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A CRÍTICA POLÍTICO-SOCIAL NO DISCURSO IRÔNICO EM A OMISSÃO QUE MATADE RUTH E AQUINO 1 Bruno Franceschini 2 Introdução Uma vez que discorreremos acerca da ironia enquanto fenômeno linguístico, acreditamos, portanto, ser necessário balizarmos o campo científico no qual nos embasamos, porque, ao comungarmos dos estudos do Círculo de Bakhtin (1992) quanto à conceituação da linguagem enquanto prática de interação verbal e social, observamos a dimensão dialógica e heterogênea do discurso, e os traços ideológicos e sociais presentes neste. De modo a desvendar o caráter heterogêneo do discurso, Authier-Revuz (1982, 1990) caracteriza a heterogeneidade de dois modos: a constitutiva na qual o enunciador tem a ilusão de ser a origem do discurso, e a mostrada aquela em que o outro é explicitado. Neste trabalho, dentre as distintas formas de ocorrência de heterogeneidade mostrada, enfatizamos a ironia. Portanto, nos propomos a descrever o funcionamento do discurso irônico e a analisar o efeito de sentido causado pelo uso da ironia presente no artigo “A omissão que mata” escrito por Ruth de Aquino, na edição 621 da revista Época, em virtude dos deslizamentos ocorridos no estado do Rio de Janeiro no mês de abril. Assim, nos valemos de Authier-Revuz (1982, 1990) para a compreensão da heterogeneidade discursiva e, quanto ao estudo da ironia, nos amparamos em Ducrot (1987), Passetti, (1995), Brait (1996), Castro (2005) e Oliveira (2006). Do Dialogismo e da Heterogeneidade do Discurso Dado o tom dialógico da linguagem, conforme assinala Bakhtin, podemos então constatar que todo o discurso traz consigo os dizeres de outrem e os traços sócio-históricos e ideológicos 1 Artigo apresentado como forma de avaliação parcial da disciplina “A construção heterogênea do texto”, ministrada pelo Prof. Dr. Edson Carlos Romualdo, do Programa de Pós-Graduação em Letras (PLE) da Universidade Estadual de Maringá. 2 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá. [email protected]

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A CRÍTICA POLÍTICO-SOCIAL NO DISCURSO IRÔNICO EM “A OMISSÃO QUE MATA” DE RUTH E

AQUINO1

Bruno Franceschini2

Introdução

Uma vez que discorreremos acerca da ironia enquanto fenômeno linguístico, acreditamos,

portanto, ser necessário balizarmos o campo científico no qual nos embasamos, porque, ao

comungarmos dos estudos do Círculo de Bakhtin (1992) quanto à conceituação da linguagem

enquanto prática de interação verbal e social, observamos a dimensão dialógica e heterogênea do

discurso, e os traços ideológicos e sociais presentes neste. De modo a desvendar o caráter

heterogêneo do discurso, Authier-Revuz (1982, 1990) caracteriza a heterogeneidade de dois

modos: a constitutiva – na qual o enunciador tem a ilusão de ser a origem do discurso, e a

mostrada – aquela em que o outro é explicitado. Neste trabalho, dentre as distintas formas de

ocorrência de heterogeneidade mostrada, enfatizamos a ironia.

Portanto, nos propomos a descrever o funcionamento do discurso irônico e a analisar o

efeito de sentido causado pelo uso da ironia presente no artigo “A omissão que mata” escrito por

Ruth de Aquino, na edição 621 da revista Época, em virtude dos deslizamentos ocorridos no

estado do Rio de Janeiro no mês de abril. Assim, nos valemos de Authier-Revuz (1982, 1990) para

a compreensão da heterogeneidade discursiva e, quanto ao estudo da ironia, nos amparamos em

Ducrot (1987), Passetti, (1995), Brait (1996), Castro (2005) e Oliveira (2006).

Do Dialogismo e da Heterogeneidade do Discurso

Dado o tom dialógico da linguagem, conforme assinala Bakhtin, podemos então constatar

que todo o discurso traz consigo os dizeres de outrem – e os traços sócio-históricos e ideológicos

1 Artigo apresentado como forma de avaliação parcial da disciplina “A construção heterogênea do

texto”, ministrada pelo Prof. Dr. Edson Carlos Romualdo, do Programa de Pós-Graduação em

Letras (PLE) da Universidade Estadual de Maringá.

2 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá.

[email protected]

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destes, posto que a interação entre sujeitos é um dos princípios fundadores da linguagem. Em

Marxismo e Filosofia da Linguagem, o filósofo introduz aos estudos do dialogismo a noção de

enunciação, na qual há a consideração do contexto de produção, dos sujeitos envolvidos e do

local social onde a interação ocorre, e desse processo de enunciação resultará um enunciado.

Para Bakhtin (1997), cada enunciado emerge num evento único, dadas as condições de

produção, como também atesta o filósofo francês Michel Foucault (2009, p. 112): “não há

enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de

coexistências”, ou seja, o enunciado é o produto de uma relação dialógica entre sujeitos e está

relacionado a outros enunciados anteriores e, de modo a analisá-lo numa perspectiva discursiva, é

preciso considerarmos, portanto, os aspectos históricos e sociais, uma vez que “o todo do

enunciado se constitui como tal graças a elementos extralingüísticos (dialógicos), e este todo está

vinculado a outros enunciados.” (BAKHTIN, 1997, p. 335)

Ao aprofundar os estudos de Bakhtin acerca do dialogismo, Authier-Revuz (1990, p. 32)

avança ao analisar o campo enunciativo e teoriza, desse modo, os conceitos de heterogeneidade

discursiva: a constitutiva, ou seja, “os processos reais de constituição de um discurso” - e a

mostrada – condizente aos “processos, não menos reais, de representação, num discurso”. As

formulações desses conceitos dizem respeito à inscrição do outro na enunciação, e como

sabemos, todo texto é heterogêneo dada a gama de enunciados envolvidos no processo

enunciativo, como observa Bakhtin (1988, p. 140):

a todo instante se encontra nas conversas „uma citação‟ ou „uma

referência‟ àquilo que disse uma determinada pessoa, ao que „se diz‟ ou

àquilo que „todos dizem‟, às palavras de um interlocutor, às nossas

próprias palavras anteriormente ditas, a um jornal, a um decreto, a um

documento, a um livro.

