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ERNICA, Mauricio; MOLINA, Sergio (2016). A sagração da Portela: música, letra e contexto social na produção de reações estéticas em um samba‐enredo. Per Musi. Ed. por Fausto Borém, Eduardo Rosse e Débora Borburema. Belo Horizonte: UFMG, n.34, p.177‐205. 177 DOI: 10.1590/permusi20163407 ARTIGO CIENTÍFICO A sagração da Portela: música, letra e contexto social na produção de reações estéticas em um sambaenredo 1 The rite of Portela: music, lyrics and social context in the production of aesthetic responses in a sambaenredo Mauricio Ernica Faculdade de Educação da Unicamp, Campinas, São Paulo, Brasil. [email protected] Sergio Molina Faculdade Santa Marcelina, São Paulo, São Paulo, Brasil; Instituto Carlos Gomes, Belém, Pará, Brasil. [email protected] Resumo: Este artigo propõe uma abordagem para o estudo de canções populares que articula a análise sócio‐histórica – que diz respeito às relações da obra com o espaço social – com as abordagens musical e linguístico‐discursiva de sua estrutura interna, identificando e analisando os elementos responsáveis por produzir reações estéticas. Primeiramente, apresentamos referenciais teóricos baseados, sobretudo, nas obras de Antonio Candido, Lev S. Vigotski, Carlos Sandroni, Simha Arom e Godfried Toussaint. Em seguida, analisamos um caso particular: o samba Portela na avenida, de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro, popularizado na gravação de Clara Nunes. Palavraschave: canção; música popular; samba; samba‐enredo. Abstract: This article introduces an approach to popular song that combines socio‐historic analysis – which discusses the relationship between the work and its social environment – with the musical‐linguistic‐discursive aspects of its inner structure. It also seeks to identify and 1 Parte desse texto foi apresentada nos IV èmes Rencontres Internacionnales de l'Intéractionnisme Sociodiscursif, na Universidade de Genebra, em julho de 2013, com financiamento da Fapesp. Processo: 13/13644‐3.

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ERNICA,Mauricio;MOLINA,Sergio(2016).AsagraçãodaPortela:música, letraecontextosocialnaproduçãodereaçõesestéticasemumsamba‐enredo.PerMusi.Ed.porFaustoBorém,EduardoRosseeDéboraBorburema.BeloHorizonte:UFMG,n.34,p.177‐205.

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DOI:10.1590/permusi20163407

ARTIGOCIENTÍFICO

AsagraçãodaPortela:música,letraecontextosocialnaprodução

dereaçõesestéticasemumsamba‐enredo1

TheriteofPortela:music,lyricsandsocialcontextintheproductionofaestheticresponsesinasamba‐enredo

MauricioErnicaFaculdadedeEducaçãodaUnicamp,Campinas,SãoPaulo,[email protected]

SergioMolinaFaculdadeSantaMarcelina,SãoPaulo,SãoPaulo,Brasil;InstitutoCarlosGomes,Belém,Pará,[email protected]:Esteartigopropõeumaabordagemparaoestudodecançõespopularesquearticula

aanálisesócio‐histórica–quedizrespeitoàsrelaçõesdaobracomoespaçosocial–comas

abordagensmusicalelinguístico‐discursivadesuaestruturainterna,identificandoeanalisando

os elementos responsáveis por produzir reações estéticas. Primeiramente, apresentamos

referenciaisteóricosbaseados,sobretudo,nasobrasdeAntonioCandido,LevS.Vigotski,Carlos

Sandroni, Simha Arom e Godfried Toussaint. Em seguida, analisamos um caso particular: o

sambaPortelanaavenida,deMauroDuarteePauloCésarPinheiro,popularizadonagravação

deClaraNunes.

Palavras‐chave:canção;músicapopular;samba;samba‐enredo.

Abstract:This article introduces an approach to popular song that combines socio‐historic

analysis–whichdiscussestherelationshipbetweentheworkanditssocialenvironment–with

themusical‐linguistic‐discursive aspects of its inner structure. It also seeks to identify and

1PartedessetextofoiapresentadanosIVèmesRencontresInternacionnalesdel'IntéractionnismeSocio‐discursif,naUniversidadedeGenebra,emjulhode2013,comfinanciamentodaFapesp.Processo:13/13644‐3.

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ERNICA,Mauricio;MOLINA,Sergio(2016).AsagraçãodaPortela:música, letraecontextosocialnaproduçãodereaçõesestéticasemumsamba‐enredo.PerMusi.Ed.porFaustoBorém,EduardoRosseeDéboraBorburema.BeloHorizonte:UFMG,n.34,p.177‐205.

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analysetheelementsresponsiblefortheproductionofmusicalaestheticresponses.Firstly,the

work introduces a series of theoretical frames of reference based on theworks of Antonio

Candido,LevS.Vigotski,CarlosSandroni,SimhaAromandGodfriedToussaint.Secondly,wewill

analyse a particular case: the samba Portela na avenida byMauro Duarte and Paulo César

Pinheiro,popularizedinrecordingbyClaraNunes.

Keywords:song;Brazilianpopularmusic;samba;samba‐enredo.

Dataderecebimento:06/03/2016

Datadeaprovaçãofinal:06/04/2016

1‐Acançãocomoobjetodeestudo

Objeto semiótico de estrutura complexa, a canção popular é formada pela interconexão de

estruturasmusicaiseverbais.Compostaeveiculadanointeriorderelaçõesecoerçõesdeuma

determinadaestruturasocial,acançãopopularmuitasvezesvolta‐seaelasinfluenciando‐as,

por exemplo, por meio da reação estética e por meio da circulação e validação de certas

representações sociais. Como acontece com as demais manifestações artísticas, as canções

possuem, ainda, a faculdade de sobreviver ao contexto histórico em que foram produzidas,

assumindosentidoemoutrasrealidades.

ApartirdaanálisedofonogramadosambaPortelanaavenida,deMauroDuarteePauloCésar

Pinheiro,nagravaçãodeClaraNunesde1981,estetrabalhotemporobjetivoaproposiçãode

elementosteóricosparaumaabordagemdacançãoquearticuleaabordagemsócio‐histórica–

quetratadasrelaçõesdacançãocomoespaçosocial–comasabordagensmusicalelinguístico‐

discursivadesuaestruturainterna,identificandoeanalisandooselementosresponsáveispor

produzirreaçõesestéticas.

Inicialmente, serãoexpostas referências teóricasbaseadasnasobras, sobretudo,deAntonio

CANDIDO (1976, 1993, 1995, 2003), de VIGOTSKI (1925a, 1925b, 1934) e de autores

vinculados à tradição vigotskiana (CLOT, 2002, 2003; BRONCKART, 1999). Em seguida

apresentaremosferramentasparaumaanálisemusicaldacanção,quesubsidiaráaanáliseda

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relaçãoletra‐música.Paraaanálisemusical,utilizaremosostrabalhosdeSANDRONI(2001),

SimhaAROM(1991)eTOUSSAINT(2013),que,associados,contribuemparaaconstruçãode

umaabordagemquecontempleosdiferentesexpedientesrítmicosqueamúsicapopularpode

congregar.

2‐Umaperspectivasociológicaqueconsideraaestruturainterna

dacanção

Nessa abordagem, a análise das canções procura levar em contadois aspectos centrais. Em

primeiro lugar, assume‐se que a obra se constitui pela apropriação e transformação de

elementosdocontextoexternoemelementosdasuaestruturainterna,tantonoquedizrespeito

àsuaformaquantoaoseuconteúdo(CANDIDO,1976).Emsegundolugar,aobrapodetera

capacidadedeproduzirsentidoeefeitoestéticoalémdocontextodesurgimento,nãosendo

necessariamente“datada”(VOLOCHINOV,1981).Aarticulaçãoentreessesdoisaspectosnos

permiteveroacervodecançõesdeumdadogruposocialcomoumaespéciedepatrimônio

histórico‐culturalpeloqualseproduzemereproduzemrepresentaçõessociaisequeéportador

depossibilidadesdeformaçãodaspessoasnointeriordeumacertatradição(CANDIDO,1995,

2003;VIGOTSKI,1925b).

