a apresentar o Brasil, mas de uma forma

precisa, na parte de oeste e sul do cabo de S. Ro-

que, ao sul das ilhas dos ermanos, Fogo e Brava,

de Cabo Verde, na sua verdadeira posição em face

da costa d'Africa, comquanto mais próximo do que

realmente está, erro em que caem muitos cartogra-

phos, mesmo no século xvi, e a que D. João de

Castro allude no seu roteiro.

Como receiando que possa ser posta em duvida

Page 66: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

02 A Descoberta do Brasil

a existência da nova terra, conao a indicar que não

fora traçada ao acaso, como a fundamentar que era

uma terra além do mundo conhecido, põe-lhe a de-

signação ilha atithentica, ou ilha antilia, e a distancia

1:500 milhas, incontestável testemunho de um des-

cobridor.

Dá conta Las Casas ^ de uma viagem a que Ga-

leano, Descobrimentos do mundo ^ fixa a data de I447r

anno de grande actividade em que sairam á desco-

berta 26 caravelas e uma fusta. Eis a traducção das

suas palavras : « no tempo de D. Henrique de Portu-

gal, com tormenta, correu um navio que tinha saido

do porto de Portugal (Porto) e não parou até dar

nella, (na ilha das Sete Cidades) e, saltando em

terra, os da ilha os levaram á egreja para ver

se eram christáos e faziam as ceremonias romanas,

e visto que o eram rogaram-lhes que estivessem ali

até que viesse o seu senhor que estava d'ali apar-

tado; porém os marinheiros, temendo que lhes quei-

massem o navio e os detivessem ali, suspeitando

que não queriam ser conhecidos de ninguém, re-

* Historia de las índias por frei Bartolomé de las Casas,

cap. XIII.

Page 67: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 63

gressaram a Portugal muito alegres esperando re-

ceber mercê do Infante ».

Diz mais Las Casas que D. Henrique os tratou

mal, certamente por terem partido sem mais infor-

mações, e que os mandou voltar á terra descoberta,,

sem duvida porque precisava conhecel-a melhor.

Não tornou porém da segunda viagem o navio,

provavelmente perdido nos gelos como succedia

nas explorações de Noroeste.

Sairam alguns de Portugal em busca d'aquella

terra, continua Las Casas, entre elles Diogo de Tei-

ve, que partiu do Fayal, correu 150 léguas a noro-

este e á volta descobriu as Flores (1452), e depois

foi pelo nordeste até á latitude do cabo Clear (Ir-

landa), latitude superior á da Terra Nova, quasi a

do Lavrador, tendo signaes de terra a occidente:

«o que criam que devia ser por causa de terra que

por ali devia haver, que os abrigava da parte do

occidente; o que não proseguiram, indo para desco-

bril-a, porque era já agosto e temiam o inverno ».

Acha Las Casas que estas viagens concordam

com o que dissera um piloto, que n'uma ida á Ir-

landa tinha visto « aquella terra, que os outros acre-

ditavam haver por ali, e imaginavam que era Tar-

taria que dava volta por occidente, a qual eu creio

Page 68: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

•Ó4 A Descoberta do Brasil

com certeza que era a que chamam agora dos Ba-

calhaus, á qual não poderam chegar por terríveis

ventos ».

Pedro Velasco, é ainda elle quem fala, n'uma

viagem á Irlanda descaiu tanto para oeste que viu

terra.

Estas noticias de viagens ao occidente dadas

pelo fidelíssimo narrador, tem completa confirmação

nos documentos do Archivo Nacional da Torre do

Tombo.

Da viagem de Diogo de Teive fala a carta de

doação a Fernão Telles ^ nas seguintes palavras

:

« outrosim nos apraz e queremos que o dito Fernão

Telles tenha e haja, e assim seus successores, as

ilhas que chamam as Foreyras ^ que pouco ha que

acharam Diogo de Teive e João de Teive, seu fi-

lho, e elle dito Fernão Telles agora houve por umcontracto que fez com João de Teive, filho do dito

* Carta de 28 de janeiro de I474.

2 Na carta de 12 de janeiro de 1548, confirmando a doa-

ção da Ilha das Flores e seu ilheo, vem transcripta a carta de

doação a Fernão Telles como primitivo titulo de posse. Tratava-

se portanto das Flores, transformadas em Foreyras por erro do

copista.

Page 69: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 65

Diogo de Teive, que as ditas ilhas achou e tinha,

e isto n'aquella forma e com aquellas condições e

maneiras que elle as houve do dito João de Teive

a quem ficaram por morte do dito seu pae». A pas-

sagem « que pouco ha que acharam », parecerá não

confirmar o praso de 22 annos, mas a doação da

ilha do Corvo ^, a pequena distancia das Flores,

em 1453, mostra que tinham sido ambas descober-

tas antes e prova a veracidade da data fixada por

Las Casas á descoberta (1452).

Derivava-se o receio dos marinheiros, de que

lhes queimassem os navios, da lenda portuguesa,

referida por muitos escriptores antigos, e a que Las

Casas também allude, de que no tempo do rei

D. Rodrigo, para fugirem á invasão árabe, embar-

caram sete bispos com muita gente indo fundar

além mar Sete Cidades, queimando os navios para

que ninguém podesse regressar.

Está completamente confirmada a existência de

christãos na terra da America aonde foi ter o navio

português. Era a Groenlândia, para onde o papa Eu-

* Carta de doação de D. Affonso v, em 20 de janeiro de

1453, a D. Aífonso, Duque de Bragança.

5

Page 70: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

66 A Descoberta do Brasil

génio IV designara um bispo em 1443, a que se

refere uma bulia de Nicolau V de 1448, e que já

em 1379 estava na posse dos scandinavos, consti-

tuindo dois districtos : o de Westleygd com IIQ

logares e 4 egrejas e o de Ostbygd com 2 po-

voações, 190 logares, 3 ou 4 conventos, e 12 egre-

jas sendo uma a cathedraL

Na carta já citada, fala Monetário da Groenlân-

dia, que se julgava a ponta da Ásia, n'estes ter-

mos : « a grande ilha de Groenlândia, que corre

por costa trezentas léguas, na qual ha grandíssima

habitação de gente».

Apresenta o mappa de Alberto Cantino a Groen-

lândia áquem da linha divisória das descobertas

portuguesas e castelhanas, estabelecida pelo tra-

tado de Tordesilhas, e indica-a como descoberta

pelos portugueses.

Ao descrever a America dá o Esmeraldo a la-

titude de 70 graus, a latitude do cabo Brewster da

Groenlândia, o que mostra que se conhecia bem

aquella ilha cuja extremidade sul está em ÓO graus.

Não devia ter sido a tormenta que levou o na-

vio, porque lhe causaria certamente avarias que

não o deixariam voltar sem reparações. Demais,

tem-se abusado tanto da explicação da tempestade

Page 71: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descolerta do Brasil 67

para todas as viagens, cujo motivo não apparece á

primeira vista e não ha vontade de procurar, que,

tratando-se de descobertas, se deve regeitar sempre.

E portanto o navio de 1447 um dos que foi ex-

plorar as regiões occidentaes por ordem do infante

D. Henrique, de quem os navegantes esperavam

receber mercês.

Formam as viagens para occidente uma ver-

dadeira serie, que constitue a mais brilhante do-

cumentação da prioridade do descobrimento da

America pelos navegadores de Portugal.

E quantas ficaram de todo esquecidas por omis-

são dos chronistas e perda de documentos, em con-

sequência do segredo em que se realisavam as in-

vestigações e, acima de tudo, pelo pouco caso que

se fazia das descobertas que não fossem a índia,

que não approximassem d'ella, ou por informações,

ou pelo commercio de géneros similhantes, ou

pela utilisação de bahias e rios para abrigo, re-

fresco, descanço e apoio das frotas nas arriscadas

navegações em busca do caminho do Oriente

!

Passavam sem registo ilhas desertas, terras gela-

das, países de pobres selvagens nus, regiões de

que não se deprehendia a proximidade das rique-

zas indianas.

Page 72: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

68 A Descoberta do Brasil

Regista a carta de D. Aífonso v ^, de doação

ao infante D. Fernando, a descoberta de um ponto

da America, que tanto podia ser uma das suas

ilhas, como o continente, porque era sempre como

ilhas que consideravam as terras attingidas n'uma

viagem em que não havia tempo de fazer um re-

conhecimento completo. Diz a carta: «o infante

D. Fernando, meu muito prezado e amado irmão

nos disse que Gonçalo Fernandes, morador em

Tavira, ao vir das pescarias, do rio do Ouro, es-

tando no pego (mar alto) a oesnoroeste das ilhas

Canárias e da ilha da Madeira, houve vista de uma

ilha e que por o tempo lhe ser contrario não se

poude chegar a ella, a qual o dito meu irmão já

mandou buscar por certos signaes que lhe deram

d'ella, mas não lh'a acharam e que porquanto elle

queria outra vez mandar buscal-a, nos pedia por

mercê que lh'a déssemos, e outorgamos-lhe a dita

ilha que achada é, ou em algum tempo se achar

por seus navios ou por outros quaesquer na dita

paragem ».

A oesnoroeste das Canárias e da Madeira, como

^ Carta regia de 29 de outubro de I462.

Page 73: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 69

em todos os rumos desde N.N.O. a S.S.O, não ha

senão terras da America. A procura d'essa ilha pe-

los navios do infante, o pedido de doação, mesmo

na h5^pothese de já estar descoberta por outro, o

propósito de a mandar procurar novamente, mos-

tram que Gonçalo Fernandes tivera um positivo

conhecimento d'essa ilha e dera d'ella precisas in-

dicações, os «certos signaes que d'ella lhe de-

ram».

Sabido que não se faziam ao mar largo no in-

verno, pode calcular-se que a viagem do navio do

infante se realisou em 1461 e a de Gonçalo Fernan-

des em 1460. Ha portanto em Portugal conheci-

mento de um ponto da America em 1460, trinta e

dois annos antes de Colombo partir para as Anti-

lhas ; e esse conhecimento é tão positivo que se ba-

seia n'elle o pedido, e se faz por elle a doação

n'uma carta regia.

Testemunha outra carta do mesmo anno ^ de

doação a João Vogado, cavalleiro da casa de el-rei

D. Affonso V e escrivão da fazenda real, o conhe-

cimento anterior de duas outras ilhas, differentes da

* De 19 de fevereiro de I462.

Page 74: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

70 A Descoberta do Brasil

que descobrira Gonçalo Fernandes, descriptas posi-

tivamente em termos precisos : « A quantos esta

nossa carta virem fazemos saber que em aquellas

partes do mar oceano, cuja conquista nos é dada

por privilegio do Santo Padre, novamente são acha-

das duas ilhas, as quaes ainda não estão povoadas

por pessoa alguma, nem d'ellas temos feito mercê

a pessoa que haja de as povoar e aproveitar, as

quaes, segundo a carta de marear, são chamadas

uma a ilha Lono e outra Capraria ».

Considera o Visconde de Santarém, na Histoire

de la Cosmographie, ao descrever o mappamundo de

Hereford, a ilha Capraria como a Gomera, uma das

Canárias.

SuppÕe Henri Harrisse no 1.** vol. de Christopbe

Colomh que a ilha de Capraria e TOvo (escreve

d'esta forma) sejam uma Santa Maria ou a Gomera,

outra S. Miguel.

O Índice do livro Alguns documentos da Torre do

Tombo diz que Lono (Lovo) é talvez uma das ilhas

desertas das Canárias, e que Capraria é, segundo

uns, a ilha de Ferro, segundo outros a de Fuerta-

ventura, ambas das Canárias.

No atlas manuscripto de 1489, do Museu Britâ-

nico, pertencente á família Cornaro, de Veneza, as

Page 75: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil,

71

designações Luovo e Capraria correspondem a

Santa Maria e S. Miguel, dos Açores ^

Esta diversidade de opiniões, meras supposições

que não se tentou fundamentar, não resolvem a

questão.

Em 1460 fez mercê D. Affonso V ao infante

D. Fernando de diversas ilhas, entre ellas a de

Lana, que embora de nome similhante não pode

ser a ilha Lono, porque então só o infante a pode-

ria doar a João Vogado, e não o rei.

Era Capraria o antigo nome das ilhas Cabrera

{nas Baleares) e Capraja (no golfo de Génova). Appli-

cava-se muitas vezes o nome de cabreiras, ilhas ou

terras próprias para cabras, ás que os descobrido-

res consideravam de grande aspereza. Citaremos

além d'aquellas o cabo da Cabra (promontório de

Finisterra), a ilha Capri (no golfo de Nápoles), a

ilha Caprera (ao N.E da Sardenha), o ilhéu das Ca-

bras (junto á ilha Terceira), as ilhas Féroé (cujo

nome significa ilhas dos carneiros), as villas de Ca-

bra, Cabras, Capranica, Capreso, etc, de Itália e de

^ ,Archivo dos xÂçores, n.° 73, pag. 61, vol. xiii. Os tAço-

três num atlãs mamiscripto, por F. A. Chaves.

Page 76: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

72 A Descoberta do Brasil

Hespanha. Fala Diogo Gomes, de Cintra, de uma

ilha Cahreyra nas Canárias. Pelo commum do nome

Capraria e pela sua geral applicação, pela com-

pleta falta do nome Lovo, não pode determinar-se

hoje que terras correspondem ás ilhas de João Vo-

gado.

Não pertenciam as ilhas a nenhum dos archipe-

lagos do Atlântico, então já reconhecidos e doados.

Tivera licença em 1439 o infante D. Henrique

para povoar as sete ilhas do grupo oriental e cen-

tral dos Açores. Possuia Teive as Flores desde

1452, e tinha sido doado o Corvo em 1453. Não

eram portanto estas as ilhas concedidas a João Vo-

gado.

Recebera em 1433 D. Henrique a doação das

ilhas da Madeira, Porto Santo e Deserta, doação

que por sua morte foi feita ao infante D. Fernando

em 1460. Não estavam pois n'este grupo as ilhas

de Lono e Capraria.

Tinham sido todas doadas as ilhas de Cabo

Verde ao infante D. Fernando no mesmo anno da

doação a João Vogado. Não eram d'esse archipe-

lago as duas ilhas.

Não estavam também nas Canárias, pois tanto a

Gomera como a Fuertaventura, como a ilha de Fer-

Page 77: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 73

ro, eram, como todas as outras, povoadas pelos

guanchos e tinham sido assim encontradas pela ex-

pedição que saiu de Lisboa em 1336, pela de João

de Bettencourt em 1402, pelos hespanhoes que di-

zimaram systematicamente as populações. Não eram

portanto as ilhas desertas de que fala a carta de

doação.

Mesmo o facto de estar junto á Fuertaventura o

ilhéu Lobos, onde alguns querem vêr a ilha Lono,

não resolve o problema, porque Fuertaventura era

povoada desde a mais remota antiguidade e tinha

sido visitada por Bettencourt, emquanto que as

ilhas de João Vogado eram ambas desertas, não

aproveitadas, e tinham sido descobertas recente-

mente.

Demais se pertencessem ás Canárias a carta de

doação declaral-o-ia, como o faziam ao referir-se a

qualquer d*aquellas ilhas diversos documentos ante-

riores e posteriores.

Trata-as por « ilhas de Canária » um documento

de 1446; diz outro de 1448, falando da ilha de

Lançarote, « que he em Canária » ; allude a carta

de doação a D. Henrique, em 1449, dos direitos das

terras até ao Bojador, aos navios « que vierem de

Canarea ».

Page 78: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

74 '4 Descoberta do Brasil

Trata-as por « ilhas de Canária » o tratado de

1480 em que se reconhece a Castella a posse das

Canárias e, dando o nome de oito, não fala em Lono

nem em Capraria.

Dá-as a carta de doação como achadas « em

aquellas partes do mar oceano», maneira usual

de localisar as terras do occidente, as terras da

America, como se vê em grande numero de docu-

mentos portugueses e hespanhoes.

Fala da America por esta forma o Esmeraldo:

« quarta parte que Vossa Alteza mandou descobrir

alem do oceano » ^ ; e refere-se ao Brasil nestes

termos : « terra do Brasil d'alem do mar oceano » ^

Usava-se a designação « partes do mar oceano »

para indicar a parte mais occidentai do Atlântico,

junto ás costas da America; em opposição ás ex-

pressões: «ilhas de Guiné», «ilhas do mar de Gui-

né», «senhorio de Guiné», etc, que significavam a

parte oriental, que banha as costas de Africa e as

ilhas próximas.

Empregavam os hespanhoes as referencias ao

oceano no mesmo sentido.

* Ed. Epiphanio, pag. 30.

2 Idem, pag. 38,

Page 79: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta ão Brasil 75

Eis alguns exemplos dos títulos dos reis, onde

apparecem juntas as indicações das Canárias e da

America, que demonstram o alcance das expressões

que envolviam o oceano, e a sua completa diífe-

rença da situação marcada para essas ilhas. Na ca-

pitulação de 1509 lê-se : «Dona Joana, rainha de

Castella. . . das ilhas da Canária, das ilhas índias, e

terra firme do mar oceano». Em 1518 na carta de

mercê a Ruy Falleiro e Fernão de Magalhães apre-

senta o titulo a seguinte variante : « de las yslas de

Canária, e de las yslas Yndias, yslas, e tyerra firme

dei mar oceano ». No tratado de 1529, de posse das

Molucas, é este o titulo « reies de Castilla, ... de

las yslas de Canária,... de las índias, yslas &

tierra firme dei mar Oceano».

Ao preparar a sua viagem dizia Colombo ir a

«certas partes do mar oceano», empregava a phrase

«ás partes do mar oceano», que, como as dos títu-

los reaes, são equivalentes da expressão da carta

de Vogado «em aquellas partes do mar oceano».

Encerram esses exemplos a própria explicação

das índias como ilhas e terras firmes «do mar

oceano ».

Querem dizer America essas índias dos docu-

mentos hespanhoes, pela obsecação de que se origí-

Page 80: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

76 A Descoherta do Brasil

nou por fim o titulo de índias Occidentaes, quando

já era impossivel de todo tentar defender o erro de

Colombo.

Eram portanto as ilhas Lono e Capraria ilhas

ou pontos da costa da America, já descobertas, já

reconhecidas, já traçadas nas cartas, já pedidas e

doadas em 1462, trinta annos antes do que Co-

lombo realisasse a primeira viagem ás Antilhas!

Concede D. Affonso V em 12 de janeiro de 1473

á infanta D. Beatriz uma ilha, já descoberta e já

procurada pelo infante D. Fernando, seu fallecido

marido.

Não era essa ilha a que descobrira Gonçalo

Fernandes, porque as referencias a ella relaciona-

vam-se com as Canárias e a Madeira, emquanto a

posição d'esta era relativa á ilha de Santiago.

Diz textualmente a carta de doação: «A quan-

tos esta carta virem fazemos saber que a Infanta

Dona Beatriz, minha muito amada e presada irmã,

nos disse que o Infante meu irmão, que Deus haja,

havendo alguma informação de uma ilha, que atra-

vés da ilha de Santiago apparecera, algumas vezes

a mandara buscar e que, como quer que então se

não achasse, que ella tinha tenção de outra vez a

mandar buscar, se lhe fizéssemos mercê d'ella para

Page 81: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do BrasU 77

seus filhos, e que porém nos pedia que, achando-se,

lh'a outorgássemos ».

Morrera em l8 de setembro de 1470 o infante

D. Fernando. Admittindo que mandasse procurar a

ilha n'esse mesmo anno, e no anterior, porque a

phrase « algumas vezes a mandara buscar » indica

duas vezes pelo menos, « apparecera » a ilha, isto é,

fora vista o mais tardar em 1468.

Era tão positivo o conhecimento d'ella que o

infante a mandou procurar algumas vezes, não des-

animando com uma tentativa infructifera, e que a

viuva queria mandar buscal-a novamente, tanto ha-

via a certeza da sua existência, e requereu e obteve

mercê d'ella para seus filhos.

Faliam da situação geographica d'essa ilha a

carta regia que diz « através da ilha de Santiago »

;

a carta de doação das ilhas de Cabo Verde ao in-

fante (19 de setembro de 1462J determina a posição

d'essas ilhas dizendo « que são através de Cabo

Verde » ; a carta de 29 de outubro de 1462 diz que

o mesmo archipelago se « achou através do Cabo

Verde ».

Então a ilha que « apparecera » estava para a

de Santiago como esta e as próximas estão para o

Cabo Verde, isto é, no sentido transversal, no mesmo

Page 82: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

78 A Descoherfa do Brasil

parallelo, na mesma latitude. Era portanto uma das-

Antilhas.

E feita a referencia á ilha de Santiago por ser

a mais importante e a primeira que se povoou: «a

principal d'ella chamamos ilha de Santiago » diz o

Esmeraldo, e accrescenta n'outro ponto « ilhas da Ma-

deira e dos Açores e de Santiago », generalisando

assim o seu nome ao archipelago.

Já tinham sido descobertas e doadas em data

anterior todas as ilhas de Cabo Verde, o que, bem

como as tentativas infructiferas para a encontrar,

põe completamente de parte a hypothese de que a

ilha « através » fosse uma do archipelago.

Estava portanto descoberta em 1468 uma das

Antilhas, de que se fazia doação em 1473.

Vinte e quatro annos antes do que Colombo

partisse de Paios, cinco annos antes da sua chegada

a Lisboa, as Antilhas, não um ponto incerto da

America, mas as próprias Antilhas, tinham sido

descobertas por navegadores de Portugal!

Page 83: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

V

Os Corte-Reaes

Escreve Gaspar Fructuoso nas Saudades da Ter-

ra ^: «João Vaz da Costa Corte-Real, primeiro capi-

tão da ilha Terceira, da parte d'Angra, por serviços

que fez a el-rei de Portugal, nas guerras contra

Castella andando por capitão de grossas armadas ; do

qual dizem que foi tão grande aventureiro no mar,

que neste reino não teve segundo; e alguns querem

dizer que descobriu a mesma ilha Terceira e algu-

mas partes do ponente e do Brasil, Cabo Verde, aonde

^ Archivo dos Açores, vol. iv, pag. 395-

Page 84: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

8o A Descoberta do Brasil

foi o primeiro, que houve vista da ilha do Fogo e

deu nova do que continuamente de si lançava; e

vindo do ponente descobriu a mesma ilha Terceira,

e a de S. Jorge, pelo que lhe foi dada a Capitania

d'Angra e da dita ilha de S. Jorge»... «E vindo

(como atraz tenho dito) João Vaz Corte-Real do

descobrimento da Terra Nova dos Bacalhaus que por

mandado de el-rei foi fa^er, lhe foi dada a Capitania

d'Angra, da ilha Terceira, e da ilha de S. Jorge»...

« Foi este João Vaz tão esforçado cavalleiro e te-

mido Capitão, que nunca deu batalha no mar, nem

na terra, que não vencesse, e tão bem afortuna-

do, que sempre tomou aos castelhanos as maiores

prezas que neste reino de Portugal se tomaram

•d'elles. E uma vez tornou uma nau Genoveva carre-

gada de sedas e de outras mercadorias » . . . « Di-

zem alguns que Jacome de Bruges, primeiro Capi-

tão da ilha Terceira de Jesu Christo era flamengo,

e que veio povoar a ilha da parte da Praia por

mandado do Infante D. Henrique e estando-a po-

voando veiu ter ali João Vaz Corte-Real.. . e vinha

do descobrimento da Terra Nova do Bacalhau e o Ja-

come de Bruges o recolheu e lhe disse que lhe lar-

garia a metade da ilha, a qual acceitou e depois

Jacome de Bruges se foi para sua terra, e desappa-

Page 85: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil

receu de maneira que não tornou mais, e a Infanta

D. Beatriz por vaga deu a ilha ao dito João Vaz

Corte Real ».

Nascido nos Açores em 1522, vivendo na sede

das grandes explorações do occidente, convivendo

com os companheiros e os contemporâneos dos

Corte-Reaes, escrevendo no local onde a noticia

d'esses trabalhos devia estar na memoria de todos

e em documentos irrefragaveis ; elaborando particu-

larmente um manuscripto sem intenção de o publi-

car, sem o propósito de elogiar essa familia, sem o

intuito de tratar dos descobrimentos, referindo-os

accidentalmente ao dar sobre os primitivos habi-

tantes dos Açores as noticias que poude coUigir;

não tendo em mira estabelecer a prioridade da des-

coberta da America, não tirando das informações

que dá a menor conclusão, é Gaspar Fructuoso

uma auctoridade incontestável e bastava elle só

para estabelecer de uma forma irrecusável a desco-

berta da Terra dos Bacalhaus por João Vaz Corte-

Real.

É uma prova da authenticidade do feito, intima-

mente ligado ao nome d'elle, a insistência com que

repete três vezes essa noticia, em vários pontos e

de differentes maneiras, entre outros serviços de

6

Page 86: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

82 A Descoberta do Brasil

João Vaz e no decurso da narração de diversos fa-

ctos.

Mostra bem comprehender o alcance de tal re-

gisto a precisão com que narra a vinda de João

Vaz do ponente, as descobertas que fez em algumas

partes do ponente.

Estão as referencias a João Vaz, primeiro capi-

tão da ilha Terceira, da parte d'Angra, e á doação

da capitania pela vaga de Jacome de Bruges, em

perfeita concordância com as seguintes palavras da

carta de doação : « havendo eu por informação es-

tar ora vaga a capitania da ilha Terceira de Jesus

Christo, do dito Senhor meu íilho, por se affirmar

ser morto Jacome de Bruges... E portanto a ilha

não era partida... houve por bem de a partir en-

tre o dito João Vaz e o dito Álvaro Martins . . .

mandei ao dito João Vaz que escolhesse, e elle

escolheu na parte d'Angra». Mostra isto coma

Gaspar Fructuoso era fundado nas suas affirma-

çÕes.

E de Fructuoso que o padre Cordeiro, Historia

Insulana, reproduz o feito de João Vaz.

Fixado o desapparecimento de Jacome de Bru-

ges o mais tardar em 1472, conhece-se a data da

chegada á Terceira de João Vaz, vindo da Terra

Page 87: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 83

dos Bacalhaus. Portanto a descoberta d'essa terra

foi realisada em 1472, ou em data anterior.

Um manuscripto cuja época se pode fixar entre

1672 e 1711, feito nos Açores, onde melhor se po-

diam conhecer as descobertas de João Vaz, docu-

mento importante por haver registado a mesma no-

ticia do manuscripto de Gaspar Fructuoso, sem ter

tido conhecimento d'elle, diz o seguinte :^ « Es-

tando as coisas n'esta forma, morreu o Capitão Bru-

ges, não deixando herdeiros. Chegaram então á ilha

dois fidalgos, que vinham de descobrir a Terra do

bacalhau; estes pediram a ilha a D. Beatriz, mu-

lher do Infante D. Fernando, por serviços que lhe

tinham feito, lhes fizesse mercê da capitania da ilha

Terceira, a qual ella lhe concedeu. A João Vaz

Corte-Real, que era um d'estes fidalgos, ficou a de

Angra».

Ao conceder a capitania de Angra a João Vaz

reconhece a infanta D. Beatriz nestas palavras os

seus serviços: «E considerando eu d'outra parte os

muitos e grandes serviços que João Vaz Corte-Real,

fidalgo da casa do dito senhor meu filho, tem feito

ao Infante meu senhor e seu padre que Deus haja

* Archivo dos Açores, vol. iv, pag. 412.

Page 88: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

84 A Descoberta do Brasil

e depois a mim e a elle. .. em galardão dos ditos

serviços lhe fiz mercê da dita capitania da ilha

Terceira». Confirmando, em 1488, essa carta, allude

também aos grandes serviços de João Vaz o duque

de Vizeu, filho de D. Beatriz e do Infante D. Fer-

nando: « querendo-lhe fazer graça e mercê pelos

muitos serviços que tem feito ao infante meu senhor

e padre que Deus haja e a mim espero que ao

diante fará ».

Era o infante D. Fernando filho adoptivo do in-

fante D. Henrique, que em 1436 o instituiu seu her-

deiro universal. Continuador dos seus planos, rece-

beu em 1457 D. Fernando, que D. Manuel associava

sempre a D. Henrique ao referir os trabalhos do mar,

uma carta de D. Affonso v de « doação para elle

e todos os seus herdeiros e successores de todas as

ilhas, que por elle ou por seu mandado fossem acha-

das », por onde se vê que também mandava á des-

coberta por sua conta.

Em 22 de agosto de 1460 fez-lhe doação

D. Henrique das ilhas Terceira e Graciosa, confir-

mada por D. Affonso v em 2 de setembro do

mesmo anno. Por morte do infante, doou-lhe D. Af-

fonso V em 3 de dezembro de 14ÓO as ilhas da Ma-

deira, Porto Santo, Deserta, S. Luiz, S. Diniz,

Page 89: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 85

S. Jorge, S. Thomás, Santa Iria, Jesus Christo, Gra-

ciosa, S. Miguel, Santa Maria, S. Jacobo, S. Filippe,

das Mayas, S. Christovam e de Lana « considerando

aos singulares serviços que com muita lealdade nos

sempre fez e ao diante esperamos d'elle receber».

Eram doadas as ilhas « assim como de nós as ha-

via o infante D. Henrique meu tio que Deus haja».

Por carta de 19 de setembro de I462 concedeu-

Ihe D. Affonso V as ilhas de Cabo Verde, cinco

achadas por António de NoUa « e as restantes sete

foram achadas por o dito infante, meu irmão ».

Ao doar-lhe em 29 de outubro de 1462 a ilha

descoberta por Gonçalo Fernandes, declara o rei

que lhe conceda as «outras sete ilhas que Diogo

Affonso seu escudeiro achou através dp Cabo

Verde ».

Recommendava-lhe D. Henrique, no seu testa-

mento, que tomasse ao serviço de sua casa os seus

servidores « peço por mercê ao infante D. Fernando

meu muito presado filho... que a cada um receba

por seu. .. e receba serviço como de seu creado».

Recebendo a doação das terras que tinham per-

tencido a D. Henrique e muitas outras, e tomando

os seus servidores, continuou D. Fernando as des-

cobertas, que depois a sua viuva proseguiu, e col-

Page 90: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

86 A Descoberta do Brasil

laborou pessoalmente na cruzada portuguesa, con-

quistando Anifé aos mouros em 1467.

Os serviços prestados a elíe por João Vaz eram

sem duvida no mar.

Constituiam os Açores a base das explorações do

pone?ite, pagavam-se com as capitanias dos Açores

esses trabalhos, empenhavam-se nelles principal-

mente capitães dos Açores : Diogo de Teive, Ruy

Gonçalves da Camará, João Vaz Corte-Real e mui-

tos outros depois d'elles.

Era João Vaz Corte-Real geralmente conhecido

por João Vaz.

Trata-o assim oito vezes a carta de doação da

capitania d'Angra, três vezes a doação da capitania

da Praia a Álvaro Martins Homem, uma vez a sen-

tença a favor de João Leonardo, uma vez outra

sentença de 1483, quatro vezes a carta de doação

da capitania de S. Jorge. Trata-o oito vezes por

João Vaz, Gaspar Fructuoso, nos extractos citados.

Mostra isto como era usual siniilhante tratamento.

É também com o nome de João Vaz, o mais simples

para uma designação geographica, que estão mar-

cadas nos mappas antigos as terras que descobriu,

os pontos onde tocou.

Traz as seguintes indicações a carta quinta, re-

Page 91: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 87

lativa á America do Norte, do precioso atlas de

Fernão Vaz Dourado existente na Torre do Tombo

:

B. de João Fa:(, Terra de João Va^,

No mappamundo pintado em pergaminho por

ordem de Henrique II rei de França, publicado no

Atlas Jomard, lê-se T. de ta Vaa^y indicação egual

á precedente e á seguinte, comquanto em vez de

João tenha ta, ou talvez ja, porque a lettra que pa-

rece um t não está muito clara.

O mappamundo de Mercator, também do Atlas

Jomard, tem por extenso : Terra de Joam Vã:<^, Rio

de Joam Vã^^.

Recebeu Gaspar Corte-Real seu filho por carta

de 12 de maio de 1500 a doação das terras que

descobrisse, e partiu para a America do Norte, es-

tando já em Lisboa a 27 de janeiro de 1501, data

em que obtém uma recompensa para um dos com-

panheiros de viagem.

Sabe-se por outro documento que ainda estava

em Lisboa em 11 de abril de 1501. Partiu segunda

vez á descoberta, ao que parece em 15 de maio

d*esse anno, mas não voltou mais. Em 8 e 11 de

outubro de 1501 regressaram a Lisboa, dando conta

da sua larga exploração, os dois navios que o ha-

viam acompanhado.

Page 92: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

88 A Descoberta do Brasil

Saiu seu irmão Miguel Corte-Real com dois na-

vios a procural-o, em 10 de maio de 1502, mas tam-

bém não se soube mais d'elle; mandou o rei em

1503 duas naus em busca dos arrojados navega-

dores, mas ficaram sem resultado todas as pesqui-

zas. Quiz ainda Vasco Annes Corte-Real ir em pro-

cura de seus irmãos, mas não lh'o consentiu D. Ma-

nuel.

Echoou de tal forma essa desgraça, tão intensa-

mente dramática que, por exemplo, Sebastião Alva-

res, feitor na Andaluzia, ao informar D. Manuel dos

preparativos da armada de Fernão de Magalhães,

fazia votos para que se perdesse, expressando-se

nestes termos : « Praza a Deus todo poderoso que

tal viagem façam como os Corte-Reaes, e Vossa

Alteza fique descançado».

Não se aterrorisaram elles porém, e não os afas-

tou do mar o triste fim dos seus.

Ainda recebe doação Vasco Annes da ilha da

Garça que mandou descobrir; e, alludindo aos tra-

balhos de seu pae e tios, manda seu filho Manuel

Corte-Real três navios com colonos da ilha Ter-

ceira para povoarem a Terra Nova!

Foram notáveis as viagens de Gaspar Corte-Real

em 1500 e 1501 correndo grande extensão da costa

Page 93: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 89

de noroeste da America, trazendo a Lisboa indige-

nas d'essas regiões.

Regista importantes trabalhos a carta de 12 de

maio de 1500, de doação das terras que vae desco-

brir, trabalhos anteriores ás duas viagens de que ha

noticia directa por documentos, referencias de chro-

nistas e cartas de estrangeiros residentes em Lisboa.

É verdadeiramente excepcional a maneira de

referir esses trabalhos, que devem ter sido do maior

alcance.

Diz a carta regia : « a quantos esta nossa carta

de doação virem fazemos saber que, por quanto

Gaspar Corte-Real, fidalgo de nossa casa, os dias

passados se trabalhou por si e á sua custa, com na-

vios e homens, de buscar descobrir e achar, com

muito seu trabalho e despeza de sua fazenda e pe-

rigos de sua pessoa, algumas ilhas e terra firme, e

pelo conseguinte o quer ainda continuar e pôr em

obra e fazer n'isso quanto poder por achar as ditas

ilhas e terra, e considerando nós quanto nosso ser-

viço, honra e acrescentamento de nossos reinos e

senhorios serão semelhantes ilhas e terras serem

descobertas e achadas por nossos naturaes, e como

o dito Gaspar Corte-Real, por o assim querer fazer

com tanto trabalho e perigo, é merecedor de toda

Page 94: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

90 A Descoberta do Brasil

honra, mercê e acrescentamento... lhe outorgamos

que em quaesquer ilhas ou terra firme que assim

novamente achar ou descobrir, elle tenha... as ca-

pitanias ».

São as mais amplas que se doaram, tão grandes

como os serviços que referem, as concessões a

Gaspar em rendimentos, auctorisações e alçadas.

Tinham-se realisado nos dias passados essas, ex-

plorações maritimas feitas com muito trabalho, des-

pe:(a e perigos, realisadas por elle e á sua custa, com

seus navios e seus homens, palavras textuaes do im-

portante documento.

Significa esta phrase annos passados, não muito

próximos, e refere-se a diversas viagens.

Não ia Gaspar pela primeira vez a essas ilhas e

terra firme, queria continuar a descobrir, isto é a re-

conhecer ^. E bem precisa a carta de doação : « pelo

conseguinte o quer ainda continuar ».

Permitte conhecer a época e o valor d'essas

viagens a consulta de outros documentos.

Não se trata apenas de viagens de Gaspar Corte-

1 À significação da palavra descobrir será mais largamente

demonstrada n'outro ponto.

Page 95: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 91

Real, mas de viagens dos Corte-Reaes, de exforços

collectivos d*essa família.

Não designa a terra onde os Corte-Reaes se

perderam, mas a terra descoberta pelos Corte-Reaes

o nome de Terra dos Corte-Reaes que apparece em

grande numero de mappas portugueses e estran-

geiros.

Diz precisamente um documento official \ a carta

de doação a João Alvares Fagundes : « a terra que

os Corte-Reaes descobriram ».

Referindo as viagens e o desapparecimento de

Gaspar e Miguel allude a Vasco Annes Corte-Real a

carta regia de 17 de setembro de 1506 :^ «em todo

este feito o dito Vasco Annes com sua própria fa-

zenda, creados e homens seus sempre ajudou aos

ditos seus irmãos ».

Tem a seguinte phrase « seu pae e tios manda-

ram descobrir a Terra Nova » a carta regia de 4 de

maio de 1567 a Manuel Corte-Real, filho de Vasco

Annes.

* Carta regia de doação de 22 de maio de 1 521. 'Descolri'

mentos, guerras e conquistas dos portugue-^es em terras do ultra-

mar nos séculos XV e XVI por E, 'Bettencourt, pag. 128.

2 Alguns documentos, etc, pag, 150.

Page 96: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

92 A Descoberta do Brasil

Referem-se em primeiro logar a Gaspar Corte-

Real estes documentos, porque foi elle quem rece-

beu a capitania das terras a que dizem respeito.

Tratam apenas da regularisação de interesses,

dão informações valiosissimas principalmente por

serem indirectas, mas que, por isso mesmo, restri-

ctas ao assumpto limitado da posse, não excluem

outras provas e indicios com que não estejam em

contradicção.

Estabelecido que os irmãos trabalhavam con-

junctamente, a carta da tença ^ de 30:000 reaes con-

cedida por D. Manuel a Miguel Corte-Real por ser-

viços feitos a D. João II «havendo nós respeito aos

muitos serviços que Miguel Corte-Real... tem fei-

tos a el-rei Dom João meu primo que santa gloria

haja» fixa ás viagens dos Corte-Reaes uma data

anterior a 1495 ^.

Abrangendo na demarcação portuguesa a Terra

dos Corte-Reaes prova o tratado de Tordesillas umconhecimento anterior d'essa terra, porque não eram

* Carta regia de 4 de novembro de 1501. Archivo dos Aço-

res, vol. VI, pag. 507.

* D. João n morreu em 25 de outubro de 1495.

Page 97: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 93

precisas as 370 léguas, exigidas e obtidas por

D. João II, para incluirem a costa do Brazil, mas

eram necessárias para manterem a posse da Terra

Nova muito mais para occidente. Collocou o mappa

de Alberto Cantino a Terra dos Corte-Reaes áquem

da linha de demarcação, que apparece traçada pela

primeira vez.

São portanto anteriores a 1494 as viagens dos

Corte-Reaes ^.

Apontando las Casas ^ as indicações que guia-

ram Colombo ás Antilhas, indicações confessadas

por elle próprio, e que o seu amigo regista inge-

nuamente como tendo sido fornecidas por Deus, cita

entre muitas outras as viagens dos Corte-Reaes que

foram «em diversos tempos buscar aquella terra».

Mostra esta interessante passagem como an-

teriores ás de Colombo as viagens dos Corte-

Reaes; anteriores portanto a 1492 data em que elle

partiu para as Antilhas, anteriores a 1484 em que

saiu de Portugal, porque foi em Portugal que elle

recebeu estas informações e viu Miguel e Gaspar

Corte-Real.

1 o tratado de Tordesillas é de 7 de junho de 1494.

2 Historia de las índias, cap. xiii.

Page 98: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

94 -A Descoberta do Brasil

Era Vasco Annes o filho mais velho de João

Vaz, Miguel o segundo e Gaspar o terceiro.

Não se conhece a época do nascimento de ne-

nhum d'elles, mas sabe-se que nasceu em 1475 um

filho de Gaspar Corte-Real, de nome Fernão Vaz

Corte-Real.

Devia ter portanto Gaspar n'e§sa data cerca de

vinte annos, e portanto pelo menos quarenta e cinco

annos em 1500.

Não é natural que só em tal edade principiasse

as suas arriscadas viagens, quando a carreira do

mar é das que se começam em creança e para a

qual, se não ha vocação em tenra edade, nunca

pode haver disposição como a que elle manifestou.

Tinha Pedro Alvares Cabral trinta e dois ou

trinta e três annos ao tomar o commando da frota

de 1500 ;partiu Vasco da Gama com vinte e oito

annos para a descoberta da índia; assumiu D. Lou-

renço d'Almeida com dezenove annos o commando

de uma poderosa esquadra portuguesa dos mares

orientaes.

Não era próximo dos cincoenta annos que come-

çaria Gaspar Corte-Real as suas longas navega-

ções. Fazem assim todas as investigações recuar a

época d'essas viagens, marcando-lhes uma data

Page 99: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 95

sempre anterior á morte de João Vaz em 2 de ju-

lho de 140.

Realisaram-se portanto em vida de João Vaz, fo-

ram o resultado dos persistentes esforços do pae e

dos filhos os grandes trabalhos de Gaspar, as via-

gens e as descobertas dos Corte-Reaes.

Recebendo doações d'elle, doando terras como

capitães, figurando ao seu lado em questões parti-

culares, tratados muitas vezes como filhos de João

Vaz, foram com mais forte razão collaboradores do

pae na descoberta da America, Vasco e principal-

mente Gaspar e Miguel.

Eis como se descreve uma questão de partilha

de terras da Terceira : « disputou á mã.o armada,

elle e seus creados e filhos com o valente compa-

nheiro do capitão Bruges, Gonçalo Annes da Fon-

seca, pretendendo estender os marcos da sua capi-

tania».

Ao referir a viagem de Gaspar começa Damião

de Góes pela indicação da paternidade : « Gaspar

Corte-Real, filho de João Vaz Corte-Real ».

Cita d'esta forma Las Casas ^ acerca dos Corte-

^ Historia de las índias, cap. xiii.

Page 100: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

90 A Descoberta do Brasil

Reaes as próprias palavras de Colombo : « Disse,

pois, Christovam Colombo entre outras cousas que

poz em seus livros por escripto,.. e acrescentou

mais, que tinha visto dois filhos do capitão que des-

cobriu a dita ilha Terceira, que se chamavam Mi-

guel e Gaspar Corte-Real, ir em diversos tempos a

buscar aquella terra».

E concludente e decisivo o alcance d'esta passa-

gem, não só por estabelecer pela forma mais insus-

peita a precedência dos Corte-Reaes a Colombo,

como pela maneira de tratar Gaspar e Miguel como

filhos, homens novos, rapazes, e por mostrar que as

viagens tinham sido feitas em diversos tempos.

Depois de morto João Vaz, continuam os seus

homens, os seus creados, os seus companheiros ao

lado dos filhos nas suas arriscadas explorações, des-

empenhando um papel tão importante que mere-

cem menção especial em documentos officiaes.

Ao referir a morte de Miguel Corte-Real diz umd'elles ^ « após o dito seu irmão (Gaspar) falleceu e

acabou, e com elle muitos creados de seu pae».

^ Carta régia de 17 de setembro de 150Ó. Alguns docu-

mentos, etc, pag. 150.