Para Authier-Revuz (1982, p. 92), a heterogeneidade mostrada ocorre quando o locutor

insere o outro no fio do discurso e, ao entrar no discurso, o locutor acredita, por meio da

denegação, ser a origem do discurso que profere, no entanto, não é possível nos esquivarmos

caráter heterogêneo da linguagem, uma vez que se aquilo que não estivesse explícito, o locutor

acreditaria ser dele:

(...) Le locuteur fait usage de mots inscrits dans Le fils de son discours (...)

et, em meme temps, il les montre. Par là, as figure normale d‟utilisateur

des mots est doublée, momentanément, d‟une autre figure, d‟observateur

des mots utilisés: et Le fragment ainsi désigné – marque par des

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guillemets, de l‟italique, une intonation et/ou par quelque forme de

commentaire – reçoit, relativement au reste du discours, un statut autre.

Desse modo, nos focaremos aos modos de ocorrência da heterogeneidade mostrada

marcada que podem ser encontradas num discurso, as quais são: as glosas, o discurso relatado -

discurso direto e indireto -, as aspas e o itálico, dentre outras formas em que é possível

recuperarmos a presença do outro no discurso, e como exemplo de heterogeneidade mostrada,

mas não marcada, temos a ironia, o discurso indireto livre, a paráfrase e a paródia que contam

com o outro, no entanto, sem explicitá-lo, para a produção de sentidos, e tomamos como foco do

trabalho a ironia e os efeitos de sentido advindos do uso desse recurso linguístico no discurso.

Da Perspectiva Polifônica da Ironia

O discurso irônico, para Brait (1996, p. 90), “joga com a lógica dos contrários e que pode

funcionar como um princípio de organização dos textos”. Logo, a ironia pode ser compreendida

sob a perspectiva de uma contradição e, ao lidar com a contradição, podemos observá-la

enquanto fenômeno polifônico, uma vez que este fenômeno prova a existência do enunciador, faz

ouvir uma voz e distingue locutor e enunciador, nesse sentido, portanto, a ironia opõe o que está

dito com o que de fato se quis dizer, como postula Ducrot (1987, p. 197): “Um enunciador irônico

consiste sempre em fazer dizer, por alguém diferente do locutor, coisas evidentemente absurdas,

a fazer, pois ouvir uma voz que não é a do locutor e que sustenta o insustentável.”

Assim, o locutor não assume como seu o que foi dito e, dadas as impressões deixadas no

momento da enunciação, será possível perceber a distinção entre o enunciador sério e o

enunciador absurdo, porque a ironia é uma “construção em que existe a presença de um

significante recobrindo dois significados” (BRAIT, 1996, p. 49), sendo constituído, portanto, o

caráter bivocal do discurso irônico.

Para o entendimento desse aspecto da ironia, é preciso, portanto, que avancemos ao conceito

de polifonia. Como postula Ducrot (1987, p. 193), o fenômeno polifônico é caracterizado quando

um locutor L apresenta em seu enunciado dois enunciadores distintos, no entanto, o locutor L

assume a responsabilidade pelo enunciado e os enunciadores pela posição adotada:

O locutor, responsável pelo enunciado, dá existência, através deste, a

enunciação de quem ele organiza os pontos de vista e as atitudes. E sua

posição própria pode se manifestar seja porque ele se assimila a este ou

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aquele dos enunciadores, tomando-o por representante (o enunciador é

então atualizado), seja simplesmente porque escolheu fazê-los aparecer, e

que sua aparição mantém-se significativa, mesmo que ele não se assimile

a eles.

Desse modo, a perspectiva polifônica da ironia ocorre devido à oposição entre os dois

enunciadores apresentados pelo locutor L num mesmo enunciado, porém, no discurso irônico, os

dois enunciadores – E1 e E2 – não se encontram da mesma forma na enunciação, posto que um

está implícito e o outro explicito. A esse respeito, Ducrot (1987, p. 198) discorre acerca do

discurso irônico em perspectiva polifônica:

falar de modo irônico é, para um locutor L, apresentar a enunciação como

expressando a posição de um enunciador. Posição que se sabe por outro

lado que o locutor L não assume a responsabilidade, e, mais que isso, que

ele a considera absurda. Mesmo sendo dado como o responsável pela

enunciação, L não é assimilado a E, origem do ponto de vista expresso na

enunciação.

Observamos, portanto, que o locutor deixa marcas em seu discurso as quais sinalizam para

uma perspectiva diferente daquela que está materializada no enunciado, conforme Passetti

apresenta (1995, p. 48) “o locutor irônico é aquele que, ao mesmo tempo, expressa ou veicula um

ponto de vista e sinaliza ou orienta para outro”. Ou seja, o locutor L expõe o enunciador E1

(enunciador sério) no plano do discurso, mas sinaliza para o enunciador E2 (enunciador absurdo),

no entanto, a efetivação da ironia ocorrerá somente se o interlocutor possuir o conhecimento

necessário para a identificação e recuperação dos enunciadores E1 e E2, como explanaremos mais

adiante.

A compreensão do implícito no discurso irônico ocorre então na recuperação das marcas

deixadas pelo locutor L, como o contexto sócio-histórico, o interlocutor a quem se deseja

alcançar, uma vez que, como nos traz Passetti (1995, p. 54) “concebemos a ironia como um tipo

de discurso que exige uma interação entre os sujeitos envolvidos no processo de constituição do

sentido, tanto na instância de produção quanto na recepção”.

Nesse sentido, descrevemos então o discurso irônico da seguinte forma:

AUTOR LOCUTOR

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ENUNCIADOR SÉRIO ENUNCIADOR ABSURDO

RECEPTOR SÉRIO RECEPTOR ABSURDO

É na “instância de produção” do discurso irônico que há a presença do autor, aquele que é

responsável por “dar conta da colocação no discurso desta ou daquela estratégia enunciativa”

(PASSETTI, 1995, p. 63). Cabe, dessa forma, ao autor construir, dadas as condições de produção, o

ponto de vista a ser enunciado pelo locutor L, como já exposto, o locutor L enunciará o absurdo,

mas sinalizará para o sério. Isso ocorre devido à ideologia presente nas formações discursivas

presentes nos enunciadores sério e absurdo e que será apreendida na ambiguidade do discurso

irônico.

É nesse sentido que o autor orientará o locutor L a aderir ao enunciador sério e organizará o

texto de forma coerente de modo a inserir “na voz desse locutor, a princípio ingênuo, sinais

avaliativos que indiquem a sua „falta de sinceridade‟ proposital, a sua não adesão a esse

enunciador” (PASSETTI, 1995, p. 64), e como resultado desse processo, o locutor, mesmo não

aderindo ao que é enunciado, é responsável por ele, porque no momento da enunciação, veicula,

“pois, a contradição de valores” (idem).

A contradição de valores na organização do discurso irônico ocorre na presença de dois

enunciadores diferentes numa mesma enunciação, sendo possível, dessa forma, “chegar a

formações discursivas diferentes, que por sua vez, revelam formações ideológicas diferentes”

(PASSETTI, 1995, p. 66). Cabe ressaltarmos que essas diferentes formações discursivas postas em

cena no jogo enunciativo estão em consonância com a ideologia que perpassa o autor, o qual

“organiza seu discurso para se comunicar com um outro sujeito, em sua correlata função de leitor”

(op. cit.).