SeguindoocaminhoabertoporAntônioCANDIDO(1976),recusa‐seaquiadicotomiaentrea

análise externa e interna da obra de arte. As abordagens externas, ou contextualistas,

consideramasobras,situadasnarealidadeemquesurgem,comoobjetosquesópodemexistir

porque foram criados por um autor, que temuma biografia, que vive sob certas condições,

submetidoaconstrangimentosedeterminações,queserelacionacomumcertocampoartístico

e com um determinado público. Contudo, tais abordagens têm alcance restrito por não

conseguiremexplicaraobracomoobjetoqueexisteemsiequeinstauraumarealidadeprópria

–arealidadeartística.

Asabordagens internas, por sua vez, tendem a tomar a obra em simesma, como estrutura

significante isolada do contexto em que foi criada e tendem a não considerar suas

consequênciasparaaconsolidaçãodesentidossobreavidasocial.Consideram,portanto,aobra

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comoumarealidadeemsiedesenvolveminstrumentaisadequadosàanálisedesuaestrutura

interna.Contudo,tambémtêmumalcanceanalíticorestritopornãopoderemexplicarcomoas

obrassurgemsocialmente,comoserelacionamcomseutempo,quaissentidosproduzempara

contribuir com a vida social, quais possibilidades de formação humana têm e comopodem

chegarafazersentidoemoutroscontextosquenãoaquelesemquesurgiram.

Antônio CANDIDO (1993) se propõe a superar essa dicotomia ao analisar a formação da

literaturabrasileirapeloconceitodesistemaliterário.Seuobjetivoécompreenderaformação

históricadeumaestruturacomcontinuidadenotempoequeéconstituídaporautores,obrase

público. De algummodo, ao levar em conta relações de poder entre agentes e as posições

resultantes em um sistema de relações, seu conceito de sistema literário se aproxima do

conceitodecampocunhadoporBOURDIEU.Esteúltimotambémfoicriadoparadarcontada

superação dessa mesma dicotomia, destacando uma esfera social intermediária, entre as

macroestruturaseabiografiadosautores,queseriadeterminanteparaconformarasobrasde

arte, as trajetórias dos artistas e suas relações com o público (BOURDIEU, 2007, 2011;

CHAMPAGNE;CHRISTIN,2012).

Apartirdessesautores,assumimosnestetrabalhoque,nacomposiçãodeumaobranoquadro

das relações definidas em um dado campo artístico, são mobilizados conteúdos e formas

disponíveissocialmente.Assim,aspectosdavidasocialexterioresàobrasãorecriadoscomo

elementosdesuaestruturainterna.Essaestruturainternatemumalógicaprópriaeinstaura

umaordemderealidadesingular,especificamenteartística.

A superação da dicotomia externo/interno pode ser construída postulando‐se a relativa

autonomiadasobrasemrelaçãoaoseucontextodeproduçãoecirculaçãoimediato.Éporsua

capacidadedesobreviveraocontexto,fazendo‐seduradouras,queasobrascontribuiriampara

criarumpatrimônioculturaldetipoparticular,marcadopordeterminadasformasdedescrever,

interpretarevalorararealidadesocial,oque,porsuavez,contribuiriaparadifundirformas

específicasdeperceberepensaromundoeformasdesocializaçãodasemoções.

VOLOCHINOV(1981),emtextocélebreemqueanalisaalinguagemnaarteenavida,sustenta

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que, no curso da vida cotidiana, a compreensão de um discurso depende de uma série de

elementos de contexto partilhados pelos interlocutores. Na obra de arte, isso não ocorre

igualmente;parasercompreendida,elaprecisainteriorizarreferênciascontextuais,recriando‐

asemseuinterior.Porisso,podesedescolardoseucontextodeprodução,produzindosentido

e efeito estético para além dele. Por decorrência, podemos pensar que a maior ou menor

dependência de elementos exteriores, contextuais, é que faz uma obra de arte sermais ou

menosenraizadaemummomentohistóricoouemumapráticasocial.

A formação histórica da canção popular exigiu sua autonomização em relação às situações

imediatas de produção e apropriação. As músicas vinculadas a celebrações (profanas ou

religiosas)não tinhamoscontornosdosgênerosemergentesdocancioneirourbanoeeram

ligadasaconteúdos,pessoaseintrigasdoseucontextoimediatoedogrupoqueaspraticava.

Ali,mediavamrelaçõessociais.Aoseremtransformadasparaoregistroemfonogramaseao

circularem pelos modernos meios de comunicação, inicialmente o rádio e o disco,

posteriormente a TV, essas músicas, de mediações de relações sociais, tornaram‐se obras

relativamenteautônomasdocontextoimediatodeveiculação(MARTINS,1975).

Dadoqueascançõespodemsedesprenderdocontextoimediatodeproduçãoecirculação,elas

podem integraropatrimônioartísticodeumgrupo.Assim,umavezquecontribuemparaa

formação do pensamento e da sensibilidade de novas gerações, estabelecem continuidades

entreelaseasgeraçõespassadas.Tambémporessarazão,ocancioneiroconstituiumimenso

acervo documental sobre a visão de mundo e o patrimônio estético de grupos que não

necessariamentedeixaramdocumentosescritossobreisso.

Partindodapremissadeque,noBrasil,astradiçõesculturaisletradassãopoucodifundidas,

José Miguel WISNIK, em depoimento ao filme A palavra en‐cantada (SOLBERG, 2008),

argumenta que amúsica popular ocuparia aqui um papel que a poesia e as artes letradas

exerceramemoutrasculturas.

Acho que a literatura, quer dizer, a cultura letrada nunca se implantoucompletamentenoBrasil(...).Passou‐semuitodiretamentedosmeiosoraisprorádioepratelevisão,prosmeiosaudiovisuais.Eusinto(...)oquantoamúsicapopularpermitevocêestabelecerumcontatoentrealiteraturaeorepertório(...)[dasnovas] gerações. Criou‐seuma situaçãoquenão existe propriamente empaísnenhumdessejeito,queéumacançãopopularfortíssima,queganhouuma

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capacidade(...)decantarparaauditórios imensose levarpraessesauditóriospoesia de densa qualidade, de sutileza, de riqueza (...) (WISNIK citado porSOLBERG,2008,20’15’’‐21’40’’).

3‐Umaabordagemquelevaemcontaareaçãoestéticageradapelacanção

Umoutroelementoaserconsideradonaanálisedacançãoéaexperiênciaestéticaqueocorre

quandoalguémseapropriadeumaobradearteeasconsequênciasdessaexperiênciaparao

sujeito. Aportes importantes para desenvolver esse ponto estão presentes tambémna obra

Antonio CANDIDO (1995, 2003). Essas ideias, embora elaboradas para a análise da obra

literária,podem,porsuageneralidade,serempregadasparaaanálisedacanção.

Oautorespecificatrêsfunçõesdaarte,queseinter‐relacionam.Aprimeiraéadesatisfazera

necessidadehumanadefabulação,deconstruçãoderealidadesimaginadasquepermitemàs

pessoasviverintensamenteexperiências“outras”emrelaçãoaoordinário.

Asegundaéafunçãodeformaçãohumana,assimdefinida:

As criações ficcionais e poéticas podem atuar de modo subconsciente einconsciente, operando uma espécie de inculcamento que não percebemos.Querodizer com issoque camadasprofundasdenossapersonalidadepodemsofrerumbombardeiopoderosodasobrasquelemosequeatuamdemaneiraquenãopodemosavaliar.Talvezoscontospopulares,ashistorietasilustradas,osromancespoliciaisoudecapa‐e‐espada,asfitasdecinema,atuemtantoquantoaescolaeafamílianaformaçãodeumacriançaedeumadolescente(CANDIDO,2003,p.82).

Ouainda:

Os valores que a sociedade preconizará, ou que considera prejudiciais, estãopresentesnasdiversasmanifestaçõesdaficção,dapoesiaedaaçãodramática.Aliteratura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendopossibilidades de vivermos dialeticamente os problemas (CANDIDO, 1995,p.243).

Aoabordarosconflitosvalorativosexistentesnasobrasdearte,oautorafirmaoseguinte:

[Há] conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica(segundoospadrõesoficiais)easuapoderosaforçaindiscriminadadeiniciaçãonavida,comumavariadacomplexidadenemsempredesejadapeloseducadores.Elanãocorrompenemedifica,portanto;mas,trazendolivrementeemsioquechamamos o bem e o que chamamos omal, humaniza em sentido profundo,porquefazviver(CANDIDO,1995,p.85).