Page 101: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 97

Tomando João Martins por vassallo, em attenção

aos serviços que fez a Gaspar Corte-Real na via-

gem de 1500, diz a carta régia de mercê ^: « aquel-

les que no dito descobrimento o ajudaram e des-

penderam, temos por bem e nos apraz de tomarmos

ora novamente por nosso vassallo a João Martins,

escudeiro, creado de João Vaz Corte-Real, seu

pae... e que o dito João Martins nosso vassallo

haja todas as honras, liberdades, privilégios e isen-

ções».

Sabe-se que João Vaz esteve ausente da capita-

nia em 5 de junho de 1487, 3 de janeiro de 1488,

10 de maio de 1488, em que seus filhos fazem doa-

ções, figurando como capitães, e em 17 de setembro

de 1494 data do seu testamento na Madeira.

Não fica em seu logar de nenhuma das vezes,

Vasco Annes, filho mais velho e seu successor na

capitania, ou porque já exercia o logar de vedor

da fazenda real, ou porque acompanhava seu pae

n'essas ausências de Angra.

Fez Miguel, o filho segundo, as doações de 1487

^ Carta de 27 de janeiro de 1501. Alguns documentos, etc,

pag. 124.

7

Page 102: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

98 A Descoberta do Brasil

e de 10 de maio de 1488; mas a de 3 de janeiro de

1488 é feita por Gaspar, o filho mais novo.

Pode deprehender-se d'aqui que Miguel n'essa

época também se ausentara com seu pae.

É possivel que sejam essas datas as de algumas

das viagens dos Corte-Reaes.

Mas o que fica irrecusavelmente demonstrado

em face de tão claras provas, e de tão seguros in-

dícios, é que João Vaz e seus filhos descobriram a

Terra Nova, que durante muito tempo figurou nos

mappas como Terra dos Corte-Reaes, e que o fize-

ram antes de que Colombo chegasse ás Antilhas^

servindo os seus trabalhos, as suas viagens, a sua

importante descoberta para certificar ao feliz aven-

tureiro a existência das terras do occidente, das

terras da America

!

Page 103: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

VI

Expedições portuguesas á America de 1474 a 1492

Descobriu João Vaz a Terra Nova o mais tardar

em 1472. Apezar de não ser a primeira que se rea-

lisa para occidente, a única em que se descobrem

terras da America, tem a sua viagem uma impor-

tância maior do que as anteriores pelos trabalhos

coUectivos dos Corte-Reaes;pelos registos indelé-

veis deixados nos documentos, na geographia e na

historia; pelas consequências produzidas na gene-

ralisação das explorações para occidente, na desco-

berta e concessão de novas terras, na apresentação

de largos planos de aproveitamento como os de

Fernão Telles, na organisação de expedições para

Page 104: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

loo A Descoberta do Brasil

a conquista como a de Fernão Dulmo; na obtenção

de conhecimentos práticos : a distancia a percorrer,

o tempo que levavam as viagens, o praso necessá-

rio para a ida, volta e reconhecimento.

Até ali são das Canárias, Madeira e Cabo Verde

as referencias ás descobertas ; reata-se com elle a

serie, começada com os Teives que saíram da Ter-

ceira, e continuada depois ininterruptamente nas se-

guintes viagens iniciadas nos Açores. E aos Aço-

res, ponto de partida, que os donatários, como

Ruy Gonçalves da Camará e Fernão Telles, vão

comprar ilhas para servirem de base ás explora-

ções, commercio e occupação das terras da Ame-

rica; dos Açores vem Dulmo e João Fernandes

Lavrador offerecer ao rei terras descobertas; dos

Açores partem tantos outros viajantes ignorados,

que, no dizer de Fructuoso, gastaram nas viagens

do occidente a sua fortuna!

Seguem muitos o exemplo de João Vaz, conti-

nuando o descobrimento das costas da America, ao

mesmo tempo que vão proseguindo nas suas via-

gens os Corte-Reaes.

Em 21 de junho de 1473 faz D. Affonso V doa-

ção a Ruy Gonçalves da Camará, filho de João

Gonçalves Zarco, navegador e primeiro donatário

Page 105: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil lOl

do Funchal, de « uma ilha que elle por si ou seus

navios achar».

P2is como a carta de doação ^ refere o pedido

de Ruy Gonçalves da Camará: «nos enviou dizer

como o seu desejo e vontade era buscar nas partes

do mar oceano umas ilhas para as haver de povoar

e aproveitar. Pedindo-nos que das ilhas que assim

achasse por si ou seus navios lhe fizéssemos d'ellas

mercê e doação ».

É determinada a situação das ilhas pela phrase

«nas partes do mar oceano » que, como já vimos na

doação a João Vogado, significava alem-mar, na

America.

Tudo leva a crer, pelo que dizem as cartas pre-

cedentes e seguintes, porque em boa lógica nin-

guém pede uma coisa que não existe, que Ruy Gon-

çalves conhecia a terra pedida. Tratava-se de ex-

ploração realisada pessoalmente, ou por navios

seus, como indica a phrase « por si ou seus navios

achar», de expressa informação de terceira pessoa,

ou do resultado da viagem de João Vaz, revelando

a existência da Terra Nova.

1 tArchivo dos açores, vol. iv, pag. 437.

Page 106: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

102 A Descoberta do Brasil

Obtida a doação d'essa ilha da America, com-

prou Ruy Gonçalves a ilha de S. Miguel, certamente

para servir de ponto de apoio ás suas explorações

nas terras concedidas, explorações cuja importância

se deprehende do facto de dispor de navios para

fazerem descobertas por sua ordem, e do reconhe-

cimento dos serviços que, como João Vaz Corte-

Real, prestou ao infante D. Fernando, serviços im-

portantes que mereciam recompensas e menções es-

peciaes.

Em 10 de março de 1474 diz a infanta D. Bea-

triz ao confirmar-lhe a compra da capitania de

S. Miguel na carta de doação ^ « e querendo fazer

mercê ao dito Ruy Gonçalves pelos serviços que

tem feito ao infante (D. Fernando) meu senhor que

Deus haja».

Lê-se na carta de 26 de julho de 1483 ^ de

D. Diogo, filho de D. Fernando, confirmando a doa-

ção feita por sua mãe : « posto que nella vão algu-

mas clausulas não costumadas nas cartas das capi-

tanias, porquanto o a dita senhora assim fez pelo

^ Publicada no Archivo dos Açores, vol. i, pag. 103,

2 Idem, pag. 106.

Page 107: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 103

sentir meu serviço e por conhecer os grandes ser-

viços e merecimentos do dito Ruy Gonçalves dos

quaes eu mui inteiramente sou em conhecimento e

que por elles a dita mercê e outras maiores me-

rece ».

Diz-se na carta de doação a Fernão Telles, do

conselho de D. Affonso V, governador da casa da

princeza, em 28 de janeiro de 1474^: «nos praz

que, indo elle ou mandando seus navios ou homens

ás partes do mar oceano ou alguém que por seu

mandado a isso vá, lhe fazemos... doação... de

quaesquer ilhas que elle achar ou aquelle a que

elle as mandar buscar novamente e escolher para

as haver de mandar povoar, não sendo porém as

taes ilhas nas partes de Guiné».

É explicada a designação « partes do mar ocea-

no » pela outra «não sendo... nas partes de

Guiné», isto é, não sendo nas partes de Africa, nos

lados de Africa, porque a expressão Guiné era ap-

plicada a toda a costa occidental do continente ne-

gro. O que dissemos a este respeito ao falar da

concessão de João Vogado recebe assim uma nova

comprovação.

* Alguns documentos, etc, pag. 38.

Page 108: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

104 A Descoberta do Brasil

Confirma a mesma carta a compra das ilhas Fo-

reyras (Flores) a João de Teive, o que mostra

que Fernão Telles, querendo explorar largamente

essas ilhas « que elle assim achar ou aquelles por-

que elle as mandar buscar», estando disposto a em-

pregar nisso os seus homens, os seus navios e

ainda contractar outros, e não residindo nos Aço-

res, de onde se partia para as terras americanas,

precisava de adquirir ahi uma base de operações, e

para isso comprava as Flores, a mais próxima da

costa da America.

Em 10 de novembro de 1475 recebe Fernão

Telles segunda carta de doação ^, documento de

grande valor que reconhece a importância dos seus

propósitos, que esclarece completamente a primeira,

e manifesta acontecimentos posteriores á concessão

que a tornaram necessária, e que só podiam ter

succedido no reconhecimento das terras doadas,

das terras da America ^.

1 Alguns documentos, etc, pag. 40.

2 Na Introducção ao Livro de Marinharia de João de Lis-

boa, Lisboa, 1903, pag. xxv, perfilha o snr. Brito Rebello este

ponto de vista, mas a pag. 280 escreve na nota addicional de 22

Page 109: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 105

E mais precisa a indicação das ilhas concedidas.

A phrase « partes do mar oceano » é assim esclare-

cida « com tanto que não sejam nos mares de Guiné»,

« e isto com condição que as ditas ilhas não sejam

nos mares cercanos (próximos) a Guiné ».

Admitte a carta a hypothese de que se possam

fazer objecções á latitude da concessão : « e se po-

deria dizer que a mercê que assim lhe tenho feito

não se deve a ellas estender». Refere-se ás «Sete

Cidades ou algumas outras ilhas povoadas ».

E claro que objecções de tal ordem só podiam

provir de outros possuidores de terras do occidente,

ou dos que lá fossem commerciar.

Reconhecem as seguintes palavras que era pre-

ciso respeitar direitos anteriores : « isto com condi-

ção que as ditas ilhas... até ao presente não se-

de agosto de I903 : «Finalmente o que se acha expresso nas car-

tas passadas a Fernão Telles e que nos levaram a fazer a respeito

d'ellas novas considerações, que nos parece não haverem ainda

sido feitas por outrem, deve merecer a attenção de quem hou-

ver de tratar d'estes assumptos. >

A primeira edição da Descoberta do Brasil, onde todo o pro-

blema das descobertas é posto por uma forma absolutamente

nova, e desde então geralmente acceite, é de I900.

Page 110: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

lo6 A Descoberta do Brasil

jam tratadas, navegadas por naturaes d'estes meus

reinos ».

Sabia Fernão Telles o valor do que pedira, e

D. Affonso V conhecia o alcance do que lhe doava.

Tinham ambos conhecimento das terras da Ame-

rica e da importância do seu aproveitamento.

São concludentes as seguintes palavras : « assim

me praz que se faça e cumpra, por o dito Fernão

Telles ter vontade de as mandar buscar e desco-

brir, e cuidar que de serem achadas podiam vir

grandes proveitos a meus reinos».

Determina a carta que sem licença de Fernão

Telles ninguém possa ir ás suas ilhas e explica que

esta importante concessão é « como tinha outorgado

de Guiné ao infante Dom Henrique ». Ficavam ex-

postos os transgressores ás mesmas penas.

Havia portanto em 1475 perfeito conhecimento

das terras da America. Faziam-se extensas conces-

sões, apresentavam circumstancias e condições de-

rivadas d'esse conhecimento as cartas de doação,

esperava-se obter tanto resultado que o seu apro-

veitamento começava pela compra da ilha mais pró-

xima para base de operações; havia tal navegação

para lá que era preciso defender com fortes penali-

dades a concessão de Fernão Telles; tornava-se

Page 111: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 107

necessário esclarecer bem o seu alcance por causa

das interpretações que lhe davam; consignava-se o

respeito pelos direitos anteriores.

Não se trata de vagas indicações, mas de coisas

positivas, estabelecidas por um documento official,

dezesete annos antes de Colombo partir

!

Em 25 de junho de 1474 aconselhava Tosca-

nelli a D. Affonso V que procurasse a índia pelo

occidente e mandava-lhe uma carta em que estava

«pintado todo o fim do poente... o principio das

índias », os logares por onde se devia navegar. Na

descripção d'essa carta falava Toscanelli de Catay,

de Cypango, do Gran Kan, dos usos dos habitantes,

da riqueza das povoações.

Não acreditavam os portugueses nas palavras

de Toscanelli, que se baseiava nos antigos philoso-

phos e que, nas descripções das regiões do extremo

oriente, que ficavam em face do extremo occidente,

seguia as narrativas de Marco Polo.

Nem nas cartas de doação a Fernão Telles, tão

próximas da carta de Toscanelli ao rei, nem em

nenhuma das outras, anteriores e posteriores, se em-

prega uma só vez a palavra índia, nem mesmo Ca-

tay, nem Cypango, para indicar as terras occi-

dentaes, que, pelo contrario, são tratadas por «ilhas

Page 112: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

lo8 A Descoberta do Brasil

e terra tirme por costa » por « ilha das Sete Cida-

des » por « quarta parte do mundo ».

O nome que nas doações a Telles e a Dulmo se

precisa é o de «Sete Cidades», nome que por si

nada significa, mas que tem muita importância por

ser differente do que usavam todos os partidários

do caminho para a índia pelo occidente, o que in-

dica que já então conheciam os portugueses que a

terra d'alem mar não era a índia, nem Cypango,

nem Catay, nada que se parecesse, que se aproxi-

masse das riquissimas regiões das especiarias.

Não teve importância a carta de Toscanelli como

determinante das viagens do occidente, que já antes

d'ella se tinham realisado, e que continuaram a

fazer-se fora das suas indicações.

E porém um valioso documento para a historia

das descobertas, por estabelecer que já em 1474

era somente pelo sul d'Africa que se procurava o

caminho da índia.

Ao falar da derrota por occidente diz Tosca-

nelli: «brevíssimo caminho por mar, que ha d'aqui

ás índias onde nascem as especiarias, e que eu te-

nho por mais curto que o que fazeis a Guiné ».

Vé-se por esta passagem do Esmeraldo que já

em 1471 era pela Africa que se procurava o cami-

Page 113: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 109

nho da índia para o qual se iam assegurando pon-

tos de escala: «Dom João o segundo... mandou

descobrir as ilhas de São Thomé e Santo António

e as povoou com fundamento da navegação da ín-

dia ; se lhe nosso senhor dera vida, devemos crer

que elle a descobrira» ^ Foi descoberta a ilha de

S, Thomé em 1471.

Não se realisavam portanto as viagens do occi-

dente no empenho de procurar a índia, mas no in-

tuito de colonisar, de aproveitar as terras da Ame-

rica, de commerciar n'ellas como se commerciava

nas costas d'Africa e nas ilhas dos seus mares.

Exploravam os navios do rei, os navios de

guerra, como hoje diriamos, a costa d'Africa, e pro-

curavam pelo sul d'ella o caminho do oriente. Eram

exclusivo da coroa as viagens nos mares da Guiné,

e só com licença os particulares as podiam empre-

hender.

Não navegavam para occidente os navios do

rei, nem as expedições mandadas á descoberta

como as de Diogo Cão, Bartholomeu Dias e Vasco

da Gama.

* Ed. Epiphanio, pag. 15.

Page 114: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

lio A Descoheria do Brasil

Estava aberto o caminho ás navegações dos

particulares, ás descobertas, ás explorações com-

merciaes.

Relatando Las Casas as indicações que guiaram

Colombo ás Antilhas, além das viagens dos Teives

e Corte-Reaes, plenamente confirmadas pelos docu-

mentos, apresenta mais as seguintes, que têm todo

o caracter de authenticidade, não só pela seriedade

do auctor, que reproduz palavras e escriptos de

Colombo, mas pela confirmação de muitas partes

do capitulo. Transparece a verdade d'estas na

forma de as descrever, nos pontos de contacto com

outras, nos pormenores de' que as acompanha.

Devem ter-se realisado essas viagens entre 1473

e 1484, datas da residência de Colombo em Portu-

gal.

Eis a primeira de que fala : « António Leme,

casado na ilha da Madeira, certificou-lhe (a Chris-

tovão Colombo) que tendo uma vez corrido com a

sua caravela bom espaço ao Poente, tinha visto três

ilhas cerca de onde andava ».

Em documentos das navegações figuram Ruy

de Leme, um dos que assignou o tratado de Tor-

desillas e Henrique Leme, capitão de uma nau da

índia, o que mostra que o appellido é português.

Page 115: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 111

« Um piloto portuguez, chamado Vicente Dias,

visinho de Tavira, vindo da Guiné para a ilha Ter-

ceira, dos Açores, tendo passado á altura da Ma-

deira, e deixando o Levante, viu ou pareceu-lhe

ver uma ilha que teve por muito certo que era ver-

dadeira terra». Deixando o Levante (oriente) quer

dizer correndo para occidente. Chegado á Terceira,

fala ainda Las Casas, descobriu o segredo a Lucas de

Cacena, rico mercador genovez, seu amigo, que lhe

armou um navio para o reconhecimento da ilha des-

coberta, obtida previamente licença do Rei de Portu-

gal, isto é, obtida a habitual carta de doação da

terra encontrada.

E bem precisa e bem verídica a narrativa d'esta

importante descoberta.

Viu terra o piloto no decurso de uma viagem,

como succedeu a Gonçalo Fernandes e outros; deu

informações d'ella a Lucas de Cacena, como outros

as deram ao infante D. Fernando; requereu doação

como era costume, e obteve de um amigo o navio

necessário para ir tomar posse.

E portanto já da posse que se trata e não de

tentativas para descobrir.

Era effectivamente Vicente Dias morador em

Tavira. Já tinha tomado parte nos descobrimentos

Page 116: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

112 A Descoberta do Brasil

commandando uma das 14 caravelas que em 1446

saíram de Lagos, e foi um dos que explorou o Se-

negal onde recebeu um ferimento.

Refere Las Casas ainda uma outra viagem, mas

é tão consciencioso, tão verdadeiro, tão cuidadoso

no que faz, que a separa para um novo capitulo,

porque não tem d'ella a narração insuspeita dos

papeis de Colombo.

Esta maneira de distinguir confirma ainda mais

a authenticidade de tudo o que ficou transcripto.

Eis as suas palavras : « uma caravela ou navio

que tinha saido de um porto de Hespanha (não me

recordo ter ouvido indicar qual fosse, ainda que

-creio que do reino de Portugal se dizia)... veiu...

parar a estas ilhas (Antilhas) e que esta (caravela)

foi a primeira que as descobriu... Que isto assim

acontecesse alguns argumentos ha para demons-

tral-o».

Diz mais que a noticia corria como certa entre

os primeiros que tinham chegado com Colombo ás

Antilhas, e que ali estavam quando Las Casas por

lá andou.

Pormenorisava-se a noticia dizendo que o piloto

do navio, recolhido por Colombo, ao sentir perto a

jnorte, lhe revelara o segredo da descoberta e « lhe

Page 117: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 1 1

3

dera por escripto os rumos e caminhos que tinham

levado e trazido por carta de marear e pelas altu-

ras e a paragem onde estava a ilha».

É de grande importância para nós um dos ar-

gumentos que Las Casas cita, por confirmar que

esse navio (ou outro qualquer) tinha tocado nas

Antilhas antes de Colombo: «entre outras cousas«

antigas de que tivemos relação (é Las Casas quem

fala) os que fomos ao primeiro descobrimento da. . .

ilha de Cuba... uma foi que os Índios visinhos

d'aquella tinham, de terem chegado a esta ilha

Hespanhola outros homens brancos e barbados,

como nós outros, antes que nós outros não muitos

annos ».

E outra prova da serie de viagens portuguesas

para occidente a narração dos Índios.

Chamam Affonso Sanches a esse piloto alguns

escriptores hespanhoes próximos dos acontecimen-

tos, e ha quem o diga natural de Cascaes.

No capitulo XIII, indícios por que Colombo se

guiou, ainda inclue Las Casas outras viagens, de

que fala n'estes termos: «Diz mais Christovam Co-

lombo, que no anno de 1484 viu em Portugal que

um visinho da ilha da Madeira foi pedir ao rei uma

caravela para ir descobrir certa terra, que jurava

Page 118: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

114 A Descoberta do Brasil

que via cada anno e sempre de uma maneira, con-

cordando com os das ilhas dos Açores ».

Estava essa concordância em que: «nas ilhas

Gomera e Ferro (Canárias) e nos Açores muitos af-

tirmavam e juravam ver cada anno algumas ilhas

para as partes do Poente».

No diário da primeira viagem ás Antilhas diz

lambem Colombo : « estando em Portugal no anno

de 1484, veiu um da ilha da Madeira ao rei a pedir-

Ihe uma caravela para ir a esta terra que via ; o

qual jurava que cada anno a via, e sempre de uma

maneira... o mesmo diziam nas ilhas dos Açores».

Confirma essas noticias um documento official ^

Effectivamente em 1484 pediu e obteve a doação

de «uma ilha que ora vae buscar» Fernão Domin-

gues do Arco, morador na ilha da Madeira.

Dizer que elle via a ilha cada anno significa que

a via em cada viagem annual, como succedera a

outros já citados.

Não significam as palavras de Colombo que

fosse uma ilha que se visse da Madeira, ou dos

1 Carta de D. João 11, de 30 de junho de 1484. Alguns do-

cumentos, etc, pag. 56.

Page 119: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 1 1

5

Açores, porque d'essa maneira teria sido desco-

berta ao chegar-se a qualquer d'estas e um sim-

ples barco de pesca lá iria, sem precisar formalida-

des nem concessões.

Vem revelar um documento de 148Ó ^ onde ap-

parece a carta de doação a Fernão Dulmo, a exis-

tência de trabalhos da maior importância relativos

á America, em que não se trata já da descoberta,

mas da posse effectiva, da conquista, da òccupação.

Foi dizer ao rei Fernão Dulmo, « cavalleiro e

capitão na ilha Terceira», que lhe «queria dar

achada uma grande ilha ou ilhas ou terra firme por

costa ».

Segundo a carta presumia-se « ser a ilha das

Sete Cidades », isto é, não se julgava que fosse a

índia como pensava Colombo, nem Catay, Cipango,

nem nenhuma das terras do oriente que elle procu-

rava, e que até morrer julgou ter descoberto.

Era uma terra differente, a que se dava aquelle

nome por causa da antiga lenda já referida, cuja

1 Carta de El-Rei D. João i de confirmação do contracto

feito entre Fernão Dulmo e João Aífonso do Estreito. Alguns

documentos, etc, pag. 58.

«

Page 120: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

Il6 A Descolarta do Brasil

importância se reconhecia nesta e anteriores doa-

ções, e nas próprias palavras (i'este documento:

«ilhas», «uma grande ilha», « terra íirme por cos-

ta»; isto é, terra firme extensa, um continente em-

íim. .

Mas no decurso da carta são mais precisas as

indicações geographicas, são exactas, apresentam a

verdadeira situação da America.

Mostram o conhecimento do continente ameri-

cano e das suas ilhas as expressões « ilhas e terra

firme», «ditas ilhas e terra firme», «todas as ilhas

e terra firme » repetidas grande numero de vezes.

E d'essa mesma forma que se refere Colombo

ás terras da America ao preparar a partida. Na ca-

pitulação que fez ^ com os reis de Castella em 17

de abril de 1492, emprega a phrase «ilhas e terra

firme» para indicar as terras do occidente onde

quer ir.

A concessão ^ do titulo de «almirante, vice-rei

e governador das ilhas e terra firme que desco-

brisse », feita pelos reis antes da partida para a pri-

' Navarrete, vol. 11, pag. 11,

2 Idem, vol. 11, pag. 13.

Page 121: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 117

meira viagem, diz ainda mais « por nosso mandado

a descobrir e g^anhar... certas ilhas e terra firme

no dito mar Oceano ».

Ia Dulmo fazer « isto tudo á sua própria custa e

despeza», e pedia ao rei que lhe concedesse doação

das terras que « elle assim descobrisse ou achasse,

ou outrem por seu mandado ».

O seu propósito de descobrir não quer dizer

que as terras do occidente fossem inteiramente des-

conhecidas. A palavra descobrir não se pode, nos

documentos antigos, tomar na acepção absoluta em

que hoje se toma.

Era muitas vezes usada no sentido de reconhe-

cer, e nunca se lhe dava a generalisação que mo-

dernamente se attribuiu á chegada de Colombo ás

Antilhas.

Permittia a grande extensão da America que to-

dos os navegadores citados, e muitos mais, podes-

sem apossar-se de grandes territórios.

Dava-lhe a carta « poder e auctoridade, que

possa logo tomar e tome posse real e autoal de to-

das as ilhas e terra firme que assim achar, sem

mais lhe ser necessário para isso nossa auctori-

dade ».

Não se tratava de simples formalidade, de vagas

Page 122: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

ll8 A Descoberta do Brasil

promessas, mas de uma posse positiva, effectiva e

immediata: «e sendo caso que se não queiram su-

jeitar as ditas ilhas e terra firme, nós mandaremos

com dito Fernão Dulmo gentes e armadas de na-

vios com nosso poder para sujeitar as ditas ilhas e

terra firme ».

Não teriam logar as declarações da carta regia

sem que se houvesse dado graves casos de resis-

tência das populações americanas á occupação.

Não se fazia sem forte motivo similhante pro-

messa ; não se falava assim, n'um documento offi-

cial, por forma differente do que nos outros era

costume, sem que houvesse para isso graves ra-

sões.

Tinham sido hostilisados outros donatários, dera-

se qualquer caso sangrento por forma que o rei

promettia apoiar Fernão Dulmo com soldados e na-

vios seus, no caso de não poder conseguir occu-

pal-as com as suas forças, nem com os poderes de

que ia revestido.

E verdadeiramente excepcional a alçada que se

concede a este capitão e, ainda mais que a pro-

messa do rei, mostra que era preciso conquistar,

combater.

Pedira Dulmo « mercê de toda a justiça com ai-

Page 123: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 119

cada de poder enforcar, matar e de toda outra pena

criminal » e o rei D. João II, tão cioso do poder

real, entende que ha motivo para a justificar e con-

cede-lh'a.

Em nenhuma das doações anteriores tinham sido

conferidas tão amplas auctorisações.

Recebera Fernão Telles, de todos o de mais alta

cathegoria official, fidalgo do conselho de D. Af-

fonso V, governador e mordomo-mór da princeza

sua filha, apenas os seguintes poderes : « mercê de

toda a jurisdição civil e crime, mero e misto impé-

rio... reservando para nós somente alçada de

morte ou talhamento de membro ».

Estava também sujeito o infante D. Fernando,

de cujo papel proeminente já falámos, ás mesmas

restricções. Recebeu a doação das ilhas do Cabo

Verde : « com toda a jurisdição eivei e crime, re-

servando somente alçada para nós nos feitos crimes

nos casos em que caiba morte ou talhamento de

membro ».

Recebeu o próprio infante D. Henrique a doação

da ilha da Madeira, em 2Ó de setembro de 1433, nas

seguintes condições: «todos os direitos e rendas

d'ellas, assim como nós de direito havemos e deve-

mos de haver, com sua jurisdição eivei e crime,

Page 124: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

120 A Descoberta do Brasil

salvo em sentença de morte ou talhamento de mem-

bro».

Tinha-se passado alguma coisa, conheciam-se

quaesquer circumstancias que provocavam taes me-

didas,; havia portanto conhecimento da terra firme,

da terra da America, para onde Fernão Dulmo que-

ria partir em tão excepcionaes condições.

Assim como a falta de taes auctorisações nas

precedentes cartas, põe em relevo o conhecimento

de alguma coisa da America que as determinava;

a continuação de taes poderes nos documentos pos-

teriores confirma que se tornava necessário proce-

der assim, quer dizer que não houvera um vago

receio mas uma justa precaução.

Dá a carta de doação a Gaspar Corte-Real, por

outras palavras, as mesmas graves auctorisações,

sem restricções, nem appellação.

Era-lhe concedida : « a jurisdição eivei e crime,

com toda a alçada e superioridade alta e baixa,

sem d'elle, nem de seus herdeiros e successores,

poderem appellar, nem aggravar em nenhum caso...

e queremos que elle e seus herdeiros em nosso

nome e de nossos successores tenham assim e go-

vernem e rejam a terra ou ilhas, que assim achar,

livremente, e sem limitação alguma».

Page 125: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta âo Brasil 121

Mostra claramente que se tinham dado luctas

na America entre os donatários e os indigenas um

outro documento official, a carta de doação a Vasco

Annes" Corte-Real, onde se diz que Miguel Corte-

Real, ao partir em procura de Gaspar, ia « por bus-

car e achar e remir o dito seu irmão».

A intenção, de remir indica a supposição de que

estivesse captivo, e esta supposição a de ter havido

lucta por causa da opposição dos naturaes.

Tanto Miguel Corte-Real, como os navios man-

dados pelo rei, como aquelles em que Vasco Annes

quiz partir, não iam, é claro, salvar Gaspar de um

naufrágio, que o teria feito desapparecer n'um dia,

n'uma hora; tinham, como se vê, o propósito de

libertal-o, remil-o, tiral-o do captiveiro.

Denunciando assim a opposição dos naturaes á

occupação, revela a carta de doação a Fernão

Dulmo, o conhecimento da America em data ante-

rior a 1486.

Além d'isto, dão outras circumstancias o maior

relevo aos importantes factos de que falam estes

documentos.

Recebe Dulmo a doação em 3 de março de 1486,

mas só em 12 de julho celebra o contracto com

João Affonso do Estreito, escudeiro morador na ilha

Page 126: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

122 A Descoberta do Brasil

da Madeira, a quem cede metade dos seus direitos,

apresentando este duas caravelas « abastecidas e

armadas para seis mezes », commandando uma, e

Dulmo a outra, obedecendo a este e seguindo-o

como capitão-mór durante os primeiros quarenta

dias.

Ao confirmar o conctrato, em 24 de julho do

mesmo anno, declarou o rei que fazia a mercê,

comtanto que as ilhas fossem descobertas nos pri-

meiros dois annos.

Segundo o contracto, obrigava-se a partir a ex-

pedição da Terceira em março de 1487.

Demonstram as diversas delimitações de praso

o caracter positivo de tudo isto.

Manifesta a época, durante a qual se devia tor-

nar effectiva a concessão, que o rei tinha vontade

de vêr em breve aproveitadas aquellas terras.

Os seis mezes que devia durar a viagem « es-

pera gastar todo o outro tempo (alem dos quarenta

dias) até cumprimento dos ditos seis mezes », mos-

tram que as viagens anteriores já permittiam fixar

aquella duração, que provavelmente se tornara ha-

bitual.

Precisam ainda a carta, o contracto, e depois a

doação a João Affonso um outro praso mais curto,

Page 127: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 123

quarenta dias, que também só podia ser estabelecido

em vista de uma pratica anterior.

Nos primeiros quarenta dias era Dulmo o ca-

pitão-mór, com direito de fazer « seu caminho por

onde lhe aprouver», e João Affonso seguil-o-ia se-

gundo o regimento que recebesse.

Passado esse praso era este quem commandava,

Dulmo não mandaria « fazer caminho para nenhuma

parte, mas antes seguirá e fará seu caminho e rota

por onde o dito João Affonso requerer».

Não era marcado arbitrariamente esse periodo,

havia uma razão para tal. Mudavam as circumstan-

cias para mudar o commando. Só ha uma explica-

ção, que fosse esse o tempo necessário para chegar

á terra firme.

Dulmo, que pedira e obtivera a doação, que era

capitão na ilha Terceira onde residiam os Corte-

Reaes, os Teives, o Lavrador e tantos outros, co-

nhecia certamente o caminho e como tal commanda-

ria até chegarem.

João Affonso, que fizera a despeza, grande des-

peza com que o outro não podia, assumiria lá en-

tão o seu logar dominante, e viria commandando

até ao regresso. ^

Não ha outra explicação para o praso dos qua-

Page 128: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

124 A Descoberta do Brasil

renta dias, no fim dos quaes mudavam completa-

mente as condições, as relações dos dois capitães

das caravelas.

Daria uma divisão arbitraria do commando ge-

ral a cada um metade do tempo, ou então o de um

mez ou de mezes.

Mas dentro dos seis mezes, fixados para o abas-

tecimento dos navios, para a duração das explora-

ções, comprehende-se ainda melhor o alcance do

periodo do commando de Dulmo.

Viagem de ida quarenta dias, viagem de regresso

o mesmo praso, ida e volta oitenta dias ; restavam

cem dias para a permanência na America, para a

exploração, marcação e divisão das capitanias, para

a sujeição dos habitantes das terras doadas.

Assim apparece sensivelmente dividido ao meio

o periodo de seis mezes.

Tinha estado com certeza na America Fernão

Dulmo, porque João Affonso não ia dispender tan-

to, metter-se n'uma empreza tão arriscada apenas

na vaga esperança de obter interesses, quando o

contracto que celebraram o mostra como um ho-

mem pratico e seguro, rodeiando-se de garantias e

obtendo por fim do rei uma especial carta de doa-

ção.

Page 129: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 125

Avaliava em tanto esse homem a importância da

terra, de que recebia metade, que deu logo 6:000

reaes brancos a Fernão Dulmo, e estabeleceu em

2:000 cruzados de ouro a indemnisação que elle

devia pagar-lhe se não cumprisse o contracto.

Além da viagem anterior á carta de doação, que

lhe permittiu vir offerecer ao rei a grande ilha ou

terra íirme, que lhe queria dar achada, parece que

Fernão Dulmo fez também outra entre a data da

sua carta (3 de março) e a do contracto (12 de ju-

lho).

Os cento e vinte e nove dias tirando oitenta

para ir e vir, ainda lhe deixavam quarenta e nove

dias para reconhecer que a empreza era superior

ás suas forças, como elle diz no contracto: «não

estava em tal disposição para poder fazer a dita ar-

mada e despezas que para ella pertenciam», o que

é muito differente do que dissera ao rei ao pedir a

doação em que lhe « queria dar achada uma grande

ilha ou ilhas ou terra firme por costa. . . e isto tudo

á sua própria custa e despeza ».

Ignora-se quanto tempo gastou Gaspar Corte-

Real na sua primeira viagem, mas sabe-se que par-

tiu para a segunda em 15 de maio de 1501 e que

em 8 de outubro voltava a Lisboa um dos navios

Page 130: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

126 A Descoberta do Brasil

que fora com elle, noticiando a sua perda e nar-

rando uma longa exploração.

Tinham-lhe dado para tudo cento e quarenta e

três dias, apenas mais quatorze do que teve Fernão

Dulmo para ir á terra concedida.

Confirma este praso de uma viagem, de que se

conhece grande numero de documentos, tantas tes-

temunhas irrecusáveis, o calculo de quarenta dias

para tomar terra e indica que os seis mezes, mar-

cados para ida e volta, mostravam já o conheci-

mento da navegação do occidente.

Apparece depois, nas viagens portuguesas e hes-

panholas, exactamente o praso de seis mezes mar-

cado para a duração da viagem de Fernão Dulmo.

Leva a armada em que vae ás Antilhas Inigo

de Artieta em julho de 1493, um anno depois de

Colombo, sete depois de Fernão Dulmo, mantimen-

tos para seis mezes e os soldos á gente e os fretes

dos navios pagos pelo mesmo tempo.

Dura sete mezes a primeira viagem de Colombo

pouco mais do que o praso da viagem de Dulmo,

mas no reconhecimento das Antilhas gasta noventa

e seis dias, quasi os que calculámos para aquella,

e regressa em quarenta e oito dias, que, desconta-

dos os atrazos pelo temporal, e a arribada a Santa

Page 131: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 127

Maria, dão os quarenta dias do praso que temos

discutido.

Vae de Lisboa ao Brasil em quarenta e três

dias Pedro Alvares Cabral, apezar da calmaria.

Parte Colombo de Cadiz para a segunda viagem

em 25 de setembro, e chega a Dominica em 3 de

novembro, gastando quarenta dias no percurso,

exactamente o periodo da extraordinária carta de

Fernão Dulmo.

E evidente que os prasos marcados nesse docu-

mento tinham sido regulados por viagens anterio-

res, com a precisão que é possivel em coisas do

mar, com tal approximação que as viagens subse-

quentes vem confirmal-os.

Ao fazerem o contracto para a divisão das ter-

ras doadas pelo rei, estão em Lisboa Fernão Dulmo

e João Affonso do Estreito, mas a expedição não

parte da capital, nem da Madeira onde residia João

Affonso, que fazia a despeza e armava os navios

;

teem de sair da ilha Terceira, como se marca ex-

pressamente no contracto ; tem que largar dos Aço-

res, como tantas outras referidas, porque era nos

Açores que havia informações precisas das terras, e

guarnições aptas para os navios ; era aos Açores

que Colombo referia o conhecimento das terras oc-

Page 132: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

128 A Descoberta do Brasil

cidentaes; era d'ahi que partiam, segundo Monetá-

rio, « muitos marinheiros sabedores que navegaram

a largura do mar, tomando o caminho das ilhas dos

Açores. . . e. . . navegaram a praia oriental», quer

dizer a praia occidental, a America.

Provam exuberantemente o conhecimento ante-

rior da costa americana a multiplicidade dos factos

revelados pela interessante carta de doação a Fer-

não Dulmo, e pelo contracto.

Mas ha ainda um outro facto que põe em evi-

dencia o alcance da viagem. No contracto, depois

de falar nas duas caravelas, ha o seguinte periodo:

« quanto ao cavalleiro allemão, que em companhia

d'elles ha de ir, que elle allemão escolha ir em

qualquer caravela que quizer».

Tratava- se decerto de Martim Behaim que de

1480 a 1484 fez parte da junta do astrolábio de

D. João II, que de 1484 a 1486 acompanhou como

cosmographo Diogo Cão na expedição que desco-

briu o Congo, e que de 148Ó a 1490 residiu nos

Açores.

Seguia Behaim a opinião dos antigos de que o

caminho para a índia era pelo occidente. Segundo

escreve Fructuoso nas Saudades da terra, dizia mui-

tas vezes que um dia viriam do occidente navios

Page 133: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 129

carregados de ouro e prata e fez uma prophecia

(previsão) para a viagem de Gaspar Gonçalves ao

occidente.

Ou n'essa ou n'outra viagem, como cosmogra-

pho ou como cartographo, obteve Behaim os co-

nhecimentos da costa da America manifestados no

globo que fez ao regressar á pátria, e no mappa

do erário do rei de Portugal a que allude Pigaf-

feta.

Ao aconselhar o dr. Monetário D. João II á des-

coberta da índia pelo occidente, dizia d'elle : « Te-

rás também se te apraz para este caminho, por

companheiro deputado do nosso rei Maximiliano, o

senhor Martinho Bohemio, singularmente (apto?)

para isto acabar ».

Tem o tão discutido globo de Nuremberg al-

guns pontos, como uma península, um golfo e mui-

tas ilhas, que correspondem sensivelmente, em posi-

ção e forma, á península de Florida, ao golfo do

México e ás Antilhas.

Deram esta similhança, e outros factos da sua

vida, motivo a muitos escriptores para affirmarem

que Behaim descobriu a America antes de Colombo

e o estreito do Sul antes de Magalhães.

Anteriormente porém á sua residência nos Açô-

9

Page 134: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

130 A Descoberta do Brasil

res já havia em Portugal perfeito conhecimento da

America.

Deve ter-se realisado entre 1486- 1490, datas que

limitam a sua residência nos Açores, a viagem de

Gaspar Gonçalves, a que se liga a prophecia de

Behaim.

Residia Gonçalves, segundo Fructuoso, na Ri-

beira Secca (ilha Terceira). Diz outro antigo escri-

ptor açoreano, o padre Maldonado, que Gaspar

Gonçalves Machado, chamado da Ribeira Secca,

fora uma das primeiras pessoas que nasceu na ilha

Terceira. Gaspar Gonçalves, segundo Fructuoso,

queria descobrir uma ilha ao norte dos Açores. Émais um da longa serie de navegadores da Ter-

ceira, que desde Teive faziam explorações para no-

roeste !

Encontra-se a seguinte passagem n'uma carta de

doação ^ de D. Manuel em 1499: «João Fernandes,

morador em a nossa ilha Terceira, nos disse que

por serviço de Deus e nosso se queria trabalhar

* De 28 de outubro de 1499. Archivo dos Açores, vol. xii,

pag. 353, Quem deu o nome ao Lavrador? memoria de Ernesto

do Canto, onde se podem vêr este e os outros documentos acerca

do interessante assumpto.

Page 135: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 131

de ir buscar e de descobrir algumas ilhas de nossa

conquista, á sua custa; e vendo nós seu bom de-

sejo e propósito, além de ih'o termos em serviço, a

nós praz e lhe promettemos por esta de lhe dar-

mos, como de feito daremos, a capitania de qual-

quer ilha ou ilhas, assim povoadas como despovoa-

das, que elle descobrir e achar novamente».

Concede a carta de doação ^ de Henrique VII de

Inglaterra a três negociantes inglezes de Bristol, e a

João Fernandes, Francisco Fernandes e João Gon-

çalves « escudeiros, naturaes das ilhas dos Açores

sob a obediência do Rei de Portugal. . . plena e li-

vre auctoridade, faculdade e poder de navegar e de

se transportar a todas as partes, regiões e terras do

mar oriental, occidental, austral, boreal ou septen-

trional, sob a nossa bandeira, com tantas, tamanhas

e taes naus e embarcações quantas lhes aprouve*

rem e forem mister. . . com o fim de achar, recupe-

rar, descobrir e explorar quaesquer ilhas, terras,

regiões, etc. . . . faculdade de poder arvorar a nossa

bandeira... tomar posse por nós... occupar, sub-

metter e possuir».

1 Carta de doação de 19 de março de 1501. Archivo dos

Açores, vol. iv, pag. 450.

Page 136: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

132 A Descoberta do Brasil

Constituíam um monopólio essas concessões.

Ninguém poderia ir a essas terras sem licença d'el-

les ou do rei.

Concedia-se a todos o posto de Almirante no

mar das regiões assim descobertas, e eram naturali-

sados os três portugueses.

Instituia esta carta, pelas amplas concessões que

faz extensamente, uma verdadeira companhia de

navegação, com poderes de armar navios, e com-

bater debaixo da bandeira ingleza nos mares de

todo o mundo.

Não podendo talvez João Fernandes, o mesmo

da carta de D. Manuel, tornar eífectiva a regia doa-

ção por falta de meios, como succedeu a Dulmo, e

não encontrando homens como João x\ffonso ou Lu-

cas de Cacena para o auxiliarem com dinheiro e

navios, porque as attenções estavam então todas

voltadas para a índia, de onde Vasco da Gama re-

gressara em 1499, e para onde os particulares pre-

paravam também navios, que iam encorporados nas

frotas com os navios do rei; aproveitou-se do echo

da importante descoberta para se associar com os

inglezes, obtendo para si, para Francisco Fernan-

des, talvez seu irmão, e para João Gonçalves, com-

panheiros sem duvida nas viagens do occidente,

Page 137: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 133

vantagens eguaes ás concedidas pelos reis de Cas-

tella a Colombo, e que nunca obteria em Portugal

onde não era novidade o rumo da America.

Já em 1502 estavam João Fernandes e os seus

na posse de uma terra, o que se vê pelo livro de

despezas particulares do mesmo rei: « 1502, ja-

neiro 7, Aos homens de Bristol, que acharam a

ilha— Libras 5 ».

Já não figura João Fernandes na carta patente

de 9 de dezembro de 1502, em que se concedem

doações análogas aos mesmos.

Revela o estudo dos documentos, como succedeu

com os Corte-Reaes, quando começaram as viagens

de João Fernandes, cujos resultados figuram nas

cartas de D. Manuel e na carta e na nota de Hen-

rique VII.

Tem a designação : « Terra do Lavrador do rei

de Portugal » o portulano de Vesconte Maggiolo

(1511).

Lê-se no planispherio de Diogo Ribeiro (1529) :

« Tiera dei Labrador la qual descubriero los ingle-

zes de la villa de Bristol».

E mais explicito o mappa B da bibliotheca du-

cal de Wolfenbuttel: «Tiera dei Labrador. La qual

fue descubierta por los inglezes de la villa de Bris-

Page 138: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

134 A Descoberta do Brasil

tol e por que el que dio el aviso era lavrador de las

islãs de los Acares (Açores) le quido este nombre ».