Assim, para que a ironia seja de fato efetivada é preciso que o receptor ative, nas palavras de

Passetti (1995, p. 65), “os dois enunciatários, o sério e o absurdo, para concretizar o processo de

dupla leitura exigido pelo discurso irônico”, sendo que esse processo atesta o caráter polifônico

da ironia tanto na produção quanto na recepção, como pôde ser observado no esquema exposto

acima.

Porém, caso o receptor não tenha conhecimento das formações discursivas postas na

enunciação, este não compreenderá qual ideologia é ridicularizada e qual é elevada, ou seja, o

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leitor irônico precisa ir além do que está implícito, é preciso que este leitor recupere o contexto de

enunciação e a relação entre o implícito e o explícito:

De maneira bastante genérica, pode-se dizer que a transposição se dá na

medida em que o enunciado, independentemente de sua extensão, será

observado através das marcas que aí estão assinaladas, produtos de um

processo que envolve as relações dialógicas necessariamente existentes

entre a instância de produção e a instância de recepção, o que significa

considerar no mínimo dois agentes responsáveis pela significação:

enunciador e enunciatário. Se o enunciatário não se der conta das

articulações entre os segmentos aí envolvidos, a significação irônica não

terá lugar. (BRAIT, 1996, p. 66)

É nesse sentido que o autor irônico organiza a estratégia discursiva do texto as quais

permitirão ao leitor a ativação da relação com os outros textos, com os interlocutores, do contexto

de enunciação, e com a formação ideológica a que pertence, com a finalidade de nortear o

discurso a argumentação pretendida, nos dizeres de Passetti (1995, p. 67): “Isso significa que,

mais que o dizer, é o próprio modo de dizer que se sobreleva e permite a manifestação da ironia.”

Quanto à estruturação do aspecto argumentativo do discurso irônico, o autor, segundo Oliveira

(2006), pode se utilizar dos seguintes recursos linguísticos de modo a caracterizar a estratégia a

ser utilizada para a construção da ironia: a) pontuação; b) palavras de alerta; c) repetições; d)

justaposições; e) simplificações; f) desvios. Assim, esses elementos são subsídios a serem

utilizados para criar, num primeiro momento, um efeito de sentido ambíguo, porém, após a tomar

conhecimento do jogo irônico, o leitor fará a leitura da ironia presente no enunciado, como

discorre Brait (1996, p. 90): “é possível observar alguns mecanismos de construção textual cujo

conjunto pode produzir efeitos irônicos e humorísticos. (...) E é precisamente através desse

mecanismo fundamental da linguagem que a ironia se concretiza”.

Apoiada em Frye (1973), Brait (1996, p. 74) reflete acerca do sentido literal e figurado, porque

o sentido literal ou figurado de um termo diz respeito à “complexa rede retórico-argumentativa

que se instaura sob o discurso irônico”, uma vez que, como já expresso, os signos não recobrem

apenas um significado, mas produzem sentido em decorrência do contexto em que são utilizados:

“todos os possíveis valores de signo de uma palavra são absorvidos num complexo de relações

verbais” (FRYE, 1973: 82 apud BRAIT, 1996, p. 76)

Desse modo, a ironia é produzida no nível do discurso e, uma vez que

“o ironista deseja fazer conhecer sua opinião, ele deve assinalar a „armadilha‟ que prepara em seu

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discurso” (OLIVEIRA, 2006, p. 36). Portanto, o discurso irônico requer do leitor a interpretação nos

planos lingüístico e discursivo, ou seja, o leitor precisa recuperar as marcas deixadas no texto

pelo enunciador, como, por exemplo, a citação e o uso de aspas, as quais permitirão “a indicação

da operação argumentativa que está por trás da incorporação da voz do outro no discurso em

pauta” (BENITES, 2002, p. 90), sendo que a operação argumentativa escolhida pelo autor poderá

resultar em um efeito de humor, ou para a instauração da crítica, posto que “a ironia não é

necessariamente cômica” (BRAIT, 1996, p. 58).

É na perspectiva da análise linguística e discursiva que é possível ao leitor compreender, por

meio da estratégia enunciativa construída pelo autor e efetivada pelo locutor, as pistas deixadas

por estes no momento da enunciação, como o enunciado expresso pelo enunciador absurdo, de

modo a indicar o caminho para a identificação do enunciador sério, sendo constituída, nesse

processo, a perspectiva polifônica do discurso irônico.

O discurso irônico na crônica político-social

Dada a orientação argumentativa construída pelo autor e a recuperação do contexto de

enunciação, é possível, portanto, tomarmos conhecimento do discurso desvalorizado e do

discurso elevado no enunciado emitido pelo locutor L, o qual emitiu a voz do enunciador absurdo,

mas sinalizou para o enunciador sério. Brait (1996, p. 51), a esse respeito, explica que o discurso

irônico “descreve em termos valorizantes uma realidade que ela trata de desvalorizar”.

Pensando então nas escolhas argumentativas realizadas pelo autor irônico para mostrar o

seu descrédito em relação à outra ideologia, constatamos, com base em Silva (2001, p. 193-194),

que a escolha do gênero crônica também é um fator importante na estruturação do discurso

irônico, uma vez que “a Crônica Político-Social utiliza a ironia como estratégia para a apresentação

de um contra-argumento construído discursivamente”.

De modo a circunscrever o campo teórico no qual nos amparamos, apontamos que o

conceito de gênero a ser explorado está pautado na concepção bakhtiniana (1997, p. 290) de que

“todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas

com a utilização da língua”, ou seja, o autor irônico ao utilizar-se da linguagem faz sua inscrição

em um determinado gênero discursivo, no entanto, procuramos observar os efeitos de sentido

advindos da ironia presente na crônica “A Omissão que mata”, escrita por Ruth de Aquino na

edição de número 621 da revista Época em 12 de abril de 2010.

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A ironia se faz presente ao desvalorizar o enunciador absurdo e indicar a adesão ao enunciador

sério no momento da enunciação pelo locutor L e, no gênero crônica político-social, esse processo

ocorre em harmonia à orientação argumentativa estruturada pelo autor irônico, o qual sinalizará

ao leitor, ao fazer uso do locutor L, o caminho para a recuperação do enunciador sério – aquele

que está no plano da enunciação – e, nos dizeres de Silva (2001, p. 194), “ao desmascaramento

daquilo que no discurso do outro estava mascarado e que o procedimento irônico, por uma

artimanha linguístico-discursiva, dá a conhecer”.

