a década dos mitos

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A DÉCADA DOS MITOS

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A Década Dos Mitos

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A DÉCADA DOS MITOSDados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Neoliberalismo e emprego : Economia 330.981 2. Brasil: Neoliberalismo e trabalho : Economia 330.981
Proibida a reprodução total ou parcial.
Os infratores serão processados na forma da lei.
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA CONTEXTO (Editora Pinsky Ltda.).
Diretor editorial Jaime Pinsky Rua Acopiara, 199 – Alto da Lapa
05083-110 – São Paulo – SP
www.editoracontexto.com.br
2001
Pochmann, Marcio, 1962- A década dos mitos / Marcio Pochmann – São Paulo: Contexto, 2001.
Bilbliografia. ISBN 85-7244-174-3
1. Brasil – Condições econômicas 2. Brasil – Condições sociais 3. Emprego (Teoria econômica) 4. Liberalismo – Brasil. 5. Trabalho e classes trabalhadoras I. Título.
01-1928 CDD-330.981
Sumário
Apresentação .....................................................................................7
A ocupação a partir da reformulação do papel do Estado .........11
Abertura comercial, internacionalização da economia e ocupação .......................................................................................39
As possibilidades da ‘‘nova economia’’ e seus efeitos no trabalho no Brasil ............................................................................51
A redivisão regional do emprego ..................................................79
Mudanças na distribuição da renda ...............................................93
Alterações recentes no custo do trabalho no Brasil ................... 107
As políticas salarial e do salário mínimo ..................................... 127
Novas e velhas políticas do trabalho no Brasil ........................... 147
Referências bibliográficas ............................................................. 173
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Apresentação
Este livro constitui um contraponto às teses que se transforma- ram hegemônicas nos anos 1990 no Brasil, a partir de uma constante propaganda pelos diferentes governos e da recorrente reprodução, sem grande contestação, pelos meios de comunicação de massa e até por certos setores mais progressistas. Mais precisamente, as teses go- vernamentais liberalizantes são analisadas como mitos, já que demons- traram ser idéias falsas, sem correspondência na realidade nacional.
Uma verdadeira fantasia neoliberal ganhou o país, capaz de criar um enorme fosso entre o que dizia ser e o que se revelou após a sua implantação. No passado que todos desejam esquecer, o então ministro da propaganda do nazismo dizia que a repetição de uma mentira por muitas vezes tornava-a uma verdade aceita por muitos. Agora, percebe-se que esse perverso método de pro- paganda não foi totalmente abandonado.
No Brasil, que também viveu a hegemonia do pensamento único durante a década de 1990, verificou-se a sempre presente tentativa de marginalização daqueles que ousavam pensar o con- trário do que as teses neoliberais apontavam como verdades abso- lutas, fossem eles movimentos políticos e sociais organizados ou mesmo intelectuais que, isoladamente, se negavam a enxergar a realidade através de uma lente só. Uma vez implementado o pro- grama liberalizante no país, alcançam-se as condições necessárias e suficientes para uma reflexão profunda e não convencional so- bre a produção de uma década dos mitos.
Sob o prisma temático do trabalho, procura-se espetar o alvo de oito mitos produzidos pelo neoliberalismo no Brasil durante a déca- da de 1990. O primeiro mito surge da constatação de que o esvazi- amento do papel do Estado levaria o país ao crescimento econômi- co sustentado, com elevação no nível de ocupação. Por meio da privatização seria possível reduzir o endividamento público e am-
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pliar o gasto social, deixando ao setor privado o comando da expan- são econômica. Não apenas foi registrado o pior desempenho eco- nômico, com taxas de variação do produto praticamente equivalen- tes às da população, indicando a estagnação da renda per capita, como o endividamento cresceu, ao contrário do gasto social. O de- semprego, por conseqüência, teve no esvaziamento do Estado uma fonte importante de expansão.
O segundo mito encontra-se incrustado no pressuposto de que a abertura comercial e a internacionalização da economia permiti- riam a modernização do parque produtivo, assim como a redução do desemprego. A queda das barreiras tarifárias e não tarifárias num ambiente macroeconômico não isonômico (altas taxas de ju- ros, moeda valorizada, ausência de políticas comerciais defensivas e industriais ativas) resultou no rompimento de cadeias produtivas diante da presença de maior quantidade de produtos importados. Sem condições satisfatórias para melhor colocar a sua produção no exterior, o país assumiu a posição de “exportador” de empregos, pois parte dos que aqui existiam no setor industrial foram trocados pela importação. Não apenas o desemprego aumentou, como pio- rou a participação do Brasil no comércio internacional, indicando o atraso a que o país foi submetido.
O terceiro mito vincula-se à hipótese heróica de que o avanço da chamada “nova economia” seria favorecida no Brasil diante da aceitação passível do tecnoglobalismo. Ou seja, a crença oficial de que o abandono das políticas nacionais de ciência e tecnologia pela possível compra de tecnologia de fora no mercado internacional possibilitaria ao país reduzir o atraso técnico em relação às economi- as avançadas, ao mesmo tempo que o capacitaria tanto para receber novos investimentos quanto para gerar uma elevada quantidade de novas ocupações com maior qualidade. Como o atraso tecnológico não foi reduzido, pelo contrário, o Brasil transformou-se num país mais dependente do exterior e responsável pela expansão da ocu- pação doméstica, diante da redução do emprego e do tamanho da chamada “nova economia” durante os últimos dez anos.
O quarto mito advém da análise do pressuposto de que o rompimento com as políticas de desenvolvimento regional no Bra- sil possibilitaria a conformação de um país menos desigual, com acentuada expansão das regiões menos desenvolvidas, especial-
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mente no que diz respeito ao nível de emprego. Os esforços subnacionais para atração de investimentos privados, num quadro de desinvestimento público, redundaram na guerra fiscal e na per- da de sinergia entre os estados e municípios. Nesse quadro, não causa espanto o ressurgimento da questão regional, indicando o agravamento das desigualdades entre as grandes regiões, com o desemprego aberto deixando de ser um fenômeno sul-sudeste para se tornar importante nas pequenas cidades e nas áreas mais depauperadas do país. O esvaziamento dos pólos industriais em várias regiões menos desenvolvidas são expressão direta disso.
O quinto mito localiza-se na defesa da desconcentração da renda a partir do estabelecimento da estabilização monetária. Uma vez consagrado o fim das altas taxas de inflação, o país tenderia a conhecer uma fase de melhor distribuição da renda nacional, pos- to que a carestia do custo de vida era identificada com o principal imposto sobre os pobres. Sem mexer nos problemas estruturais do país, como a reforma agrária, a tributária e a social e o crescimento econômico sustentado, a questão distributiva não foi alterada. Pelo contrário, terminou sendo ainda mais potencializada diante da cri- se do emprego que tem afastado os brasileiros do acesso à carteira assinada. As ocupações geradas, além de insuficientes, na maioria das vezes são muito precárias e têm baixa remuneração.
O sexto mito retrata a tese de que o custo do trabalho no Brasil é muito elevado, ocasionando a perda de competitividade empresa- rial e gerando desemprego e ocupações informais. Apesar da imple- mentação de medidas direcionadas à flexibilização dos contratos de trabalho e à desregulamentação do mercado de trabalho, o emprego formal não aumentou, pelo contrário, acumulou déficit estimado em 3,2 milhões de postos de trabalho, assim como o desemprego alcan- çou índices nacionais sem paralelo desde a década de 1930. O Plano Real, imposto a ferro e fogo, produziu artificialmente o aumento em dólar do custo do trabalho, somente reduzido sensivelmente com a mudança do regime cambial, em 1999.
O sétimo mito surge de toda a argumentação favorável à desresponsabilização do Estado para com o rendimento dos traba- lhadores de salário de base, como forma de levar à redução da desigualdade dos rendimentos do trabalho e à elevação dos salá- rios de acordo com os ganhos de produtividade. Entretanto, o
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Brasil, que já era conhecido internacionalmente como uma econo- mia de baixos salários, reforçou ainda mais essa posição, quando abandonou a política salarial, a partir do Plano Real, e manteve estacionado o valor real do salário mínimo num dos mais baixos patamares dos últimos sessenta anos. Para um país com oferta abundante de mão-de-obra, a ausência do Estado estimula uma maior concorrência entre os trabalhadores, gerando o rebaixamen- to salarial e a precarização generalizada da ocupação.
