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Angelus Novus, de Paul Klee. 09/04/2017 A desagregação neoliberal: conheça a origem dos nossos problemas atuais voyager1.net /politica/a-desegregacao-neoliberal/ “Minhas asas estão prontas para o voo, Se pudesse, eu retrocederia Pois eu seria menos feliz Se permanecesse imerso no tempo vivo.” (Gerhard Scholem, Saudação do anjo) “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.” (Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de história, 1940) Introdução 1/19

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Angelus Novus, de Paul Klee.

09/04/2017

A desagregação neoliberal: conheça a origem dos nossosproblemas atuais

voyager1.net /politica/a-desegregacao-neoliberal/

“Minhas asas estão prontas para o voo,Se pudesse, eu retrocederiaPois eu seria menos felizSe permanecesse imerso no tempo vivo.”(Gerhard Scholem, Saudação do anjo)

“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo queparece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estãoescancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve teresse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos umacadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumulaincansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria dedeter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestadesopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não podemais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qualele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essatempestade é o que chamamos progresso.” (Walter Benjamin, Teses sobre oconceito de história, 1940)

Introdução

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“Mesmo admitindo que não haja propósitos superiores na vida, precisamos atribuir um significado a nossas ações,de modo a transcendê-las. Afirmar apenas que algo faz ou não parte de nossos interesses materiais na maior partedo tempo não satisfaz a maioria das pessoas. Convencer os outros de que algo está certo ou errado exige umalinguagem de fins, e não de meios. Não precisamos acreditar que nossos objetivos estão destinados ao êxito. Masprecisamos ser capazes de crer neles.” (Tony Judt)

A ideia de escrever esse artigo surgiu após a releitura do livro “O Mal Ronda A Terra” , do historiador britânico TonyJudt. Intelectual brilhante, com uma extensa obra, Judt publicou este que seria seu último livro. O seu testamentointelectual.

Acometido por uma doença rara e devastadora – esclerose lateral amiotrófica, a mesma do físico StephenHawking – o historiador passou todo o ano de 2010 numa cama. Impossibilitado de movimentar um músculosequer do corpo. Seu cérebro, porém, não fora afetado. E, com a ajuda de aparelhos, dos familiares e sempraticamente consultar nenhum livro, ele conseguiu ditar as palavras que formariam este livro.

Escrito dois anos após o estouro da bolha imobiliária, a obra tenta compreender um mundo que parecia seesfacelar. O subtítulo demonstra bem o sentimento da época: “um guia para perplexos”. Segundo o dicionário háduas definições possíveis para a palavra “perplexo”: 1) indeciso, irresoluto; 2) tomado de espanto, atônito. Apolissemia do termo traduz o sentimento da época diante das transformações que vinham ocorrendo. Aqueles quesempre tiveram certezas, não conseguiam explicar como criaram a crise. Enquanto os que sempre criticaram omodelo adotado pareciam espantados, incapazes de mudar os rumos da política. Ambos os grupos estavamperplexos, mas de maneiras diferentes.

Para Judt, a morte era questão de tempo. Ela, inclusive, veio antes do livro ser publicado. A tragédia do historiadorpode ser vista como uma metáfora do drama pelo qual passamos. A humanidade segue sem rumo. O radicalismo eo fundamentalismo estão mais presentes do que nunca. Muitos observadores estão alertando que caminhamospara o abismo. Nossa força para agir está desconectada da nossa capacidade de pensar e refletir. Estamosimóveis numa montanha de gelo que derrete a cada dia.

Derrotar os candidatos da extrema-direita não irá resolver. Bolsonaro, Le Pen, Trump e o Estado Islâmico nãosão as causas dos nossos problemas, mas as consequências. São os vícios de uma sociedade que está sendocorroída.

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As pessoas estão desorientadas. Suas vidas estão afundando e elas não veem solução. Foram acostumadas aouvir o tempo todo que não há alternativa. O que fazer quando você não pode permanecer imóvel, porém não háescolhas?

O primeiro passo, sem dúvida, é mostrar que as alternativas existem. E são muitas.

Se olharmos para o passado recente é fácil perceber que a economia é o resultado de escolhas políticas e não deum equilíbrio natural. A prosperidade do pós-guerra foi construída em pouquíssimos anos. Bastou que antigosdogmas fossem abandonados. Vivemos em sociedade há pelo menos 10.000 anos, nada na nossa realidade énatural. Se quisermos mudar nosso mundo, não podemos fazer as mesmas coisas de sempre. Precisamos nosreinventar. O futuro está aberto ao novo. Mas para nos orientarmos diante da escuridão, é preciso uma lanterna.Essa luz só pode vir da experiência humana acumulada ao longo de séculos de história.

Essa é a proposta de Judt. Seu testamento é, com efeito, uma lembrança do que éramos e do que nos tornamos.“A visão de uma organização social total – a fantasia que inspirou utopistas de Sydney Webb a Lênin, deRobespierre a La Corbusier – desmoronou. Mas a questão de como organizarmos nossas vidas para o bemcomum continua importante como sempre. Nosso desafio é recuperá-la em meio aos escombros”. (Judt)

A derrota da esquerda na Guerra-Fria, contudo, nos impôs outro dogma. O do capitalismo de livre-mercado.Como o Judt nos mostra, a única coisa pior que governo de mais é governo de menos. Nos dois casos a liberdadenão passa de uma ilusão.

Temos dificuldade de encontrar saída para as nossas dificuldades porque nos apresentam falsos problemas:capitalismo x comunismo ou socialismo x liberdade. O capitalismo não é um sistema político, mas uma organizaçãoeconômica que funciona perfeitamente em modelos autoritários de governos. A grande questão, portanto, não éescolher entre capitalismo ou socialismo, mas definir os valores com os quais iremos orientar a nossa existência.

A tirania é um risco com ou sem Estado. Quem mora no Rio de Janeiro, por exemplo, reclama de pagar IPTU.Porém, aqueles que vivem em regiões em que o governo não atua, certamente não estão contentes com as taxascobradas pelos milicianos.

É preciso, portanto, abandonar essa falsa discussão. O que necessitamos de modo urgente é pensar em novas3/19

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maneiras de organizar o poder público. “Já nos livramos da presunção do século XX de que o Estado costuma ser amelhor solução para qualquer problema existente. Agora precisamos nos libertar da noção oposta: de que Estado é– sempre, e por definição – a pior opção disponível.” (Judt)

Valores éticos e distribuição do poder são, com efeito, os dois pontos fundamentais para repensarmos a política.Enquanto o primeiro nos mostra a direção certa a seguir, o segundo poder regula nossa existência.