E completamente esclarecida esta explicação,

perfeitamente de accordo com a carta ingleza de

doação, pelo indirecto testemunho de Pedro de Bar-

cellos, que declara ter feito viagens de descoberta

com João Fernandes Lavrador, ligando assim o

João Fernandes, morador na Terceira, da carta de

D. Manuel; o João Fernandes escudeiro dos Açores

da carta ingleza; o lavrador das ilhas dos Açores,

que deu aviso aos de Bristol, do mappa de Wolfen-

buttel.

Faz essa declaração Pedro de Barcellos n'uma

demanda relativa á posse de uns mattos que lhe ti-

nham sido doados em 1490 e que em 1495 foram

concedidos a outro, certamente porque não os tinha

aproveitado naquelle prazo, como determinava a

sua carta de sesmaria.

Eis o principal da sua allegação : « estando as-

sim em posse d'ellas (as terras contestadas) ao dito

tempo houve um mandado de el-rei nosso senhor

para ir descobrir eu e um João Fernandes Lavra-

dor no qual descobrimento andámos bem três annos

e quando tornei á dita ilha (Terceira) achei a mi-

nha gente fora das ditas terras ».

Page 139: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 135

Recebera-as o novo possuidor por carta de ses-

maria de 30 de janeiro de 1495.

Regressou Pedro de Barcellos do descobrimento

portanto depois d'aquelle dia.

Em 14 de abril de I495 torna a receber as ter-

ras, sendo-lhe confirmada então a sua carta.

Limita a época do regresso esta nova data.

Conforme as suas palavras, andara três annos no

descobrimento com João Fernandes Lavrador.

Descontando os três annos, vê-se que partiram

da Terceira para a America entre 30 de janeiro e

14 de abril de I492, portanto muito antes de Co-

lombo, que só em 3 de agosto de I492 saiu para as

Antilhas a primeira vez.

Recapitulando o vastíssimo assumpto dos des-

cobrimentos do occidente, tem-se a taboa chronolo-

gica d'essas viagens, das cartas de doação que as

auctorisam, do apparecimento de indicações geo-

graphicas reveladoras de outras que desconhecemos.

1431 — Correndo para o occidente, descobre Gonçalo Velho

as Formigas.

1432 — Descobre Gonçalo Velho Santa Maria.

1436— Regista André Bianco as descobertas do Brasil, An-

tilhas e Mar da Baga (Mar do Sargaço).

1439— Estão descobertas sete ilhas dos Açores.

Page 140: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

136 A Descoberta do Brasil

1447 — Vae um navio do Porto á Groenlândia, onde os ma-

rinheiros desembarcam.

1448 — Regista André Bianco precisamente o Brasil, a 1:5CX)

milhas.

1452 — Descobrem as Flores Diogo de Teive e seu filho João

de Teive, e chegam á latitude da Terra do Lavrador, de que

têm signaes, não aportando por temerem o inverno.

1460 — Descobre Gonçalo Fernandes uma ilha a oesnoroeste

das Canárias e da Madeira, a que não chega por causa do vento

contrario.

I4Ó1 — Manda o infante D. Fernando procurar sem resul-

tado essa ilha.

1462 — Carta de D. Affonso v doando essa ilha ao infante

D. Fernando.

1462 — Doação a João Vogado das ilhas Lono e Capraria.

1468 —-Descobre-se uma ilha na latitude da ilha de San-

tiago.

1469 — Tentativa infructifera do infante D. Fernando para

reencontrar essa ilha.

1470— Nova tentativa do infante, sem resultado.

1472 — Descobre João Vaz Corte-Real a Bahia de João Vaz

e Terra de João Vaz, na America do Norte.

1473 — Obtém a infanta D, Beatriz a concessão da ilha, na

latitude de Santiago, para a mandar procurar.

1473 — Doação a Ruy Gonçalves da Camará das ilhas que

descobrir.

1474 — Doação a Fernão Telles das ilhas que descobrir.

1475 — Ampliação das doações a Fernão Telles.

1473-1484— Descobre António Leme três ilhas a occidente.

Page 141: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 137

1473-1484 — Descobre Vicente Dias uma ilha a occidente.

1473-1484 — Descobre Aífonso Sanches as Antilhas.

1484— Recebe Fernão Domingues do Arco doação de uma

ilha que já descobrira.

1486 — Doação a Fernão Dulmo e João Aífonso do Estreito

de algumas ilhas e terra firme, e viagem provável de Fernão

Dulmo.

1487 — Viagem á America de Fernão Dulmo e João Aífonso

do Estreito, acompanhados por Martim Behaim.

1490— Vae Gaspar Gonçalves á descoberta por conselho de

Behaim (l486- 1 490).

1492 — Viagem de Pedro de Barcellos e João Fernandes La-

vrador, que descobre a terra do Lavrador.

Confirma o conhecimento obtido pelos marinhei-

ros portugueses das terras da America um im-

portantíssimo documento, a carta do dr. Monetário

a D. João II em 1493 (14 de julho) aconselhando-

Ihe a que demande a índia pelo caminho do occi-

dente ^. Colombo regressara das Antilhas em 6 de

março de 1493, mas Monetário desconhecia esse

facto.

1 «Carta enviada pelo dr. Jeronymo Montaro, de Nurem-

berg, a el-rei de Portugal D. João, a'cerca dos descobrimentos

portugueses, traduzido do latim por fr. Álvaro da Torre, monge

dominicano, reimpressa por um bibliophilo (A. Fernandes Tho-

maz), Coimbra 1878. »

Page 142: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

138 A Descoberla do Brasil

Valioso documento, contemporâneo dos trabalhos

das descobertas, feito sem o propósito de diminuir

a gloria de Colombo, escripto em excepcionaes con-

dições de imparcialidade, puramente em nome da

scieneia, por parte de um homem de saber, distan-

ciado da sede dos acontecimentos, sem interesses

ligados a elles, é a carta de Monetário, como a de

Toscanelli, o imparcial commentario do que se fazia

e do que se projectava fazer.

Apontando-lhe as facilidades que tinha para

achar Catay oriental (índia), pelo caminho do occi-

dente, dizia:

« Abundam também a ti as abastações e rique-

zas e são a ti marinheiros muito sábios os quaes

assim mesmo desejam ganhar immortalidade e glo-

ria... terás também se te apraz para este cami-

nho... o senhor Martinho Bohemio... e outros

muitos marinheiros sabedores que navegaram a lar-

gura do mar tomando caminho das ilhas dos Aço-

res por sua industria, por quadrante chilindro e as-

trolábio e outros ingenhos, onde nem frio nem calma

os anojara; e mais navegaram a praia oriental

(oriental da pretendida índia, occidental da Ame-

rica) sob uma temperança (temperatura) muito tem-

perada do ar e do mar».

Page 143: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 139

Elogiando o saber dos marinheiros portuguê-

ses, põe esta interessante carta em evidencia as

suas navegações na costa da America, e precisa

essa noticia com as indicações da temperatura; com

a posição da America, acerca da qual repete a

phrase usual das referencias ás viagens ao novo

continente : « navegaram a largura do mar »;e com

o ponto de partida das expedições : « tomando cami-

nho das ilhas dos Açores», o que, como já vimos,

é absolutamente verdadeiro.

São irrecusáveis estas noticias de contemporâ-

neos, escriptas sem a intenção de estabelecerem

prioridades em descobertas.

Para a verdadeira índia tinham partido por

terra em 1487 Pêro da Covilhã e Affonso de Paiva,

indo este á Abyssinia e aquelle a Calecut e a So-

fala, chegando quasi a encontrarem-se na costa

oriental da Africa com Bartholomeu Dias que, par-

tindo de Lisboa no mesmo anno, descobriu o cabo

da Boa Esperança e abriu finalmente o caminho da

índia, deixando esboçada a costa oriental, como se

vê do mappa de 1489 do Museu Britannico.

E mezes depois de ter ido á descoberta João

Fernandes Lavrador que Colombo sae para as An-

tilhas, é cinco annos depois de estar assim aberto

Page 144: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

140 A Descoberta do Brasil

O caminho da índia pelo oriente que vae procural-o

pelo occidente.

Não o dissuade a evidencia d' esse facto, nem a

opinião de D. João II e dos marinheiros e cosmo-

graphos portugueses; como não lhe desvanece o

erro de que estava na Ásia o regresso de Vasco da

Gama (1499) do descobrimento do caminho mari-

timo para a índia.

Apezar de uma tal evidencia, percorriam em vão

Colombo e os seus continuadores a costa da Ame-

rica, mettiam-se por entre as ilhas, subiam os rios,

investigavam as bahias e os golfos em demanda da

desejada passagem para o oriente. ^

Existia uma passagem, havia de facto um cami-

nho que permittia attingir o oriente pelo occidente,

mas os hespanhoes, por mais que procurassem em

vinte e sete annos de trabalhos (1492 a 1519),

nunca o poderam encontrar.

Havia um caminho ; não era o « brevíssimo ca-

minho » que Toscanelli e os antigos aconselhavam;

era longo, complicado, por entre os centenares de

ilhas da Oceania, muito mais extenso que o que se

fazia pelo sul d'Africa: mas havia de facto uma

passagem.

E o notável piloto português Fernão de Maga-

Page 145: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 141

Ihães quem se presta a conduzir os hespanhoes por

esse caminho.

Esforça-se D. Manuel por dissuadil-o do seu

propósito, manda offerecer-lhe grandes vantagens

para que volte a Portugal e desista do seu in-

tuito.

Bem sabe o rei português que existe esse cami-

nho, porque tem no seu erário os mappas onde elle

está traçado; conhece Magalhães e os marinheiros

que o acompanham, e não quer que elle, como

Christovam Colombo, como João Fernandes Lavra-

dor, vá levar aos estrangeiros o resultado dos atu-

rados trabalhos de tantos annos.

Mas não o poude conseguir.

Parte Fernão de Magalhães com cinco navios,

com pilotos portugueses em todos, entre elles o pi-

loto João Carvalho que traz á Europa a nau Victo-

ria, o ultimo navio da frota, com vinte e nove ma-

rinheiros portugueses e o cosmographo português

Ruy Faleiro, que dirigia com elle a expedição.

Diz Pigaffeta \ um dos que tomou parte na ce-

^ Premier voyage autour du monde, par le chevalier Pigaf-

fetta, pag-, 40.

Page 146: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

142 A Descoberta do Brasil

lebre viagem, ao narrar as difficuldades do extra-

ordinário feito, de cujo êxito muitos descriam,

no que se fundava a certeza de Magalhães : « Este

homem, tão hábil como corajoso, sabia que era pre-

ciso passar um estreito muito occulto, mas que elle

tinha visto representado n'uma carta feita por Mar-

tim Bohemio, muito notável cosmographo, que o rei

de Portugal conservava no seu erário ». Pigaffetta é

extranho a Portugal e a Hespanha e narra, assim

que desembarca, as peripécias da viagem. Tem a

maior auctoridade o seu testemunho.

Era ainda um português, acompanhado dos ar-

rojados pilotos portugueses, com grande numero

dos atrevidos marinheiros portugueses, com um cos-

mographo português e um mappa português ; era

ainda um representante da sciencia experimental,

dos grandes trabalhos, das arriscadas navegações de

Portugal quem ia abrir ao mundo um novo caminho.

Effectivamente Magalhães (1519-1521) atravessa

o estreito que conservou o seu nome, attinge pelo

occidente as ilhas da especiaria, e realisando a mais

extensa navegação até ali feita, completa a gloriosa

serie dos descobrimentos portugueses dando a volta

ao mundo, produzindo da espheroicidade da terra a

primeira e a mais completa confirmação.

Page 147: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

VII

Colombo

É anterior alguns mezes á primeira viagem de^

Colombo ás Antilhas a ultima expedição da ex-

tensa lista das viagens portuguesas á America.

E assim como na ordem chronologica é dos úl-

timos a fazer-se ao largo, a demandar as terras do

occidente, não passa Colombo de uma figura secun-

daria na serie dos descobridores, não é mais do

que um episodio dos descobrimentos portugueses,

que continuam para occidente depois d'elle, como

para occidente se tinham feito muito antes, sem

que a sua acção tenha maior alcance do que guiar

um povo ávido de riquezas, á exploração de uma.

parte do mundo.

Page 148: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

144 ^ Descoberta do Brasil

Pretendia Colombo chegar á índia pelo occiden-

te, como aconselhavam Toscanelli, Monetário e Be-

haim; como indicavam os livros dos antigos; como

ao começo das descobertas fizeram os próprios na-

vegadores de Portugal.

Era o plano de Colombo — desde que se con-

vencionou chamar-lhe assim — o plano de toda a

gente.

Não constituía uma coisa absolutamente nova,

diametralmente opposta ao que se fazia; não era o

resultado de um largo estudo, de uma descoberta

scientifica, de uma antecipação ao saber da época.

Pelo contrario consistia na repetição dos erros da

antiguidade, na resurreição de velhas idéas, na re-

edição dos absurdos da antiga philosophia, que

não só já não seguiam, mas iam a cada passo

emendando, rectificando, desmentindo os portuguê7

ses, com a segurança, com a consciência, com o or-

gulho, com a superioridade a que lhes davam di-

reito os conhecimentos rudemente adquiridos nos

trabalhos colossaes do século XV.

Ao propor chegar á índia pelo occidente, nem

tinha Colombo a vantagem de ser o primeiro. Já o

aconselhara Toscanelli a D. Affonso V. As próprias

instrucções que o sábio italiano enviou a Colombo

Page 149: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 145

não foram mais do que a copia da carta mandada

annos antes áquelle rei.

Era conhecido em Portugal, pelo menos desde

1428, o livro de Marco Polo, fonte principal da con-

vicção de Toscanelli e de Colombo.

Portanto ném^-xxonstituia ao menos uma novi-

dade o que elle pretendia fazer.

Tinha sido directamente aconselhado por Tosca-

nelli e Behaim, como Behaim fora por Monetário, e

os reis de Portugal tinham sido pelos três.

Na Colombina, bibliotheca fundada por seu fi-

lho Fernando na cathedral de Sevilha, ainda exis-

tem, annotados pelo próprio punho de Colombo, o

Livro das viagens de Marco Polo e Imago mundi de

Pedro de Ailly.

No capitulo 8.° T)e quantitate habitabili, diz Ailly

citando Aristóteles : « que não ha muito mar do fim

de Hespanha, pela parte do occidente, ao principio

da índia pela- parte do oriente ». Escreve no capi-

tulo 19.° da sua Cosmographia: «segundo os philo-

sophos e Plinio, o mar oceano que se extende en-

tre o fim de Hespanha ulterior pela parte do

occidente, e o principio da índia pela parte do

oriente, não é de grande extensão, porque ha

experiência de que aquelle mar seria percor-

10

Page 150: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

146 A Descoberta do Brasil

rido em muito poucos dias se o vento fosse tal

como convém ».

Era tão velha a idéa de ir á índia pelo occi-

dente que dizia Aristóteles na obra De ccelo et

mundo, fim do segundo livro, que «das índias se

podia chegar a Cadiz em poucos dias». Affirmava

Séneca, primeiro livro dos Naturaes, que « com

vento favorável se podia navegar em poucos dias

dos fins de Hespanha até ás índias».

Era fundada em passagens de Ptolomeu, Plinio,

Strabão, Alfragano, etc, a supposição da pouca

extensão da terra, em que se baseiava a possibili-

dade do curto caminho do occidente.

Era pois baseiado em opiniões alheias, e não

nos seus trabalhos ou em conhecimentos próprios,

tudo o que Colombo dizia.

Fora tudo colhido em Marco Polo e em Ailly,

que pela sua parte se fundavam nos philosophos

antigos ^

Não acatavam os portugueses de então as opi-

niões d'esses philosophos, e oppunham-lhes os re-

sultados do seu saber.

* Veja-se a pag. 50 e segg. mais opiniões a respeito do

caminho por occidente.

Page 151: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 147t

Compendia em poucas palavras o Esmeraldo a

sciencia dos cosmographos, dos navegadores portu-

gueses: «a experiência, que é madre das coisas,

nos desengana e de toda a duvida nos tira » ^; e

«n'esta tão trabalhosa jornada da qual a experiên-

cia nos ensinou a verdade ».

Era assim emendada a distribuição das terras e

das aguas: «o mar oceano não cerca a terra como

os philosophos disseram » ^

Merecia o seguinte commentario a descripção

da Africa e do monte Atlas : « Plinio no seu quinto

livro T)a Natural Historia, capitulo primeiro, e Pto-

lomeu no seu livro « de situ orhis » e assim outros

auctores, os quaes escreveram... o monte Atlan-

te... com muitas fabulas que d'elle contaram,

mas. . . não souberam esta provincia nem a pratica-

ram como nós a temos praticado, portanto não é

maravilha cairem em erro ^

Desmentia Diogo Gomes, de Cintra, a affirma-

ção dos livros antigos de que era inhabitavel a

1 Ed. Epiphanio, pag. 23.

2 Idem, pag. 24.

^ Idem, pag. 66.

«

Page 152: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

148 A Descoberta do Brasil

zona tórrida ^. « Ptolomeu, que em verdade muito

boas coisas escreveu sobre a divisão do mundo,

que porém falhou n'esta parte ».

Na carta a D. João II, regista o dr. Monetário

a maneira como a sciencia experimental dos portu-

gueses emendara os antigos philosophos: «Porque

certamente sabeis que muitos auctorisados astróno-

mos negaram haver alguma habitação debaixo dos

trópicos e equinócios. As quaes cousas tu achaste

serem vãs e falsas por tua experiência ».

Punha também Duarte Pacheco em evidencia a

contradicção : « esta terra é muito visinha do circulo

da equinocial, que os antigos disseram que era inha-

bitavel, e nós por experiência achámos o contrario »,

« d'onde parece que segundo sua tenção aquella

tórrida zona por esta causa se não podia navegar,

pois que a fortaleza do sol impedia não haver ahi

habitação de gente; o que tudo isto é falso ; certa-

mente temos muita e muita razão de nos espantar

de tão excellentes homens, como estes foram, e as-

sim Plinio e outros auctores que isto mesmo affir-

maram, cairem em tamanho erro » ^.

1 As relações, etc, pag. 11.

2 Esmeraldo, ed. Epiphanio, pag. 152.

Page 153: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 149

Não eram desconhecidos dos portugueses os li-

vros em que se baseiavam os auctores predilectos

de Colombo; via-se que os tinham lido, mas que os

abandonaram ao reconhecerem as suas informações

como coisas falsas, erradas, absurdas. Já não lhes

serviam de coisa alguma ^.

Fala d'elles o Esmeraldo por esta forma : « pelos

livros que dos antigos cosmographos ficaram para

esta navegação nenhuma coisa nos podemos d'elles

aproveitar »;

« e n'estas cousas a nossa nação dos

portugueses precedeu todos os antigos e modernos

em tanta quantidade que... podemos dizer que el-

les em nosso respeito não souberam nada ».

Ao mandar á descoberta os seus navegadores,

mais de setenta annos antes de Colombo, falava

com desdém o infante D, Henrique das lendas do

Mar Tenebroso, chamando-lhes : « opinião de quatro

mareantes, os quaes, como são tirados da carreira

de Flandres ou d'alguns outros portos, para que

* Nas livrarias de D. Duarte, D. Aífonso v e do condesta-

vel D. Pedro, cujos catálogos chegaram até nós, existiam esses li-

vros em que se orientava Colombo. Antes de impressos já ti-

nham traducção portuguesa. Diogo Gomes de Cintra e Duarte

Pacheco Pereira a cada passo os citam e os corrigem.

Page 154: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

150 A Descoberta do Brasil

commummeate navegam, não sabem mais ter agu-

lha nem carta para marear ». E animando-os com

promessas, dizia : « vós não podeis achar tamanho

perigo que a esperança do galardão não seja muito

maior... não temaes sua opinião fazendo essa via-

gem, porque com a graça de Deus não podeis d'elia

trazer senão honra e proveito ».

Apprendiam os portugueses a conhecer o globo

percorrendo-o em lodos os sentidos.

Eram ao mesmo tempo hábeis pilotos e cons-

cienciosos escriptores, registavam o que recolhiam

na observação directa dos phenomenos, e assim

iam desmentindo as falsidades da sciencia escholas-

tica e fundando a moderna geographia, Duarte Pa-

checo no Esmeraldo, Diogo Gomes de Cintra nas

suas Relações de prima inventione Guinea, João de

Lisboa na Arte de Marinharia e Tratado da agulha

de marear, Manuel de Figueiredo no Tratado de na-

vegação ^, D. João de Castro no Roteiro de Lisboa a

Goa, e outros.

Explicava Duarte Pacheco, que tão precisa-

mente apontara as origens do saber português, di-

1 Traduzido em francez por Nicolau Le Bon.

Page 155: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 151

zendo «que a experiência é a mestra da vida», a

razão da ignorância dos antigos : « somente por

causa d'aquelles que o orbe descreveram carece-

ram do exercicio e fundamento da arte de mari-

nharia ».

Dizia no começo do século XVI o grande geo-

grapho português Pedro Nunes, auctor do nónio,

na Defensão da carta de marear: «estes descobri-

mentos de costas, illias e terras firmes não se fize-

ram indo a acertar, mas partiam os nossos navega-

dores mui ensinados e providos de instrumentos e

regras de astrologia (astronomia) e geometria, que

são as cousas de que os cosmographos hão de an-

dar apercebidos».

No seu Roteiro mostrava D. João de Castro como

se adquiriram os conhecimentos rigorosos da na-

vegação : «quantas vezes estive mettido debaixo

das bravas ondas por saber o fundo das barras e

para que parte endereçavam os canaes, e entrada

dos rios, até então nunca lavrados, cobertos de

bravo matto ; e assim mesmo que para alcançar a

verdade das rotas, fluxos do mar, voltas e reman-

sos de rios, surgidouros de portos, abrigo de en-

seadas, differença das agulhas, altura das cidades,

e fazer taboas de cada logar e rio em que se con-

Page 156: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

152 A Descoberta do Brasil

tem a mostra da terra, baixos, restingas, rotas, e

como se devem de entrar, perdi muita parte da

saúde e disposição natural».

Assim poderam vencer as fabulas, as lendas

que davam o mar como innavegavel.

Refere-se o Esmeraldo, pag. 98, a essas lendas:

« os escriptores que d'aquellas partes falaram, es-

creveram d'ellas tantas fabulas, por onde a todos

pareceu impossível que os indianos mares e terras,

do nosso occidente se podessem navegar 5> ^; « Vasco

da Gama... por capitão de suas naus e gente a

descobrir e saber aquelles mares e terras com que

os antigos nos punham tão grande medo e espanto

;

e indo com muito trabalho achou o contrario do

2que... os antigos escriptores disseram

Resumia assim o cosmographo Pedro Nunes o

resultado das navegações de Portugal: « Tiraram-nos

muitas ignorâncias e mostraram-nos ser a terra

maior do que o mar, e haver ahi antipodas, que

até os santos duvidaram, e que não ha região que,

nem por quente, nem por fria, se deixe de habitar.

* Ed. Epiphanio, pag. 151.

2 Idem., pag. 152.

Page 157: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 153

E que em um mesmo clima e egual distancia do

equinócio, ha homens brancos e pretos, e de mui

differentes qualidades. E fizeram o mar tão chão,

que não ha hoje quem ouse dizer que achasse no-

vamente alguma pequena ilha, alguns baixos, ou

sequer algum penedo que por nossas navegações

não seja descoberto ».

Deve-se ao infante D. Henrique a invenção das

cartas hydrographicas planas; e ao português Fer-

nando (1483) ^ a primeira bússola completa com a

rosa dos ventos. Foi inventada a contagem das lon-

gitudes com o relógio pelo piloto João de Lisboa em

1514; só se vulgarisou na Europa muito mais tarde.

E obra da junta dos cosmographos de D. João II

o aperfeiçoamento do astrolábio, assim como o das

taboas astronómicas applicadas á navegação. Foram

os portugueses os primeiros a reconhecer, a expli-

car ou a registar o fogo de Sant'Elmo, as nuvens

do Cabo, as trombas d'agua, a declinação da agu-

lha, as marés, as monções e os tremores de terra

submarinos. Registaram o cruzeiro do sul em 1500,

quando só em 1517-1520 André Corsali e Pigafetta

o tornam conhecido do resto da Europa; e em 1514

^ Prioridade que até os francezes nos reconhecem.

Page 158: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

154 -^ Descoberta do Brasil

orientam-se já por elle, quando só em 1545 a arte

de navegar de Pedro Medina dá a conhecer aos ou-

tros povos o novo methodo de determinação de la-

titudes.

Assim, no desaccordo com os pilotos e os cos-

mographos portugueses, era Colombo quem repre-

sentava os erros do passado, e elles quem prepa-

rava o saber do futuro.

Esse conflicto de opiniões, que tem sido sempre

referido desfavoravelmente para Portugal, constitue

um titulo de gloria, porque era o conflicto entre o

magister dixit dos antigos, e a sciencia experimental

da Renascença.

Tinham os portugueses libertado a Europa das

pavorosas lendas da Edade Media, e possuíam a

consciência da sua grande missão.

« A experiência, diz ainda o Esmeraldo, nos faz

viver sem engano das abusões e fabulas que alguns

antigos cosmographos escreveram acerca da descri-

pção da terra e do mar ».

Acreditava porém Colombo muitos dos absurdos

da Edade Media e estava por tal forma obsecado,

e era tão falto de critério, que a experiência das

coisas não o convencia da verdade.

Pintam os seus panegyristas Colombo como

Page 159: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 155

um predestinado, um visionário, um homem de gé-

nio que adivinhara um mundo e o oíferecia por toda

a parte; um arrojado marinheiro cuja vida, um ro-

sário de aventuras, o trouxera a nado a Portugal;

um fidalgo de nobre linhagem, de uma familia de

almirantes, tendo cursado a universidade de Pavia

e iniciado bem cedo os trabalhos do mar. Era Co-

lombo um operário, descendia de uma modesta fa-

milia de operários que, quando muito, o poude man-

dar aprender a lêr; não fizera estudos universitários,

nem carreira marítima, pois em 1472 ainda era te-

celão ^. Pintavam-o porém vindo a Portugal apre-

sentar um luminoso plano, que a ignorância dos

portugueses recusou; que a perfídia do rei lhe quiz

roubar, emquanto pretendiam assassinal-o os inve-

josos!

Que poderia ensinar esse modesto operário n'um

paiz em que havia mappas como o de Pêro Vaz

Bisagudo, com o Brasil marcado antes de 150O;

e outros, de tal valor, como aquelle em que Ma-

galhães viu o estreito do sul da America a que

^ Foi rigorosamente traçada em face de documentos a bio-

graphia de Colombo por Henry Harrisse, Christophe Colomb, son

origine, sa vie, etc. (Paris 1 884-1885).

Page 160: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

156 A Descolerta do Brasil

ligou o seu nome ; onde se dispunha de preciosas

informações das correntes commerciaes do oriente,

de Calecut e da costa oriental da Africa, obtidas

pelos portugueses e pelos mouros e judeus de seus

reinos?

Que podia ensinar esse pobre tecelão aos mari-

nheiros que ha mais de setenta annos proseguiam

methodicamente a exploração das terras d'Africa e

dos mares do occidente, attingindo vários pontos da

America e traçando todos os portos e bahias do lit-

toral africano com a maior precisão ; detalhando as

barras e rios, os pontos de referencia para o conhe-

cimento das terras, as profundidades e o estado do

fundo para as ancoragens, e calculando as marés

para as entradas e saídas, como se vê no Esmeraldo,

esse admirável repositório da sciencia náutica?

Nada conhecia Colombo de cosmographia nem

de pilotagem ao chegar a Portugal, onde veiu como

tantos outros estrangeiros tentar fortuna. Foi aqui

que apprendeu o pouco que sabia.

Mas elle mesmo reconhecia que o homem não

precisa de estudar; acreditava na sciencia innata, na

sciencia revelada; cria que por intermédio do Espi-

rito Santo tanto podia saber um homem como uma

creança, ou como um boi!

Page 161: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 157

Em 1502, dez annos depois de chegar ás Anti-

lhas, quando já tinha tido tempo para obter conhe-

cimento directo das terras a que aportara, ainda

continuava obsecado Colombo por uma das fabulas

de Marco Polo, os milhares de ilhas das especiarias.

Escrevia ao papa n'essa data:^ «Descobri este

caminho e ganhei mil e quatrocentas ilhas e tresen-

tas e trinta e três léguas de terra firme da Ásia ».

Communicava-lhe n'outra occasião :^ « Aqui me or-

denou nosso redemptor o caminho. Ali puz sob o

seu senhorio mais terra que Africa e Europa e mais

de mil e setecentas ilhas ^, além da Hespanhola ^

que é maior que toda a Hespanha».

Levava- o a sua cegueira a julgar-se na Ásia,

apezar de Vasco da Gama e Pedro Alvares Cabral

já terem regressado da índia e considerarem os por-

^ Navarréte, vol. 11, pag. 311. Todas as citações d'esta

obra se referem á 2.* edição.

^ Idem, idem, pag. 283.

3 Ora as ilhas do mar das Antilhas são cerca de noventa.

Colombo tinha reconhecido bem poucas.

* Haiti. Como esclarecimento diremos que esta ilha tem a

superfície de 77:250 kilometros quadrados e a Hespanha 495:000.

Page 162: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

158 A Descoberta do Brasil

tuguêses a America como uma terra differente, a

quarta parte do mundo

!

Acreditava piamente na lenda da localisação do

Paraíso, que vem traçado no mappa de Bianco, e

tinha uma tão forte convicção d'isso que não duvi-

dava participar ao papa ter lá chegado! Eis as

suas palavras na carta citada: «Cri e creio... que

ali... é o paraíso terreal».

Era tão bom marinheiro, tão certo do que fazia,

que se gabava de ter chegado ás Antilhas apenas

guiado pelas prophecias de Isaias :^ « Para a exe-

cução da empreza das índias não me servi de ra-

ciocínios, nem de mathematicas, nem de mappa-

mundos ».

Se tivesse recorrido á mathematica não chegaria

a parte nenhuma, porque, a julgar pelo calculo do

fim do mundo, as sciencias positivas não eram o seu

forte. « Segundo esta conta, diz Colombo ^ não fal-

tam senão cento e cincoenta annos para cumpri-

mento dos sete mil, nos quaes, como digo acima,

^ Navarrete, vol. ii, pag. 289. Extracto do livro de pro-

phecias de Colombo.

2 Livro das prophecias de Christovão Colombo. Navar-

rete, vol. II, pag. 204.

Page 163: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 159

pelas auctoridades citadas, terá de acabar o mundo ».

Escrevia isto em 13 de setembro de 1501. O mundo

devia portanto acabar pelas suas contas em 13 de

setembro de 1658.

Colombo não acreditava apenas nas lendas do

paraíso e nos milhares de ilhas das especiarias, cria

que em certos países os estrangeiros ficavam sem-

pre na edade em que entravam e não estava intei-

ramente emancipado de varias outras.

Nas palavras ^ em que se refere a sua ida em

1498 á ilha de Santiago, mais ao sul do rumo que

levara das outras vezes ás Antilhas, transparece

um pouco do receio que lhe inspiravam o Mar Te-

nebroso e a zona tórrida inhabitavel : « disse que,

depois que chegou, nunca viu o sol nem as estrel-

las, mas o céo coberto de tão expessa neblina,

que parece que a podiam cortar á faca, e calor in-

tensíssimo que os angustiava ».

Restavam no seu espirito algumas sombras dos

vagos terrores da Edade media. Não navegava con-

fiadamente, não se fazia ao largo com segurança,

1 Las Casas, Historia de las índias, livro i, capitulo 130-

e 132.

Page 164: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

lóo A Descoberta do Brasil

não viajava com a serenidade e a tranquillidade dos

nossos ; vestia o habito de S. Francisco, cingia os

cordões da ordem e andava sempre com o credo

na boca, como diz o povo.

Ao narrar a terceira viagem ás Antilhas copia

Las Casas ^ as suas palavras: «Disse... que ia em

nome de Santíssima Trindade... com propósito de

navegar ao Austro. . . e despediu a outros três na-

vios em nome da Santa Trindade... entende com

ajuda da Santíssima Trindade... caminho que le-

vava d'aquellas ilhas ao Austro e Melodia em nome

da Santa e indivisível Trindade ».

Eram muito usuaes e repetidas estas suas ma-

neiras de falar.

Não procedia assim Colombo porque fosse ex-

tremamente religioso, sinceramente religioso, o apos-

tolo que nos querem descrever, o santo que até já

pretenderam canonisar.

Usava o escapulário como podia usar um amu-

leto, porque em verdade o que n'elle predominava

não eram as crenças christãs, mas um mixto de

* Las Casas, Historia de las índias, livro i, capitulo 130

e 132.

Page 165: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil l6i

crendices terroristas, pagãs: «e digo que não so-

mente o Espirito Santo revela as coisas futuras ás

creaturas racionaes, mas noÍ-as mostra por signaes

do céo, do ar e dos animaes quando lhe apraz,

como foi do boi que falou em Roma no tempo de

Júlio César » ^

Não podia fazer grande ideia de Colombo, nem

acreditar na sciencia de que alardeava, quem co-

nhecia taes opiniões.

N'uma carta ^ ao rei de Portugal, relativa á co-

pia mandada tirar secretamente de um livro feito

por elle acerca das demarcações do tratado de

Tordesillas, dizia-se : « E ainda que aquillo não seja

verdade, como parece, deve Vossa Alteza mandar

vel-o por cosmographos, porque também os theolo-

gos vêem o Alcorão». O Alcorão era considerado

então um livro mentiroso, falso, absurdo, uma ver-

dadeira burla, a hurla do Alcorão, no dizer de

Duarte Pacheco.

* Livro das prophecias de Christovão Colombo. Navarrete,

vol. II, pag. 294.

^ Carta de D. Duarte de Almeida a el-rei D. João iii. Al-

guns documentos, etc, pag. 518.

11

Page 166: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

102 A Descoberta do Brasil

Ao livro de Colombo, como se vé, era ligada

muito pouca importância.

Resume João de Barros^, que só deve ser ci-

tado por estar de accordo com esse documento, e

com outros factos, nestas palavras, a opinião for-

mada a respeito d'elle: « El-rei, porque via ser este

Christovão Colombo homem falador, e glorioso em

mostrar suas habilidades, e mais phantastico e de

imaginação com a sua ilha de Cipango, que certo

do que dizia, dava-lhe pouco credito... todos hou-

veram por vaidade as palavras de Christovam Co-

lombo, por tudo ser fundado em imaginações e coi-

sas da ilha Cipango de Marco Polo ».

Apezar da opinião contraria de D. João II, dos

cosmographos e dos navegadores portugueses, ao

chegar ás Antilhas julgou Colombo ter attingido a

índia, querendo vêr na costa de Cuba o littoral da

extrema Ásia.

Mas não se limitava Colombo a acreditar esse

absurdo ; impunha-o a todos, e obrigava a que o

acreditassem.

Despeitado, sem duvida, porque em Portugal ne-

1 Décadas da Ásia, l.», livro iii, cap. xi, f. 57.

Page 167: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 163

gavam o alcance d'essa descoberta, fez Colombo

em 1494 um inquérito da opinião dos seus pilotos

e marinheiros, para provar que a costa de Cuba

era a da Ásia, mandou lavrar um auto de todas

essas opiniões, e ameaçou com 10:000 maravedis de

multa, cem açoites, e a lingua arrancada os que de-

pois affirmassem o contrario, isto é, os que disses-

sem a verdade, os que teimassem que era uma

ilha. Isso mostra que, mesmo entre os seus, havia

quem partilhasse a opinião da escola portuguesa.

Eis as palavras do próprio auto : k requereu a

mim, escrivão, o dito senhor almirante... que eu

pessoalmente, com boas testemunhas, fosse a cada

uma das três caravelas e requeresse publicamente

ao mestre e tripulação, e a toda a gente que n'ellas

está, que dissessem se tinham alguma duvida dê

que esta terra não fosse a terra-firme do começo

das índias, e do fim para quem a estas partes qui-

zesse vir de Hespanha por terra. . . assim como o

dito senhor almirante me havia requerido, eu re-

queri a elles, e lhes puz a pena de dez mil mara-

vedis, e a lingua cortada por cada vez que o con-

trario disserem do que agora digam, e se for gru-

mete ou pessoa de tal classe dar-lhe-hiam cem

açoutes e lhe cortariam a lingua».

Page 168: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

104 A Descoberta do Brasil

Ia na frota um português pelo menos, Pedro de

Salas, grumete, natural de Lisboa. Sabe-se de uma

opinião contraria, a do abbade de Lucerna, que

como cosmographo, conhecia o erro de Colombo, e

afíirmou, como os portugueses, que Cuba era uma

ilha e não a costa da Ásia aonde todos procuravam

chegar.

Por causa d'isso não lhe consentiu o almirante

que regressasse a Castella.

Radicou-se este procedimento a ponto de na

legislação hespanhola, até 1618, ser prohibido,

sob pena de morte, considerar Cuba como uma

ilha!

Compare-se tão extraordinário proceder com

aquelle persistente investigar da verdade, aquella

exploração cuidadosa dos mares e terras, aquella

solida e admirável sciencia experimental dos portu-

gueses !

São mais que o magister dixit do passado, a tei-

mosia de Colombo, a imposição á força das suas

opiniões, a violenta prohibição da verdade ; consti-

tuem o verdadeiro crê ou morres inquisitorial.

Não se sabe o que trouxe Colombo a Portugal.

Suppõe-se que viesse tentar fortuna como outros

genoveses que se dedicavam ao commercio.

Page 169: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 165

Em 1472, ao citar o seu testemunho em Savone,

ainda um tabelião o trata por tecelão de Génova.

Estava Colombo em Savone desde 1470, com

seu pae que era tecelão, e se estabelecera ao

mesmo tempo com uma taberna.

Casara a irmã com um queijeiro-salchicheiro do

bairro dos tecelões. Deve talvez íixar-se em 1473

a sua vinda a Portugal.

Diz-se que Colombo teve na Madeira uma casa

de pasto, onde morreu o piloto Affonso Sanches ao

regressar das Antilhas, deixando-lhe os seus map-

pas. N'essa ilha casou com a íilha de Bartholomeu

Perestrello, já fallecido. A sogra deu-lhe os papeis

e cartas d'elle que, com os de Affonso Sanches,

constituiram a base dos seus conhecimentos náu-

ticos.

Descreve assim Las Casas ^ os objectos de Pe-

restrello : « instrumentos e escriptos e pinturas (car-

tas e mappas) convenientes á navegação, os quaes

deu a sogra ao dito Christovão Colombo, que com

a vista e leitura d'elles muito se alegrou. Com estes

se crê haver sido instigada e excitada a sua natural

* Cap. IV, pag. 51, da Historia de las índias.

Page 170: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

lóó A Descoberta do Brasil

inclinação». Completou os conhecimentos obtidos

por esses importantes papeis embarcando em na-

vios portugueses : « resolveu ter por experiência o

que então do mundo pela parte de Ethiopia se an-

dava e praticava pelo mar, diz Las Casas ^, e as-

sim navegou algumas vezes aquelle caminho em

companhia dos portugueses, como pessoa já resi-

dente e quasi natural de Portugal ».

«Estive no forte de S. Jorge da Mina, perten-

cente ao rei de Portugal » ^, diz o mesmo Christovão

Colombo em nota do próprio punho, num dos li-

vros que lhe pertenceram. Datava de 1482 a cons-

trucção d.'essa fortaleza.

Foi em Portugal que Colombo aprendeu o que

sabia do mar, foi em Portugal que teve conheci-

mento pratico da existência de terras ao occidente,

terras que julgou a índia, em vista das opiniões já

referidas.

Reúne Las Casas ^ tudo o que Colombo soube

em Portugal das terras da America, e considera

^ Cap. IV, pag. 51, da Historia de las índias,

2 Henry Harrisse, obra citada, vol. ir, pag. 265.

3 Cap. XIII da obra citada.

Page 171: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 167

essas informações, que extrae dos seus próprios

papeis, como inspirações com que Deus procurava

leval-o á realisação do seu projecto: «por muitas

maneiras dava Deus motivos e causas a Christovão

Colombo para que não duvidasse cometter tão

grande façanha ».

E bastante suggestivo o titulo do capitulo: «no

qual se contem muitos e diversos indicios e signaes

que por diversas pessoas Christovão Colombo era

informado, que lhe deram a certeza de haver terra

n'èste mar Oceano para este lado do poente».

Começa por estas palavras bem claras e con-

cludentes o capitulo XIV: «Resta concluir 'esta ma-

téria dos motivos que Christovão Colombo teve

para offerecer-se a descobrir estas índias », o que

mostra que os motivos para offerecer-se foram as

informações que obteve em Portugal.

E ao terminar esse mesmo capitulo deduz Las

Casas de tudo o que transcreveu dos papeis de Co-

lombo: «ou por esta occasião ou por parte d'ellas

ou por todas juntas, quando elle se determinou ia

tão certo de descobrir o que descobriu, como se

dentro do seu quarto e fechado á chave o tivesse ».

Depois de referir as razões de auctoridade, as

opiniões dos antigos, diz Las Casas que Deus quiz

Page 172: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

l68 A Descoberta do Brasil

dar-lhe assim « outras razões de experiências mais

palpáveis ».

E entra no assumpto, as informações dos pilotos

portugueses, d'esta maneira: «Diz, pois, Christovão

Colombo entre outras cousas que pôz por escripto

em seus livros, que falando com homens do mar,

pessoas diversas que navegavam os mares do Occi-

dente...» Eis as informações: Disse-lhe Martim

Vicente, piloto do rei de Portugal, que encon-

trou no mar, a 450 léguas a oeste do Cabo de

S. Vicente, um madeiro lavrado sem ser com ferro,

que suppunha proceder de alguma ilha ou ilhas

que houvesse a occidente porque o vento soprava

de oeste ha muitos dias. Asseverou-lhe Pedro Cor-

reia \ casado com uma irmã de sua mulher, que na

ilha de Porto Santo tinha visto outro madeiro tra-

zido pelo mesmo vento e lavrado da mesma forma

e que também vira canas muito grossas.

«E isto mesmo diz Christovão Colombo, conti-

nua Las Casas, que ouviu affirmar ao Rei de Por-

^ Pedro Correia, íidalgo da casa do infante D. Henrique,

comprou a capitania da ilha do Porto Santo a Bartholomeu Pe-

restrello seu cunhado, filho do primitivo capitão donatário. A

carta de confirmação é de 17 de maio de 1458.

Page 173: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 169

tugal, fallando com elle em outros assumptos, e

que el-rei lh'as mandou mostrar. O que teve por

certo, (diz Christovão Colombo) serem as ditas ca-

nas de algumas ilhas ou ilha que não estavam muito

longe, ou trazidas da índia com o Ímpeto do vento

e do mar». Monetário ao aconselhar a D. João II

o caminho do occidente dava-as como indicio da

proximidade de Catay: «são signaes... as canas

que a tormenta lança da praia do oriente ás praias

das ilhas dos Açores ».

Note-se bem que o rei, longe de esconder essas

provas de terra ao occidente, as mostra a Colombo,

como elle próprio confessa, e lh'as mostra da mesma

forma que lhe indica a situação do Brasil \

Entre as informações que em Portugal obtém

das terras da America, recebe Colombo directa-

mente do próprio rei.

Mas é matéria corrente, e tem passado até hoje

sem muito protesto, que D. João II procurou des-

vendar o segredo (!) do plano de Colombo, e ten-

tou secretamente roubar-lhe a gloria, mandando ao

occidente uma caravela, cuja tripulação recuou

* Veja-se capitulo xi.

Page 174: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

1 70 A Descoberta do Brasil

apavorada pela extensão do mar, sem ter conse-

guido encontrar terra !

