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A CRÍTICA DO NAZISMO NA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE H.-G. GADAMER MIGUEL BAPTISTA PEREIRA Não se pode tratar com rigor das raízes históricas da vontade ilimitada de poder do Nazismo sem a evocação de «Nouvelle Division de Ia Terre par lés différentes Espèces ou Races d'Hommes» (1684) do médico e investigador francês F. Bernier, que mais de trezentos anos pela pri- meira vez observou «qu'il y a surtout quatre ou cinq Espèces ou Races d'Hommes, dont Ia difference est si notable qu'elle peut servir de juste fondement à une nouvelle division de Ia Terre» 1. A novidade estava na divisão da população total da terra em espécies ou raças segundo os critérios externos do corpo, rosto, nariz, lábios, dentes e cabelos e a sua distribuição geográfica por três grandes regiões do mundo, com relevância para a raça da Europa a que chamou «espèce particulière» 2. Esta divisão da terra segundo as raças foi enriquecida no século XIX com a visão da história como «história das raças» traçada por J. A. De Gobineau, autor de «Essai sur l'Inégalité des Races Humaines» 3 e retomada em finais do séc. XIX pelo genro de R. Wagner, H. S. Chamberlain, conhecedor de Gobineau e de Darwin e autor de «Fundamentos do séc. XIX» (1899), em que o conceito de «raça nobre» em processo de desenvolvimento segundo o acaso de condições favoráveis ou um plano gizado era o eixo fulcral da história. No mesmo séc. XVII em que surgiram pela primeira vez as 1 F. BERNIER, «Nouvelle Division de Ia Terre par les différentes espèccs ou races d'hommes qui I'habitent, envoyée par un fameux vohageur à Monsieur... à peu près co ces termes (24.4.1684)» in: Journal des Sgavants 12 (1685) 148. 2 ID., o.c. 142. 3 J. ARTHUR DE GOBINEAU, Essai sur l'Inegalité des Roces Humaines, 4 vols. (Paris 1853). Cf. H. STEWART CHAMBERLAIN, Die Grundlagen des 19. Jahrhunderts (Muenchen 1899). Revista Filosófica de Coimbra - n.° 20 (2001) pp. 227-284

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A CRÍTICA DO NAZISMO NA HERMENÊUTICAFILOSÓFICA DE H.-G. GADAMER

MIGUEL BAPTISTA PEREIRA

Não se pode tratar com rigor das raízes históricas da vontade ilimitadade poder do Nazismo sem a evocação de «Nouvelle Division de Ia Terrepar lés différentes Espèces ou Races d'Hommes» (1684) do médico einvestigador francês F. Bernier, que há mais de trezentos anos pela pri-meira vez observou «qu'il y a surtout quatre ou cinq Espèces ou Racesd'Hommes, dont Ia difference est si notable qu'elle peut servir de justefondement à une nouvelle division de Ia Terre» 1. A novidade estava nadivisão da população total da terra em espécies ou raças segundo oscritérios externos do corpo, rosto, nariz, lábios, dentes e cabelos e a suadistribuição geográfica por três grandes regiões do mundo, com relevância

para a raça da Europa a que chamou «espèce particulière» 2. Esta divisão

da terra segundo as raças foi enriquecida no século XIX com a visão da

história como «história das raças» traçada por J. A. De Gobineau, autor de

«Essai sur l'Inégalité des Races Humaines» 3 e retomada em finais do

séc. XIX pelo genro de R. Wagner, H. S. Chamberlain, conhecedor de

Gobineau e de Darwin e autor de «Fundamentos do séc. XIX» (1899), em

que o conceito de «raça nobre» em processo de desenvolvimento segundo

o acaso de condições favoráveis ou um plano gizado era o eixo fulcral da

história. No mesmo séc. XVII em que surgiram pela primeira vez as

1 F. BERNIER, «Nouvelle Division de Ia Terre par les différentes espèccs ou races

d'hommes qui I'habitent, envoyée par un fameux vohageur à Monsieur... à peu près co

ces termes (24.4.1684)» in: Journal des Sgavants 12 (1685) 148.

2 ID., o.c. 142.3 J. ARTHUR DE GOBINEAU, Essai sur l'Inegalité des Roces Humaines, 4 vols.

(Paris 1853). Cf. H. STEWART CHAMBERLAIN, Die Grundlagen des 19. Jahrhunderts

(Muenchen 1899).

Revista Filosófica de Coimbra - n.° 20 (2001) pp. 227-284

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palavras «Ontologia» e «Hermenêutica», apareceu, portanto, uma divisãoda terra fundada nos modos diferentes como corporeamente o homemaparecia e onde se indicava já a superioridade da «espécie particular» daraça branca. Se era um facto a diferença de raças, ter-se-iam de investigaras diferenças e semelhanças na esfera real dos indivíduos da mesma ede raças diferentes e de registar o que a realidade individual anunciasse deproximidade entre indivíduos de raças diferentes e de distância entre os damesma raça, como fez no começo do séc. XX F. Boas com a verificaçãoempírica de que a forma do crâneo de imigrantes pretos nos Estados Unidosfoi transformada devido à alimentação e ao modo de vida no NovoContinente 1. Por outro lado, as diferenças entre indivíduos consideradosda mesma raça apareceram iguais ou significativamente maiores do que asdiferenças médias entre homens de raças diferentes 5, o que permitia aoconhecimento devolver ao fenómeno real o que de facto lhe pertencia. Paradestruir «idola» possíveis, como no séc. XVII se exprimiria F. Bacon, eranecessário observar com rigor como as coisas aparecem e não seguir apenase reforçar até preconceitos e desfigurações tradicionais, isto é, impunha--se uma severa descrição fenomenológica da experiência, que distinguissepermanentemente o trigo do joio, salvando o aparecimento contra aaparência. A busca, que deixa aparecer as coisas como são, inscreve-se na«justiça» da razão humana, que, por sua vez, é também vítima constantede desfigurações. A cegueira da razão vital, pulsional e instintiva doNacional-socialismo não permitiu o aparecimento das coisas, reduzindo a«vontade de poder desvelar» o que de algum modo se mostra, à vontadede domínio e de exclusão. Avesso à ciência universitária, A. Hitler, na ondado diletantismo do tempo, preferia o erudito autodidacta, aborrecia ocientista estabelecido, sintonizava-se com a crítica ao Iluminismo e àsciências exactas e vivia o primado da intuição e do sentimento, aberto aoirracional e ao mítico, sem jamais se preocupar com a intencionalidade oua dimensão de verdade da consciência. Para ele, a extensa massa do povonão era constituída por professores nem por diplomatas e, por isso, possuíaum diminuto saber abstracto mas habitava num mundo de sentimentos, comsuas atitudes positivas ou negativas e apenas uma exteriorização de força

4 F. BOAS, «The cephalic Index» in: American Anthropology 1 (1899) 448-461; ID.,

Changes in bodily Forni of Descendants of Immigrants (Washington 1911); R. MILES,

«Bedeutungskonstitution und der Begriff des Rassismus» in: Das Argument 175 (1989)

353 ss; S. HALL, «Die Konstruktion von 'Rasse' in den Medien» in: ID., Ausgewaehlte

Schriften. Ideologie, Kultur, Medien, Neue Rechte, Rassismus ( Berlin/Hamburg 1989) 150

ss. Cf. M. B. PEREIRA, «Modernidade, Racismo e Ética Pós-convencional» in: Revista

Filosófica de Coimbra 3 (1993) 8 ss.

