a cruzada contra o terror - os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG Curso de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais – FDUFMG Carlos Eduardo Simões Daniel Matheus de Souza Eduarda Lorena de Almeira Gabriel Rotsen João Otávio Guimarães Becker Johaber Rivas Mendonça Lucas de Oliveira Gelape Lynthian Cardoso Paulo Henrique Ferreira Pedro Conrado Alves de Assis Taís Noronha Tourinho Yara Emanuele Costa A CRUZADA CONTRA O TERROR: os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo Belo Horizonte 2012

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Page 1: A cruzada contra o terror - os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG

Curso de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais – FDUFMG

Carlos Eduardo Simões Daniel Matheus de Souza

Eduarda Lorena de Almeira Gabriel Rotsen

João Otávio Guimarães Becker Johaber Rivas Mendonça Lucas de Oliveira Gelape

Lynthian Cardoso Paulo Henrique Ferreira

Pedro Conrado Alves de Assis Taís Noronha Tourinho Yara Emanuele Costa

A CRUZADA CONTRA O TERROR: os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

Belo Horizonte 2012

Page 2: A cruzada contra o terror - os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

Carlos Eduardo Simões - C

Daniel Mateus - C Eduarda Lorena de Almeira - C

Gabriel Rotsen - C João Otávio Guimarães Becker - D

Johaber R. Mendonça- C Lucas de Oliveira Gelape - D

Lynthian Cardoso - D Paulo Henrique Ferreira- D

Pedro Conrado Alves de Assis - C Taís Noronha Tourinho - D Yara Emanuele Costa – D

(5º Período)

A CRUZADA CONTRA O TERROR: os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

Trabalho escrito sobre pesquisa apresentada em Seminário de Processo Penal, "O Direito de Punir versus o Direito de Liberdade para os Povos do Livro de Allah", correspondente à disciplina de Direito Processual Penal I ministrada pelo Professor Doutor Sergio Luiz Souza Araujo no Quinto (5º) Período do Curso de Graduação de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Orientador: Sergio Luiz Souza Araujo e Ari Benedito Junior

Belo Horizonte 2012

Page 3: A cruzada contra o terror - os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

SUMÁRIO

SUMÁRIO .................................................................................................................................... 3

Agradecimentos .......................................................................................................................... 4

A Palavra “CRUZADA” ................................................................................................................. 5

A Primeira Cruzada ..................................................................................................................... 5

Contexto Histórico da Primeira Cruzada ..................................................................................... 5

O Concílio de Clermont e o Papa Urbano II ................................................................................ 7

As Motivações ........................................................................................................................... 10

A Campanha da Primeira Cruzada ........................................................................................... 16

A Perspectiva Árabe sobre a Primeira Cruzada ........................................................................ 19

As cruzadas na atualidade: A “Cruzada” contra o terror .......................................................... 22

Literatura acerca da Guerra ao Terror ...................................................................................... 25

Teoria da Guerra Justa .............................................................................................................. 27

Semelhança nos discursos iniciais ............................................................................................ 29

A jurisprudência brasileira com o cotejo de discursos religiosos ............................................. 33

Bibliografia ................................................................................................................................ 42

Filmografia ............................................................................................................................... 43

Page 4: A cruzada contra o terror - os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

4

Agradecimentos

O grupo agradece ao Professor Doutor Sergio Luiz Souza Araujo pela oportunidade tão

distinta que nos trouxe, com a amplitude de seus desdobramentos, a sensação de que o

trabalho desenvolvido com harmonia e tolerância fortalece e enobrece a convivência .

Page 5: A cruzada contra o terror - os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

5

A Palavra “CRUZADA”

Cruzada. Esta palavra não era reconhecida no momento histórico para o qual ela é

empregada e, de fato, o termo aparece de forma muito esporádica apenas em meados do século XIII,

quando aquele fenômeno histórico já perdia a sua força. Os textos medievais falam geralmente em

“peregrinação”, 'guerra santa”, “expedição da cruz” e “passagem”. A expressão “Cruzada”, quando

surgiu, derivava do fato de seus participantes considerarem-se “soldados de Cristo”, “marcados pelo

sinal da cruz”, e por isso bordarem uma cruz na sua roupa.

Simplificadamente pode-se dizer que foram expedições militares empreendidas contra

os inimigos da Cristandade e por isso legitimadas pela Igreja, que concedia aos seus participantes

privilégios espirituais (o perdão dos pecados) e materiais (suspensão do pagamento de juros).

Portanto, as lutas contra os muçulmanos do Oriente Médio e da Península Ibérica, contra os eslavos

pagãos de Europa Oriental e contra os heréticos de qualquer parte da Europa Ocidental eram

Cruzadas.1

A Primeira Cruzada

A Primeira Cruzada foi apenas o início, a primeira de muitas outras batalhas que viriam

adiante. Todavia, esse conflito inicial abre um novo precedente ao criar um movimento que não vai

apenas contra um povo, mas que tem também como objetivo o fortalecimento do catolicismo frente

ao islamismo, que avançava sobre a Europa. Para tanto, foi preciso estimular um povo que vivia um

contexto de miséria e falta de perspectivas de possibilidade de ascensão social.

Contexto Histórico da Primeira Cruzada

Sem embargo de ousar analisar o período com demasiada simplicidade,

contextualizaremos brevemente o período.

Se por pelo menos duzentos anos houve um fluxo constante de ocidentais dirigindo-se

1 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 8.

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para a periferia da Cristandade Latina (Oriente Médio, Peninsula Iberica, e Europa Oriental), devem

ter existido razões profundas para isso. Assim, certamente um conjunto de fatores provocou as

cruzadas, que representaram originalmente uma espécie de saída, de solução para os problemas

colocados pelo início da desestruturação feudal.

A economia feudal era fundamentalmente agrária, possuindo assim suas unidades de

produção, o senhorio, procurando ser autossuficiente na produção não só de alimentos, mas de

roupas, armas e utensílios. As atividades mercantis encontravam-se assim, bastante reduzidas,

recorrendo-se a elas apenas quando as condições locais não permitiam a obtenção de uma

determinada mercadoria.

Quanto ao tipo de mão de obra utilizada na estrutura feudal, essa não era mais escrava

como na Antiguidade, nem assalariada como na Modernidade, mas sim um tipo intermediário, a

servidão, na qual o trabalhador presta serviços compulsórios mas não é considerado um objeto,

estando vinculado a um lote de terra, e não a uma pessoa, não podendo ser desapossado dele.

Demograficamente, o numero de trabalhadores era pequeno, em função das epidemias,

das invasões, das escassas colheitas e da fraca propensão à reprodução. Procurava-se dar ao

camponês alguma condição de vida, na esperança de que houvesse um crescimento populacional.

Politicamente, no período feudal, houve a fragmentação do poder central, o que entoava com a

situação econômica de auto suficiência de cada região, fazendo com que o detentor de um senhorio

assumisse a defesa de seu patrimônio e de seus dependentes, ganhando poder político em seu

território.2 Socialmente, a desorganização que se seguira à queda do Império Romano e a insegurança

provocada pelas invasões germânicas pediam uma nova estrutura. Houve, assim, um

desaparecimento quase completo das camadas médias e a formação de uma poderosa camada

formada por clérigos e guerreiros. A aristocracia detentora de terras, de poder econômico e político

construiu uma sociedade de ordens com a finalidade de que o status quo da época se mantivesse: A

condição social de cada indivíduo estava definida por uma ordem de Deus logo ao seu nascimento,

dai o termo “sociedade de ordens”, que imputava aos seus membros a impossibilidade de mudança

de extrato social, devendo estes resignadamente aceitarem seus destinos, pois rebelar-se seria

comprometer sua Salvação, sua Vida Eterna.3

Já a aristocracia detentora de terras era também guerreira, caminho naturalmente

2 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 12 3 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 13

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traçado no sentido de defender suas terras dos invasores, e, para que tal atividade fosse exercida, era

necessário que fosse despendido muitos gastos em equipamentos e muito treinamento. Encarregado

de proteger também a população, o guerreiro acabava por receber a obediência dos seus

protegidos.4

As mutações do feudalismo, cujas origens se encontram nas suas próprias estruturas,

criaram condições ao surgimento das Cruzadas, sendo estas uma válvula de escape para as tensões

sociais, econômicas e políticas da época. Isso porque, com o declínio das epidemias, o maior

isolamento entre as regiões ocidentais e o fim das invasões estrangeiras e das grandes batalhas,

seguido da grande quantidade de recursos naturais a serem explorados e a melhoria nas técnicas de

produção, deu-se um crescimento demográfico significativo, sem o qual não seria possível nem

necessário o acontecimento das Cruzadas.5 A expansão demográfica fez com que fosse reduzida, ao

longo do tempo, a parcela de terra de cada família camponesa, obrigando muitos indivíduos a

tentarem um novo gênero de vida.

Quanto ao contexto comercial, o excedente advindo da prática da monocultura e do

aumento da produtividade estimulou o retorno das trocas comerciais e o contato com os mercados

bizantino e muçulmano.

Nesse contexto, Veneza e Gênova, polos comerciais com tradições comercial e urbana,

desempenharam importantes papéis nas cruzadas, pois tinham no Oriente interesses à defender e

estender. O mesmo ocorria com os comerciantes alemães, que tinham interesse em ocupar e

colonizar os territórios eslavos. Houve nessa época, portanto, uma transformação da sociedade de

ordens para uma sociedade estamental, em que era possível se vislumbrar uma mudança de classe

social, rompendo-se com a condição divina estabelecida no nascimento.

Nesse sentido, houve um direcionamento populacional para as cidades, que ofereciam

as vantagens da vida comercial e da liberdade quanto à servidão, mas que também acabava por

acolher aqueles que não obtiveram êxito, tornando-se marginalizados.

O Concílio de Clermont e o Papa Urbano II

4 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 14 5 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 18

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8

Na Idade Média, de uma maneira geral, todos os assuntos concernentes à paz e à guerra,

fosse no âmbito interno ou externo, competiam ao rei. Destarte, a função de lançar-se à batalha era

atribuída, preponderantemente, à realeza. Contudo, no período que antecede às Cruzadas, tal

camada da sociedade estava enfraquecida, sobretudo na França, em decorrência de furtos dos bens

da Igreja, sugiram as “Milícias da Paz”, o que demonstra que, na ausência de um poder secular, o

clero organizou-se de modo a consolidar seus dogmas através de uma guerra contra a guerra.6

A ideia de reagir aos invasores pagãos não era nova, todavia, apenas foi concretizada

pelo Papa Urbano II, ao combinar a necessidade de uma guerra santa com a peregrinação à

Jerusalém.7

Essa tradição, entretanto, estava abalada desde o momento quem o Império Bizantino

fora derrotado por tropas turcas, que expandiam seus domínios por aqueles territórios, além de

manterem o domínio sobre a Terra Santa. Nesse momento, o imperador solicita auxílio ao Papa

Urbano II para que envie seus cavaleiros, que tinham a imagem sacralizada de protetores dos bens

dos pobres, das viúvas e da Igreja. Tal fato representou a união entre Igreja Cristã do Ocidente e do

Oriente, que agora tinham um inimigo em comum, o que também possibilitou o início das cruzadas.8

Isso posto, em 1095, foi aberto o Concílio de Clermont pelo Papa Urbano II. Uma

multidão se pôs a ouvir os dizeres do papa, seu apelo para que fosse dada início à marcha de

reconquista das terras sagradas, retirando das mãos dos muçulmanos, tidos como infiéis. 9 Tal

discurso mobilizou uma grande parcela da população que, vítima da fome e da baixa perspectiva de

vida, aliadas ao espírito de eliminar aqueles que não professassem a mesma fé, decidiu lançar-se à

batalha, embora completamente despreparada para tal situação.