Continua Las Casas : « Por alguns habitantes

das ilhas dos Açores, era informado Christovão Co-

lombo de que, soprando ventos fortes de poente e no-

roeste, trazia o mar alguns pinheiros, e os lançava

nas costas d'aquellas ilhas, em especial da Gra-

ciosa e do Fayal... Outros lhe disseram que á

ilha das Flores... tinha levado o mar dois cadá-

veres, de caras muito largas e de feições differentes

dos christãos ».

Dizia outra informação que tinham visto no

Cabo da Verga ^, e por ahi perto, « almadias ou

canoas com casa movediça, as quaes porventura,

passando de uma ilha a outra, ou de um logar a

outro, tinham sido levadas pela força do vento e

do mar ».

Affirma Las Casas que, além d'estes fortes in-

dicios, teve conhecimento Colombo das viagens do

navio português que em I447 foi á Groenlândia,

da ida de Diogo de Teive em 1450 até ás proxi-

midades do Lavrador, das descabertas de Vicente

1 Ao sul da Guiné Portuguesa.

Page 175: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 171

Dias, António Leme e Affonso Sanches (1473- 1484),

da concessão a Fernão Domingues do Arco (1484)

e das viagens dos Corte-Reaes começadas em 1472.

Eram de tal valor todas estas informações que

acerca do seu alcance dizia ainda :^ « quando de-

terminou procurar um príncipe christão que o

ajudasse e o protegesse, já elle tinha a certeza de

que havia de descobrir terras, e gentes nellas,

como se n'ellas pessoalmente tivesse estado (do

que certamente não duvido) ».

Tinha pois Colombo a certeza de que existiam

terras ao occidente, recebera essa indicação de pi-

lotos portugueses, viajara muitas vezes com elles.

Não duvidava Las Casas de que mesmo ás terras

do occidente já tivesse ido

!

Eis a verdadeira historia do homem e do feito,

baseiada em documentos irrecusáveis, em narrativas

de contemporâneos insuspeitos, e nas suas próprias

palavras.

N'um determinado momento offerece-se Colombo

aos reis de Castella para ir á índia.

Para explicarem o motivo porque saiu de Portu-

gal, indo pôr-se ao serviço de outro país, a causa

* Las Casas, cap. v, pag. 55.

Page 176: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

172 A Descoberta do Brasil

porque deixou a terra onde apprendera náutica,

onde obtivera o conhecimento das terras da Ameri-

ca, onde casara e lhe nascera o primeiro filho, di-

zem os seus panegiristas que fugiu porque o inve-

javam e hostilisavam como extrangeiro, porque lhe

tinham procurado roubar o plano, porque preten-

diam prendel-o e matal-o, afim de que o não fosse

apresentar em Castella.

Embora fale levianamente Humboldt do ódio na-

cional, não podia Colombo ser maltratado pela sua

qualidade de extrangeiro, porque andaram sempre

ao serviço de Portugal nos descobrimentos, nas ex-

plorações commerciaes e na colonisação das novas

terras muitos extrangeiros como os Cezares, Cata-

neos, Salvagos, Lomellinos, Dorias, Grimaldi, os

Nolas (António, Bartholomeu e Raphael), o caval-

leiro Valarte, Jacome de Malhorca, Aluise de Ca da

Mosto, João da Nova, Antonietto Usodimare, Gui-

lherme Vandaragen, Martim Behaim, Jos Dutra,

Américo Vespuci, Jean Baptista, Jacome de Bruges

e tantos outros.

Para que lhe quizessem roubar o plano, era pre-

ciso, em primeiro logar, que existisse esse plano e,

como já vimos, Colombo tratava de um assumpta

que toda a gente conhecia, que não tinha nada de

Page 177: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 173

particular nem de novo, cuja eficácia não residia

em nenhum segredo.

Ter saído de Portugal por qualquer d'esses mo-

tivos devia tornar-lhe odioso o rei e o país. Pelo

contrario, continua Colombo nas melhores relações

com D. João II e com os portugueses, e sempre

que se lhes refere é com palavras de elogio.

N'uma carta ao rei de Castella diz «fui aportar

a Portugal, cujo rei entendia de descobrimentos

mais que nenhum outro ».

Desculpando-se por não mandar navios carre-

gados de ouro, apontava em ar de censura aos

reis castelhanos: « o grande coração dos príncipes

de Portugal, que ha tanto tempo proseguem na em-

preza de Guiné, e também na de Africa, onde gas-

taram metade da gente do reino».

É tão importante o alcance d'este elogio, que

até a forma de dizer é a mesma do Esmeraldo, o

que mostra que Colombo sentia pelos trabalhos

portugueses a mesma admiração que os nacionaes.

Eis o que escreve Duarte Pacheco pela mesma

época: «o grande engenho dos nossos príncipes...

e a grandeza de seus corações, que tiveram, para

no descobrimento doestas terras díspenderem seus

thesouros ».

Page 178: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

174 -^ Descoberta do Brasil

Ao escrever-lhe em 1488, trata-o D. João II por

« especial amigo ».

Ao vir a Lisboa em 1493 é admiravelmente re-

cebido pelo rei, como adiante veremos. Pela sua

parte, ao sair para as Antilhas em 1503, sabendo

Colombo que os portugueses estavam cercados pe-

los moiros em Arzilla, foi soccorrel-os com a frota,

não sendo já preciso o seu auxilio quando che-

gou.

Deixam prever o testamento de Colombo, e a

carta que o rei lhe dirigiu, garantindo-lhe que po-

dia regressar, que a sua saída foi a solução para a

insolvência, assoberbado por dividas que não podia

satisfazer.

Eis o seu testamento :^ « Digo e mando a

D. Diogo, meu filho, ou a quem herdar, que pague

todas as dividas que deixo em um memorial, pela

forma que ali diz, e mais as outras que justamente

parecer que eu deva».

Lia-se no memorial: «Relação de certas pessoas

a quem eu quero que se dê dos meus bens o con-

1 Testamento de Colombo feito em 19 de maio de' 1506.

Navarrete, vol. 11, pag. 346.

Page 179: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 175

tido n'este memorial, sem que se tire coisa alguma.

Ha dar-se-lhes de tal forma que não saibam quem

o manda dar... A António Vaso, mercador geno-

vês que costumava viver em Lisboa, dois mil e qui-

nhentos reaes de Portugal... A um judeu que mo-

rava á porta da judiaria em Lisboa ... o valor de

meio marco de prata... Aos herdeiros de Luiz

Centurion Escoto, mercador genovês, trinta mil

reaes de Portugal... A esses mesmos herdeiros e

aos herdeiros de Paulo de Negro, genovês, cem du-

cados ... A Baptista Espindola ou aos seus herdei-

ros... vinte ducados. Este Baptista Espindola é

genro do sobredito Luiz Centurion... y por signal

residiu em Lisboa em 1482 ».

A obrigação contraída para com os credores, re-

fere-se D. João II, em carta de I488, em resposta a

outra de Colombo que se desconhece, dando-lhe um

salvo conducto para que não fosse incommodado e

podesse regressar livremente:

« E porque por ventura tereis algum receio das

nossas justiças, por razão de algumas coisas a que

sejaes obrigado, nós por esta carta vos assegura-

mos pela vinda, estada e tornada, que não sejaes

preso, retido, acusado, citado nem demandado por

nenhuma cousa, ou seja civil ou criminal, de qual-

Page 180: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

17Ó A Descoberta do Brasil

quer penalidade. E por ella mesmo mandamos a to-

das as nossas justiças que o cumpram assim ».

Provam, da forma mais completa, estes dois im-

portantes documentos, que não foi por aggravos do

rei que Colombo saiu de Portugal. Pelo contrario, é

ao rei que pede um salvo conducto, para poder vol-

tar sem ser demandado ou preso pelos seus credo-

res.

Mas tem ainda muito mais alcance a carta de

D, João II \ evidenciando que, em vez de ser repel-

lido, Colombo foi bem tratado pelo rei; e fazendo

sobresair, pela comparação com outros documentos,

a falta de caracter do tão falado genovês.

Responde D. João II a uma carta de Colombo

cujo assumpto se deprehende d'essas palavras

:

« Vimos a carta que escrevestes e a boa vontade e

affeição que por ella mostraes ter ao nosso serviço.

Vos agradecemos muito. Emquanto a que vossa in-

dustria e bom engenho nos será necessário nós o

desejamos e prazer-nos-ha muito que viésseis, por-

que, em o que vos toca, se dará tal forma que vós

devaes ser contente ».

* Navarrete, documento diplomático n.^ 3, do arcMvo do

duque de Veraguas.

Page 181: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 177

Offerecera-se Colombo, acceitára o rei os seus

serviços, promettendo que o devia satisfazer a

paga. Ora não havendo documento de em qualquer

outra occasião ter Colombo offerecido os seus ser-

viços ao rei, pôde concluir-se que foi esta a tão fa-

lada offerta de um mundo, que, no dizer dos seus

panegyristas, D. João II regeitou. Ao contrario do

que se diz, o rei acceita-os, e até lhe diz que ficará

contente no que lhe toca.

Sabia o rei de Portugal que Colombo havia

navegado com os nossos, estivera na Mina e conhe-

cia as terras da America, pois elle próprio lhe mos-

trara os signaes de terra ao occidente, e lhe reve-

lara a existência do Brasil. Convinha-lhe portanto

evitar que em Castella aproveitassem o que esse

homem sabia dos descobrimentos. Tinha pois toda a

conveniência em fazel-o voltar a Portugal.

Ora ao mesmo tempo que se offerecia ao rei

português, mostrando boa vontade e affeição pelos

seus interesses, estava Colombo ao serviço dos reis

de Castella. Estabelecem documentos do real ar-

chivo de Simancas ^ que em 1487 recebeu 14:000

maravedis. Não fora qualquer aggravo d'esses mo-

1 Navarette, vol. 11, pag. 8.

12

Page 182: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

178 A Descoberta do Brasil

narchas que o levara a offerecer-se a Portugal. Ti-

nha Colombo recebido dinheiro, e continuava rece-

bendo. É de 20 de março de 1488 a carta de

D. João II, em resposta á sua offerta. Pois em 15

de outubro de 1487 havia recebido 3:000 maravedis,

e em 16 de junho de 1488 outros 3:000!

É ainda excedida essa dualidade pela forma

como Colombo altera a verdade dos factos, contra-

dizendo-se a cada passo, e dando-se como possui-

dor das terras do occidente.

Tendo-se offerecido a D. João II diz depois que

foi elie quem lhe fez grandes promessas : « respondi á

França, á Inglaterra e a Portugal que para el-rei e

rainha, meus senhores, eram essas terras e senho-

rios. As promessas não eram poucas nem vãs» ^.

Tempo depois, em carta ao rei catholico, torna

a alardear as fingidas propostas, de que se ser-

via para mais engrandecer o que fizera : « Deus

nosso senhor milagrosamente me trouxe aqui para

que eu servisse a V. A... digo milagrosamente

porque houve cartas de pedido de três príncipes » ^

E nessa mesma carta põe-se em contradicção

* Navarrete, vol. ir, pag. 282,

2 Idem, vol. iii, pag, 527.

Page 183: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 179

comsigo próprio, e sempre com a carta de D. João II:

«Digo milagrosamente, porque fui ter a Portugal,

cujo rei entendia de descobrimentos mais que ne-

nhum outro; elle (Deus) lhe atalhou a vista, ouvido

e todos os sentidos que em quatorze annos não lhe

poude fazer comprehender o que digo ».

Não são estes os únicos documentos em que

falta á verdade para engrandecer-se, fazer-se valer,

tratar dos seus interesses.

No diário da primeira viagem manifesta Co-

lombo os conhecimentos obtidos em Portugal, por-

que não viaja ao acaso, tem exactas noções da

terra para onde se dirige, e das ilhas que a prece-

dem, por entre as quaes precisa de atravessar para

chegar ao continente.

Escreve em 3 de outubro : « não se quiz deter

barlaventeando a semana passada, e estes dias em

que via tantos signaes de terra, ainda que tinha co-

nhecimento de certas ilhas n'aquella região, para

não se demorar, pois o seu fim era ir ás índias ».

Era exacto o conhecimento que mostrava das ilhas;

descrevia-as na verdadeira posição: «teve por certo

que á banda do norte e do sul havia algumas

ilhas... ia por meio d'ellas, porque a sua vontade

era de seguir adeante até ás índias . . . prazendo a

Page 184: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

l8o A Descoberta do Brasil

Deus á volta tudo se veria». Effectivamente ao

norte e ao sul da ilha em que Colombo tocou ha

muitas das Antilhas, e para chegar ao continente é

preciso passar por entre ellas.

Mas não é só n'isto que se revelam os conheci-

mentos adquiridos em Portugal. Em 7 de outubro

vê pássaros que teem como signaes de terra « por-

que sabia. . . que as mais ilhas que teem os portu-

gueses pelas aves as descobriram ».

Estava tão aífeito Colombo ás expressões, usos

e costumes de Portugal, que até contava pelo nosso

dinheiro: «vi dar ló novellos de algodão por três

ceitis de Portugal», e emprega a phrase portuguesa

« maré de ingente » (enchente) na parte do diário

de 13 de março.

Em 4 de novembro falia em «um português que

tinha em seu navio » , talvez um piloto dos que co-

nheciam a viagem da America!

Ao regressar da sua primeira ida ás Antilhas,

arriba Colombo a Santa Maria, por causa do tem-

poral.

Perguntando-se-lhe quem era e de onde vinha,

respondeu com tal orgulho dos seus titulos de almi-

rante e vice-rei, e das auctorisações que lhe tinham

dado os reis catholicos, ameaçando arrazar a ilha

Page 185: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil l8l

se não lhe restituíssem alguns marinheiros idos a

terra, que o governador * lhe respondeu briosa-

mente como se vê na parte do diário de iç de fe-

vereiro : « então respondeu o capitão e os demais

que não reconhecem aqui o rei e a rainha de Cas-

tella nem suas cartas, nem lhes tinham medo, antes

lhes dariam a saber quem era Portugal, quasi

ameaçando ».

No dia 22, porém, o governador mandou a bordo

alguns frades e fidalgos, para verem a carta em que

os reis de Castella recommendavam aos outros mo-

narchas o seu almirante e, reconhecida como au-

thentica, deixou-o sair livremente.

Ora João de Castanheira não só tinha direito de

prender Colombo, mas era expressamente obrigado

a fazel-o pela legislação em vigor. Constituía a na-

vegação do Atlântico um exclusivo da coroa, ou dos

infantes a quem era concedido. Sem expressa li-

cença d'elles ninguém podia navegar. Eram graves

as penalidades e severas as ordens a tal respeito.

* Era João de Castanheira o governador, a quem Colombo

chama João de Castaiieda, um dos povoadores de Santa Maria,

que depois passou a residir em S. Miguel, onde ainda hoje o Pico

da Castanheira conserva o seu nome.

Page 186: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

l82 A Descoberta do Brasil

Dizia uma carta de doação \ de D. Affonso v

ao infante D, Henrique: «ninguém passe além do

dito cabo Bojador sem seu mandado e licença; e os

que passarem nos apraz que percam, para o dito

infante meu tio, o navio ou navios em que assim lá

forem, e tudo o que de lá trouxerem. E mandamos

ao nosso corregedor da corte, e a todas as nossas

justiças, que assim o cumpram sem alguma duvida

ou embargo que a isso ponham, e, fazendo o con-

trario, sejam certos que tornaremos a elles, como

aos que não cumprem nosso mandado ». Davam as

cartas de 3 de fevereiro de 1446 e 25 de fevereiro

de 1449 o mesmo direito ao infante, e a de 10 de

novembro de 1475 fazia egual concessão a Fernão

Telles nas terras do occidente.

No tratado celebrado em Toledo ^ em 6 de

março de 1480 promettiam os reis de Castella « que

não mandarão por si nem por outro nem consenti-

rão, antes prohibirão que sem licença dos ditos se-

nhores rei e príncipe de Portugal (D. Affonso V e

* Carta de 22 de outubro de I443. Alguns documentos, etc,

pag. 8.

2 Alguns documentos, etc, pag, 42.

Page 187: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 183

seu filho D. João ll) não vão negociar aos ditos tra-

tos, nem ilhas, terras da Guiné descobertas e por

descobrir, seus naturaes ou súbditos... nem outras

quaesquer gentes extrangeiras que estiverem em

seus reinos e senhorios, ou em seus portos se arma-

rem... nem darão... consentimento directo nem

indirecto, nem consentirão armar nem carregar para

lá.. . E se alguns dos naturaes ou súbditos dos rei-

nos de Castella ou estrangeiros, quaesquer que se-

jam, forem commerciar. . . sem licença e consenti-

mento expresso dos ditos senhores rei e príncipe. .

.

sejam punidos ».

E ainda mais severa do que as concessões a

D. Henrique a carta regia de D. Affonso V ^ aos

capitães dos navios enviados por seu filho : « damos

poder e faculdade, e especial mandado aos capitães

que forem enviados pelo príncipe meu filho... á

dita Guiné, que, achando elles quaesquer caravelas

ou navios de qualquer gente de Hespanha. . . sem

outra mais ordem nem figura de juizo possam logo

todos ser e sejam deitados ao mar, para que mor-

^ Carta de 6 de abril de I480, Alguns documentos, etc,

pag. 45.

Page 188: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

184 A Descoberta do Brasil

ram logo ». Em 4 de maio de 1481 fazia o mesmo

rei a seu filho, depois D. João II, doação do commer-

cio da Guiné, com as mesmas clausulas das doações

ao infante D. Henrique, para que ninguém podesse

ir ou mandar sem licença do príncipe.

Eram severas as penas e expressas as ordens

para as cumprir. Além dos capitães donatários, que

tinham competência judiciaria, havia, para exerce-

rem vigilância, os navios mandados expressamente

pelo príncipe.

Residindo muito tempo em Portugal, viajando

com portugueses, indo á costa d'Africa, conhecia

Colombo toda esta legislação, mas, apezar d'isso,

no intuito de engrandecer-se, insinua que eram ou-

tros os motivos da attitude do governador. No dia 6

escreve no seu diário « soube por uma caravela, que

vinha da ilha de Ferro que andavam por ali três

caravelas de Portugal para o prender». E accres-

centa na constante preoccupação de se fazer valer:

« Devia ser de inveja que o rei tinha por ter ido

para Castella». Em 2 2 de fevereiro, ao tratar do

conflicto com o governador de Santa Maria, escreve

ter-lhe dito um marinheiro que o governador o que-

ria prender por ordem do rei.

Encarrega-se porém Colombo de desmentir tudo

Page 189: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 185

isto ao descrever a amigável recepção que em Lis-

boa lhe fez D. João II. Se, em verdade, receiasse ser

preso por ordem do rei, pelo governador ou pelos

navios, não viria á capital entregar-se á prisão. Mas,

confiando- se depois descançadamente á hospitali-

dade do rei, a quem já tinha pedido o salvo condu-

cto para vir a Lisboa, mostra Colombo que não es-

crevia sinceramente aquellas passagens, tendentes

apenas a augmentar mais os perigos que correra,

no desejo insaciável de obter vantagens.

Escreve em 4 de março ao rei de Portugal, para

que o auctorisasse a ir com a caravela a Lisboa

« e também para que soubesse que não vinha da

Guiné, mas da índia». Vê-se o empenho que tinha

em dar a saber que não estava incurso nas penali-

dades para os que iam á Guiné sem licença, e a

confiança que depositava no rei.

Em 5, ao chegar ao Restello, escreve no diário

que o foi cumprimentar Álvaro Damas, capitão da

nau de el-rei surta no Restello « com muita ordem

com atabales e trombetas e anafis, fazendo grande

festa, veiu á caravela e falou com o almirante e lhe

offereceu fazer tudo o que lhe mandasse». As gran-

dezas de Portugal deslumbravam-n'o ainda e sem-

pre. Descreve a nau do rei n'estas palavras : « nau

Page 190: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

l86 A Descoberta do Brasil

grande d'el-rei de Portugal... a mais bem arti-

lhada de artilheria e armas que nunca se viu » \

Em logar da inveja, que pretendeu insinuar, ha

em Lisboa verdadeira alegria. Vae muita gente a

bordo vêr os Índios em 6 e 7 de março. Escreve

no diário: «Hoje veiu infinitissima gente á caravela,

e rnuitos cavalleiros, e entre elles os feitores do rei,

e todos davam infinitissimas graças a nosso senhor

por tanto bem e accrescentamento da christan-

dade ».

Em 8, continua elle, respondeu o rei á sua carta,

pedindo-lhe que fosse vêl-o aonde estava. Tinha

Colombo tanto receio de que o prendessem, que

deixou a caravela e foi mais o seu piloto dormir

a Sacavém, de caminho para Valle de Paraíso onde

se encontrava D. João II. Tinham os feitores do rei

1 Devia ser a nau de mil toneis, talvez equivalentes a duas

mil toneladas de hoje, de que diz Garcia de Rezende na Chro-

nica de D, João II, cap, cxlvi : « a mais formosa e melhor aca-

bada e a maior que nunca até então fora vista, de tão grossa,

forte e basta liança e tão grosso taboado que a artilheria a não

podia passar, e tinha tantas bombardas e outras artilherias que

foi muito falada n'ella em muitas partes». Mandou o rei fazer

esta nau «mais. . . para guarda do rio do que para navegar».

Page 191: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 187

ordem de darem ao almirante e á sua gente, e de

fornecerem á caravela tudo o que preciso fosse,

sem receberem dinheiro.

Em 9 de março escreve que o rei « o mandou

receber pelos principaes da corte mui honrada-

mente, e o rei também o recebeu com muita honra

e lhe fez muito favor, e o mandou sentar e falou

muito bem... e mostrou ter muito prazer da via-

gem ter tido bom termo e de se ter feito... Deu-o

por hospede ao Prior do Crato que era a principal

pessoa que ali estava, do qual o almirante recebeu

muitas honras e favores ». Em 10: « depois da missa

lhe tornou a dizer o rei que, se tinha precisão de

alguma coisa, que logo se lhe daria, e conversou

muito com o almirante acerca da sua viagem, e sem-

pre o mandava estar sentado e lhe fazia muita hon-

ra ». Em 11 de março só partiu depois de comer,

acompanhado por todos os cavalleiros e fidalgos

que lhe vieram fazendo muita honra por largo es-

paço. Em seguida foi ao mosteiro de Santo António,

em Villafranca, a convite da rainha D. Leonor.

Fizeram-lhe muita honra a rainha e os fidalgos que

a acompanhavam, e o almirante foi essa noite dor-

mir a Alhandra. Era tal o medo de que o captu-

rassem que Colombo, em vez de ir directamente a

Page 192: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

l88 A Descoberta do Brasil

um porto de Castella, dar conta da sua missão, gas-

tava todo este tempo em Portugal, paiz rival do que

andava servindo, visitando ò rei e a rainha, narran-

do-lhes a viagem e passando quatro dias e quatro

noites longe do seu navio !

Em 12, continua o diário, mandou-lhe perguntar

o rei se preferia ir a Castella por terra, que dispo-

ria tudo para isso, offereceu-lhe uma mula, e ao pi-

loto outra, e 20 espadins (moeda de oiro).

Como toda esta narrativa do próprio Colombo é

diíferente das versões dos seus penegyristas, que

mostram o rei invejoso da sua gloria, pretendendo

roubar-lh'a, e os fidalgos querendo assassinal-o

;

como se distancia das próprias palavras que, para

dar mais relevo aos seus serviços, Colombo escreve

em outras occasiões !

Embora o recebesse amigavelmente, sempre

D. João II disse a Colombo que lhe pertenciam as

terras onde elle chegara ^

Não devem surprehender as repetidas contradic-

ções em que a critica histórica encontra Colombo.

Ha muitas mais, além das que citámos ; existem ou-

^ Veja-se cap. xii.

Page 193: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 189

tros factos que revelam n'elle um péssimo caracter,

ganancioso, sanguinário, desleal.

Está isto em contradicção com o que geralmente

se escreve, mas é deduzido dos factos e dos docu-

mentos. Talhou-se para Colombo um figurino moral,

como o que se cortou para D. Manuel, para

D. João II, etc. São boas ou más essas e outras fi-

guras á phantasia do escriptor, que depois acceita

ou recusa os factos attribuidos, segundo as qualida-

des de que os revestiu. Chega a haver amigos e ini-

migos dos grandes homens do passado, que fazem

resaltar, como importantissimos, factos de pequeno

alcance, e encobrem outros que podem denegril-os!

Proceder assim, não é fazer historia, é adulteral-a

n'um péssimo romance.

Na sua primeira viagem ás Antilhas não é Co-

lombo o apostolo, de que pretenderam fazer umsanto; é um homem pratico que faz pagar caro o

que sabe, e os serviços que vae prestar. Na certeza

da existência das terras do occidente assigna, antes de

partir, um tratado com os reis de Castella, que, ce-

dendo ás suas exigências, lhe concedem o grau de

cavalleiro da espora dourada, o titulo de dom, para

elle e seus descendentes, os cargos de almirante-mór

do mar oceano, e de vice-rei e governador perpetuo

Page 194: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

igo A Descoberta do Brasil

das terras que descobrir, a decima de todas as

rendas, e o direito de poder concorrer com o oitavo

das despezas de todas as frotas, recebendo o oitavo

dos lucros.

Viajavam de ha muito os navegadores portugue-

ses para occidente, á sua custa; vinham offerecer ao

rei as novas terras, como Dulmo e Lavrador; fica-

vam crivados de dividas por causa do armamento

das frotas, como os Corte-Reaes ; e dispendiam

nisso, como muitos outros, totalmente as suas fortu-

nas.

Commentava Las Casas ^ n'estes termos as con-

cessões : «na petição das quaes mostrou Christovão

Colombo sua grande prudência, e ser de animo ge-

neroso, e não menos a quasi certeza que levava de

achar o que pretendia ».

Ao partir não se preoccupa Colombo com a en-

trada dos gentios no grémio da egreja, não leva pa-

dre, frade, nem capellão nas caravelas. O que pro-

mette aos reis é trazer «mercadorias de toda a qua-

lidade, pérolas, pedras preciosas, ouro, prata e es-

peciarias ».

1 Cap. XXVIII, pag, 21 8.

Page 195: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 191

No empenho de se atravessarem no caminho das

índias, de tirarem partido dos trabalhos portugueses

de tantos annos, de colherem o fructo dos esforços

intelligentes de muitas gerações de navegadores, pa-

gavam generosamente os reis de Castella a Colombo,

como depois a Magalhães, e como o rei de Inglaterra

ao Lavrador, o conhecimento, adquirido em Portu-

gal das terras do occidenle, para onde ia ensinar a

navegação.

Além do que lhe deram, destinaram 10:000 ma-

ravedis para o marinheiro que annunciasse terra.

Mas quando Rodrigo de Triana gritou da gávea ale-

gremente, esperando receber as reaes alviçaras,

disse Colombo que já na noite anterior vira uma

luz, e como se fosse pouco o recebido, apossou-se

também da gratificação!

Tinha extranhas maneiras de se manifestar a sua

falada caridade christã.

Ao chegar ao golfo de Samaná, logo na pri-

meira viagem, faz correr sangue, luctando com os po-

bres Índios nus e desarmados, que só podiam des-

pedir settas de cana, quasi brinquedos de creanças,

contra as armaduras de que se revestiam elle e os

seus.

Não podendo enviar as promettidas riquezas in-

Page 196: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

192 A Descoberta do Brasil

dianas, mandou á rainha de Castella cinco navios

carregados de escravos para serem vendidos, e se

pagar com o preço d'elles o custo das viagens.

De 1493 a 149Ó, governando a Hispaniola

(Haiti), exterminou a terça parte da população.

Nas instrucções a Pedro Margarite para ir reco-

nhecer Cuba ^, mandava-o mutilar barbaramente os

Índios : « castigae^os também cortando-lhes os nari-

zes e as orelhas, porque são membros que não po-

derão esconder».

No mesmo triste documento manda urdir umardil contra o cacique Cahonaboa para que o pren-

dam á traição. Eis as suas instrucções textuaes: «vão

com um presente . . . mostrando-lhe que tenho muito

desejo da sua amisade, e que lhe enviarei outras

cousas ... e tratem-no assim de palavras até que

tenham amisade com elle, para melhor o poderem

haver... e podem enviar outra embaixada até que

o dito Cahonaboa esteja assegurado, e sem receio

de que lhe possam fazer mal, e depois... 'prendam-

no como melhor lhes parecer ».

Effectivamente o pobre cacique foi preso com

1 Navarrete, vol. 11, pag. 126.

Page 197: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 193

novos requintes de malvadez. É Hojeda, um dos pre-

tendidos descobridores do Brasil, quem executa a

traição \ e, deve dizer-se em seu abono, excedendo

o mestre em deslealdade e em sanguinarismo.

Assim começa a ligação entre Colombo, Hojeda,

Pinzon e Lepe, a concordância entre os seus feitos,

propósitos e processos civilisadores ^

Constitue uma das mais flagrantes injustiças de

toda a historia o que se tem dito de Colombo, das

suas relações com Portugal e do seu papel na des-

coberta da America

!

Comtudo Colombo enriqueceu a Hespanha,

guiando-a aos descobrimentos, abrindo um grande

continente á sua insaciável cubica de oiro, le-

vando-a a fundar as grandes nações americanas

que a perpetuam, e facultando-lhe os thesouros ri-

quissimos que lhe permittiram estender a muitos

países a sua oppressão.

Em paga d'isto soffreu perseguições e desgos-

tos ; foi submettido a um tribunal, ao voltar da se-

gunda viagem; e regressou da terceira, depois de

1 Navarrete, vol. iii, pag. 166.

2 Veja-se o cap. x onde se confrontam os documentos dos

processos civilisadores dos portugueses e hespanhoes.

13

Page 198: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

194 -^ Descoberta do Brasil

dois mezes de calabouço, preso a uma grilheta como

um ladrão

!

Perpetuou-se a injustiça atravez de quatro sécu-

los. Em 1892, ao celebrar-se o 4.° centenário, n'essa

Hespanha que tudo lhe devia, foi denegrida a sua

memoria, foi amesquinhado o seu serviço, não em

defeza de um justo direito ferido, mas em favor de

uma grosseira e ridícula invenção. Quiz-se fazer

passar por descobridor da America Martin Alonso

Pinzon, como tendo sido quem indicou o verda-

deiro caminho a Colombo e o impediu de regres-

sar desanimado. Esse Pinzon, segundo os seus pa-

negyristas, obteve o conhecimento da America uma

vez que foi a Roma vender sardinhas ! Canovas dei

Castillo, então presidente do conselho, n'uma con-

ferencia no Atheneu de Madrid, absolveu o indi-

gno Bobadilla de ter encarcerado e posto a fer-

ros o homem que os conduzira ao occidente : « que

fez emfim Bobadilla, disse elle, senão applicar o

principio, hoje tão querido de todos, da egualdade

perante a lei? Colombo era para elle um delinquente

e como delinquente o tratou » !

Liquidado o império colonial numa onda de

sangue e num punhado de oiro, ultimo desse san-

gue derramado em caudaes na descoberta e na con-

Page 199: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil I95

quista, derradeira migalha d'aquelle oiro extorquido

aos caciques na fogueira e na tortura ^, não podendo

salvar mais nada do desastre, trasladou a Hes-

panha, de Cuba para Sevilha, os pretendidos ossos

do desventurado navegador, que nem lhe pertenciam

porque elle era genovês.

Fora sepultado Colombo, o eterno expatriado, em

1506 em Valladolid, em 1513 mudado para Sevilha

e em 153^ trasladado para Haiti, a sua querida Hes-

paniola. Cedida a ilha á França em 1795 tiraram

de uma cova raza da cathedral de Santo Domingo

«pedaços de ossos de canelas e outras várias partes

de algum defunto que se recolheram em uma

salva » ^, e foram levados para Cuba como sendo os

ossos do almirante. A sua retirada d'ali em 1498

não era mais do que uma repetição da mesma

cerimonia

!

Acompanhou-o na ultima trasladação um coro

1 Veja-se no capitulo x a maneira como procederam os por-

tugueses e hespanhoes ao chegarem á America.

2 Noticia official da trasladação pelo almirante Aristiza-

bal. Navarrete, vol. 11, pag. 409. Na cathedral de Santo Domingo

ha poréqi uma caixa de folha com uns ossos que dizem ser os

verdadeiros ossos de Colombo.

'

Page 200: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

içó A Descoberta do Brasil

de impropérios dos cubanos e dos hespanhoes, dos

que despedaçavam algemas e dos que viam fugir a

preza; e o publico da metrópole, que não protes-

tara contra as bravatas nem contra as capitulações,

apedrejou a sua estatua e amaldiçoou a sua memo-

ria !

Atravessando o Atlântico pela derradeira vez,

sem que quatro séculos lhe dessem o direito de

descançar, no regresso da ultima viagem como na

volta da primeira, foi passar nos Açores; e a gene-

rosidade portuguesa, esquecendo os prejuízos que

esse homem lhe causara, as injustiças que com elle

tinham feito, depôz coroas de flores sobre o seu fé-

retro, as únicas com que desceu ao tumulo em Se-

vilha ; emquanto que a Hespanha maldizia a hora em

que elle saíra de Paios, provando assim que as suas

descobertas e conquistas não tinham partido de

uma tendência natural, mas do incitamento e da ini-

ciativa d'aquelle homem. Portugal, que começara os

descobrimentos um século antes, continuava e con-

tinua ainda serenamente, civilizando, colonisando

extensos territórios, no consciente cumprimento da

sua grande missão !

Page 201: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

VIII

A frota de Cabral

Conhecidos por Vasco da Gama a grandeza e

alcance das emprezas da índia, organisou D. Ma-

nuel para ir ás regiões do distante oriente uma

grande frota de treze navios, sendo dez naus des-

tinadas a Calecut, dois navios para Sofala e um que

ia de conserva com os mantimentos.

Sabe-se o nome das naus São Fedro, de que era

capitão Pêro d'Ataide Inferno ; Annunciada do com-

mando de Nuno Leitão da Cunha ; e El-Rei ^

* A Historia Geral do Brasil, pelo Visconde de Porto Se-

guro, tom. I, pag. 70, nota, cita um documento da Torre do

Tombo que lhe parece dever attribuir-se a esta expedição. Exa-

Page 202: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

198 A Descoberta do Brasil

Dão O Livro das Naus, Chronica de D. Manuel e

Décadas da Ásia como capitães das naus : Sancho de

Toar, que devia succeder a Cabral em caso de

morte; Simão de Miranda d'Azevedo, Ayres Gomes

da Silva, Nicolau Coelho, Bartholomeu Dias, Diogo

Dias, Gaspar de Lemos, Luiz Pires, Simão de Pina,

Pêro d'Ataide Inferno, Vasco d'Ataide e Nuno Lei-

tão da Cunha. Cabral commandava a nau capita-

nia.

Não refere Gaspar Correia, Lendas da Índia, os

nomes de Pêro d'Ataide Inferno e de Ayres Gomes

da Silva ; dá Simão de Miranda d'Azevedo como

minámos esse documento, uma folha de papel que só trata da

quebra da carga das naus Santo Espirito, Santa Cru:{, Flor de la

Mar, S, Pedro, Victoria, galeão Trindade e nau Espera. Trans-

crevamos uma parte

:

« Nau São Pedro : — Item, Carregou de pimenta em Coulão

5:062 quintaes, 3 arrobas e 12 arráteis.

E descarregou aqui (em Lisboa) 3:477 quintaes, 2 arrobas e

8 arráteis.

Assim quebrou por toda por entrada 1:585 quintaes, 1 ar-

roba e 4 arráteis. Que sae a 32 quintaes e meio por cento. »

Estes sete navios não são os de Pedro Alvares Cabral, que

chegou á índia apenas com seis, um dos quaes se perdeu no re-

gresso.

Page 203: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 199

commandante da nau capitania e devendo succeder

a Cabral ; e publica a mais os nomes de Braz Mato-

so, Pedro de Figueiró e André Gonçalves. Segundo

elle, este ultimo, Luiz Pires e Gaspar de Lemos

commandavam navios pequenos.

Iam na frota Pêro Vaz de Caminha, auctor da

celebre carta a D. Manuel; mestre João physico,

que enviou ao rei uma outra carta; Duarte Pa-

checo Pereira, auctor do Esmeraldo ; os pilotos Pêro

Escolar, Affonso Lopes e os que Vasco da Gama

trouxe de Melinde ; os frades Henrique de Coimbra,

Gaspar, Francisco da Cruz, Simão de Guimarães,

Luiz do Salvador, Maffeu, Pedro Netto e João da

Victoria; Balthazar e outros Índios vindos na pri-

meira viagem; os interpretes Gaspar da Gama, Gon-

çalo Madeira de Tanger e um grumete negro da

Guiné; os degredados Affonso Ribeiro, João Ma-

chado, Luiz de Moura, António Fernandes, que era

carpinteiro de naus, e mais 16; Ayres Correia, fei-

tor de Calecut e seus filhos Ayres e António, Vasco

da Silveira, Fernão Peres Pantoja, João de Sá,

Francisco Henriques, Lourenço Moreno, Fernão Di-

niz, Affonso Furtado, Sebastião Alexandre e Gon-

çalo Peixoto.

Chegaram até nós apenas estes nomes, mas o

Page 204: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

2CO A Descolerta do Brasil

total da gente era de 1:200 homens, segundo as Dé-

cadas, e de 1:500 conforme a Chronica de D. Manuel.

Eis as categorias e vencimentos: ^

Capitão-mór. . . .

Capitães das naus.

Mestres e pilotos

Condestavel (i por nau). .

Homens d'armas

Marinheiros

Bombardeiros (lo por nau)

Contramestres e guardiões.

Clérigos (2 por nau)

Calafates .(idem) . . .

Carpinteiros (idem). .

Estrinqueiros (idem) .

Dispenseiros (i por

nau)

Barbeiros - sangradores

(idem)

Grumetes

Pagens

Vencimentos em cruzados

10:000 por viagem

1:000 por cada loo toneis da

nau

500 por viagem

200 idem

5 por mez

10 idem

idem, idem

1 '/j vencimento de mari-

nheiro

2/3 de vencimento de mari-

nheiro

V2 vencimento de marinheiro

i/3 de vencimento de grumete

cg•s eu

0)ii

500

50

30

10

3

10

10

X C

Tinham o direito de trazer de graça nos navios

essas quantidades de pimenta, comprada á sua

custa pelo preço que custasse ao estado, e que este

Segundo as Lendas da índia.

Page 205: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 201

adquiria á chegada a Lisboa pelo valor corrente

da venda. Eram essas caixas livres de direitos, ex-

cepto da dizima de Deus, destinada á construcção

dos Jeronymos.

Recebeu 100 cruzados em dinheiro, e um collar

de ouro do mesmo valor, cada um dos pilotos mou-

ros de Melinde. Iam fechados á chave os seus man-

timentos e agua.

Recebia 10 cruzados por mez o interprete Gas-

par da Gama, judeu aprisionado na índia por Vasco

da Gama.

Tinha cada tripulante a ração diária de uma

canada de vinho, mas no regimento recommen-

dava-se aos capitães-móres das frotas que combi-

nassem com elles dar-lhes só três quartilhos logo

pela manhã, para o vinho lhes durar mais tempo,

em vista das quebras que havia em tão largas via-

gens.

Devia ser feita d'esta maneira a repartição das

presas, « posto que nellas não devesse haver partes,,

por todos irem a soldo», diz o regimento: o capi-

tão-mór tiraria a sua jóia, cujo valor não excederia

500 cruzados, depois separar-se-ia o quinto para o

rei, e o restante devia ser dividido em três partes^

duas ainda para o rei « pela armação, mantimentos

Page 206: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

202 A Descoberta do Brasil

e artilheria». Tinham direito á ultima parte na se-

guinte proporção os que faziam a presa:

Capitão-mór 15 partes

Capitães de navios de alto bordo ... 10 »

Capitães de caravelas 6 »

Mestres (sendo mestres e pilotos) ... 4 »

Mestres 3 »

Pilotos 3 »

Marinheiros 2 »

Bombardeiros ,•., 2 »

Espingardeiros 2 »

Besteiros 2 »

Marinheiros armados 1 V2 *

Homens d'armas 1^/2 *

Grumetes 1 »

« E Nossa Senhora de Belém havemos por bem

que haja outro tanto, como o que ha-de haver, por

bem d'este nosso regimento, cada um dos capitães

das naus de alto bordo, que são dez partes, as

quaes virão para a obra de sua casa (Jeronymos) ;

e estas partes nos apraz que todos tenhaes, assim

do que se fizer em terra, como do que se fizer no

mar ».

Adiantava-se dos soldos 5:000 cruzados ao ca-

pitão-mór, 1:000 aos capitães, um anno á gente do

Page 207: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 203

mar que era casada, e seis mezes á solteira. Rece-

biam os homens d'armas seis mezes, e roupas bran-

cas.

Ao pagar esses adiantamentos na «Casa de

Guiné e índias » fazia-se uma relação de todos os

que recebiam, pondo-se além do nome qualquer

alcunha ou appellido que tivessem, se eram casados

e onde, nome de pae e mãe. Por essa relação pro-

cedia-se á chamada quando a frota chegava ao Res-

tello. Eram ainda acceites e inscriptos os que se

apresentavam com alvará d'el-rei, e desembarcados

os que se tivessem mettido a bordo sem documen-

tos. Dos que faltavam ao embarque mandava-se

uma nota ao feitor da « Casa de Guiné e índias»

para que recebesse d'elles, ou dos seus fiadores, a

importância dos soldos adiantados. Eram castigados

os que faltavam sem motivo.

Variava o typo e o tamanho dos primeiros na-

vios que foram á índia.

Eram tão leves as naus que varavam em terra,

encalhadas pela proa, como os actuaes barcos de

pesca. Tinham a quilha e o cavername de car-

valho; o forro, costado e convés de pinho e sobro;

eram ligados com pregaria de ferro e calafetados

com breu. Para poderem aguentar muito panno cir-

Page 208: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

204 A Descoberta do Brasil

cumdava-lhes todo o costado um grande embono,

servindo de cintado, seguro ao casco por pródigos

de madeira, tão grosso que se andava por cima

d'elle. Ainda mantêm, no forte cintado, e nos olhos

pintados á proa, a tradição da marinha das des-

cobertas, as fragatas de carga e outros* barcos pe-

quenos do Tejo.

Muito largas proporcionalmente ao comprimen-

to, tinham as naus á proa e á ré altos castellos, cuja

parte superior se chamava chapiteo.

Para o seu serviço traziam dentro o batel, a mo-

derna lancha, embarcação possante que andava á

vela e a remo, e chegava a armar artilheria; e o

esquife, o actual bote, com bancadas para quatro

ou seis remadores.

Tinham geralmente três mastros, com masta-

reos e cestos de gávea, verdadeiros cestos dentro

dos quaes se ferrava o panno da gaveá. Armavam

redondos, em grandes bolsos, para levantar a proa

quando o vento enfunava as velas. Não ia além de

4 ou 5 milhas a sua velocidade.

Eram de corrente os fuzis da enxárcia, e de

linho os cabos e as amarras. Levavam amarras de

corrente, até um pouco abaixo da linha de agua, os

navios de Cabral, para evitar que lh'as cortassem.

Page 209: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 205

como em Mombaça pretenderam fazer ás naus do

Gama.

Para o combate assestavam nas baterias da amu-

rada meios canhões* esperas e columbrinas ; e nos

castellos berços, águias, sacres e falcões. Eram de

bronze, de carregar pela culatra e atiravam pelou-

ros de pedra e ferro, estas peças da antiga arti-

Iheria, de nomes e formas curiosas. Combatiam dos

castellos, e das pontes que os ligavam, os homens

de armas vestidos de couras de laminas, saios de

malha e elmos ; armados de lanças, espadas, bestas,

machados e espingardas. Nunca usaram os portu-

gueses armaduras completas, por causa do custo e

dos climas quentes em que tinham de combater.