5 ID., o.c.l.c.

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e não uma oscilação indefinida e abstracta podia levar a massa popular adefinir-se. Portanto, mais do que ponderação e deliberação, é a dimensãodo sentimento forte, que determina o pensamento e a acção e, por isso nãohá uma busca de diferenças várias, que se mostrem, mas apenas a meraalternativa entre sentimentos subjectivos do positivo ou negativo, do amorou do ódio, do justo ou do injusto, da veracidade ou da mentira. Nestadisjunção inscreve-se a luta de toda a natureza entre força e fraqueza e avitória duradoura dos fortes sobre os débeis 6. É iludido o problema defundo, isto é, como é que a sensação, o sentimento, a imaginação e oconhecimento racional se mostram a si mesmos e os fenómenos, querevelam, a uma análise desprovida de preconceitos de modo que se nãotome por figura da consciência aquilo mesmo, que a desfigura, comopromete o rigor da Fenomenologia, ao suspender todos os «idola»,preconceitos, opiniões, teorias, que possam impedir o aparecimento do querealmente se mostra. Só no séc. XVIII apareceu em J. H. Lambert (1728--1777) o termo «Fenomenologia» 7 no sentido de doutrina do aparecerenquanto distinto do próprio ser, historicamente testada na distinçãokantiana entre «fenómeno» e «coisa-em-si» mas foi Hegel o primeiro aconsiderar a possibilidade de uma «Fenomenologia», que tivesse por tarefaestudar sistematicamente as figuras fenoménicas da consciência, que oespírito teria de percorrer para se elevar ao Espírito Absoluto. A suspeitade que tais figurações seriam ainda desfigurações, levou E. Husserl atematizar a intencionalidade da «ida até às coisas», que de muitas formaspreside à «ciência humana da experiência da consciência» e, por isso, assuas Investigações Lógicas, que abriram o séc. XX, são já um pilarfilosófico do século da Hermenêutica Filosófica 1900-2000 8. Nas liçõesde 1923 Ontologia (Hermenêutica da Facticidade) proferidas por M. Hei-degger, a que H.-G. Gadamer assistiu, a Ontologia como Hermenêutica daFacticidade é uma Fenomenologia, que deixa o ser do homem aparecercomo é a partir de si mesmo, o que lhe permite dissipar ocultações, extirpardistorções em virtude do desvelamento do ser humano, que será o elementonovo anunciado pela nossa existência corpórea vigilante no mundo, sempreem situação concreta vivida num conhecimento interessado, que per-maneceu estranho aos modelos teóricos tradicionais `sujeito-objecto',`consciência-ser', `res cogitans-res extensa'. No mesmo ano de 1923, emque na Ontologia como Hermenêutica da Facticidade o homem, her-

6 B. HAMANN , Hitlers Wien . Lehtjahre eives Diktators ( Wien 1996 ) 333-336.

7 J, H. LAMBERT, Neues Organon, 2 Baende: Bd. I-Dianoiologie und Aletheiologie;

Bd. II - Seiniotik und Phaenomenologie (Leipzig 1764).8 M. B. PEREIRA , «O Século da Hermenêutica Filosófica: 1900-2000 » in: Revista

Filosófica de Coimbra 17 (2000) 3 ss.

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meneuta vigilante do seu próprio ser, que por si mesmo lhe aparece, teriade destruir os `ídolos', que lhe desfiguravam a autêntica realidade d1 suaexistência, A. Hitler iniciava a redacção de O Meu Combate na prisão, apóso golpe falhado em 8.11.1923 9, sem qualquer fenomenologia crítica, quedestruísse os ídolos, que herdara e alimentara com a leitura de Gobineaue de Chamberlain, sobretudo o dogmatismo da vitória ariana na históriacomo luta de raças. No silêncio da prisão de Landsberg, Hitler dá um tommilenarista à sua missão, após o fracasso sofrido: «Se o judeu vencer como auxílio da sua crença marxista nos povos deste mundo, então a sua coroaserá a dança dos mortos da humanidade e este planeta arrastar-se-á vaziode homens pela atmosfera, como há milhões de anos... Deste modo, eujulgo hoje agir no sentido do Criador Omnipotente. Ao defender-me dojudeu, combato pela obra do Senhor» 10. O Meu Combate é claramente umescrito de propaganda política em que o autor, faminto de poder, divulgaa «visão de mundo» em processo de um «Fuehrer» germânico preten-samente genial, que tem sempre razão e já na sua juventude encontrou ocaminho certo. Enquanto Gadamer ouvia e lia em Heidegger que toda aexistência finita tem possibilidades de autenticidade e de inautenticidade,de lembrança e de olvido do seu ser e de uma verdade, cujo desvelamentojamais é pleno, Hitler repartia, em estilo maniqueu, os homens porrepresentantes da raça nobre e sadia e por desnaturados e decadentes semoutras possibilidades a não ser as do extermínio, dados os crimes de lesa--humanidade por eles perpetrados: a troca da raça ideal pelo interna-cionalismo, a negação da força e do génio pela maioria numérica dademocracia e o abandono da necessidade do combate pelo pacifismo, pelareconciliação dos povos e pela paz eterna do mundo. Esta posição fun-damentalista é avaliada em 1929 nestes termos: «Podemos ser desumanosmas, se salvarmos a Alemanha, praticamos a maior acção do mundo.Podemos praticar a injustiça, mas, se salvarmos a Alemanha, eliminamosde novo a maior injustiça. Podemos ser imorais, mas, se o nosso povo forsalvo, rasgamos de novo o caminho à moralidade» 11. Contra a dege-nerescência artística, intelectual e ética, a paixão do III Reich será criaruma «nova arte verdadeiramente nacional», pois, na expressão do próprioFuehrer, «a arte alemã» é «a defesa mais orgulhosa do povo alemão» 12,

portanto, do génio rácico, da sua nobreza, força e luta.

9 R. ZITELMANN , Hitler. Selbstverstaetulnis eines Revolutionaers 2 (Darmstadt 1989) 83.10 B. HAMANN , «Einer von ganz Unten» in: Der Spiegel, Nr. 28/9.7.2001, 140.11 ID., o.c.l.c.12 A. HITLER, Die deutsche Kunst ais stolzeste Verteidigung des deutschen Volkes

(Muenchen 1934).