Um exemplo. Após a Segunda Guerra Mundial, muitos veteranos tinham dificuldades de arrumar emprego nosEUA. Foi criado então um programa de ensino gratuito nas universidades para os ex-combatentes. A ideia era queesses homens haviam doado uma parte importante das suas vidas para defender a América, a liberdade etc.Assim, seria “obrigação” que, aqueles que não sofreram os horrores do conflito, os auxiliassem na difícil tarefa dereconstruir a vida.

Poucos discordariam da lógica desse raciocino. Mas há um detalhe. Tal prática desmente a visão liberal danatureza humana como essencialmente egoísta. Primeiro que um homem egoísta jamais iria a uma guerra. Seriamais racional ficar em seu país lucrando com a morte de terceiros. E, mesmo que essas pessoas fossem parar nofront de modo coercitivo, ao voltarem, seus semelhantes egoístas estariam mais preocupados com a própriaexistência. Esse programa foi o embrião do ensino público americano que funcionaria nas décadas seguintes.

O Estado de bem estar social, portanto, fora motivado por valores morais, não por um cálculo econômico. Entreesses afetos, dois se destacam: O primeiro foi a solidariedade com aqueles que lutaram pela nação. O segundo erao medo de que tragédias iguais àquela se repetissem. Os homens da primeira metade do século XX sofrem juntosem função de tragédias coletivas. A dor era a cola que unia essas pessoas.

A história das últimas décadas pode, com efeito, ser dividida em dois momentos distintos. Nos 30 anos posterioresà Segunda Guerra, ocorreu aquilo que o economista Paul Krugman chamou de “grande compressão”. A riqueza ea pobreza foram “comprimidas” e formaram uma sociedade de classe-média. Nesse período as instituições foramreconfiguradas de modo a privilegiar o equilíbrio social e combater as iniquidades. “Os dados mostram omovimento dos republicanos em direção à esquerda, mais próximos dos democratas, quando a desigualdade derenda declinou” (Krugman).

A explicação é simples para quem conhece um pouco da história americana. O livre-mercado havia provocado acrise de 1929 (leia mais sobre isso aqui), também havia falhado em retomar o crescimento. Com o advento doNew Deal, que recebeu oposição dos republicanos nos primeiros anos, a economia não apenas passou a funcionarmelhor como o trabalhador conquistou uma inédita segurança. Em 1948, outro democrata foi eleito, HenryTruman. Após mais esse fracasso eleitoral, os republicanos perceberam que as conquistas sociais não seriampassageiras e que, caso não as defendessem, amargariam outras derrotas.

Com o tempo, contudo, um grupo de “conservadores radicais”, que eram financiados por grandes empresas,passou a crescer dentro do partido republicano. Em 1964, eles iniciaram a construção da sua base popular. Graçasao carisma de um ator de Hollywood, Ronald Reagan. Nesse mesmo ano, o futuro presidente fez um discurso natelevisão que, a despeito de usar números falsos, causou certa comoção: “funcionários federais chegam a 2,5milhões, e um sexto da força de trabalho é empregada pelos governos federal, estaduais e locais”. Dizia o entãogalã de cinema. Outra narrativa ganhava fôlego.

A partir dos anos 1970, essas teses foram se materializando e a política norte-americana deu uma guinada àdireita. Dessa vez foram os democratas que acompanharam os republicanos: “Bill Clinton certamente governounão apenas à direita de Jimmy Carter, mas à direita de Richard Nixon” (Krugman).

O critério para diferenciar esses espectros políticos, portanto, está nas diferentes concepções de economia política,não nos partidos. Segundo o economista Joseph Stiglitz, a percepção da esquerda é a de que a economiafuncionaria como a maré, ou seja, sua cheia elevaria todos dentro do barco. Eu complementaria dizendo que esse

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movimento não é natural, mas produzido por um determinado arranjo institucional que prioriza a equidade. No outroespectro, a direita propõe a “política do gotejamento” (Trickle-down Economics). Ou seja, a concentração dariqueza no topo da pirâmide, com o tempo, transbordaria e chegaria a todas as camadas sociais.

Este texto pretende, numa abordagem histórica, retomar essa discussão. Nosso objetivo é, ao final, compreendercomo entramos nesse “beco sem saída”. Não tenho a pretensão de mostrar as soluções para todos os problemas.A dúvida é uma importante aliada e precisa ser preservada. A ideia é somente lembrar que não existe apenas umadireção a seguir. Isso pode parecer banal, mas é algo que precisa ser repetido. Numa época em que o discursoneoliberal é hegemônico, recordar algumas alternativas não deixa de ser um gesto revolucionário.

A Comunidade de Confiança do Pós-Guerra

“A tarefa do Estado não é apenas recolher os cacos quando a economia desregulada se esfacela. Também lhecabe conter os efeitos dos ganhos desmesurados”. (Tony Judt)

Em 1942, após a entrada da URSS e dos EUA na Segunda Guerra, já havia ficado evidente para a maioria dosobservadores que a derrota do Eixo era uma questão de tempo. O problema que agitava os intelectuais não era aguerra, mas as bases com as quais o continente seria reerguido. O objetivo principal era evitar que tragédias, comoo fascismo e a Grande Depressão, se repetissem. Todos tinham a consciência de que, caso nada fosse feito, ocaos dos anos 1920 seria revivido. Mas o que poderia evitá-lo?

Grosso modo, existiam duas correntes que “disputavam” essas narrativas. A primeira, majoritária, entendia onazismo como resultado da falência do Laissez Faire. O principal expoente desse primeiro grupo era o economistainglês John Maynard Keynes, que em 1936 havia publicado sua principal obra “Teoria Geral do Emprego, do Juroe da Moeda”. O economista não acreditava no “equilíbrio natural” dos mercados e defendia que o Estado seria oresponsável por garantir o funcionamento pleno da economia capitalista.

Keynes e outros lembravam que os nazistas haviam obtido sucesso ao recuperar a economia alemã, porém osinvestimentos em armamentos levaram o continente à ruína. Caso tais investimentos fossem voltados para a áreasocial, de modo a mitigar os efeitos deletérios do capitalismo, o crescimento econômico poderia ser sustentável.

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Um ano depois, o mesmo Keynes, escreveu um memorando assinalando a necessidade de ser buscar a segurançasocial e atacar o desemprego no pós-guerra. Nesse documento, ele defende o papel do governo no investimentopúblico e na garantia do pleno emprego.

Como o Judt mostra, tal proposta não tinha nada a ver com o socialismo: “os suecos, finlandeses, dinamarqueses enoruegueses desfrutavam não da propriedade coletiva, mas da proteção coletiva” (Tony Judt). Essa talvez seja adiferenciação mais potente entre a economia socialista e a economia-mista. O setor privado continuava tendo umpapel relevante, porém os cidadãos não ficavam sujeitos às oscilações do mercado.