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Além das funções de satisfazer a necessidade universal de fantasia e de contribuir para a

formação da personalidade, CANDIDO destaca uma terceira função: produzir conhecimento

sobreomundoesobreoser,oqueserelacionadiretamentecomasrepresentaçõesdomundo

edohumanopresentesnasobras.

O autor continua: a estrutura da obra é fundamental para que ela possa exercer suas três

funções.

Quandoelaboramumaestrutura,opoetaouonarradornospropõemummodelodecoerência,geradopelaforçadapalavraorganizada.Sefossepossívelabstrairo sentidoepensarnaspalavrascomotijolosdeumaconstrução,eudiriaqueesses tijolos representam um modo de organizar a matéria, e que enquantoorganizaçãoelesexercempapelordenadordenossamente.Querpercebamosclaramenteounão,ocaráterdecoisaorganizadadaobraliteráriatorna‐seumfator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente esentimentos;eemconsequência,maiscapazesdeorganizaravisãoquetemosdomundo(CANDIDO,1995,p.245).

Emsuma,aestruturadaobraéimportanteparaquepossamosorganizarprimeiramenteanós

mesmos e, depois, omundo; é importante para que possamos produzir sentidos sobre nós

mesmosesobreomundo.Comoveremos,nocasodacanção,esses“tijolos”quecompõema

estruturadaobrapodemserelementosdenaturezamusicalouverbale tambémelementos

resultantesdasdiversasformasdeenlacepelasquaissomepalavrapodemseamalgamar.

EssastesesdeCANDIDOsão,globalmente,compatíveiscomasdeVIGOTSKI2,paraquemnos

formamoscomopessoasdessaoudaquelasociedadeaointernalizarmosenosapropriarmosde

relaçõessociais–deinstrumentosderegulaçãosocialqueexistiamantesnomeiosocial–que,

ao serem transferidas para nosso interior, se tornam componentes estruturantes de nosso

psiquismo.

Esses recursos sociaisdosquaisnosapropriamospermitemqueexperiênciasvividas sejam

transformadasegeneralizadasemcategoriassociais.Aconsciênciadooutrotorna‐seelemento

daconsciênciadesie,poresseprocessodegeneralizaçãodeexperiênciasporcategoriassociais,

2RemetemosoleitorparaERNICA(2006)paraumadiscussãomaisdetalhadadessasideias.

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apessoapodetomarasiprópriacomoobjetodesuaação,processopeloqualelasetornasujeito

deação.Poressascategorias,aspessoaspodem,comsucessorelativo,tomaromundocomo

realidadejávistaepodemfazerusodeseusprópriosrecursospsíquicosefísicostendoemvista

a satisfação de suas necessidades, a auto orientação de suas ações e a realização de suas

potencialidades.

Porém,esseprocessodeconstruçãosocialdopsiquismoedocomportamentonãoabarcatodas

as experiências vividaspelo sujeito.No cursodavidaque se realiza a cadadianascem, em

estado de potência,muitas outras vidas possíveis e as estruturas socialmente formadas de

nosso psiquismo deixam de fora um conjunto de experiências que não puderam ser

formalizadas,nãopuderamganharformasocial.Portanto,avidaquerealizamosacadadiaé

maisrestritadoqueelapodeser.Emsuaspalavras:

Nunca se pode admitir que essa equilibração se realiza até o fimdemaneiraharmoniosaeplena, [pois] semprehaverá certasoscilaçõesdanossabalança,semprehaverácertavantagemdapartedomeiooudoorganismo.(...)Sempreexistem estímulos de energia que não podem encontrar vazão livre paraequilibrarnossabalançacomomundo(...).Bastaolharparaumacriançaeseperceberáquenelahámuitomaispossibilidadesdevidadoqueaquelasqueserealizam(...).Onossosistemanervosolembraumaestaçãoparaaqualconfluemcincoferroviasmasdaqualsóporumahápartida;decadacincotrensquealichegam,apenasumconsegueirromperparafora,eassimmesmodepoisdeumaluta cruel, pois os outros quatro permanecem na estação. Assim, o sistemanervoso lembra um campo de batalha permanente, e nosso comportamentorealizadorepresentaumaínfimapartedoqueexisteemformadepossibilidade,quefoiacionadomasnãoencontravazão(VIGOTSKI,1925b,p.311‐312).

Avidarealizadarespondeapenasaumapequenaparceladavidaquepodeservivida.Avida

possívelenãorealizadaémuitomaisvastaqueavividaporqueorealdenossavidaécomposto

também pelo que não podemos fazer, pelo que não conseguimos realizar, pelo que nos é

sonegado, pelo que nos é impedido, por nossas hesitações, pelo não que dizemos em cada

escolha,peloquesópodemosfazercomoauxíliodeumoutro,peloqueatéchegamosafazer

masquenão conseguimos fazerdenovo, voluntária e autonomamente (CLOT, 2002; 2003).

Enfim, todo esse universo fragmentado, disperso e não formalizado constitui um universo

residualdeexperiênciaspossíveis,muitoemboranãorealizadas.

Odesenvolvimentopodeserpensado,portanto,comooprocessopeloqualaspessoaspassam

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aincorporar,noseupresente,comopartedonovovivido,umacervodeexperiênciaspassadas

queguardavamnovaspossibilidadesdeviver,desdequegeneralizadasemcategoriassociais3.

Sobreopapeldaobradeartenodesenvolvimento,VIGOTSKIafirma:

Essapartenãorealizadadavida(...)devesereliminadadealgumamaneira.Oorganismofoicolocadoemcertoestadodeequilíbriocomomeio,énecessárioregularabalançacomoénecessárioabriraválvulanacaldeiraemqueapressãodovaporsuperaaresistênciadoseucorpo.Eisqueaarteé,pareceser,oveículoadequadoparaatingiresseequilíbrioexplosivocomomeionospontoscríticosdonossocomportamento.Hámuitotemposeexternavaaideiasegundoaqualaarteparececompletaravidaeampliarassuaspossibilidades(VIGOTSKI,1925b,p.313).

Compreende‐se,dessemodo,porqueaartepermitequeasemoçõesinconscientesganhemum

meiodeexpressãopormeiodeformassociais.Paraoautor,namedidaemquesãoexprimidas

e transformadaspela emoçãoartística, as emoções inconscientespodemganharuma forma

socialeintegrarasfunçõespsicológicassuperioresdosujeito.Énestesentidoqueeleafirma

que

(...) a arte é uma técnica social do sentimento, um instrumento da sociedadeatravés do qual incorpora ao ciclo da vida social os aspectosmais íntimos epessoaisdonossoser.Seriamaiscorretodizerqueosentimentonãosetornasocialmas,aocontrário,torna‐sepessoal,quandocadaumdenósvivenciaumaobradearte, converte‐seempessoal semcom issodeixardecontinuarsocial(VIGOTSKI,1925b,p.315).

Seéassim,podemosdizerqueossentimentosquesãoexperimentadosesocializadospelaarte

são projetados em direção a novas ações. “A arte é antes uma organização do nosso

comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez

nuncavenhaaconcretizar‐se,masquenoslevaaaspiraracimadanossavidaoqueestápor

trásdela”(VIGOTSKI,1925b,p.315).

Aarte,aorealizaressa“descargadeenergianervosa”,fazcomqueessasemoçõespassemaser

mediadaspelopensamentoverbal;logo,emoçõesqueosujeitopodetomarparasimesmo,pode

colocarsobseucontroleecomomeioparanovasações.Enfim,“asemoçõesdaartesãoemoções

inteligentes. Em vez de se manifestarem de punhos cerrados e tremendo, resolvem‐se em

imagensdafantasia”(VIGOTSKI,1925b,p.167).

3Paraumadiscussãomaisdetalhada,cf.ERNICA(2008).