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Na década de 30, ao reflectir sobre a obra de arte, o Mestre deGadamer, M. Heidegger, tentou «destruir» a sua redução ao domíniodo génio da Estética Clássica e libertar da subjectividade do criador e dointérprete o «estar-em-si» e o «abrir mundo» da obra de arte, contrapondoao mundo exposto por desocultação na obra de arte a Natureza ou Terraoculta e acolhedora, numa recuperação da distinção entre o fundo emclausura e as coisas naturais visíveis, a (püatç e Tá óvTa, a «NaturezaNaturante» e a «Natureza naturada», a exemplo dos Pré-socráticos, deEspinosa e de Schelling e no novo estilo da diferença ontológica 13.A «destruição» integrada no método fenomenológico heideggeriano ferede morte o subjectivismo da Estética, a fim de unir ser e verdade da obrade arte e mudar o homem de sujeito egocêntrico em compreensor do serou existência. Esta «destruição» soma-se à da Metafísica sobre que incidiua sua lição inaugural na Universidade de Freiburg em 1929 e ao regressoà Natureza, aos Pré-socráticos e a uma valorização do conceito de trabalhoe de homem trabalhador, onde é possível uma influência cruzada deNietzsche e do próprio Marx, cujos Manuscritos Económico filosóficosforam publicados em 1932 pelo aluno de Heidegger, L. Landshut. Paraestudar a «realidade imediata da obra de arte» Heidegger vai analisarfenomenologicamente a experiência de ser de uma coisa, que é um temacaro da sua fenomenologia ontológica, que exigia maior rigor à idahusserliana até às coisas. A novidade do método fenomenológico modi-ficado por Heidegger é que ele deixa ver o ser, que, embora velado para ocomportamento inautêntico dos mortais, se mostra a partir de si mesmo aum olhar adrede purificado. Deste ser, que a ocultação volve enigmáticoe misterioso e a abertura deixa aparecer a partir de si mesmo, apresentaHeidegger uma pluralidade de modos de aparecimento: o modo de sercaracterístico do sendo, que nós somos e se chama existência, os modosde ser dos sendos não-humanos como o ser-à-mão do utensílio, o ser--perante-a-mão do objecto, o ser da natureza, o ser da vida, o ser ideal dosobjectos matemáticos e o ser da obra de arte. Neste contexto insere-se a

pergunta pelo ser de coisa, implicado no conceito de «realidade imediata

e plena da obra de arte» e tratado na primeira parte de A Origens da Obra

de Arte de M. Heidegger na mesma altura (1935-36) em que ele prelec-

cionou sobre A Pergunta pela Coisa 13a. Nesta linha de pensamento,

escreverá Gadamer em 1960 sobre «A Natureza das Coisas» e a «Lin-

13 M. B. PEREIRA, «A Essência da Obra de Arte no Pensamento de M. Heidegger

e de R . Guardini» in : Revista Filosófica de Coimbra 13 (1998) 5.13a M. HEIDEGGER , Die Frage nach dem Ding. Zu Kants Lebre von den trans-

zendentalen Grundsaetzen . Freiburger Vorlesungen WS 1935/36, GA, Bd. 41 (Frankfurt/

/M. 1984).

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guagem das Coisas» 14, confessando que não ouvimos suficientemente alinguagem das coisas, a deveríamos escutar melhor, em vez de a sub-metermos em demasia ao cálculo e ao domínio da ciência. O facto depodermos falar de uma «linguagem das coisas» recorda que elas não sãoapenas material de uso e de abuso, não são instrumentos a caminho dalixeira mas algo, que em si tem consistência e «a nada é coagido», comodiz Heidegger em A Origem da Obra de Arte 15. O ser-em-si próprio deuma coisa, violentado e desprezado pelo poder da vontade humana de

domínio, na perspectiva de Gadamer, «é como uma linguagem, que énecessário ouvir... A expressão ' linguagem das coisas' não é, portanto,uma verdade mitológico-poética... mas a recordação em todos nósadormecida do ser próprio das coisas, que podem ainda ser o que elas são».Neste contexto, as expressões «linguagem das coisas» e «natureza dascoisas», quando analisadas , «dizem-nos em certo sentido o mesmo , isto é,algo, que se deve recordar perante a prepotência própria do arbítrio» 16. Em1960, esta leitura fenomenológica foi aprovada pelo seu Mestre, querecomendou a introdução redigida por Gadamer para a sua obra A Origemda Obra de Arte como orientação para a leitura dos seus escritos tardios 17.

A Universidade de Marburg confiou a Gadamer em 1933, ano datomada do poder pelo Nacional-socialismo , as aulas de Ética e de Estética,onde, em 1936, sob o título de «Arte e História (Introdução às Ciências doEspírito)» Gadamer realizou uma abordagem ontológica, fenomenológicae hermenêutica da experiência artística e histórica, que, retomada depoisnas primeiras lições de professor catedrático na Universidade de Leipzigem 1939, é considerada a primeira pedra angular da futura obra- mestra«Verdade e Método» 18, cujas raízes crescem na fase de expansão edomínio do Nacional- socialismo.

A partir da incidível relação entre linguagem, arte e filosofia dentro deuma Ontologia fenomenológica e hermenêutica, merecem especial atençãoduas conferências pronunciadas por Gadamer após o fim da guerra de1939-45 19 e que urge contrapor ao discurso de Hitler em Munique na

13 H.-G. GADAMER, «Die Natur der Sache und die Sprache der Dinge» in: ID.,Kleine Schriften 1. Philosophie, Hermeneutik (Tuebingen 1967) 59-69.

15 M. HEIDEGGER, «Der Ursprung des Kunstwerks» in: ID., Holzwege. GA, Bd. 5(Frankfurt/M. 1977) 17.

16 H.-G. GADAMER, o.c. 61.11 M. HEIDEGGER, «Vorwort» in: ID., Der Ursprung des Kunstwerks ( Stuttgaart

1960) 5.11 J. GRONDIN, Hans-Georg Gadamer. Eine Biographie (Tuebingen 1999) 379-380.19 H.-G. GADAMER, «Ueber die Urspruenglichkeit der Philosophie (1945, 1947) .

1. Die Bedeutung der Philosophie fuer die neue Erzielung. 11. Das Verhaeltunis der

Philosophie zu kunst und Wissenschaft in: ID., Kleine Schriften 1, 11-38.

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abertura da «Grande Exposição de Arte Alemã» em 1937 21. A sondagemdos pressupostos deste confronto termina na oposição irredutível entre oser humano finito, que socraticamente sabe que nada sabe, dialógico ecapaz de não ter razão, aberto a todos sem exclusão num diálogo sem fim,sempre interpelado pela perguntabilidade do ser imemorial, que sobrevivea todas as respostas - e a apoteose do combate, da selecção e vitória da raçaariana sob o comando absoluto do auto-promovido a génio artístico,político, militar e educador A. Hitler, que seria a forma pura, omnipresentee activa, da matéria dúctil do povo germânico e, como tal, também sim-bolizada pela cruz suástica - sinal do «Invencível», da «Força do Alto», do«Salvador dos Germânicos». A relação íntima entre língua e raça, povo ounação explorada já no séc. XVIII estendeu-se à índia e aos povos da famílialinguística indo-germânica e, deste modo, o termo ariano, que na antiga cul-tura indiana significava senhor ou nobre, substituiu o termo `indo-germânico'e rapidamente se converteu numa categoria da filosofia da história paradesignar os portadores do progresso e dos grandes ideais, que o Nazismoviu protagonizados unicamente no homem germânico ou nórdico. Contraesta redução simplista, a língua «materna» de qualquer povo é, paraGadamer, o primeiro espelho do mundo e a referência primária da lin-guagem poética, religiosa, filosófica e científica, o que obriga a consorciara filologia com a filosofia, o amor da linguagem com o amor da sabedoria,a memória das raízes linguísticas com a herança conceptual filosófica, ohomem, que, ao falar, recorda e revive a sua identidade com o outro, que,chegando numa língua diferente, participa do diálogo, que também é trocainterlinguística de memórias, confronto de identidades e dádiva delinguagens. Como oposto contrastante de Gadamer, pode nomear-se oescritor vienense e «erudito privado» Guido von List, oráculo do jovemHitler, que na palavra Arier (ariano) lia monológica e silenciosamente odeus-sol (Ar), a geração a partir dele (Ri) e o povo ariano por ele gerado