Keynes não estava sozinho. O economista Wiliam Beveridge formulou uma proposta ainda mais ousada. ORelatório Beveridge, como ficou conhecido, pregava o “Estado providência”, que também seria uma economia-mista, porém mais próximo do socialismo. “O próprio Beveridge, que era crítico do capitalismo social e, com aguerra, passou a ser um crente na mudança social radical através da planificação, disse a Beatrice Webb, no iníciode 1940, que gostaria muito de ver o comunismo experimentado em condições democráticas” (Mazower).

Esses intelectuais destacavam que o planejamento havia transformado os países em máquinas de guerra. Por que,caso tal planejamento fosse voltado para os ganhos econômicos, ele não teria êxito? A ideia era estatizar setoreschaves da economia e deixar o restante para o mercado. Assim, os governos poderiam controlar e “planejar” aprodução segundo suas prioridades.

No pós-guerra ambas as propostas serão adotadas. Países como a França, por exemplo, que haviam sidodestruídos pelo conflito, privilegiarão o planejamento estatal. Outros, como os escandinavos, seguirão o caminhoda seguridade social. Mas é importante destacar que: “As grandes histórias de sucesso dos países capitalistas nopós-guerra, com raríssimas exceções (Hong Kong), são histórias de industrialização sustentada, supervisionada,orientada e às vezes planejada e administrada por governos: da França e Espanha, na Europa, a Japão,Singapura e Coreia do Sul”. (Hobsbawm)

Formou-se, então, o que alguns historiadores chamaram de “Consenso Keynesiano”. O liberalismo estava morto.Porém, havia alguns descontentes que estavam dispostos a ressuscitá-lo. Desde 1938, no Colóquio WalterLippmann, esses opositores da economia-mista haviam definido a si mesmos como neoliberais.

Segundo Friedrich Hayek, um dos principais autores neoliberais, haveria uma oposição inconciliável entre oEstado e a liberdade individual. Ou, nas palavras do próprio autor: “devemos enfrentar o fato de que a preservaçãoda liberdade é incompatível com a satisfação plena de nossa visão de justiça distributiva” (Hayek). O governo seria,portanto, um organismo vivo em constante expansão e, caso não fosse limitado, as intervenções iriam seacumulando até que o Estado submetesse o indivíduo à total servidão. “Apesar de suas boas intenções, a social-democracia moderada inglesa conduz ao mesmo desastre que o nazismo alemão – uma servidão moderna”(Hayek). A partir de 1947, conforme os contornos do Estado de bem estar social estavam sendo delimitados, osneoliberais fundaram a Sociedade Mont Pèlerin para discutir suas ideias e combater o keynesianismo.

Os neoliberais afirmavam que o sucesso econômico dos anos 1950 seria insustentável. Para eles, os auxíliossociais demandariam cada vez mais impostos para serem mantidos. Tais tributos acabariam por inibir oinvestimento privado e o crescimento econômico. O baixo crescimento, por sua vez, faria a arrecadação cair e,para continuar a sustentar os programas de seguridade social, mais impostos seriam cobrados. Assimsucessivamente.

A ordem do pós-guerra, contudo, não foi estabelecida ou fundamentada em nenhuma doutrina. Como normalmenteacontece, os políticos tomam suas decisões baseados na correlação de força do momento. E dois aspectosempurraram a economia para a “esquerda”. Primeiro, de natureza interna. O continente europeu estava destruído.Não havia mercado e a iniciativa privada era limitada. Como dito, as economias já haviam sido planificadas aolongo do conflito. O pacto social do pós-guerra também foi realizado através de uma troca entre governos e aspopulações. Os cidadãos haviam pegado em armas para defender seus países, muitos haviam morrido. Com o

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retorno à paz, então, chegara o momento dos políticos retribuírem o auxílio; garantindo emprego, saúde eeducação a todos.

O segundo, da ordem externa, foi o advento da Guerra Fria. Inicialmente, a ideia dos aliados era transformar aAlemanha e o Japão em economias agrárias. “Em março de 1946, como vimos, o Conselho de Controleaprovara a limitação da produção industrial da Alemanha à metade do nível 1938”. Pouco tempo depois, os EstadosUnidos, diante do perigo soviético e depois do chinês, seriam os maiores parceiros na reconstrução dos doispaíses.

O Plano Marshall foi a solução encontrada para recuperar a Europa. Os historiadores divergem quanto ao papelda ajuda financeira na recuperação econômica do continente. David Landes, por exemplo, diz que o auxílio foidecisivo. Pois os dólares americanos serviram para equilibrar a balança de pagamentos num momento deescassez de moeda. As nações precisavam importar, mas não havia o que exportar. Assim, os empréstimosserviram para irrigar a economia enquanto os países se recuperavam da destruição.

Mark Mazower, contudo, lembra que a ajuda americana não chegou ao Leste Europeu e esses paísesapresentaram um crescimento tão vigoroso quanto a Europa Ocidental. O historiador também afirma que osdanos causados à capacidade produtiva europeia são superestimados. Mazawer, então, chega à conclusão de queas causas da recuperação foram endógenas.

Todas as nações estavam numa situação semelhante e todas precisam se recuperar. Pior, o Exército Vermelhoestava estacionado a poucos quilômetros de distância. Esse ambiente, de penúria e medo, possibilitou a integraçãoe a ajuda mútua que, segundo Mazower, teria sido mais importante que os empréstimos americanos. Tony Judtconcorda com essa análise e mostra que os acordos políticos que visavam facilitar o comércio, como o Benelux eo Tratado de Roma, foram apenas a formalização de práticas que já vinham acontecendo.

Para Mazawer, a razão do sucesso inicial foi que o crescimento econômico era uma questão de sobrevivência. Apreocupação com o comunismo fez com que esses países abandonassem os dogmas liberais do equilíbrioorçamentário. O déficit público reanimou o setor privado num momento em que a cooperação fazia o comérciodisparar.

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A recuperação aconteceu de modo extraordinário. Surpreendendo, inclusive, os analistas mais otimistas. Os 30anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial foram os de maior prosperidade da história do capitalismo, outalvez da história humana. E, nesse aspecto, há consenso entre os especialistas. Segundo Mazawer: “entre 1913 e1950 a media de crescimento da renda per capita da região foi de 1% ao ano; entre 1950 1970, a média aumentoupara incríveis 4%”. Chegando à incrível marca de 8,1% no Japão. O desemprego desapareceu; o mesmohistoriador afirma que ele despencou de “7,5% nos anos 30 para menos de 3% em 1950/60, e para 1,5% nadécada seguinte”. “Em todos os países indústrias, inclusive na lerda Grã Bretanha, a Era do Ouro Bateu todos osrecordes anteriores (Hobsbawm)”. “No espaço de tempo correspondente a uma geração, as economias do OesteEuropeu recuperaram o terreno perdido em quarenta anos de guerra e na Depressão; além disso, o desempenhoeconômico europeu e os padrões de consumo começaram a se assemelhar aos dos EUA” (Judt). “Já agora, noentanto, ela estava avançando sozinha, a cada ano trazia um novo recorde de produção. Entre 1938 e 1963, oproduto nacional global da Europa Ocidental aumentou mais de duas vezes e meia.” (Landes).