No Concílio (que aconteceu de 18 a 28 de novembro), o destaque foi mesmo Papa

Urbano II e seu discurso na presença de 400 abades, 250 bispos, 14 arcebispos, tendo este evento,

portanto, grande participação. A íntegra do discurso foi preservada por quatro (4) cronistas: Robert, o

Monge, 23 Baudri de Dol, Fulquer de Chartres18 e Guibert de Nogent; cada versão com pequenas

6 LENZENWEGER, Josef et. al. História da Igreja Católica. Tradução: Fredericus Stein. São Paulo:

Loyola, 2006.Título Original: Geschichte Der Katholischen Kirshe. Pg. 180. 7 LENZENWEGER, Josef et. al. História da Igreja Católica. Tradução: Fredericus Stein. São Paulo:

Loyola, 2006.Título Original: Geschichte Der Katholischen Kirshe. Pg. 181. 8 LENZENWEGER, Josef et. al. História da Igreja Católica. Tradução: Fredericus Stein. São Paulo:

Loyola, 2006.Título Original: Geschichte Der Katholischen Kirshe. Pg. 190. 9 UJVARI, Stefan Cunha. A História e suas epidemias - A convivência do homem com os

microorganismos. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio: Editora Senac São Paulo, 2003. Pg 246.

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diferenças entre as outras.10 Nesse sermão, Urbano II usou a alegação de que os turcos maculavam os

lugares santos cristãos além de perturbar os peregrinos - isso quando tal ato era permitido - como

justificativa para motivar a população a se alistar em tal jornada.11

Já no início da pregação, o Para salienta a necessidade de reunir esforços contra a

ameaça turca que avançava contra o Império Bizantino, ou seja, contra os cristãos do Oriente,

afirmando ser dever os católicos ocidentais restaurar a eles o que perderam ou o que poderiam

perder. Do mesmo modo, recordou as dificuldades impostas à peregrinação até Jerusalém em função

do domínio árabe sobre a região, proclamando assim, a necessidade de uma guerra santa, justa,

guiada por Deus, como forma de demonstração de fé.12

Urbano II encerrou o discurso convocando a todos para que se preparassem para o

próximo verão, em que seriam conduzidos por Deus ao resgate da Terra Santa, sendo ovacionado

pela multidão, qual aderiu à causa logo após o pedido de permissão ao Sumo Pontífice do bispo de Le

Puy, Ademar, para juntar-se a expedição. A partir de então uma marca foi consolidada: “Os

voluntários da expedição deveriam usar o sinal da13 cruz, em vermelho, sobre o ombro, prometer ir a

Jerusalém e, caso voltassem antes, poderiam ser excomungados.” 14

Somado à tudo que foi dito, insta salientar ainda, que, a reconquista de Jerusalém não se

pautou apenas nos preceitos de uma guerra justa, na proibição da violência desnecessária, vez que

existia permissão para pilhagem de riquezas, desenvolvendo nos cruzados um entendimento de que

havia, na verdade, uma permissão para extorquir, matar e pilhar, fato que acabou contribuindo, não

surpreendente, para a apresentação de uma "brutalidade sem limites" na, dita, guerra santa15.

10 FALBEL, Nachman. Kidush HaShem: crônicas hebraicas sobre as Cruzadas. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001. Pg. 27. 11 YENNE, Bill. 100 Homens que mudaram a História do Mundo. Tradução: Roger Maiole. São Paulo:

Ediouro, 2004. Título Original: 100 men Who shaped the world history. Pg. 56. 12 FALBEL, Nachman. Kidush HaShem: crônicas hebraicas sobre as Cruzadas. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001. Pg. 30. 13 (O’SULLIVAN, John, 1845) http://web.grinnell.edu/courses/HIS/f01/HIS202-

01/Documents/OSullivan.html 14 FALBEL, Nachman. Kidush HaShem: crônicas hebraicas sobre as Cruzadas. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001.Pg. 35. 15 DUCHANE, Sangeet. O Pequeno Livro do Santo Graal. Tradução: Carmen Fischer. São Paulo:

Pensamento, 2006. 159p. Título Original: The Little Book of the Holy Grail.Pg. 125.

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As Motivações

Considerando, de início, as motivações materiais que levaram às cruzadas, podemos

dizer, como anteriormente explicitado, que o fim das epidemias que assolavam a população, bem

como a diminuição das invasões que desestruturavam os feudos existentes favoreceu a expansão

populacional europeia. Tal crescimento demográfico foi fator crucial para o surgimento e manutenção

das Cruzadas, uma vez que essa população, agora dividida em estamentos, era constituída, na sua

maioria, por aqueles que não dispunham de riqueza, ou não vislumbravam, devido às regras de

sucessão, a possibilidade de controlarem as terras da família.

A transformação da sociedade de ordens para uma sociedade estamental, apesar de

lenta e gradual, permitiu a mobilidade social, mantendo a divisão em “camadas”. Destas a maior era

formada pela plebe, pessoas que abandonaram os feudos assolados pela miséria e governados ao

arbítrio dos senhores feudais, e migraram para as cidades em busca de ascensão social. Todavia, isso

nem sempre ocorria como esperado.16

Os ex-camponeses passaram a ver no comércio uma alternativa de trabalho mais

compensadora. Muitos se aventuraram nesta nova atividade, mas, é claro, nem todos foram bem

sucedidos, gerando um grupo de marginalizados que ansiavam por uma melhoria em sua situação

econômica17. Desse modo, a primeira Cruzada, quando proposta pelo Papa Urbano II, em 1095, na

França, fez com que essa parcela da população enxergasse na conquista da Terra Santa, dominada

pelos chamados “infiéis”, a chance adquirir riquezas e propriedades, deixando para trás todo o

histórico de miséria e privação.

Os ex-camponeses passaram a ver no comércio uma alternativa de trabalho mais

compensadora. Muitos se aventuraram nesta nova atividade mas, é claro, nem todos foram bem

sucedidos gerando um grupo de marginalizados que ansiavam por uma melhoria em sua situação

econômica. 18 Desse modo, a primeira Cruzada, quando proposta pelo Papa Urbano II, em 1095, na

França, fez com que essa parcela da população enxergasse na conquista da Terra Santa, dominada

pelos chamados “infiéis”, a chance adquirir riquezas e propriedades, deixando para trás todo o

16 FRANCO JR, Hilário. As Cruzadas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. Pg. 19 17 Cfr. Michaud, História das Cruzadas, Joseph-Fraçois, Vol. 1, p. 105, Editora das Américas, S. Paulo,

1956.Pg. 54 18 WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del

Rey, 2007. Pg. 240.

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histórico de miséria e privação.

Por outro lado, as Cruzadas representavam, ainda, vantagens para a nobreza

secundogênita, já que apenas os primogênitos teriam direito de herança sobre a terra e os bens da

família. Desse modo, o movimento cruzadista permitia a esses nobres a chance de possui as terras à

que não teriam direito, fato que funcionava como incentivo para que esses cavaleiros rumassem ao

Oriente no intuito de livrar Jerusalém do Domínio dos muçulmanos. 19

Impende considerar, ainda, no que tange às motivações materiais, o contexto comercial

da época. Todo o período de redução de epidemias e invasões favoreceu não só o crescimento

demográfico como permitiu a evolução das técnicas de produção, o que gerou uma produção agrícola

excedente.

Assim, o Ocidente pôde voltar a obter produtos do Oriente, que por sua vez, necessitava

de gêneros alimentícios e matérias-primas oferecidas pela Europa.

Enquanto Veneza mantinha estreitas relações mercantis com as terras ocidentais através do Egito e

do Império Bizantino, de forma estável e segura, Gênova, sua maior rival, financiava os cruzados,

através de empréstimos, transporte e provisões providenciando transporte e provisões, patrocinando

os conflitos em troca de privilégios comerciais nas cidades que viessem a conquistar.

Situação muito semelhante acontecia em relação à ocupação da Europa Oriental, onde a

Hansa Teutônica, liga de comerciantes alemães, mantinha o predomínio no tráfico mercantil do norte

europeu, sendo extremamente conveniente dominar, ocupar e colonizar, a pretexto de propagar a

religião cristã, os territórios dos eslavos, considerados pagãos e, sobretudo, para que seu império

comercial fosse expandido.20

As Motivações Materiais

Nesse sentido, houve um direcionamento populacional para as cidades, que ofereciam

as vantagens da vida comercial e da liberdade quanto à servidão, mas que também acabava por

acolher aqueles que não obtiveram êxito, tornando-se marginalizados. Interessante destacar, aqui,

19 WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos de História do Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del

Rey, 2007. Pg. 240. 20 FRANCO JR, Hilário. As Cruzadas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. Pg. 20

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dois tipos de marginalidade: a heresia e a pobreza, uma porque será combatida pelas cruzadas, outra

porque fornecerá elementos para elas. Numa sociedade religiosa como a feudal, pensar

diferentemente da igreja era cometer ao mesmo tempo um pecado e um crime. Mas apesar disso

surgiam doutrinas contestando as verdades oficiais, proclamadas e defendidas pela igreja, criticando

toda a organização social e negando os valores religiosos socialmente aceitos. Combater as heresias

era, para as camadas dirigentes, combater um elemento desagregador da sociedade feudal. Ao

mesmo tempo, com o aumento populacional, muitos indivíduos deixaram de ter o mínimo para a

subsistência, garantido anteriormente através das relações servis, passando a depender da caridade

alheia, de serviços eventuais ou do crime. 21

Naquele momento falou-se então de uma tranquilidade que ocorrera na França, com os

ladrões e bandoleiros partindo para o oriente, motivados por novidades, pela pobreza, por estarem

em situação difícil na sua terra, oprimidos por dívidas com outros, ou esperando o castigo merecido

pelas suas infâmias; estes homens foram para combater não apenas os inimigos da cruz de Cristo,

mas mesmo cristãos, desde que vissem oportunidade de aliviar sua pobreza. 22

Um dos elementos sociais de mais ativa participação nas cruzadas foram os

secundogênitos de família nobre, que geralmente se tornavam clérigos e recebendo, portanto, terras

da igreja. Com o surto populacional, esta tradição revelou-se insuficiente, sobretudo porque a igreja

não tinha condições de enfeudar a todos aqueles nobres sem senhorio. A pequena nobreza sem terra

via nas Cruzadas a oportunidade para tal. Na sua tentativa de obter terras, muitos nobres atacavam

os feudos vizinhos e invadiam mesmo feudos da igreja, que sofria também com a diminuição dos

dízimos arrecadados.

A igreja era a maior interessada nos movimentos de paz, sendo as Cruzadas uma boa

oportunidade de pacificar a cristandade latina e de desviar para outros empreendimentos a nobreza e

seu espírito guerreiro e inquieto. Muitas vezes os próprios reis participavam de Cruzadas, levando

consigo para fora do país boa parte da aristocracia guerreira. A igreja tinha ainda outra razão: tentar a

reunificação da cristandade, fragilizada por uma série de divergências jurídicas, eclesiásticas,

teológicas e políticas que existia entre as igrejas de Roma e Constantinopla. O papado via nas

Cruzadas uma arma de pressão que poderia submeter a igreja oriental à Roma, dando-lhe a

supremacia sobre todos os territórios cristãos.