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Asemoçõessuscitadasesocializadaspelaarteseresolvemnaapropriaçãodaarteenãogeram

umaaçãoimediata.Comonossonhos,nosdevaneiosenasfiguraçõesdafantasia,asemoções

mobilizadaspelaartenão resultamemações sobreomundoexterior.Nasobrasdearte, “a

descargadeenergianervosa,queconstituiaessênciadetodosentimento”(VIGOTSKI,1925b,

p.167)serealizademodoopostoaohabitual,retendosuamanifestaçãoexternaeconservando

nosujeitoumaforçaexcepcional.Oautorafirma,porexemplo,queamúsicamilitarnãoproduz

ação,mas induz a um impulso vago de agir que pode sermobilizado por certas estruturas

sociais.

4‐Aproduçãodareaçãoestética:forma,conteúdoecatarseAretençãodamanifestaçãodasemoçõesemaçõesexteriorizadasaconteceporqueaartefaz

conviver estímulos contraditórios, o que paralisa a ação sobre o mundo que poderia ser

decorrente.FazendoumareferênciaaHamlet,VIGOTSKIafirmaque“écomoseatragédianos

levasseapraticarmovimentossimultâneosparaadireitaeaesquerda,levantareabaixarao

mesmotempoumpeso,écomoseexcitasseaomesmotempoummúsculoeseusantagonistas”

(VIGOTSKI,1925b,p.320).

Portanto,comoaartepodegeraracoexistênciadeplanosemocionaisquesecontradizem,ela

podetambémfazercomqueumplanointensifiqueenegueooutro.Assim,aartecriariaum

acúmulo de energia que seria represada progressivamente à espera de alguma forma de

expressão:aproduçãodefigurasdaimaginação.

Toda obra de arte encerra forçosamente uma contradição emocional, suscitasériesdesentimentosopostosentresieprovocaseucurto‐circuitoedestruição.A isso podemos chamar o verdadeiro efeito da obra de arte, e com isso nosaproximamosemcheiodoconceitodecatarse(VIGOTSKI,1925b,p.269).

Dessaperspectiva,aartedestróiastensõesemocionaisquemobilizouerepresoupormeioda

liberaçãodaenergiapsíquicaquedefineasoluçãocatártica4.Mascomoseproduzacatarse?

4RecuperaremosessaquestãonaanálisefinaldePortelanaavenida,quandoproporemossoluçõesparaoembateentreasnoçõesde“estado”e“processo”noqueconcerneaoencaminhamentodotempo.

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Para VIGOTSKI, pelo conflito entre conteúdo e forma. Em Psicologia da arte, o conteúdo é

definidocomorepresentaçõesqueforammobilizadaspeloartistaparaadefiniçãodomundo

queéconstruídonaobra.AformaédefinidaporVIGOSTSKIcomoadisposiçãodesseconteúdo

temáticosegundoasleisdaconstruçãoartística.Oconteúdomobilizaemoçõeseaformaordena

etransformaessasemoçõesaocolocaroselementosdoconteúdoemrelação.

Oconteúdopodeserdescritoemunidadesepodeserdispostonumatemporalidadelinearde

acontecimentos. Os protagonistas podem ser isolados; os eventos a eles associados,

organizadoscronologicamente.Dessemodopodemosverelementospotencialmentecriadores

detensão,masnãoastensõesentreosplanosdeemoçõesemuitomenosasoluçãocatártica.

Nocasodacanção,esses“protagonistas”podemserpersonagensdasnarrativasdaletra,mas

também,emtermosestritamentemusicais,podemsermotivosmelódicos,célulasrítmicas,etc.

Aformatambémpodeterelementospotencialmentecriadoresdetensão,masemsieporsi

mesmanãorealizaastensõesdaobranemcriaassoluçõescatárticas.É,portanto,narelação

conflituosaentreasemoçõessuscitadaspeloconteúdoeassuscitadaspelaformaqueaobrade

artepodeedevesercompreendida.

A forma é considerada o princípio ativo porque faz viver, intensifica, apaga e destrói as

impressõesqueosacontecimentosdeixamnoespectador.Suaorganizaçãotemporaléadofluxo

eadaduraçãodoseventostalcomodispostosnomundoartístico.Aforma,dessemodo,chama

àrealizaçãoasemoçõessuscitadaspeloconteúdo,masasretarda.Essemovimentoativoda

formasuscitaentãoemoçõesquecontradizemaquelasquesãodespertadaspeloconteúdo.“A

leidareaçãoestéticaéumasó:encerraemsiaemoçãoquesedesenvolveemdoissentidos

opostoseencontrasuadestruiçãonopontoculminante,comumaespéciedecurto‐circuito”

(VIGOTSKI,1925b,p.270).

ÉporissoentãoqueVIGOTSKIfaladaleidadestruiçãodoconteúdopelaforma.Aofinal,os

movimentosgeradospelaformafazemcomque,apartirdasemoçõesvividasatéoinstanteda

catarse, sejam criadas outras emoções, distintas das anteriores. O que foi vivido como

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brutalidadepodesertransformadonumlevealento,comonoconto5analisadopeloautor,eo

quefoirelutânciaeadiamentodaresolução–natramadeHamlet–setransformanoacasoque

geraasériedemortesnãoplanejadasdodesfechodatragédia6.

5‐Fricçõesecomplementariedadesrítmicas:Portelanaavenida

Asreferênciasteóricasacimapodemsermobilizadasparaaanálisedacançãopopular.Como

vimos,porsetratardeumobjetosemióticohíbrido,nacançãohátensões7geradorasdereação

estética, tanto no interior de suas estruturas verbais e musicais quanto nas estruturas

produzidaspelosdiferentesenlacespossíveisentreasduaslinguagens.

O samba é um gênero que se definiu no Brasil forjado, em linhas gerais, pela fricção de

propriedades rítmicas de ascendência africana e de propriedades melódico‐harmônicas de

origemeuropeia.Diversosautores (TINHORÃO,1998;SEVERIANOeMELLO,1997;MOURA,

1983; VIANNA, 1999) apontam as primeiras décadas do século XX como decisivas para a

formaçãodosambaurbano,queteriasidoredefinidoapartirdeumcampoartísticocriadono

Riode Janeiro.Apartirdosanos1930,quandoosambaurbanoenfimalcançasuaprimeira

maturidade,subgênerosvãosendoelaboradosemfunçãodepráticassociaisespecíficasede

determinadoselementosestruturais.

DesdequeocampomusicalseconsolidounoRiodeJaneiro,pelamediaçãodaindústriacultural

edepráticascomoocarnaval,obrasforamcompostasparahomenagearecelebrarasglóriasde

regiõesegruposdacidade,porvezesdandoorigemadisputaspelaprimaziadosambaedos

sambistasdeumlugarsobreosdeoutro8.

5Cf.VIGOTSKI(1925b),especialmenteocapítulosete,dedicadoàanálisedoconto“Levealento”,deIvanBúnin.

6Cf.VIGOTSKI(1925b),especialmenteocapítulooito,dedicadoàanálisedeHamlet.Cf.tambémVIGOTSKI(1917).

7Otermo“tensão”éutilizadonesteartigoparanomearosconflitos,nointeriordeumaobra,produtoresdereaçãoestética, e não em sentido específico, referindo‐se a notas que estabelecem tensão harmônica, ou a algumdeterminadoacordedetensãoemumdeterminadocontextoharmônico.

8Algumasbatalhasmusicaistravadasdesdeosanos1920tornaram‐secélebres,comoaprotagonizadaporSinhôeocírculoaoqualpertenciaPixinguinhaoucomoaprotagonizada,nadécadaseguinte,porNoelRosaeWilsonBatista.

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Emfinsdosanos1930,jácomosambaredefinidocomosímbolonacional,surgeosubgênero

queficariaconhecidocomosamba‐exaltação,comletrasorientadasparacantareengrandecer

anação9.Nosanos1940,comosambaconsolidadocomogêneroporexcelênciadocarnaval

carioca e com os desfiles já bastante regulados e orientados para competição, um outro

subgênero,osamba‐enredo,éoficializadocomoexigênciaparaasescolasseapresentaremna

passarela.

Osanos1950foramadécadadosamba‐canção(emmeioaograndesucessodobaiãodeLuiz

Gonzagaedobolero),dasprimeirasexperiênciasdesamba‐jazz(JohnnyAlf)edalentagestação

deumoutrosubgêneroquemaistardeseautonomizaria,abossa‐novadeTomJobime João

Gilberto. Assim, nos anos 1960, o campo damúsica popular brasileira seria composto por

diversosgêneros,aindaquemuitosfossemoriginalmenteligadosaosamba.