Como tal crescimento foi possível? Nos aspectos gerais, podemos afirmar que ele foi conquistado:

1) pela expansão do comércio externo;2) pelo boom do crescimento populacional;3) pela adoção de novos métodos de produção;4) pelas inovações tecnológicas;5) pelos investimentos estatais;6) e pelo aumento da renda dos trabalhadores.

O crescimento populacional, as políticas distributivistas, a expansão do comércio entre os países ricos, garantiam ademanda. Os métodos científicos de produção, e as inovações tecnológicas, possibilitavam o aumento da oferta. Opleno emprego, por sua vez, ajudava nas duas pontas da economia.

Segundo o economista Paul Krugman, o imposto progressivo foi a medida mais importante para a construção doEstado de bem estar social nos EUA. O Nobel de economia mostra que a riqueza pré-tributação era muito próximadaquela registrada nos anos 1920. Porém, o panorama era completamente distinto quando comparamos os dadospós-tributação. A alíquota sobre a renda saiu dos 24% a alcançou a impressionante marca de 91%. Os impostossobre herança chegaram a marca de 77%. Os lucros privados eram revertidos em benefícios socais. E, aocontrário das previsões catastróficas, isso não inibiu os investimentos nem as inovações.

Enfim, os países faziam o oposto do que era pregado pelos neoliberais e estavam obtendo sucesso. O que fez comque essa corrente fosse esquecida por muito tempo. Tony Judt é sarcástico ao destacar a insistência teológica deHayek e companhia em defender suas ideias. Mesmo tendo errado quase todas as previsões: “portanto, aos olhosde Hayek, a Suécia seria outro país condenado a seguir o caminho da Alemanha até o abismo, graças ao sucessopolítico da maioria socialdemocracia e do seu projeto legislativo ambicioso”.

Em 2017, 73 anos depois da publicação do livro “Caminho da Servidão”, de Hayek, muitos neoliberais aindaesperam o Hitler sueco. Insistência admirável, porém, nada comparado à de alguns cristãos que esperam a voltade Cristo há 2000 anos.

Tony Judt também lembra alguns aspectos culturais da “Era da Prosperidade” que fogem às análises econômicas.Nesse período formou-se na Europa o que o historiador chamou de “comunidade de confiança”. “Todos osempreendimentos coletivos exigem confiança. Das brincadeiras infantis às instituições sociais mais complexas, oshumanos não conseguem atuar juntos a não ser suspendendo a desconfiança que sentem uns pelos outros”.

A regulamentação estatal necessita dessa confiança coletiva e do compromisso individual com a coletividade. Judtlembra que a tributação é uma forma de pagar dívidas passadas e de investir em projetos futuros. O imposto,portanto, é uma maneira de conectar diferentes gerações num objetivo comum. A lógica é simples: eu devo parte domeu padrão de vida àqueles que me antecederam e tenho uma responsabilidade com as gerações vindouras. Tal

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prática estimula o sentimento de pertencimento. Portanto, é mais que uma medida econômica, mas uma posturaética em que o indivíduo se percebe como parte de uma estrutura que o transcende.

O economista Thomas Piketty, no famoso Capital no Século XXI , chegou a conclusões parecidas: “Impostos nãosão uma questão técnica. Impostos são, isso sim, uma questão proeminentemente política e filosófica, talvez amais importante de todas as questões políticas. Sem impostos, a sociedade fica destituída de um destino comum,e a ação coletiva se torna impossível.”

Outro que concorda com essa postura é o Nobel de economia Joseph E. Stiglitz: “Quando esse contrato social éinfringido – quando a confiança entre um governo e seus cidadãos é quebrada – é certo que haverá desilusão,desmoralização ou coisa pior”. Perde-se a virtude cívica. A sociedade se desagrega. Os indivíduos se percebemimpotentes. E, por fim, o radicalismo e o fundamentalismo renascem.

O diplomata Paulo Guimarães, que vive há 25 anos na Suécia, usa o termo “sentido de coletividade” para explicaro sucesso dos países escandinavos: “As conquistas do Estado de bem estar social não se fizeram sem conflito,mas desde cedo a socialdemocracia escandinava advogou a transformação pragmática, moderada e pacífica dasociedade burguesa herdada do século XIX”.

O filósofo Noam Chomsky também mostra a importância que o afeto e a solidariedade possuem para o bomfuncionamento da sociedade. “Tem havido esforços para tirar essas emoções básicas da cabeça das pessoas. Evemos isso hoje na formação de políticas. Por exemplo, o ataque à Seguridade Social. A Seguridade Social ébaseada num princípio de solidariedade. A Seguridade Social significa: ‘eu pago meus impostos sobre salários paraque a viúva do outro lado da cidade possa receber ajuda para viver’. É assim que grande parte da populaçãosobrevive”.

Enfim, tanto a tributação quanto os gastos públicos, para funcionarem, requerem esse sentimento coletivo. Oreconhecimento da existência de uma “comunidade de destinos”. Não por acaso, os neoliberais irão atacar deforma tão feroz essas duas práticas, pois elas lembram aquilo que eles não querem ver: que a sociedade existe,que a história existe e que nenhum indivíduo é uma ilha.

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Tais fatos eram mais que evidentes para os homens que haviam sofrido juntos com a Depressão, com o desastre

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Sergio Magaldi
Riscado
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da guerra e compartilhavam as angústias de um futuro incerto. Para essas pessoas, seus destinos estavamentrelaçados. Não havia como fugir. Eles sabiam que a comunidade precede o indivíduo e um não vive sem ooutro. Portanto, a harmonia do todo era condição essencial para o crescimento das partes. Tudo isso se perdeunos anos 1970. O discurso neoliberal passou a isolar os sujeitos e promoveu uma desagregação dos laços afetivos.Esse será o assunto da segunda parte deste artigo.

A Desagregação Neoliberal

“Encontramos ceticismo político na origem de muitos dos nossos dilemas. Mesmo que os mercados livresfuncionassem como apregoam, seria difícil alegar que eles constituem uma base adequada para uma vida plena”.(Tony Judt)

O livro “Desagregação: Por Dentro de Uma Nova América” , do jornalista George Packer, foi considerado pelo NewYork Times como a melhor obra para entender os motivos que levaram à vitória do republicano Donald Trumpnos EUA. Escrito em 2013, ele permaneceu pouco conhecido até a inesperada reviravolta nas eleiçõespresidenciais.