Uma vez que a crítica político-social é terreno fértil para o uso da ironia, é possível, portanto,

observamos o objetivo do autor irônico de criticar uma ideologia em oposição à outra ao trazer o

discurso do outro na construção desse recurso linguístico, o qual ocorre no jogo enunciativo

quando há o conflito entre o enunciador sério e o enunciador absurdo, ou seja, quando ocorre o

embate entre duas formações discursivas diferentes, sendo que a formação discursiva ironizada é

a enunciada e a aquela que representa a ideologia assumida pelo autor irônico é recuperada na

enunciação.

Antes de adentrarmos à análise do funcionamento do discurso irônico no texto em questão,

consideramos necessário situar, ainda que de forma breve, a autoria da revista Época e as

implicações ideológicas deste autor.

Com uma tiragem semanal de aproximadamente 420 mil exemplares, a revista Época compõe o

quadro das publicações impressas da Editora Globo, a qual pertence à Organizações Globo e se

configura como a maior empresa do ramo jornalístico no Brasil.

Ao longo dos anos, a Rede Globo aprimorou um estilo retórico capaz de formar

estereótipos os quais eram veiculados como verdade por meio das novelas e jornais, como

discorre Roaly (2009)

A Globo durante toda sua história desenvolveu uma retórica televisiva

muito eficaz, se tornando uma formadora de estereótipos, criando modelos

de comportamento, de moda e de linguagem, por meio do sedutor poder

das informações. O padrão de verdade se tornou o do jornalismo da TV

Globo. As notícias só são notícias se estão na Globo.

Quanto à política, por ser aliada ao governo militar, a emissora viu seu poder ser posto em

risco com as “Diretas Já”, uma vez que a população saía às ruas para protestar e os jornais

noticiavam as manifestações como fatos isolados organizados por grupos de esquerda. No

entanto, a população reagiu ao que era noticiado e deu início ao grito de protesto: “O povo não é

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bobo. Fora Rede Globo”. Além disso, o então governador do estado do Rio de Janeiro, Leonel

Brizola também adere ao movimento, configurando, dessa forma, mais uma desavença com à

Globo.

Assim, o grupo Rede Globo procurou em seus noticiários televisivos, impressos e em

novelas transmitir suas ideias a qualquer custo, sendo um dos fatos mais marcantes a

manipulação das eleições para o governo do estado do Rio de Janeiro em 1982, a qual tinha como

candidato da oposição Leonel Brizola, porém o esquema para fraudar o pleito foi descoberto e a

discórdia entre a Globo e o governo de oposição tornou-se mais nítido.

Outro fato político importante foi o debate promovido entre os candidatos à presidência

Fernando Collor e Luis Inácio Lula da Silva, em 1989, quando a maior rede televisiva do país

deixou clara a sua opção ao mostrar os melhores momentos do primeiro candidato em detrimento

aos piores do segundo, uma vez que Collor correspondia aos interesses da Rede Globo de

Televisão.

É nesse sentido, portanto, que se faz necessário contextualizar a ideologia presente na

revista Época, uma vez que observamos o poderio da Globo se estender não somente à televisão,

mas aos jornais e revistas sob o seu comando, como a revista Época, os quais veiculam notícias

que procuram, com notícias escritas num estilo retórico eficaz produtor de efeito de sentido de

verdade, desmoralizar os adversários políticos da emissora de modo que esta continue a se

manter no topo, como postula Foucault (2009), o discurso é objeto de desejo e de poder.

O discurso irônico na crônica político-social “A omissão que mata”

Analisaremos, neste item, a construção do discurso irônico e o funcionamento da ironia

enquanto efeito de sentido para a instauração da crítica político-social na crônica “A Omissão que

mata”, escrita pela jornalista Ruth de Aquino na coluna “Nossa Antena” na revista Época, número

621, de 12 de abril de 2010.

Acreditamos ser necessário situarmos os textos que estão em correlação com a crônica que

analisamos, de modo que seja possível, assim, a descrição da ironia da crônica em tela. Uma vez

que o texto é um objeto heterogêneo, é preciso, portanto, procurar estabelecer as condições do

momento da enunciação e descrever como o autor-irônico orientou o locutor L a apresentar a

perspectiva do enunciador absurdo e a sinalizar o leitor para a recuperação do enunciador sério,

como propõe Ducrot (1987), a respeito da constituição do discurso irônico.

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Começamos a análise com descrição da capa da edição de número 621, a qual traz, em fundo

preto, os dizeres “Rio de Janeiro, abril de 2010” e a foto, com a legenda “O bombeiro Flávio

Fernandes, ao retirar um bebê morto pelos deslizamentos no Morro do Borel”, de um bombeiro

carregando o corpo de uma criança morta nos deslizamentos causados pela chuva que atingiu,

principalmente, as cidades de Niterói e do Rio de Janeiro, no estado do Rio de Janeiro. Já no índice

das reportagens, a primeira foto está localizada no topo da página, à esquerda, local onde o leitor,

em geral, inicia a leitura. A imagem apresentada no índice é a de uma casa localizada no alto de

um morro e que foi destruída no deslizamento, e, como legenda, tem os seguintes dizeres: “Morte

e má gestão – O que o desastre causado pelas chuvas no Rio de Janeiro revela sobre o poder

público”.

A seção “Carta do diretor de redação” também traz informações sobre o teor da matéria de

capa, o título do artigo escrito por Helio Gurovitz “Chega de demagogia. Chega de omissão.

Chega!”, demonstra a orientação argumentativa que perpassará a edição, o que pode ser

comprovado com o seguinte excerto:

Construir sobre esse relevo, porém, exige mais cuidados, fato esquecido

por quem ergueu milhares de moradias. É preciso, num momento de dor

como este, assumir uma posição clara a respeito: as construções ilegais em

áreas de risco precisam ser derrubadas. As autoridades sabem onde elas

ficam. Nada fazem, pois acreditam que remover as famílias que moram

nessas condições pode significar perder seus votos. Eis uma armadilha que

precisa ser desarmada. É uma irresponsabilidade absurda deixar gente

morando em locais que, como os fatos mostraram, deslizam com as chuvas

fortes. É, mais do que isso, um crime.

Constatamos, nesta carta, a introdução aos temas a serem abordados, como a ocupação

irregular das encostas, a falta de atitude do governo em remover as famílias desses locais devido

ao receio quanto a perda de votos, e o posicionamento da revista sobre isso, caracterizando o

governo que nada fez diante do alerta eminente da tragédia como irresponsável e criminoso.