(Er) 21 e no nome «Svastika» (suástico) vislumbrou a felicidade (svasti emsânscrito), o nome do deus lituano do fogo (Sweistik) e o proceder ou

nascer (thu e ask) no modo imperativo 2A cruz suástica, que inundou aos

milhões a Alemanha de Hitler, tornou-se símbolo do «invencível», da

«força do alto», do «salvador dos germânicos», que seriam eternos predi-

cados do «Fuehrer».

20 A. HITLER, «Hitlers Rede zur Eroeffnung der 'Grossen Deutschen Kuntaus-

stellung' 1937» in: P.-K. SCHUSTER, Hrsg., Nationalsozialisnnts und «Entartete Kunst»

(Darmstadt 1998) 242-252.

21 B. HAMANN, o.c. 294.

22 ID., o.c. 298-299.

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O século XX pode ler-se como o «século alemão» 23, dada a presençadeterminante da Alemanha nas duas grandes guerras mundiais, nassequelas, que marcaram de vários modos os tempos do após-guerra até àreunificação alemã e ao seu papel na Comunidade Europeia. Neste séculoalemão, que também é da Hermenêutica Filosófica, expôs Hitler nos seustextos um dualismo maniqueu formado pela nobreza saudável da raça puraariana, por um lado, e pela degenerescência irremediável de raças infe-riores, por outro, que ele sorvera na cultura austríaca do fim do séc. XIXe começo do séc. XX e as obras de A. De Gohineau e de H. S. Chamberlainajudaram a estruturar e a sistematizar 24. Enquanto a partir destes pres-supostos Hitler urdia em 1937 o seu discurso sobre a Arte Alemã pura e aArte desnaturada, Gadamer regressava com Hegel e Heidegger aos Gregos 25,com realce para a figura de Sócrates, finito no saber do não-saber, abertodialogicamente a todos na prossecução do Bem, que converteria a cidadegrega num magno espaço de educação e de que a arte seria expressãosensível.

Dentro do horizonte traçado, este trabalho distribui-se por três partes:Pressupostos da Filosofia da Arte de A. Hitler com relevo para o conceitode «degenerescência» (1), análise do seu discurso sobre arte na inauguraçãoda «Grande Exposição da Arte Alemã» e exame preferencial dos textoscríticos do Nazismo de 1945-48 saídos da pena de H.-G. Gadamer (III).

I

O médico psiquiatra B.-A. Morei, colega de Claude Bernard, publicouem 1857 o Tratado das Degenerescências Físicas, Intelectuais e Moraisda Espécie Humana, chamando a intenção para o perigo, que o homemdegenerado representa para a sociedade: «O homem degenerado, quandoabandonado a si mesmo, cai numa degenerescência progressiva. Não lheé apenas... impossível participar como membro progressivo na cadeiagenética da sociedade humana mas é precisamente pelo seu contactocom a parte sã da população o maior impedimento deste progresso» 226.A expressão «degenerescência» visava males em marcha imparável como

23 E. JAECKEL, Das deutsche Jahrhundert. Eine historische Bilanz (Stuttgart 1998)passim.

24 Cf. nota 3.25 M. B. PEREIRA, «O Século da Hermenêutica Filosófica»: 1900-2000» in: Revista

Filosófica de Coimbra 18 (2000) 189-259.26 B.-A. MOREL, Traité des Dégénerescences phvsiques, intellectuelles et morales

de l'Espèee humaine (Paris 1857) III, IX, 5 ss., 62, 72, 136.

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paralisia progressiva, epilepsia, suicídio e criminalidade na Europa e cujas«forças naturais», que afectavam o destino da humanidade, era necessárioesclarecer. Morei foi seguido internacionalmente, v.g., na Alemanha,Áustria, Inglaterra e até E. Zola no seu romance Germinal narrou o destinode duas famílias à mercê de forças sociais antagónicas e com protagonistasroídos de degenerescência e com uma vida geneticamente predeterminada.Nos últimos 30 anos do séc. XIX, o tema da degenerescência passou docírculo das discussões da Psiquiatria Científica para o mundo da literaturae dos jornais 27, fornecendo mais tarde à ideologia nazi o binómio bio-lógico-social «sadio versus degenerado a caminho do extermínio».

Toda a arte, que não exprimisse a natureza ariana ou nobre do homemnórdico, era «desnaturada» segundo a ideologia nazi e, por isso, o livro domédico austro-húngaro M. Nordau intitulado Degenerescência publicadona última década do séc. XIX, influiu decisivamente na política cultural doNacional-socialismo 228, ao criticar, em nome de uma perspectivaprovinciana, os pântanos de depravação subjacente à cultura das grandescidades, que, na sequência de Sodoma e Gomorra, poderiam ser Paris,Londres, Berlim ou Nova Iorque. Tal foi precisamente a perspectiva de

A. Hitler, pintor fracassado e provinciano, reprovado por duas vezes em

desenho quando tentava a entrada em Belas-Artes em Viena 222`) ao mesmo

tempo fascinado, amedrontado e repelido por tudo o que fosse cosmopolita

e, como tal, pudesse ser disfarce e veículo do internacional, do abstracto

e do nivelamento rácico, o que o impelia a demandar o reino do sadio e

do puro contra as «excrescências mórbidas de homens loucos e dege-

nerados, que nós designámos, desde a viragem do século, pelo conceito

colectivo de Cubismo e Dadaísmo» e a apelar para a intervenção do Estado

«a fim de impedir que um povo seja lançado nos braços de espíritos

loucos» 31). Para Hitler chegado da província, Viena não foi a cidade inte-

lectual e artística de «fin de siècle» representada por S. Freud, G. Mahler,

A. Schnitzler ou L. Wittgenstein 31, mas a Viena da «gente miúda», que não

compreendia essa capital moderna e a recusava por estar «desnaturada»,

afastada do povo, demasiado internacional e judia, excessiva no seu espírito

livre, era a Viena dos imigrantes, dos recém-chegados, dos acolhidos em

asilos, de todos os acometidos de medo e expostos a miragens obscuras,

que, perante a miséria real, lhes acenassem com um futuro melhor, reser-

27 Cf. E. SHORTER, Geschichte der Psvchiairie, Uebers, (Berlin 1999) 148-156.28 M. NORDAU, Entartung, 2 Bde (Berlin 1892-1893).29 A. GUYOT/P. RESTELLINI, L'Art Nazi. Préface de Léon Poliakov (Bruxelles

1996) 56.3° A. HITLER, Mein Kampf (Muenchen 1935) 282 ss.