Em 2010, porém, Tony Judt já havia descrito, com impressionante precisão, os motivos que seis anos depoispermitiriam a vitória do radicalismo nos EUA. “As populações que sofrem com a crescente insegurança econômicae física se refugiarão nos símbolos políticos, recursos legais e barreiras físicas que apenas um Estado territorialpode oferecer. Isso já está acontecendo em vários países: basta notar a defesa crescente do protecionismo napolítica americana, o sucesso dos partidos contra a imigração na Europa Ocidental e o apelo abrangente pormuros, barreiras e testes”.

O recrudescimento do radicalismo no mundo, como podemos ver, está relacionado à desagregação provocada peloneoliberalismo. A lógica simplista que afirma não existir sociedade nega, ou esconde, elementos objetivos darealidade. Não existe sociedade, mas se meu país entrar em guerra eu posso ser enviado para o campo de batalha.Não existe sociedade, mas uma ditadura pode ser imposta de cima e acabar com os meus direitos. Não existesociedade, mas uma crise econômica pode arruinar as minhas finanças. Não existe sociedade, mas eu preciso de

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visto para entrar em outros países. Não existe sociedade, mas a violência urbana me afeta. Não existe sociedade,mas a destruição ambiental está acabando com a minha saúde.

É dessa lógica que nasce o radicalismo. O indivíduo coloca toda a sua fé em soluções simplistas, quando estas semostram incapazes de resolver os problemas complexos, ele se percebe num “beco sem saída”. No desespero,delega sua salvação a qualquer demagogo.

A atomização do sujeito, a negação da política e o desmantelamento dos mecanismos de proteção social deixamas pessoas inseguras, sendo, portanto, mais vulneráveis a aderir ao radicalismo. Donald Trump é o espelho dosvícios da globalização. O historiador Michael Mann fez um estudo em que mostra que o nazismo cresceu entre ostrabalhadores desempregados e entre aqueles que não eram sindicalizados. Os sindicatos formam umacomunidade de ajuda mútua, portanto, são um ponto de referência e de segurança para o trabalhador. Por talmotivo, essas associações foram um anteparo ao crescimento do extremismo.

Com o neoliberalismo, as organizações trabalhistas foram as primeiras a serem desarticuladas. Qual alternativarestaria para um trabalhador terceirizado, que percebe sua vida sendo precarizada a cada ano e não tem a quemrecorrer? A privatização da esfera pública fecha os canais democráticos da participação individual nas decisões queafetam a coletividade.

Pense num extremista que se senta ao lado de um trabalhador desiludido numa solitária e melancólica mesa debar. Ele improvisa um discurso culpando os muçulmanos e os estrangeiros pelos seus problemas, propondo murosnas fronteiras, controle da imigração, entre outras coisas. Possivelmente tais medidas serão vistas como a únicasolução possível pelo interlocutor. A vida desse homem pode ganhar um sentido, uma causa. Esse exemplo não éfortuito. Adolf Hitler levava uma vida errante até ser arrebatado pela onda nacionalista da Primeira GuerraMundial. Ele também arregimentou os primeiros adeptos nas cervejarias alemãs. Tal fato é pouco discutido peloshistoriadores, mas bares são locais em que as pessoas vão, muitas vezes, para esquecer as suas frustrações.Para camuflar sua solidão. Hitler era abstêmio, mas sabia o poder da bebida para construir laços de afetividade.

Quando a desagregação começou? Essa é a indagação feita por George Packer no início do seu livro: “Ninguém écapaz de dizer quando começou a desagregação – quando a cola que mantinha os americanos em sua unidadesegura, e às vezes sufocante, cedeu pela primeira vez. Como qualquer mudança, a desagregação começouinúmeras vezes, de inúmeras maneiras – e, em algum momento, o país, o mesmo país de sempre, cruzou a linhada história e tornou-se irremediavelmente diferente”.

Como toda transformação nos costumes, a desagregação neoliberal aconteceu de forma lenta e, como o autormostra, é impossível datar o seu início. Mas olhando para as charges, da revista The New Yorker, ao longo dasdécadas, é possível ter uma pequena dimensão da profundidade dessas mutações culturais.

A primeira caricatura, de 1949, certamente causou uma crise prolongada de risos emHayek. Eu seria capaz de apostar que, vendo que suas ideias não causavam nenhumimpacto, o economista se divertia gargalhando com essas tiradas de humor. Ora,numa economia em que os empresários pagavam férias, seguro desemprego, ossindicatos e as leis trabalhistas eram fortes, a única alternativa seria a demissão emmassa, pensava Hayek.

Porém, o que estava com os dias contados, não era a economia-mista, mas os risosde Hayek. Nos anos 1950-60 as piadas mudam completamente e deixam de ter graçapara os neoliberais. Os empresários, de fato, pagavam salários mais altos e tinhamencargos sociais. Como dito, o imposto de renda nos EUA chegou à incrível marcados 91%. Esse tributo “estratosférico” era usado para criar um sistema de proteção social. Com saúde, educação eaposentadoria garantidos, o restante era revertido para o consumo. O mercado consumidor se expandia a cadaano, junto com a renda das famílias. Se, de um lado, as folhas salariais cresciam, de outro, os lucros explodiam.

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Ninguém seria posto na rua, o pleno emprego foi uma realidade durante 30 anos.

Como podemos observar, estamos muito distantes do totalitarismo. Obviamente quehavia problemas na década de 1950-60. Não pretendo idealizar esse período. Maseles eram de outra ordem. O medo da recessão e do desemprego praticamentedesaparecem. As críticas são relativas à inflação, à futilidade do consumo exacerbadoe ao excesso de impostos. Aliás, o ataque aos “impostos excessivos” será o cerne dareação neoliberal.

A previsibilidade da economia era o motivo do marasmo que a última gravura tentatransmitir. O mercado pouco oscilava. As crises financeiras ocupavam mais oshistoriadores que os economistas. Você seria capaz de citar o nome de um grupo deextrema-direita nascido nos anos 1950? Difícil. Certamente havia. O radicalismonunca desaparece, mas em momentos de estabilidade, ele sobrevive com aparelhos,a uma distância segura. Hayek teria que esperar, ainda não foi dessa vez que o Hitlersueco apareceu.

Com o tempo, contudo, o pacto social foi se dissolvendo. E as contradições entre asclasses socais se tornando mais claras. Os conflitos econômicos foram amenizados, mas outras contradiçõescomeçaram a aparecer. A geração do pós-guerra estava entrando na juventude, que, alias, é um conceito desseperíodo. Esses jovens não haviam vivido as dificuldades da primeira metade do século XX. Não conheciam osefeitos do capitalismo desregulado.