Mais adiante, na página 74, a reportagem tem início com a foto do deslizamento ocorrido no

Morro do Bumba, em Niterói – RJ, e está acompanhada da legenda localizada no canto inferior

esquerdo da página: “Vidas no lixo – Após dias de chuva forte, a lama preta e malcheirosa deslizou

ao longo de 600 metros no Morro do Bumba, em Niterói, soterrando cerca de 50 casas que haviam

sido construídas sobre um lixão clandestino” e o título da matéria é “Avalanche criminosa – A

maior tragédia na história do Rio de Janeiro em décadas serve de alerta para a omissão das

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autoridades diante a ocupação ilegal dos morros”, sendo Ruth de Aquino uma das jornalistas que

assinam a reportagem.

Com base nesses primeiros excertos, é possível depreendermos a organização dos argumentos

a serem apresentados ao longo da reportagem e que servirão de base para a construção da

crônica “A Omissão que mata”, como veremos. Ainda nesta primeira reportagem, há o

questionamento e logo abaixo a resposta sobre o papel dos governantes diante das tragédias

ocasionadas pela chuva há vários anos:

A cidade de geografia complicada, espremida entre rochas e mar, paga o

preço pela beleza ou pela competência histórica das autoridades? [...]

Governos sucessivos no Brasil fecham os olhos a ocupações ilegais de

encostas. Em parte para disfarçar sua incompetência, por não investir

seriamente e com continuidade numa política de habitação e transporte

para famílias de baixa renda, em parte porque favelados com água e luz

sempre foram sinônimos de voto

É nesse sentido que esta reportagem serve de base para a crônica político-social “A

omissão que mata”, porque é dela que são retirados argumentos que instaurarão a ironia no texto,

uma vez que, como postula Bakhtin (1997), todo enunciado está relacionado à outros enunciados,

e é dessa forma que o autor-irônico recupera os enunciados veiculados na reportagem de modo a

orientar a construção argumentativa do texto com o objetivo de criticar, no caso do texto em

questão, o descaso dos governantes responsáveis pelas cidades atingidas, posto que eles haviam

sido alertados sobre os riscos de permitirem a ocupação irregular dos morros, mas, em troca de

votos e de parco investimento em saneamento, os morros foram ocupados.

Desse modo, observamos a retomada dos argumentos veiculados na reportagem na

construção da crônica que ora critica explicitamente, ora implicitamente, ao fazer uso do discurso

irônico, o governo do prefeito de Niterói, Jorge Roberto Silveira.

Ao iniciar o texto com o enunciado “Quem mora lá no morro já vive pertinho do céu” um

trecho da canção “Ave Maria no morro”, composta por Herivelto Martins, o autor-irônico sinaliza

para a ocupação dos morros cariocas, uma vez que a música retrata o cotidiano dos moradores do

morro bem como a prece, e logo ao final do primeiro parágrafo, observamos a presença de um

enunciador sério e explícito que retoma o discurso da reportagem, mas sem citá-la.

Já no segundo parágrafo, é possível observarmos a presença do enunciador absurdo e o

modo pelo qual este é inserido no fio do discurso. O autor-irônico o insere, na voz do locutor L,

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por meio das aspas, as quais, neste exemplo, marcam o distanciamento do locutor em relação ao

enunciador absurdo e, dessa forma, sinalizam para o enunciador sério: “O crime mais revoltante

foi cometido pelo prefeito Jorge Roberto Silveira, de Niterói. „Eu sabia do lixão ali, mas nunca tinha

havido nenhum incidente‟. Foi a declaração inocente do prefeito do PDT.”

Desse modo, o locutor L é, a primeira vista, responsável pelo enunciado, mas ao olharmos

mais atentamente às aspas, neste exemplo, observamos que o locutor L procura distanciar-se do

que ele mesmo enunciou, e, para tanto, utilizou-se das aspas, assim, acerca da isenção do locutor

L em relação ao discurso citado, Benites (2002, p. 102) afirma que “a citação com função de

isenção de responsabilidade é encontrada com maior frequência em textos que poderiam vir a ser

alvo de uma possível polêmica da qual o locutor citante deseja preservar-se”, ou seja, na crônica

em análise, o autor-irônico, procurando resguardar-se e de forma a construir a sua estratégia

argumentativa, aspeia o discurso do prefeito e o traz para seu enunciado, demonstrando,

portanto, a sua discordância em relação ao que é dito.

Podemos afirmar, portanto, que há, neste excerto, a utilização do discurso irônico, devido

ao fato de que o locutor L faz uso do vocábulo “inocente” em relação ao que foi dito pelo prefeito,

ou seja, o autor-irônico orientou o locutor L a enunciar o ponto de vista do enunciador absurdo ao

passo que, na recuperação do efeito de sentido causado pelo uso das aspas, é possível captarmos

a presença do enunciador sério.

Outro ponto a ser analisado, é a menção aos partidos políticos PDT (Partido Democrático

Trabalhista) e PT (Partido dos Trabalhadores), os quais são inimigos das organizações Globo,

conforme já expresso. Dessa forma, a referência aos partidos, mas sem citar os nomes dos

prefeitos, como neste enunciado: “com alguns intervalos para um prefeito do PT”, serve como

recurso na construção da crítica político-social, seja esta explícita ou implícita – como ocorre na

ironia. Ainda neste enunciado, a utilização do artigo indefinido “um” indica a falta de importância

em citar o nome do prefeito, sendo que a sigla do partido implica na rotulação quanto a atuação

dos governantes que, em Niterói, significou o descaso dos prefeitos do PDT e do PT em relação à

ocupação irregular do Morro do Bumba em troca de votos.

Assim, o texto se desenvolve e introduz dados do Morro do Bumba, como a existência de

“uma comunidade inteira, com casas, igreja, pizzaria, bares e creche”, sendo essas informações

relevantes para a escolha dos vocábulos “floresceu” e “complacente” realizada pelo autor irônico

no enunciado “A comunidade floresceu sob a vista complacente e amiga de Jorge Roberto”. Posto

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que os signos refratam e refletem o mundo, ou seja, os signos produzem sentido de acordo com o

local em que são proferidos e estão, também, relacionados ao domínio do campo ideológico,

como postula Bakhtin (1992, p. 95) “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um

sentido ideológico ou vivencial". Nesse sentido, o que é passível de florescer em um morro são

flores, árvores, entre outros elementos da natureza correspondentes a este ambiente, mas não

casas, escolas, estabelecimentos comerciais, o que vem corroborar a orientação argumentativa

presente em toda a revista e retomada na crônica: o governo é irresponsável, omisso e criminoso.

Quanto aos adjetivos “complacente” e “amiga” que acompanham “sob a vista”, é possível

depreendermos a possível estratégia do autor irônico ao utilizar-se desses vocábulos

demonstrando a posição do enunciador absurdo na voz do locutor L para a indicação do

enunciador sério, uma vez que o prefeito Jorge Roberto tinha, para a revista Época, consciência da

expansão da ocupação do morro, mas nada fez, ou seja, este enunciado irônico está em

consonância com o enunciado “Foi a declaração inocente do prefeito do PDT”.