31 A. JANIK/S. TOULMIN, La Viena de Wittgestein, Trad. (Madrid 1974) passim.

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vado a quem pertencesse ao «povo nobre alemão», isto é, não fosse judeunem eslavo nessa «Babilónia de raças» e de povos, que integravam oImpério Austro-húngaro.

Na vontade de regresso «ao estado de natureza» de J.-J. Rousseau haviajá uma crítica da Modernidade, cujo mal-estar em finais do séc. XIX foiconsiderado na Alemanha como «fadiga cultural». Isto provocou umarevalorização da «Alemanha bucólica», do agricultor enraizado no solonatal e portador das tradições germânicas, da pureza da raça e doscostumes, o que suscitou numerosas tentativas de ressuscitar os cultosgermânicos pré-cristãos. «Vida desnaturada» e «fadiga cultural», própriasda sociedade industrial e urbana, contrastavam com o único elemento são,que era o lavrador no seu solo natal, longe da cidade e das seduções docapitalismo e seus modos estranhos de vida. Esta mitificação do campocontinuou na retórica epidíctia do Nacional-socialismo, exaltador docampesino como um ser superior, digno de pertencer à nova «nobreza desangue» e frontalmente oposto à cloaca moral, que era o mundo dacidade 32, à «degenerescência» e à «fadiga cultural». Apesar desta pro-moção retórica e sedutora do campo, a ideologia do sangue e da terra nãotinha por escopo a ruralização da Alemanha mas conseguir um «espaçovital», que ofertasse condições físicas e humanas para uma indústria de altonível tecnológica à medida da «raçade senhores», cuja superioridade bio-lógica e técnica haveria de submeter povos rácica e mentalmente interiores.

E preciso regressar à Viena da «gente miúda» e à sua cultura elinguagem, porque Hitler apagou todos os traços da sua infância e maistarde proibiu toda a publicação sobre a sua juventude e família, ficandocomo única fonte da sua vida O Meu Combate, que é fundamentalmenteum livro de propaganda política e de auto-promoção. Em Viena, circulavacomo palavra da moda, na viragem do século, a expressão «desnaturado»ou «degenerado» aplicada às diversas esferas da vida humana feridas deregressão ou perda dos predicados, que assinalavam a perfeição alcançadana evolução da espécie. Assim, quando a mulher reivindicava uma edu-cação mais esmerada ou o direito de voto, a sua atitude era considerada umdelírio de emancipação de «mulher degenerada», uma vez que tal pretensãose não coadunava com o papel, que a natureza atribuiu à mulher. A moralrelaxada da Modernidade vienense era considerada «degenerescênciamoral» e a arte do Expressionismo criticada como «degenerada». Se oClassicismo Alemão usou com parcimónia a expressão «degenerescência»,já R. Wagner a usou com frequência nos seus escritos teóricos e nos textosdas suas óperas, v.g., na ópera Rienzi, em que o povo, ao recusar ao seu

32 A. GUYOT/P. RESTELLINI, o.c. 129 ss.

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Fuehrer e tribuno Rienzi fidelidade , se revelou «um povo degenerado» 33

A popularidade da teoria evolucionista de Darwin em 1900 traduziu-setambém no uso mais frequente do termo para designar a degenerescênciapatológica de plantas e de animais, pois seria «degenerado» tudo o quecontradissesse a lei do progresso e do desenvolvimento constante. O gostomoderno vienense pelo primitivo caiu sob a acusação de «degeneres-cência», por não passar de um retrocesso anti-natural, pois toda a arte teriade avançar para o que fosse «belo » e «nobre », eterno e consumado e jamaisficar prisioneira do mutável e regressivo . A valorização feita por PaulGauguin de ilhéus exóticos e selvagens seria, neste caso , a promoção nãode um desenvolvimento superior ou de uma forma autónoma de arte masde uma degenerescência , de uma decomposição , numa palavra, de algo, quecedo seria superado como tudo o que é patológico . Dentro desta visãodarwinista, o livro do médico austro-húngaro , residente em Paris . M. Nor-dau sobre « Degenerescência» acentuou a dimensão cultural deste termo,exigindo ao mesmo tempo da Modernidade Francesa que seguisse, noponto de vista artístico e moral , a doutrina de Darwin ao serviço doprogresso e das construções saudáveis da arte, sem jamais ceder ao domíniodo louco, do feio e do doentio : «Os degenerados balbuciam e tartamudeiammas não falam . Soltam gritos monossilábicos ene vez de construírem frasessegundo as regras da morfologia e da sintaxe . Desenham e pintam comocrianças, que sujam mesas e paredes com mãos travessas . Compõemmúsica como os homens amarelos da Ásia Oriental . Confundem entre sitodos os géneros de arte» 34 . Como médico , Nordau acentuou aspectospatológicos da Arte visíveis «na doença espiritual grave do povo, numaespécie de peste negra de degenerescência e de histeria », pois as modasestéticas não passavam de frutos «da doença espiritual de desnaturados e

de histéricos », que levam na boca a palavra liberdade, quando invocam

como seu Deus o seu eu indolente, falam de progresso quando exaltam o

crime, negam a moralidade , idolatram os seus impulsos, troçam da ciência

e propõem como fim único da vida um quotidiano vagabundo e esteti-

cizante 35. A degenerescência é uma destruição da natureza em que o

atingido regride corporalmente até ao nível dos peixes , dos animais e

mesmo dos rizópodos sexualmente ainda indiferenciados 36. Os artistas e

escritores degenerados sofrem de perturbações mentais e, por isso, as

«obras da moda» são delírios escritos e pintados , cujos autores se devem

ter por doentes e desmascarar como inimigos da sociedade e parasitas, de

33 B. HAMANN, o.c. 119.34 M. NORDAU, Entartung, Bd. 11 (Berlin 1893) 498.

15 ID., o.c. 469, 471, 493.36 ID., o.c. 500.

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cujas mentiras é urgente acautelar o público. A degenerescência teria atin-

gido o cume no «misticismo» moderno identificado com o predomínio

do sentimento sobre o entendimento e o desprezo dos valores do Ilumi-nismo, como superiormente transpareceria das figuras de R. Wagner e de

F. Nietzche. A degenerescência de R. Wagner, que seria mais tarde o ídolo

de A. Hitler, era para Nordau mais profunda do que a soma de todos osoutros degenerados, dada a mania da perseguição, a megalomania e omisticismo, que habitavam o cérebro de R. Wagner. O seu misticismosignificava a incapacidade de atenção, de pensamento claro e de domíniodas emoções, baseada na «debilidade dos centros cerebrais superiores» e,como tal, provocava hostilidade social e opunha-se à lei do progresso e dodesenvolvimento da humanidade 37.