No oitavo mito chega-se à idéia – força de todo o projeto neoliberal dos anos 1990: acabar com a Era Vargas. Em vez de indicar o rompi- mento de acordos políticos com segmentos atrasados – conforme realizados pelo pacto de dominação varguista e que foram responsá- veis pela não realização, até hoje, de programas civilizatórios do “ca- pitalismo tupiniquim”, como a reforma agrária para desconcentrar a propriedade rural, a reforma tributária para fazer com que o rico pa- gue imposto e a reforma social para universalizar o direito à cidadania –, assistiu-se, nos anos 1990, à imposição de políticas neoliberais que retiraram direitos sociais e trabalhistas de uma ampla parcela dos bra- sileiros. Talvez por isso é que o fim da Era Vargas pode ser entendido, também, por meio da desvalorização do trabalho.
Com a violência dos programas neoliberais adotados recente- mente no Brasil foi consolidada a lógica da desconstrução de uma nação, que um dia sonhou ser soberana, justa e democrática. Em vez disso, ampliaram-se os sinais de passagem da construção de um país para a de uma situação próxima a de acampamento, em que a ausên- cia do Estado dá lugar à crescente violência, corrupção, desemprego; enfim, ao atraso socioeconômico e à degradação do trabalho.
Ao longo das próximas páginas o leitor terá acesso a uma espécie de inventário nacional sobre a ressaca neoliberal que se manifestou na forma de mitos durante os anos 1990. Procura-se fazer um balanço dos principais mitos que atuaram sobre a realida- de socioeconômica nacional, considerando as diferentes dimen- sões da estratégia que buscou colocar fim ao que a Era Vargas tinha de melhor: a valorização do trabalho. Por conter referenciais empíricos especiais que concedem à publicação certa singularida- de na análise, optou-se pela ampla apresentação de gráficos e tabelas, que dão maior consistência e clareza ao desvendamento dos mitos neoliberais na década de 1990.
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A ocupação a partir da reformulação do papel do Estado
Em dez anos de aplicação de políticas neoliberais foi possível consolidar o mito de que o esvaziamento do papel do Estado no Brasil levaria tanto ao crescimento econômico sustentado quanto à expansão do nível de emprego. Isso não ocorreu, muito pelo con- trário. Justamente após cinco décadas de ampla manifestação de um padrão de intervenção do Estado favorável ao crescimento econômico e ao emprego, observou-se, a partir de 1990, a adoção de um novo modelo econômico que resultou pouco positivo para a economia e para o trabalho no Brasil. Não apenas o desemprego assumiu volume sem paralelo histórico nacional, como o rendi- mento do trabalho alcançou uma das mais baixas participações na renda nacional. Ao mesmo tempo, o novo modelo econômico ter- minou por não recolocar a economia nacional no curso do desen- volvimento sustentado, tendo, por isso mesmo, levado o país a registrar a pior década quanto à variação do Produto Interno Bruto de todo o século XX. A crença de que o esvaziamento do Estado possibilitaria o reforço do setor privado, a ponto de conduzir ao crescimento econômico desejado e duradouro, não se confirmou nos anos 1990.
Após dez anos de iniciado o processo de privatização no Bra- sil, pode-se encontrar uma literatura que se propõe a avaliar vários aspectos da revisão do papel do Estado. Há, entretanto, uma es- cassez de estudos sobre o que ocorreu com o emprego nas empre- sas públicas. Não se pretende aqui esgotar a discussão sobre o fenômeno de desestatização ocorrido ao longo da década de 1990
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no país. A preocupação é fundamentalmente oferecer elementos que permitam analisar os principais efeitos quantitativos e qualita- tivos decorrentes do processo de revisão do papel do Estado e da privatização no emprego dos trabalhadores com contrato regular de trabalho. Dessa forma, coloca-se em evidência o primeiro mito do projeto neoliberal que apontava para o enxugamento do Estado como condição para a expansão econômica e, por conse- qüência, do emprego no país1.
Cinco partes constituem esse estudo, que se inicia com a dis- cussão acerca dos diferentes padrões de intervenção do Estado no capitalismo; já a segunda parte trata da relação entre Estado e desenvolvimento econômico no Brasil. A seguir busca-se analisar as principais mudanças ocorridas no padrão de intervenção do Estado brasileiro a partir de 1990, com a introdução de um novo modelo econômico. A quarta parte enfoca o efeito emprego decor- rente da revisão do papel do Estado e da década das privatizações. Por fim, apresenta-se uma breve avaliação da estratégia brasileira de promover mudanças significativas no curso do Estado no Brasil durante os anos 1990.
PADRÕES DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NO CAPITALISMO
O Estado não representa um corpo estranho na evolução do capitalismo. Pelo contrário, pode-se constatar, do ponto de vista histórico, a manifestação de diferentes padrões de intervenção, cujo objetivo é o de nortear a presença do Estado nas economias de mercado, constituída, em maior ou menor medida, por um con- junto ou frações de interesses públicos e privados.
Paralelamente, o papel econômico do Estado também toma forma distinta ao longo do tempo, refletindo geralmente a nature- za e a intensidade das modificações ocorridas no interior do pro- cesso de acumulação de capital. Dessa forma, a atuação do Estado tende a organizar, consagrar e reproduzir o processo de domina- ção política, impondo compromissos entre múltiplos blocos no poder e de certas frações sociais não dominantes, a partir da cons- trução de consensos ideológicos majoritários (Poulantzas, 1978; Habermas, 1975).
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Nos últimos dois séculos, o padrão de intervenção do Estado sofreu pelo menos duas alterações substanciais, associadas princi- palmente às transformações mais gerais do capitalismo. O primei- ro padrão de intervenção do Estado esteve condicionado pelo com- portamento da economia capitalista verificado até o final do século XIX, quando predominou uma fase mais concorrencial nos merca- do, influenciada pela presença absoluta de pequenos negócios, o que impedia o estabelecimento de oferta e preço por poucos em- presários.
A estrutura material do Estado era contida, essencialmente vol- tada para ações menos complexas, como o exercício de três tipos diferentes de monopólio: o da violência (justiça e segurança públi- ca); o da moeda (base monetária e arrecadação tributária) e o da regulação (de contratos, da propriedade e do comércio externo). Em conformidade com a ideologia liberal, a existência do Estado (mínimo) seria assegurada somente como um instrumento de estí- mulo à concorrência, jamais como interventor sobre os agentes econômicos.
Aliás, convém ressaltar que durante o século XIX, a livre concor- rência era identificada como uma forma constante de promoção do “equilíbrio” econômico, capaz de permitir que o processo de acu- mulação de capital ocorresse de forma auto-regulada, isto é, que as crises econômicas pudessem ser resolvidas pelo próprio funciona- mento do mercado, através da presença absoluta de pequenos ne- gócios e de pequenos compradores. Assim, a crença na existência de estruturas mais simplificadas de mercado, sem a existência de poucos e grandes produtores e compradores, era fortalecida pelo estágio ainda inferior do desenvolvimento capitalista.
Somente no final do século XIX, com o acirramento da concor- rência entre os capitais, proporcionado pelo avanço de uma gran- de onda de inovação tecnológica, que exigiu a concentração e centralização do capital através do surgimento de grandes empre- sas, as estruturas do mercado se modificaram intensamente. O apa- recimento de grandes oligopólios e oligopsônios, controlando cres- centemente tanto a produção quanto a venda de bens e serviços, tornou ineficaz o espaço do mercado como mecanismo de equalização das taxas de lucros.
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O curso do processo de monopolização do capital assumiu a forma de uma tendência ainda não percebida até então nas econo- mias de mercado. Dessa forma, a mobilidade intersetorial do capital, presente no século XIX, terminou sendo constrangida pelo aumento no grau de concentração dos mercados e pelo crescente poder monopolístico das grandes empresas nos mais diversos setores.
Apesar disso, somente com a Grande Depressão de 1929 ficou mais evidente para a sociedade a incapacidade das forças de mer- cado de produzirem a auto-regulação. O funcionamento das eco- nomias de mercado requereria a ampliação do grau de intervenção do Estado, como forma de evitar o aprofundamento da crise e impulsionar a expansão capitalista em novas bases.
Não foi por outro motivo que a natureza e o papel do Estado assumiram proporções inimagináveis até então, com capacidade de direcionar e impulsionar a acumulação de capital através da redistribuição de parte do excedente econômico e do exercício da função nobre de procurar regular o sistema econômico em geral. Tudo isso seria imprescindível, considerando que na fase recente de monopolização do capitalismo não havia mais condições de reproduzir as mesmas formas de auto-regulação que não fossem aquelas exercidas pelo próprio Estado, diante da enorme capaci- dade de produção das grandes empresas oligopolistas, bem acima do ritmo de expansão econômica (obtenção de capacidade produ- tiva ociosa não planejada).