Após ter prometido a Deus manter a paz em suas terras e ajudar fielmente a

Igreja a conservar seus direitos, vocês poderão ser recompensados

21 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 21. 22 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 22

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empregando sua coragem noutro empreendimento. Trata-se um negócio de

Deus. [...] Que tenha uma dupla recompensa os que se esgotavam em

detrimento do corpo e da alma. A terra que habitam é estreita e miserável,

mas no território sagrado do Oriente há extensões de onde jorram leite e

mel.

(Discurso do papa Urbano II no Concílio de Clermont, em 1095)23

As Motivações Psicológicas

Ao mesmo tempo em que o movimento das Cruzadas foi marcado por um forte caráter

econômico, se fundava também em profundas diferenças religiosas entre a Igreja Católica, que se

sentia ameaçada pelo avanço dos árabes pelas terras do Império Bizantino, e o islã, que já havia

chegado à península Ibérica e tomado todo norte da África, além de manter domínio sobre a Terra

Santa desde o século VII.

Importa, portanto, ressaltar a mentalidade da época, baseada em uma reciprocidade de

direitos e obrigações entre o senhor feudal e seu vassalo. Tal entendimento se estendida também às

relações entre o homem e Deus. Segundo essa concepção, àquele recebia a terra do seu senhor,

assim como recebia a vida de Deus e, em troca, devia prestar serviço militar lutando contra os infiéis,

numa demonstração de fé e fidelidade aos preceitos religiosos. 24

Quando se fala do contexto psicológico em que as Cruzadas ocorreram, destacam-se três

elementos fundamentais da mentalidade da época: a contratualidade, a belicosidade e a

religiosidade. A realidade social do feudalismo estava fortemente baseada na ideia de contrato, de

reciprocidade de direitos e obrigações. A desigualdade social e a exploração de uma camada pelas

outras eram interpretadas como uma troca equilibrada de serviços, oferecidos pelo clero, pelos

guerreiros e pelos camponeses. O que era de início uma justificativa para a desigualdade social,

acabou se enraizando na mentalidade da população das pessoas no decorrer do tempo. Desta forma,

a contratualidade ultrapassou o nível das relações inter-humanas para atingir as próprias relações

com Deus, coexistindo com barganhas, negociações e relações com o mundo sobrenatural. As

23 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 27 24 Williams, Paul L.. O Guia Completo das Cruzadas. São Paulo: Madras. 2007.Pg. 97.

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relações homem-Deus passaram a ser concebidas como relações vassalo-senhor feudal. 25

Essa relação de obediência devida ao senhor feudal e, ao mesmo tempo, a Deus,

expressa a cultura da época em que os significados religiosos se fundiam aos sociais, como ilustrado

pelo relevante ato de unir as mãos ao orar, que fora introduzido no ritual cristão a partir do século X,

reproduzindo o gesto do vassalo ao prestar homenagem e reverenciar o senhor do feudo. A

religiosidade desse período estava impregnada destes conceitos, e tinha como baluarte o ideal de

vida cristã um estilo heroico, visando atingir a santidade através do esforço. 26

A belicosidade foi outro componente da mentalidade que se originou na prática social

para depois ganhar lugar no consciente coletivo. As invasões estrangeiras e lutas internas foram

frequentes após a crise do império Romano no século III, e o feudalismo fora, em parte, uma forma

de resistir aos invasores, fragmentando o ocidente em pequenas unidades. Procurando limitar as

lutas internas, a igreja promovera a Paz e a Trégua de Deus, proibindo guerras em certos períodos.

Um vassalo que quebrasse a sua contratualidade era entendido como demoníaco. As igrejas eram

semelhantes a castelos senhoriais com a função de se defender das forças demoníacas. Os clérigos e

os guerreiros formavam a elite dirigente e cada um com a sua especialidade em proteger a sociedade:

os guerreiros com seus cavalos, armaduras e espadas, assim como os clérigos com suas armaduras

simbólicas, as batinas e suas armas espirituais, enfrentavam os inimigos da fé, as forças do mal. Os

inimigos eram vistos como exércitos demoníacos, e portanto combatê-los era ao mesmo tempo obra

política e religiosa, como fica bem claro através das próprias Cruzadas.27

A religiosidade, por fim, era o grande traço mental da época das Cruzadas, traço formado

a partir do contato com a realidade. O homem da idade feudal vivia muito próximo e dependente de

uma natureza rude que o primitivismo e a pobreza de seu instrumental não podia controlar. Isso dava

ensejo a uma religiosidade concreta, presa ao palpável, pois esse íntimo contato com a natureza

apresentava-lhe mistérios que só poderiam ser explicados pela atuação de forças sobrenaturais. As

forças do bem poderiam ajudar o homem a dominar a natureza fazendo-a trabalhar para seu

benefício, as forças do mal poderiam ser subjugadas impedindo a ocorrência de fenômenos naturais

violentos.28

Juntamente com o aspecto contratual e bélico, a religiosidade feudal apresentava como

25 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 29 26 Williams, Paul L.. O Guia Completo das Cruzadas. São Paulo: Madras. 2007.Pg. 99 27 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 30 28 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 31

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15

ideal de vida cristã o estilo de vida heroico, de busca de proezas acéticas, de luta contra o próprio

corpo, sendo a santidade acessível pelo esforço: era como se uma maior violência para com o próprio

corpo compensasse as deficiências de conhecimento e reflexão religiosas. Tal espiritualidade levava a

uma religião de obras que representavam o conjunto de obrigações dos vassalos e homens para com

o senhor-Deus: preces, esmolas, jejuns e sobretudo peregrinações. Estas eram viagens e santuários

onde se veneravam relíquias e objetos sagrados. Assim as peregrinações cumpriam seu duplo papel,

ser uma forma de penitência e levar o indivíduo ao contato com relíquias. Os grandes centros

peregrinatórios estavam próximos a territórios muçulmanos – Jerusalém e Compostela. Portanto os

peregrinos que se dirigiam para aqueles locais passavam por maiores dificuldades do que se

visitassem santuários mais próximos, e assim purificavam-se mais de seus pecados.29

Ter contato com estes objetos sagrados era um importante objetivo dos peregrinos, pois

atribuía-se a eles poder mágico, protegendo ou curando seu portador. Porém o número de relíquias

não chegava a satisfazer a imensa necessidade do sagrado que havia na sociedade medieval. Tal fato

ensejou o culto de imagens que também se tornaram objetos de peregrinação. As cruzadas portanto

devem ser entendidas nesse contexto psicológico, sendo elas próprias “peregrinações armadas”. Era

este o espírito das Cruzadas: a) Deus é o senhor do mundo e os homens como os seus vassalos devem

servi-Lo, recuperando as regiões roubadas pelos infiéis, pagãos e heréticos; b) a Cruzada é um

exército de penitentes, de pecadores, buscando indulgência; c) a honra cavaleiresca que se buscava

numa Cruzada não poderia ser obtida de outra forma, nem ao longo de toda uma vida; d) o caráter

sagrado dos locais disputados reforçava a obrigação dos homens para com o seu Senhor e tornava-os

“soldados de Cristo”; e) a caridade fraterna do cristianismo seria praticada ao se ajudar os cristãos

oprimidos pelos muçulmanos na Terra Santa e na Península Ibérica. Os cruzados eram vistos portanto

como homens generosos, desprendidos e verdadeiros mártires, sendo a Cruzada uma obra aprovada

por Deus, sendo esta uma visão ocidental.30

Os bizantinos entretanto não aceitavam aquela ideia, já que para eles nenhuma guerra

era santa, mas apenas necessária, pois os mártires enfrentam o inimigo apenas com as armas da fé.

Para São Bernardo a Cruzada antes de um fato política militar era uma liturgia, devendo por isso estar

aberta a todos, e não apenas a uma elite. Dela deveriam participar de preferência os maus cristãos,

os grandes pecadores. A Cruzada iria vingar a honra ultrajada de Jesus, transformando a atividade

guerreira de algo condenável a uma virtude, quase santidade. O verdadeiro cruzado não lutaria

apenas com a espada, mas também com a fé – era imposta assim uma concepção de mundo em

29 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 33 30 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 34

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16

proveito das elites, sobretudo da clerical, criadora deste modelo ideológico.31

Nesse sentido, as peregrinações a lugares santos faziam parte de um conjunto de

obrigações que deviam ser observadas e, quanto mais difícil e inacessível fosse o local da

peregrinação, maior era o interesse dos peregrinos por consubstanciar o caráter heroico e de

provação incutido nas formas de se demonstrar a fé. Dentro deste contexto psicológico, as Cruzadas

eram vistas como “peregrinações armadas” e faziam com que os cruzados fossem vistos como

homens generosos, desprendidos, verdadeiros mártires à serviço de Deus, dispostos à abandonar sua

terra natal para retirar Jerusalém do domínio dos infiéis, de modo que tais conflitos fora justificados e

legitimados pela Igreja, através do conceito de Guerra Santa, ou seja, a guerra divinamente

autorizada, voltada ao combate dos infiéis, dos hereges e dos demais que renegassem os dogmas do

cristianismo. 32

Assim, além da promessa de terras a conquistar, os cruzados, cujos conceitos religiosos

estavam fortemente interiorizados, se lançaram ao combate visando também às premiações na vida

eterna. A Igreja se valeu desse fator, portanto, ao pregar sobre o conflito, pela primeira vez em

Clermont, prometendo aos que se lançassem à batalha, a redenção dos pecados, a purificação e a

salvação da alma.

A Campanha da Primeira Cruzada

A primeira cruzada aconteceu entre os anos de 1095 e 1101, a partir do Concílio de

Clermont, como anteriormente citado. A batalha foi assumida por uma nova ordem de cavaleiros,

que, em parceria com a Igreja, financiavam o conflito. 33

Todavia, antes que os nobres, militarmente preparados, partissem à frente de batalha,

uma massa de camponeses se lançou ao conflito. Essa primeira incursão terminou em tragédia,

quando cinquenta mil desses camponeses foram massacrados na Ásia menor.

31 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 37 32 Williams, Paul L.. O Guia Completo das Cruzadas. São Paulo: Madras. 2007.Pg. 99 33 BINGEMER, Maria Clara Lucchetti (org.). Violência e Religião: Cristianismo, Islamismo, Judaísmo :

três religiões em confronto e diálogo. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2001. Pg. 148.

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17

A Cruzada Popular

Embora o Papa tivesse a intenção de convocar apenas cavaleiros bem preparados, seu

discurso impeliu à batalha, inicialmente, camponeses pobres que tinham pouco a perder, seduzidos

pela ideia de enriquecer. Essa camada da população foi, deste modo, a primeira a se lançar à guerra

contra os infiéis, liderada por um pregador conhecido como Pedro, o Eremita. 34

Dirigindo-se ao leste, os cruzados passam por Constantinopla, aonde conseguem o apoio

do Império Bizantino, para a dura marcha que ainda teriam que enfrentar, até Jerusalém. Em agosto

de 1096, após deixarem a capital bizantina, a turba liderada por Pedro, o Eremita, a primeira a se

lançar à empreitada, se vê cercada em Nicéia, pelo exército do sultão turco Kilij Arslan. Mal armados

e preparados, além de isolados, os cruzados tiveram os canais que levavam água a eles cortados. Os

que não morreram de sede, foram exterminados pelo exército muçulmano.35

Iludidos pela fácil vitória, os muçulmanos tranquilizaram-se quanto às próximas tropas

cristãs que, eventualmente, viessem a atacar e voltaram suas atenções para disputas internas.