O que eles pediam não era “liberdade econômica” dos neoliberais, mas liberdade de costumes. Eram contra ocapitalismo, mas também não almejavam o comunismo. Desejavam expandir a democracia e os direitos civis.Porém, tais movimentos foram vistos com desconfiança pelos conservadores. A democracia estava indo longedemais. Os negros já falavam em direitos iguais, as mulheres não queriam mais casar e ter filhos, os hippiesincomodavam a liberdade do governo americano de fazer guerras. Algo precisava ser feito. Onde tudo isso iriaparar? É, com efeito, a partir de 1968 que a reação conservadora se intensifica.

Em 23 de agosto de 1971, um documento confidencial é enviado para a Câmara de Comércio dos Estados

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Unidos (CCEU), escrito pelo advogado Lewis Powell. O título do Memorando Powell era “ataque ao sistemaamericano de livre empresa”. Tratava-se de uma advertência aos empresários. O inimigo principal não era mais ocomunismo: “as vozes mais inquietantes que se juntam ao coro da crítica vêm de elementos da sociedadeperfeitamente respeitáveis: dos campi universitários, do púlpito, da mídia, das revistas intelectuais e literárias, dasartes e ciências e dos políticos”. A ameaça, nas palavras de Milton Friedman, seriam indivíduos paparicados e malorientados. Se eles não eram mal intencionados, se eles estavam apenas confusos e desorientados, a soluçãoóbvia seria reorientá-los.

Havia um perigoso desejo por liberdade. Como reverter esse processo? A repressão só serviria para aumentar asinsatisfações. O neoliberalismo tinha a solução, se eles querem liberdade, daremos a nossa. Daremos umaliberdade controlada e vigiada. Para isso seria preciso uma mudança na forma como as pessoas enxergavam seupapel na sociedade.

O memorando também diz como essas mudanças serão postas em prática: “Isso é especialmente verdadeiro sobrea televisão, que agora desempenha tão predominante papel em modelar o pensamento, a atitude e as emoções denossa gente”.

Modelar as atitudes, o pensamento e as emoções das pessoas, essa será a grande virada do neoliberalismo. Oliberalismo clássico partia do princípio que a ação individual era previsível. Os clássicos classificavam a naturezahumana como egoísta. O homem egoísta está sempre buscando o prazer individual e a felicidade. A felicidade,nesse caso, está relacionada aos bens de consumo. Ora, se eu conheço a natureza humana e o que ela almeja, euposso perfeitamente prever seu comportamento.

O neoliberalismo irá inverter essa lógica. Os neoclássicos irão intervir de forma direta no comportamento humano.Essa é a ideia do “liberalismo interventor”, discutida do Colóquio Walter Lipmann. Os economistas da Escola deChicago, por exemplo, irão desenvolver métodos para estimular novas formas de vida. Conceitos como “capitalhumano” e “sociedade empresarial”, de Gary Becker, aproximam-se mais da psicologia do que da economiaclássica.O Memorando é bem didático sobre as medidas a serem tomadas. O papel das empresas: “chegou o tempo – naverdade, passou da hora – da sensatez, da engenhosidade e dos recursos da empresa americana serem dirigidoscontra quem gostaria de sua destruição.”

Da Câmara de Comércio: As atividades independentes e não-coordenadas das corporações individuais, emboraimportantes, não serão suficientes. [Fazem-se necessárias] Linhas fortes na organização, com cuidadosoplanejamento e implementação de longo alcance, com consistência de ação por um período indefinido de anos, naescala de financiamento disponível apenas por meio de esforço conjunto e com a força política disponível apenaspor meio de uma unidade de ação e organização nacional.

Das universidades: “A responsabilidade última pela integridade intelectual do campus deve permanecer sobre aadministração e faculdades de nossas universidades. Mas as organizações, tais como a Câmara [de Comércio],podem auxiliar e ativar mudanças construtivas de muitas maneiras, incluindo as seguintes: ” Em resumo, odocumento propõe, para interferir nas faculdades: a criação de um corpo acadêmico e de palestras formado pordefensores do livre-mercado. Esse corpo também seria responsável por: “avaliar os livros-textos de ciênciassociais, especialmente em economia, ciência política e sociologia. Esse deveria ser um programa contínuo”.Também deveriam ser estimuladas as Pós-Graduações em Negócios (Business Schools). As mesmas medidasseriam estendidas ao ensino médio.

Em relação ao público: “O mais essencial é estabelecer o corpo de eminentes pesquisadores, escritores epalestrantes que elaborarão o pensamento, a análise, os escritos e as falas. Também será essencial ter um corpode pessoas que são muito familiares com a mídia e em como ser efetivo na comunicação com o público”. Os meiospara atingir o público seriam, a televisão: “A rede nacional de televisão deveria ser monitorada da mesma maneiraque os livros-textos deveriam ser mantidos sob constante vigilância”.

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As publicações acadêmicas: “Incentivos podem ser inventados para induzir mais ‘publicação’ pelos acadêmicosindependentes que acreditam no sistema”. Livros, brochuras e panfletos: “a menos que o esforço seja feito – emuma escala grande o suficiente e com imaginação apropriada para assegurar algum sucesso –, essa oportunidadepara educar o público será inevitavelmente perdida”.

Os anúncios pagos: “Empresas pagam centenas de milhões de dólares pela propaganda na mídia (…) Se asempresas americanas devotarem apenas 10% do total anual de seu orçamento para propaganda para essepropósito geral, seria um gasto similar ao de um estadista”.

Sobre o judiciário: “Como a respeito dos acadêmicos e palestrantes, a Câmara necessitaria de um corpoaltamente competente de advogados. Em situações especiais, deveria ser autorizado engajar-se ou aparecer comoadvogado amicus [amigo] na Suprema Corte.”.

Esse documento é impressionante. O paradoxo também. Para convencer as pessoas de que a sociedade nãoexiste e de que a ação coletiva é uma fraude, os empresários precisaram se organizar coletivamente. Usando,inclusive, o modelo dos odiados sindicatos: “Por exemplo, como sugerido pela experiência sindical, o gabinete dopresidente da Câmara poderia ser um emprego de carreira, com dedicação exclusiva”. Porém, como já eraesperado, com salários e rendimentos bem diferentes dos vencimentos dos “pelegos”: “Salários teriam de sercompletamente equiparados aos níveis pagos para aqueles executivos importantes para as empresas e os maisprestigiados acadêmicos. Profissionais de grande habilidade em propaganda e em trabalho com a mídia,palestrantes, advogados e outros especialistas teriam de ser recrutados”.

Lewin Powell, o autor do documento que dizia ser necessário colocar juízes amigos nos tribunais superiores, foinomeado meses depois do Memorando como membro da Suprema Corte Americana pelo presidente RichardNixon.