Por conseqüência, as condições de produção e reprodução da concorrência intercapitalista e das relações entre capital e trabalho passaram a depender, cada vez mais, do Estado, que se constituiu fonte de politização constante da economia. Não significa dizer que o exercício da política passasse a ser necessário e exclusiva- mente reflexo da situação econômica, embora a luta política fosse crescentemente associada ao objetivo de alcançar o poder e o apa- relho de Estado2.
Observa-se que nos últimos oitenta anos, o conteúdo intrínse- co da regulação no capitalismo decorreu de uma profunda reprogramação na natureza do Estado, que alterou significativa- mente o comportamento do mercado. A remodelação das regras de mercado por uma nova relação entre Estado e economia possi-
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bilitou, por exemplo, avançar na definição de novas formas de rendas diretas para o consumo coletivo, sem mais estar relaciona- do às formas pretéritas de financiamento do consumo dos traba- lhadores, cujo salário era isoladamente a única forma de acesso ao consumo.
Com o avanço do planejamento e da capacidade provisional exercida pelo Estado, bem como o estímulo às áreas sociais (edu- cação, saúde, lazer, transporte), à ciência e pesquisa e à produção (investimento produtivo e financiamento) houve singularidade no funcionamento das economias de mercado no século XX3. O con- sumo do trabalhador, por exemplo, passou a ser valorizado através da ampliação das formas de rendimento, tendo o salário direto acompanhado a produtividade, os encargos sociais financiado as despesas com aposentadoria e qualificação e o salário indireto aten- dido aos gastos de saúde, educação, transporte e habitação.
Nas três décadas após o encerramento da Segunda Guerra Mundial, as economias avançadas registraram espetacular desen- volvimento, com crescente participação estatal. Desde a década de
Gráfico 1 – Gasto total do setor público como proporção do PIB em países
selecionados, 1913-1999 (em %)
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1970, no entanto, ampliaram-se os sinais de crise no padrão de intervenção do Estado fundado na crise da ordem liberal na De- pressão de 1929. Além de outras modificações nas economias de mercado, assiste-se à transição do processo de monopolização ca- pitalista de base praticamente nacional – caracterizado pela expan- são do pós-guerra – para o de âmbito mundial.
A intensificação da concorrência intercapitalista acirrou ain- da mais o processo de centralização e concentração do capital, com o fortalecimento de fusões, incorporações, aquisições entre as grandes empresas produtivas e financeiras. A constituição de estruturas oligopolizadas e oligopsônicas de mercado no plano mundial rompeu com o formato original da regulação estatal es- tabelecida a partir dos anos 1930 no plano nacional, sem a redefinição, até o momento, de um novo e bem-sucedido formato regulatório supranacional.
O aprofundamento da crise do padrão de intervenção estatal voltado para o espaço nacional fortalece o florescimento do ata- que ideológico liberal-conservador, que imputa ao Estado as ra- zões gerais pelos principais males vigentes nas economias de merca- do5. Com isso, a ação estatal terminou passando por transformações importantes nos anos 1980, embalado pelo conceito de Estado Mínimo e pela retórica da busca de elevação da competitividade e de maior participação de novos grupos organizados da sociedade no processo de tomada de decisão governamental.
A reavaliação do papel do Estado e a aprovação das refor- mas no setor público nas economias avançadas ocorreram nas mais variadas formas, diferentemente do que propunham os de- fensores do Estado Mínimo e sem levar, necessariamente, ao desmantelamento do aparato estatal. Podem ser destacadas, por exemplo, novas ações convergentes para o aumento da descen- tralização nas atribuições de competências operacionais do Es- tado, com a introdução de mecanismos de mercado e competi- ção administrada, através da privatização de segmentos estatais em setores produtivos.
De todo modo, não houve, em geral, perda do controle estatal no direcionamento estratégico da política industrial, nas áreas de pesquisa e na área social, nem tampouco redução de
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participação do gasto público no produto. Prevaleceu a busca pelo aperfeiçoamento da capacidade de intervenção estatal, com ampliação do papel da gestão regulatória estratégica e elevação contida das receitas públicas em relação ao PIB. (OCDE, 1997; Number, 1995).
Gráfico 2 – Composição do gasto público nos países do G-7 em anos
selecionados (em %)
Fonte: OCDE, vários anos.
Deve-se destacar, entretanto, que a mudança na composição do gasto público, refletiu, em parte para alguns países, a força do pensamento neoliberal. Em outras palavras, houve a contenção relativa de gastos comprometidos com esferas sociais, de investi- mento e de consumo, em contrapartida à expansão das esferas de gastos direcionadas ao pagamento do serviços financeiros e de transferências e subsídios.
Na maior parte dos países do G-7 nota-se a expansão tanto dos gastos com a seguridade social quanto com os juros. Em con- trapartida, as esferas de consumo geral e de investimento foram comprimidas.
A ausência de referências generalizadas acerca da decrescente participação do emprego do setor público indica ainda a importân-
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cia das instâncias do aparato estatal na economia. Países como Holanda e Reino Unido constituem, até agora, experiências relati- vamente isoladas no que se refere ao movimento de contenção do emprego público, pois a maior parte das economias avançadas segue mantendo a participação crescente de funcionários públicos em relação ao total da ocupação.
Dessa forma, o setor público permanece exercendo também papel importante na absorção de força de trabalho, contrapondo- se à ocupação do setor privado. Em países como a Suécia, por exemplo, o peso do emprego público atinge diretamente um terço do total da ocupação, enquanto na Holanda encontra-se um pouco abaixo dos 15%.
Gráfico 3 – Participação do emprego público na ocupação total em países
selecionados (em %)
* Estimativa. Fonte: OCDE, vários anos.
A busca de maior avanço na capacidade de arrecadação e de distribuição adequada de recursos constitui parte integrante do programa de reformulação do papel do Estado realizado recente- mente nos países avançados. Somente o exercício dessas funções continuam a depender da presença de funcionários públicos, a despeito da modernização funcional, administrativa e de infor- mática naquele setor.
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ESTADO E CAPITALISMO NO BRASIL
Uma breve comparação entre a evolução do papel do Estado no Brasil e a em outros países permite observar diferenças impor- tantes. Em geral, a presença do Estado nos países desenvolvidos é bem mais significativa nas áreas sociais (previdência e alocações diversas), enquanto nas economias não desenvolvidas prevaleceu a intervenção no setor produtivo, de infra-estrutura e de energia, por exemplo.
Em parte, essa diferença diz respeito tanto à defasagem exis- tente entre o grau de desenvolvimento econômico alcançado nas economias ricas e nas economias pobres quanto à forma de inser- ção de cada país na economia mundial. Na tentativa de diminuir as diferenças em relação às economias ricas, os países não desenvol- vidos, sem condição de depender exclusivamente do setor priva- do, terminam por utilizar o aparato estatal no esforço de expansão do sistema produtivo.
No Brasil, o setor público compreende duas divisões impor- tantes. A primeira diz respeito às funções de governo, tais como a administração direta em todos os níveis, adicionada às autarquias e demais atividades que dependem exclusivamente do orçamento público.
A segunda refere-se às empresa públicas, que possuem, por sua vez, dois segmentos: setor produtivo estatal, constituído pelas grandes empresas e subsidiárias pertencentes à base econômica; e empresas e organismos desvinculados das atividades produtivas, especialmente nas áreas de serviços e transportes6.
Do ponto de vista da evolução temporal no papel do Estado no Brasil, pode-se identificar a presença de três fases bem distin- tas. A primeira refere-se até a década de 1920, quando o liberalis- mo econômico era hegemônico.
Por conta disso, a participação do Estado no domínio econô- mico era ínfima, limitando-se às funções de regulação, controle monetário e arrecadatório. Apesar disso, cabia ao Estado o desem- penho de funções marginais na economia, especialmente por meio de empresas públicas, como o Serviço Postal e a Casa da Moeda, que foram constituídas no século XVII.
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Ao mesmo tempo, pelo menos durante o século XIX, o governo buscou garantir taxa de retorno aos investimentos privados realiza- dos no Brasil, principalmente aqueles provenientes de aplicações inglesas nas ferrovias. Com isso, as despesas governamentais com subsídios para companhias de navegação e de ferrovias chegaram a garantir uma taxa de até 6% do total das importações (Villela e Suzigan, 1973).
De outra parte, também era função do Estado a realização de concessões de serviços de utilidade pública ao setor privado na- cional e estrangeiro. Nos segmentos identificados com o monopó- lio natural, como eletricidade e transportes (bondes), era grande a presença de empresas privadas que atuavam por concessão do Estado (Singer, 1975).