Nosanos1970,aomesmoquetempoemqueseverificaumamaiordiversificaçãodegêneros

musicais,porexemplo,comainfluênciadorockedasoulmusic,há,àesquerdaeàdireitado

espectropolítico,fortesmovimentosnacionalistasquereforçariamosambaeocarnavalcomo

símbolos nacionais. Acontece, nesse período, a retomada e a celebração de sambistas

esquecidos–comoCartola–eareivindicaçãodafiliaçãoaosambaforjadonosanosde1920e

1930porartistasquesurgiramvinculadosàBossaNova–ChicoBuarqueé,nesteaspecto,um

caso emblemático. Também nessa década, são compostos sambas que tematizam as

transformaçõesnocampomusicalenoprópriogênero,taiscomoArgumento,dePaulinhoda

Viola, sucesso em 1975 (SEVERIANO eMELLO, 1999, p.216), eNão deixe o sambamorrer,

sucessoem1976na interpretaçãodeAlcionecompostopordoisartistaspoucoconhecidos,

EdsonGomesdaConceiçãoeAloísioSilva(SEVERIANOeMELLO,1999,p.222).

OsambaPortelanaavenida,deMauroDuarteePauloCésarPinheiro,lançadoporClaraNunes

nofinalde1981epopularizadonocarnavalde1982(SEVERIANOeMELO,1999,p.294‐295),

foicompostoe interpretadoporartistasvinculadosaessarevalorizaçãodosambanosanos

9AquareladoBrasil(1939),deAryBarroso,éumsamba‐exaltaçãoexemplar.

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1970epode ser inscritona tradiçãodos sambasque celebrambairrosde sambistase suas

escolasdesamba–jáentãoerigidosàcondiçãodesímbolosnacionais.

Analisaremosumfonogramaespecíficodessacanção,ooriginaldeClaraNunes.Inicialmente,

abordaremos elementosmusicais que, posteriormente, serão relacionados à análise de sua

letra. Nessa canção, de modo contundente, verifica‐se o embate gerador de tensões entre

propriedadesrítmicasepropriedadesmelódico‐harmônicascaracterísticodosamba.Formado

musicalmenteporestruturasgeradorasdeestímuloscontrários,osambaproduzemoçõesde

difícil classificação que, não raro, podem ser nomeadas por binômios antitéticos como

“melancoliaeufórica”,“alegrianostálgica”,“tristeesperança”.

Aconduçãorítmicadosamba,assimcomoacontecedemaneirageralnamúsicapopularurbana,

seapresentanormalmenteorganizadaemciclosdepoucos compassosqueestabelecemum

estadoderepetição.Écomoseessaconduçãorítmicadosambapreservasse,ainda,resquícios

damúsicaritualafricanadequedescende.Arepetiçãodosciclosrítmicos,assim,criaumestado

depermanênciaqueparecesuspenderapassagemdotempo,poisnãoháainserçãodenovos

elementos significativos,mas sim uma situação geradora de um contínuo presente. Nela, a

solução catártica se dá pelo acúmulo de energia que é mobilizada progressivamente na

repetiçãodosciclosrítmicos,atéopontoemquearetençãodessaenergiaemocionalnãopode

maissercontida.

Amelodia e a harmonia, por sua vez, são regidas pelo sistema tonal de origem europeia, e

sugeremumatrajetóriamaislinear,comaapresentaçãoeoestabelecimentodatônicacomo

centro gravitacional ao qual se segue um afastamento, pela exploração de outros graus da

escala, até se alcançar a tensão na dominante, que, “resolvida”, recupera o centro inicial

concluindoumdeterminadoperíodo.Amelodia,especificamente,tendeafuncionarcomoguia

de uma narrativa, instaurando ummovimento horizontalmuitas vezes atrelado à narrativa

verbal,incorporandonovasinformaçõesetrilhandonovoscontornosàmedidaquepercorrea

linhadotempoecontaumahistória.

Ouseja,alémdeaconduçãodabaserítmicaeamelodia‐harmoniaseremorganizadasemciclos

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de extensãodistinta, hápor trásdessedesencaixeumadiferençadenaturezaquepode ser

entendidacomosituaçõesde“estado”(umaconfiguraçãorítmicacircularondeoprópriociclo

funcionacomoumaespéciedecentro,umequivalentedotomparaapropriedadealtura)ede

“processo”(comcentro‐afastamento‐centro).

Escrevendosobreacircularidadetemporalemmúsicasmodais,comoéocasodamúsicada

Áfricasubsaariana,JoséMiguelWisnikexplica:“(...)issosefazatravésdoenvolvimentocoletivo

eintegradodocanto,doinstrumentaledadança,atravésdasuperposiçãodefigurasrítmicas

assimétricasnointeriordeumpulsofortementedefinido(...)”(WISNIK,1989,p.71).

O samba‐enredo é um subgênero do samba que tem como característica um discursomais

extensoqueopadrão.Nele,ocontrasteentreoscicloscurtosdapercussãoeaemissãoalongada

dasvogaisnamelodiadavozsefazmaisevidente.EmPortelanaavenida,nagravaçãodeClara

Nunesde1981,podemosobservarlogonosprimeiroscompassos.

Figura1:Portelanaavenida–ritmos–c.3‐5

Essailustraçãorepresentaoqueouvimosnofonogramaapenasdeformaesquemática,nãose

tratandoprecisamentedeumatranscrição.Imaginandoumcontextoquepoderiasernotado

em 2/4, verifica‐se que as articulaçõesmais evidentes da percussão se dão no âmbito das

semicolcheias,enquantoqueoritmodamelodiaagrupa, jánessaprimeirapalavra(Portela),

duas,seisedezsemicolcheiasporsílaba,respectivamente(Por–te–la).Oritmoescolhidopara

representaramelodiaéaquioquepoderíamoschamarde“modelopresumidoparavariações”.

Funcionacomoumadivisãotácitasubjacenteàsmodificaçõesqueocantorprovavelmentefará,

acadavezdeumamaneira,massemprecomovariaçãodessemodelo,quasesempre,oculto.Os

ataques nas semicolcheias pulsadas podem ser, portanto, antecipados ou deslocados no

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instanteimediatodaperformance.

Secomdoiscompassos10aessênciadociclodaconduçãorítmicasecompleta,ocaminhoda

melodia, por sua vez, tomará inicialmente 14 compassos em sua primeira exposição (o

segmento “a1”na figura2a seguir)11.Esses14primeiroscompassossãorepetidos (mesma

harmonia)comamelodiaestendendo‐seatéaquintadoacorde,anotaLáemRémenor(a2)12.

Nasequência,aindanaSeçãoA,hádeumnovoperíodode20compassos(b)13queexploraa

região do quarto grau (Sol menor). Os dois primeiros segmentos de 14 compassos são

retomadoscomvariaçõesmelódicasedeletra(a1’ea2’)14.NaSeçãoBopercursodamelodia

abarca28compassos15.

Figura2:SeçõesdePortelanaavenida16

10NofonogramadeClaraNunesépossívelnotar,jánaintroduçãoentreoscompassos3e4,umcicloqueseráareferênciapadrãoparaaconduçãodocavaquinhonacanção.

11Versos1‐4.Verletracompletanaseção6.

12Versos5‐8.

13Versos9‐13.

14Versos14‐17e18‐21,respectivamente.

15Versos22‐28.

16NaFigura2, cada traçoequivaleaumcompasso (as frasesmusicais seorganizammuitasvezesemquatrocompassos,oqueequivale,nafigura,aumquadrado).Estemodeloderepresentaçãográficadaforma–emquecadatraçoequivaleaumcompasso–éamplamenteutilizadopeloProf.RicardoBreimhácercade30anos.