Uma vez que é possível, portanto, observamos a progressão dos argumentos irônicos na

construção deste crônica de cunho político-social, os quais realizam severa crítica endereçada aos

governantes atuais e anteriores de Niterói a respeito da postura destes perante a não proibição e

ao estímulo dado aos moradores para que continuassem a morar nos morros, em detrimento à

falta de investimento em programas de habitação.

No entanto, ressaltamos que a compreensão dos enunciados irônicos realizados até este

ponto, será possível somente se o leitor houver efetuado a leitura da reportagem e, dessa forma,

este ativará o leitor-irônico para então realizar a distinção entre o enunciador sério e o enunciador

absurdo.

O autor irônico dá continuidade ao texto ao relatar os investimentos realizados pelo

governador Leonel Brizola como o programa “Uma luz na escuridão”, bem como as benfeitorias já

citadas, além da implantação de uma “bica d‟água”, realizada pela CEDAE (Companhia Estadual de

Águas e Esgotos). Por fim, o autor irônico finaliza este segundo parágrafo com o enunciado: “Não

dá pra acreditar que alguém instruído resolva urbanizar uma área condenada”, o que caracteriza,

dessa forma, a argumentação direcionada à crítica, a ser corroborada no terceiro parágrafo, pela

suposição de que o prefeito não havia pensado sobre o número de pessoas que ele colocava em

risco.

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O Morro do Bumba era um antigo lixão que, devido ao acúmulo de compostos orgânicos,

liberara o gás metano, “um gás explosivo” e fazia do Morro “uma bomba-relógio”, ou seja, o autor

irônico veicula pela voz do locutor L, enunciados direcionados a construir estrategicamente o

texto de modo a indicar o erro dos governantes, posto que a metáfora “uma bomba-relógio”

remete ao artefato que pode vir a explodir a qualquer momento, no caso do Morro do Bumba,

além de explodir devido à presença de metano, o morro poderia vir a baixo por causa da

irregularidade do terreno.

Ocorre, então, mais uma vez, a inserção de um enunciado do prefeito e depois um

enunciado advindo do enunciador irônico: “„Você sabe, num país como o nosso, é muito difícil

impedir assentamentos irregulares ou remover moradores de áreas de risco”, disse Jorge Roberto.

„Tentei o possível, tentei o máximo‟. O máximo.” É a partir dessa inserção – o máximo – é que

podemos descrever mais uma ocorrência do discurso irônico, uma vez que o autor-irônico traz a

fala do prefeito, a qual foi realizada num outro momento, numa outra cadeia enunciativa, na voz

do locutor L e faz o uso das aspas para marcar a isenção desse locutor L quanto ao que é

enunciado, como a enunciação de “o máximo.”

Sobre o fenômeno polifônico, podemos, neste excerto, demonstrarmos este mecanismo,

uma vez que, segundo Ducrot (1987, p. 182), podemos realizar a distinção das duas vozes

presentes no enunciado porque “de uma maneira quase evidente, o autor real tem pouca relação

com o locutor, ou seja, com o ser apresentado, no enunciado, como aquele a quem se deve

atribuir a responsabilidade da ocorrência do enunciado”, sendo essa distinção realizada na

compreensão da utilização do discurso aspeado.

Dessa forma, é possível acionarmos o enunciador sério e observamos a atribuição de “o

máximo” ao enunciador absurdo, uma vez que o prefeito não realizou o máximo por não ter feito

a desocupação do morro, ações preventivas quanto à conscientização dos moradores acerca do

risco que corriam por habitarem num lixão desativado também não foi efetuada. Portanto,

recuperamos o enunciador sério na recuperação da estratégia argumentativa construída pelo autor

irônico que percebemos a presença do conflito entre o enunciador sério e o enunciador absurdo e,

reiteramos, que essa recuperação dos enunciadores, neste trabalho, é possível devido à leitura

prévia da reportagem veiculada na edição de número 621.

No quinto parágrafo, observamos a retomada de informações as quais são um já-dito e

operam como um jamais-dito e permitem a instauração de mais um argumento para a crítica

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política acerca da falta de preparo e de vontade dos governantes em realizar um programa de

“política habitacional para famílias de baixa renda.” O que é apoiado pelo enunciado “É a

improvisação do salve-se quem puder”. A respeito da expressão “salve-se quem puder”, esta é

comumente utilizada para designar uma situação de emergência não-programada, mas a

utilização do vocábulo “improvisação” indica que não há plano da prefeitura ou do Estado para o

socorro dessas pessoas caso haja situação de emergência, exemplificado pelo enunciado “Quem

matou as famílias de favelados não foi a chuva. Foram governos negligentes, demagogos e

irresponsáveis.”

No parágrafo seguinte, o locutor L enuncia que a culpa do descaso se estende também à

“esquerda-caviar carioca. Ou os gringos de institutos internacionais que vêm fazer tour exótico e

social nas favelas para depois tomar champanhe na piscina do Hotel Fasano, de frente para o mar

de Ipanema”, ou seja, este enunciado reflete às ações demagógicas em relação às favelas, uma vez

que tanto os políticos, como os membros de ONGs vem ao Brasil com a intenção de realizar algo

difícil de ser posto em prática.

De modo a confirmar a crítica à demagogia dos políticos, o autor-irônico organiza o texto

de modo a dar voz ao locutor L quanto à inserção de uma citação de autoridade no caso, um

enunciado proferido pela antropóloga Alba Zaluar, estudiosa das favelas cariocas:

“O que está acontecendo é resultado de anos de demagogia em relação à

favela” [...] “É incrível que essas tragédias ocorram em lugares com nomes

como Morro dos Prazeres ou Chácara do Céu. As favelas historicamente

eram cenários de sambas lindos, espaços de poesia e criatividade. Com o

tráfico de drogas, essa visão romântica foi abalada.”

Assim, a citação de autoridade presente neste trecho, visa dar credibilidade ao

posicionamento adotado pelo autor-irônico tendo em vista que, segundo Benites (2002, p. 96),

esse tipo de citação serve “nitidamente como argumento para o locutor citante, em lugar de

precedê-lo e indicar a direção em que deve ser feita a leitura”, e serve também para que o leitor

constate a postura do locutor em relação ao que é dito, sendo, neste exemplo, contrário ao

descaso em relação às favelas hoje.

E, dando prosseguimento à construção da crítica político-social, o locutor L retoma a um

fato expresso na matéria principal e insere, mais uma vez, o discurso da antropóloga, para que o

leitor tenha consciência das ironias já realizadas e daquelas a serem realizadas: “É a própria

política que ajuda a construir a noção de que a casa é própria, mesmo que esteja no meio de um

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barranco que pode cair a qualquer momento”, diz Alba. “E toda a sociedade é conivente com essa

ideia.”