O consenso do pós-guerra estava desfeito. A mídia também seguiria a novatendência. George Packer destacou algumas manchetes de jornais publicados em1978, período em que a desagregação estava a todo vapor: “Quero ter uma conversafranca com você esta noite sobre o nosso mais grave problema nacional. Esseproblema é a inflação”. “Devemos encarar um tempo de austeridade nacional”.“Escolhas difíceis são necessárias se quisermos evitar tempos ainda mais difíceis”.“Obstrução derrota a lei de organização dos sindicatos”. “Líderes da indústria, docomércio e das finanças romperam e descartaram o frágil pacto tácito que existiudurante um período anterior de crescimento econômico”. “A Agência de PoluiçãoAmbiental está preocupada com a poluição sonora! Esses mesmos funcionários daagência, claro, vão para a casa à noite e observam seus filhos fazendo a lição decasa enquanto ouvem músicas ensurdecedoras”. “Eleitores da Califórnia aprovam plano para cortar sete bilhões doimposto sobre a propriedade”. “’Os funcionários públicos que vão para o inferno’, disse um homem quando saía deum local de votação num subúrbio de Los Angeles”.

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O “recrutamento” havia funcionado. A desagregação agiu no modo de vida dosindivíduos, estimulando a concorrência e a atomização dos sujeitos. O homemneoliberal é autossuficiente. É o empresário de si mesmo. É agente do seu fracasso edo seu sucesso. Se ele quer ajuda, essa não vem do Estado, mas, por exemplo, doanalista, do coach financeiro ou dos livros best seller que propõem uma autoajuda. A“comunidade de destinos” do pós-guerra estava se estilhaçando. Tais mudançaspodem ser percebidas, inclusive, no humor.

Se a sociedade não existe e o indivíduo é o único responsável pelo seu sucesso,seria esperado que medidas que visassem a coletividade fossem encaradas comdesconfiança.

No governo, os neoliberais defendiam a disciplina orçamentária, como a contençãodos gastos do governo. O Estado de bem estar social seria desmantelado, as desigualdades sociais aumentariam.A inflação seria controlada por meio do desemprego.

Todas essas mudanças tinham o objetivo de recuperar a vitalidade da concorrência. Os empresários recuperariama confiança e voltariam a investir. Esse seria o motor do crescimento. Nesse aspecto há uma gritante contradição,percebida pelo economista Ha-Joon Chang: para fazer o pobre trabalhar, seria necessário mantê-lo na pobreza,pois a miséria o estimularia a buscar o seu sustento. No caso dos empresários, a lógica seria diferente. Quantomais rico, melhor, pois seus rendimentos seriam transformados em investimento e seriam o propulsor docrescimento.

Na prática, como mostra Perry Anderson, os governos neoliberais elevaram os juros. Contraíram a emissãomonetária. Diminuíram os impostos sobre os altos rendimentos. Aboliram os controles sobre os fluxos financeiros.Desarticularam os sindicatos e as legislações trabalhistas. E, por fim, privatizaram os bens públicos.

Para Perry Anderson essas medidas tinham três objetivos: 1) aumentar o desemprego e as desigualdades; 2)conter a inflação; 3) recuperar o crescimento econômico. O historiador conclui que eles tiveram êxito nos doisprimeiros passos. A queda na inflação e o desmantelamento do sistema de proteção social, como vimos, era fatorprimordial para recuperação dos lucros. O crescimento, porém, não veio. “Entre os anos 70 e 80 não houvenenhuma mudança – nenhuma – na taxa de crescimento, muito baixa nos países da OCDE. Dos ritmosapresentados durante o longo auge, nos anos 50 e 60, restam somente uma lembrança distante”. (Anderson)

Hayek e companhia passaram trinta anos insistindo que os mercados desregulados seriam mais eficientes e,quando isso acontece, as coisas não saem como o previsto. Por quê? A resposta não é difícil. O mercadodesregulado, somando ao achatamento da renda, cria condições mais propícias para o investimento financeiro.Movimentar dinheiro de um lado para o outro é mais seguro e mais fácil que produzir bens de consumo.

Segundo Noam Chomsky, em 1950, 28% do PIB americano vinha da produção industrial e 11% dasmovimentações financeiras. Em 2010, contudo, as indústrias eram responsáveis por 11% e o capital financeiro por21%. Os lucros das empresas aumentaram, mas, como também lembra o filósofo, em 2007, 40% dos lucros daGeneral Motors vieram da especulação e não da venda de veículos. As famosas bolhas financeiras são outrosubproduto dessa reestruturação econômica.

A austeridade fiscal também não foi alcançada. O desemprego em massa aumentou os gastos do governo ediminuiu a arrecadação. Para controlar os conflitos sociais, o Estado precisou reestruturar seu aparelho repressor.Por ironia, o governo do neoliberal Ronald Reagan apresentou o maior déficit nas contas públicas da históriaamericana. “Enquanto a Noruega, Finlândia, França, Alemanha e Áustria – todos Estados tutelares ‘desdecriancinha’ – jamais recorreram a tais medidas, exceto em épocas de guerra, foram as sociedades anglo-saxônicasentusiastas da liberdade que chegaram mais longe nesse caminho orwelliano” (Tony Judt).

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As privatizações também fracassaram. “Ao contrário do que diz a teoria econômica e a mitologia popular, aprivatização é ineficiente. (…) O único motivo para os investidores adquirirem empresas públicas aparentementeineficientes é a eliminação ou redução da sua exposição ao risco, bancado pelo Estado (…). Em condiçõesprivilegiadas, o setor privado se mostra no mínimo tão ineficiente quanto o público – repartindo os lucros edeixando os prejuízos para o Estado.” (Tony Judt).

Enfim, das promessas neoliberais, eles só cumpriram a de aumentar o desemprego e controlar a inflação. Porém,os investimentos e todo o resto ficaram muito aquém das previsões. Eles também obtiveram um êxitoextraordinário em remodelar o comportamento dos indivíduos e destruir os laços sociais de solidariedade.

Desde o final do século XIX até os anos 1970, o mundo vinha num processo de redução das desigualdades sociais.Após a virada neoliberal, contudo, essa lógica se inverteu. As disparidades sociais dispararam e, como nos alertouThomas Piketty, estamos chegando aos níveis do século XIX. Praticamente um século de avanços foramperdidos. A desigualdade é algo mais sério do que normalmente acreditamos. Ela não afeta somente os pobres,mas também os ricos. Na verdade ela é corrosiva e apodrece a comunidade por dentro. A iniquidade produz maismiséria, não crescimento. E ela tem um limite, não pode crescer indefinidamente. Talvez estejamos perto desseponto final. Por isso, pensar em alternativas ao neoliberalismo é cada vez mais crucial.

A Desigualdade Como Agente da Ineficiência Econômica e a Emergência RadicalismoPolítico. Estamos Num Beco Sem Saída?