Antes da República, o Brasil havia criado algumas poucas empresas públicas, como o Banco do Brasil, a Imprensa Régia e a Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema. Com a instalação da República, cerca de dois terços das ferrovias foram estatizadas, assim como ganhou importância a atuação do Estado, por intermé- dio das Caixas Econômicas, o que garantiu a presença de 25 em- presas públicas no Brasil até 19307.
Com a Revolução de Trinta houve uma profunda modificação no padrão de intervenção estatal no Brasil. O abandono do libera- lismo abriu novas perspectivas para uma importante atuação esta- tal que vai durar quase seis décadas.
Mas isso ocorreu influenciado sobretudo pela intenção das forças sociais no Estado, com vistas a promover o desenvolvi- mento econômico, através da industrialização. Dessa forma, bus- cou-se garantir a ocupação de “espaços vazios”, ainda não aten- didos pelo setor privado ou que apresentavam insuficiência na escala de produção, de financiamento e de tecnologia. Entre 1930 e 1989, três períodos são relevantes para analisar sinteticamente a evolução do padrão intervencionista do Estado na economia brasileira.
O primeiro período transcorre entre 1930 a 1955, quando o conjunto das ações do Estado na economia visou não apenas a constituição de um novo aparelho de Estado (administração e for- mação de quadros), com a regulação de vários setores de ativida-
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des econômicas e sociais, mas principalmente a atuação direta no processo de acumulação capitalista. Teve elevada importância a constituição de empresas públicas como a Companhia Siderúrgica Nacional (1941), a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Compa- nhia Nacional Álcalis (1943), a Fábrica Nacional de Motores (1943), a Companhia Hidrelétrica de São Francisco (1945), o BNDES (1952) e a Petrobrás (1954).
Isso tudo ocorreu estimulado fortemente pela visão naciona- lista, que exigia uma condução bipartite entre a atuação do Estado e o desenvolvimento do setor privado nacional. Nos setores que já possuíam a presença de capitais estrangeiros, como na navegação e na eletricidade, a instalação de conselhos e a definição de códi- gos regulatórios cumpriram as funções de controle da acumulação de capital, conduzidas pelos recursos internacionais (Draibe, 1985; Dain, 1979; Lessa, 1978; Prado, 1990).
O segundo período na evolução do padrão de intervenção do Estado no Brasil desenvolve-se entre 1955 e 1964, com a imple- mentação do Plano de Metas durante o governo JK. A partir desse momento, o nacionalismo perdeu alguma importância, dando lu- gar a uma nova articulação entre Estado, capital privado nacional e capital privado internacional.
Gráfico 4 – Brasil: Participação do Estado no total do investimento (em %)
Fonte: Bacen, FGV, FIBGE, vários anos.
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A constituição de uma articulação trilateral de interesses, en- volvendo a presença de ampla participação de recursos externos, possibilitou tanto ao setor privado quanto ao Estado o avanço na internalização do padrão de industrialização, conforme anterior- mente verificado nos países desenvolvidos. O salto industrializante foi comandado pelo Estado, perseguindo o princípio original de ocupar os “espaços vazios” deixados pelo setor privado (Benevides, 1976; Martins, 1977; Ianni, 1971; Lafer, 1975; Resende, 1980).
Por fim, o terceiro período na evolução do padrão de inter- venção estatal se deu entre 1964 e 1989, quando o papel econômi- co do Estado buscou não apenas assegurar o desenvolvimento de “espaços vazios”, mas garantir a aplicação da ideologia de “segu- rança nacional”. Durante o governo militar, a expansão das empre- sas estatais foi expressão direta de uma ideologia, em que o Estado avançou muito, alterando o quadro de desnacionalização inicial- mente estimulado pelo governo de JK, ao proteger parcela signifi- cativa do setor privado nacional (Tavares e Serra, 1970; Evans, 1980; Leff, 1975; Diniz, 1978).
A base de financiamento do Estado dentro do processo de acumulação de capital dependia dos recursos orçamentários, dos reinvestimentos das empresas estatais e de formas indiretas de tri- butação e emissão monetária. O fortalecimento do Estado através do autoritarismo e a ampliação da sua capacidade de captação do excedente econômico favoreceu a constituição de uma nova arti- culação entre a burocracia estatal e as grandes empresas públicas, o que trouxe, por conseqüência, o descolamento de parte dos interesses do setor privado nacional.
Por conta disso, na segunda metade dos anos 1970, surgiram as primeiras críticas ao fortalecimento estatal. Não havia ainda a manifestação direta de interesses favoráveis à privatização, mas sim à associação crescente entre o autoritarismo e a estatização econômica, ao passo que a manifestação dos primeiros sinais de crise no padrão de intervenção do Estado instituído a partir de 1930, abriu uma primeira lacuna para o engrandecimento dos prin- cípios neoliberais (Castro, 1984; Pessanha, 1981).
Nos anos 1980, com a crise da dívida externa, combinada à opção de política econômica adotada na época (estatização da
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dívida externa e transformação das empresas estatais em mecanis- mos de ajuste, com a desvalorização dos preços e tarifas públicas e estímulo ao endividamento, como forma de atrair recursos exter- nos em quantias necessárias para o fechamento das contas exter- nas), o setor produtivo passou a perder eficiência e eficácia. Com isso, cresceu também a relação realizada entre a presença do Esta- do na economia e o regime autoritário.
Dentro dessa perspectiva, o ano de 1990 marcou uma drástica ruptura no padrão de intervenção do Estado na economia brasilei- ra. Com a vitória de Collor nas eleições de 1989, não apenas as medidas estabelecidas pelo “Consenso de Washington” passaram a ser implementadas no Brasil, como foi constituído um novo mode- lo econômico. A ênfase na revisão do papel do Estado teve, além da realização das reformas administrativa, tributária e previdenciá- ria, a preocupação com a promoção de um intenso programa de privatização.
Em função disso, o desmonte do Estado transcorreu ao longo dos anos 1990, fortalecido pelas idéias de transferência de ativos públicos para o setor privado, como forma de estabelecer um novo condutor do desenvolvimento econômico e social. Ao Estado coube um espaço regulador, voltado ao estímulo da competição e da eficiência dos mercados, bem como variável importante adotada no ajuste fiscal (Giambiagi e Moreira, 1999; Velasco Jr., 1997; Pinheiro e Fukasaku, 2000; Pinheiro e Landau, 1995).
NOVO MODELO ECONÔMICO E IMPLICAÇÕES NO PAPEL DO ESTADO
BRASILEIRO DESDE 1990
O Brasil possui, desde 1990, um modelo econômico que se diferencia profundamente do verificado entre as décadas de 1930 e de 1970. Em vez da defesa da produção e do emprego nacional, privilegia-se a promoção da integração do sistema produtivo na- cional à economia mundial.
Dessa forma, o padrão de intervenção estatal perdeu grande parte de sua funcionalidade. Em nome da competitividade, seg- mentos do setor público desapareceram, outros foram privatizados, concedidos, terceirizados e reformulados.
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Pode-se constatar que o atual modelo econômico representa a experiência mais exitosa de interrupção do projeto de desenvolvi- mento após 1930. Até então, duas tentativas realizadas anteriormente visando a modificação no papel do Estado tinham sido introduzidas, porém sem o sucesso verificado atualmente8.
Entre 1946 e 1947, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, ocorreu, por exemplo, uma primeira tentativa de rompimento do padrão de intervenção estatal constituído ainda na década de 1930. Nesse período, foi criticado, por um lado, a presença do Estado na economia, associando-a ao Estado Novo (regime autoritário vigen- te nos anos 1937-1945); e, por outro lado, foi defendido o liberalis- mo econômico, através do abandono da Coordenação de Mobilização Econômica e do controle de preços verificados entre 1942 e 1945. Ao mesmo tempo, o Conselho Nacional de Petróleo tomou a iniciativa de abrir concorrência para a construção de refi- narias por companhias privadas, enquanto a liberalização comer- cial ganhou grande dimensão, comprometendo significativamente as reservas internacionais acumuladas durante o período da Se- gunda Guerra Mundial.
Quando se elegeu a inflação como problema a ser enfrentado, o ingresso de oferta de produtos do exterior assumiu maior rele- vância. Mas antes de dois anos, a ilusão das reservas internacionais foi constatada, com o rápido esvaziamento dos recursos acumula- dos, o que criou uma falsa visão do liberalismo. No período restan- te, o governo Dutra tratou de recompor o modelo de desenvolvimentismo anterior com apoio social.