No mais accêso da lucta, ao afferrar outra nau,

despediam virotões das gáveas, e atiravam á mão

panellas de pólvora e alcanzias de fogo.

Tinham as naus a cruz pintada nas velas, como

se vê em todos os desenhos do século XV e XVI ; e

usavam uma grande variedade de bandeiras entre

as quaes o estandarte real, branco com as armas por-

tuguesas ; a bandeira branca com a cruz de Christo

;

o pendão das quinas, branco, debruado a vermelho,

com as cinco quinas azues ; bandeiras azues com a

cruz branca e as quinas;guiões e pendões farpados

Page 210: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

206 A Descoberta do Brasil

brancos com a cruz de Christo;pendões farpados

amarellos, verdes, amarellos e vermelhos ; flâmulas

verdes e vermelhas içadas ás três, a par, no mastro

grande ; e as bizarras divisas e insignias especiaes

de cada capitão.

Iam os navios de Cabral aparelhados e forneci-

dos do necessário para anno e meio de viagem, bem

providos de artilheria, munições, pipas d'armas bran-

cas, espadas e lanças, e uma botica em cada nau.

Para commerciarem ia coral em ramo e em fio

;

cobre, vermelhão, mercúrio e âmbar; pannos de lã

grossos e finos ; velludos, setins e damascos de todas

as cores.

Levavam os padres um retábulo da Senhora

da Piedade, órgão, paramentos e alfaias de prata.

Recebeu Cabral em 15 de fevereiro de 1500 a

carta da capitania-mór e dos poderes de que ia re-

vestido. N'essa carta ^ é tratado por Pêro Alvares

de Gouveia, appellido de sua mãe D. Isabel de Gou-

veia.

Era a missão que tinha a desempenhar deta-

lhadamente descripta no regimento de capitão-mór

da frota que ia á índia, regimento de que restam

1 Gonçalo Velho, por Ayres de Sá.

Page 211: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 207

ainda dois fragmentos, um extenso, que se conserva

na Torre do Tombo; e outro menor, uma pagina

apenas, publicado em fac-simile na Historia Geral do

Brasil.

Por esses dois fragmentos, que abrangem a

parte principal, e pelas instrucções que, segundo

Gaspar Correia ^, deu D. Manuel a Cabral, vê-se que

o seu regimento era idêntico ao que depois levaram

D. Francisco d'Almeida ^, Fernão Soares ^ e Diogo

Lopes de Sequeira *, ao irem á índia.

A parte publicada é quasi exactamente corres-

pondente a esses regimentos; a que está na Torre do

Tombo tem a mesma disposição, os mesmos itens, a

mesma forma precisa de determinar procedimentos,

prever hypotheses, preceituar maneiras hábeis e

cautelosas, que aquelles documentos.

Reconstituindo-o assim, começava o regimento

por ordenar os « Alardos de gente », relações para

os adiantamentos e chamadas de que já falámos;

depois recommendava a «Vigia do fogo», para que

* Lendas da índia, pag. 140, 150.

2 Alguns documentos, pag. 139.

'^ Idem, pag. 160.

* Idem, pag. 184.

Page 212: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

208 A Descoherta do Brasil

houvesse toda a vigilância por causa dos incêndios

;

em seguida estabelecia as « Regras dos mantimen-

tos », a maneira de acautelar as « Chaves dos paioes

dos mantimentos», as « Regras dos vinhos».

D'ahi passava ao « Caminho que fará em par-

tindo », capitulo de que trata o fragmento publicado

em fac-simih na Historia Geral do Bra:(il e que, por

não vir completamente interpretado n'essa obra, re-

produzimos aqui

:

« Esta é a maneira que pareceu a Vasco da

Gama que deve ter Pêro d'Alvares em sua ida, pra-

zendo a nosso senhor.

Primeiramente, antes que d'aqui parta, fazer mui

boa ordenança para se não perderem uns navios

dos outros n'esta maneira.

A saber : cada vez que houverem de virar fará

o capitão mór dois fogos e todos lhes responderão

com outros dois cada um. E depois de lhe assim

responderem todos virarão. E assim lhes terá dado

de signal, que a um fogo será por seguir, três por

tirar moneta ^ e quatro para amainar.

.* «Os navios de pequeno lote, quando podiam fugir ao

tempo, sem as ondas lhe galgarem as alhetas, içava uma moneta

Page 213: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 209

E nenhum virará, nem amainará, nem tirará mo-

neta, sem que primeiro o capitão mór faça os di-

tos fogos e todos tenham respondido. Salvo se

alguma das naus não soffrer tão bem a vela como a

do capitão e a força do tempo lhe requeira que a

tire. E depois que assim forem amainados, não guin-

dará nenhum senão depois que o capitão mór fizer

três fogos e todos responderem, e minguando algum

não guindarão, somente andarão amainados até que

venha o dia, porque não poderão tanto rolar as naus

que no dia se não vejam.

Se os navios partindo d'esta costa se perderem

uns dos outros com o tempo e que uns corram a

ao pé do mastro, que alguns dizem ser uma vela triangular como

a polaca, ou um bolso do traquete ». Os navios de Vasco da

Gama por João Braz d'01iveira, capitão tenente da armada,

pag. 24, « As velas mestras amainavam sobre a borda, e para

lhes augmentar ou diminuir a superfície cosiam ás esteiras as

monetas, onde estavam pintados letreiros piedosos, Ave Maria,

Ave Maria SteUa, In hoc signo vinces, ou só as iniciaes P. N.

A. M. G, P. (Padre Nosso, Ave Maria, Gloria Patri) para não

haver enganos no envergar das velas. * Influencia do infante

D. Henrique no progresso da marinha portugue:(a. Navios e arma-

mentos, pelo mesmo, pag. 71.

14

Page 214: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

2 IO A Descoberta do Brasil

um porto e outros a outro a maneira para se ajun-

tarem.

Se os navios partindo d'esta cidade, antes de

atravessarem ás Canárias, os tome o tempo com que

hajam de tornar, farão todo o possivel por todos

tornarem a esta cidade, e se algum a não poder ha-

ver trabalhe-se quanto poder por tomar Setúbal, e

de onde quer que se achar vol-o fará saber logo

aqui para lhe ser mandado o que faça.

E por este aparelhar, fará qualquer, que for des-

aparelhado, muitos fogos por tal que os outros na-

vios vão a elle.

E não lhe fazendo de noite os ditos signaes

alguns dos navios, nem no vendo pela manhã, vós

fareis com todos os outros o vosso caminho direito

á aguada de São Braz e ali, emquanto tomardes

agua, vos poderá o dito navio encalçar e não vos

encalçando partireis como fordes prestes, e deixar-

Ihe-eis ahi taes signaes ^, por que saiba quando

ali chegar que sois partido e vos siga.

1 O regimento dado a Fernão Soares, que foi á índia em

1507, explica n'estas palavras em que consistiam esses signaes:

« deixando alii por signal da vossa chegada e partida uma cruz

grande, feita da maneira que apparece na margem d'esta folha,

Page 215: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 211

Depois que em boa hora d'aqui partirem, farão

seu caminho direito á ilha de Santiago e, se ao

tempo que ahi chegarem, tiverem agua em abas-

tança para quatro mezes, não devem pousar na dita

ilha nem fazer nenhuma demora, somente emquanto

o tempo lhes servir á popa fazerem seu caminho

pelo sul, e se houverem de guinar seja sobre a

banda de sudoeste. Se tomaram antes a ilha de

S. Nicolau, no caso d'esta necessidade, pela barra

da ilha de Santiago. E tanto que nelles der o vento

escasso devem ir na volta do mar, até metterem o

cabo da Boa Esperança em leste franco, e d'ahi em

diante navegarem segundo lhes servir o tempo e

mais ganharem, porque como forem na dita paragem

não lhes minguará tempo, com a ajuda de Nosso

Senhor, que cobrem o dito cabo. E por esta ma-

na primeira arvore que estiver sobre a desembarcação da ilha

de Palma, tirada a casca da dita arvore, ao que appareça a cruz

no branco do pau. . , e mais deixareis três ou quatro cartas a

outros tantos negros para por ellas, além do dito signal, quando

ahi chegarem qualquer navio ou navios que não tiverem vossa

companhia saberem qufe sois passado e vos sigam . . . qualquer

capitão, a que se derem, dê ao primeiro negro, que lhe der a sua,

seis manilhas, e por cada uma das outras dê quatro, porque cada

um tenha mais vontade de o fazer »,

Page 216: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

212 A Descoberta do Brasil

neira, lhe parece que a navegação será mais breve

e os navios mais seguros do gusano e isso mes-

mo os mantimentos se tem melhor e a gente irá

mais sã.

E se for caso, que Nosso Senhor não queira, que

alguns d'estes navios se percam do capitão, deve-se

ter de ló quanto poder para haver o cabo e ir-se á

aguada de São Braz (... marcas d'onde se façam

os caminhos para os navios que assim se perderem,

e que isto se faça com mui boa pratica de todos os

pilotos). E se for ahi primeiro que o capitão deve-

se amainar mui bem e esperal-o, porque é necessá-

rio que o capitão mór vá ahi para tomar sua agua,

para que d'ahi em diante não tenha que fazer com

a terra, mas arredar-se d'ella até Moçambique por...

da gente e não ter nella que fazer.

E se for caso que o capitão mór venha primeiro

a esta aguada que o tal navio ou navios que se

d'elle perder ...»

Era no sul d'Africa a Angra de S. Braz. Inter-

rompe-se aqui essa parte do regimento, ou talvez

esse rascunho de uma parte do regimento, com as

indicações náuticas dadas por Vasco da Gama, que

acabava de percorrer o mesmo caminho, indicações

destinadas a intercalar no regimento, onde havia

Page 217: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 213

detalhes meramente regulamentares, administrativos,

politicos, etc.

Falta a parte relativa a Moçambique, e a Me-

linde onde haviam de ficar os pilotos mouros, e Ca-

bral devia entregar presentes e cartas que levava

para o rei.

Começa por estas palavras o fragmento exis-

tente na Torre do Tombo ^: « Jesus. Item tanto que,

a Deus prazendo, partirdes de Angediva, ireis vossa

via ancorar diante de Calecut, com vossas naus jun-

tas e mettidas em grande ordem, assim de bem ar-

madas, como de vossas bandeiras e estandartes, e

as mais louçans que poderdes. »

Preceituavam as instrucçÕes a maior urbani-

dade.

Com respeito ás naus que encontrassem em An-

gediva estabeleciam o seguinte : « não fareis nenhum

nojo, antes a salvareis e lhe mostrareis bom rosto e

signal de paz e boa vontade, dando de comer e

beber, e fazendo todo o outro bom tracto, a todos

aquelles que ás ditas naus vierem »

.

Apparece synthetisado nas communicaçÕes que

^ Alguns documentos, etc, pag. 97.

Page 218: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

214 -^ Descoherla do Brasil

Pedro Alvares Cabral devia fazer ao Samorim,

acerca da maneira como estava disposto a proce-

der, a ideia primordial das descobertas, o propósito,

que levara ao oriente os portugueses : « porquanto

nós temos sabido que em sua cidade negoceiam

mouros, inimigos da nossa santa fé, e a ella vêem

suas naus e mercadorias, com os quaes, assim pela

obrigação que a isso deve ter todo o rei catholico,

como porque a nós vem quasi por direita succes-

são, pelo que miudamente lhe podereis apontar das

cousas da guerra d'além, nós temos continuada-

mente guerra... lhe fazei saber que se, com as

naus dos ditos mouros de Meca topardes no mar,

haveis de trabalhar quanto poderdes por as tomar,

e de suas mercadorias e cousas, assim mouros que

n'ellas vierem, vos aproveitar, como melhor poder-

des, e lhe fazerdes toda guerra e damno que pos-

saes, como a pessoas com quem tanta inimisade e

tão antiga temos ; e também porque cumprimos com

aquillo que a Deus nosso Senhor somos obrigados;

porém, que seja certo que, em seu porto, e diante

de sua cidade, posto que vós as topeis.. . lhes não

fareis damno nem mal algum, e somente lhes será

assim feito topando-as no mar. . . que todos os india-

nos que nellas se acharem, e suas mercadorias e cou-

Page 219: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 215

sas não se fará nojo nem damno, antes toda a honra

€ bom tracto, e serão seguros d'isto para livre-

mente, com todo o seu, serem deixados;porque so-

mente aos ditos mouros será feita a guerra, como a

inimigos que são nossos ; e que ainda nos praz

que.. . porque nisto cumpria o que deve como rei

christão, os lançar de sua terra e não consentir

mais que a ella venham nem commerceiem ».

São a demonstração official de que a ida ao

oriente tinha por fim continuar esse duello de reli-

giões, de civilisações, de raças, e que proseguia

conscientemente a larga cruzada em que se empe-

nhara Portugal, as explicações que Pedro Alvares

Cabral devia dar ao Samorim.

Sobreleva, porém, ao intuito politico o económico.

Ao mesmo tempo que devia aconselhar o rei de

Calecut a cumprir o seu dever religioso, porque

ainda era considerado como christão, offereceria

Portugal como o melhor freguez para a sua espe-

ciaria.

Precisava o reino de lucros materiaes para con-

tinuar a guerra, e necessitava também fazel-o lucrar

com a violenta mudança que lhe propunha.

Determinava-se isto no regimento de 1500.

Ainda em 1505 explicava o Esmeraldo « que

Page 220: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

2l6 A Descoberta do Brasil

se acharia tanto ouro com outras tão ricas merca-

dorias com que... se poderia fazer guerra aos in-

fiéis inimigos da nossa santa fé catholica » ; e conti-

nuava n'outro ponto : « por esta preversa gente ser

inimiga da nossa santa fé catholica os reis d'estes

reinos, do tempo de el-rei D. João de gloriosa me-

moria (D. João l) para cá, lhe fizeram sempre

áspera guerra ».

Levava Cabral portanto instrucções para conti-

nuar contra os musulmanos a desapiedada lucta de

ha tantos séculos ; e para tratar os Índios da melhor

forma possível, procurando ligal-os pelo interesse, e

chamal-os ao grémio da religião christã.

Eis a razão da sangrenta guerra travada com os

árabes, n'essa época o povo mais temido, que ate-

morisava a Europa inteira, e ia obtendo contra ella

successivos triumphos.

Determinava-se também que no regresso consti-

tuísse a frota duas divisões, uma com os navios

veleiros e outra com os mais pesados, comman-

dando o capitão-mór aquella a que seu navio per-

tencesse, e assumindo Sancho de Toar o commando

da outra, excepto se fossem de egual velocidade os

navios de ambos, porque então viriam juntos, sendo

nomeiado para a outra divisão novo capitão.

Page 221: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 2n

Está tudo preparado, organisado, determinado

para a partida.

Prompta a armada dirigiu-se Pedro Alvares Ca-

bral, com toda a gente ricamente vestida, sob o

commando dos capitães, ao som das trombetas,

ao paço da Alcáçova a despedir-se de el-rei e da

rainha.

Atravessou festivamente a cidade o vistoso cor-

tejo acompanhado de grande multidão, e foi ao Cães

da Ribeira embarcar nos bateis enfeitados de ban-

deiras multicores. Salvaram as naus, alegremente

embandeiradas, despedindo-se de Lisboa, e desce-

ram o rio indo ancorar em Belém.

Houve no dia seguinte na ermida do Restello

missa de pontifical, a que assistiu toda a corte,

tendo D. Manuel a seu lado na tribuna Pedro Al-

vares Cabral.

Pregou D. Diogo Ortiz, bispo de Ceuta e de-

pois de Vizeu, um dos da junta dos astrónomos de

D. João II, tomando para assumpto a grande em-

preza que a frota ia desempenhar, e os feitos glo-

riosos dos antepassados dos capitães. Terminou ex-

hortando-os a que se encommendassem a Nossa Se-

nhora para que os guiasse a salvamento, afastando-

Ihes os perigos do mar.

Page 222: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

21

8

A Descoberta do Brasil

Finda a oração, benzeu o bispo o estandarte

real, arvorado no altar-mór, e entregou-o o rei so-

lemnemente a Cabral.

Então saíram da egreja, a bandeira á frente le-

vada pelo alferes, os frades com cruzes e reliquias

cantando orações, n'uma imponente procissão, acom-

panhados pelo rei até á oraia, onde o capitão-mór

e os outros capitães se despediram, beijando-lhe a

mão.

Regorgitavam de povo os campos e o areial, e

o rio estava coalhado de embarcações.

Ao apparato brilhante da frota correspondiam

os bateis ostentando colchas, flâmulas, bandeiras

com as divisas dos fidalgos.

Não se ouviam já os choros, os lamentos, os

murmúrios da partida de Vasco da Gama \ Atroa-

vam os ares festivamente sistros, gaitas, atabaques,

tambores, flautas, pandeiros e trombetas.

E assim se fez de vela, acompanhada pelo rei

até á barra, a frota de Cabral, que reconheceu offi-

^ A viagem maravilhosa, romance histórico por Faustino

da Fonseca.

Page 223: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 219

cialmente o Brasil e marcou na historia a época do

seu inicio na civilisação; a que, no elegante dizer

do chronista João de Barros, era « a mais formosa e

poderosa armada que até áquelle tempo para tão

longe d'estes reinos partira ».

Page 224: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

IX

A viagem

« Maravilhosas coisas são os feitos do mar, e as-

signaladamente aquelles que fazem os homens em

maneira de andar sobre elle, por mestria e arte, as-

sim como em naus e galés e em todos os outros

navios mais pequenos . . . Todos aquelles que no seu

poderio forem devem trabalhar por quatro coisas:

a primeira que sejam sabedores de conhecer o mar

e os ventos ; a segunda que tenham navios tantos e

taes, e assim providos, encaminhados de homens e

armas, e outras coisas de que houverem mister; a

terceira é que não se dêem a tardança nem a pre-

guiça das coisas que devem, que bem assim como

Page 225: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 221

O mar não é vagaroso em seus feitos, mas os faz de-

pressa, bem assim os que n'elle querem andar de-

vem ser aguçosos e apressados nas coisas que tive-

rem de fazer, por tal forma que, em quanto bom

tempo tiverem não o percam, mas ajudem-se d'elie

em seu proveito ; a quarta é que sejam muito bem

mandados aquelies que tiverem encargo de os man-

dar, porque, se os de terra em sua hoste o devem

fazer assim, que bem podem ir por seus pés, ou em

suas bestas a qualquer parte que lhes aprouver, e

quando quizerem, quanto mais o devem fazer assim

os do mar, cujo ir ou ficar não está em seu poder

ou querer, como aquelies que teem por cavalgadu-

ras os navios, que são de madeira, e os ventos por

freios, os quaes não podem mandar nem ter cada

vez que o quizerem, posto que estejam em perigo

de morte ».

Mostram essas interessantes palavras do regi-

mento dos almirantes de Portugal ^ em que trans-

parece o enthusiasmo dos portugueses pela vida do

mar, que já em 1471 eram cautelosamente dispostas

as viagens, e detalhadamente delineadas, de ma-

Alguns documentos, etc, pag. 33.

Page 226: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

222 A Descoberta do Brasil

neira que o acaso desapparecia por completo, e o

imprevisto era reduzido cada vez a menores pro-

porções.

Também tivera o seu minucioso regimento a

frota de Cabral, ia organisada de maneira que

ainda hoje causa admiração, e levava marcado o

próprio rumo, o discutido rumo em que foi ao

Brasil.

Ao partirem da ilha de Santiago de Cabo Verde

deviam os navios fazer o seu caminho pelo sul : « e

se houverem de guinar (desviar, bordejar) seja so-

bre a banda de sudoeste. .. e tanto que n'elles der

o vento escasso devem ir na volta do mar até met-

terem o Cabo da Boa Esperança em leste franco ».

Duarte Pacheco, no Esmeraldo de situ orbis, des-

crevendo o caminho da costa de Africa, com escala

pela Angra dos Ruivos, Bisiguiche (Goréa), e

S. Jorge da Mina, que se pretendia seguir na via-

gem para a índia; que Diogo Cão fizera até ao

Congo, e Bartholomeu Dias percorrera, tocando

também na Angra do Salto, ao descobrir o Cabo

da Boa Esperança; consignava já outro rumo, por-

que as grandes difíiculdades em dobrar o extremo

sul do continente tinham feito abandonar aquelle:

« costumamos fazer outra via para a índia, partindo

Page 227: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 223

do Cabo Verde pelo golfão por onde se encurta

mais a viagem e nos fica em mór proveito».

Explica João de Barros \ que transcrevemos

por estar de accordo com o documento, que se to-

mava esse rumo : « por fugir da terra da Guiné,

onde as calmarias lhe podiam impedir seu caminho,

empegou-se muito no mar por lhe ficar seguro po-

der dobrar o Cabo da Boa Esperança».

Diz Galvão, Tratado dos descobrimentos, nas mes-

mas condições de Barros : « Partiu Pedro Alva-

res... com regimento que se afastasse da costa

d'Africa para encurtar a via».

Por sua parte escreve Gaspar Correia :^ « Dom

Vasco da Gama fez conselho com os mestres e pi-

lotos da navegação que fariam para encurtar cami-

nho, que era cortar pelo mar largo, tomando largos

os ventos do mar que corriam para terra, com

muito resguardo por dobrar p Cabo da Boa Espe-

rança ».

Ficou sendo usual seguir este caminho para a

índia. Falando da viagem de D. Francisco d'Al-

1 Décadas da Ásia, l.*, pag, 85.

2 Lendas da índia, vol. i, pag. 149.

Page 228: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

224 A Descoberta do Brasil

meida diz Galvão : « e fez seu caminho na volta do

Brasil como era costume ».

Percorrera-o também Vasco da Gama por con-

veniência da sua viagem. Explicavam os escriptores

de então com as mesmas rasões as viagens dos

dois. Escreve Gaspar Correia ^, falando do rumo dos

navios do Gama : « corriam quanto podiam para o

mar, donde era o vento, por dobrarem a terra sem

trabalho»; e depois^ descrevendo o caminho se-

guido por Cabral : « por se mais metterem no mar,

para que os ventos lhes fossem mais largos para

navegar para o cabo ».

Effectivamente indicara o Gama a Cabral o rumo

que já seguira « indo na volta do mar ao sul e a

quarta do sudoeste» ^

Foi assim a primeira parte da viagem da frota,

de Lisboa ao Brasil, o cumprimento das instrucções

recebidas; o exacto seguimento d'esse caminho tra-

çado por conveniência da navegação; uma coisa na-

tural, regular, prevista, sem incidentes, sem surpre-

^ Lendas da índia, vol. i, pag. 16,

2 Idem, idem, pag. 149.

3 Roteiro da viagem de Vasco da Gama, pag. 3.

Page 229: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 225

zas, sem contrariedades, sem difficuldades de qual-

quer ordem.

Chegaram até nós as narrativas de Caminha e

de um dos pilotos. Ninguém melhor do que elles

pôde dizer o que se passou.

Escreve Pêro Vaz de Caminha a D. Manuel

:

«que a partida de Belém, como vossa alteza sabe,

foi segunda-feira 9 de março; e sábado, 14 do dito

mez, entre as 8 e 9 horas, nos achámos entre as

Canárias, mais perto da Gran Canária, e ali andá-

mos todo aquelle dia em calmaria, á vista d'ellas,

obra de três ou quatro léguas ; e domingo 22 do

dito mez, ás 10 horas, pouco mais ou menos, hou-

vemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber: da

ilha de S. Nicolau, segundo dito de Pêro Escolar,

piloto ; e a noute seguinte a segunda-feira lhe ama-

nheceu se perdeu da frota Vasco de Athayde com

a sua nau, sem ahi haver tempo forte, nem contra-

rio para poder ser; fez o capitão suas diligencias

para o achar a umas e outras partes, e não appa-

receu mais; e assim seguimos nosso caminho por

este mar de longo até terça-feira de oitavas de pas-

choa, que foram 21 de abril, que topámos alguns

signaes de terra... e a quarta-feira seguinte...

houvemos vista de terra».

15

Page 230: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

226 A Descoherta do Brasil

Descreve o piloto n'estes termos o que se pas-

sou: «No dia seguinte levantárr.os ancoras com

vento prospero, e aos quatorze do mesmo mez che-

gámos ás Canárias; aos vinte e dois passámos Cabo

Verde, e no dia seguinte esgarrou-se uma nau da

armada, por forma tal que não se soube mais d'el-

la. Aos vinte e quatro de Abril, que era uma quarta

feira de oitavado da paschoa, houvemos vista de

terra ».

Foi avistado o Brasil na quarta-feira 22 de abril.

Concorda o piloto em todas as datas com Caminha,

e n'esta é egual no dia, mas differe na data por erro

de copistas e traductores. Está na Torre do Tom-

bo o original da carta de Caminha; foi traduzida

para italiano, do original português, a narrativa do

piloto que não se encontra, e vertida do italiano para

a nossa lingua. Acertam com os dias da semana, an-

tes e depois d'aquella, todas as datas de Caminha.

A data da commemoração offícial é porém de 3

de maio, por se haver seguido os chronistas que a

dão assim erradamente.

Nada dizem as duas testemunhas da viagem da

tão falada tempestade providencial, do temporal aben-

çoado, do feli:{ acaso, das correntes impellindo a frota,

e de outros palavrosos logares communs com que

Page 231: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 22^]

geralmente se pretende explicar a ida de Cabral ao

Brasil.

Chega a dizer Caminha: «e assim seguimos

nosso caminho », o que mostra como era cons-

ciente o rumo.

Houve porém um temporal, a que Caminha não

allude porque fecha a sua carta em 1 de maio, vés-

pera da saída do Brasil para o Cabo, mas que o pi-

loto ^ descreve assim: «No outro dia, que eram dois

de maio ^ fizemo-nos á vela para ir demandar o

Cabo da Boa Esperança, achando-nos então engolfa-

dos no mar mais de mil e duzentas léguas de quatro

milhas cada uma ; e aos doze do mesmo mez, se-

guindo o nosso caminho, nos appareceu um cometa

para as partes da Ethiopia, com uma cauda muito

comprida, o qual vimos oito ou dez noutes a fio;

em fim do mesmo mez, navegando a armada toda

junta, com bom vento, as velas em meia arvore e

seus traquetes, por causa de uma borrasca que ti-

* Collecção de noticias para a historia e geographia das

nações ultramarinas, vol. 11, pag. 107,

2 Não só a chegada da frota ao Brasil não foi em 3 de

maio, mas também n*esse dia nem sequer já lá estava.

Page 232: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

228 A Descoberta do Brasil

nhamos tido em o dia antecedente, veiu um tufão

de vento tão forte e tão de súbito por diante, que o

não percebemos senão quando as velas ficaram cru-

zadas nos mastros ; n'este mesmo instante se per-

deram quatro naus com toda a sua matalotagem, sem

se lhes poder dar soccorro algum, e as outras sete

que escaparam estiveram em perigo de se perde-

rem; e assim fomos aguentando o vento com os

mastros e as velas rotas, e a Deus misericórdia

todo aquelle dia ; o mar embraveceu-se por maneira

tal, que parecia alevantar-nos ao céo, até que o

vento se mudou de repente, e posto que a tempes-

tade ainda era tão forte que não nos atrevíamos a

largar as velas, ainda assim navegando sem ellas,

perdemo-nos uns dos outros, de modo que a capita-

nia com duas outras naus tomaram um rumo, outra

chamada El-Rei com mais duas tomaram outro, e as

que restavam ainda outro ; e assim passámos esta

tempestade vinte dias consecutivos sempre em

arvore secca; até que aos dezesseis do mez de ju-

nho, houvemos vista de terra da Arábia onde sur-

gimos ...»

Foi este o temporal que soffreram os navios de

Cabral, mas deu-se depois de sairem do Brasil, ao

irem para o Cabo. Se tivesse havido aquelle de que

Page 233: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 22ç

falam, como teria escapado aos dois minuciosos nar-

radores ?

Deu logar á confusão a falta de um rigoroso

estudo da viagem, a ignorância d'estes preciosos de-

talhes, mudando-se inconscientemente a data da tem-

pestade, para explicar com ella esse mysterioso pro-

cedimento de Cabral que, partindo para a índia,

fora ter ao Brasil.

Em vez da frota ser occasionalmente arrastada

áquelle rumo pelos ventos e correntes desconheci-

das, foi o conhecimento das correntes marítimas e

dos ventos geraes qiie determinou a escolha d'esse

rumo, como mais conveniente á navegação.

De tentativa em tentativa, na anciã de colher

novos resultados, mais seguras informações, tinham

os navios portugueses, nas suas longas viagens pelo

Atlântico, notado a existência das correntes, a ponto

de contarem com ellas nas viagens, e de as descre-

verem nos roteiros.

Mostra o exame das correntes e ventos geraes,

num planispherio actual, que ao seguir esse rumo

se aproveitava a corrente equatorial do norte, para

ir ao largo, evitando as calmarias do equador, a

corrente equatorial do suL e os ventos geraes do

sueste, contrários á viagem para* o sul;que se utili-

Page 234: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

230 A Descoberta do Brasil

sava a corrente brasileira, que passa paralelamente

á costa, á distancia de 40 ou 50 léguas, na direcção

de nornordeste a susueste ; e que se seguia essa

corrente até que o encontro da corrente de juncção

meridional, e dos ventos dominantes de noroeste,

permittisse a viagem para o Cabo;que tinha de do-

brar-se em rumo de nordeste, vindo do sul, por

causa da corrente do Atlântico do sul, que contra-

riava a viagem aos que tocassem na costa Occiden-

tal d'Africa, e por causa das correntes que do Mar

das índias vinham ali desembocar, tornando essa

passagem tempestuosa e difficil.

E quanto mais os navios se afastavam das costas

orientaes do Atlântico, quanto maior era o angulo

que iam descrever para dobrar o cabo, quanto mais

extenso era o caminho percorrido, tanto mais de-

pressa realizavam a viagem, pela utilisação das cor-

rentes e ventos favoráveis, pelo afastamento das

zonas de calmaria, pela distancia em que iam pas-

sar pelo sul d'Africa para entrarem no Oceano

Indico.

Dura dezeseis mezes e dezesete dias a viagem

de Bartholomeu Dias, que vae pela costa, levando

nove mezes em explorações nos mares austraes, até

que podesse passar á costa oriental; fazendo-se ao

Page 235: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 231

largo, gasta Vasco da Gama, de Lisboa ao Cabo,

quatro mezes e doze dias; correndo ainda mais para

sudoeste faz Cabral o percurso em cerca de três

mezes, apezar da demora no Brasil e dos temporaes

que soffreu de lá até ao Cabo.

Pôz Cabral ao Brasil o nome de Vera Cruz \

Diz Caminha : « ao qual monte alto o capitão pôz

o nome monte Paschoal e á terra a terra de Vera

Cruz ». É datada a sua carta « d'este porto se-

guro da vossa ilha de Vera Cruz ». E feita « em

Vera Cruz » a carta de mestre João physico.

Mas não se vulgarisou este nome, e já em 29 de

julho de 1501, na carta aos reis catholicos, diz

D. Manuel: «á qual pôz o nome de Santa Cruz».

Em carta de 1505 torna a dizer aos reis de Cas-

tella : « á qual terra pôz o nome de Santa Cruz : e

isto foi porque na praia arvorou uma cruz muito

alta ».

No Cancioneiro geral, coUigido por Garcia de

1 Vera cru^ (verdadeira cruz), maneira corrente de alludir

ai'esse tempo á cruz: «muitos lenhos ha ahi, que dizem que são

do lenho da vera-cruz e não são » Carta de Sá de Miranda em

1531. Corpo diplomático, t. 11, pag. 325.

Page 236: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

232 A Descoberta do Brasil

Rezende (15 16), emprega João Rodrigues de Sá a

usual referencia á cruz:

« A veera cruz verdadeyra » *.

Da mesma forma que, logo ao começo, originou

a modificação do nome, produziu também a cruz

a confusão da data. Lê-se nas Lendas da índia:

«o capitão mór pôz o nome de Santa Cruz a esta

nova terra, por que a ella chegaram a três de

maio, dia de Santa Cruz». Três de maio é o dia

da « Invenção de Santa Cruz », isto é da « Desco-

berta da Santa Cruz », porque a invenção é mal tra-

duzida do latim inventione (descoberta). E ahi está

a origem da confusão. ,

Vem do pau brasil o nome Brasil, já conhecido

na Europa na importação das drogas do oriente.

Aponta-o por vezes Marco Polo entre as produc-

ções de varias terras da Ásia. Indicam os preços do

pau brasil do oriente o roteiro da primeira viagem

de Vasco da Gama, o Livro dos pe:^os da índia, o Li-

vro das lembranças das cousas da índia, e outros.

Na carta do feitor João Brandão (1509) ligam-

se de uma forma curiosa as duas designações, no-

1 Fl. cxv, V.

Page 237: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 233

ticiando-se a venda em Anvers do brasil de Santa

Cruz.

Foi o Brasil ao começo também conhecido por

Terra dos Papagaios, como se vê no mappa de

Cantino ; mas essa designação, como a de Santa

Cruz ficaram supplantadas pela de terra do brasil

e depois simplesmente Brasil.

Não passou de moda sem reluctancia o nome de

Santa Cruz.

Indigna-se João de Barros ^ com a substituição

:

«Por o qual nome Santa Cruz, foi aquella terra

nomeada os primeiros annos : e a cruz arvorada al-

guns durou n'aquelle logar. Porém como o demónio

por o signal da cruz perdeu o dominio que tinha

sobre nós, mediante a paixão de Christo Jesus con-

sumada nella : tanto que d'aquella terra começou

de vir o pau vermelho chamado brasil, trabalhou

que este nome ficasse na bocca do povo, e que se

perdesse o de Santa Cruz : Como que importava

mais o nome de um pau que tinge pannos;que d'a-

quelle pau que deu tintura a todos os sacramentos

por que somos salvos, por o sangue de Christo Je-

sus que n'elle foi derramado. E pois em outra coisa

1 Décadas, pag. 88.

Page 238: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

234 A Descoberta do Brasil

n esta parle me náo posso vingar do demónio, ad-

moesto da parte da cruz de Christo Jesus a todos

os que este logar lerem que dêem a esta terra o

nome que com tanta soiemnidade lhe f©i posto, sob

pena de a mesma cruz, que nos ha-de ser mostrada

no dia final, os accusar de mais devotos do pau

brasil que d'ella. E por honra de tão grande terra

chamemo-lhes província, digamos a Província de

Sancta Cruz, que soa melhor entre prudentes, que

Brasil posto por o vulgo sem consideração e não

habilitado para dar nome ás propriedades da real

coroa ».

E Pêro Vaz de Caminha quem descreve,

n'aquella encantadora simplicidade que faz da sua

carta um dos mais notáveis documentos dos desco-

brimentos de Portugal, o que se passou entre portu-

gueses e indígenas, n'esse memorável encontro, que

pode considerar-se o acto solemne da fundação da

pátria brasileira.

Commentam a narrativa do português, descre-

vendo o procedimento dos portugueses, extractos do

livro em que um hespanhol, contemporâneo e teste-

munha presencial, conta o que fizeram os hespa-

nhoes.

No momento em que se impõe o dever de rei-

Page 239: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 235

vindicar, sem contemplações de espécie alguma, o

glorioso papel de Portugal na descoberta e na co-

lonisação da America, papel uzurpado por Colombo,

Pinzon, Hojeda, Lepe, e tantos outros que assigna-

laram com sangue a sua chegada á terra americana,

e exterminaram systematicamente as populações,

temos de juntar ao processo histórico essa peça

sangrenta.

Page 240: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca
Page 241: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

X

Os portugueses no Brasil

CARTA DE PÊRO VAZ DE CAMINHA A EL-REl D. MANUEL

A parte em itálico constitue a exacta reproduc-

ção da primeira pagina da celebre carta:

Senhor

posto que o capitam moor desta vossa frota e asy os ou-

tros capitaães spreuam a Vossa Alte^^a a noua do acha-

mento desta vossa terra noua que se ora neesta nave-

Extractos da T)estruição das índias de Bartolomé

de Las Casas:

Todas estas gentes (os índios da America) creou Deus sem

maldade nem dissimulação, obedientíssimas, fidelíssimas a seus

senhores naturaes e aos Christãos a quem servem, mais humildes,

Page 242: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

238 A Descoberta do Brasil

gaçom achou, nom leixarey também de dar disso minha

comta a vossa aUe:(ci asy como eu milhor poder ajmda

que pêra o bem contar e falar o saiba pior que todos

fa^er, pêro tome vossa alteia minha inoramçia por boa

vomtade, a qual bem certo crea que por afremosentar

nem afear aja aquy de poer mais ca aquilo que vy e

me pareceo, da marinhajem e simgraduras do caminho

nom darey aquy conta a vossa alte:^a porque o nom sa-

berey fa^er e os pilotos deuem teer ese cuidado e por

tanto senhor do que.ey de falar começo e digno:

que a partida de belem como vossa alteia sabefoy se-

gunda feira ix de março, e sábado xiiij do dito mes am-

tre as biij a ix oras, nos achamos antre canareas mais

perto da gram canarea e aly amdamos todo aquele dia

em calma a vista delas obra de três ou quatro legoas, e

mais pacientes, mais pacificas e quietas, sem desordens nem tu-

multos, nem rixas nem questões, sem rancores, sem ódios, sem de-

sejar vingança, as mais simples que ha n'este mundo... suas ar-

mas são tão fracas e de tão pouca aggressão e resistência e ainda

menos de defeza, pelo que todas as suas guerras são pouco mais

do que jogos de cannas ou brinquedos de creanças.

N'estas ovelhas mansas das qualidades sobreditas assim do-

tadas por seu creador, entraram os hespanhoes desde que os co-

nheceram como lobos ou tigres e leões crudelissimos, esfomea-

Page 243: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 23g

domingo xxij do dito mes cias X oras pouco mais uu me-

nos ouuemos vista das jlhas do cabo verde. s. da jlha

de sam nicolau, segundo dito de Pêro escolar piloto e a

noute segujnte aa segunda feira lhe amanheçeo se perdeo

da frota Vaasco datayde com a sua naao sem hy auer

tempo forte nem contrairo pêra poder seer. Fe^ o capitam

suas deligençias pêra o achar a huuas e a outras partes

e nom pareçeo majs. E asy segujmos nosso caminho per

este mar de longo ataa terça feira d oitauas de páscoa.

que foram xxj dias dahril que topamos alguns synaaes

de terá seemdo da dita ilha segundo os pilotos de:(iam

obra de bjclx ou Ixx legoas, os quaaes heram mujta

camtidade deruas compridas a que os mareantes cha-

mam botelho e asy outras, a que também chamam

rrabo dasno. E aa quarta feira seguinte pola ma-

dos de muitos dias. E outra coisa não tem feito... senão des-

pedaçal-as, matal-as, angustial-as, afíligil-as, atormental-as, edes-

truil-as pelas estranhas e novas maneiras de crueldade nunca vis-

tas, nem lidas nem ouvidas.

Vêr a estes índios quando se preparavam para conduzir as

cargas dos Hespanhoes é ter d'elles grande compaixão e lastima.

Porque vem nus, somente cobertas suas vergonhas, e com umas

redezinhas ao hombro com a sua pobre comida.. . como uns cor-

deiros muito mansos. Juntos todos no pateo com outra gente que-

Page 244: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

240 A Descoberta do Brasil

nhã, topámos aves a que chamam fura buchos, e

n'este dia a horas de vésperas houvemos vista de

terra, a saber: primeiramente de um grande monte

mui alto e redondo, e d'outras terras mais baixas ao

sul d'elle, e de terra chã com grandes arvoredos, ao

qual monte alto o capitão poz nome de Monte Pas-

choal e á terra a Terra da Vera Cruz.

Mandou lançar o prumo, acharam 25 braças, e

ao sol posto, obra de 6 léguas de terra, surgimos

ancoras em IQ braças, ancoragem limpa. Ali pas-

sámos toda aquella noite, e á quinta feira pela ma-

nhã fizemos vela e seguimos direitos á terra, e os na-

vios pequenos diante, indo por 17, l6, 15, 14> 13, 12,

10 e 9 braças, até meia légua de terra onde todos

lançámos ancoras em direito da bocca d'um rio, e

chegaríamos a esta ancoragem ás 10 horas pouco

mais ou menos ; e d'ali houvemos vista de homens

que andavam pela praia, obra de 7 ou 8, segundo

esteja á volta d'elles, põe-se uns Hespanhoes á porta, guardando-a

armados para que elles não saiam, e todos os outros passam á es-

pada e atravessam com as lanças todas aquellas mansas ovelhas,

que nenhum escapa que não seja trucidado. Ao cabo de dois ou

três dias de uma d'estas chacinas saiam alguns Índios vivos, co-

bertos de sangue... e iam. chorando pedir misericórdia aos

Page 245: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 241

OS navios pequenos disseram por chegarem pri-

meiro.

Ali lançámos os bateis e esquifes fora, e vieram

logo todos os capitães das naus a esta nau do capi-

tão mór, e ali falaram, e o capitão mandou no batel

a terra Nicolau Coelho, para ver aquelle rio ; e tanto

que elle começou a ir para lá acudiram pela praia

homens aos dois, aos três, de maneira que quando

o batel chegou á bocca do rio eram ali 18 ou 20

homens pardos, todos nus, sem nenhuma cousa que

lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas

mãos e suas settas.

Vinham todos rijos para o batel, e Nicolau Coe-

lho lhe fez signal que depozessem os arcos, e elles

os depozeram. Ali não poude d'elles haver fala nem

entendimento que aproveitasse, pelo mar quebrar

na costa; somente lhes deu um barrete vermelho, e

uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um

Hespanhoes, para que não os matassem. Mas nenhuma misericór-

dia nem compaixão tiveram, antes os fizeram em pedaços. A to-

dos os chefes, que eram mais de cem, e que tinham amarrado,

mandou o capitão queimar...

. , . estando os índios em suas povoações e casas, descansados

iam de noite os funestos Hespanhoes salteadores até meia légua

16

Page 246: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

242 A Descoberta do Brasil

sombreiro preto. E um d'elles lhe deu um som-

breiro de pennas de aves compridas, com uma co-

pazinha pequena de pennas vermelhas e pardas

como as de papagaio, e outro lhe deu um ramal

grande de continhas brancas miúdas, que querem

parecer daljaveira, as quaes peças creio que o capi-

tão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu

ás naus por ser tarde e não poder d'elles haver

mais fala por causa do mar.

A noite seguinte ventou tanto sueste, com chuva-

ceiros, que fez caçar as naus e especialmente a ca-

pitania. E na sexta pela manhã, ás 8 horas pouco

mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o

capitão levantar ancoras e fazer vela, e fomos de

longo da costa com os bateis e esquifes amarrados

á popa, contra o norte, para ver se achávamos al-

guma abrigada e bom pouso onde poisássemos para

tomar agua e lenha, não por nos já minguar mas

da povoação e ali ii'aquella noite entre si mesmos apregoavam

ou liam o dito requerimento dizendo: «Caciques e índios d'esta

terra firme de tal povoação, fazemos saber qua ha um Deus e um

papa e um rei de Castella que é senhor d'estas terras : vinde im-

mediatamente dar-lhes obediência senão sabei que vos faremos

guerra e mataremos e captivaremos, etc. » A tal quarto de alva

Page 247: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 243

para nos acertarmos aqui. E quando fizemos vela

seriam já na praia assentados junto ao rio obra de

60 ou 70 homens que se juntaram ali a pouco e

pouco. Fomos de longo, e mandou o capitão aos

navios pequenos que fossem mais chegados á terra,

e que, se achassem poiso seguro para as naus, que

amainassem.