Convertida em palavra da moda, «degenerescência» mudou em Vienao seu significado, ao ser expurgada das referências a Nietzche e a Wagnere ao incluir nos degenerados sobretudo os «parasitas» judeus dentro de umanti-semitismo concebido segundo a teoria de Darwin, que situou a dege-nerescência nos animais e plantas incapazes de por si mesmos sealimentarem, vivendo à custa de outros seres vivos. O conceito de parasitaestendeu-se agora a todos os que, ao fruírem apenas e ao consumirem o queos outros produziram, se tornaram animais daninhos ou homens dege-nerados, maus e corruptos. Neste contexto, os judeus não produziam mastentavam apenas explorar em seu proveito o trabalho dos cristãos, vivendoà sua custa 31. Na posse do conceito de «judeu degenerado», os teóricos daraça aconselhavam a purificação da mesma, a selecção dos melhores, aeugenia, a higiene social, o desporto para combater a degenerescência do«povo alemão» e impedir a sua decadência. Em 1907, o «Diário Alemãode Viena» traçava assim as linhas de fundo do «Política Antropológica»:«É a força e a saúde da raça do povo que formam o fundamento do Estado.O dilema vital mais importante de cada Estado é o da permanência eascensão da raça ou o seu afundamento e degenerescência. Uma raça plenade força enche o corpo do Estado de uma vida ascendente e, inversamente,um Povo-Estado degenerado arrasta consigo sem salvação o edifício doEstado para o abismo... Se a força do povo deve perdurar, só os fortes esaudáveis têm permissão de gerar» 19. Estes conceitos haviam sido jáabsorvidos pelo avanço tentacular do Biologismo, termo introduzido naviragem do século por H. Rickert para designar o modelo de explicação

37 ID., o . c. Bd. II, 501 . Cf. B. HAMANN , o.c. 121.31 ID., o .c. 122.

39 Deutsches Wiener Tagblatt , 7.9.1907, Anthropologische Politik , cit. por B.HAMANN, o.c. 122 li

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monista, que, apoiado nas Ciências da Natureza, na técnica e na Medicina,reduzia desde as últimas décadas do séc. XIX toda a actividade científica,política, económica, artística e quotidiana dos homens à lógica de uma«nova deusa» das Ciências da Natureza chamada Vida 40. E evidente arelação deste Biologismo com a Eugenia introduzida por Fr. Galton em1883 na intenção primária de controlar o número de nascimentos deincapazes e de aperfeiçoar a raça e com a Higiene Social, a que A. Ploetzem 1895 cometeu o munus de reconduzir a Alemanha à pureza da raça 41.

Contra a crítica de M. Nordau, R. Wagner teria dado expressão artístico--musical a toda esta ideologia segundo reputados ideólogos nazis. O cultopessoal, que Hitler votou a R. Wagner, remonta a 1905, quando ele em Linzsentiu o fascínio do papel histórico do tribuno do povo Rienzi na ópera domesmo nome 42 e se identificou com o génio ariano de Wagner. A intoca-bilidade deste génio é a da raça ariana, que é a única capaz de criar culturae, portanto, de assumir o domínio do mundo e a do seu herdeiro e reali-zador histórico, A. Hitler, que desde 1925 assistia regularmente ao festivalde Bayreuth, vivendo esses dias como os mais belos da sua vida e sentindoo encerramento do festival com a tristeza, que a árvore do Natal, despojadados seus enfeites, lhe deixara na alma 43. Para o futuro ministro daPropaganda do Reich J. Goebbels, Wagner era o maior génio musical detodos os tempos, que na sua obra previu o III Reich, nos Mestres-Cantoresincarnou o povo alemão despertado da «narcose política profunda», que oacometeu desde Novembro de 1918 com o proclamação da República apósquatro anos de guerra. Da íntima vinculação artística entre Wagner, Povo

Alemão e A. Hitler resultou para Goebbels um pensamento, um sentimento

e uma arte inseparáveis do Povo como comunidade realmente unida econduzida pelo artista carismático A. Hitler 44. O culto de Wagner tornou-

41) Cf. H. RICKERT, «Lebenswerte und Kulturwerte» in: Logos 2 (1911) 131-166; G.

MANN, «Biologismus - Vorstufen und Elemente ciner Medizin im Nationalsozialismus»

in: J. BLEKER/N. JACHERZ, Hrsg., Medizin im dritten Reich (Koeln 1989) 11-12.

41 G. BAADER, «Rassenhygiene und Eugenik. Vorbedingungen fuer die Vernichtungs-

strategien gegen sogennante 'Minderwertige' im Nationalsozialismus» in: J. BLEKER/

N. JACHERTZ, o.c. 22-29. Cf. M. B. PEREIRA, «Modernidade, Racismo e Ética Pós-

-convencional» in: Revista Filosófica de Coimbra 3 (1993) 4-7.

42 H.-R. VAGET, «Wagner-Kult und nationalsozialistische Herrschaft. Hitler, Wagner.

Thomas Mann und die 'nationale Erhebung'» in: S. FRIEDLAENDER/J. RUESEN,

Richard Wagner im driten Reich (Muenchen 2000) 275.

43 A. HITLER, Monologe im Fuehrerhauptquartier 1941-1944. Die Aufeichtnmgen

Heinrich Heims, Hrsg. von W. JOCHMANN (Muenchen 1980) 225.44 H.-R. VAGET, o.c. 227.

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-se um espaço estético e patriótico de interacção entre povo e regime nazi,uma fonte de legitimação e de acatamento jubiloso do Fuehrer e da sua«revolução nacional», um predomínio da esteticização da política e dasedução sobre a indoutrinação seca e o poder frio, a inserção do novoregime na tradição cultural alemã, a penetração do génio de Bayreuth naalma do povo e, simultaneamente, a hegemonia cultural alemã na Europa,em que se baseava a exigência de uma hegemonia política. Neste contextoafectivo, artístico e político circulava o anti-judaismo comum no sentidode luta nacional contra «as forças da escuridão», «o inimigo da Alemanha»,o «espírito de desagregação». Deste culto de Wagner é inseparável aconsciência de herança de Hitler, que se assumia como novo Parsifal e ofuturo salvador da Alemanha e se reconhecia a si mesmo na vivênciaestética das óperas de Wagner. Esta consciência de herança estavasimbolizada na espada da vitória do Nacional-socialismo, que, segundoHitler, fora forjada por Wagner em Bayreuth 45.

Ao contrário de Wagner, Nietzsche não aparece citado nas obras deHitler e, por isso, só por influência de outros ideólogos nazis foi o seunome retirado da lista de «degenerados» iniciada por Nordau e rasgado ocaminho de Nietzsche até Hitler. De facto, os ideólogos nazis costumamreclamar-se de fontes quando aprofundam as raízes da sua imagem demundo como combate: ao lado de Heraclito, que vira no combate «o paide todas as coisas e seu dominador», aparece Nietzche com sua concepçãode «vontade de poder como combate» e depois Darwin com suas expres-sões «luta pela vida» e «direito do mais forte», surgindo no topo O MeuCombate de A. Hitler. A. Baeumler chamou «germanismo» à vontade depoder de Nietzsche entendida como um «realismo heróico», cuja felicidadeestava na acção sem qualquer relação com a ideia fundamental de «eternoretorno» 46 e considerou nietzschiana a ideia de «visão germânica demundo» proposta pelos escritos O Meu Combate de Hitler e O Mito doséc. XX (1930) de A. Rosenberg 47. À síntese definitiva de A. Baeumler deque Nietzsche era «um filósofo para todos aqueles que agem de modonacional-socialista» 48, opôs-se diametralmente M. Heidegger, ocupadodesde 1933 numa leitura ontológica, fenomenológica e hermenêutica dosPré-socráticos 49, em franco contraste com a ideologia do Nacional-socialismo,

41 ID., o.c. 278-280.46 Cf. M. RIEDEL, Nietzsche in Weima?: Ein deutsche Drama 2 (Leipzig 2000) 86-108.

47 O texto O Mito do séc. XX de A. Rosenberg, publicado em 1930, e O Meu Combate

de A. Hitler foram os escritos programáticos mais importantes do Nacional-socialismo.48 M. RIEDEL, o.c. 109,49 M. HEIDEGGER, « Nur ein Gott kann uns retten». Spiegel-Gespraech mit Martin

Heidegger am 23. September 1966» in: Der Spiegel, Nr. 23, 30 (1976) 193-196.