A segunda tentativa de rompimento com o padrão de inter- venção de Estado ocorreu entre 1964 e 1966, durante o primeiro governo autoritário do regime militar, quando ganhou expansão a retórica favorável ao desenvolvimento econômico com ênfase no liberalismo e internacionalismo. Duas empresas foram privatizadas, como no caso da FNM (Fábrica Nacional de Motores), vendida para Alfa Romeu, e da Cosigua, que teve parte de suas ações adquiridas pela Thissen Steel, bem como o setor petroquímico foi transforma- do em espaço para investimentos de empresas privadas.
Durante o mesmo período de tempo, a política de combate à inflação reuniu o realismo tarifário com a promoção do arrocho
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salarial, através da manutenção de baixas taxas de expansão eco- nômica. Os resultados promovidos pelo impulso liberal foi pífio, tornando-se desacreditado pelos governos militares que sucede- ram o general Humberto Castello Branco, levando-os a optarem pela retomada do padrão estatal de intervenção econômica de maneira redobrada.
Somente 24 anos depois, uma revisão profunda do papel do Estado foi realizada. Através da desregulamentação da concorrên- cia e da realização das reformas administrativa, previdenciária e fiscal, aliada ao processo de descentralização e privatização ao longo da década de 1990, foi rompido o padrão de intervenção estatal no Brasil. Assim, o desmonte do aparato estatal terminou sendo implementado.
Quatro novos segmentos do setor público foram constituídos, através do núcleo estratégico (definição de leis e políticas públi- cas), das atividades exclusivas (forças armadas, arrecadação e agên- cias de regulação, fomento e controle), dos serviços não exclusi- vos (educação, saúde, seguridade e pesquisa) e do setor de produção de bens e serviços (empresas estatais). O novo formato do aparato estatal foi exigido dentro do objetivo governamental de enfrentar a crise fiscal, concedendo um novo papel ao Estado menos intervencionista e muito mais regulatório (Pereira, 1997).
Em grande medida, a ênfase na reforma do Estado foi provocada pelo recente avanço hegemônico da ideologia neoliberal, a partir da difusão da concepção de que o aparato estatal impunha obstá- culos à inovação tecnológica, sendo ineficiente na alocação dos recursos na economia e na promoção da redução do déficit fiscal. Em síntese, constitui-se uma interpretação equivocada de que o padrão de intervenção estatal anterior evitava a modernização e a eficiência econômica9.
REVISÃO DO PAPEL DO ESTADO, PRIVATIZAÇÃO E EMPREGO NO
BRASIL
O processo de desestatização não se constitui uma novidade. Na Alemanha Ocidental, com a vitória eleitoral de Konrad Adenauer, em 1957, foi lançado o primeiro programa de desestatização do
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segundo pós-guerra, visando liberalizar a atuação de grandes em- presas que possuíam presença do Estado, como no caso da Volkswagen que, em 1961, deixou de ter a participação no Estado alemão (Megginson, 1994).
Depois da experiência alemã, somente no início dos anos 1980, através de Margareth Thatcher, na Inglaterra, é que voltou a ocorrer um amplo processo de privatização do antigo setor estatal e de fornecimentos de serviços públicos. A experiência inglesa transformou-se no ícone dos programas liberais, pas- sando a ser adotada em maior ou menor medida em vários paí- ses capitalistas10.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o automático processo de transição das economias planejadas (socialistas) para a economia de mercado, notou-se não apenas a privatização do setor produtivo estatal, mas a adoção do princípio de generalizada desestatização das economias, com a ampla venda de empresas públicas, conforme a situação nacional.
O caso da Alemanha Oriental foi emblemático, pois chegou a transferir para o setor privado em formação mais de 10 mil empre- sas públicas. Noutras economias como Polônia, Hungria e Rússia, o desmonte estatal também ocorreu, ainda que em ritmo e ampli- tude diferenciados11.
Nos países capitalistas não desenvolvidos, a ênfase da revisão no papel do Estado também ocorreu. Entretanto, os processos de privatização não foram os mesmos.
Na América Latina, por exemplo, alguns poucos países já re- gistravam desde 1980 algumas experiências de desestatização, como no caso do Chile e México. Mas foi a partir do Consenso de Washington, ao final dos anos 1980, quando as teses liberais torna- ram-se hegemônicas na região, que o programa ampliado de pri- vatização do setor produtivo estatal e dos serviços públicos ga- nhou grande importância. A transferência de parte significativa dos ativos do setor público para a iniciativa privada seguiu, em alguma medida, três objetivos básicos12.
O primeiro objetivo esteve associado à constituição de um novo modelo econômico, em que o Estado tivesse um papel resi- dual na atividade econômica. Dessa forma, caberia ao setor priva-
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do exercer plenamente suas funções, sendo o carro-chefe da dinâ- mica econômica, conduzindo o investimento ao estágio superior.
O segundo objetivo ganhou importância com o desenvolvi- mento do papel do Estado na função de regulação da concorrência privada, tendo ainda participação focalizada e reforçada nas áreas sociais, como educação e saúde. Assim, a redução do tamanho do Estado na economia ocorreu com a realização de reformas admi- nistrativa, previdenciária e tributária, além de representar uma reconfiguração do setor público.
Por fim, o terceiro objetivo representou parte de uma estraté- gia mais geral de combate à inflação. Como o modelo de estabili- zação monetária perseguido esteve vinculado à constituição de uma âncora cambial, houve a imposição de taxas de juros elevadas para atrair o ingresso e a manutenção, por tempo necessário, de reservas em moedas fortes, geralmente em dólar norte-americano.
Mas isso terminou gerando não apenas o crescimento do en- dividamento externo, como também a expansão das dívidas do setor público. Por isso foi realizada em profusão a desmobilização do setor produtivo estatal e dos serviços públicos, como forma de gerar receitas necessárias para servir de abatimento de parcela do endividamento público.
No Brasil, depois de um ciclo importante de expansão do setor produtivo estatal, assistiu-se, com o esgotamento do modelo de in- dustrialização nacional, à adoção de medidas de desestatização. Durante os anos 1980, embora a desestatização não tivesse relevân- cia na agenda pública, algumas empresas estatais foram privatizadas, com a eliminação de postos de trabalho localizados, paralelamente ao aumento do nível de emprego no conjunto do setor público estatal. Entre 1979 e 1989, o volume de emprego estatal aumentou, com a abertura de 229 mil novos postos de trabalho.
Nos anos 1980, o processo de privatização tratou, na maior parte, de uma reprivatização de empresas que anteriormente já pertenciam ao setor privado, mas que por estarem em situação de insolvência, tinham sido previamente estatizadas com o objetivo de saneá-las e devolvê-las a normalidade empresarial. Na realidade, cabia ao BNDESPAR
a realização de operação-hospital no setor privado ineficiente, garan- tindo recurso público para seu saneamento.
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Dessa forma, ao longo da década de 1980, um conjunto de empresas ex-privadas foi reprivatizado. Durante o governo Figueiredo, vinte empresas estatais foram transferidas ao setor pri- vado, como aquelas vinculadas à Riocell Celulose e Fiação e Tece- lagem Lutfala. Na segunda metade da década de 1980, no governo Sarney, mais dezoito empresas estatais passaram ao setor privado. Entre as empresas privatizadas, destacaram-se os casos da Aracruz Celulose, Caraibas Metais, Usibra, Siderurgia Cinetal e Sibra13.
O processo de privatização no Brasil somente sofreu uma mudança substancial a partir da aprovação do Programa Nacional de Desestatização em 1990, com o governo Collor. A partir de então, a desmobilização do setor público assume papel central na agenda governamental, sendo instrumento-chave do processo de ajuste fiscal.
1979/84 20 274 16 146.980 1985/89 18 549 620 82.125 Anos 80 38 823 636 229.105
1990/92 44 15.128 2.664 –198.136 1993/94 35 17.320 3.752 – 47.732 1995/99 84 42.008 11.660 – 300.120 Anos 90 166 74.456 18.076 – 545.988
Tabela 1 – Brasil: evolução das empresas privatizadas e do ajuste do
emprego no setor estatal entre 1979 e 1999
Período
Fonte: SEST, BNDES e MTE. Elaboração própria. * Refere-se ao saldo líquido de empregos destruídos e criados no setor estatal resultante do efeito do conjunto das empresas privatizadas, fechadas e incorporadas.
Empresas privatizadas
Empregados formais
envolvidos*
Com isso, o Estado deixou de ser responsável direto pelo de- senvolvimento socioeconômico, afastando-se rapidamente da fun- ção de produção de bens e serviços. Em contrapartida, o setor privado passou a ser o principal centro promotor da dinâmica eco- nômica nacional.