As Vitórias Cristãs

Posteriormente, em uma expedição mais organizada, cem mil componentes

provenientes da França e Sicília chegaram, em abril de 1097, à Constantinopla, retomando a cidade.

Em julho do mesmo ano reconquistaram Edessa, seguidamente de Antioquia e, finalmente,

Jerusalém. 36

O conde Hugo de Vermandois foi o primeiro líder nobre a chegar em Constantinopla, em

1096, chegando à cidade pelo mar, com seus cavaleiros e soldados. Em seguida, também pelo mar,

aportou o duque da Baixa-Lorena, Godofrede de Bouillon que , acompanhado de irmãos e primos,

encorajou figuras proeminentes tanto de regiões vizinhas do lugar, como do lugar, “a se juntarem à

empreitada até Jerusalém. Nem todos que o seguiram eram seus vassalos, mas como duque da

região de onde muitos deles vinham, [ele] portava a maior autoridade no exército lotaríngio, mais até

34 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 45. 35 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 49. 36 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 52.

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18

que seu irmão mais velho.” 37 Bouillon contribuiu, assim, para aumentar o contingente de pessoas

dispostas a lutar na guerra santa.

Em abril de 1097, mais de 40 mil homens atravessaram o estreito de Bósforo sem

encontrar resistência. O governante muçulmano, o sultão turco Kilij Arslan, iludido pela facilidade

com que havia derrotado os pobres cruzados do Eremita, estava mais preocupado com disputas

internas com vizinhos muçulmanos do que com a chegada de um novo contingente de cristãos. Como

o sultão iria perceber apenas tarde demais, esse seria o maior erro de sua vida.38

Bem equipados com escudos, armaduras e cavalaria, os cruzados cercaram e tomaram

Nicéia, devolvendo-a aos bizantinos. Em outubro de 1097, eles chegaram a Antióquia, conquistando

aquela que havia sido uma das principais cidades do Império Romano. Seis meses depois, os cristãos

partiram em direção a Jerusalém. A essa altura, restavam 13 mil homens, um terço do contingente

inicial. Após um mês de cerco, em 13 de julho de 1099, os cruzados conseguiram finalmente entrar na

cidade santa. 39

A partir de então, entraram em uma espécie de catarse, visitando os lugares santos e

agradecendo a Deus, abandonando as armas. Para a maioria deles, a conquista fora um milagre.

Menos de quatro anos após a pregação em Clermont, os cristãos vitoriosos saíam em procissão para

o Santuário do Santo Sepulcro, onde Cristo teria ressuscitado. O papa Urbano II morreu duas semanas

depois, sem ter recebido a boa notícia da vitória. Mas ele também foi poupado das más notícias que

chegariam depois.

Embora a primeira cruzada tenha atingido seu objetivo principal, consubstanciado na

reconquista de Jerusalém, os cruzados não conseguiram consolidar um governo pautado na unidade,

nem mesmo um adequado sistema financeiro, conjuntura que era agravada pelas recorrentes

disputas internas entre os Imperadores da Cidade de Constantinopla. Todo esse contexto de

fragilidade favoreceu, em 1144, a retomada de Edessa e Damasco pelos turcos, que se organizaram e

avançaram sobre o domínio perdido, ameaçando retomar a Terra Santa. 40

37 KOSTICK, Conor. 1099 – A Primeira Cruzada e a dramática conquista de Jerusalém. Tradução:

Milton Camargo Mota. São Paulo: Rosar, 2010. Título Original: The Siege of Jerusalem: crusade and conquest in 1099. Pg. 20.

38 FRANCO JÚNIOR, Hilário. “As Cruzadas”. São Paulo: Brasiliense, 1989. Pg 55. 39 BINGEMER, Maria Clara Lucchetti (org.). Violência e Religião: Cristianismo, Islamismo, Judaísmo :

três religiões em confronto e diálogo. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2001. Pg. 152. 40 BINGEMER, Maria Clara Lucchetti (org.). Violência e Religião: Cristianismo, Islamismo, Judaísmo :

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A Perspectiva Árabe sobre a Primeira Cruzada

A Primeira Invasão Europeia

Para os árabes, o dia 15 de julho de 1099 foi um dia de terror. Milhares de franj, como

eram chamados os cavaleiros europeus pelos muçulmanos, entraram em Jerusalém, assassinando

adultos, velhos e crianças indistintamente. Estupraram as mulheres. Saquearam as mesquitas. 41

As ruas da cidade sagrada foi tingida com o sangue de centenas de árabes. Àqueles

poucos que conseguiram sobreviver restou a dolorosa tarefa de enterrar, de maneira rápida, os

próprios parentes, sem nem mesmo poder velá-los, uma vez que estavam sob a ameaça de, se

capturados, serem presos e vendidos como escravos.

Apenas dois dias após a invasão europeia, em Jerusalém, não havia mais sequer um

muçulmano. Do mesmo modo não havia judeus. Nas primeira horas de conflito, várias famílias judias

tentaram, em vão, defender seu bairro, a Judéria. Entretanto, quando os franj irromperam sobre o

bairro, instaurou-se o pânico e a desordem. 42

Toda a comunidade judaica, repetindo um gesto ancestral, reuniu-se na sinagoga para

orar. Sem o menor sinal de clemência, os soldados europeus bloquearam as saídas do local e, como

lenha, atearam fogo ao templo judeu. Aqueles que não sucumbiram ao incêndio foram mortos na

rua.43

Tais investidas cristãs nos territórios dominados pelos árabes ficariam conhecidas como

as invasões dos francos (porque a maioria dos cruzados falava o francês), um período de terror e

brutalidade na história do Islã. 44

três religiões em confronto e diálogo. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2001. Pg. 153.

41 MALALOUF, Amin. As cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1998. Pg. 44. 42 MALALOUF, Amin. As cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1998. Pg. 44. 43 MALALOUF, Amin. As cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1998. Pg. 46. 44 MALALOUF, Amin. As cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1998. Pg. 52.

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20

A Primeira Invasão Franca

A primeira investida cristã sobre os árabes se deu em 1096, três anos antes da retomada

de Jerusalém. Tal ataque não preocupou o sultão turco Kilik Arslan, que detinha o comando dos

territórios atualmente conhecidos como Afeganistão e Turquia.

A tropa liderada por Pedro, o Eremita, não causava temor à população árabe da região. O

grupo, que se aproximada da cidade de Constantinopla, com a ameaça de liquidar os muçulmanos em

nada se assemelhava a um exército, figurando como mendigos e maltrapilhos aos olhos de quem os

visse passar. E, na verdade, assim o eram. Entre os guerreiros, havia uma multidão de mulheres,

velhos e crianças – um inimigo muito menos ameaçador do que os cavaleiros mercenários que o

sultão estava acostumado a enfrentar. 45

Por, aproximadamente, um mês, os cavaleiros turcos apenas observaram a

movimentação dos supostos guerreiros europeus, que se ocupavam de saquear as regiões próximas

ao seu acampamento.

Quando alguns destes franj rumou em direção às muralhas de Nicéia, a cidade que

pertencia ao Império Bizantino antes de ser dominada pelos árabes, um primeiro batalhão de

soldados turcos foi enviada para contê-los, sem sucesso, todavia. Inspirados pela primeira vitória, o

pequeno exército de Eremita prosseguiu no ataque à Nicéica, tomando a fortaleza do local. A

comemoração por tal conquista deixou o grupo à mercê dos muçulmanos, vez que se embriagaram e

voltaram suas atenções aos festejos, deixando de lado as preocupações com a batalha. 46

O sultão, então, enviou seus cavaleiros com ordens para que cercassem a fortaleza e

cortassem os canais que levavam água aos europeus. Tudo foi uma questão de tempo e a maioria do

grupo sucumbiu à sede no curto prazo de uma semana.

Os francos sobreviventes não ofereceram resistência. Tão logo tentaram uma ofensiva,

marchando lentamente e levantando uma nuvem de poeira, foram recebidos por um ataque de

flechas, que exterminou a maior parte dos soldados remanescentes, que não dispunham de proteção.

45 MALALOUF, Amin. As cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1998. Pg. 57. 46 MALALOUF, Amin. As cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1998. Pg. 57.

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21

Os que ainda conseguiram sobreviver debandaram, em pânico, proporcionando ao sultão uma falsa

sensação de tranquilidade e uma iludida visão sobre a força dos guerreiros europeus. 47

O Segundo Ataque “Fraj”

Um ano após a vitória sobre os homens de Eremita, em meados de 1097, os árabes não

se surpreenderam com a notícia de que novos cavaleiros europeus rumavam em direção ao seu

território. Todavia, esse segundo exército não era composto por maltrapilhos despreparados. O

cavaleiros agora eram nobres, treinados para a batalha, devidamente munidos de armas e armaduras,

inatingíveis pelas flechas do exército turco. 48

Em um curto período de tempo, os cruzados invadiram a cidade de Nicéia, destruindo,

assassinado, e pilhando as cidades e vilarejos em seu caminho. Os exércitos árabes não estavam

preparados para combater os milhares de homens que aportaram na região, dispostos a retomar a

Terra Santa. Sem tempo hábil para se prepararem, os muçulmanos sucumbiam pouco a pouco.

Totalmente atormentada, a população de cidades como Antióquia, aguardava a chegada dos francos,

com a desesperadora ciência de que nada poderia ser feito contra eles. 49

Alguns árabes, baseados em seu conhecimento religioso, afirmavam ser aquele o fim do

mundo. Relatos do período diziam que o final dos tempos seria precedido pelo nascer de um

gigantesco sol negro, vindo do Oeste, acompanhado de hordas de bárbaros. Ainda não havia chegado

o sol negro, todavia, os bárbaros já aterrorizavam toda a região. 50

Em 1099, de forma brutal, o exército cruzado atravessou os portões de Jerusalém. Esse

episódio alterou de forma permanente a relação entre Oriente e Ocidente. O que se seguiu então foi

uma série de saques, estupros e assassinatos de todos aqueles que fossem tidos como infiéis. Tais

punições eram dadas arbitrariamente, sem o devido processo ou julgamento. Aos muçulmanos cabia

apenas sofrê-las sem, ao menos, saber o porque. 51

47 MALALOUF, Amin. As cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1998. Pg. 68. 48 MALALOUF, Amin. As cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1998. Pg. 69. 49 MALALOUF, Amin. As cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1998. Pg. 71. 50 FRANCO JR, Hilário. As Cruzadas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. Pg. 36 51 FRANCO JR, Hilário. As Cruzadas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. Pg. 37

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22

Tal conjuntura não era coerente ao tratamento dispensado por estes mesmo

muçulmanos aos cristãos e judeus que viviam ou peregrinavam pela terra santa. No século VII,

quando os árabes chegaram à Jerusalém, instaurou-se um governo pautado na tolerância religiosa, de

modo que todas as sinagogas, bem como as igrejas cristãs foram preservadas. A única exigência feita

pelos muçulmanos para que essa situação fosse mantida era de que os povos respeitassem os

dogmas islâmicos e o profeta, e que também pegassem os impostos cobrados no local. Observado

isso, sempre haveria liberdade para viver de acordo com as crenças e as leis pertinentes à cada

religião. Os poucos casos de governos hostis aos judeus e cristãos não passavam de exceções em

longos períodos de convivência pacífica. 52

Com a derrota para o exército franj e consequente perda do domínio sobre Jerusalém, os

muçulmanos aprenderam a difícil lição de que enquanto houvessem disputas internas que impediam

os sultões de se unirem contra a ameaça europeia, nebuloso seria o futuro do Islã. O que faltava,

então, para que os povos muçulmanos se unissem, era o surgimento de um líder que conseguisse se

fazer respeitado, não por todos, mas pela maioria dos árabes. Entretanto, essa tão esperada liderança

surgiu apenas um século depois da perda da Terra Santa, de modo que a violência dispensada aos

árabes perdurou até o ano de 1174. 53

As cruzadas na atualidade: A “Cruzada” contra o terror

O ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 fez mais do que ensejar o aumento

dos investimentos norte-americanos em recursos bélicos. Em 2002, com o pretexto de acabar com os

ataques terroristas, o governo divulgou um documento intitulado “A estratégia de segurança dos

Estados Unidos”, que contém determinações para as áreas político-militar e econômica e foram

denominadas de Doutrina Bush, em virtude do presidente em exercício George W. Bush.