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cujo «filósofo de viragem do tempo», Ernst Kriecker, longe da preocupaçãopelo que realmente se mostra, proclamava uma «Metafísica de base» comos valores do sangue e da terra. Enquanto Heidegger, ainda Reitor daUniversidade de Freiburg, declarava que «o poder do começo do nosso ser--aí histórico-espiritual é o ressurgimento da Filosofia Grega 50, A. Rosenbergproclamava em 1934 que «no processo do vitorioso movimento nacional--socialista se mostrou um profundo mistério do sangue, que aparentementemorrera na guerra mundial e, contudo, ressuscitou neste novo movimento.

Sob o seu signo, prosseguiu a formação nuclear da alma alemã, do povo

alemão. Em volta deste sangue pleno de saúde e renascido circulam todos

os pensamentos daqueles, que desejam combater por esta nova Alemanha

e por um grande futuro. Estas vivências foram acompanhadas paralela-

mente pelo nascimento de uma nova ciência, uma recente descoberta

científica a que chamamos Ciência das Raças. Olhada desde um ponto de

vista superior, esta Ciência, na sua profundidade, nada mais é do que uma

tentativa completamente radicalizada de auto-reflexão alemã. De novo, o

alemão se esforçou por regressar às raízes primárias do próprio Eu, da

comunidade alemã, da família europeia de povos» 51. Enquanto para

Heidegger o ser-aí individual e único se mostra na situação hermenêutica

concreta e num processo finito mas inacabado, em que todo o homem deve

ser vigilante hermeneuta de si mesmo, a reflexão radicial e profunda, a que

se refere Rosenberg, é apenas de uma raça mitificada em luta pela con-

servação das suas raízes, que, segundo A. Baeumler, exige a eliminação dos

ídolos e abstracções da Filosofia do Espírito: «... O primeiro princípio da

vida em comum nacional-socialista é a conservação pura da espécie...

É a primeira consequência de uma filosofia da força em oposição a uma

Filosofia do Espírito, enganadora e desenraizada»... 552. Ao contrário desta

destruição nazi do ídolo do espírito sem raízes, que ocultava o ser rácico

do ariano, a destruição heideggeriana visava eliminar toda a ganga depo-

sitada na tradição filosófica e todas as construções modernas e con-

temporâneas do sujeito, que impediam o aparecimento autêntico do ser do

homem, da vida e da natureza. Desde a tomada do poder pelo Nacional-

-socialismo (1933), regressou Heidegger aos Pré-socráticos para numa luta

pelo ser, que se desvela e oculta, pensar o «outro começo» da filosofia, leu

nos poemas de Hoelderlin a verdade como desvelamento e interpretou

Nietzsche como o ponto alto do esquecimento do ser contra a leitura nazi

50 ID., Die Selbstbehaupnutg der deutscheri Universitaet. Das Rektorat 1933/34 2

(Frankfurt/M. 1990) 11.51 A. ROSENBERG, Gestaltung der Idee, Blui und Erde. II Band. Reden und

Aufsaetze von 1933-1935 (Muenchen 1938) 33.

52 A. BAEUMLER, Polilik und Erziehung. Reden und Aufsaetze (Berlin 1937) 128.

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de Baeumler. G. Picht, ouvinte das lições de Heidegger sobre Nietzsche,escreveu mais tarde que tais lições foram «o documento mais significativoda oposição espiritual ao Nacional-socialismo 51. Enquanto Baeumlerrevigorava na leitura biológica da vontade de poder a mística do sangue eda raça, para Heidegger a subjectividade apenas corpórea da vontadenietzschiana de poder era a brutalidade da «bestialitas» do «honro...brutum bestiale», da «besta loira» 54. Neste mesmo sentido, declarouHeidegger na entrevista à Revista «Der Spiegel», que, após o abandono docargo de Reitor, leu no semestre de verão de 1934 lições sobre Lógica,no semestre de inverno de 1934/35 iniciou as suas lições sobre Hoelderline em 1936 as lições sobre Nietzsche, concluindo: Todos os que puderamouvir, perceberam que isto era uma discussão com o Nacional-socialismo» 55.

De facto, só numa ontologia fenomenológica e hermenêutica se pode falarde verdade como desvelamento e ocultação, de aparecimento a partir de si,de «destruição» de deformações, distorções e desfigurações, de trans-formação da vontade de poder em combate pelo desvelamento autêntico doque historicamente aparece. Porém, com a vitória do Nacional-socialismoterminou ditatorialmente a discussão teórica entre «arte degenerada» e«Arte sadia» mas restou dessa pugna uma atmosfera de medo e até deaversão perante tudo o que fosse novo, estranho, transgressor da norma-lidade, isto é, moderno, convertendo-se a arte pela sua relação à saúde dopovo e pela caça ao homem «desnaturado» um problema não apenas devida sadia mas de sobrevivência. Em 1934, Hitler elevou a sobrevivênciaa salvação perante os congressistas reunidos em Nuremberga no dia dopartido: «O tartamudear da arte dos cubistas, futurisdas e dadaistas não sefundava na raça nem era suportável para o povo», pois tal arte degeneradaera «um caos sem salvação» 56. Neste contexto, o livro de W. WillrichA Operação de Limpeza do Templo da Arte (1937) completou a obra deNordau sobre «Degenerescência», fornecendo o modelo de eliminação deobras inferiores à exposição de «Arte Degenerada» aberta em Muniqueapós a inauguração em 1937 da «Grande Exposição da Arte Alemã». Destaideologia da limpeza foram vítimas os mestres mais significativos da Artede Munique do séc. XIX, agora ditatorialmente julgados pelo modeloaltamente equivocado de «clássico» e de «saudável» do Nacional-socialismo,que lançava os resistentes na vala dos «degenerados». Um dos problemasfulcrais da Estética Nazi era a eliminação da separação entre arte e povo,

53 G. PICHT, Nietzsche ( Stuttgart 1988) 22.54 M. HEIDEGGER, Nietzsche, Bd. II (Pfullingen 1961) 200.55 ID., Nur ein Gott kann uns retten 201-202.51 Cf. P.-K. SCHUSTER, «Muenchen - das Verhaengnis einer Kunststadt» in: ID.,

Hrsg ., o.c. 30-31.