E indo nós pela costa, obra de 10 léguas donde

levantámos ferro, acharam os ditos navios pequenos

um recife, com um porto dentro muito bom e muito

seguro, com uma mui larga entrada, e meteram-se

dentro e amainaram, e as naus arribaram sobre el-

les, e um pouco antes do sol posto amainaram obra

de uma légua do arrecife, e ancoraram-se em 11

braças. E sendo Affonso Lopes, nosso piloto, em

um d'aquelles navios pequenos por mandado do ca-

pitão, por ser homem vivo e destro para isso, met-

estando os innocentes a dormir com suas mulheres e filhos * ataca-

vam a povoação, deitando fogo ás casas, que são de palha, e quei-

mavam vivas as creanças, e mulheres, e muitos dos demais. Antes

que acordassem matavam os que queriam, e os que tomavam com

vida matavam com tormentos, para que dissessem se em outras

povoações havia ouro, ou lhe dessem mais ouro que o que ali

achavam. ..

Page 248: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

244 A Descoberta do Brasil

teu-se logo no esquife a sondar o porto já dentro ; e

tomou em uma almadia dois d'aquelles homens da

terra, mancebos e de bons corpos, e um d'elles

trazia um arco e 6 ou 7 settas, e na praia andavam

muitos com seus arcos e settas, e não se serviram

d'ellas. Trouxe-os logo, já de noute, ao capitão, por

quem foram recebidos com muito prazer e festa.

A feição d'elles é serem pardos, maneira de

avermelhados, de bons rostos e bons narizes bem

feitos, andam nús sem nenhuma cobertura, nem esti-

mam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas ver-

gonhas, e estão acerca d'isso com tanta innocencia

como teem em mostrar o rosto. Traziam ambos os

beiços de baixo furados, e mettidos por elles ossos

brancos de comprimento de uma mão travessa, e da

grossura de um fuso de algodão, e agudo na ponta

como furador ; mettem-os pela parte de dentro do

beiço e o que lhes fica entre o beiço e os dentes é

Uma vez os índios sairam a receber-nos com mantimentos

e presentes a dez léguas de uma grande povoação e, chegados ali,

nos deram grande quantidade de pescado e pão, e comida com

tudo o mais que puderam : subitamente o diabo revestiu os chris-

tãos e acutilaram na minha presença (sem que tivessem motivo)

mais de três mil almas que estavam sentadas diante de nós, ho-

Page 249: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 245

feito como roque de xadrez, e em tal maneira o

trazem ali encaixado que não os incommoda nem

lhes estorva a falia, nem comer nem beber. Os ca-

bellos são corredios, e andam tosquiados de tosquia

alta, mais que de sobre pente de boa altura, e rapa-

dos até por cima das orelhas ; e um d'elles trazia

por baixo da solapa, de fonte a fonte virada para

traz uma maneira de cabelleira de pennas de ave

amarella, que seria de comprimento de um conto,

mui basta e mui cerrada que lhe cobria o toutiço e

as orelhas ; a qual andava pegada nos cabellos

penna e penna com uma confeição branda como

cera, e não o era, de maneira que andava a cabelleira

mui redonda e mui basta e mui egual, que não fa-

zia mingua mais lavagem para a levantar.

O capitão, quando elles vieram, estava assentado

em uma cadeira, e uma alcatifa aos pés por estrado,

e bem vestido, com um coUar de ouro mui grande

mens, mulheres e creanças. Ali vi tão grandes crueldades que

nunca os vivos viram nem pensaram vêr.

Outro dia o capitão chamou o chefe principal, e outros mui-

tos chefes, e vindo elles como mansas ovelhas prendeu-os a todos,

e disse que lhe dessem tantas cargas de ouro. Responderam-lhe

que não o tinham porque aquella terra não é de ouro. Mandou-os

Page 250: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

246 A Descoberta do Brasil «

ao pescoço, e Sancho de Toar e Simão de Miranda

e Nicolau Coelho e Ayres Correia e nós outros, que

aqui na nau com elle vamos, assentados no chão

por essa alcatifa. Acenderam-se tochas e entraram,

e não fizeram nenhuma menção de cortesia, nem de

fallar ao capitão nem a ninguém, mas um d'elles

poz os olhos no collar do capitão e começou a

acenar com a mão para a terra e depois para o

collar, como que nos dizia que havia em terra ouro

;

e também viu um castiçal de prata e assim mesmo

acenava para terra e então para o castiçal, como

a dizer que havia também prata. Mostraram-lhes

um papagaio pardo, que aqui o capitão traz, to-

maram-o logo na mão e acenaram para terra como

a dizer que os havia ali. Mostraram-lhes um car-

neiro, não fizeram caso d'elle. Mostraram-lhes uma

gallinha e quasi que tinham medo d'ella, e não lhe

queriam pôr a mão, e depois a tomaram como es-

pantados.

logo queimar vivos sem outra culpa, nem outro processo nem

sentença.

. . . dando-lhes um cacique ou chefe, por vontade ou por

medo... nove mil castelhanos (moeda de ouro) não contentes

com isto prenderam o dito chefe e ataram-n*o a um pau, sentado

Page 251: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 247

Deram-lhes ali de comer ^ pão e pescado cozi^

do, confeitos, fartees, mel e figos passados ; não qui-

zeram comer d'aquillo quasi nada e alguma coisa

se a provavam lançavam-a logo fora. Trouxeram-

Ihes vinho por uma taça, poseram-lh'o assim á boc-

ca, contra vontade d'elles, mas não gostaram, nem

o quizeram mais. Trouxeram-lhes agua por uma al-

barada, tomaram golos d'ella e não beberam, so-

mente lavaram as bocças e lançaram fora.

Viu um d'elles um rosário de contas brancas,

acenou que lh'as dessem e folgou muito com ellas

e lançou-as ao pescoço ; e depois tirou-as e embru-

Ihou-as no braço, e acenava para terra e então para

no chão, e estendendo-lhe os pés puzeram-lhes fogo para que

desse mais ouro. Elle mandou a sua casa e trouxeram outros três

mil castelhanos. Tornando-lhe a dar tormentos e não dando elle

* Eram sempre bem tratados nos navios portugueses os in-

dígenas das terras onde chegavam. Eis como Vasco da Gama

procedeu para com um preto do rio de Santiago (sul d'Africa)

na sua primeira viagem: < levamol-o á nau do capitão-mór, o

qual o pôz comsigo á mesa e de tudo o que nós comiamos comia

elle. E ao outro dia o capitão-mór o vestiu muito bem e o man-

dou pôr em terra». Roteiro da viagem de Vasco da Gama em

H97' pag- 5.

Page 252: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

248 A Descoberta do Brasil

as contas e para o coUar do capitão, como que da-

riam ouro por aquillo. Isto tomávamos nós assim,

por o desejarmos ; mas se elle queria dizer que le-

varia as contas e mais o collar, isto não queríamos

entender, porque lh'o não haviamos de dar; e de-

pois tornou a dar as contas a quem lh'as deu, e en-

tão estiraram-se assim de costas na alcatifa a dor-

mir, sem ter nenhuma maneira de cobrirem suas

vergonhas, as quaes não eram fanadas ^ e as cabel-

leiras d'ellas bem rapadas e feitas.

mais ouro... tiveram-n'o d'aquella maneira até que os tutanos

lhe saíram pelas solas dos pés, e assim morreu. E foram infinitas

^ Circumcidadas. O Esmeraldo, descrevendo os pretos da

costa d'Africa diz: « os negros d'esta costa não são circumcisos ».

Na descripção da Ethiopia, que acompanha o Livro de Marco

Polo por Valentim Fernandes AUemão, lê-se : « Estes christãos,

segundo alguns, além de serem baptisados se circumcidam », ORoteiro de Vasco da Gama, descrevendo os pretos do rio de San-

tiago, nota que « andam cobertos de pelles e trazem umas bai-

nhas em suas vergonhas ». A intenção de Caminha é, como a dos

outros, notar se os indigenas são ou não circumcidados, isto é,

se pertencem ou não á religião musulmana, se são os inimigos e

irreductiveis crentes mahometanos, ou os pagãos entre os quaes

o christianismo podia fazer proselytos.

Page 253: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 249

O capitão lhes mandou pôr debaixo da cabeça

um coxim a cada um, e o da cabelleira procurava

acommodar-se de maneira a não a quebrar, e lança-

ram-lhes um manto em cima, e elles consentiram e

assim ficaram e dormiram.

Ao sábado pela manhã mandou o capitão fazer

de vela, e fomos demandar a entrada, a qual era

mui larga, e alta de 6 a 7 braças, e entraram todas

as naus dentro e ancoraram-se de 5 a 6 braças, a

qual ancoragem dentro é tão grande e tão formosa

e tão segura que podem ancorar dentro n'ella mais

de duzentos navios e naus. E tanto que as naus fo-

ram poisadas e ancoradas, vieram os capitães todos

a esta nau do capitão-mór ; e d'aqui mandou o capi-

tão a Nicolau Coelho e Bàrtholomeu Dias que fos-

sem a terra e levassem aquelles dois homens, e os

deixassem ir com seus arcos e settas, aos quaes

mandoil dar, a cada um, camisas novas e carapuças

vermelhas, e dois rosários de contas brancas de osso,

que elles levavam nos braços, e cascavéis e campai-

as vezes que d'esta maneira mataram e atormentaram chefes para

lhes extorquir ouro.

Outra vez porque os índios não lhes deram um cofre cheio

de ouro... mataram infinitas almas e cortaram mãos e nari-

Page 254: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

250 A Descoberta do Brasil

nhãs ; e mandou com elles, para ficar lá, um mancebo

degredado, creado de Dom João Tello, a que cha-

mam Affonso Ribeiro, para andar lá com elles e sa-

ber de seu viver e maneiras ; e a mim mandou que

fosse com Nicolau Coelho.

Fomos assim de frecha direitos á praia ; ali acu-

diram logo obra de duzentos homens, todos nús e

com arcos e settas nas mãos. Aquelles que nós le-

vávamos, acenaram-lhes que se afastassem e depo-

sessem os arcos, e elles os deposeram e não se afas-

tavam muito. Logo que deposeram seus arcos, saí-

ram os que nós levávamos, e o mancebo degredado

com elles, os quaes assim como sairam não pararam

mais, nem esperava um por outro, senão a quem

mais correria, e passaram um rio que por ali corre

de agua doce, de muita agua que lhes dava pela

braga, e outros muitos com elles, e foram assim cor-

rendo alem do rio entre umas moitas de palmas

onde estavam outros e ali pararam ; e n'aquillo foi o

degredado com um homem que logo ao sair do ba-

zes a mulheres e a homens, que não se poderiam contar, e

lançaram outros aos ferozes cães que os despedaçavam e co-

miam.

Em três ou quatro mezes, estando eu presente, morreram de

Page 255: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 251

tel o agasalhou e levou-o até lá, e logo o tornaram

a nós, e com elle vieram os outros que nós levámos,

os quaes vinham já nús e sem carapuças.

E então se começaram de chegar muitos e en-

travam pela beira do mar para os bateis até que

mais não podiam e traziam cabaças d'agua e toma-

vam alguns barris que nós levávamos, e enchiam-os

de agua e traziam-os aos bateis. Não que elles de

todo checassem á borda do batel mas, junto com

elle, lançavam-o da mão e nós tomavamo-ro, e pe-

diam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau

Coelho cascavéis e manilhas, a uns dava um cacas-

vel e a outros uma manilha, de maneira que com

aquella isca quasi nos queriam dar a mão. Davam-

nos d'aquelles arcos e settas por sombreiros e cara-

puças de linho, e por qualquer coisa que lhes que-

riam dar. D'ali se partiram os outros dois mancebos,

que não os vimos mais.

Andavam ali muitos d'elles ou quasi a maior

parte, que todos traziam aquelles bicos d'osso nos

fome, por lhe terem levado para as minas os pães e as mães,

mais de sete mil creanças.

... chegaram mais de trezentos chefes... confiadamente...

e mettidos os principaes n'uma grande casa de palha... queima-

Page 256: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

252 A Descoberta do Brasil

beiços, e alguns que andavam sem elles traziam os

beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos

de pau, que pareciam espelhos de borracha, e

alguns d'elles traziam três d'aquelles bicos, a sa-

ber : um na metade e os dois nos extremos. E anda-

vam ali outros quartejados de cores, a saber : d'elles

a metade da sua própria cor e a metade de tintura

negra, á maneira de azulada, e outros quartejados

de escaques. Ali andavam entre elles três ou quatro

moças, bem moças e bem gentis, com cabellos muito

pretos compridos pelas espáduas, e suas vergonhas

tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabel-

leiras, que de nós muito bem olharmos não tínha-

mos nenhuma vergonha.

Ali por então não houve mais fala nem entendi-

mento com elles, por a barbárie d'elles ser tamanha

que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-

Ihes que se fossem e assim o fizeram, e passaram-se

além do rio, e sairam três ou quatro homens nossos

dos bateis, e encheram não sei quantos barris

ram-os vivos. A todos os outros atravessaram á lançada, e pas-

saram á espada com infinita gente, e enforcaram o chefe Ana-

caona para ' lhe dar honra. Acontecia que alguns christãos, ou

por piedade ou por cobiça, tomavam algumas creanças e, para

Page 257: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 253

d'agua que nós levávamos, e tornámo-nos ás naus.

E vindo nós assim acenaram-nos que voltássemos.

Voltámos, e elles mandaram o degredado, e não qui-

zeram que ficasse lá com elles, o qual levava uma

bacia pequena e duas ou Ires carapuças ver-

melhas para dar ao senhor, se lá o houvesse. Não

lhe tomaram nada, e assim o mandaram com tudo,

e então Bartholomeu Dias o fez outra vez voltar,

e deu aquillo á vista de nós áquelle que da pri-

meira vez o agasalhou, e então regressou e trouxe-

mo-ro.

Este que o agasalhou era já de dias, e andava

todo por louçania cheio de pennas pegadas pelo

corpo, que parecia assetteado como São Sebastião.

Outros traziam carapuças de pennas amarellas, e

outros de vermelhas, e outros de verdes. E uma

d'aquellas moças era toda tinta, do fundo a cima,

d'aquella tintura, a qual certo era tão bem feita e

tão redonda, e sua vergonha, que ella não tinha, tão

graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra,

que não as matassem, punham-as nas ancas dos cavallos; mas

vinha outro Hespanhol por detraz e atravessava- as com a lança.

. . , outra coisa não teem feito os infinitos tiranos Hespa-

nhoes senão... saltear, matar e roubar ouro áquellas gentes...

Page 258: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

254 -^ Descoberta do Brasil

vendo-lhe taes feições, fizera vergonha, por não te-

rem a sua como ella. Nenhum d'elles era fanado,

mas todos assim como nós \ e com isto voltámos e

elles foram-se.

A tarde sahiu o capitão-mór em seu batel com

todos nós, e com os outros capitães das naus em

seus bateis, a folgar pela bahia perto da praia, mas

ninguém sahiu em terra pelo capitão não querer,

sem embargo de ninguém n'ella estar ; somente

sahiu elle com todos em um ilheo grande que na

bahia está, que nò baixamar fica mui vazio e é de

todas as partes cercado d'agua que não pode nin-

guém ir a elle sem barco ou a nado. Ali folgou elle

e todos nós outros bem uma hora e meia e pesca-

ram ali, andando marinheiros com um chinchorro, e

mataram pescado miúdo, não muito, e então volve-

mos ás naus já bem noute.

Ao domingo de paschoela pela manha determi-

nou o capitão ir ouvir missa e pregação naquelle

ilheo, e mandou a todos os capitães que se apres-

... indo certo Hespanhol á caça com os cães... e não

achando que caçar, parecendo-lhe que os cães tinham fome, tirou

* Assim como os christãos, não circumcidados.

Page 259: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 255

tassem nos bateis e fossem com elle, e assim foi fei-

to. Mandou n'aquelle ilheo armar um esperável, e

dentro n'elle alevantar um altar mui bem preparado,

e ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual

disse o padre frei Henrique em voz entoada, e of-

íiciada com aquella mesma voz pelos outros padres

e sacerdotes que ali todos eram, a qual missa, se-

gundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito

prazer e devoção. Ali era com o capitão a bandeira

de Christo, com que saiu de Belém, a qual esteve

sempre alta á parte do evang^elho. Acabada a missa

desvestiu-se o padre e pôz-se em uma cadeira alta,

e nós todos lançados por essa areia, e pregou uma

solemne e proveitosa pregação da historia do evan-

gelho, e em fim d'ella tratou da nossa vinda e do

achamento d'esta terra, conformando-se com o si-

gnal da cruz, sob cuja obediência vimos, a qual

veiu muito a propósito e fez muita devoção.

Emquanto estivemos á missa e á pregação esta-

ria na praia outra tanta gente, pouco mais ou me-

uma creança de mama a sua mãe, com ura punhal cortou-lhe em

pedaços os braços e as pernas dando um bocado a cada cão, e

depois de comidas essas rações atirou o corpito ao chão a todos

juntos.

Page 260: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

256 A Descoberta do Brasil

nos como os de hontem, com seus arcos e settas, os

quaes andavam folgando e olhando-nos e assenta-

ram-se. E depois de acabada a missa, assentados

nós á pregação, alevantaram-se muitos d'elles e tan-

geram corno ou buzina e começaram a saltar e

dançar um pedaço e alguns d'elles se metteram em

almadias, duas ou três que ali tinham, as quaes não

são feitas como as que eu já vi, somente são três

traves atadas juntas, e ali se mettiam 4 ou 5 ou

esses que queriam, não se afastando quasi nada da

terra senão em quanto podiam tomar pé.

Acabada a pregação foi o capitão e todos para

os bateis, com nossa bandeira alta, e embarcámos e

fomos assim todos contra terra, para passarmos ao

longo por onde elles estavam, indo Bartholoraeu

Dias em seu esquife, por mandado do capitão,

adiante com um pau d'uma almadia, que o mar

lhes levara, para lh'o dar, e nós todos obra de tiro

de pedra atraz d'elle. Assim que elles viram o es-

quife de Bartholomeu Dias chegaram-se logo todos

Suppliciaram um chefe deitando-lhe sebo a arder na barriga,

pondo-lhe em cada pé uma ferradura fincada n'um pau, e o pes-

•eoço atado a outro pau, e dois homens seguravam-lhe as mãos e

assim lhe deitaram fogo aos pe's. Entrava o tirano de pedaço a

Page 261: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 257

á agua, mettendo-se n'ella até onde mais podiam.

Acenaram-lhes que deposessem os arcos e muitos

d'elles os foram logo depor em terra e outros os

não depunham.

Andava ali um que falava muito aos outros que

se afastassem, mas não que me parecesse que lhe

tinham acatamento nem medo. Este que assim os an-

dava afastando trazia seu arco e settas e andava

tinto de tintura vermelha pelos peitos e espáduas e

pplos quadris, coxas e pernas até baixo, e os vazios

com a barriga e estômago eram da sua própria cor,

e a tintura era assim vermelha que a agua lh'a não

comia nem desfazia, antes quando saia da agua era

mais vermelha.

Sahiu um homem do esquife de Bartholomeu

Dias e andava entre elles sem elles lhe fazerem

mal, antes lhe davam cabaços d'agua e acenavam

aos do esquife que saissem a terra. Com isto se vol-

veu Bartholomeu Dias ao capitão e viemos ás naus

pedaço, e dizia-lhe que assim havia de o matar pouco a pouco se

não lhe desse ouro, .

.

A um grande numero de índios . , . mandou o tirano mór

cortar desde o nariz com os lábios até á barba, deixando rasas

todas as caras.

17

Page 262: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

258 A Descoberta do Brasil

a comer, tangendo trombetas e gaitas seni lhes dar

mais incommodo, e elles tornaram a assentar*se na

praia e assim por então ficaram.

N'este ilheo onde fomos ouvir missa e pregação

espraia muito a agua e descobre muita areia e

muito cascalho. Foram alguns quando nós ali está-

vamos buscar marisco, e não o acharam, e acharam

alguns camarões grossos e curtos, entre os quaes

vinha um camarão muito grande e muito grosso

que em nenhum tempo o vi tamanho. Também

acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas

não toparam com nenhuma peça inteira.

E tanto que comemos vieram logo todos os ca-

pitães a esta nau, por mandado do capitão mór,

com os quaes elle se apartou, e eu na companhia,

e perguntou assim a todos se nos parecia bem man-

dar a nova do achamento d'esta terra a Vossa

Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor

mandar descobrir, e saber d'ella mais do que agora

nós podíamos saber por irmos de nossa viagem, e

Os Hespanhoes apanharam grande numero de índios, e en-

cerraram-os em três casas grandes até não caberem mais, e quei-

maram-os todos., , E aconteceu que um clérigo, chamado Ocana,

tirou do fogo uma creança de mama, mas um Hespanhol tirou-lh'á

Page 263: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 259

entre muitas falas que no caso se fizeram foi por

todos ou a maior parte dito que seria muito bem, e

n'isto concordaram. E tanto que o accordo foi to-

mado perguntou mais se seria bom tomar aqui por

força um par d'estes homens para os mandar a

Vossa Alteza, e deixar aqui por elles outros dois

d'estes degredados. A isto concordaram que não

era necessário tomar por força homens, porque ge-

ral costume era dos que assim levavam por força

para alguma parte dizerem que ha ali tudo o que

lhe perguntam, e que melhor e muito melhor in-

formação da terra dariam dois homens d'estes degre-

dados que aqui deixassem, do que elles dariam se os

levassem por ser gente que ninguém entende, nem

elles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem

lambem dizer, que muito melhor estes o não digam

quando cá Vossa Alteza mandar, e que portanto

não tratassem aqui de por força tomar ninguém nem

fazer escândalo, para os de todo mais amansar e

pacificar, senão somente deixar aqui os dois degre-

das mãos e atirou-a ao meio das chammas, onde se fez cinza como

os mais,

... A este enforcaram e foram infinitas as gentes que eu vi

queimar vivas, e despedaçar, e atormentar por diversas e novas

Page 264: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

200 A Descoberta do Brasil

dados quando d'aqui partíssemos. E assim, por me-

lhor parecer a todos, ficou determinado.

Acabado isto disse o capitão que fossemos nos

bateis a terra e ver-se-hia bem o rio como era, e tam-

bém para folgarmos. Fomos todos nos bateis a

terra armados, e a bandeira comnosco. Elles anda-

vam ali na praia á bocca do rio onde nós iamos, e

antes que chegássemos, do ensino que d'antes ti-

nham, deposeram todos os arcos e acenavam que

saissemos, e tanto que os bateis pozeram as proas

em terra passaram-se logo todos alem do rio, o qual

não é mais largo que um jogo de mangoal, e tanto

que desembarcámos alguns dos nossos passaram

logo o rio e foram entre elles, e alguns aguardavam

e outros se afastavam. Porem era a cousa de ma-

neira que todos andavam misturados. Elles davam

d'esses arcos, com suas settas, por sombreiros e ca-

rapuças de linho e por qualquer cousa que lhes

davam.

Passaram alem tantos dos nossos, e andavam

maneiras de mortes e tormentos, e fazer escravos todos os que

ficaram com vida.

Idos os Hespanhoes á penedia subiram á força, porque os

índios são nus e sem armas ; e chamando-os os Hespanhoes á paz,

Page 265: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 261

assim misturados com elles, que elles se esquivavam

e afastavam-se, e iam-se d'elles para cima onde ou-

tros estavam, e então o capitão fez-se tomar ao

collo de dois homens e passou o rio e mandou vol-

tar todos.

A gente que ali era não seria mais que aquella

que costumava, e tanto que o capitão fez tornar to-

dos, vieram alguns d'elles a elle, não por o conhe-

cerem por senhor, porque parece-me que não enten-

dem nem tomavam d'isso conhecimento, mas por que

a gente nossa passava já para aquém do rio. Ali fala-

vam e traziam muitos arcos e continhas d'aquellas já

ditas e resgatavam por qualquer coisa, em tal maneira

que trouxeram d'ali para as naus muitos arcos e

settas e contas, e então tornou-se o capitão aquém

do rio e logo acudiram muitos á beira d'elle.

Ali verieis galantes pintados de preto e verme-

lho e quartejados assim pelos corpos como pelas

pernas, que certo pareciam assim bem. Também

andavam entre elles quatro ou cinco mulheres mo-

assegurando-lhes que não lhes fariam mal nenhum, que não com-

batessem, logo os índios cessaram. Mandou o crudelissimo capi-

tão aos Hespanhoes que tomassem todas as forças da penedia, e

tomadas que atacassem os índios. Dão os tigres e leões nas

Page 266: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

202 A Descoberta do Brasil

ças, assim nuas que não pareciam mal, entre as

quaes andava uma com a coixa, do joelho até o

quadril, e a nádega toda tinta d'aquella tintura

preta, e o resto todo da sua própria cor. Outra tra-

zia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e

lambem os collos dos pés, e suas vergonhas tão

nuas, e com tanta innocencia descobertas, que não

havia ali nenhuma vergonha. Também andava ali ou-

tra mulher moça, com um menino ou menina ao

collo, atado, com um panno não sei de quê, aos

peitos que lhe não apparecia se não as perninhas,

mas as pernas da mãe, e o resto, não trazia nenhum

panno.

E depois foi o capitão para cima, ao longo do rio

que anda sempre perto da praia, e ali esperou um

velho que trazia na mão uma pá d'almadia. Falou,

estando o capitão com elle, perante nós todos, sem

nunca ninguém o entender, nem elle a nós quantas

cousas lhe perguntavam d'ouro, que nós desejávamos

mansas ovelhas e estripam-n'as, e passam tantos á espada, que

param para descançar, tantos tinham feito em pedaços. Depois de

ter descançado um pedaço, mandou o capitão que matassem e

despenhassem da alta penedia toda a gente que ficara viva. E as-

siríí despenharam a todos...

Page 267: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 263

saber se o havia na terra. Trazia este velho o beiço

tão furado que lhe caberia pelo furado um grande

dedo polegar e trazia mettido no furado uma pe-

dra verde ruim, que cerrava por fora aquelle bura-

co, e o capitão lh'a fez tirar e elle não sei que

diabo falava e ia com ella para a bocca do capitão

para lh'a metter. Estivemos sobre isso um pouco

reinando, e então enfadou-se o capitão e deixou-o,

e um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro

velho, não por ella valer alguma cousa, mas por

amostra, e depois a houve o capitão, creio que

para com as outras cousas a mandar a vossa alteza.

Andámos por ali vendo a ribeira a qual é de

muita agua e muito boa, ao longo d'ella ha muitas

palmas não muito altas em que ha muito bons pal-

mitos; colhemos e comemos muitos d'elles. Então tor-

nou-se o capitão para baixo, para a boca do rio

onde desembarcámos, e alem do rio andavam muitos

d'elles dançando e folgando uns ante outros sem

se tomarem pelas mãos e faziam-n'o bem.

. . , affirmo que eu mesmo vi ante meus olhos os Hespanhoes

cortarem mãos, narizes e orelhas a índios e índias sem razão, só

porque lhes apetecia fazel-o ... E vi que os Hespanhoes largavam

cães aos índios para que os fizessem em pedaços, e vi-os assim

Page 268: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

204 A Descoberta do Brasil

Passou então além do rio Diogo Dias, almoxa-

rife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e

de prazer, e levou comsigo um gaiteiro nosso com

sua gaita, e metteu-se com elles a dançar ^, toman-

do-os pelas mãos, e elles folgavam e riam, e anda-

vam com elle mui bem ao som da gaita. Depois de

dançarem fez-lhe ali, andando no chão, muitas vol-

tas ligeiras e salto real, de que se elles espantavam

e riam e folgavam muito, e com quanto com aquillo

muito os segurou e afagou, tomavam logo uma es-

quiveza como montezes e foram-se para cima.'

E então o capitão passou o rio com todos nós, e

fomos pela praia adiante indo os bateis assim perto

de terra, e fomos até uma lagoa grande d'agua doce

lançar muitos aos cães. Assim mesmo vi queimar tantas casas e

povoações que não saberia dizer o numero... Assim mesmo é

^ Na primeira viagem de Vasco da Gama deu-se com os

pretos de Africa uma scena idêntica : < Elles começaram logo a

tanger quatro ou cinco flautas, e uns tangiam alto e outros bai-

xo, em maneira que concertavam muito bem para negros, de que

se não espera musica, e bailavam como negros. E o capitão

mór mandou tanger as trombetas, e nós nos bateis bailávamos e

o capitão mór também de volta comnosco». Roteiro, pag. 11.

Page 269: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 265

que eslá junto com a praia, porque toda aquella ri-

beira do mar é apaulada por cima, e sae a agua por

muitos logares ; e depois de passarmos o rio foram

uns sete ou oito d'elles andar entre os marinheiros,

que se recolhiam aos bateis, e levaram d'ali um tu-

barão que Bartholomeu Dias matou e levou-lh'o,

lançando-o na praia.

Ainda que até aqui, como quer que se elles de

alguma maneira amansassem, logo de uma mão

para a outra se esquivavam, como pardaes de ceva-

doiro, e ninguém ousa de falar-lhes rijo por se mais

não esquivarem, e tudo se passa como elles que-

rem para bem os amansar.

Ao velho, com que o capitão falou, deu uma ca-

rapuça vermelha, e com toda a fala que com elle

passou, e com a carapuça que lhe deu, assim que se

despediu começou a passar o rio, foi-se logo reti-

rando, e não quiz mais tornar do rio para aquém.

Os outros dois que o capitão teve nas naus, a quem

deu o que já dito é, nunca mais appareceram aqui

;

verdade que tomavam creanças de mama e as atiravam longe

quanto podiam, e outros desaforos e crueldades sem propósito

que me faziam espanto. ..

Habitualmente matavam os chefes d'esta maneira ! faziam

Page 270: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

266 A Descoberta do Brasil

do q,ue infiro ser gente bestial ede pouco saber e

por isso são assim esquivos.

Elles porém comtudo andam muito bem trata-

dos e muito limpos, e naquillo me parece ainda

mais que são como aves ou alimárias montezes, que

lhes faz o ar melhor penna e melhor cabello que

ás rnansas, porque os seus corpos são tão limpos e

tão gordos e tão formosos que não podem mais ser,

e isto me faz presumir que não teem casas nem mo-

radas em que se recolham, e o ar a que se criam

os faz taes, nem nós ainda até agora vimos nenhu-

mas casas nem maneira d'ellas.

Mandou o capitão áquelle degredado Affonso

Ribeiro que se fosse outra vez com elles, o qual se

foi e andou lá um bom pedaço e á tarde tornou-se,

que o fizeram elles voltar e não o quizeram lá con-

sentir, e deram-lhe arcos e settas e não lhe toma-

ram nenhuma cousa do seu ; antes disse elle que

lhe tomara um d'elles umas continhas amarellas que

levava e fugia com ellas, e queixou-se, e os outros

grelhas de varas sobre forquilhas e atavam-os a ellas e punham-

Ihes por debaixo fogo brando, para que pouco e pouco, dando

gritos n'aquelles tormentos, lhes fugisse a vida.

Vi uma vez que estando nas grelhas a queimar quatro óu

Page 271: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 267

foram logo apoz elle e lh'as tomaram, e tornaram-

lh'as a dar, e então mandaram-o vir. Disse elle que

não vira lá entre elles senão umas choupaninhas de

rama verde e de fetos, muito grandes como de Entre

Douro e Minho, e assim nos tornamos ás naus já

quasi noite a dormir.

Á segunda-feira depois de comer sahimos todos

em terra a tomar agua. Ali vieram então muitos,

mas não tantos como as outras vezes, e traziam já

muito poucos arcos, e estiveram assim um pouco

afastados de nós, e depois a pouco e pouco mistu-

raram-se comnosco, e abraçavam-nos e folgavam,

e alguns d'elles se esquivavam logo. Ali davam

alguns arcos por folhas de papel, e por alguma ca-

rapucinha velha, e por qualquer cousa ; e em tal ma-

neira se passou a cousa que bem 20 ou 30 pessoas

das nossas se foram com elles, onde outros muitos

d'elles estavam com moças e mulheres, e trouxeram

de lá muitos arcos e barretes de pennas de aves,

d'elles verdes e d'ellcs amarellos, de que creio que

cinco dos principaes e chefes (e ainda creio que havia dois ou

três pares de grelhas onde queimavam outros) e porque davam

grandes gritos desgostavam o capitão ou não o deixavam dormir,

mandou que os afogassem ; e o aguazil, que era peior que o ver-

Page 272: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

268 A Descoberta do Brasil

O capitão ha-de mandar amostra a Vossa Alteza; e

segundo diziam esses que lá foram folgavam com

elles.

N'este dia os vimos de mais perto e mais á

nossa vontade, por andarmos todos quasi mistura-

dos, e alli d'elles andavam d'aquellas tinturas quar-

tejados, outros de metades, outros de tanta feição

como em pannos d'armar, e todos com os beiços

furados, e muitos com os ossos n'elles e outros sem

ossos. Traziam alguns uns ouriços verdes de arvo-

res; que na cor queriam parecer de castanheiros, se-

não quanto eram mais e mais pequenos, e aquelles

eram cheios d'uns grãos vermelhos pequenos, que

esmagando-os entre os dedos fazia tintura muito ver-

melha de que elles andavam tintos, e quanto se mais

molhavam tanto mais vermelhos ficavam. Todos an-

dam rapados até acima das orelhas, e assim as so-

brancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de

fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma

fita preta da largura de dois dedos.

dugo que os queimava (e sei como se chamava e ainda seus

parentes conheci em Sevilha) não quiz afogal-os, antes lhes met-

teu paus nas bôccas, para que não gritassem, e atiçou-lhes o fogo-

até que se fossem assando lentamente como elle queria.

Page 273: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 269

E O capitão mandou aquelle degredado Affonso

Ribeiro, e a outros dois degredados, que fossem an-

dar lá entre elles, e assim a Diogo Dias, por ser ho-

mem ledo com que elles folgavam; e aos degreda-

dos mandou que ficassem lá esta noute. Foram-se

lá todos e andaram entre elles e, segundo elles di-

ziam, foram bem uma légua e meia, a uma povoa-

ção de casas em que haveria 9 ou 10 casas, as

quaes diziam que eran) tão compridas cada uma

como esta nau capitania, e eram de madeira e as

ilhargas de taboas, e cobertas de palha de rasoavel

altura, e todas em unia só casa sem nenhum repar-

timento. Tinham de dentro muitos esteios e de es-

teio a esteio uma rede, atada pelos cabos em cada

esteio, altas, em que dormiam, e debaixo para se

aquentarem faziam seus fogos; e tinha cada casa

duas portas pequenas, uma em um cabo e outra no

outro, e diziam que em cada casa se recolhiam 30

ou 40 pessoas; e que assim os achavam e que lhes

davam de comer d'aquella vianda que elles tinham,

A todos os chefes, que eram mais de cem, e que tinham

amarrado, mandou o capitão queimar...

A tal quarto de alva, estando os innocentes a dormir com

suas mulheres e filhos, atacaram a povoação, pondo fogo ás ca-

Page 274: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

270 A Descoberta do Brasil

a saber : muito inhame e outras sementes que na

terra ha que elles comem.

E como foi tarde íizeram-os logo todos tornar, e

não quizeram que lá ficasse nenhum, e ainda, se-

gundo elles diziam, queriam vir com elles.

Resgataram lá por cascavéis, e por outras cou-

sinhas de pouco valor que levavam, papagaios ver-

melhos muito grandes e formosos, e dois verdes pe-

queninos, e carapuças de pennas verdes, e um panno

de pennas de muitas cores, maneira de tecido assaz

formoso, segundo Vossa Alteza todas estas cousas

verá porque o capitão vol-as ha-de mandar, segundo

elle disse ; e com isto vieram, e nós tornamo-nos ás

naus.

A terça-feira depois de comer fomos a terra dar

guarda lenha e lavar roupa. Estavam na praia

quando chegámos obra de ÓO ou 70 sem arcos e

sem nada. Tanto que chegámos vieram logo para

nós sem se esquivarem, depois acudiram muitos

que seriam bem 200, todos sem arcos ; e misturaram-

sas que são de palha, e queimaram vivas as creanças e mulheres,

e muitos dos mais.

. , , vi que chamavam os caciques e principaes índios que

viessem em paz, confiadamente, e promettendo-lhes segurança, e

Page 275: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 271

se todos tanto comnosco que nos ajudavam d'elles

a acarretar lenha, e metter nos bateis, e luctavam

com os nossos e tomavam muito prazer.

E emquanto nós faziamos a lenha, faziam dois

carpinteiros uma grande cruz, d'um pau que hon-

tem para isso se cortou. Muitos d'elles vinham ali

estar com os carpinteiros, e creio que o faziam mais

por verem a ferramenta de ferro com que a faziam,

que por verem a cruz. porque elles não tem cousa,

que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com

pedras feitas como cunhas, mettidas em um pau

entre duas talas mui bem atadas, e por tal maneira

que andavam fortes, segundo os homens que hontem

as suas casas diziam porque lh'as viram lá. Era jâ

a conversação d'elles comnosco tanta, que quasi

nos estorvavam ao que havíamos de fazer.

E o capitão mandou a dois degredados e a

Diogo Dias que fossem lá á aldeia, e a outras se

tivessem noticia d'ellas, e que de toda a maneira

ao chegarem logo os queimavam. E em minha presença queima-

ram dois, um em Andon e outro em Tumbala, e não pude impe-

dir que os queimassem apezar do que lhes preguei.

Outra vez, ha poucos dias, enviei eu mensageiros, assegu-

rando que não temessem, a todos os chefes da provincia de

Page 276: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

212 A Descoberta do Brasil

não viessem dormir ás naus, ainda que elles os

mandassem; e assim se foram.

Emquanto andávamos n'essa matta a cortar a

lenha, atravessaram alguns papagaios por essas ar-

vores, uns verdes e outros pardos, grandes e pe-

quenos, de maneira que me parece que haverá n'esta

terra muitos, porém eu não veria mais que até 9 ou

10. Outras aves então não vimos, somente algumas

pombas seixas, e pareceram-me maiores em boa

quantidade que as de Portugal. Alguns diziam que

viram rolas mas eu não as vi ; mas segundo os ar-

voredos são muitos e grandes, e de infindas manei-

ras, não duvido que por esse sertão haja muitas

aves. E cerca da noite nos volvemos para as naus

com nossa lenha.

Eu creio. Senhor, que não dei ainda aqui conta a

Vossa Alteza da feição de seus arcos e settas. Os

arcos são pretos e compridos, e as settas compridas,

e os ferros d'ellas de cannas aparadas, segundo

Havana, porque já tinham ouvido meu credito, que não se ausen-

tassem, que viessem receber-nos, que não se lhes faria mal al-

gum, porque das matanças passadas estava toda a terra assom-

brada, e isto fiz com parecer do capitão ; e chegados á província

-sairam a receber-nos vinte e um chefes e caciques, e logo os

Page 277: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 273

Vossa Alteza verá por algumas que, creio, que o ca-

pitão ha-de enviar.

Na quarta-feira não fomos a terra, porque o ca-

pitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a

despejal-o, e a fazer levar ás naus o que cada uma

podia levar. EUes acudiram á praia muitos, segundo

das naus vimos, que seriam obra de 300, segundo

Sancho de Toar, que lá foi, disse.

Diogo Dias, e Affonso Ribeiro o degredado, a

que o capitão hontem mandou que em toda a ma-

neira lá dormissem, volveram-se já de noite por

elles não quererem que lá dormissem, e trouxeram

papagaios verdes e outras aves pretas, quasi como

pegas, senão quanto tinham o bico branco e os ra-

bos curtos.

E quando Sancho de Toar se recolheu á nau

queriam vir com elle alguns, mas elle não quiz se-

não dois mancebos dispostos e homens de prol.

Mandou-os essa noute mui bem cuidar e tratar, e

comeram toda a vianda que lhes deram, e mandou-

prendeu o capitão quebrantando a segurança que eu lhes tinha

dado, e queria queimal-os vivos no dia seguinte, dizendo que

era bom, porque aquelles chefes em algum tempo haviam de fazer

algum mal. Tive muito trabalho para os tirar da fogueira, mas

18

Page 278: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

274 ^ Descoberta do Brasil

lhes fazer cama de lençoes, segundo elle disse, e

dormiram e folgaram aquella noute, e assim não

houve mais este dia que para escrever seja.

Na quinta-feira, derradeiro de abril, comemos

logo quasi pela manhã, e fomos a terra por mais

lenha e agua; e querendo o capitão sair d'esta nau

chegou Sancho de Toar com seus dois hospedes e,

por elle não ter ainda comido, pozeram-lhe toalhas e

veiu-lhe vianda e comeu. Os hospedes assentaram-se

cada um em sua cadeira, e de tudo o que lhes de-

ram comeram muito bem, especialmente presunto

cosido frio e arroz; não lhes deram vinho por Sancho

de Toar dizer que o não bebiam bem. Acabado o

comer mettemo-nos todos no batel, e elles comnosco.

Deu um grumete a um d'elles uma armadura grande

de porco montez bem revirada, e tanto que a tomou

metteu-a logo no beiço e porque se lhe não queria

segurar deram-lhe uma pequena de cera vermelha, e

elle arranjou-lhe detraz seu adereço para se segu-

rar, e metteu-a no beiço assim voltada para cima e

por fim sempre escaparam. Depois do que todos os índios d'esta

ilha foram postos na servidão e calamidade dos da Hespanhola,

vendo-se morrer e perecer sem remédio todos, começaram uns a

fugir para os montes, outros a enforcar-se desesperados, e en-

Page 279: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 275

vinha tão contente com ella como se tivera uma

grande jóia. E tanto que saimos em terra foi-se logo

com elia que não appareceu ahi mais.

Andariam na praia quando saímos 8 ou 10 d'elles,

e d'ahi a pouco começaram a chegar, e parece-me

que viriam este dia á praia 400 ou 500. Traziam

alguns d'elles arcos e settas, e todos os deram por

carapuças e por qualquer cousa que lhes davam.

Comiam comnosco do que lhes dávamos, e bebiam

alguns d'elles vinho, e outros o não podiam beber,

mas parece-me que, se lh'o avezarem, que o beberão

de boa vontade ; andavam todos tão dispostos, e tão

bem feitos, e galantes com suas tinturas, que pare-

ciam bem. Acarretavam d'essa lenha quanta podiam,

com mui boa vontade, e levavam-a aos bateis, e an-

davam já mais mansos e seguros entre nós do que

nós andávamos entre elles.

Foi o capitão com alguns de nós um pedaço

por este arvoredo até uma ribeira grande e de

muita agua, que, a nosso parecer, era esta mesma

forcavam-se maridos e mulheres e comsigo enforcavam os filhos

;

e pelas crueldades de um Hespanhol mui tirano (que eu conheci)

se enforcaram mais de duzentos índios.

Faziam apostas sobre quem, de uma cutilada, abriria um ho-

Page 280: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

276 A Descoberta do Brasil

que vem ter á praia, em que nós tomámos agua. Ali

descançamos um pedaço, bebendo e folgando ao

longo d'ella, entre esse arvoredo que é tanto, e ta-

manho, e tão basto, e de tantas plumagens, que não

se lhe pode dar conto.

Ha entre elle muitas palmas, de que colhemos

muitos e bons palmitos.

Quando saímos do batel disse o capitão que se-

ria bom irmos direitos á cruz, que estava encostada

a uma arvore, junto com o rio, para se pôr amanhã,

que é sexta-feira, e que nos pozessemos todos de

joelhos, e a beijássemos, para elles verem o acata-

mento que lhe tínhamos, e assim o fizemos. E a

estes dez ou doze, que ali estavam, acenaram-lhes

que fizessem assim, e foram logo todos beijal-a.