Em outras palavras, a privatização transformou-se em impera- tivo do modelo econômico adotado em 1990, quando a geração de
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receitas públicas adicionais tornou-se necessária para abater parte do endividamento produzido por juros expressivos, como susten- táculo da estabilidade monetária. Ao mesmo tempo, a aposta go- vernamental na tese do tecnoglobalismo influenciou a decisão de atrair empresas transnacionais com o objetivo de elevar o investi- mento, sendo a privatização de importantes empresas estatais um passo fundamental no curso do processo de desnacionalização eco- nômica da década de 1990.
Acompanhando a evolução do processo de desestatização eco- nômica pode-se observar uma divisão temporal importante no que diz respeito ao perfil da privatização. Entre 1990 e 1994, a privatização realizada concentrou-se no setor produtivo estatal, basicamente na indústria de transformação (petroquímica, siderurgia, mineração e fer- tilizantes), ocasionando a perda líquida de 246 mil postos de trabalho.
A partir de 1995, a privatização voltou-se mais para os serviços públicos, como telecomunicações, energia, transportes, bancos, entre outros. Os efeitos sobre o volume de emprego no setor público foram negativos, com a geração de um saldo líquido de 300 mil postos de trabalho destruídos entre 1995 e 1999.
Em síntese, os últimos dez anos voltados para a adoção de programas de reformulação do papel do Estado no Brasil repercu- tiram negativamente no volume de emprego referente ao conjunto das atividades sob intervenção do setor público estatal, uma vez que houve a diminuição de quase 546 mil postos diretos de traba- lho. Como se pode observar, o processo de privatização, fecha- mento, incorporação e ajuste das empresas estatais concentrou-se fortemente sobre o nível de emprego.
Do saldo total negativo de 3,2 milhões de empregos assalaria- dos formais destruídos na economia brasileira durante a década de 1990, 17,1% foi de responsabilidade direta da reformulação do setor produtivo estatal. Ou seja, de cada cinco empregos perdidos, nos anos 1990, um pertencia ao setor estatal.
Perfil das modificações no emprego a partir da privatização
Ao longo da década de 1990, a intensa modificação no interior do setor estatal brasileiro implicou não apenas a acentuada redu-
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ção do nível do emprego, mas também a alteração do perfil ocupa- cional. Considerando-se o conjunto das empresas que conformam o setor estatal, nota-se que em 1999 o volume de emprego encon- trava-se abaixo do de 1979 em cerca de 300 mil postos de trabalho e de 546 mil vagas em relação ao ano de 1989.
Através da revisão do papel do Estado e da privatização, vá- rios setores estatais perderam sensivelmente empregos, ainda que o setor privado tenha mantido uma parcela com vínculos formais. A privatização não permitiu, após dez anos de revisão no papel do Estado, compensar o esvaziamento das ocupações anteriormente existentes no setor estatal.
Em síntese, a implementação de um novo modelo econômico, sustentado no imperativo do enxugamento do papel do Estado e na transferência de atividades produtivas estatais para o setor pri- vado, implicou significativo ajuste do nível de emprego. Os traba- lhadores do setor público foram transformados na principal variá- vel de ajuste do Estado no Brasil nos anos 1990.
Gráfico 5 – Brasil: evolução do volume de emprego direto assalariado com
contrato formal nas atividades estatizadas e após a privatização,
1979-1999 (em mil)
Fonte: SEST; MTE (vários anos). Elaboração própria.
Não apenas o instrumento da demissão de empregados foi intensamente utilizado no antigo setor produtivo estatal, mas tam- bém destacou-se a adoção de medidas orientadas para a maior
1 002 1 045
1 1 49
1 202 1 1 88 1 205 1 21 8 1 231
1 1 55
1 1 49
1 202 1 1 88 1 205 1 21 8 1 231
1 1 39
1 95 1 85
1200 1300
79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99
Emprego total Emprego estatal Emprego privado
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intensificação do trabalho, através da implementação de novos programas de gestão de mão-de-obra. A terceirização, a subcontratação e a rotatividade constituíram os novos mecanismos adotados para a redução salarial e a subordinação dos empregados que restaram, com o objetivo de gerar lucros a qualquer custo tanto no setor estatal como nas novas empresas privatizadas. So- mente a taxa de rotatividade passou de 7,3%, em 1989, para 24,8%, em 1999.
A redução de 43,9% no total do emprego do setor estatal du- rante a década de 1990 não ocorreu de forma homogênea. Os empregos masculinos foram os mais atingidos, quando compara- dos com o emprego feminino. Por conseqüência, a queda na mas- sa de rendimento do setor público, estimada em 34,5%, foi mais estimulada pela diminuição nos rendimentos dos empregados mas- culinos do que dos femininos.
Em relação à evolução do emprego por faixa etária, nota-se que as demissões concentraram-se mais em determinados segmentos ocupacionais. Os empregados mais jovens foram os mais atingidos pelas medidas de enxugamento de pessoal, especialmente pelo processo de privatização.
Entre 1989 e 1999, o emprego de jovem no setor estatal foi reduzido em 73,4%. O segmento etário de 25 a 49 anos foi atingido de maneira menos intensa, ainda que quase 39% dos empregados tenham perdido emprego no setor estatal. Para os empregados com mais de 49 anos, a queda no volume de postos de trabalho foi de quase 46%.
Também em relação ao grau de instrução, prevaleceu o ajuste do emprego estatal, com base na contenção dos empregados com baixa escolaridade. Para aqueles com até o primeiro grau, o em- prego foi diminuído em 72,3%, enquanto, para os empregados com nível universitário, a perda na quantidade de postos de traba- lho ficou abaixo de 10%.
Em outras palavras, a educação transformou-se no novo crité- rio de exclusão do acesso ao emprego anteriormente pertencente ao antigo setor estatal, ainda que a maior escolaridade não seja o imperativo decorrente de modificações substanciais no conteúdo do trabalho. A maior concorrência no interior do mercado de tra-
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balho termina estimulando, muitas vezes, tanto a elevação dos re- quisitos de contratação por parte dos empregadores quanto a ado- ção do critério de corte de empregos.
Uma outra característica recentemente introduzida no padrão de emprego do setor estatal após a sua privatização foi a incorpo- ração dos mecanismos de grande instabilidade nos contratos de trabalho. Conforme apresentado anteriormente, o uso da rotatividade tornou-se uma constante.
Com isso, o princípio da demissão atingiu, em maior escala, parte dos trabalhadores com maior tempo de serviço na mesma empresa. Enquanto os empregados com até um ano na mesma empresa foram reduzidos em quase 46%, os emprega- dos com três a dez anos de casa tiveram cerca de 66% dos postos de trabalho destruídos. Somente os empregados com mais de dez anos de tempo de serviço na mesma empresa foram os menos atingidos pelo fenômeno da demissão.
Os empregados situados nas maiores faixas salariais sofreram menos com a revisão do papel do Estado. Entre 1989 e 1999, quase um terço dos empregados com mais de vinte salários mínimos de remuneração perderam seus postos de trabalho, enquanto quase a metade dos trabalhadores que recebiam até três salários mínimos foi demitida. O segmento ocupacional mais atingido foi aquele em que os empregados recebiam entre três a sete salários mínimos mensais, com dois terços das ocupações perdidas.
Cabe ressaltar ainda o peso das grandes empresas no movi- mento de contenção do total do emprego estatal. Entre 1989 e 1999, quase 51% das ocupações das empresas com mais de 499 empregados foram eliminadas. As micro e pequenas empresas foram as que menos demitiram. Para os anos 1990, as empresas com 50 a 249 empregados eliminaram quase 30% do total dos empregos.
Por fim, em relação à evolução dos ocupações profissionais, observa-se a importância de algumas quando compara-se o saldo líquido verificado entre a destruição e a criação de novas vagas. Ao se considerar as dez principais ocupações profissionais destruídas nos anos 1990 no setor estatal, encontra-se, em primeiro lugar, a de auxiliar de escritório, seguida da de auxiliar de contabilidade,
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de mestre na produção e serviços, de ferroviários e de instaladores e reparadores de telecomunicações.
Quando o critério de sistematização dos empregos for as ocu- pações profissionais que mais postos de trabalho criaram, nota-se a importância de setores que não foram privatizados. A principal ocupação profissional em evidência foi a de mensageiro e carteiro, que teve, entre 1989 e 1999, o acréscimo de quase 7 mil novas vagas.