A inserção desse trecho sinaliza para o encaminhamento final da crônica, uma vez que no

início do texto, o autor-irônico fez uso dos discursos do prefeito e da reportagem de capa da

edição e, no final, traz enunciados para legitimar a crítica realizada sob a forma de citações de

autoridade de modo a pôr em cheque a suposta benevolência dos políticos na construção das

casas próprias.

A esse respeito, o locutor L, orientado pelo autor-irônico, discorre sobre a “política

habitacional” patrocinada pelos governantes, a qual é realizada em assentamentos irregulares e

sem a preocupação com os aspectos estruturais da construção.

Por fim, o autor-irônico faz um brilhante jogo enunciativo ao trazer a perspectiva do

enunciador absurdo na voz do locutor L mais um trecho do discurso do prefeito Jorge Roberto:

„É nesses momentos que a gente se orgulha de ser brasileiro‟, disse o

prefeito Jorge Roberto diante da língua negra de lama e lixo apodrecido

que soterrou seus eleitores. Não pude acreditar. Ele dizia, na televisão, que

tudo estava “sob controle” e se confessava emocionado com a

solidariedade do presidente Lula e dos bancos.

Como afirma Ducrot (1987), o locutor L, ao aspear o discurso que enuncia, sinaliza o leitor para

uma voz que não é sua, ou seja, neste enunciado, o locutor L faz-nos ouvir a voz do enunciador

absurdo de modo a sinalizar para a identificação do enunciador sério.

Portanto, é possível descrever a ironia instaurada na crônica “A omissão que mata” ao analisar o

jogo enunciativo construído na interação enunciador-objeto ironizado-receptor, uma vez que o

discurso irônico pode ser apreendido a partir do confronto entre a ideologia da revista Época

(Organizações Globo) e os governantes do estado do Rio de Janeiro com relação à política

habitacional realizada por estes.

Assim, a coluna “Nossa antena” é uma crônica relacionada à matéria sobre a chuva no estado

do Rio de Janeiro apresentada na revista que, no texto em análise, assume o caráter político-

social, ao inserir no fio do discurso, trechos de declarações do prefeito de Niterói, Jorge Roberto

Silveira, com o objetivo de criticar a atuação deste diante do caos gerado pelos deslizamentos de

terra na cidade utilizando-se, então, do discurso irônico.

Conclusão

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Finalizamos este trabalho tecendo as considerações finais acerca da análise do discurso irônico

presente na crônica “A omissão que mata” e constatamos que a ironia pode assumir um efeito de

sentido que não o do humor, do cômico, mas da crítica, e o mais importante, é o reconhecimento

do uso da ironia enquanto estratégia argumentativa, seja o efeito de sentido o humor ou não.

Portanto, como resultado da análise do texto, constatamos que o gênero crônica político-social

é bastante rico para a efetivação do discurso irônico, uma vez que, segundo Silva (2001, p. 203):

o lugar de antagonista ocupado pelo enunciador na crônica político-social

lhe permite inserir a „argumentação inversa‟ exigida por esse gênero, e nos

revela que nele a ironia aparece como uma estratégia linguístico-discursiva

que desmascara-desvela uma enunciação anterior

A respeito do desvelamento de uma “enunciação anterior”, observamos que, como na teoria do

discurso irônico enquanto fenômeno polifônico proposta por Ducrot (1987), a orientação

argumentativa do texto ocorre de diferentes formas e cabe ao autor-irônico organizá-las de modo

que este fique coerente e coeso. Até mesmo estratégias monofônicas “tendem a aparecer na

conclusão como forma de não deixar dúvidas sobre o real ponto de vista do jornal” (PASSETTI,

1999, p. 44), como ocorre no texto em tela em trechos como:

O Morro do Bumba, com sua lama negra de detritos que desceu de uma

altura de 600 metros, é o maior retrato da demagogia que pune os pobres.

É o resultado da ausência de uma política habitacional para famílias de

baixa renda. É a improvisação do salve-se quem puder. É o retrato de

gerações de políticos que jamais pensaram a longo prazo, no bem-estar da

população e das cidades.

Nesse sentido, portanto, a crônica “A omissão que mata” apresenta o embate entre a

ideologia das Organizações Globo em oposição à ideologia dos partidos políticos contrários à

emissora, uma vez que a primeira caracteriza a segunda como demagoga, assistencialista, e

constrói, na estrutura argumentativa do texto, um discurso com efeito de verdade complementado

pelas críticas tecidas contra o prefeito Jorge Roberto Silveira ao trazer trechos de uma entrevista

concedida na semana da tragédia ocorrida em Niterói, o que acaba por prender a atenção do

leitor.

Outro ponto observado foi a localização da crônica na revista e a rede textual presente em

toda revista de modo a reforçar a ideologia da revista contra a política assistencialista dos

governantes, a qual começa na capa, passa pelo índice, é explicitada na carta do diretor de

redação, tem seu ápice na reportagem – que é a principal da edição 621 – e, como um último

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lembrete ao leitor, todos esses recursos serviram de base para a construção da crônica, com o

objetivo de desmoralizar o objeto da ironia de modo que “ele nem perceba a nova ideologia que o

jornal propõe para sustentar a argumentação irônica” (PASSETTI, 1999, p. 49-50).

É importante ressaltarmos que a leitura irônica é efetivada quando o sujeito-leitor possui

conhecimento do que é ironizado, quando compreende “o processo de comunicação que nos

permite entender a linguagem em uso e os significados culturais produzidos nos discursos, como

nos traz Silva (2001, p. 203). Como a utilização das aspas de forma a marcar o distanciamento do

locutor L ao que ele enuncia, bem como discorre Benites (2002, p. 129): “o autor da ironia muitas

vezes aponta explicitamente a direção em que suas palavras devem ser interpretadas”, ou seja, no

texto em questão, o autor-irônico constrói a argumentação irônica sob a forma de um discurso

polifônico de modo a explicitar, ao utilizar-se das aspas, ao discurso que deve ser aderido pelo

sujeito-leitor – a não-aceitação dos governos assistencialistas, os quais, para a revista, são o PDT

e o PT.

Ainda sobre os recursos linguísticos, segundo Passetti (1995, p. 108), estes podem ser de

grande serventia à argumentação irônica, “porque o discurso irônico é, por si, dialógico e, desta

forma, um recurso pode, simultaneamente, exercer duas funções no texto”, ou seja, o autor-

irônico pode orientar o locutor L a fazer uso de determinados recursos sintáticos e lexicais com o

objetivo de promover o embate entre duas formações discursivas distintas, ocasionando o jogo

enunciativo entre implícito versus explícito presente na ironia, como a inserção do discurso

aspeado do prefeito Jorge Roberto na voz do locutor L, o que demarca a isenção deste e aponta

para a elevação do enunciador sério (Organizações Globo) em oposição ao enunciador absurdo

(prefeito de Niterói e governos assistencialistas).