Parece-me gente de tal innocencia que, se os

entendêssemos, e elles a nós, que seriam logo chris-

tãos, porque elles não teem nem entendem nenhuma

crença, segundo parece. E portanto, se os degreda-

dos que aqui hão-de ficar aprenderem bem a sua

mem ao meio, ou lhe cortaria a cabeça, ou lhe descobriria as entra-

nhas com uma lançada. Tiravam as creanças do seio das mães e, pe-

gando-lhes pelas pernas, davam-lhes, com a cabeça nas paredes.

Outros atiravam com ellas aos rios... Outras creanças atravessavam

Page 281: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 2TJ

fala, e os entenderem, não duvido, segundo a santa

tenção de Vossa Alteza, fazerem-se christâos e cre-

rem a nossa santa fé, á qual praza a Nosso Senhor

que os traga, porque decerto esta gente é boa e de

boa simplicidade, e imprimir-se-ha ligeiramente n'el-

les qualquer cunho que lhe quizerem dar, e logo

lhes Nosso Senhor deu bons corpos e bons rostos

como a bons homens, e elle que nos por aqui

trouxe creio que não foi sem causa, e portanto

Vossa Alteza, pois tanto deseja accrescentar na

santa fé catholica, deve entender na sua salvação, e

prazerá a Deus que com pouco trabalho será as-

sim.

EUes não lavram nem criam, nem ha aqui boi,

nem vacca, nem cabra, nem ovelha, nem gallinha,

nem outra nenhuma alimária que costumada seja

ao viver dos homens, nem comem senão d'esse

inhame, que aqui ha muito, e d'essa semente e fru-

ctos que a terra e as arvores de si lançam, e com

isto andam taes e tão rijos e tão nédios que o não

de uma espadeirada juntas com as mães... Faziam umas forcas

baixas, para que os suppliciados tocassem quasi com os pés no

chão e, de treze em treze, em honra do nosso redemptor e dos

doze apóstolos, punham lenha, accendiam fogo e queimavam-os

Page 282: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

278 A Descoberta do Brasil

somos nós tanto, com quanto trigo e legumes co-

memos.

Emquanto ali este dia andaram, sempre ao som

d'um tamborim nosso dançaram e bailaram com os

nossos, de maneira que são muito mais nossos ami-

gos que nós d'elles. Se lhes alguém acenava se que-

riam vir ás naus, faziam-se logo prestes para isso,

em tal maneira que, se os convidassem todos, todos

viriam. Porém não trouxemos esta noute ás naus

senão quatro ou cinco, a saber : o capitão-mór dois,

e Simão de Miranda um, que trazia já por pagem, e

Ayres Gomes outro assim por pagem. Os que o ca-

pitão trouxe era um d'elles um dos seus hospedes,

que á primeira vez quando aqui chegámos lhe trou-

xeram, o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa,

e com elle um seu irmão, os quaes foram esta noite

muito bem agasalhados, assim de vianda, como de

cama de colchões e lençoes, pelos mais amansar.

E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio,

pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira e

vivos, A outros envolviam todo o corpo em palha secca e deita-

vam-lhe o fogo. A todos os que deixavam com vida cortavam

as mãos . ,

.

Eu vi todas as coisas acima ditas e muitas outras infinitas.

Page 283: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 279

fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde

nos pareceu melhor plantar a cruz, para ser melhor

vista, e ahi o assignou o capitão onde fizessem a cova

para a plantar. E emquanto a ficaram fazendo, elle,

com todos nós outros, fomos pela cruz abaixo do rio

onde ella estava, Trouxemol-a d'ahi com esses reli-

giosos e sacerdotes adiante, cantando á maneira de

procissão. Estavam já ali alguns d'elles, obra de 70

ou 80, e quando nos assim viram vir, alguns d'elles

se foram metter debaixo d'ella a ajudar-nos. Passá-

mos o rio ao longo da praia, e fomol-a pôr onde ha-

via de ser, que será do rio obra de dois tiros de

besta. Ali, andando n'isto, viriam bem 150 ou mais.

Firmada a cruz, com as armas e divisa de Vossa

Alteza, que primeiro lhe pregaram, armaram altar

ao pé d'ella. Ali disse missa o padre frei Henrique,

a qual foi cantada e officiada por esses já ditos.

Ali estiveram comnosco, a ella, obra de 50 ou ÕO

d'elles, assentados todos nos joelhos assim como nós,

e quando chegou ao evangelho, que nos erguemos

Pois outro feito direi, que não vejo qual seja mais cruel,

mais infernal, mais cheio de ferocidade de bestas feras, ou esse,

ou o que conto agora. Já disse que os Hespanhoes das índias

ensinaram e amestraram cães bravíssimos e ferocíssimos para

Page 284: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

28o A Descoherta do Brasil

todos em pé, com as mãos levantadas, elles se le-

vantaram comnosco e alçaram as mãos, estando as-

sim até ser acabado, e então tornaram-se a assentar

como nós. E quando levantaram a Deus, que nos

pozemos de joelhos, elles se pozeram todos, assim

como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em

tal maneira socegados que, certifico a Vossa Alteza,

que nos fez muita devoção. Estiveram assim com-

nosco até acabada a communhão e, depois da com-

munhão, commungaram esses religiosos e sacerdo-

tes, e o capitão, com alguns de nós outros. Alguns

d'elles, por o sol ser grande, em nós estando com-

mungando, levantaram-se, e outros estiveram e fica-

ram.

Um d'elles, homem de 50 ou 55 annos, ficou ali

com aquelles que ficaram. Aquelle, em nós estando,

ajuntava aquelles que ali ficaram, e ainda chamava

outros. Este, andando assim entre elles, fallando-lhes,

acenou com o dedo para o altar, e depois apontou

matar e despedaçar os índios. Saibam todos os que são verda-

deiros christãos, e mesmo os que o não são,,., que, para susten-

tar os ditos cães, trazem pelos caminhos muitos índios acorrenta-

dos, como se fossem manadas de porcos, e matavam-os e tem

açougue publico de carne humana, e dizem uns aos outros — em,-

Page 285: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 281

com o dedo para o céo, como que lhes dizia alguma

cousa de bem, e nós assim o tomámos.

Acabada a missa tirou o padre a vestimenta de

acima, e ficou na alva, e assim se subiu junto ao

altar a uma cadeira, e ali nos pregou do evangelho

e dos apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, em fim da

pregação, d'este vosso proseguimento tão santo e

virtuoso, que nos causou mais devoção. Esses que á

pregação sempre estiveram, estavam, assim como

nós, olhando para elle. E, aquelle que digo, chamava

alguns que viessem para ali. Alguns vinham e ou-

tros iam-se ; e, acabada a pregação, trazia Nicolau

Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que

lhe ficaram ainda da outra vinda, e houveram por

bem que lançassem uma ao pescoço cada um. Pela

qual cousa se assentou o padre frei Henrique ao pé

da cruz, e ali a um e um lançava sua cruz atada

em um fio ao pescoço, fazendo-lh'a primeiro beijar

e levantar as mãos.

Vinham a isso muitos, e lançaram-as todas, que

presta-me um quarto de um d'esses velhacos, para dar de comer

aos meus cães até que eu mate outro— como se emprestassem

quartos de porco ou de carneiro.

Um capitão cortou muita quantidade de mãos de mulheres

Page 286: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

282 A Descoberta do Brasil

seriam obra de 40 ou 50 ; e isto acabado, era já bem

uma hora depois do meio dia, viemos ás naus a co-

mer, onde o capitão trouxe comsigo aquelle mesmo

que fez aos outros aquella mostrança para o altar e

para o céo, e um seu irmão com elle, ao qual fez

muita honra, e deu-lhe uma camisa mourisca, e ao

outro uma camisa d'estas outras ; e segundo o que a

mim e a todos pareceu, esta gente não lhes fallece

outra cousa para ser toda christã que entenderem-

nos, porque assim repetiam aquillo que nos viam

fazer como nós mesmos, por onde pareceu a to-

dos que nenhuma idolatria nem adoração teem. Ebem creio que se Vossa Alteza aqui mandar quem

mais entre elles de vagar ande, que todos serão tor-

nados ao desejo de Vossa Alteza. E para isso, se

alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os

baptisar porque já então terão mais conhecimento

de nossa fé pelos dois degredados que aqui entre

elles ficam, os quaes ambos hoje também commun-

garam.

e de homens, e atou-as em umas cordas, e as pôz dependuradas de

um pau ao comprido, para que os outros índios vissem o que ti-

nha feito áquelles, no que haveria setenta pares de mãos ; e cor-

tou muitos narizes a mulheres e a creanças.

Page 287: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 283

Entre todos estes que hoje vieram não veiu mais

que uma mulher moça, a qual esteve sempre á missa,

á qual deram um panno com que se cobrisse, e po-

zeram-lh'o de redor de si, mas ao assentar não ti-

nha cuidado de o estender para se cobrir. Assim,

Senhor, que a innocencia d'esta gente é tal que a de

Adão não seria mais, quanto em vergonha.

Ora veja Vossa Alteza quem em tal innocencia

vive, ensinando-lhes o que para sua salvação per-

tence, se se converterão ou não.

Acabado -isto fomos assim perante elles beijar a

cruz, e despedimo-nos, e viemos comer.

Creio, Senhor, que com estes dois degredados

que aqui ficam, ficam mais dois grumetes que esta

noute saíram d'esta nau no esquife em terra, fugidos,

os quaes não vieram mais e cremos que ficarão

aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos

d'aqui nossa partida.

Esta terra. Senhor, me parece que, da ponta que

mais contra o sul vimos, até á outra ponta que con-

Pelas guerras infernaes que os Hespanhoes lhes teem feito, e

pelo captiveiro horrível em que os puzeram, mataram mais de

quinhentas ou seiscentas mil pessoas. .. .

. . . São tantos e taes os estragos e crueldades, matanças e

Page 288: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

284 A Descoberta do Brasil

tra o norte vem, de que nós d'este porto houvemos

vista, será tamanha que haverá nella bem 20 ou 25

léguas por costa. Traz ao longo do mar em algu-

mas partes grandes barreiras, umas vermelhas e ou-

tras brancas, e a terra por cima toda chã e muito

cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é

toda praia parma, muito cheia e muito formosa.

Pelo sertão nos pareceu do mar muito grande, por*

que a estender olhos não podíamos vêr senão terra

e arvoredos, que nos parecia mui longa terra. N'ella

até agora não podemos saber que haja ouro, nem

prata, nem nenhuma cousa de metal, nem de ferro,

nem lh'o vimos. Porém a terra em si é de muito

bons ares, assim frios e temperados como os de en-

tre Douro e Minho, porque n'este tempo de agora

assim os achávamos como os de lá. Aguas sãa

mirito infinidas. Em tal maneira é graciosa que, que-

rendo-a aproveitar, dar-se-ha n'ella tudo, por bem

das aguas que tem.

Porém o melhor fructo que n'ella se pode fazer,.

destruições, despovoações, roubos, violências e tiranias, e em

tantos e taes reinos da grande terra firme, que todas as coisas-

que temos dito nada são em comparação das que se fizeram,.»

Atado ao poste (o cacique Hatuey, de Cuba) dizia-lhe um re-

Page 289: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoherta do Brasil

me parece que será salvar esta gente, e esta deve

ser a principal semente que Vossa Alteza em ella

deve lançar. E que ahi não houvesse mais que ter

aqui esta poisada, para esta navegação de Calecut,

abastara; quanto mais disposição para se nella cum-

prir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a sa-

ber: accrescentamento da nossa santa fé.

E n'esta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Al-

teza conta do que n'esta vossa terra vi, e se algum

pouco alonguei me perdoe, e o desejo que tinha de

tudo vos dizer m'o fez assim pôr pelo miúdo.

E pois que, Senhor, é certo que assim n'este

cargo que levo, como em outra qualquer cousa que

de vosso serviço for. Vossa Alteza ha-de ser de

mim bem servido, peço que, por me fazer singular

mercê, mande vir da ilha de São Thomé Jorge de

Osório meu genro, o que receberei em muita

mercê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

ligioso de São Francisco, santo varão que ali estava, algumas

coisas de Deus e da nossa fé, que elle nunca tinha ouvido, o

pouco que podia n'aquelle instante que os verdugos lhe davam;

e aconselhava-o a crer no que elle dizia, porque assim iria para

o céo, onde teria gloria e eterno descanço, e senão que iria para

Page 290: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

286 A Descoberta do Brasil

D'este Porto Seguro da vossa ilha da Vera Cruz,

hoje sexta- feira primeiro dia de maio de 1500.

Pêro Vaz de Caminha. »

Assim procederam os portugueses ao chegarem

ao Brasil. Eis o que fizeram os indígenas :

«... Saindo a dita armada d'este logar, escreve

D. Manuel aos reis de Hespanha, o capitão deixou

ahi dois christãos á mercê de Deus...»

Explica o piloto: «... deixando... dois degre-

dados n'este logar, os quaes começaram a chorar e

foram animados pelos naturaes do país, que mos-

travam ter piedade d'elles...»

Nasceu assim o Brasil, n'aquelle solo orvalhado

das lagrimas dos nossos.

Ao largar de Porto Seguro a « formosa » armada

de Cabral, em vez de levar-, para informe da terra,

alguns dos indígenas com quem os descobridores

comeram, dançaram e travaram relações commer-

ciaes, confiou dois portugueses á sua bondade infantil.

o inferno, a padecer perpétuos tormentos e penas. Elle,

pensando um pouco, perguntou ao religioso se iam Hespanhoes

para o céo, O religioso respondeu que sim, mas que só iam os

que eram bons. Disse logo o cacique, sem mais pensar, que não

Page 291: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 287

Vendo-os chorar desesperados, olhos fitos nas

velas desferidas, foram animal-os, mostrando ter pie-

dade d'elles, os pintalgados Índios, garridos no ru-

bro do Brasil, nas plumagens verdes e amarelas da

«Terra dos Papagaios», tão graciosos na castidade

da sua nudez, que logo os considerou Caminha ma-

téria prima para tudo o que fosse de grandioso.

E durante quatro séculos sempre vibraram por-

tugueses na mesma saudade, ao entreverem nos seus

navios a pátria distante, e offereceram-lhes sempre

brasileiros, no mesmo abraço, a pátria adoptiva.

queria ir para o céo, mas para o inferno, para não estar onde

elles estivessem, e para não vêr tão cruel gente.

(O supplicio d'este cacique, que Las Casas não poude evi-

tar, indignou-o a ponto de vir a Hespanha, onde se tornou o ver-

dadeiro apostolo das índias, protestando com vehemencia con-

tra a destruição systematica dos índios, um dos maiores crimes

de toda a historia).

Page 292: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca
Page 293: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

XI

Prioridade dos portugueses na descoberta do Brasil

Dissera categoricamente D. João II a Christo-

vão Colombo, nas entrevistas em que tão aífavel-

mente o recebeu, « que aquella conquista lhe pre-

tenda», isto é, que eram suas as terras aonde elle

chegara. Declarou Colombo que o não sabia, e que

os reis de Castella apenas lhe tinham ordenado que

não fosse á Guiné nem á Mina. «El-Rei graciosa-

mente lhe respondeu que tinha a certeza de que

nisso não haveria mister de terceiros» ^

1 Diário da primeira viagem de Colombo.

19

Page 294: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

2QO A Descoberta do Brasil

Encobria a maneira graciosa de dizer o projecto

de empregar a força para defender a posse d'essas

terras. Era sempre D. João II um hábil politico.

Disfarçavam habitualmente as suas boas palavras

graves propósitos. Queria ver Colombo, na recepção

que lhe fizera, o desejo de que constasse em Cas-

tella,. « para que os reis o soubessem ». Procurando

impedir que elle se apossasse violentamente das

Antilhas, descreviam-n'o os reis de Castella como

«um príncipe que não declarava os seus desígnios

aos seus amigos».

Mandou logo o rei português preparar uma ar-

mada que, sob o commando de D. Francisco d'Al-

meida, devia ir á America expulsar os hespanhoes

que lá tinham ficado.

Receiando a guerra, procuraram os reis de Cas-

tella legalizar a posse d'essas terras, e appellaram

para o papa, fonte da propriedade das descobertas

de além-mar. Foi tal a pressa com que trataram do

assumpto que, tendo Colombo chegado a Paios em

15 de março, logo em 3 de maio o papa Alexan-

dre VI, o celebre Borgia, concedia aos reis de Cas-

tella todas as terras descobertas e por descobrir.

Era a mesma concessão que a respeito de Africa se

fizera aos reis de Portugal.

Page 295: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 291

Fez-se sentir o protesto de D. João II; e logo

no dia seguinte, 4 de maio, emendou o papa a

primeira concessão, restringindo o alcance da doa-

ção aos reis de Castella, e reconhecendo o direito'

de Portugal ás terras áquem de um meridiano, que

devia passar a 100 léguas ao occidente das ilhas de

Cabo Verde ou dos Açores.

A bulia de 3 de maio, que está no Real Archivo

de Simancas, e vem publicada na coUecção de Na-

varrete, vol. II, pag. 29, diz: «... para sempre da-

mos, concedemos e assignamos, segundo o theor das

presentes, todas e cada uma das terras e ilhas su-

praditas assim conhecidas e até agora descobertas

e que de futuro se descobrirem, que não estejam

debaixo do domínio actual e temporal de Senhor

algum christão, com todos os seus dominios...»

A bulia de 4 de maio, existente na Torre do

Tombo (gaveta 10, maço 11, n.° ló) e publicada no

Bullarium Romanum, tomo V, pag. 36 1 ; no livro Al^

guns documentos, etc, pag. 6ó, e também em Navar-

rete, vol. II, pag. 34; só difere d'aquella em restrin-

gir assim a concessão: «... todas as ilhas e terra

firme achadas e por achar, descobertas e por des-

cobrir, fabricando e construindo uma linha desde o

polo árctico ou septentrião até ao polo antárctico

Page 296: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

292 A Descoberta do Brasil

OU Meio-dia; a qual linha distará de qualquer das

ilhas que vulgarmente são chamadas dos Açores e

Cabo Verde 100 léguas para o Occidente e Meio-

dia ...»

Fora tão precipitadamente incluída a restricção,

que nem houve tempo de verificar qual dos dois ar-

chipelagos era o mais occidental, para fazer partir

d'elle a demarcação.

Continham as duas bulias graves penalidades

para quem não as acatasse : « E por outra parte

defendemos e prohibimos, sob pena de excommu-

nhão, a toda e qualquer pessoa, de qualquer esta-

do, ordem, condição ou dignidade que seja, mesmo

imperial ou real, que vá ou mande sem permissão

vossa... a alguma das ditas ilhas ou terras fir-

mes... E ninguém seja ousado a infringir e que-

brantar o que está determinado por este nosso

mandamento... E se alguém for ousado a contra-

vil-os, seja certificado em como incorrerá na cólera

e indignação de Deus Todo Poderoso, e dos após-

tolos S. Pedro e S. Paulo ».

Mas apezar de tão severas penas continuou

D. João II no seu propósito de enviar uma frota,

que impedisse a intervenção dos hespanhoes nos

nossos descobrimentos.

Page 297: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 293

Se tivesse somente o propósito de defender o

caminho maritimo para a índia, se nutrisse apenas

a vaga esperança de partilhar a posse das ilhas de

onde vinha Colombo, bastar-lhe-iam essas 100 lé-

guas que lhe concedia o papa, restringindo a primi-

tiva concessão a Castella.

Não o satisfaz porém esse limite, porque não re-

salva positivamente o que elle quer.

Pôde admittir-se que D. João II não acatasse a

bulia, affrontasse a excommunhão papal e a cólera

e indignação de Deus, quando os reis portugueses

de então eram os maiores amigos de Roma, os de-

fensores e propagandistas do christianismo; e esta-

vam na posse de grandes terras d'além-mar em

vista de outras bulias, de idênticos titulos de pro-

priedade?

Só desconhecendo-se a época se pôde admittir

semelhante procedimento.

E que o rei portuguez estava ao abrigo da se-

guinte clausula da bulia de ^ de maio, ampliação

de idêntica passagem da anterior: « . . .mas de ma-

neira que todas as ilhas e continentes achados e por

achar, descobertos e por descobrir, desde a dita

linha para o Occidente e Meio-dia, não sejam actual-

mente possuidos por outro rei ou príncipe christão

Page 298: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

294 ^ Descoberta do Brasil

até ao dia do nascimento de N. S. Jesus Christo,

pelo que principia o presente anno de 1493... »

Assim as bulias acautelando um direito, reser-

vando uma precedência, são uma prova indirecta do

reconhecimento d'essa precedência, d'esse direito de

posse porque D. João II luctava. Estava nas repe-

tidas viagens dos portuguezes á America a razão

que lhe assistia para o fazer, e que tanta força lhe

dava para persistir.

Vendo que a intervenção do papa não resolvia

a questão, decidiram os reis de Castella negociar di-

rectamente com Portugal a divisão das terras do

occidente, e propozeram a D. João II que «... qui-

zesse pôr em tela judiciaria a duvida que tinha

nos seus descobrimentos, para que em boa paz e

amizade desse o direito a cada um o que fosse seu,

e que por emtanto lhe supplicavam desistisse do

apresto da armada, porque se faziam suspeitosas

na paz preparações de guerra. . . »

Prova ainda hoje a grande serie de documentos

existentes nos archivos hespanhoes a importanci^ da

lucta que se travou entre os dois países, e que não

chegou a um rompimento formal pela cedência dos

reis de Castella á exigência de D. João II. Vê-se por

elles que o duque de Medinasidonia e o almirante

Page 299: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 295

D. João da Fonseca receberam ordem de armar

naus para irem dar combate á esquadra que se pre-

parava em Portugal;que Colombo seria reforçado

no mar das Antilhas pelo dobro dos navios que de

Lisboa saissem; e que da Madeira tinha partido

para a America uma caravela, seguida de outras

três que se fingira terem sido mandadas apoz

ella para a capturar. Ordena-se em muitos d'elles

uma activa espionagem para se saber o que faziam

os portugueses, e transparece em todos o receio de

que D. João n persista em mandar á America a

frota de D. Francisco d'Almeida, em vez de enviar

a Castella embaixadores que n'um tratado resolvam

a questão.

Mostrava-se D. João II disposto a fazer o que

dissera a Colombo : « tinha a certeza de que nisso

não haveria mister de terceiros ».

Eis alguns d'esses documentos. Em 1 de junho

de 1493 escrevem ^ a Colombo os reis de Castella:

« vimos vossa carta, e a respeito do que nos escre-

vestes, que soubestes dos navios que El-Rei de Por-

tugal enviou, (os que saíram da Madeira) é conforme

1 Navarrete, vol. 11, pag. 83,

Page 300: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

296 A Descoberta do Brasil

com o que cá sabíamos.. . Do mais que souberdes

informae-nos continuamente ». No dia 12 tornavam

a escrever-lhe :^ « parece-nos que está conforme (o

rei de Portugal) com a intenção em que nós esta-

mos que cada um tenha o que lhe pertence. E para que

se decida isto diz que nos enviará seus mensagei-

ros ».

São do maior alcance as phrases que sublinhá-

mos. Mostram bem claramente que se trata de deli-

mitar, de decidir uma posse, anterior ás negocia-

ções e á viagem de Colombo origem da questão.

Nova carta ^ dos reis a Colombo, em 18 de

agosto, noticia-lhe que os embaixadores de Portugal

chegaram ha três dias, e diz-lhe crerem : « que elles

se chegarão á rasão e justiça porque nós não que-

remos outra coisa ».

Manifesta-se mais claramente essa disposição de

fazer justiça, em que diziam estar na carta enviada

no mesmo dia ao almirante D. João da Fonseca, e

que pela data parece a solução de uma reclamação

dos enviados portugueses. Diz a carta :^ « No da

1 Navarrete, vol. 11, pag. 88.

2 Idem.

3 Idem.

Page 301: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 297

armada de Vizcaya que está em Cadiz não sabemos

que moveu a Inigo de Artieta, capitão d'ella, a man-

dar perseguir os navios que passavam com Índios

de Portugal além, porque semelhante coisa não se

deve fazer sem nosso mandado : nós lhe escrevemos

a este respeito, e lhe ordenamos que, se os tomou,

os restitua a quem o rei de Portugal mandar por

elles : fazei vós com que assim o cumpra ».

Estabelece este importante documento que em

1493 o rei de Castella reconhecia a existência de

Índios de Portugal, o direito de D. João II á terra de

onde vinham esses Índios e portanto a essa índia de

Portugal, isto 10 mezes antes da assignatura do tra-

tado de Tordesillas ! Eram a America e os seus in-

dígenas, estas índias e estes índios, porque os hes-

panhoes sempre assim os tratavam. Demais Vasco

da Gama só regressou da índia em I499, de ma-

neira que os índios, de que se fala antes d'essa data,

só podem ser os índios americanos.

A vinda dos índios, a existência de índios em

Portugal, o commercio português com essas terras

dos índios, absolutamente possível em vista do

grande numero de viagens á America, são estabele-

cidos claramente por essa carta e por outras notí-

cias e documentos.

Page 302: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

298 A Descoberta do Brasil

Escreve Diogo Gomes, de Cintra ^: « O que eu

quiz experimentar mandando Jacob, indio que o se-

nhor infante (D. Henrique) comnosco mandou, para

que chegassem á índia, nos servisse de lingua em

terra. . . O qual Jacob indio. . . »

Foi sempre o descobrimento de novas terras

anterior ao que dizem os chronistas, reproduzem as

historias, e geralmente se crê.

Tinham o infante D. Henrique e D. João II as

mais precisas informações de terras, cuja descoberta

se fixa em data posterior. Recebera D. João II, .de

Roma, um livro em latim com a descripção da costa

oriental d'Africa, Abyssinia, ilha de Socotorá, Pérsia

e índia. Essa descripção vem publicada no prologo

do livro de Marco Polo, por Valentim Fernandes

Allemão.

Uma bulia ^ de absolvição, de 4 de julho de 1505,

1 As relações, etc, pag. 17.

2 «Bulia de Júlio 11. Sedes apostoUcce benigna,, . O nosso

caríssimo filho em Christo, Manuel, illustre rei de Portugal e

dos Algarves, nos fez humildemente expor que o rei João

(D. João 11)... de esclarecida memoria mandava commerciar

com os mouros e negros de Guiné e com os Índios, aos quaes en-

viava metaes e outros artigos, dos quaes resultava grande uti-

Page 303: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 299

mostra que D. João II commerciava com os Índios,

como antes d'elle outros reis, e reforça essa afíirma-

ção com a indicação de que D. Manuel seguia o

costume, e com a designação precisa e distincta de

mouros, negros e Índios, que afasta completamente

a hypothese de uma confusão de palavras.

Por causa da chegada dos embaixadores de Por-

lidade aos christãos que habitavam os referidos reinos de Portu-

gal e Algarves e seus dominios, e assim o mesmo Manuel, pelo

referido modo e seguindo o costume estabelecido, também

mandava ás preditas terras dos negros, dos mouros e dos Ín-

dios, os seus enviados e navios para progredirem no commercio

com os naturaes e habitantes das referidas partes, das quaes re-

cebiam especiarias e muitas outras coisas de que resultava uti-

lidade aos christãos, enviando-lhes metaes e outras cousas conve-

nientes ás suas necessidades e usos. E segundo cremos tendo es-

perança de que os mesmos negros mouros e Índios, e os habi-

tantes d'aquellas partes com os quaes os fieis christãos entre-

tinham commercio e conversação, podessem ser convertidos á fé

de Christo, por meio da recepção d'esses metaes e outras cousas

que como mercadorias o mesmo rei a essas partes mandava,

E como por tua parte foi humildemente pedido que tanto aquel-

les christãos que por licença tua e do rei João, pelo refe-

rido modo, levaram áquelles referidos negros e mouros e Índios

as referidas mercadorias, sem licença da referida Sé fossem

Page 304: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

300 A Descoberta do Brasil

tugal são chamados cosmographos e marinheiros

para esclarecerem a questão. Em 26 de agosto

escreve ^ o cardeal de Hespanha, arcebispo de To-

ledo, a Jayme Ferrer : « Nós queriamos falar com-

vosco algumas coisas necessárias;por isso vos ro-

gamos, assim que receberdes esta carta, parti, e

absolvidos de quaesquer excommunhões, censuras e penas

ecclesiasticas em que por causa d'aquelle procedimento incorres-

sem, quer no tempo do dito Manuel como no tempo de qualquer

outro rei existente em Portugal, por cuja licença os referidos ha-

bitantes dos seus reinos e dominios, por sua licença os referidos

metaes e mercadorias ás citadas partes possam levar, e concede-

mos licença e faculdade para esse effeito conveniente, nós pela

singular auctoridade que possuimos de Deus annuimos pelo

mesmo modo a's supplicas do referido rei gostosamente e absol-

vemos por nossa auctoridade apostólica os referidos habitantes

e naturaes dos mesmos reinos e dominios, que por licença dos

referidos reis João e Manuel, ou de outros quaesquer que pelo

mesmo modo tenham levado suas mercadorias e metaes aos refe-

ridos negros ou mouros ou Índios, sem licença da Sé apoátolica,

de quaesquer excommunhões, censuras e penas que tanto pela bulia

da Ceia como por outras constituições apostólicas dadas e pro-

mulgadas houvessem incorrido... » Torre do Tombo, Coll. de

Bulias, maço 31, n.® 12.

* Navarrete, vol. 11, pag. 111.

Page 305: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 301

vinde aqui a Barcelona, trazendo o mappamundi e

outros instrumentos que tiverdes relativos á cosmo-

graphia ».

Falando da reunião dos embaixadores em Tor-

desillas, mostra Las Casas * a superioridade do sa-

ber dos portugueses, a conta em que eram tidos, e a

maneira como conheciam o assumpto: «ali manda-

ram ir os reis de Castella muitas pessoas que sa-

biam de cosmographia e astrologia (astronomia)

posto que houvesse muito poucas então n'aquelles

reinos, e as pessoas de mar que se poderam reu-

nir... e ahi enviou o rei de Portugal as suas que

deviam ter, ao que eu julguei, mais pericia e mais

experiência n'aquellas artes, ao menos das coisas

do mar, que as nossas... Os embaixadores davam

determinadamente resposta em cousas que reque-

riam que com seu rei as consultassem».

Logo em 5 de setembro escrevem os reis a Co-

lombo ^ consultando-o sobre uma revelação dos de-

legados portugueses. É da maior importância a se-

guinte passagem da carta: «E porque depois da

1 Historia de las índias, cap. 87, pag. l6.

2 Navarrete, vol. ii, pag. 123,

Page 306: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

302 A Descoberta do Brasil

vinda dos portugueses a pratica que com elles se

tem tido, alguns querem dizer que o que está em

meio desde o cabo que os portugueses chamam de

Boa Esperança, que está na derrota que levam

agora pela Mina do Oaro e Guiné abaixo, até á

raia que dissestes que devia vir na Bulia do papa,

pensam que poderá haver ilhas e ainda terra firme,

que segundo a parte do sol em que estão se cré

que serão mui proveitosas e mais ricas que todas

as outras ; e porque sabemos que d'isso sabeis me-

lhor que ninguém, vos rogamos que nos envieis já o

vosso parecer a este respeito, porque se convier, e

vos parecer que aquillo é tal como aqui pensam

que será, se emendará a bulia ».

Indica a redacção confusa da carta que os reis

de Castella não sabiam positivamente do que se tra-

tava; mas o conhecimento da revelação dos portu-

gueses é da maior importância. Tratava-se portanto

de uma terra, de uma grande terra ao sul, de uma

terra firme a que os portugueses attribuiam a maior

importância, do Brasil emfim. Era essa terra cuja

posse os nossos pretendiam assegurar a todo o

transe.

Eram esses delegados portugueses, cujo saber

impressionava Las Casas, cujas revelações surpre-

Page 307: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 303

hendiam os reis de Castella e o próprio Colombo,

Ruy de Leme, provavelmente parente de António

Leme que entre 1473 e 1484 descobriu três ilhas ao

occidente, e que por esse motivo devia conhecer as

regiões da America e a sua navegação ; e Duarte

Pacheco, auctor do Esmeraldo,

Prova indiscutivelmente a interessante carta dos,

reis de Castella que esses dois homens, os outros

da embaixada, e o rei que os enviara, pugnavam

pelo reconhecimento do seu direito á posse de uma

terra, que não era attingida pelas 100 léguas da

bulia de Alexandre VI.

Finalmente em 7 de junho de 1494 é assignado

o tratado de Tordesillas ^ que afasta para 370 lé-

guas das ilhas de Cabo Verde a linha divisória da

bulia de 4 de maio de 1493, abrangendo assim o

Brasil, cujos limites foram traçados por esse meri-

diano.

Regista o mappa de Cantino essa linha, que in-

clue na parte portugueza, além do Brasil e da

Terra Nova, a Groenlândia, marcada com a ban-

deira portuguesa. Diz a legenda: «Este he o marco

* Alguns documentos, etc, pag. 69.

Page 308: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

304 A Descoberta do Brasil

dantre castella e portugall». A direita, a oriente da

linha, estão as bandeiras das quinas, as antigas

bandeiras nacionaes; á esquerda, a occidente, a

bandeira dos Leões de Castella.

Disse-se durante muito tempo que esta divisão

era meramente nominal, e que não havia maneira de

a tornar pratica porque se ignorava então o meio

de determinar a longitude.

Regulavam porém os marinheiros d'esse tempo

os limites pelo ponto em que o equador cortava a

costa americana, ponto muito próximo d'aquelle por

onde devia passar o meridiano. É o que dizia a

carta de Estevam Froes * a D. Manuel: «o que se

usava e praticava entre os limites assim era que da

linha equinocial para o sul era de vossa alteza, e

que da mesma linha para o norte era de el-rei pa-

dre de vossa alteza (o rei de Castella sogro de

D. Manuel)».

^ «Senhor.— Eu escrevi a Vossa Alteza d'estas índias onde

estou preso, como Vossa Alteza sabe, e assim, senhor, tive cá

maneira que fiz trasladar o processo que contra nós fizeram, e o

mandei a Vossa Alteza para que fosse informado do que se di-

zia contra nós, e depois de lá, senhor, ser o processo, o que se

mais ao diante fez n'elle. Assim é que saiu o alcaide mór Marcos

Page 309: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 305

Eram defendidos encarniçadamente esses limites.

Muitos marinheiros, de um e de outro paiz, foram

presos e castigados por os haverem transposto. Tro-

cou-se muita correspondência por causa da linha di-

visória entre os reis de Portugal e de Castella ; e

em muitos documentos officiaes e particulares se al-

lude a ella, se fala nas suas demarcações.

O que interessa estabelecer é que desde 1494

d'Aguilar com um desembargo que antes de todas as coisas man-

dava que mice Francisco Corso e Pêro Corso, o que cá havia es-

tado, fossem mettidos a tormento, não prejudicando o provado

contra nós por o promotor da justiça, do qual mandado e desen-

bargo nós apellámos para a relação de Sua Alteza, os quaes se-

nhores confirmaram a sentença do alcaide mór, o qual os metteu

a tormento d'agua e cordas e lhes perguntavam no dito tormento

se vínhamos de Portugal com tenção de entrarmos em terras de

el-rei de Castella, os quaes sempre disseram que não, e que vi-

nham a descobrir terras novas de Vossa Alteza, como o tinham

dito em seus ditos e mais não disseram, e sobretudo isto senhor

nos não querem despachar, nem nos quizeram receber a prova do

que alegávamos, como Vossa Alteza possuia estas terras ha vinte

annos e mais, e que já João Coelho, o da porta da Cruz, visinho

da cidade de Lisboa, viera ter por onde nós outros vinhamos a

descobrir, e que Vossa Alteza estava em posse d'estas terras por

to

Page 310: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

3o6 A Descoberta do Brasil

um documento ofíicial, um tratado de limites, re-

conhecia a Portugal a posse do Brasil. Em 1493 e

1494 era já da posse que se tratava. O conheci-

mento do grande país da America do Sul ha muito

que fora registado.

Apresenta-o o mappamundi de Bianco, de 1436.

Confírma-o o mappa de 1448, do mesmo Bianco, que

o traça em Londres, depois de passar em Portugal.

Na ponta mais avançada de Africa vêem-se o Cabo

muitos tempos, e que o que se usava e praticava entre os limites

assim era que da linha equinocial para o sul era de Vossa Alte-

za, e que da mesma linha para o norte era d'el-rei padre de

Vossa Alteza (el-rei de Castella sogro de D. Manuel), e que nós

que não passáramos a linha equinocial, nem chegáramos a ella

com cento e cincoenta léguas, e quanto mais que os testemunhos

que contra nós eram dados nos eram todos suspeitos, e causa da

suspeição : assim era que todos eram castelhanos, e que segundo

a regra e lei de direito assim era que sobre caso de propriedade

d'entre um reino a outro não se haviam de receber aos autores

testemunhos dos naturaes do reino, quanto mais senhor que todos

estes testemunhos que contra nós deram eram todos os que nos

prejudicavam, dos naturaes de Paios de Moger, que eram homens

que nos queriam mal por causa de um Diogo de Lepe que Vossa

Alteza mandou enforcar, porque foi tomado nas partes da Guiné

com certos negros que levava furtados, as quaes testemunhas an-

Page 311: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 307

Verde, e o Cabo Roso em frente as ilhas dos erma-

nos, as actuaes ilhas do Fogo e Brava do archipe-

lago de Cabo Verde, e ao sul d'ellas, com quanto

mais avançada para leste do que está realmente, a

parte do Brasil correspondente ao cabo de S. Ro-

que. Ahi, para tirar todas as duvidas, escreveu

Bianco: -< ixola otinticha (?) xe longa a ponente 1500

mia», ilha authentica (ou antilia) 1:500 milhas ao

poente.

davam dizendo por toda esta cidade que nos enforcassem a todos

sobre suas almas, que não lhe faltava nada de os apropriar aos

judeus quando diziam o seu sangue venha sobre nós e sobre nos-

sos filhos e etc. D'isto senhor e d'outras cousas mais por inteiro

fazemos artigos, sem a nenhum nos quererem receber a prova,

agora não sei senhor o que quererão fazer; o feito está condu-

zo, sobre o tormento não sei o que será de nós, senhor, nem te-

mos quem por nós faça, senão o bacharel Pêro Moreno, o qual

temos por nosso lettrado, e além de advogar por nós nos ajuda

em todas as outras necessidades, por sermos naturaes do reino

de Vossa Alteza, e nos diz que por sermos vassallos de Vossa Al-

teze fará tudo o que n'elle fôr, como de feito senhor o faz, sup-

plico a Vossa Alteza que não nos desampare e que nos proteja

de maneira que não pereçamos como culpados, pois que o não

somos, e que no caso que nós fossemos culpados em ficar onde ficá-

mos, se é terra de el-rei de Castella, nós não ficámos na dita terra

Page 312: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

3o8 A Descoberta do Brasil

Ora o cabo de S. Roque dista effectivamente

1:520 milhas de Cabo Verde.

Para melhor comprehensão do assumpto pode-

mos dividir as descobertas da America em dois gru-

pos principaes: as do noroeste a que serviram de

base as ilhas dos Açores ; as de sudoeste de que o

archipelago de Cabo Verde é o ponto de referencia

e de partida.

como em terra d'el-rei de Castella, senão como em terra de Vos-

sa Alteza, e porque n'ella nos quizeram matar os Índios e ura

Pêro Galego, como Vossa Alteza sabe, nos acolhemos a estas par-

tes por não termos outra mais perto onde nos a caravela podesse

trazer, porque estava toda comesta do busano e brama, e fazia

muita agua, e mais traziamos o leme comesto e quebrado e etc.

Como Vossa Alteza mais largamente sabe e vol-o eu senhor te-

nho escripto, portanto senhor supplicamos a Vossa Alteza que

nos livre d'este captiveiro em que estamos, e não consinta Vossa

Alteza que, pois Diogo de Lepe pagou como culpado, que nós

paguemos a justiça que n'elle fez, sendo innocentes do peccado

que nos poêm, porque assaz abasta ter-nos vae em um anno pre-

sos como nos têm, sem causa, e tomado toda nossa fazenda, só

por nos virmos acolher em sua terra, pôr-nos o que nós não fize-

mos nem pensámos, que é bem certo senhor que a obra que elles

recebem nas ilhas dos Açores, de Vossa Alteza, não é esta com

Page 313: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 309

Da mesma forma que do continente saem os na-

vegantes para os Açores, base das explorações da

Terra Nova, da Terra do Lavrador; logar marcado

para a partida das frotas ; sede dos trabalhos de

descoberta e das relações commerciaes ; assim os

que de Portugal e de Hespanha pretendem ir á

America do Sul é ao archipelago de Cabo Verde

que primeiro se dirigem, e partem das ilhas de San-

tiago ou do Fogo em rumo de sudoeste.

que nos elles receberam, que quantos navios de cá vão todos vão

tocar em cada uma d'estas ilhas, onde os vassallos de Vossa

Alteza lhes fazem muita honra, e não os prendem nem atormen-

tam como elles nos fizeram ; não me culpe Vossa Alteza de o eu

assim dizer e escrever, porque senhor se fora em culpa ou sus-

peita houvera em mim do que nos põem, eu senhor soffrera tudo

com muita paciência;porem, senhor, esta rixa que elles, senhor,

teem comnosco não é nova, senão muito velha, que lhe ficou dos

nossos antecessores d'Alfarrobeira (quer dizer d'Aljubarrota) e

com ella hão de ir á cova ; supplico a Vossa Alteza que me quei-

ra remediar com justiça escrevendo a el-rei vosso padre, senhor,

que olhe nossa innocencia e quanta injustiça nos fazem em nos

terem presos vae em um anno sem causa, em o que além de

Vossa Alteza administrar justiça nos fará muita mercê, e roga-

remos a Deus por vosso real estado com accrescentamento de

muita vida e posto que Vossa Alteza me não conhece como

Page 314: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

3 IO A Descoberta do Brasil

Por isso foi referida ás ilhas de Cabo Verde, a de-

marcação de Tordesillas, embora as dos Açores es-

tejam mais ao occidente, porque era d'ellas que se

conhecia a distancia e o rumo do Brasil.

Diz Fructuoso que João Vaz Corte-Real desco-

briu « algumas partes do poente e do Brasil » e re-

laciona essa descoberta com a ilha do Fogo.

Sabe-se de uma outra viagem áo Brasil, a de

João Coelho, de que ha duas noticias valiosas que

permittem limitar-lhe a época. Diz um manuscripto

de fr. Diogo das Chagas ^: « offendido João Coelho

a creado eu senhor na vontade e de coração o sou de Vossa Al-

teza, porque senhor se ficara no Rio onde fiquei não foi com in-

tenção se não de saber o que havia na terra, para de tudo dar

conta a Vossa Alteza como espero em Deus de dar, segundo

achei em um alvará que Vossa Alteza tinha dado a Diogo Ri-

beiro, arauto de Vossa Alteza, em que Vossa Alteza lhe encar-

regava que olhasse bem pelas cousas da terra, o qual cargo eu

senhor tomei por o matarem os Índios como Vossa Alteza sabe;

beija as mãos de Vossa Alteza d'esta cidade de Santo Domingo

aos trinta dias do mez de julho de quinhentos e quatorze annos

das índias d'el-rei de Castella= do criado e servidor de Vossa

Alteza = Estevão Froez. * Torre do Tombo, Corpo Chronologi-

co, parte l.*, maço 15, n.^ 99.

* Citado por Drumond, Annaes da ilha Terceira, tomo i>

pag. 71.