Em seguida, ganharam maior importância as ocupações pro- fissionais de agentes administrativos, de gerentes financeiros e co- merciais, gerentes administrativos e agentes de vendas. Como não poderia deixar de ser, as empresas privatizadas procuraram valori- zar as ocupações voltadas para o controle de custos, planejamento tributário, administração financeira e vendas.
Tabela 2 – Brasil: evolução das dez principais ocupações profissionais
destruídas e criadas no setor estatal entre 1989 e 1999
Ocupações destruídas Número Ocupações criadas Número
Auxiliar de escritório – 61.777 Carteiros e mensageiros 6.693 Auxiliar de contabilidade – 17.981 Agentes administrativos 5.095 Mestres na produção e Gerentes financeiros e serviços – 16.132 comerciais 4.442 Ferroviários e maquinistas – 15.604 Gerentes Instaladores e reparadores administrativos 2.013 de telecomunicações – 15.155 Agentes de vendas 1.398 Condutores de caminhões Analistas de ocupações 754 e ônibus – 12.573 Técnicos em tributação 541 Guarda de segurança – 10.692 Supervisores de vendas Engenheiro elétrico – 7.528 Vendedores de atacado 405 Operadores de produção e varejo 255 de energia elétrica – 7.404 Técnicos de controle da Torneiro – 6.478 produção 125
Subtotal –171.324 Subtotal 21.721
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PONTOS FRACOS DE UMA ESTRATÉGIA
Ao longo de todo o século XX, a década de 1990 ficou marcada no Brasil como aquela que produziu o pior desempenho econômi- co. Por registrar uma variação média anual de apenas 1,9% no Produto Interno Bruto, inferior à registrada nos anos 1980, o país deixou de ter o que comemorar. A estabilização monetária, embo- ra muito significativa para uma economia que conviveu por 15 anos contínuos com um processo hiperinflacionário, não se mos- trou suficiente, nem mesmo para compensar a medíocre situação econômica mais geral, quanto mais o agravamento do quadro so- cial, em que o desemprego e a violência urbana emergem como fenômenos de difícil enfrentamento. Conforme será possível ob- servar adiante, nem mesmo o processo de concentração de renda foi revertido.
A mudança no modelo econômico a partir de 1990 foi o grande imperativo do processo de revisão do papel do Estado, especial- mente com a adoção da privatização. O desmonte do setor estatal foi alardeado como um dos principais passos para que o país pudes- se alcançar uma situação superior à verificada na década de 1980.
Decorridos dez anos de revisão do papel do Estado, o Brasil permanece prisioneiro do processo de financeirização da riqueza, amargando a ausência de crescimento econômico sustentado. Por conta disso, a dimensão dos problemas sociais cresce, empurran- do o país, cada vez mais, para uma situação de esgarçamento do tecido social sem expressão histórica anterior.
Até agora, o setor privado, diante da retirada do Estado do setor produtivo, segue incapaz de promover o desenvolvimento socioeconômico necessário e urgente. Mesmo com o ingresso de grandes somas de recursos internacionais, responsáveis, em parte, pela própria desnacionalização do setor produtivo estatal, não houve a fundamentação de uma sólida base de produção.
Em 1999, cerca de 32,8% da totalidade dos serviços públicos estavam concentrados no Estado, enquanto em 1989 eram 100%. A participação do setor privado aumentou significativamente, tendo especial atenção as empresas privadas estrangeiras, com 42% do total das vendas realizadas nos serviços públicos.
35
No setor financeiro, a participação do Estado caiu de 58,9% para 35,6%. A participação relativa do setor privado estrangeiro aumentou, em contrapartida, de 6% para 29,6%.
A ampliação da presença do setor privado no comando da economia brasileira durante os anos 1990 veio acompanhada da explosão do desemprego. Em grande medida, o processo de revi- são do papel do Estado, estimulado pela privatização do setor estatal, contribuiu para a explosão das demissões nas empresas públicas, sem a necessária contrapartida da geração de novas va- gas no setor privado.
O déficit no emprego ocorrido nas atividades econômicas ocu- padas anteriormente pelo Estado foi de mais de meio milhão de postos de trabalho nos anos 1990. Assim, quase 20% dos 3,2 mi- lhões de empregos assalariados com contrato de trabalho destruídos nos últimos dez anos foram de responsabilidade do processo de revisão do papel do Estado no Brasil.
Em conformidade com as informações do BNDES, o processo de privatização realizado no Brasil durante os anos 1990 foi responsá- vel pela geração de receita pública adicional próxima de 74,5 bi- lhões de dólares e de transferência de 18,1 bilhões de reais de
Gráfico 6 – Brasil: participação relativa do Estado em setores de atividade
econômica selecionados antes e depois da privatização, 1989 e 1999
(em % das vendas)
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dívida que era do setor público para o setor privado14. Adicionan- do-se ainda a elevação na carga tributária bruta ocorrida na década de 1990, encontram-se evidências de maior receita ao Estado, sem contrapartida na elevação no gasto social.
Aliás, deve-se destacar que um dos principais argumentos uti- lizados pelos defensores da revisão do papel do Estado, com trans- ferência do patrimônio estatal para o setor privado, era a centrali- zação e o adicional dos gastos nas áreas sociais. Contudo, sem a comprovação dos argumentos favoráveis à privatização inicialmente utilizados, nota-se agora que foi a transferência de receita pública para o setor financeiro, em atendimento do pagamento dos servi- ços do endividamento, o real motivo da privatização. Até agora, os procedimentos adotados para a privatização do setor público per- seguem o ajuste fiscal, que se mostra de caráter permanente, en- quanto a sustentação da estabilidade monetária continuar depen- dendo de altas taxas de juros e, com isso, do endividamento do setor público.
Fonte: SEST, MTE, Bacen. Elaboração própria.
Gráfico 7 – Brasil: evolução dos índices de endividamento público, do
emprego no setor estatal e da carga tributária nacional, 1980-1999
(1989=100,0)
50
70
90
110
130
1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999
Carga Tributária Emprego no setor estatal Endividamento público Investimento
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Por fim, não se pode esquecer que para um país de graves desigualdades regionais e sociais, o predomínio do acesso aos ser- viços básicos a partir da iniciativa privada termina por potencializar ainda mais as diferenças. Como norma de funcionamento do setor privado, bens e serviços são fornecidos toda vez que houver capa- cidade aquisitiva suficiente para cobrir custos e margens de lucros. Em outras palavras, regiões geográficas menos desenvolvidas e parcelas mais pobres da população correm o sério risco de ficar desprestigiadas em investimentos e fornecimento de bens e servi- ços toda vez que não apresentarem suficiente capacidade aquisiti- va. Com isso, a desigualdade regional, social e econômica tende a aumentar ainda mais. A respeito da evolução da questão regional no Brasil ver o seu aprofundamento adiante.
NOTAS:
1 Para avaliar a situação do emprego organizou-se um grande conjunto de informações sobre o setor público, a partir das seguintes fontes de dados: a) Cadastro das Empresas Estatais do Ministério do Planejamento, através da Secretaria de Controle de Empresas Estatais (SEST); b) Relação de Informações Sociais e Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, ambos do Minis- tério do Trabalho e Emprego; c) Banco Nacional de Desenvolvimento Econô- mico e Social (BNDES). Ao todo foram 490 empresas e autarquias analisadas pelo estudo, divididas em três ramos de atividades econômicas: setor produ- tivo estatal, setor financeiro e atividades fins de governo na administração indireta. Deve-se agradecer especialmente a disponibilização de dados por parte do Ministério do Trabalho e Emprego e a sistematização das informa- ções realizada pela Datamec. Ao mesmo tempo, Thiago Ribeiro contribui favoravelmente na produção de uma síntese indispensável do conjunto dos dados, enquanto a professora Sônia Tomazine estimulou a discussão e a pes- quisa sobre o emprego estatal.
2 A literatura que trata do papel do Estado no capitalismo monopolista pode ser encontrada em: Poulantzas, 1978; Mello, 1977.
3 Sobre a ação estatal, ver: Myrdall, 1962; Aglietta, 1979; Shonfield, 1968; Galbraith, 1968.
4 Sobre as transformações do Estado nacional, ver: Altvater, 1995; Kurz, 1995; Fiori, 1999; O’Connor, 1977.
5 Ver especialmente: Hayek, 1983; Friedman, 1982; Crozier, 1987. 6 Sobre a experiência estatal brasileira, ver: Salama e Mathias, 1983; Reichstul e
Coutinho, 1983; Braga, 1983.
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7 Sobre a presença do Estado através da empresas públicas, ver: Martone, 1984; Palatnik, 1979.