Segundo o documento, “não hesitaremos em agir sozinhos, se preciso for, para fazer

o uso do direito de autodefesa, de maneira preventiva e antecipada”. Dessa forma, os Estados Unidos

justificaram suas ações contra os países considerados hostis, como ficou comprovado na invasão e na

ocupação do Iraque, em 2003. A doutrina Bush estabelece também o compromisso do governo

norte-americano, em auxiliar os países, nos quais os governos incentivarem a liberdade econômica,

52 MALALOUF, Amin. As cruzadas Vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1998. Pg. 68. 53 FRANCO JR, Hilário. As Cruzadas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. Pg. 37.

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23

numa indicação clara de que os países devem adotar uma abertura de mercado. Assim, além de

consolidar o EUA como a superpotência global, o preceito procura defender seus interesses

econômicos, muitos desses consubstanciados no fornecimento de petróleo, matéria-prima e fontes

energéticas. Desse modo, a presença estadunidense no oriente médio pode ser interpretada pelos

seguintes pilares: região rica em combustíveis fósseis; região com posição estratégica, ligando Europa,

Ásia e África; e região em que a cultura dominante é veemente contraria à pregada pelo ocidente.

Uma amostra do paralelismo entre a guerra contra o terror e as cruzadas é que em 16

de setembro de 2001, cinco dias depois dos ataques contra as Torres Gêmeas, em Nova York, o

presidente dos EUA, George W. Bush anunciou a retaliação, avisando que “essa cruzada, a guerra

contra o terrorismo, vai demorar algum tempo”, discurso que será analisado ao longo do trabalho.

Breve síntese das invasões norte-americanas

Os Estados Unidos agem como uma superpotência absoluta, com sua superioridade

militar e o predomínio econômico, tecnológico e científico indiscutível são alguns dos elementos que

reforçam a hegemonia norte-americana sobre as demais nações. Com exemplo básico tem-se a

ofensiva militar contra o Iraque, junto com o Reino Unido, sem a provação da ONU, para derrubar o

governo de Saddam Hussein, bem como a reação norte-americana ao atentado terrorista de 11 de

setembro de 2001 invadindo o Afeganistão.

O biênio 2001/2002 foi marcado pelo discurso dos Estados Unidos de que os ataques

foram motivados pelo anseio de eliminar com o terrorismo instalado nos países acometidos,

principalmente Osama Bin Laden, líder do grupo islâmico Al Qaeda, acusado de ter planejado os

ataques terroristas de 11 de setembro.

O EUA, como já dito, derrubou o governo afegão, bem como o governo iraquiano,

sendo sua política alicerçada na doutrina da guerra preventiva. No entanto, não havia nenhuma

evidencia de uma ameaça de fato ou imediata, principalmente, no que tange à guerra contra o

Iraque. Não havia nenhuma prova de que o governo iraquiano estivesse ligado à Al Quaeda,

financiasse qualquer outro grupo terrorista ou possuísse armas de destruição em massa.

Além da ofensiva no Afeganistão, outras reações do governo norte-americano podem

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ser elencadas, como a definição do “eixo do mal”, composto por Coreia do Norte, Irã e Iraque, países,

que em sua visão apoiam o terrorismo internacional. Outra questão é o estabelecimento da doutrina

Bush, bem como a aprovação de leis que restringem os direitos civis, como a permissão de grampear

telefones e prender estrangeiros suspeitos por tempo indeterminado.

Na realidade, muitos analistas indicam que o ataque terrorista de 11 de setembro

criou condições favoráveis e serviu de pretexto para que os Estados Unidos atuem no mundo de

acordo com seus próprios interesses econômicos, impondo sua presença e domínio a regiões

estratégicas do planeta, independentemente das decisões internacionais medidas pela ONU.

Por trás da guerra do Afeganistão, por exemplo, estava o interesse dos Estados Unidos

em ampliar sua presença na Ásia Central e no Oriente Médio, onde se localizavam também países que

pertenciam a URSS, como o Casaquistão e o Turcomestão, que abrigam grandes reservas de petróleo

e de gás natural. Além disso, para que esses recursos possam ser escoados para o mundo ocidental

são necessários gasodutos e oleodutos que devem passar pelo Afeganistão e pelo Paquistão.

Portanto, o interesse do EUA em manter governos pro ocidentais, nessas regiões asiáticas.

Por sua vez, no que tange à ocupação do Iraque outras questões são levantas: os

norte-americanos usaram seu poderio militar para favorecer empresas nacionais dos setores

petrolíferos e da construção civil e ampliaram sua influencia no Oriente Médio, que já ocorria com o

controle do Afeganistão.

Por fim, faz-se mister levantar algumas motes: após o atentado de 11 de setembro, o

governo dos EUA, utiliza o termo guerra preventiva, que permite que seja feita a guerra não em

resposta a um ataque, mas com o escopo de evitá-los, o que é um dos caracterizadores da chamada

Doutrina Bush. Assim, os atentados do World Trade Center convieram de pretexto para a Guerra do

Afeganistão e posteriormente do Iraque, preventivamente. Essas duas guerras são as principais

representantes da denominada Guerra ao Terror. Entretanto, não só elas, mas também a edição do

Patriot Act, que ataca liberdades e garantias individuais do norte americano em nome de um bem

maior, a saber, a segurança. Há, outrossim, de se ressaltar a morte de Saddam Hussein e, mais

recentemente, de Osama Bin Laden (um verdadeiro assassinato sem processo legal) como atos dessa

famigerada Guerra, podem estes atos ser comparados com um processo inquisitório, sem direito ao

contraditório, sem o devido processo legal, ou qualquer principio constitucional basilar de uma

sociedade humana minimamente organizada, civilizada, e que preza pelos direitos humanos.

Page 25: A cruzada contra o terror - os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

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Outra amostra importante da falta de um devido processo legal é a Prisão de

Guantánamo, oficialmente Campo de Detenção da Baía de Guantánamo, que é uma prisão militar

estadunidense, na ilha de Cuba. As condições dos presos mantidos foram motivo de indignação

internacional e alvo de duras críticas, tanto por parte de governos como de organizações

humanitárias internacionais. Desde janeiro de 2002, depois dos ataques terroristas de 11 de

setembro, foram aprisionados nesta base militar prisioneiros, muitos deles afegãos e

iraquianos acusados de ligação aos grupos Talibã e Al-Qaeda. Sendo que as criticas aversão sobre o

fato de que estes prisioneiros são vítimas de tortura, em desrespeito aos direitos humanos e

à convenção de Genebra, bem como por não haver qualquer processo para conhecimento dos fatos

praticados pelos prisioneiros, sem lhes oferecer qualquer forma de defesa, sem penas definidas, ou

algum principio processual penal. O entendimento da literatura coaduna com o dito, conforme se

observa nos seguintes trechos:

“a prisão de Guantánamo, Cuba, para ‘combatentes ilegais’, tem

condições não existentes nas convenções internacionais. Esses

prisioneiros não tomaram conhecimento formal de qualquer acusação

contra ele e nem pensar em presença de advogados” (..) “as libertações

não se deram por sentença judicial, mas pela conclusão de que o infeliz

‘não mais representava ameaça à segurança dos Estados Unidos. Se o

representou, algum dia, nunca ficou muito claro. E muito menos

comprovado’”. 54

“E destacando-se acima de tudo, como um pesadelo, está Guantánamo,

onde 600 ‘combatentes ilegais’ de quarenta e quatro países são

mantidos sem acusação, muitos dos quais entregues por caçadores

afegãos recompensados.” 55

Literatura acerca da Guerra ao Terror

Nesta seção, temos como objetivo colecionar alguns arrazoados sobre a Guerra ao

54 Carlos, Newton. Bush e a doutrina das guerras sem fim. Rio de Janeiro: Revan, 2ª edição, 2003.

Pag.63. 55 Soros, George. A era da insegurança: as consequências da guerra contra o terrorismo; tradução:

Lúcia Boldorini. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. Prefácio, pag.33.

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26

Terror em prendida pelos Estados Unidos.

George Soros afirma em A Era da Insegurança – As consequências da guerra contra o

terrorismo:

“O processo deve começar pelo reconhecimento de que a guerra ao

terror é uma metáfora falsa. Hoje em dia, já se admite que a invasão do

Iraque foi um erro doloroso, mas a guerra ao terror continua a ser

considerada uma boa política, de modo geral” 56

Outro ponto levantado pelo autor é sobre a receptiva de críticas pelo governo

americano: “ao declarar guerra ao terror, Bush revogou o pensamento critico, que é a essência da

sociedade aberta. As criticas às políticas do presidente foram denunciadas como impatrióticas.” 57

A invasão ao Iraque foi apoiada sobre o argumento de que esse país teria armas de

destruição em massa. Entretanto, tal arsenal até hoje não foi encontrado, o que foi fato de inúmeras

críticas perante a opinião pública mundial. No livro Bush e doutrina das guerras sem fim, Newton

Carlos afirma: “A nova estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos declara que ‘temos de

estar preparados para imobilizar regimes malfeitores e seus clientes terroristas antes que eles

possam disparar armas de destruição em maciça’.” 58

O eixo do mal, nas Cruzadas, eram os árabes, considerados infiéis. Atualmente, são

os terroristas, frequentemente taxados como em sua totalidade como fundamentalistas

muçulmanos, como destaca Newton Carlos:

“Até que o eixo do mal de hoje se parece com o império do mal de

ontem, sobretudo em seus componentes teológicos fundamentalistas.