Page 315: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 311

(de João Vaz Corte Real) alguns annos depois, pre-

parando um navio com gente á sua custa, sahiu em

descobrimento de novas terras . . . dando com terras

desertas na parte do sul». Pela data do fallecimento

de João Vaz pôde fixar-se a viagem de João Coelho

como anterior a 1496.

Diz a carta de Estevam Froes em I5l4í * ^ile-

gavamos que vossa alteza possuia estas terras ha

vinte annos e mais (1494 e anteriores) e que já

João Coelho, o da porta da Cruz, visinho da cidade

de Lisboa, viera ter por onde nós outros vínhamos

a descobrir, e que vossa alteza estava em posse

d'estas terras por muitos tempos ».

Tinha sido tão notória a viagem de João Coelho

que Estevam Froes referia-a de tão longe, e escu-

dava-se com o seu precedente para dizer que a

terra onde fora ter pertencia a Portugal.

Na sua primeira viagem (1497) passou Vasco

da Gama junto da costa do Brasil, tendo signaes de

terra em 22 de agosto, 19 dias depois de sair de

Santiago de Cabo Verde. Eis a passagem do ro-

teiro ^ que os regista : « indo na volta do mar ao sul

1 Roteiro da viagem de Vasco da Gama, pag. 3.

Page 316: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

312 A Descoberta do Brasil

e a quarta de sudoeste, achámos muitas aves feitas

como garções, e quando veio a noute tiravam con-

tra o susueste muito rijas como aves que iam para

terra, e neste mesmo dia vimos huma baleia, e isto

bem oitocentas léguas em mar ». Na viagem de Ca-

bral são também as aves os signaes de terra, que

encontram pouco depois de as terem visto. Também

Colombo conclue a proximidade de terra pelo voo

dos pássaros, e indica que os portugueses tinham

descoberto ilhas por esses signaes. E claro que

Vasco da Gama teria procurado a terra para onde

essas aves se dirigiam « como aves que iam para

terra », se não soubesse perfeitamente que havia

ali uma terra portuguesa, já visitada por outros, e

já incluida nos nossos domínios.

Em 1498 vae ao Brasil Duarte Pacheco, por or-

dem de D. Manuel, certamente para verificar, na sua

qualidade de cosmographo ie geographo, os limites

da linha divisória estabelecida pelo tratado de Tor-

desillas ^

^ Também só depois da nossa primeira edição vae sendo

acceite este ponto. Já na Introducção do Livro da Marinharia, por

João de Lisboa, pag. xlv, regista o facto, o snr. Brito Rebello;

< Pedro Alvares Cabral, que em 1500 a z7 d'abril (aliás 22) avis-

Page 317: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 313

Eis a passagem do Esmeraldo ^ em que noticia a

sua viagem : «... bemaventurado Príncipe, temos

sabido e visto como no terceiro anno do vosso rei-

nado do anno de nosso senhor de mil quatrocentos

e noventa e oito, donde nos vossa alteza mandou

descobrir a parte occidental, passando além a gran-

deza do mar oceano, onde é achada e navegada

uma tão grande terra firme. . . (neste ponto a des-

cripção da America que transcrevemos a pag. 56)

e indo por esta costa sobredita, do mesmo circulo

equinocial em diante, por vinte e oito graus de la-

deza (latitude) contra o polo antárctico é achado

nella muito e fino brasil com outras muitas coisas

de que os navios n'estes reinos vem grandemente

carregados ...»

A phrase « passando além a grandeza do mar »

quer dizer « passando eu além a grandeza do mar »,

o que indica a acção de passar e portanto a reali-

sação da viagem.

tovL a terra de Vera Cru:(, hoje 'Bra^^il, de que reconheceu a par-

te, já tocada dois annos antes por Duarte Pacheco. >

1 Ed. Epiphanio, pag. 23 e 24.

Page 318: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

314 -^ Descoberta do Brasil

Tem absoluta authenticidade essa noticia, em

que se invoca o nome do rei, se cita a data e se

precisa com a referencia ao anno do reinado. O ca-

racter de Duarte Pacheco, o heroe do oriente, o

Grão Pacheco na phrase de Camões, o autor do Es-

meraldo em que, a par de uma erudição pouco com-

mum, revela altas qualidades que fazem d'elle umdos maiores vultos do periodo das descobertas,

afasta completamente a hypothese de que referisse

uma viagem não realisada.

Essa maneira de dizer é a mesma que emprega

ao referir as suas explorações na costa de Africa

« mandou descobrir por mim e por outros seus ca-

pitães », sem acrescentar nada mais, nem sequer

uma equivalência da phrase « passando além a

grandeza do mar oceano ».

Ao noticiar a partida do Gama para a desco-

berta da índia emprega as mesmas expressões que

ao falar da sua ida ao Brasil : «no segundo anno de

vosso reinado da era de Nosso Senhor de mil e

quatro centos noventa e sete annos e no vinte e

oito de vossa idade vossa alteza mandou descobrir

esta costa do ilheo da Cruz. . . em diante. . . até se

saber a grande província do Malabar que índia baixa

se chama. . . » Narrando ter sido encarregado de fa-

Page 319: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 315

zer o Esmeraldo escreve : « vossa alteza me disse que

se queria n'isto fiar de mim ».

Em resumo, se não tivesse feito a viagem ao

Brasil em 1498, não faria Duarte Pacheco a alle-

gação d'essa incumbência, não falaria nella se-

quer. EUe só fazia affirmações fundadas: «testemu-

nhando o que vimos, e o nosso testemunho é verda-

deiro ».

Trata-se de uma passagem absolutamente authen-

tica, uma nota pessoal, mas accidental, feita sem o

propósito de valorisar serviços, de estabelecer pre-

cedências, de ganhar honra ou proveito, dirigida ao

rei que mandara executar a viagem.

O funcionário sob cuja direcção se publicou o

Esmeraldo ^ em vez de fazer áquelle admirável

livro a devida annotação, verificando as riquís-

simas noticias de toda a ordem que elle encerra,

comparando os conhecimentos de hoje com os reve-

lados então, commentando com documentos ou no-

ticias de chronicas as suas principaes passagens, fa-

1 Trata-se aqui da edição de 1893, trabalho infeliz sob to-

dos os aspectos. As citações do Esmeraldo de situs orhis referem-

se á Edição Critica, annotada por Augusto Epiphanio da Silva

Dias, Sociedade de Geographia de Lisboa, 1905»

Page 320: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

3l6 A Descoberta do Brasil

zendo sobresair os pontos em que elle rectifica e

emenda o que está escripto e é acòeite geralmente,

limitou-se a oppôr á narração da sua ida ao Brasil

a seguinte nota : « Tentativa para a descoberta do

Brasil, levada a effeito por Alvares Cabral em 1500,

sendo acompanhado por Duarte Pacheco ».

É a seguinte passagem de um chronista, refe-

rindo o aprisionamento de uma nau de mouros no

mar da índia, o que auctorisa a dar Cabral acom-

panhado por Pacheco : « . . . Pedralvares porque ti-

nha já dado o cuidado de a ir demandar a Pêro

d'Ataide capitão do navio 5. Pedro : tanto que foi

vista metteram-se com elle Vasco da Silveira, Duarte

Pacheco Pereira, João de Sá, que fora com Vasco

da Gama, e outras pessoas de qualidade que Pe-

dralvares escolheu e foram-se a ella ». Ora só terá

maior valor que a outra, esta passagem, quando a

narrativa de um chronista for considerada mais

authentica do que uma nota autobiographica, dada

em tão excepcionaes condições de desinteresse e

de verificação.

Mas podem ficar de pé as duas passagens. Umanão annula a outra. Duarte Pacheco, que foi ao

Brasil em 1498, podia perfeitamente embarcar em

1500 na frota de Cabral.

Page 321: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 317

O que auctorisou porém a negativa da ida ao

Brazil em 1498? Diz o prologo: «Por motivos dif-

ficeis se não impossiveis de averiguar, não foi posto

em execução o plano de D. Manuel ». Então como

averiguou que não foi realizado ? Qual é o documento

que desmente o Esmeraldo ?

Ignorava o annotador que assignára Duarte

Pacheco o tratado de Tordesillas. Explica o motivo

da ida ao Brasil a sua intervenção na questão dos

limites.

E assim se pretendia annular a affirmação de

Duarte Pacheco com uma nota impertinente, filha

do falso critério histórico de que apparecendo um

importante documento relativo á descoberta do Bra-

sil, cuja narrativa andava cheia de duvidas e confu-

sões, é com essa narrativa que se deve emendar o

documento, e não com o documento que deve es-

clarecer-se a narrativa !

Em resumo : é positivo que Duarte Pacheco, o

cosmographo de cujo saber os hespanhoes se admi-

ravam, e que revelou aos reis de Castella a exis-

tência da America do Sul, foi descobrir (reconhe-

cer) o Brasil em 1498, certamente para verificar os

limites, como nesse tratado era estabelecido.

Partira Colombo para as Antilhas muitos mezes

Page 322: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

31

8

A Descoberta do Brasil

antes da assignatura do tratado de Tordesillas e só

regressou dois annos depois. Ao largar em I498, na

terceira viagem, primeira depois do estabelecimento

do limite, procura reconhecer qual a terra que com

tanto afinco D. João II disputara.

E de tal importanoia este facto que basta elle

para demonstrar, por si só, que de ha muito era co-

nhecido o Brasil em Portugal.

Eis as próprias palavras de Colombo :^ « . • . Diz

mais na Instrucção que ia pelas ilhas de Cabo

Verde... e que ia, em nome da Santíssima Trin-

dade, com propósito de navegar ao austro (sul)

d'ellas até chegar debaixo da linha equinocial, e

seguir o caminho do poente até que esta ilha Hes-

panhola lhe ficasse ao noroeste para ver se ha ilhas

ou terras ...»

Ia Colombo em procura do Brasil, a terra cuja

existência tinham revelado em Castella os delega-

dos de Portugal, a terra para onde se navegava de

^ Segundo Las Casas, que escreve sobre os seus papeis e

lhe transcreve as próprias palavras. Historia de las índias, cap.

130 e 132, pag. 220 e 226 do volume 63 da Coleccion de docu-

mentos inéditos para la historia de Espana,

Page 323: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 319

Cabo Verde, a terra delimitada pela linha equino-

cial, que elle pretendia seguir pois era esse o li-

mite porque os pilotos se regulavam, como diz a

carta de Estevam Froes, vista a facilidade de o de-

terminar e a proximidade do ponto em que o meri-

diano das 370 léguas cortava a costa.

E, porém, Colombo ainda mais categórico

:

«... Torna o almirante a dizer que quer ir aa

austro (sul) porque entende, com ajuda da Santís-

sima Trindade, achar ilhas e terras, com que Deus

seja servido, e suas altezas e a christandade tenham

prazer, e que quer vêr qual era a intenção do rei

D. João de Portugal, que dizia que ao austro (sul)

havia terra firme ...»

E portanto uma nova indicação de D. João 11

que leva Colombo ao rumo do Brasil, ao encontro

da terra firme, do continente ; como as « canas gros-

sas» que lhe mostrou tinham sido um dos indicies

das terras do occidente.

Confessa pois Christovão Colombo, que nos

apresentam como tendo vindo offerecer um munda

a Portugal, mundo que Portugal recusou, mas

que D. João II tentou descobrir, roubando-lhe o

segredo, que se guiou pelas informações de D. João II^

que seguiu as indicações das viagens dos pilo-

Page 324: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

320 A Descoberta do Brasil

tos portugueses, dos Corte-Reaes e de tantos ou-

tros !

Mas dá ainda Colombo mais preciosas informa-

ções. Diz elle próprio que foi essa terra firme, esse

continente, que D. João II disputou em Tordesillas

:

«... e por isso diz que teve differenças com os

reis de Castella e emfim, diz, que se concluiu que

o rei de Portugal tivesse 37O léguas das ilhas dos

Açores e Cabo Verde, de oeste ao fim do norte, de

polo a polo. . . »

Não era porém o Brasil só conhecido do rei, e

dos que em Castella tinham revelado a sua existên-

cia. Todos sabiam d'isso em Cabo Verde, e confir-

mam o propósito em que ia, como elle próprio diz,

nestas palavras : « Vieram vel-o as pessoas princi-

paes d'aquella ilha de Santiago e disseram-lhe que a

sudoeste da ilha do Fogo, que é uma das mesmas de

Cabo Verde, que está a 12 léguas d'esta, se encon-

trava uma ilha, e que el-rei D. João tinha grande

tendência para mandar descobrir ao sudoeste, e que

se tinham achado embarcações que saíam da costa

da Guiné e navegavam a oeste com mercado-

rias. ...»

E a mesma a referencia do Brasil ás ilhas de

Cabo Verde e em especial á do Fogo. Assim se re-

Page 325: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 321

conhece a verosimilhança de Fructuoso ligando as

descobertas de João Vaz Corte-Real, em algumas

partes do Brasil, á descoberta da ilha do Fogo.

Continua Colombo e diz que ao partir: «man-

dou governar pela via de sudoeste que é o caminho

que leva... porque então chegaria... debaixo da

linha equinocial, de onde diz que debaixo d'aquelle

parallelo do mundo se acha mais ouro e coisas de

valor. . . »

Era ao limite das terras portuguesas que se diri-

gia, mas não com a intenção de aportar a ellas, o

que fora severamente prohibido. Mandou D. João II

justiçar por causa d'isso muitos hespanhoes, como

se vê pelas instrucções do rei de Castella ^

J O que vós Lope Furtado de Mendonça gentil-homem de

nossa casa haveis de dizer de nossa parte ao serenissimo Rei de

Portugal nosso mui caro e mui amado filho é o seguinte :

Que já sabe como pelo capitulado e assentado entre a coroa

real d'estes reinos de Castella, e a coroa real de seu reino de Por-

tugal, sobre a conquista das cousas do mar pertence a estes rei-

nos, tudo o que está dentro da raia, que se concertou pela dita

capitulação, que e' do polo árctico ao polo anctartico, de norte

a sul.

Assentando as trcsentas e setenta léguas das ilhas de Cabo

Verde á parte do ponente, e que assim mesmo sabe quão inteira-

21

Page 326: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

322 A Descoberta do Brasil

Quando mandavam á descoberta, davam severas

ordens para que não se tocasse no que pertencia a

Portugal, e applaudiam as medidas severas tomadas

pelo rei português.

Era só de passagem que veria a terra tão dispu-

tada: «no qual caminho veria a sobredita opinião

do rei D. João ».

Ora quando era tão geral o conhecimento da

terra de sudoeste, da terra do Brasil, que fora re-

velada em Castella, que tinha sido o motivo do tra-

tado de Tordesillas, que em Cabo Verde era sabida

mente se ha guardado por parte d' estes reinos o que cerca d'isto

se assentou e capitulou, mandando sob grandes penas aos que ha-

vemos enviado a descobrir que de nenhuma maneira tocassem no

que pertence a Portugal, e que alguns dos que foram contra o as-

sentado hão sido castigados, e d'outros que aportaram a Portu-

gal o senhor rei D. João seu predecessor tomou a emenda d'el-

les e os mandou justiçar. E assim mesmo por mandado do dito

rei meu filho foi justiçado em Portugal Diogo de Lepe, e muitos

dos que com elle tomaram morreram no cárcere, o qual houve-

mos por bem eu e a serenissima rainha minha mulher, que santa

gloria (sic), quando o dito rei D. João o mandou fazer, porque

quebrantaram as taes pessoas o dito tratado e o que por nós lhes

havia sido mandado quando se despacharam de cá, e se a este»

reinos viessem vivos os mandáramos castigar com pena de morte^

e assim castigaremos todos os que contra o assentado vierem, fa-

Page 327: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 323

de toda a gente, que tinha levado Colombo a mo-

dificar o rumo da terceira viagem, é muito natural

que lá tivessem ido João Coelho e Duarte Pacheco

verificar a delimitação, ou fazer um reconheci-

mento.

Está o maior alcance das palavras de Colombo,

revelando em 1498 que, seguindo as indicações de

D. João II, ia em procura de terra firme a sudoeste

da ilha do Fogo, na explicação dos motivos e do

rumo das viagens dos pretendidos descobridores do

Brasil; Vicente Yanez Pinzon, Diogo de Lepe e

zendo o dito rei meu filho cerca do que abaixo se dirá, o que é

rasão como eu espero que o fará, e que agora me hão dito que

alguns navios do seu reino tem ido a descobrir a terra que até

aqui se tem chamado terra firme, e agora mandamos chamar Cas-

tella do Ouro, e elles a titulo de irem á terra que chamam do

Brasil, que está pegada á dita terra de Castella do Ouro, hão en-

trado no que está descoberto por nosso mandado muito mais

adeante do que pertence a Portugal pela dita raia da demarca-

ção, em grande prejuizo da coroa real d'estes reinos e em que-

brantamento do que está assentado, de que me maravilharia

muito se assim houvesse feito, o qual sendo assim tenho por certo

que não se haverá feito com conhecimento e vontade do dito rei

meu filho, por isto que rogo mui aflfectuosamente mande logo pôr

toda diligencia em saber a verdade, porque já poderia ser que,

ainda que o tivessem feito, que o negassem por medo de serem

Page 328: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

324 ^ Descoberta do Brasil

Alonso Hojeda, que, segundo se diz, sairam de Hes-

panha em 1499.

Vão todos, como Colombo, ás ilhas de Cabo

Verde, partem como elle em rumo de sudoeste, di-

rige-se Lepe á ilha do Fogo, a que se referia a si-

tuação do Brasil, e encaminha-se Pinzon, exacta-

mente como Colombo, ás ilhas do Fogo e de Santiago.

Procuram todos attingir a grande terra do su-

doeste, não para a descobrir, porque é já conhecida,

tanto que pelas indicações do rei de Portugal e dos

portugueses de Cabo Verde se lhe dirigem. Não

para tomarem parte d'ella, porque pertencia a Por-

tugal, e D. João II defendia rudemente os seus li-

mites.

castigados, e sabido se fôr certo os mande castigar aos que assim

foram a descobrir o sobredito, e quaesquer outros que não hajam

guardado o dito tratado, como a transgressores do estabelecido

e capitulado, e como se fez e é de razão que se faça em seme-

lhantes casos, para que a elles seja castigo e a outros exemplo, e

não ousem fazer d'aqui em diante taes atrevimentos semelhantes

pessoas, de onde costumam nascer discórdias e differenças entre

os reinos, porque não o fazendo assim estes reinos teriam justa

causa de aproveitar-se de sua justiça, segundo que em semelhan-

tes casos se costuma e deve fazer, o que eu não queria em ne-

nhuma maneira pelo muito amor que tenho ao dito rei meu filho

Page 329: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 325

O que pretendiam era descobrir terras de que ti-

nham recebido concessão, e iam procural-as n'esse

continente além do limite de Tordesillas.

Determinavam expressamente que se não to-

casse nas terras de Portugal as cartas passadas pe-

los reis de Castella.

Dá conta d'essa prohibição uma carta de Fran-

cisco Roldan a Colombo ^: «Faço saber a V. S.

como cheguei aonde estava Hojeda no domingo 29

de setembro (1499). . . tive de ir ás caravelas e fa-

lei a João Velasques e a João Vizcainho, o qual me

mostrou uma capitulação que trazia para descobrir

n'estas partes, comtanto que não tocasse na terra

senão que entre a coroa real d'estes reinos e a de Portugal haja

perpetuamente toda conformidade e amor como é razão e devido

o requeiro. Feita na Villa de Valladolid aos quatro dias do mez

de agosto anno de mil e quinhentos e treze eu el-rei por man-

dado de sua alteza Lope Canchillo (?)

Lope Furtado de Mendonça.

Torre do Tombo, Corpo Chronologico, parte 3.*, maço S»**»

n.o 24.

í Historia de las índias, por Las Casas, livro i, cap. 164.

Page 330: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

326 A Descoberta do Brasil

do senhor rei de Portugal nem na terra que V. S.

havia descoberto até ao anno de 95 ».

Era bem categórica a restricção feita pelos reis

de Castella nas cartas dos que iam descobrir terras

da America. Diz Alonso Vellez de Mendoza : « que

não sejam. . . das ilhas e terra firme que pertencem

ao senhor rei de Portugal, nem tocareis nellas nem

em parte alguma d'ellas ».

Não se conhece positivamente o ponto da costa

da America do Sul em que tocaram esses aventu-

reiros ; o que se sabe é que assignalaram com a

morte a sua passagem, travando sangrentas campa-

nhas com os indígenas, e levando Pinzon captivos

trinta e seis d'elles.

Não têem pois a menor importância as viagens

d'esses três homens, a que tanta importância se tem

querido dar. Estão claramente estabelecidos o seu

alcance geographico e o seu alcance sociológico,

desde que se sabe que, como de costume, extermi-

naram Índios, e seguiram os rumos indicados pelos

portugueses. Do seu caracter moral conclue-se sa-

bendo que foi accusado Hojeda de ter furtado roupa

e outras coisas de uns navios portugueses que esta-

vam em Cabo Verde;que Lepe foi enforcado em

Portugal com applauso do rei de Castella; e que

Page 331: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 327

Pinzon procurou roubar a Colombo a gloria da pri-

mazia da descoberta da America, e os interesses

com que os reis de Castella haviam recompensado

os seus serviços.

E ensejo de falar agora de João Ramalho, não

para aproveitar o argumento da sua estaca no Brasil

desde 1490, mas para frizar a possibilidade da sua

existência ali n'essa data.

Escreveu fr. Gaspar da Madre de Deus, em 3

de julho de 1784, que tinha em seu poder a copia

do testamento de João Ramalho, escripto nas notas

do tabellião Lourenço Vaz, na villa de S. Paulo, em

3 de maio de 1580. Na presença do tabellião, do

juiz ordinário Pedro Dias e de quatro testemunhas,

declarou Ramalho que estava no Brasil ha 90 annos,

isto é, desde 1490, dois annos antes da chegada de

Colombo ás Antilhas.

Torna a serie de viagens para occidente, a mul-

tiplicidade de noticias, documentos e informações

de toda a ordem que provam a ida dos portugue-

ses á America, em data muito anterior ao que ge-

ralmente se julga, perfeitamente natural a existência

de Ramalho, ou de qualquer outro português, no

novo continente, muito antes de que Colombo guiasse

os hespanhoes á conquista.

Page 332: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

328 A Descoberta do Brasil

Dão os chronistas o Brasil descoberto em 1500,

mas essa omissão do antigo conhecimento da terra

nada quer dizer.

Fazia a orientação d'esses trabalhos de elogios

aos reis e aos grandes, aos que predominavam e

triumphavam, deixar na sombra as explorações do

occidente, realisadas por particulares ; o encon-

tro de terras que não eram a índia ou que não ser-

viam para estabelecer relações commerciaes. Não

se procedia ao registo de tudo, perdiam-se noticias,

esqueciam-se datas.

Desculpava-se João de Barros de não tratar em

particular das ilhas de S. Thomé, Anno Bom e Prín-

cipe por não saber quando e por quem foram des-

cobertas.

Succede o mesmo com a Madeira a respeito da

qual um documento de 1379, relativo ao marítimo

Machico, parece indicar a origem do nome de. uma

das suas capitanias, provando mais um descobri-

mento, anterior á data officialmente acceite (1418).

Falando do tempo de D. Affonso V diz João

de Barros : « porém sabemos ser voz commum se-

rem mais cousas passadas e descobertas no tempo

d'este rei do que temos escripto ». Referindo-se á

descoberta da costa da Mina escreve Galvão:

Page 333: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 329

« Muitos querem dizer que n'este tempo foram ter-

ras e ilhas descobertas de que já não ha memo-

ria ».

Mostra Duarte Pacheco no Esmeraldo ^ o pouco

que gostava de descrever terras que não davam resul-

tados úteis : « o mór aggravo que recebi n'esta obra. .

.

é que quiz a ventura que no quinhão que coube ao

sereníssimo rei D. João de seu descobrimento, a

maior parte da terra que descobriu do cabo de Ca-

tharina em diante, muita parte d'ella é deserta, e

alguma que é habitada, pouco commercio ou nada

n'ella se acha; porque se fora de rico trato, como

as que atraz ficam, receberia muito contentamento

em escrever o proveito que d'aquella região podía-

mos receber ».

A necessidade de manter em segredo o rumo das

novas terras fez com que muitas cousas não che-

gassem até nós.

Era prohibido traçar cartas de marear, para que

os estrangeiros não podessem percorrer os caminhos

cujo conhecimento constituía a riqueza de Portugal.

Dizer que descobriu o Brasil em 1500 Pedro

* Ed. Epiphanio, pag. 132.

Page 334: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

330 A Descoberta do Brasil

Alvares Cabral, não quer dizer que antes d'elle não

fosse conhecido qualquer outro ponto do grande

paiz da America do Sul, cuja unidade geographica

estava constituida desde os limites do tratado de

1494. A palavra descobrir não se usava então no

sentido absoluto e geral em que se usa hoje. Cabral

de facto reconheceu o monte Paschoal, o Porto Se-

guro, algumas léguas de costa, e chamou ao todo

Terra de Vera Cruz. Desde que não achou occu-

pada nem apadroada esta região, considerou-a des-

coberta, isto é, reconhecida por elle.

A palavra descobrir usava-se no sentido de re-

conhecer. Diz Caminha na sua carta : « para melhor

a mandar descobrir e saber». Emprega Gaspar

Correia, nas Lendas, a seguinte phrase : « e torna-

reis a descobrir este cabo ». Diz o Esmeraldo ^ « mui-

tas cousas que este glorioso príncipe mandou des-

cobrir por mim ^ e por outros seus capitães em

1 Ed. Epiphanio, pag. 15.

* A noticia d'esta descoberta de Duarte Pacheco, que as

chronicas registam, tem a mesma forma e é dada da mesma ma-

neira que a da sua ida ao Brasil em 1498, e até com menos so-

lemnidade do que aquella, que é dirigida expressamente ao

rei.

Page 335: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 331

muitos logares e rios da costa de Guiné, dos quaes

em tempo do infante D. Henrique e d'el-rei D. Af-

fonso a costa do mar somente era sabida, sem se

saber o que dentro n'elies era». Escreve n'outro

ponto : « convém que vossa alteza mande tornar a

descobrir e a apurar esta costa do ilheo da Cruz

em diante, porque é certo que no seu primeiro

descobrimento se soube em somma e não pelo

meudo» ^.

De tudo isto se conclue que havia descobrir

melhor e peor, primeiros e segundos descobrimen-

tos, que os reis mandavam descobrir terras desco-

bertas. Ora palavras de uma applicação e de um sen-

tido tão vago não podem destruir a serie de factos

que recuam o conhecimento do Brasil pelos portu-

gueses para uma época distante.

Estabelece claramente a própria viagem o co-

nhecimento anterior do Brasil. Seria perigosa a

grande bordada de sudoeste sem a existência de

um porto ao occidente onde se podesse refrescar.

E esse porto que Cabral procura reconhecer quando

tem os mesmos signaes de terra que Vasco da Gama

1 Ed. Epiphanio, pag. 17.

Page 336: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

332 A Descoberta do Brasil

em egual período da sua viagem. Attingido o pri-

meiro ponto da costa, segue a frota para o norte,

como diz Caminha : « para ver se achavam alguma

abrigada e bom pouso onde descançassemos para

tomar agua e lenha, não por nos já minguar, mas

para nos acertarmos aqui». O piloto diz «nos che-

gámos a ella para a reconhecer ».

O motivo que o leva a procurar um porto é o

mesmo que o fez aproximar de terra ; a necessidade

de refrescar, de descançar de uma viagem tão ex-

tensa, de fazer aguada, porque ha mez e meio que

andavam pelo mar e os navios eram pequenos para

trazerem agua em abundância para tanta gente. Na

viagem pelo mar largo necessitava-se de um ponto

de escala, como os que havia pela costa d'Africa,

para tornar possível em todas as contingências tão

distante navegação.

Tem Caminha a noção d'essa necessidade, e fi-

naliza a carta considerando o Brasil como o ponto

preciso para a viagem: «E que ahi não houvesse

mais que ter aqui esta poisada para esta navega-

ção de Calecut, abastara».

E a importância do ponto de escala da nova

derrota que avulta aos olhos de D. Manuel, coma

aos de Caminha e de Cabral. Nas cartas aos reis

Page 337: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 333

catholicos, falando da ida de Cabral ao Brasil diz

:

« é muito necessária e conveniente á navegação da

índia »; e noticiando terem lá tocado os navios de

João da Nova: «ahi foram ter para tomar algum

refresco, pois certo a dita terra é muito necessária

para essa viagem ».

E a conveniência de tomar essa terra para re-

frescar que decide Cabral a mandar a Lisboa um

navio, para que as frotas que o seguirem possam

já utilisar esse ponto tão útil para a navegação.

Levavam dez navios regimento para Calecut, e

dois para Sofala. O dos mantimentos ou devia re-

gressar a Lisboa, ou tinha de ser queimado como

o que acompanhou Vasco da Gama. Escreve D. Ma-

nuel para Castella: «D'esta terra o capitão fez re-

gressar a nós aquella caravela que levava manti-

mentos».

Não regressa pela simples ordem do capitão-

mór, pela imperiosa necessidade de participar ao

rei o encontro de uma terra inteiramente nova.

Reúne conselho, e Cabral « perguntou a todos, diz

Caminha, se nos parecia bom mandar a nova do

achamento d'esta terra a vossa alteza pelo navio

dos mantimentos ». É principalmente a boa viagem

que a frota leva o que alegra o rei.

Page 338: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

334 ^ Descoberta do Brasil

Trazendo expontaneamente cabaças de agua, já

mostram os Índios conhecer as necessidades de umnavio. A maneira como estabelecem logo relações

de troca, vão a bordo e fraternisam com os nossos,

parece mostrar que já tinham tratado com portu-

gueses. O velho Índio que aponta para o ceu deixa

prever o conhecimento de idênticas cerimonias.

Prova claramente o cosmographo da frota, mes-

tre João, physico d'el-reí, que regista o Cruzeiro

do Sul na sua interessante carta, o conhecimento da

terra, já traçada no mappa de Pêro Vaz da Cunha

Bisagiidoy que indica a D. Manuel.

Como cosmographo incumbia-lhe directamente a

determinação geographica do local. Desembarca no

dia 27 de abril e acha a latitude sul de 17 graus.

E em vez de fazer uma larga descripção da terra,

como a que faz Caminha do que se passou, escreve

estas palavras, de uma importância e de um alcance

extraordinário, que são verdadeiramente o fecho de

toda a demonstração:

«... quanto, senhor, ao sitio d'esta terra, mande

vossa alteza trazer um mappamundi que tem Pêro

Vaz Bisagudo, e por ahi poderá vêr vossa alteza o

sitio d'esta terra, ainda que aquelle mappamundi não

certifica se esta terra é habitada ou não : é mappa-

Page 339: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 335

mundi antigo e ahi achará Vossa Alteza escripta

lambem a Mina. . .

»

Havia portanto um mappamundi onde o Brasil

estava já traçado; era um mappamundi antigo, o

que demonstra o seu antigo conhecimento ; um do-

cumento de existência real, pertencente a Pêro Vaz

Bisagudo, e não uma vaga indicação. Conhecia-o

bem mestre João, como se deprehende dos detalhes

que dá: antiguidade, não certificar se a terra era

habitada, traçado da costa de Mina. Sabia portanto

o cosmographo da frota que havia terra n'esse rumo

de sudoeste por onde se dirigiam.

Assim pertencem indiscutivelmente a Portugal

as grandes phases da descoberta da America : a ida

pelos Açores á Terra Nova, e por Cabo Verde aa

Brasil; a indicação das terras do occidente a Co-

lombo antes de 1492 em que vae ás Antilhas, e das

de sudoeste antes de 1498 em que aproa á America

do Sul; a primeira grande viagem de descoberta

para occidente, Gonçalo Velho (1431), e a ultima

descoberta da America e primeira realisação pratica

do caminho do oriente por occidente, a descoberta

do estreito de Magalhães !

Page 340: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

XII

Pedro Alvares Cabral

Descendia de uma antiga familia nobre o com-

mandante da frota de 500, que tinha nessa data

trinta e dois ou trinta e três annos, fora nomeado

em 1484 moço fidalgo da corte de D. João II; re-

cebia uma tença annual de 13:000 reaes concedida

por aquelle rei, outra de 30:000 reaes, de que se en-

contraram recibos de 1502 e 1504, e outra de 200:000

reaes, de que ha um documento de 15 14 em que se

allude á sua carta geral. Assim parece que seria

esta ultima a recompensa dos seus serviços como ca-

pitão-mór da frota da índia. Isenta de servidões os

seus caseiros, mordomos e lavradores uma carta ré-

Page 341: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 337

gia de 1509; e auctorisa-o a trocar alguns bens que

possuía em Aldegalega pela quinta do Rosaio,

de Santarém, outra do mesmo anno. Em carta de

1514 pede Affonso de Albuquerque a D. Manuel

que o chame ao seu serviço. Figura em 15 18 com

a designação de cavalleiro do conselho de D. Ma-

nuel, e com 2:437 reaes por mez. Em 3 de novembro

de 1520 é concedida á sua viuva, D. Isabel de Cas-

tro, a tença de 30:000 reaes. Limitam as duas ulti-

mas datas o periodo da sua morte.

Está sepultado Cabral na egreja da Graça, de

Santarém, onde em 1882 foi authenticado o seu

jazigo e a sua ossada, reconhecendo-se que era de

avantajada estatura, como dizia a tradição. Já a seu

pae, Fernão Cabral, chamavam o Gigante da Beira.

Nada mais se conhece da sua biographia.

Desde a saída do Brazil, foi um verdadeiro de-

sastre a viagem da frota. Perderam-se quatro naus

com a tempestade : as de Bartholomeu Dias, Simão

de Pina, Ayres Gomes da Silva e Vasco d'Ataide, se-

gundo se lê na folha do Livro das Naus, e escrevem

Damião de Góes e João de Barros. Diverge Gaspar

Correia em dar Gaspar de Lemos, em vez de Ayres

Gomes da Silva, mas também apresenta Vasco

d'Ataide como tendo naufragado. Ora foi esse ca-

«2

Page 342: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

338 A Descoherta do Brasil

pitão o que se perdeu da frota logo ao sair de Cabo

Verde, como estabelece o irrecusável testemunho de

Caminha. Faltando assim Vasco de Ataide pôde

admittir-se que Gaspar Correia tenha razão dando

como perdido também Gaspar de Lemos. Mas esse,

no dizer dos três livros citados, foi o que regressou

do Brasil a Lisboa. Dá porém Correia esse encargo

a André Gonçalves, em quem os outros nem falam.

A falta de documentos a este respeito não se pôde

saber quem tem razão.

Foi ter desgarrada a Magadoxo a nau de Diogo

Dias, descobrindo Madagáscar e voltando a Lisboa

sem ter encontrado as outras. Chegaram os seis na-

vios restantes a Sofala, cheios de avarias, em l6 de

julho ; a Melinde em 2 de agosto ; e a Calecut em

13 de setembro, não sendo porém mais felizes do

que na viagem. Atacaram os mouros a feitoria, que

se estabelecera com licença do Samorim, e mataram

cincoenta portugueses, entre elles o feitor Ayres

Correia. Como represália foi bombardeada a cida-

de ; tomadas, saqueadas e queimadas dez naus ; e

mortos quinhentos mouros. Perdeu-se á volta o na-

vio de Sancho de Toar, que depois ficou numa ca-

ravela a explorar a costa de Sofala. Desgarrou no

regresso o de Pêro d'Ataide, e entrou Cabral em Lis-

Page 343: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 339

boa apenas com três navios dos treze que levara.

Voltaram mais tarde os de Diogo Dias, Pedro

d*Ataide e Sancho de Toar.

Carregou a frota especiaria em Cochim e Cana-

nor. Mandaram de Coulão offerecer gengibre, mas

não o poude tomar. O documento citado pela His-

toria geral do Brasil, não só pelo numero de navios

não pôde referir-se a esta frota, como pela circum-

stancia de terem carregado em Coulão as naus

5. Pedro e Espera.

Ficou D. Manuel tão desgostoso com o insuc-

cesso da missão, de que Cabral fora incumbido, que

esteve para abandonar a índia.

Escreve Alberto Cantino em 1502 : « o mesmo

rei... declarou já ao embaixador de Veneza que

se este anno as suas coisas não corressem bem,

como se julga, deixaria de todo a empreza, porque

o anno passado perdeu nella oitenta mil ducados ».

Partia Vasco da Gama n'esse anno. Na carta de

doação de 20 de fevereiro de 1504, em que lhe dá

mais 400:000 reaes, o dobro de que recebeu Cabral,

diz D. Manuel : « nossa frota» em que o enviámos,

trouxe a salvamento bem carregada e com muita

riqueza». E isto claramente uma allusão á perda

dos navios de Cabral.

Page 344: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

340 ^ Descoberta do Brasil

Ao recommendar precauções na viagem para o

Cabo refere-se ao desastre o Esmeraldo : « pode

acontecer a nau. . . se perder como já por mau re-

cato se perderam outras ». Deprehende-se d'esta

passagem o mesmo que o procedimento havido

para com Cabral deixa prever, que lhe era attri-

buida a responsabilidade do prejuízo.

Dizia o regimento com que Fernão Soares foi

á índia : « E muito vos encommendamos que em

toda a vossa viagem leveis todas as naus a mui

grande recato... para vossa navegação ser mais

segura em todo o caminho e se não possa seguir

algum desastre, que Nosso Senhor sempre defenda,

em especial naquella paragem em que as naus se

perderam na viagem em que foi Pedro Alvares Ca-

bral ».

Foi tal o desagrado em que caiu, que Albuquer-

que, ao pedir por elle a D. Manuel em 15 14, es-

creve : « não posso saber que descontentamento é

este que Vossa Alteza de sua pessoa tem, que as-

sim o tendes lançado de vosso serviço, e quanto me

a mim mais parece que a culpa d'este feito era sua

tanto mais sua de parecer e hei de crer que elle

•tem certo o perdão e galardão de Vossa Alteza. .

.

eu senhor vos beijarei as mãos por elle ser'chamado

Page 345: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 34^

de Vossa Alteza e aconselhado e reprehendido e

tornando em vossa graça e serviço ».

Não é levado em conta para a avaliação dos re-

sultados da sua viagem o reconhecimento do Brasil.

Nenhum documento dá a esse facto o relevo que

hoje tem. Ao escrever para a Itália o que succedeu

na viagem, nem fala Leonardo de Chá Masser da

ida ao Brasil.

O que se passou com Cabral mostra que o rei

o considerou como um capitão que não desempe-

nhara a grande missão de que ia encarregado.

N'uma bordada, ordenada no seu regimento, vae

tomar agua e lenha a essa terra de sudoeste, já de-

fendida teimosamente por D. João II, já repartida no

tratado de Tordesillas, já delimitada por Duarte Pa-

checo, já descoberta quando os portugueses procu-

ravam a índia para occidente.

E isto o que se deprehende da maneira como

Cabral é julgado pelo rei, pelo Esmeraldo e pelo

próprio Albuquerque, que, sem duvida, se podesse

allegar a descoberta do Brasil a citaria em favor do

seu protegido.

Morreu Cabral sob o peso do insuccesso na índia.

Não lhe avaliou a sua época o alcance socioló-

gico do papel desempenhado no Brasil.

Page 346: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

342 A Descoberta do Brasil

Preoccupada com a grande lucta do Oriente,

objectivo dos esforços de tantos annos, não fez o

reconhecimento d'essa terra esquecer os naufrágios

do Cabo, nem a traição dos moiros de Calecut.

Escrevendo muito depois, já lhe attribuem os

chronistas a descoberta do Brasil, que então come-

çava a ser aproveitado. Mas só a nossa época lhe

faz inteira justiça, comprehendendo e admirando a

maneira como procedeu.

Geralmente fixa na historia o nome de um com-

mandante o commettimento de uma expedição ; sym-

bolisa uma data muitos annos de esforços ; repre-

senta um grupo de homens nas consagrações, nas

apotheoses, nos centenários esses feitos maravilho-

sos em que trabalhou uma nação inteira, desde os

capitães que recebiam as instrucções e executavam o

pensamento do rei e do conselho, até aos modestos

pilotos que corriam atrevidos ao mar largo; desde

os cosmographos que procuravam nas estrellas do

Cruzeiro a maneira de conhecer a latitude sul, e nas

variações da agulha o segredo da determinação das

longitudes, até aos obscuros degredados os primei-

ros exploradores do sertão.

Symbolisam assim o nome de Cabral e a data

de 500 a fundação da pátria brasileira.

Page 347: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

A Descoberta do Brasil 343

Mas não merece Pedro Alvares Cabral o elogio

da historia simplesmente por ter sido nomeado com-

mandante de uma frota pelo rei.

Constitue o seu maior titulo de gloria a maneira

como procedeu para com os indigenas, lançando as

bases da solida amizade que ligou para sempre os

dois povos irmãos.

Salvaram para Portugal o grande país da Ame-

rica do Sul as viagens dos portugueses que o pre-

cederam na descoberta do Brasil.

Integra-se na grande somma de conhecimentos

geographicos e cosmographicos, com que os portu-

gueses organisaram uma nova sciencia, o conheci-

mento d'essa terra, que permittiu a D. João II de-

fendel-a com tanto ardor. Constituindo o património

da sua raça engrandecem-n'o em vez de amesqui-

nhal-o, elevam-n'o, dão-lhe a verdadeira consciência

da sua missão, tornam-n'o representante n'aquelle

momento histórico, n'aquelle soberbo continente, do

trabalho luminoso, persistente, methodico de tantos

annos de descobrimentos.

Estava pessoalmente Pedro Alvares Cabral á al-

tura do papel que desempenhou.

Ha nas grandes figuras da epopeia maritima por-

tuguesa traços dominantes que as tornam incunfun-

Page 348: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

344 ^ Descoberta do Brasil

diveis, lhes imprimem caracter, lhes destinam mis-

são.

Não é Cabral homem para a aventura ou para a

conquista; o seu espirito sereno, tolerante e bon-

doso manifesta a intuição do colonisadôr.

E tudo o que ha de mais alevantado e nobre a

sua permanência na terra de Vera Cruz; coloca-o

bem acima de Colombo, de Pinzon, de Hojeda e

Lepe, de todos os exterminadores enviados pela

Hespanha ao novo continente.

Ao reconhecer officialmente a situação e o valor

da terra de Vera Cruz, ao revelar a bondade dos

seus habitantes, a sua conveniência para a viagem

da índia, escreveu Cabral a primeira pagina inten-

cional, da historia do Brasil; perpetuou-lhe os segre-

dos do passado na pittoresca narrativa do escrivão;

e ligou-lhe, na carta do cosmographo, o emblema

do, futuro, a formosa constellação do Cruzeiro do Sul,

que quatro séculos depois o país nascente ostenta

orgulhosamente na bandeira.

FIM

Page 349: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

índice

Pag.

Prefacio 5

Prologo da i.* edição 7

Introducção 11

I. As lendas geographicas da antiguidade 21

II. O projecto do infante D. Henrique 31

III. Á descoberta 38

IV. Prioridade dos portugueses na descoberta da Ame-

rica 43

V. Os Corte-Reaes 79

VI. Expedições portuguesas á America de 1474 a I492 99

VII. Colombo 143

VIII. A frota de Cabral 19?

IX. A viagem 220

23

Page 350: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

346 índice

X. Os portugueses no Brasil — Carta de Pêro Vaz de

Caminha a el-rei D. Manuel — Extractos da

«Destruição das índias» de Bartolomé de las

Casas 237

XI. Prioridade dos portugueses na descoberta do Bra-

sil .. . 289

XII. Pedro Alvares Cabral 336

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Page 352: A Descoberta do Brasil - Faustino Fonseca

SOUTHEASTERN MASSACHUSETTS

3 2TEE DDEEb MTM D

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/9O2

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