8 Pode-se constatar que a partir da segunda metade dos anos 1970 houve uma campanha contra a estatização promovida durante o governo militar. Inicial- mente, ocorreu, em 1974, a eleição, pela revista Visão, de Eugênio Gudim – o pai do atual neoliberalismo, – como Homem do Ano, enquanto, em 1975, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma série de reportagens sobre os caminhos da estatização. Depois disso, desencadeia-se uma campanha conti- da contra a estatização movida por empresários. Mais tarde, estudiosos cons- tataram que não se tratava da defesa de uma economia com menos interven- ção, mas a pressão por participação nas decisões econômicas governamen- tais, especialmente no caso do Conselho de Desenvolvimento Econômico, que era somente formado pelo Presidente da República e ministros. Ver: Ressanha, 1981.
9 Sobre as críticas ao Estado, ver: World Bank, 1997; Pollitt, 1996; Williamson, 1990.
10 A respeito do processo de privatização nas economias avançadas ver: Kikeri et alli, 1992; Boubakri e Cosset, 1998; Megginson et alli, 1994; World Bank, 1996; Nestor e Mahboobi, 2000.
11 Sobre o processo de privatização nas economias em transição, ver: Nivet, 1997; Bolton e Roland, 1992; Dlouhu e Mládek, 1994; World Bank, 1996; Borish e Noël, 1997.
12 Na América Latina, a literatura especializada pode ser encontrada em: Carnei- ro e Rocha, 2000; Stiglitz, 1998; World Bank, 1993; Baer, 1994; Pinheiro e Schneider, 1995.
13 Para melhor análise do processo de privatização brasileiro nos anos 1980, ver: Pinheiro e Landau, 1995; World Bank, 1989; Werneck, 1987; Resende, 1980; BNDES, 1992.
14 Esses valores não levam em consideração os gastos realizados no processo de privatização, nem tampouco referem-se à receita recebida, pois uma grande parte das empresas privatizadas foi financiada, enquanto outras receberam como pagamento moedas podres, ou seja, sem valor de mercado. De acordo com Biondi, um valor superior à receita gerada pela privatização foi gasto com a preparação das empresas para a privatização, perdas de lucros e de imposto de renda, subsídios de juros aos empréstimos para a privatização, entre outros. Sobre isso ver mais em: Biondi, 1999 e 2000.
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Abertura comercial, internacionalização da economia e ocupação
Um segundo mito foi constituído através da adoção das políti- cas neoliberais no Brasil, quando grande parte da população foi levada a acreditar que a abertura comercial e a internacionalização da economia seriam capazes de modernizar o parque produtivo, bem como gerar mais e melhores postos de trabalho. Percebe-se que durante a última década do século XX, a economia brasileira foi fortemente atingida pelo movimento de internacionalização do seu parque produtivo. Em grande medida, constituiu-se um novo modelo econômico, fundado numa estratégia distinta de inserção na economia mundial, a partir da atração de parte da liquidez internacional, com ingresso de recursos estrangeiros responsáveis pela ainda maior desnacionalização do parque produtivo no país.
Ao ter adotado o programa de liberalização produtiva, finan- ceira, comercial e tecnológica, o país terminou expondo à compe- tição internacional quase todo o sistema produtivo, sem paralelo desde 1930. Os resultados foram, na maior parte das vezes, nega- tivos para o conjunto do país, o que permitiu expor mais um mito do neoliberalismo no Brasil.
De um lado, o país ampliou ainda mais o seu grau de vulnerabilidade externa, diante da crescente dependência financei- ra, produtiva, comercial e tecnológica, sem conseguir instalar um novo estágio de desenvolvimento econômico sustentado. Depois da década perdida, evidenciada nos anos 1980, assistiu-se, na década de 1990, à consagração de um desempenho econômico ainda pior.
De outro lado, a liberalização econômica, financeira, produtiva e tecnológica frustrou as expectativas quanto à evolução ocupacio-
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nal. Decorridos dez anos de predomínio das medidas voltadas para a liberalização comercial observa-se um saldo negativo no conjunto das ocupações, considerando-se o decréscimo no nível de emprego nos setores econômicos em que houve a ampliação da presença tanto do capital externo quanto de produtos e serviços importados.
Na maior parte das vezes, os recursos provenientes do exterior concentraram-se nas oportunidades especulativas oferecidas pela própria condução da política macroeconômica, através da prática de elevadas taxas de juros. Além disso, uma outra parte do capital estrangeiro foi constituída de investimentos diretos.
Os investimentos diretos do exterior participaram tanto do pro- cesso de privatização do setor produtivo estatal e dos serviços públicos quanto da aquisição de patrimônio privado nacional. Ao mesmo tempo, novas empresas financeiras e não financeiras se instalaram no país, reforçando o caminho das transferências de recursos ao exterior, especialmente nos setores de serviços, inca- pacitados de gerar excedentes comerciais.
Por conta disso, o novo ciclo de internacionalização da econo- mia trouxe, ao seu modo, implicações não desprezíveis para os trabalhadores. Aqui, no entanto, procura-se analisar tão-somente a situação do emprego industrial, uma vez que os dados existentes são mais efetivos nesse segmento ocupacional. Inicialmente, trata- se de apresentar as principais atualidades do contexto do comér- cio mundial, para, em seguida, discutir a nova inserção econômica brasileira. Por fim, analisa-se o quadro ocupacional que restou no setor industrial decorrente, em parte, do processo de internacio- nalização da economia brasileira.
ATUALIDADES DO SISTEMA MUNDIAL DE COMÉRCIO
Nas duas últimas décadas do século XX, o comércio internacional registrou alterações significativas. Dois foram os principais vetores responsáveis pelas modificações no sistema mundial de comércio.
O primeiro vetor encontra-se associado à constituição de novas instituições mais presentes na dinâmica do comércio internacional. O surgimento da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1993, como resultado da realização das rodadas de discussões promovidas
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desde 1986, no âmbito do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), proporcionou novidades ainda não constatadas desde as pri- meiras tentativas de regulação do comércio internacional, ao final da Segunda Guerra Mundial (Gonçalves, 2000; Rêgo, 1996).
Embora a OMC não deva ser confundida com uma instituição livre- cambista, ela apresenta sinais, cada vez maiores, direcionados a pro- mover a concorrência aberta num mundo marcado por elevadas desi- gualdades produtivas, tecnológicas, trabalhistas e financeiras. Não causa espanto, portanto, reconhecer que os países pobres tornam-se quase irrelevantes no conjunto dos processos de negociações multilaterais, ao passo que a OMC terminou aproximando-se mais dos interesses das economias desenvolvidas e das grandes empresas estrangeiras.
Além da novidade no campo multilateral, com a criação da OMC, também ganharam maior importância os acordos plurilaterais, como no caso da União Européia, Nafta e Mercosul. Mais recente- mente, as idéias voltadas para a constituição da Área de Livre Co- mércio das Américas (Alca) no continente americano passaram a ter maior centralidade nas agendas dos governos.
O exemplo mais avançado de acordo plurilateral tem sido, até o momento, o da União Européia, que além da constituição de políti- cas supranacionais consensadas, vem implementando um sistema monetário regional. No que diz respeito ao Mercosul e ao Nafta, que são experiências bem mais recentes que a União Européia, observa- se, fundamentalmente, que o fluxo de comércio supranacional assu- me o principal sustentáculo dos acordos plurilaterais.
Dessa forma, a queda das barreiras comerciais entre países esti- mula o comércio supranacional, sem levar, entretanto, ao desenca- deamento de um novo padrão de desenvolvimento econômico, espe- cialmente em relação ao Mercosul. A proposta de criação da Alca parece avançar no mesmo sentido, o que facilita ainda mais as nações desenvolvidas.
O segundo vetor responsável pelas principais modificações re- centes no sistema de comércio mundial refere-se à introdução de uma nova agenda temática na dinâmica das negociações entre países. Di- ante do predomínio do receituário neoliberal, houve grande conver- gência na retórica diplomática favorável à liberalização dos mercados, especialmente no âmbito comercial, financeiro, produtivo e tecnológico.
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Nos mais diversos fóruns internacionais em que atuam as agên- cias multilaterais como Banco Mundial, Fundo Monetário Interna- cional e Organização Mundial do Comércio, a defesa da liberdade dos mercados foi defendida não apenas nos discursos, mas pelos programas de ajuda financeira e de cooperação técnica e comer- cial. As posições pró-mercado somente não foram uníssonas no plano internacional devido à posição da Organização Internacio- nal do Trabalho, que se manteve, apesar das pressões em contrá- rio, chamando a aten