Outro ponto a ser considerado também nessa conclusão é a presença dos discursos de

autoridades cientificas, como a antropóloga Alba Zaluar e de Fernando Kerzman, presidente da

Associação Brasileira de Geografia e Engenharia Ambiental (ABGE), os quais são adentram ao fio do

discurso de modo a caracterizar e a legitimar a estratégia argumentativa proposta pelo autor-

irônico, como caracteriza Benites (2002, p. 96), “Tendo em vista imprimir maior credibilidade a

seu argumento, o locutor muitas vezes ancora-o na respeitabilidade e na autoridade de um

especialista”.

A inserção de um discurso-chavão também é de suma importância para a conclusão desta

análise, como a aparição do enunciado “É nesses momentos que a gente se orgulha de ser

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brasileiro”, o que remete ao enunciado “orgulho de ser brasileiro” presente na campanha

promovida pelo Governo Federal “O melhor do Brasil é o brasileiro” durante o governo Lula. A

utilização desse discurso é um recurso utilizado pelo autor-irônico com o objetivo de persuadir o

leitor, como comenta Passetti (1995).

Nessa perspectiva, esquadrinhamos uma leitura sobre os procedimentos envolvidos na

construção e constituição de uma crônica político-social de cunho irônico, como o momento da

enunciação, os mecanismos lingüísticos utilizados pelo autor-irônico e a descrição da

ambiguidade presente nesse tipo de discurso, dado o jogo enunciativo entre o implícito e o

explicíto.

Referências

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KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo:

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Veríssimo, 2006. Dissertação (Mestrado em Letras), Pontifícia Universidade Católica de Minas

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PASSETI, M. C. O discurso irônico: análise da argumentação irônica em textos opinativos da Folha

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imprensa brasileira. In: Análise do Discurso: entornos do sentido. Maria do Rosário Gregolin (et al.)

(org.) – Araraquara: UNESP, FCL, Laboratório Editorial; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2001.

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Anexos

A omissão que mata

RUTH DE AQUINO

Quem mora lá no morro já vive pertinho do céu. A canção composta por Herivelto Martins em

1942, “Ave Maria no morro”, é um exemplo da relação romântica entre o Rio de Janeiro e a favela.

Um amor com final trágico e previsível. Como todos vimos na semana passada, eram pobres e

favelados as vítimas da tempestade no Estado. E quem matou essas famílias não foi a fúria das

chuvas. Mas governos negligentes, paternalistas, demagogos e irresponsáveis.

O crime mais revoltante foi cometido pelo prefeito Jorge Roberto Silveira, de Niterói.“Eu sabia do

lixão ali, mas nunca tinha havido nenhum incidente.” Foi a declaração inocente do prefeito do PDT.

Ele comanda Niterói desde 1989, com alguns intervalos para um prefeito do PT. O Morro do

Bumba abrigava uma comunidade inteira, com casas, igreja, pizzaria, bares e creche. Tudo sobre

um lixão tóxico, desativado em 1986. A comunidade floresceu sob a vista complacente e amiga de

Jorge Roberto. A Cedae colocou ali bica d‟água. O então governador Brizola levou ao Bumba o

programa “Uma luz na escuridão”. Anos depois, a comunidade ganhou quadra de esportes, creche.

Brizola virou nome de rua no Bumba. Não dá para acreditar que alguém instruído resolva

urbanizar uma área condenada.

O prefeito Jorge Roberto nunca parou para pensar que estava cavando a sepultura de 150 pessoas

ou mais, segundo cálculos de moradores.

Por que o lixão desativado não foi cercado por ele? Não era um morro qualquer. Era um

amontoado de matéria orgânica que apodrecia e soltava gás metano, um gás explosivo. Aquilo

não era um solo. Era uma bomba-relógio. “Você sabe, num país como o nosso, é muito difícil

impedir assentamentos irregulares ou remover moradores de áreas de risco”, disse Jorge Roberto.

“Tentei o possível, tentei o máximo.” O máximo.

O Morro do Bumba, com sua lama negra de detritos que desceu de uma altura de 600 metros, é o

maior retrato da demagogia que pune os pobres. É o resultado da ausência de uma política

habitacional para famílias de baixa renda. É a improvisação do salve-se quem puder. É o retrato de

gerações de políticos que jamais pensaram a longo prazo, no bem-estar da população e das

cidades. Quem matou as famílias de favelados não foi a chuva. Foram governos negligentes,

demagogos e irresponsáveis.

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Mas não são apenas políticos. Muitas vezes, é a esquerda-caviar carioca. Ou os gringos de

institutos internacionais que vêm fazer tour exótico e social nas favelas para depois tomar

champanhe na piscina do Hotel Fasano, de frente para o mar de Ipanema.

Até os nomes das favelas são poéticos. “O que está acontecendo é resultado de anos de

demagogia em relação à favela”, diz a antropóloga carioca Alba Zaluar. “É incrível que essas

tragédias ocorram em lugares com nomes como Morro dos Prazeres ou Chácara do Céu. As

favelas historicamente eram cenários de sambas lindos, espaços de poesia e criatividade. Com o

tráfico de drogas, essa visão romântica foi abalada.”

Um barraco pode ser o único patrimônio de uma família. Mas é preciso que o poder público rompa

a ideia de que essa afetividade é sinônimo de segurança, em vez de transformar a favela em seu

curral eleitoral. “É a própria política que ajuda a construir a noção de que a casa é própria, mesmo

que esteja no meio de um barranco que pode cair a qualquer momento”, diz Alba. “E toda a

sociedade é conivente com essa ideia.”

Sonho de qualquer cidadão, a casa própria nasce muitas vezes do tijolo e do ferro doados por

políticos – não importa sobre que terreno ou com que engenharia a obra será erguida. “São esses

mesmos políticos que, tempos depois, buscarão apoio da Justiça ou organizarão manifestações

populares para evitar a desapropriação e a remoção – auxiliados por ONGs e movimentos sociais”,

diz Fernando Kerzman, presidente da Associação Brasileira de Geografia e Engenharia Ambiental

(ABGE).

“É nesses momentos que a gente se orgulha de ser brasileiro”, disse o prefeito Jorge Roberto,

diante da língua negra de lama e lixo apodrecido que soterrou seus eleitores. Não pude acreditar.

Ele dizia, na televisão, que tudo estava “sob controle” e se confessava emocionado com a

solidariedade do presidente Lula e dos bancos.