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Explorandoumpoucomais a complexidade rítmica irradiadapela tensão entre a condução

percussiva da base e a melodia, podemos verificar que, por suas próprias características

estruturais,aideiadedivisãoemcompassosnomodelodaescritamusical,criadanaesferada

músicaclássicaeuropeia,nãodácontadeexplicitarosprincípiosfundamentaisqueorganizam

osataquesirregularesdamúsicapopular.Oscompassospartemdaideiadeumciclodetempos

iguais,quesãosubdivididosemduraçõesmenores, semprededuasou trêspartes iguais.O

primeirotempodecadacompassoéacentuado.JáamúsicadaÁfricasubsaariana,poroutro

lado,organiza‐seemciclosassimétricos,emque“tempos”dediferentesduraçõespodemse

suceder.

OetnomusicólogobrasileiroCarlosSandroni,seguindoSimhaArom,explica:

Nossa teoria musical clássica prevê dois tipos de compasso, os simples e oscompostos.Noscompassossimples[2/4,3/4e4/4],asunidadesdetemposãobinárias17semínimas.(...)Poroutroladonoscompassoscompostos,comoo6/8e9/8,asunidadesdetemposãoternárias18esãorepresentadasporsemínimaspontuadas (divididas portanto em três colcheias). Mas o fato é que não hácompassosquemisturemdemodosistemáticoagrupamentosdeduasou trêspulsações, como semínimas e semínimas pontuadas. É precisamente estamistura que vai desempenhar papel muito importante na África subsaariana(SANDRONI,2001,p.24).

Ouseja,oprincípiodeorganizaçãodasduraçõesnamúsicadaÁfricasubsaarianaetambém,de

certomodo,namúsicapopulardasAméricasnão tomacomoprincipalreferênciaa ideiade

compasso,massimasequênciapulsada(quecostumamoschamarde“subdivisões”19),quepor

seremirregularmenteatacadas,estabelecem“tempos”dediferentesdurações(oradeduas,ora

detrêssemicolcheias).Emoutraspalavras,amúsicaafricanaorganiza‐seritmicamentemuito

maissobreumaespéciedeostinatoqueresultadessesataques irregularessobreapulsação

subjacente (as “semicolcheias”) do que sobre a regularidade simétrica de cada período (as

“semínimas”).Achaveparaacompreensãoestáemouviressacélularesultante,esseostinato

referencial, que foi denominado por Simha AROM de time‐lines. Utilizaremos aqui a

denominaçãoquesepopularizouapartirdosestudiososcubanosequetambéméencontrada

17Cadatempopodesersubdivididoemduaspartesiguais(notanossa).

18Cadatempopodesersubdivididoemtrêspartesiguais(notanossa).

19OequivalenteàssemicolcheiasnaFigura1.

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noBrasil:claves20.

EmFeitiçodecente(SANDRONI,2001),oautormostracomoosamba,apósadécadade1930,

passouaseestruturarapartirdaseguinteclaverítmica,porelebatizadadeo“paradigmado

Estácio”.

Figura3:Clavedesamba–“paradigmadoEstácio”

Na figura acima, a primeira disposição é uma tentativa de adequar ataques e durações

irregularesdamúsicapopularàescrita“divisiva”eregularcriadaparaamúsicaclássicaem

geral. O agrupamento da clave em quatro tempos (dois por compasso) não representa

visualmenteoprincípiorítmicoqueorganizaacélula.Jánasegundadisposição,queSANDRONI

também apresenta emFeitiçodecente, podemos visualizar umúnico ciclomaior emque se

percebem “tempos” formados por duas semicolcheias e “tempos” formados por três

semicolcheias(sete“tempos”aotodo).

EmThegeometryofmusicalrhythm,GodfriedTOUSSAINTargumentaafavordeumanotação

rítmicaemqueociclosejadispostocircularmente(clocknotation).Essapropostaparecedefato

representarmelhor a ideia de circularidade (estado) – e nãodenarrativa (processo) – que

estruturaasbasesrítmicasnamúsicapopular.Alémdisso,aindanosfundamentandonaideia

de“estado”,adisposiçãoemcírculonospermitevisualizardiferentespossibilidadesde“início”,

bastandoconsiderarqualquerumdos16pulsoscomoumpotencialprimeiroataque,gerando,

pordecorrênciadessasrotações,variaçõesdeumamesmafigurarítmica,que,muitasvezes,são

utilizadaspelosmúsicosnaprática.

Aclavedo“paradigma”dosambadoEstácio,identificadoporSANDRONI,poderiasernotada

20Clavesrítmicas.

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daseguintemaneira.

Figura4:“ParadigmadoEstácio”–notaçãocircular21

Essa disposição, que se baseia no modelo circular proposto por TOUSSAINT, nos permite

facilmentevisualizartambémalgumasvariaçõesdaclave,comoumaqueébastantecomume

queaconteceriasetomássemosoponto9comoiníciodociclo.

Masaquestãoprincipaléquenãoésuficienteafirmarquearítmicanamúsicapopular,devido

àssuasorigensafricanas,poderiasernotadadeoutraformaeque,consequentemente,aescrita

de origem europeia não seria o melhor caminho para identificarmos e percebermos os

princípiosqueorganizamaconduçãorítmica,comseusacentos,temposirregulares,etc.

Aquestãoéquearítmicanamúsicapopularépolirrítmicadesdesuagênesenamedidaemque

abriga ao mesmo tempo princípios aparentemente conflitantes – recuperando aqui as

proposiçõesdeVIGOTSKI:umabase“africana”eumamelodiaeharmoniaqueaindasãoregidas

pelaquadratura“europeia”.Daíanecessidadedamelodia(enãodaharmonia)devezporoutra

sefiliartambémaosacentosassimétricosdacondução(comopodeserobservadonaFigura1

comasupostaantecipaçãodeumataquequeestarianacabeçadocompassocinco),servindo

entãocomoelementounificadorentredoisprincípioscontraditórios,umquejustapõeataques

assimétricos, cria uma clave e sugere um estado circular, e outro que se filia a compassos

21Circuladosemvermelhoosataquesquecoincidemcomaclave2232223;emlaranjaosataquesumpoucomenos acentuados (pulsos 6 e 15), que sugerem variantes dos tempos de 3 pulsações. Diferentemente deTOUSSAINT,queordenaanumeraçãodepulsosde0a15,optamospornumerarde1a16,poisassimsetornamaisdiretaacomparaçãocomas16“semicolcheias”queaescritamusical tradicionalutiliza.OutradiferençaéqueTOUSSAINT interligaospulsosatacados inserindoumpolígononocírculoe, apartirdaí, estudapropriedadesgeométricasquetalfigurapodesugerir.

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simétricos, com acentos e subdivisões regulares, e propicia que a narrativa melódica e o

processoharmônicosedesenvolvam.

Analisemos um pouco mais o ritmo do cavaquinho em Portela na avenida. A clave que

compreende o ritmo do terceiro e do quarto compasso da introdução será repetida (como

modeloparavariações)apartirdocompassocinco.Nafiguraabaixoapresentamosasfiguras

rítmicasdocavaquinhonosprimeirosquatrocompassos:

Figura5:CavaquinhoemPortelanaavenida‐c.1‐4

NaFigura6,abaixo,selecionamosapenasotrechoqueserepetirácomoclave,oscompassos4

e5:

Figura6:Clavedocavaquinho–c.4e5–Portelanaavenida

Levando‐seemconsideraçãoosataqueseosacentos,observa‐senasegundadisposiçãoqueos

16pulsos(semicolcheias)sãoatacados,apartirdosegundopulso,daseguinteforma2+3+2

+2+3+2+2.EssadisposiçãopodeserentendidacomoumarotaçãodoparadigmadoEstácio,

comoseaclaveoriginal(adoEstácio),estivesseseiniciandoagoraapartirdaúltimacolcheia

docompasso4(oprimeirocompassodafiguraacima).Nafiguraabaixotemosacomparaçãoda

clavedoEstácioedaclavedocavaquinhodePortelanaavenida,levando‐seemcontaapenasos

ataquesprincipais:

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Figura7:Rotaçãodaclave

Pode‐senotarqueomodelodoEstácio(2+2+3+2+2+2+3)aconteceapartirdosétimo

pulsodociclodePortelanaavenida.NocasodePortelanaavenida,aclavesegueopadrão2+

3+2+2+3+2+2(umarotaçãodomodelodoEstácio).