Mãos agarradas em Bíblias e a obsessão por orações (o presidente

costuma rezar com seu círculo íntimo) compõem traços comuns”.59

E finaliza:

56 Soros, George. et al., pag. 6. 57 Soros, George. et al., 2007., pag. 59.

58 Carlos, Newton. et al., 2003. Pag.13. 59 Carlos, Newton et al., 2003., pag. 34.

Page 27: A cruzada contra o terror - os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

27

“Embora o Iraque de Saddam Hussein tenha sido indiciado como cabeça

de um eixo do mal, o motivo maior da guerra não foi ideológico. Foi

econômico e seu primeiro nome, todos sabem, é petróleo. (...) O fato é

que a seara de Bush não é a mesma de Carter. A de Bush foi à Guerra

como um exército de cruzados do bem contra o mal e a disposição de

abater o islamismo” 60

Os pontos de contato entre Cruzadas e Guerra ao Terror são inúmeros. Muito se fala

sobre o fundamentalismo cristão do governo Bush e do Partido Republicano. George Soros considera

que o Partido Republicano é controlado por conservadores e extremistas religiosos. Assim como nas

Cruzadas, o argumento da guerra contra o Mal, com argumentos religiosos, foi utilizado na atual

guerra empreendida pelos EUA. Carol Brightman, em Insegurança Total – O mito da onipotência

americana diz:

“O inflado leviatã americano, enfurecendo-se com seu armamento mal adequado a

uma guerra assimétrica, mas ainda munido de autoridade diplomática, dá ao Estado militar de Israel

o poder de ser seu ‘número dois’ na cruzada contra os árabes.” 61

Teoria da Guerra Justa

O fenômeno das Cruzadas está densamente ligado à doutrina da Guerra Justa. A

teoria foi formulada por uma Igreja ambivalente em relação à guerra e o uso da força que afirmava

que a violência em si é um mal, mas que a passividade diante dela poderia ser um mal maior.62

A Teoria da Guerra Justa tem suas origens no pensamento de Cícero, Santo Agostinho,

São Tomás de Aquino e Hugo Grotius. Para Santo Agostinho, a guerra é uma extensão do ato de

governar, sem que com isto todas as guerras se justifiquem moralmente.

Nos ensinamentos da Guerra Justa, afirmava-se que deveria haver critérios para saber

60 Carlos, Newton et al., 2003., pag. 34.

61 Brightman, Carol. Insegurança total: o mito da onipotência americana; tradução Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Record, 2006. Pag 30. 62 MUNIZ, Mônica. “A Nova Cruzada Contra O Islam.” Disponível em:

<http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=363>. Acesso em: 7 de junho de 2012.

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28

quando era permissível travar uma guerra. Para Agostinho de Hipona o primeiro critério é

a Autoridade Adequada. Ele assim caracterizava: "A ordem natural, que é dirigida para a paz das

coisas morais, requer que a autoridade e a deliberação para realizar uma guerra estejam sob o

controle de um líder". O segundo critério necessário para Agostinho era a Causa Adequada, ou seja,

são as razões para ir para a guerra. Estas razões são tão importantes quanto à autoridade que ordena

ir para a guerra. Ele especificamente retira as justificativas para ir para a guerra que envolva: o desejo

de causar dano, a crueldade da vingança, uma mente implacável e insaciável, a selvageria da revolta e

o orgulho da dominação. Agostinho via a guerra como uma trágica necessidade do relacionamento

entre os povos, contudo fazia a seguinte admoestação: "deixe que a necessidade mate o seu inimigo

de guerra, não o seu desejo". Por fim, deve os combatentes devem ter as Intenções Corretas, isto é, o

estabelecimento da paz e da Justiça. 63

Deste modo, houve um ajustamento da doutrina na Guerra Santa, na qual foram

preenchidos todos os critérios necessários para a necessidade de uma guerra onde a violência que

era moralmente neutra e que aqueles que a usassem para o progresso do Reino de Cristo, poderiam

transformá-la num bem positivo, onde os cristãos que se engajassem nela não precisavam temer o

fogo eterno.

Este ajustamento da doutrina da Guerra Justa ficou conhecido como Guerra Santa,

termo cunhado por cristãos e não por muçulmanos como estamos habituados a ouvir. Guerra Santa

promovida pela Igreja contra os infiéis, os muçulmanos, os sarracenos que ocupavam a terra sagrada,

a qual deveria estar preparada para a segunda vinda do Cristo.

Por outro lado, se observarmos bem, a Cruzada contra o Terror, empreendida pela

ampla coalizão liderada pelos Estados Unidos, preenche todos os requisitos da Guerra Santa, ou seja,

Causa Justa, o combate ao terror, Autoridade Devida, o presidente americano, e Intenções Corretas,

todos estão bem intencionados. Por certo que os novos cruzados não precisarão temer o fogo eterno,

mesmo que os eventuais e inevitáveis "danos colaterais" refiram-se à morte de milhares de civis

inocentes, os novos infiéis.64

63 GOLDIM, José Roberto. “Teoria da Guerra Justa”. Disponível em:

<[http://www.ufrgs.br/bioetica/guerra.htm]>. Acesso em: 12 de maio de 2012. 64 MUNIZ, Mônica. “A Nova Cruzada Contra O Islam.” Disponível em:

<http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=363>. Acesso em: 7 de junho de 2012.

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29

A Teoria da Guerra Justa busca identificar as condições e ações que justifiquem o uso

da guerra, tornando-a aceitável, mas o que se percebe é que em ambas as guerras nenhuma pode

realmente receber o título de Justa, como se atesta nas palavras de Thomas Morus, no século XVI, no

seu livro Utopia ele permitia a guerra apenas com finalidade defensiva e acrescentou “na realidade

nenhuma guerra que se conheça na história, no presente ou no futuro que se possa prever foi

justa".65

Semelhança nos discursos iniciais

Em 18 de novembro de 1095, ocorreu em Clermont, no sul da França, o Concílio mais

importante de sua geração. No qual, o destaque foi o Papa Urbano II, uma vez que este tinha uma

mensagem especial a transmitir no ultimo dia do concílio, o enceto das Cruzadas, por causa desse

anúncio milhares, senhores seculares relevantes e até mesmo as pessoas mais humildes foram

alentados a viajar até a cidade de Clermont.66

O discurso do Papa Urbano foi preservado na íntegra em quatro versões de

personagem que dizem ter presenciado o comunicado, sendo elas as versões de Fulcher de

Chartres67, Roberto o Monge, Balderic de Dol e Guibert de Nogent, cada versão apresentando

pequenas diferenças, mas trazendo consigo a mesma ideia.

Assim, no dia 27 de novembro, o papa transmitiu sua mensagem à multidão, “chegou

a hora de ajudar os irmãos cristãos no Oriente, cujo sofrimento nas mãos dos sarracenos cresce com

o passar dos dias”. Seu apelo era para que fosse iniciada uma marcha de reconquista sobre as terras

sagradas em poder dos muçulmanos pelos cristãos. Nessa guerra santa, haveria liberdade e perdão

65 GOLDIM, José Roberto. “Teoria da Guerra Justa”. Disponível em:

<[http://www.ufrgs.br/bioetica/guerra.htm]>. Acesso em: 12 de maio de 2012.

66 KOSTICK, Conor. “1099 Primeira Cruzada e a Dramática Conquista de Jerusalém, A.” 2010. Edição 1. P.15. 67 É aúnica versão que mostra as citações, o que proporciona credibilidade (cientificidade) ao

discurso e ainda é a versão que mais utiliza os performativos como: exortar, demandar e ordenar. Neste sentido, MATTOS, Barbara Abib Neves Mattos. O Discurso Religioso Como Prerrogativa Para a Violência Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. Tubarão, Santa Catarina, 2005. p.68. Disponível

em:<http://busca.unisul.br/pdf/77919_Barbara.pdf>. Acesso em 05 de junho de 2012.

Page 30: A cruzada contra o terror - os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

30

para o cometimento de atos violentos, sendo garantida a indulgência para quem assim agisse,

assegurando para estes o paraíso, livre de pecados.68

Portanto, havia chegado a hora de ir à luta, pois a violência em si é um mal, mas que

a passividade diante dela poderia ser um mal maior. A multidão presente ficou entusiasmada e aos

gritos, o sentimento de que fariam marcha para o Oriente, sob a vontade de Deus, empolgou a todos.

O papa havia lhes proporcionado um sonho. A terra jorrava leite e mel

haveria de ser deles. Os cavaleiros podiam obter a salvação e a graça de

Deus sem precisar abandonar o cavalo e a lança. Tratava-se de uma

missão divina, uma peregrinação, uma guerra tudo combinado em um

movimento onde se viria o Povo de Deus marchando como se fossem os

filhos de Israel sendo libertados do Egito.69

Na sua fala, Urbano II destacou o perigo em que o imperador dos gregos

(Alexis/Aleixo Comneno) se encontrava devido ao expansionismo muçulmano, alertando que para o

mundo cristão deveria se defender para não sucumbir à conquista islâmica. Dessa forma, se

consubstancia a conotação política acentuada, quando o Papa incentiva à expansão do território a fim

de impedir o crescimento das outras religiões.

Também fica claro em todas as versões, a presença de um sentimento de eliminar

aqueles que destoassem do ponto de vista da fé, ou seja, os não-crentes em Cristo.70

Nesse sermão, Urbano II usou a alegação de que os turcos maculavam os lugares

santos cristãos além de perturbar os peregrinos como justificativa para motivar a população a se

alistar em tal jornada.

Deste modo, após o discurso do Papa Urbano II começou uma longa campanha, em

68 KOSTICK, Conor. “1099 Primeira Cruzada e a Dramática Conquista de Jerusalém, A.” 2010. Edição

1. P.15. 69 KOSTICK, Conor. “1099 Primeira Cruzada e a Dramática Conquista de Jerusalém, A.” 2010. Edição

1. P. 16 70 MATTOS, Barbara Abib Neves Mattos. O Discurso Religioso Como Prerrogativa Para a Violência.

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. Tubarão, Santa Catarina, 2005. p.68. Disponível

em:<http://busca.unisul.br/pdf/77919_Barbara.pdf>. Acesso em 05 de junho de 2012.

Page 31: A cruzada contra o terror - os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

31

nome de Deus contra os pecadores. Período em que cristãos e muçulmanos vivenciaram uma

verdadeira matança.

Acontece que, em pleno século XXI, vem a público mais um discurso que sustenta a

guerra contra o mal.

Após os atentados de 11 de setembro de 2001, em que, ataques sacodem os Estados

Unidos e deixam o planeta em estado de alerta. Aviões de carreira são sequestrados e lançados

contra o Wolrd Trade Center, em Nova York, e o Pentágono, em Washington. Com uma ousadia nunca

vista, os ditos terroristas atingiram dois símbolos máximos daquele país: o As Torres Gêmeas, símbolo

do poder econômico, e o pentágono, símbolo do poder militar. Um terceiro avião, também

sequestrado, caiu na Pensilvânia. Imagina-se que atingiria o Capitólio ou mesmo a Casa Branca, os

símbolos do poder político do país. Horas após o ataque, o presidente norte-americano, em cadeia de

rádio e televisão, dirigia-se à nação. Em um discurso contundente, afirmava que o país entraria em

guerra contra o terrorismo.71

Bush lembrou palavras, imagens e histórias que foram utilizadas na construção da

nação norte-americana desde o século XIX. O presidente evocou a identidade norte-americana, o

nacionalismo e o patriotismo, lembrou a missão e o destino norte-americano no mundo.72

O discurso de George W. Bush, ex-presidente dos EUA, guarda certas afinidades com

o discurso proferido pelo Papa Urbano II. Os dois foram grandes autoridades em suas épocas, e

buscaram por meio de uma guerra justa livrar-se do eixo do mal, que nas Cruzadas, eram os árabes,

considerados infiéis e, atualmente, são os terroristas, que na totalidade são taxados como

fundamentalistas muçulmanos.

Outra singularidade que pode ser apontada nos discurso está na forma em que

utilizaram para narrar às atitudes dos inimigos, bem como são vistos os inimigos, antes sarracenos,

ora terroristas. O Papa Urbano alegou como já foi dito que os turcos maculavam os lugares santos

cristãos, além de perturbar os peregrinos, nas suas palavras “chegou a hora de ajudar os irmãos

cristãos no Oriente, cujo sofrimento nas mãos dos sarracenos cresce com o passar dos dias”.