“A única coisa pior que do que governo de mais é de menos: em Estados falidos, as pessoas sofrem no mínimotanta violência e injustiça quanto sob governos autoritários, e ainda por cima os trens não circulam nos horários”.(Tony Judt)

Há uma lenda que o filósofo Tales de Mileto, admirador dos astros e primeiro homem a prever um eclipse, estavaolhando para o céu quando tropeçou numa pedra. Aqueles que presenciaram a cena, zombaram: “pobre Tales,anda tão preocupado com os astros que esqueceu de ver o que estava à sua frente”. Tempos depois, Platão, emdefesa da reflexão, respondeu que Tales só caiu porque não olhava direito para o céu. No nosso caso, os astrospouco podem nos auxiliar. Mas, para não cairmos, é preciso olhar para trás ao caminharmos.

Como ficou claro ao longo do texto, existe um abismo entre as promessas dos neoliberais e os resultados que elesentregaram. A começar pelas previsões. Nunca houve na história um Estado de bem estar que tenha sucumbido aoradicalismo. Se isso não era claro na época em que “O Caminho da Servidão” foi publicado, hoje já deveria estar. AÁustria, por exemplo, terra de Hayek, era liberal quando foi submetida ao fascismo. O Hitler sueco é uma ficção.Perdemos muito tempo amedrontados com ilusões. Já passou da hora de encararmos a realidade.

As desigualdades dispararam. Segundo Tony Judt, em 1968 um CEO ganhava em média 66 vezes mais que umfuncionário. Em 2010 essa diferença chegou a 900 vezes. É impossível que uma sociedade funcione dessamaneira. As disparidades econômicas se tornaram o principal fator da ineficiência.

O enfraquecimento dos governos não trouxe mais liberdade. Pelo contrário, a expansão da esfera privada emdetrimento da pública, bloqueou a democracia. Não existe vácuo de poder. Se uma instância recua, outra avançaem seu lugar.

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A diferença da Grécia Antiga para as civilizações que a precederam foi justamente que a primeira desenvolveu essanoção de esfera pública. Antes da democratização da política no mundo antigo, veio a democratização do saber, dareligião e da terra. Ou seja, as diferenças entre os homens foram encurtadas para que todos pudessem participardas decisões coletivas. O neoliberalismo tem remado no sentido oposto.

O Trickle-down não passa de uma ilusão

Riqueza gera mais riqueza no topo da pirâmide. Empresários ganham muito dinheiro. Usam parte dos seusrendimentos para financiar políticos. Esses, por sua vez, necessitavam cada vez mais de verbas para seremeleitos. Tais financiamentos são fornecidos pelas empresas que, obviamente, exigem contrapartidas. É um ciclovicioso que impossibilita a prática democrática. Essa é, com efeito, a principal origem da corrupção.

A pobreza gera mais miséria. “Os pobres continuaram pobres. A desvantagemeconômica para a imensa maioria se traduz em em saúde debilitada, falta deoportunidades e – cada vez mais – os conhecidos sintomas da depressão:alcoolismo, obesidade, jogatina e contravenções penais” (Judt). Pesquisas mostramque alunos medianos de classe média e alta possuem um desempenho escolarsuperior a estudante com maior capacidade intelectual, mas que vivem emcomunidades carentes. Os níveis de miséria também estão relacionados ao aumentodos transtornos mentais, da violência, do estresse e de ansiedade. As mulherespobres tendem a engravidar mais cedo. Os alunos pobres abandonam os estudosmais cedo. “A desigualdade, portanto, não é desestimulante por si só: ela conduz a problemas sociais e patológicos

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que só podem ser resolvidos se lidarmos com as causas subjacentes” (Judt).

A miséria, portanto, não afeta apenas o pobre. O fato de um indivíduo não conseguirpagar a prestação da sua casa própria pode ser encarado como um problemaindividual. Porém, quando a inadimplência é estrutural, ela pode levar a economia deum país a bancarrota.

No fim, todos serão afetados. Como lembrou o escritor Paul Manson: “a guerra civilna Ucrânia, que levou as forças especiais russas às margens do Dniestre; o triunfo doEstado Islâmico na Síria e no Iraque; a ascensão do partidos fascistas na Europa; aparalisia da Otan na medida em que suas populações negam o consentimento paraintervenções militares – esses não são problemas separados da crise econômica. Sãosinais que a ordem neoliberal fracassou”.A história econômica do século XX deve servir de guia num momento tão conturbado.Não adianta esperar que essas mudanças venham dos partidos políticos. Os partidosprecisam vencer as eleições, portanto, seguem as tendências da opinião pública.Como Krugman mostrou, o New Deal empurrou democratas e republicanos para aesquerda. Do mesmo modo que a onda neoliberal dos anos 1970, os impeliu para adireção oposta. Isso explica a aparente contradição de Clinton ter governado, nosassuntos econômicos, à direita de Nixon. Não era a distinção entre esquerda e direitaque estava obsoleta, como afirmaram alguns, mas a política americana que estavagirando com outra rotação.

As mudanças ocorrem quando um modelo se esgota. Os problemas se avolumam eas repostas pré-estabelecidas não dão mais conta de resolvê-los. Provavelmenteestamos passando por um desses momentos. Segundo a OCDE, o crescimentoeconômico será fraco nos próximos 50 anos. As desigualdades, por outro lado, irãoaumentar em 40%. Crescimento fraco e concentração de renda é uma bomba relógio. É a fórmula para o caos.“Embora o fracasso do mercado beire o catastrófico, o sucesso do mercado é igualmente perigoso do aspectopolítico” (Judt)

Esse modelo se esgotou. As soluções podem não ser claras, mas elas existem e não precisam passarnecessariamente pelo stalinismo. O primeiro passo é olharmos mais detidamente para práticas que deram certo aolongo da história. Sem a experiência histórica, continuaremos a caminhar sem rumo. Perplexos. Atônitos enquantonosso mundo se esfacela. “Quando o passado não ilumina o futuro, o espírito caminha nas trevas”. (Tocqueville).

Para saber mais

• Tony Judt – O Mal Ronda A Terra• Tony Judt – Pós-Guerra• Thomas Piketty – O Capital no Século XXI• Paul Krugman – A Consciência de Um Liberal• Paul Mason – Pós-Capitalismo• David Landes – Prometeu Desacorrentado• Mark Mazower – O Continente das Trevas• Noan Chomsky – Requiem Para o Sonho Americano• Joseph Stiglitz – O Grande Abismo• George Packer – Desagregação• Eric Hobsabwm – Era dos Extremos• Anthony Atkinson – Desigualdade• Peter Jay – A Riqueza do Homem• Ha-Joon Chang – Economia: modo de usar

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• Flavio Azevedo e Alexandre Saes – História Econômica Geral

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