ChamaaatençãoofatodequeaclavedocavaquinhoemPortelanaavenida,alémdeestabelecer

arotaçãoqueapontamosacima,nãoatacaoprimeiropulso,fazendocomqueaprópriarelação

rítmicaquesedáentreocavaquinhoeosoutrosinstrumentosdepercussãodabasesejaainda

mais sutil e complexa. No fonograma é possível ouvir outros instrumentos afirmando

claramenteostempos1e2docompassoregularsimétrico22.

Aprofundando um pouco a análise da base de Portela na avenida, notamos, assim, várias

camadassuperpostasdediferentescélulasrítmicasquepodemobedeceradiferentesprincípios

de organização dos ataques, estabelecendo ciclos de diferentes durações, defasando e

rotacionandoclavescomunsaogêneromatriz(samba).Issotudoqueacontecenoâmbitodo

quepoderíamoschamardeuma“polirritmiadeestado”(adabasededoiscompassos)também

estabelece inúmeras possibilidades de enfrentamento com o contexto mais horizontal e

narrativo dos períodos criados pelo desenrolar da melodia e da harmonia, impactando o

ouvinte com um universo de nuanças e de tensionamentos de diferentes ordens,

particularizando,consequentemente,areaçãoestéticaàobra.

22Afraserítmicadosurdo,porexemplo,queafirmaotempo1eacentuaotempo2.

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ERNICA,Mauricio;MOLINA,Sergio(2016).AsagraçãodaPortela:música, letraecontextosocialnaproduçãodereaçõesestéticasemumsamba‐enredo.PerMusi.Ed.porFaustoBorém,EduardoRosseeDéboraBorburema.BeloHorizonte:UFMG,n.34,p.177‐205.

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6‐Portelanaavenida–Aproduçãodareaçãoestética

Portelanaavenida(MauroDuarteePauloCésarPinheiro)

1. Portela2. Eununcavicoisamaisbela3. Quandoelapisaapassarela4. Evaientrandonaavenida5. Parece6. Amaravilhadeaquarelaquesurgiu7. OmantoazuldapadroeiradoBrasil8. NossaSenhoraAparecida9. Quevaisearrastando10. Eopovonaruacantando11. Éfeitoumareza,umritual12. Éaprocissãodosambaabençoando13. Afestadodivinocarnaval14. Portela15. Éadeusadosamba,opassadorevela16. Etemavelhaguardacomosentinela17. Eéporissoqueeuouçoessavozquemechama18. Portela19. Sobreatuabandeira,essedivinomanto20. TuaáguiaaltaneiraéoEspíritoSanto21. Notemplodosamba22. Aspastoraseospastores23. Vêmchegandodacidade,dafavela24. Paradefenderastuascores25. Comofiéisnasantamissadacapela26. Salveosamba,salveasanta,salveela27. SalveomantoazulebrancodaPortela28. DesfilandotriunfalsobreoaltardocarnavalA letradePortelanaavenida é construídaemprimeirapessoademododeclarativo, semse

dirigirauminterlocutorespecífico.Osegmentoquevaidoverso1ao21,correspondendoa

todaaSeçãoAdacanção(Figura2),podeserlidocomoumúnicomundodiscursivo23noqual

os atributos da escola são apresentados, definindo o que a Portela é. Nesse segmento, o

enunciador está implicado no discurso, sendo o fiador de sua veracidade, mas o conteúdo

temáticoestádisjuntodasituaçãodeproduçãoencenadapela letra,estandosituadoforado

aquieagoradaenunciação,emumaespéciedeestadoatemporal;nostermosdeBRONCKART

23BRONCKART(1999)definemundosdiscursivoscomorealidadespsicossociaisquepossibilitamoengajamentodeagentesemumainteraçãodelinguagempormeiodainstauraçãodeumazonadeinterfaceentrerepresentaçõesindividuais e representações coletivas mobilizadas nessa interação. Uma vez que esses mundos são,necessariamente, realizados por unidades das línguas naturais e que podem ser identificados nos textos, elesformamostiposdiscursivos.

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(1999),essemundocorrespondeaotipodiscursivorelatointerativo.Vimosanteriormenteque

acircularidadedabaserítmicatambémcompartilhadessaexperiênciadepresentificaçãodo

tempo.

Nesseprimeirosegmento,abelezajamaisvistapeloenunciadoréaPortela,cujodesfile,quando

seinicia,éassociadoaumaprocissãoreligiosaemdevoçãoàpadroeiradoBrasil,NossaSenhora

Aparecida. A Portela, desse modo, é apresentada como símbolo e manifestação de duas

instânciassupraindividuais:oBrasileosagrado.

Overso17[eéporissoqueeuouçoumavozquemechama]podeserlidocomoumainterrupção

momentânea desse primeiro mundo discursivo e breve instauração de um outro mundo

discursivo,noqualoconteúdotemáticoeocontextoderealizaçãodotextoestãoemconjunção:

o que é narrado está presente no aqui e agora da situação de enunciação; nos termos de

BRONCKART(1999)essesegundomundodiscursivocorresponderiaaotipodiscursivodiscurso

interativo.Veremosaseguirqueavozquechamaonarradoréadamaterializaçãodabeleza

eterna(sagradaenacional)daescola.

Apartirdoverso21[Notemplodosamba],oquehaviasidoafirmadoanteriormente,situado

emumpresenteatemporal,podeserobservado in locopeloenunciadoreporaquelesqueo

ouvem.Overso21completaatransiçãodosdoismundosdiscursivos,dorelatointerativopara

odiscursointerativo,umavezquepodesertantoaconclusãodoverso20[Tuaáguiaaltaneira

éoEspíritoSanto/notemplodosamba]comoaintroduçãodoverso22[Notemplodosamba,/

aspastoraseospastores...].Atransiçãoentreessesdoismundosdiscursivossedátambémna

formamusicaldacanção,napassagemdaSeçãoAparaaSeçãoB(Figura2).

Assim,osegmentodoverso21ao25apresenta,emprocesso,achegadadosmembrosdaescola

na passarela, como se estivessem atualizando e concretizando a verdade eterna (sagrada e

nacional)declaradaanteriormente.Musicalmente,ocentrooriginaldaSeçãoA,Rémenor,se

deslocaparaoterceirograudaescala,arelativaFámaior.Àmovimentaçãodaspastorasedos

pastores(verso22)sedáparalelamenteaalternânciapendulardadominantedeFámaior(Do

maiorcomsétimamenor)eopróprioFá.Onovomundodiscursivoétambémumnovocentro

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gravitacionalnaharmonia.

Nonovomundodiscursivo,ainformaçãoqueseacrescentaéqueaquelesquefazemaPortela

existir – e realizam sua natureza eterna, sagrada e nacional – são pessoas que chegam “da

cidade,dafavela”(verso23),termosquemarcamacisãodeclassessociaisdacidadedoRiode

Janeiro.Assim, aPortelaopera tambémumasíntese social, outraevidênciade suanatureza

geral.Situadaacimadasclassessociais(comoNossaSenhoraAparecida),aPortelaépopular.

Atéaqui,atensãonointeriordaletrasedáentreessesdoismundosdiscursivos,umdeclarando

propriedades gerais definidoras do que é a Portela em um estado atemporal, outro

testemunhandosuachegadanoaquieagoradaenunciação.Nessesdoismundos,aarticulação

dosfenômenosfeitapelosmecanismosdecoesãoverbalindicaalgoquesemanifestaemum

processo: o momento desde que a Portela pisa a passarela, vai entrando nela e desfila.

Musicalmente,podemosobservarumparalelismoentreaentradadaPortelanapassarelaeo

movimentogeradopelamelodia,queinsisteeminvadiratodotempo,emprocesso,ouniverso

circular da base rítmica da percussão, desencadeando e se apoiando na movimentação

harmônicadacanção.

Entreosdoismundosdiscursivos,porém,nãohápropriamenteoposição,mas,antes,homologia

e complementariedade. O desfile que vai se realizando no exato momento da enunciação

permiteaverificaçãoeaexperimentaçãodoquehaviasidoenunciadocomoverdadegeral.

Asínteseseráoperadanosversosfinais,26,27e28.Nessemomento,aescolajáchegou,jáestá

presenteinteira,emplenodesfile.EssesversosdesaudaçãoàPortela,aoqueelasimbolizaeao

seudesfile,alémdaexaltaremseucarátereterno,sagrado,nacionalepopular,representama

confirmação,pelaexperiência,daspropriedadesenunciadas.Odesfechodacançãoé,porassim

dizer,umaverdadequesemanifestaeseimpõeaossujeitos,noexatomomentodaenunciação.