71 Discurso disponível na integra em: http://www.bresserpereira.org.br/Terceiros/TerrorWTC/Bush-Set21-

Discurso.PDF. Acesso em 05 de junho de 2012. 72 JUNQUEIRA, Mary A. Os discursos de George W. Bush e o excepcionalismo norte-americano. São

Paulo, 2003. P. 1 Disponível em:<http://www.pucsp.br/margem/pdf/m17mj.pdf>. Acesso em 05 de junho de 2012.

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32

Igualmente, o ex-presidente dos EUA disse que ”a diretiva dos terroristas os leva a matar cristãos e

judeus, a matar americanos e a não separar os militares dos civis, incluindo mulheres e crianças”,

ficando claro o mesmo sentimento revestido em outras palavras, e ele continua, “o povo do

Afeganistão tem sido brutalizado, muitos estão morrendo de fome, e muito outros fugiram. As

mulheres não podem freqüentar escolas. Você pode ser preso por possuir um aparelho de TV. A

religião só pode ser praticada conforme ditada por seus líderes. Um homem pode se preso, no

Afeganistão, se sua barba não for longa o suficiente.” Percebe-se, portanto, que a ideia de um caráter

do mal genérico permanece, e é um dever dos ocidentais, desta vez representados pelos americanos,

livrar o mundo desse mal, como outrora foi dever dos cristãos.

Papa Urbano II, continuando com as comparações, demonstra em seu discurso, a

presença de um sentimento de eliminar aqueles que destoassem do ponto de vista da fé, ou seja, os

não-crentes em Cristo. Deste modo, percebemos também a presença de sentimento no discurso da

atualidade.

Nós vamos cortar o financiamento dos terroristas, jogar um contra o

outro, fazê-los correr de um lugar para o outro até que não haja mais

refúgio ou descanso. E nós vamos perseguir nações que ofereçam ajuda

ou abrigo seguro para o terrorismo. Cada nação, em cada religião, tem

de tomar uma decisão agora. Ou estão conosco ou estão com os

terroristas. Desse dia em diante, qualquer nação que continue a proteger

ou sustentar terrorismo vai ser considerada pelos Estados Unidos como

um regime hostil.73

No fragmento, podemos visualizar claramente que George W. Bush considera inimigo

qualquer um que destoar do ponto de vista americano, ou seja, ele divide entre os que estão com os

americanos e os que estão com terrorista.

Insta destacar, ainda, a facilidade com que o Ocidente consegue arregimentar

exércitos quando o oponente é do Oriente. Avançam sobre o inimigo como um bloco único,

homogêneo. Divergências sérias são relevadas e, pelo menos por alguns instantes, há paz entre

nações do Ocidente. O ideal de união, de unidade, parece surtir efeito apenas em meio ao declarado

conflito contra o Oriente. Tal facilidade fica clara no proferido por Bush sobre o início do ataque ao

73 Discurso disponível na integra em: http://www.bresserpereira.org.br/Terceiros/TerrorWTC/Bush-Set21-

Discurso.PDF. Acesso em 05 de junho de 2012.

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Iraque:

Mais de 35 países estão dando uma colaboração fundamental, do uso de

suas bases navais e aéreas à ajuda em questões de inteligência e

logística, e à convocação de unidades de combate. Cada país nessa

coalizão escolheu assumir sua tarefa e dividir a honra de servir em nossa

defesa comum.

A todos os homens e mulheres das forças armadas dos Estados Unidos

que estão agora no Oriente Médio, a paz de um mundo tumultuado e a

esperança de um povo oprimido agora depende de vocês.74

Por fim, cabe ainda afirmar, como semelhança entre os discursos, a religiosidade

marcante em ambos. O discurso de Papa Urbano é claramente um discurso religioso, toda sua

essência se dá no cristianismo, o Papa falou em uma missão de Deus, suas palavras levava a incitar de

forma explícita a utilização de violência, o que é pior, em nome de Deus, na representação do Papa

Urbano II e da Igreja Católica Apostólica Romana no Concílio de Clermont, na França, em 1095.75 Do

outro lado, de forma mais contida, mas presente, o nome de Deus também é utilizado nos discursos

do ex-presidente americano, frase como “O curso desse conflito é desconhecido, mas seu final é

certo. Liberdade e medo, justiça e crueldade, sempre estiveram em guerra, e sabemos que Deus não

é neutro entre eles.” e também “Que Deus abençoe nosso país e todos que o defendem”

demonstram a religião presente.

Portanto, é possível perceber algumas semelhanças nos discursos do George Bush e

de Papa Urbano II, ou seja, cada discurso teve seu lugar na sua época, cada discurso teve guerras

diferentes posteriormente, mas guardam algumas semelhanças que alimenta a ideia de uma nova

Cruzada contra os muçulmanos

74 Discurso disponível na integra em:http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u53194.shtml.

Acesso em 05 de junho de 2012. 75 MATTOS, Barbara Abib Neves Mattos. O Discurso Religioso Como Prerrogativa Para a Violência.

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. Tubarão, Santa Catarina, 2005. P.69. Disponível

em:<http://busca.unisul.br/pdf/77919_Barbara.pdf>. Acesso em 05 de junho de 2012.

Page 34: A cruzada contra o terror - os conflitos entre o oriente e o ocidente sob o olhar contemporâneo

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A jurisprudência brasileira com o cotejo de discursos religiosos

Este trabalho, ao tratar do tema “Cruzadas - no passado e no presente”, pretende

discutir pontos que vão além das guerras travadas entre ocidente-cristão e oriente-muçulmano. Deve

ser levado em conta o papel que a utilização do discurso religioso desempenhou – e continua

desempenhando – neste embate, servindo para legitimar atos de barbárie e para alimentar e

retroalimentar um ideário de intolerância, ao forjar a figura do “outro”, o “diferente”, aquele que é “a

causa dos nossos males e que deve ser combatido”. É importante ter em mente que a religião, antes

de ser a causa, é o meio pelo qual se chega a este discurso de ódio. Não há que se pensar na violência

e na intolerância como discursos intrínsecos às religiões. No entanto, face às lições da história,

constata-se que os praticantes daquela religião, e, sobretudo, os fanáticos religiosos, são os primeiros

a serem persuadidos por quem utiliza da religião para atingir objetivos que, muitas vezes, prejudicam

seus próprios seguidores.

Ainda é preciso considerar outro ponto no que toca ao papel da utilização da religião

na disseminação da intolerância. Toda religião funda-se em dogmas, verdades absolutas – e, logo,

inquestionáveis – que devem apenas ser cridas. Não há nada de errado ou censurável nesse fato. A

todos é assegurado o direito de professar a fé que desejar. Ser adepto a certa religião é, sobretudo,

uma orientação pessoal. Assim, poder-se-ia pensar: a religião enquanto mera orientação pessoal em

nada contribui para práticas de intolerância, em nada serve à violação de direitos alheios. Porém,

toda orientação direciona para certo fim. Até onde a religião deve orientar a ação dos indivíduos?

Como estabelecer o limite entre o que é – e o que não é – aceitável ser direcionado por dogmas

religiosos?

Nos últimos anos, a sociedade brasileira tem presenciado discussões de extrema

importância, onde o pensamento religioso foi voz ativa, dando, em alguns casos, a palavra final, até o

presente momento. São exemplos as discussões relativas à pesquisa com células-tronco, à liberação

do aborto, ao casamento entre homossexuais, ao combate à homofobia, etc. Uma orientação

religiosa é ainda mais perigosa quando adotada por aqueles que, a princípio, por ela não deveriam

ser influenciados. Quando o Estado, personificado em seus servidores, adota uma postura

fundamentada em preceitos religiosos, as conseqüências podem culminar no desrespeito a direitos

notadamente reconhecidos. Isto porque, como já dito anteriormente, as religiões são fundadas em

dogmas, e, diferentemente dos dogmas, que são estáveis, a sociedade é dinâmica, muda a todo

tempo. Cabe ao Estado proteger os direitos das minorias, logo, este deve dar conta de acompanhar

esta dinamicidade da sociedade, e, obviamente, um discurso imutável não é ideal para este fim.

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35

Seguem abaixo trechos de decisões e de posicionamentos de magistrados que

tiveram clara orientação religiosa. O primeiro trecho é de uma decisão do juiz Edilson Rumbelsperger

Rodrigues, titular da 1ª Vara Criminal e da Infância e Juventude da comarca de Sete Lagoas. Na

decisão, ele não provê demanda fundada na Lei Maria da Penha, sob a justificativa de considerá-la

inconstitucional. Após reiteradas decisões semelhantes a esta, o caso chegou ao Conselho Nacional

de Justiça, que decidiu por punir o juiz, colocando-o em disponibilidade por dois anos. O juiz já foi

reintegrado ao serviço público e atualmente exerce função. O segundo trecho é de declaração do

ministro Cezar Peluso, do STF, concedida em uma entrevista ao site Consultor Jurídico. Peluso teve

um mandado indiscutivelmente polêmico, mas, ao mesmo tempo, responsável por decisões muito

significativas para a sociedade. Independentemente do julgamento da competência e imparcialidade

do ministro em suas decisões, o trecho transcrito pretende demonstrar como é quase inafastável a

interação entre posicionamento pessoal e posicionamento enquanto magistrado. Na entrevista, o

ministro defende a manutenção do crucifixo na parede do plenário do STF. Na declaração, ele não usa

de fundamentos religiosos, mas seu posicionamento sobre a questão já deixa ver sua inclinação para

o discurso religioso, haja visto o caráter das decisões que teve em relação a certos temas polêmicos.

Trecho 1:

DECISÃO do Juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues - 1ª Vara Criminal e da Infância e

Juventude de Sete Lagoas - TJMG

Autos nº 222.942-8/06 (“Lei Maria da Penha”)

O tema objeto destes autos é a Lei nº 11.340/06, conhecida como “Lei Maria da

Penha”. Assim, de plano surge-nos a seguinte indagação: devemos fazer um julgamento apenas

jurídico ou podemos nos valer também de um julgamento histórico, filosófico e até mesmo religioso

para se saber se esse texto tem ou não autoridade?No caso dos anencéfalos, lembro-me que Dr.

Cláudio Fonteles — então Procurador-Geral da Republica — insistia todo o tempo em deixar claro que

sua apreciação sobre o tema (constitucionalidade ou não do aborto dos anencéfalos) baseava-se em

dados e em reflexões jurídicas, para, quem sabe, não ser “acusado” de estar fazendo um julgamento

ético, moral, e, portanto de significativo peso subjetivo.

Ora! Costumamos dizer que assim como o atletismo é o esporte-base, a filosofia é a

ciência-base, de forma que temos de nos valer dela, sempre. Mas querem uma base jurídica inicial?

Tome-la então! O preâmbulo de nossa Lei Maior:“ Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos

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36

em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o

exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento,

a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem

preconceitos, fundadas na harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional, com

solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da

Republica Federativa do Brasil.” — grifamos.

Diante destes iniciais argumentos, penso também oportuno — e como se vê

juridicamente lícito — nos valer também de um julgamento histórico, filosófico e até mesmo religioso

para se saber se esse texto, afinal, tem ou não autoridade. Permitam-me, assim, tecer algumas

considerações nesse sentido.

Se, segundo a própria Constituição Federal, é Deus que nos rege — e graças a Deus

por isto — Jesus está então no centro destes pilares, posto que, pelo mínimo, nove entre dez

brasileiros o têm como Filho Daquele que nos rege. Se isto é verdade, o Evangelho Dele também o é.