Musicalmente,éjustamentequandoaletradizsalveelaePortelaqueoacordedeRémenor,

centro inicial da canção, é retomado, mas agora como sexto grau do contexto harmônico

gravitacionaldeFámaior.

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Nofonogramaanalisado,aformamusicalcompleta[A(a1‐a2–b‐a1’‐a2’)‐B](Figura2)é

executadaduasvezes.Naprimeira,avozdeClaraNunesestáemprimeiroplano,sobreabase

rítmicaconstituídapelapercussãoepelocavaquinho,eéladeadapelocontrapontodaslinhas

debaixodeumviolão.Amelodia,protagonistanasonoridadegeraldacanção,éinterpretada

pelacantoraqueencenaoenunciadordaletra,apresentando,pelodiscurso,oqueéaPortela.

Nasegundavezemquea letraécantada,oarranjoreorganizaosplanoseas tensõesentre

melodia/harmonia/letraeritmo.Aestruturaformadaporletra,melodiaeharmonia,porsua

naturezaprocessual,segueocursodacanção,aomesmotempoemqueregulaapresençada

baserítmicaformadapelapercussão,produtoradeestadosquevãoseintensificandoemsua

circularidade.Omovimentoda forma, portanto, vai intensificando as emoções geradas, seja

pelosciclosrítmicos,sejapelaletra.

A solução formal para as tensões acumuladas é oferecida pormodificações no arranjo, que

reorganizaosplanos.Apercussãoganhaemrelevo,ostamborinssedestacamnaSeçãoAeos

agogôssãoagregadosàSeçãoB;o coroocupao lugardavozsolo,que,esmaecida,deixa‐se

envolverpelamultidão.Agora,quemprotagonizanãoémaisoindivíduo,massimoconjunto,

comoaencenarapresençadaescola,talqualumsamba‐enredo.

A introdução do coro traz à cena o coletivo, a Portela, acrescentando, pela repetição

replanificadadabaserítmica,umaenergiaemocionalqueseráretidaatéomomentofinal,oda

repetiçãodostrêsúltimosversos.Aconvençãorítmica,osdoisataquesnoprato24,eaprópria

ideiaderetornoquetambémestancaodiscursomelódico‐harmônicointensificameadensam

o universo sonoro que envolve a reiteração da letra, como se figura e fundo finalmente

explodissemjuntosemumasoluçãoqueapenaspoderiasedarnumimpensávelterceiroplano,

que sustenta, derradeiramente, o clímax da situação de “estado” com um congelamento do

“processo”.

Ostrêsversosfinaisquesaúdamaescola[salveosamba,salveasanta,salveela/salveomanto

24Apartirde3’30’’.

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azul ebrancodaPortela /desfilando triunfal sobreoaltardo carnaval] e seus significados,

cantadosduasvezesefusivamente,impõem‐secomosealiaescolaestivessedefatopresente,

manifestando suas propriedades apontadas. Essa repetição se coloca como uma solução

catárticada canção, fazendo comque, pelo contornodamelodia, a energiaproduzidapelos

estadosdabaserítmicaecloda,rompendoseuslimiteseseimpondoparaalémdesimesma,

sobre o corpo do ouvinte. Materializada em letra emúsica, a presença da escola se impõe

integralmente,operandoumaverdadeirasagraçãodaPortela.

Consideraçõesfinais

Esteartigoapresentaumapropostadeanálisedacançãopopularquebuscasuperardicotomias.

Antesdetudo,seguindoCANDIDO(1976;1993;1995;2003),analisa,relacionando‐as,tanto

elementosdesuaestrutura interna,quantoelementosdocontextosócio‐históricodoqualé

produzidaeapropriadaporumpúblico.Noquedizrespeitoàabordagemdaestruturainterna

dacanção,oartigotememmenteasuperaçãodeduasdicotomias:primeiro,procuraanalisar

tantoelementostextuais,daletra,comoelementosestritamentemusicais,paraoquêmobiliza

recursos de teorias interacionistas da linguagem, como BRONCKART (1999), e de recursos

teóricos de musicólogos, como AROM (1991), SANDRONI (2001) e TOUSSAINT (2013);

segundo, a partir da obra de VIGOTSKI (1917; 1925a; 1925b; 1934), procura analisar as

relaçõesentreformaeconteúdo,entendendoquearelaçãoentreelaséprodutoradareação

estética.

Sendoassim,ainterpretaçãodePortelanaAvenidaéumestudodecasopeloqualsepretende

explorareexemplificarpossibilidadesdessaabordagem,queéapresentada inicialmenteem

seusfundamentosteóricos.Emresumo,noquedizrespeitoaocontextosócio‐históricodesta

canção,analisamossuasvinculaçõescomogênerosamba‐enredo,deformaçãomaisrecente,e

comoutratradição,maisantiga,desambasqueexaltamumaregiãoe/ouumgrupo.Acanção

foigravadaefezsucessoemummomentonoqualosambaeocarnaval jáeramfortemente

associados à identidade nacional mas que, contraditoriamente, outros gêneros musicais

disputavamoespaçonocampodamúsicapopular.PortelanaAvenidapodeserlido,então,como

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umdossambasdestaépocaquebuscamatualizarnopresenteatradição.

Aoanalisarmosasestruturaspropriamentemusicais,identificamosatritosespecíficosaessa

linguagem,comoosenfrentamentosentreosestadoscíclicos(simétricoseassimétricos)das

interações rítmicas de base e os processos narrativos da harmonia e damelodia. Ainda na

abordagem interna, observamos como tais relações ganham em complexidade e se

potencializamnamedidaemqueassoluçõescomposicionaissãoobservadasnaperspectivado

discursopoéticoverbalenunciadopelaletradacanção.

QuandoabordamosaletradePauloCésarPinheiro,verificamosquehaviaumatensãoemseu

interior entre ummundo discursivo no qual declara, atemporalmente, propriedades gerais

definidorasdoqueéaPortelaeoutronoqualsetestemunha,aquieagoradaenunciação,sua

presença.Aopassoqueaescolapisaapassarela,umprocessoseanuncia,asuapresentificação.

Musicalmente, observamos que amelodia insiste em invadir a todo tempo, em processo, o

universocirculardabaserítmicadapercussão,desencadeandoeseapoiandonamovimentação

harmônicadacanção.

Aofinal,observandoacançãocomoumtodo,apontamoscomooarranjopôde,passoapasso,

intensificarmovimentosetipologiasemocionaiscontrastantesepropusemosaidentificaçãode

momentos específicos do fonograma nos quais suas tensões internas se resolveriam na

produçãodeumarealidadenovaeinesperadaemqueoprocessodepresentificaçãodaescola

desambaparecesecongelaresereproduzirciclicamente,comoaremeteraescolaeaqueles

que a assistem, no aqui e agora da enunciação, à experimentação de suas características

atemporais.

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Referênciasdevídeos1.SOLBERG,H.(2008).Apalavraen‐cantada.Brasil(Documentário).

Notasobreosautores

MauricioErnicaédocentedoDepartamentodeEducação,Conhecimento,LinguagemeArtedaFaculdadedeEducaçãodaUnicamp.Écientistasocial(USP,1995),mestreemAntropologiaSocial (Unicamp, 1999) e doutor emLinguísticaAplicada e Estudosda Linguagem (PUC‐SP,2006).Seustemasdeinvestigaçãosão:representaçõessociaisemletrasdemúsica,linguagemedesenvolvimento,edesigualdadeseducacionais.SergioMolinaédocentedaFaculdadeSantaMarcelina(SP),ondecoordenaaPós‐GraduaçãoCanção Popular: criação, produçãomusical e performance, e é professor de composição noInstitutoCarlosGomesemBelém(PA).ÉgraduadoemComposiçãopelaEscoladeComunicaçãoeArtes daUSP (1991),mestre emMusicologia pelamesma instituição (2004) e doutor emProcessos Criativos também na ECA‐USP (2014). Como compositor e pesquisador, SergioMolinainvestigaasinteraçõesentreosuniversosdamúsicaclássicaedapopular.