E se Seu Evangelho — que por via de consequência também nos rege — está inserido num Livro que

lhe ratifica a autoridade, todo esse Livro é, no mínimo, digno de credibilidade — filosófica, religiosa,

ética e hoje inclusive histórica.

Esta “Lei Maria da Penha” — como posta ou editada — é, portanto de uma heresia

manifesta. Herética porque é antiética; herética porque fere a lógica de Deus; herética porque é

inconstitucional e por tudo isso flagrantemente injusta.

Ora! A desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher — todos nós

sabemos — mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem.

Deus então, irado, vaticinou, para ambos. E para a mulher, disse:“(...) o teu desejo

será para o teu marido e ele te dominará (...)” Já estalei diz que aos homens não é dado o direito de

“controlar as ações (e) comportamentos (...)” de sua mulher (art. 7º, inciso II).

Ora! Que o “dominar” não seja um “você deixa?”, mas ao menos um “o que você

acha?”. Isto porque o que parece ser não é o que efetivamente é não parecia ser. Por causa da

maldade do “bicho” Homem, a Verdade foi então por ele interpretada segundo as suas maldades e

sobreveio o caos, culminando — na relação entre homem e mulher, que domina o mundo — nesta

preconceituosa lei.

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37

Mas à parte dela, e como inclusive já ressaltado, o direito natural, e próprio em cada

um destes seres, nos conduz à conclusão bem diversa. Por isso — e na esteira destes raciocínios —

dou-me o direito de ir mais longe, e em definitivo! O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus

é masculina! Jesus foi Homem! Á própria Maria — inobstante a sua santidade, o respeito ao seu

sofrimento (que inclusive a credenciou como “advogada” nossa diante do Tribunal Divino) — Jesus

ainda assim a advertiu, para que também as coisas fossem postas cada uma em seu devido lugar:

“que tenho contigo, mulher!?”.

E certamente por isto a mulher guarda em seus arquétipos inconscientes sua

disposição com o homem tolo e emocionalmente frágil, porque foi muito também por isso que tudo

isso começou. A mulher moderna — dita independente, que nem de pai para seus filhos precisa mais,

a não ser dos espermatozoides — assim só o é porque se frustrou como mulher, como ser feminino.

Tanto isto é verdade — respeitosamente — que aquela que encontrar o homem de sua vida, aquele

que a complete por inteiro, que a satisfaça como ser e principalmente como ser sensual, esta mulher

tenderá a abrir mão de tudo (ou de muito), no sentido dessa “igualdade” que hipocritamente e

demagogicamente se está a lhe conferir. Isto porque a mulher quer ser amada.

Só isso. Nada mais.

Só que “só isso” não é nada fácil para as exigências masculinas. Por isso que as

fragilidades do homem tem de ser reguladas, assistidas e normatizadas, também. Sob pena de se

configurar um desequilíbrio que, além de inconstitucional, o mais grave, gerará desarmonia, que é

tudo o que afinal o Estado não quer.Ora! Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas

desta lei absurda o homem terá de se manter tolo, mole — no sentido de se ver na contingência de

ter de ceder facilmente às pressões — dependente, longe, portanto de ser um homem de verdade,

másculo (contudo gentil), como certamente toda mulher quer que seja o homem que escolheu amar.

Mas poder-se-ia dizer que um homem assim não será alvo desta lei. Mas o será assim

e o é sim. Porque ao homem desta lei não será dado o direito de errar. Para isto, basta uma simples

leitura do art. 7ª, e a verificação virá sem dificuldade.

Portanto, é preciso que se restabeleça a verdade. A verdade histórica inclusive e as

lições que ele nos deixou e nos deixa. Numa palavra, o equilíbrio enfim, Isto porque se a reação

feminina ao cruel domínio masculino restou compreensível, um erro não deverá justificar o outro, e

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38

sim nos conduzir ao equilíbrio. Mas o que está se vendo é o homem — em sua secular tolice —

deixando-se levar, autoflagelando-se em seu mórbido e tolo sentimento de culpa. Enfim! Todas estas

razões históricas, filosóficas e psicossociais, ai invés de nos conduzir ao equilíbrio, ao contrário vêm

para culminar nesta lei absurda, que a confusão, certamente está rindo à toa!

Porque a vingar este conjunto normativo de regras diabólicas, a família estará em

perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras — porque sem pais; o homem

subjugado; sem preconceito, como vimos, não significa sem ética — a adoção por homossexuais e o

“casamento” deles, como mais um exemplo. Tudo em nome de uma igualdade cujo conceito tem sido

prostituído em nome de uma “sociedade igualitária”.

Não!

O mundo é e deve continuar sendo masculino, ou de prevalência masculina, afinal.

Pois se os direitos são iguais — porque são — cada um, contudo, em seu ser, pois as

funções são, naturalmente diferentes. Se prostitui a essência, os frutos também serão. Se o ser for

conspurcado, suas funções também o serão. E instalar-se-á o caos.

É portanto por tudo isso que de nossa parte concluímos que do ponto de vista ético,

moral, filosófico, religioso e até histórico a chamada “Lei Maria da Penha” é um monstrengo tinhoso.

E essas digressões, não as faço à toa — este texto normativo que nos obrigou inexoravelmente a

tanto. Mas quanto aos seus aspectos jurídico-constitucionais, o “estrago” não é menos flagrante.

Contrapondo-se a “Lei Maria da Penha” com o parágrafo 8° do art. 226 da C.F. vê-se o quanto ela é

terrivelmente demagógica e fere de morte o princípio da isonomia em suas mais elementares

apreciações.“O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram,

criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” — grifos nossos. Este é o que

é o art. 226, parágrafo 8°, da Constituição federal de nossa República! A “Lei Maria da Penha” está

longe de constitucionalmente regulamentá-lo, ao contrário do que diz, logo no seu art. 1°: “(...) nos

termos do parágrafo 8° do art. 226 da Constituição federal (...)”.

Ora! A clareza desta inconstitucionalidade dispensa inclusive maiores digressões: o

parágrafo 8° diz — “(...) cada um” dos membros que a integram e não apenas um dos membros da

família, no caso a mulher.

Esta Lei não seria em nada inconstitucional não fosse o caráter discriminatório que se vê na grande

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maioria de seus artigos, especialmente o art. 7°, o qual constitui o cerne, o arcabouço filosófico-

normativo desta “Lei Maria da Penha”, na medida em que define ele o que vem a ser, afinal,

“violência doméstica e familiar”, no âmbito da qual contempla apenas a mulher.

Este foi o erro irremediável desta Lei, posto que continuou tudo — ou quase tudo —

até os salutares artigos ou disposições que disciplinam as políticas públicas que buscam prevenir ou

remediar a violência — in casu a violência doméstica e familiar — na medida em que o Poder Público

— por falta de orientação legislativa — não tem condições de se estruturar para prestar assistência

também ao homem, acaso, em suas relações domésticas e familiares, se sentir vítima das mesmas ou

semelhantes violências. Via de consequência, os efeitos imediatos do art. 7° — e que estão elencados

especialmente no art. 22 — tornaram-se impossíveis de ser aplicados, diante do caráter

discriminatório de toda a Lei.

A inconstitucionalidade dela, portanto, é estrutural e de todas as

inconstitucionalidades, a mais grave, pois fere princípios de sobrevivência social harmônica, e

exatamente por isso preambularmente definidos na Constituição Federal, constituindo assim o centro

nevrálgico de todas as suas supremas disposições.

A Lei em exame, portanto, é discriminatória. E não só literalmente como,

especialmente, em toda a sua espinha dorsal normativa. O art. 2° diz “Toda mulher (...)”. Por que não

o homem também, ali, naquelas disposições? O art. 3° diz “Serão assegurados às mulheres (...)”.

Porque não ao homem também? O parágrafo 1° do mesmo art. 3° diz “O poder público desenvolverá

políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e

familiares (...)” (grifei). Mas porque não dos homens também? O art. 5° diz que “configura violência

doméstica e familiar contra a mulher (...)”. Outro absurdo: de tais violências não é ou não pode ser

vítima também o homem? O próprio e malsinado art. 7° — que define as formas de violência

doméstica e familiar contra a mulher — delas não pode ser vítima também o homem? O art. 6° diz

que “A violência familiar e doméstica contra a mulher constitui uma das formas de violação dos

direitos humanos”

Que absurdo!

A violência contra o homem não é forma também de violação de seus “direitos

humanos”, se afinal constatada efetivamente a violência, e ainda que definida segundo as

peculiaridades masculinas?

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Neste ponto, penso oportuno consignar o pensamento de uma mulher — a Dra.

Elisabeth Rosa Baich (titular do 4° Juizado Especial de BH, por quem se vê que nem tudo está

perdido) — que em artigo recentemente publicado vem ratificar esta nossa linha de raciocínio. Disse

então a eminente juíza: “A prática forense demonstra que muito embora a mulher seja a vítima em

potencial da violência física, o homem pode ser alvo de incontestáveis ataques de cunho psicológico,

emocional e patrimonial no recesso do lar, situações que se condicionam, por óbvio, ao local

geográfico, grau de escolaridade, nível social e financeiro que, evidentemente, não são iguais para

todos os brasileiros.

A lei, no entanto, ignora toda essa rica gama de nuances e seleciona que só a mulher

pode ser vítima de violência física, psicológica e patrimonial nas relações domésticas e familiares.

Além disso, pelas diretrizes da lei, a título de ilustração, a partir de agora o pai que bater em uma

filha, e for denunciado, não terá direito a nenhum beneficio; se bater em um filho, entretanto,

poderá fazer transação”;

Enfim! O legislador brasileiro, como de hábito tão próspero, não foi feliz desta vez!

E quando a questão que se passa a examinar é a da competência, aí o estrago é

maior, embora, ao menos eu, me veja forçado a admitir que não há inconstitucionalidade na norma

do caput do art. 33 da Lei nº 11.340/06 quando diz que “enquanto não estruturados os Juizados de

Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão competência cível e

criminal para conhecer e julgar as causas (...)”.

Contudo, volto a me valer da visão inteligente da Dra. Elisabeth Rosa Baich, pela qual

se verifica que as disposições da “Lei Maria da Penha”, no que se refere ao tema da competência e do

julgamento prático dos processos que lhe constituam o objeto, deixara o operador do direito em

situação de quase instransponível perplexidade.

Trecho 2:

Entrevista do ministro Antônio Cesar Peluso ao site Consultor Jurídico, em 17 de abril

de 2012.

O ministro Antonio Cezar Peluso, 70, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal),

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defendeu a presença do crucifixo no espaço público porque, para ele, esse símbolo é uma expressão

da formação da cultura brasileira, e não de uma religião.

Em sua argumentação a favor da permanência do crucifixo no espaço público,

incluindo nos tribunais, Cezar Peluso disse que Pilatos, para não ter de tomar uma posição, promoveu

um julgamento democrático de Cristo, e “o povo foi usado como instrumento de uma ideologia para

oprimir um homem inocente”.

Nesse sentido, disse, o crucifixo é uma advertência aos juízes e à sociedade sobre as

consequências de um julgamento injusto.

Peluso é católico praticante vai com frequência à missa. Ele foi colocado no STF pelo

presidente Lula, por indicação do então ministro Márcio Thomaz Bastos (Justiça). É ligado à ala

progressista da Igreja Católica, mais especificamente ao grupo da teologia da libertação.

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