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mediante um «socialismo artístico», que promovesse o sentimento saudáveldo povo 57, segundo o lema do Fuehrer: «Nós queremos garantir os fun-damentos eternos da nossa vida, do nosso povo e as forças e valores, quelhe foram dados» 58. A realização da paixão do III Reich por uma «novaarte verdadeiramente nacional» foi confiada ao artista-político A. Hitler,que estaria em condições de dar à Arte Alemã um «carácter unívoco eclaro» numa direcção, que rasgasse futuro. A decisão de Hitler erigiu emparadigma o cânon do «socialismo artístico» para a cidade de Munique, oIII Reich e o mundo inteiro. Poucos meses após a inauguração da GrandeExposição, o «socialismo artístico» mostrou o seu rosto: a Biblioteca doMuseu Alemão de Munique abriu ao público uma grande exposiçãoartístico-política subordinada ao tema «O Judeu Eterno», que pretendeuensinar aos visitantes que «o problema judaico é tão antigo como a históriados judeus e que em todas as terras e em todos os tempos se teve deorganizar a defesa contra o judaísmo e a praga judaica» 59. Um ano depois(1938), começou com a «noite de cristal do Reich» a perseguição siste-mática e sangrenta dos judeus, que terminou em deportações e na ani-quilação massiva 60.

Sob a presidência artístico-política de Hitler, à cidade de Bayreuthmarcada pela figura de Wagner associou-se, no ponto de vista artístico--político, a cidade de Munique, distinguida com o título de «capital domovimento» (nacional-socialista) e, desde o lançamento da primeira pedrada «Casa da Arte Alemã» ou «Templo da Arte» em 1933, conhecida por«cidade da Arte Alemã», onde em 1937 as duas Exposições - «GrandeExposição de Arte Alemã» e «Exposição de Arte Degenerada» - encenaramo combate duro entre degenerescência artística e as criações da arte sadiaempenhada na defesa soberana e na formação do povo alemão. Esteantagonismo dos opostos em luta é educativo e repõe na sua dureza ocombate da vida. A arte autêntica de cujo templo é expulsa toda adegenerescência, exige severidade na educação e na escola: «A minhapedagogia é dura. O fraco tem de ser corrido às marteladas» 61. Por isso,continua Hitler, «nos burgos da minha ordem» (escolas de formação deactivistas em Allgaeu, Pommern e Nordeifel 62, crescerá uma juventude,

57 ID., o. c. 38.58 ID., o.c. 46.59 ID., o. c. 51.(,) K.-H. MEISSNER, «Muenchner Akademien, Galerien und Museen im Aus-

steliungsjahr 1937» in: P.-K. SCHUSTER, o.c. 51.61 A. HITLER, «Ueber Erziehungsziele» in: R. KUEHNL, Der deutsche Faschismus

in Quelleu tuid Dokulnenten 6 (Koeln 1987) 268.62 F. BEDUERFTIG, Le.xikon Drittes Reich (Hamburg 1994) 285.

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que fará tremer o mundo e cujo perfil é traçado nestes termos: «Eu querouma juventude violenta, autoritária, sem medo, cruel. A juventude tem deser tudo, deve suportar dores e nada de fraco e de terno deve existir nela.De novo, a fera livre, dominadora tem de resplandecer nos seus olhos».Além de forte e bela, a juventude hitleriana tinha de praticar todos osexercícios físicos a fim de permanecer atlética, que é a prioridade maisimportante, pois assim se transpõem, pela força de exercícios, milhares deanos de domesticação humana: «Deste modo, tenho perante mim o materialpuro, nobre (Ia natureza e posso criar o novo» 63. Não é o saber puro eobjectivo primário da educação do povo pelo Estado mas a «criação decorpos nuclearmente sadios» e só depois «a formação das capacidadesespirituais» com realce para a dimensão prática do desenvolvimento docarácter, da força de vontade e da decisão, da alegria pela respon-sabilização, sendo relegada para o último lugar a formação científica. Hitlerque foi combatente da Primeira Grande Guerra condecorado com a cruz deferro de primeira classe 64, recorda «o espírito imortal» e a coragem noataque «das tropas alemãs no verão e no outono de 1914 e considera estefenómeno «o resultado daquela educação incansável, que arrancou a corposmuitas vezes débeis nos longos anos de paz as acções mais incríveis,criando aquela auto-confiança, que não desapareceu mesmo no cenárioterrível das grandes batalhas. Sob o ponto de vista da raça, esta educaçãotinha de atingir o seu coroamento no serviço militar, que se impunha comoepílogo da educação normal do alemão médio» 65

No mesmo ano de 1933 em que Hitler assumiu o poder, o nazismoapoderou-se do sistema educacional, destruindo os últimos restos dasestruturas democráticas 66, dentro de um plano de nazificação da escola,que incluía o monopólio da juventude hitleriana 67. Entre 1935 e 1939, anodo início da Segunda Guerra Mundial, a educação para o racismo e para aguerra dominou a política alemã, cuja ideologia racista promovia a eliteatravés da luta selectiva e da eliminação 68. Dois cientistas da Educaçãosobressaíram na pedagogia nazi: E. Kriek e A. Baeumler, distinguindo-seo primeiro, que já lobrigara com o seu grupo no Ser e Tempo de M. Hei-

fia A. HITLER, o.c.1.c.64 B. HAMANN, Einer von ganz Unten 135.65 A. HITLER, o.c. 299.66 W. KEIM, Erziehung unter der Nazi-Diktatur, Band 1: Anti-detnokratische

Potentiale, Machtantritt und Machtdurcltsetzung (Darmstadt 1995) 74.t;7 ID., o.c. 86-134.66 ID., Erziehung moer der Nazi-Diktatur, Band !1: Kriegsvorbereitung, Krieg und

Holokaust (Darmstadt 1997) 9 ss., 93 ss., 120 ss.

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degger uma «filosofia judaica» 69, pela proposta feita em 1922 de umaeducação funcional e fáctica em vez de uma educação pautada pelaconsciência moral e em 1932 por uma «Educação Política» baseada naideologia fascista 70, e o segundo por nas suas lições incitar os estudantesa praticar a «operação de limpeza do espírito não-alemão», queimando osseus livros e por na sua «Pedagogia Política» alicerçar o sentido do mundoe da vida nos caracteres raciais e históricos do povo alemão, norteado pelaimagem ideal de homem activo e heróico proveniente do cruzamento entregregos e germanos. A substituição de tradições humanistas por um acti-vismo heróico e pela preparação para a guerra, a orientação por uma «bar-

bárie nórdica» baseada num «instinto rácico» influíram profundamente na

compreensão da educação. A ideologia da educação de Baeumler na sua

Pedagogia Política rompeu com valores vindos do Cristianismo e daAufklaerung como o princípio da autonomia espiritual e moral do homem,

a ideia de fraternidade e de solidariedade e a esperança numa humanidade

melhor e mais feliz. Por outro lado, são anacrónicos os traços saídos da

pena de Baeumler, quando ele, sem qualquer preocupação pela mostração

e visibilidade dos fenómenos, procura insuflar numa sociedade já altamente

industrializada um heroísmo mítico e retrógrado de figuras da consciência

com seu respectivo estilo de vida 71.Na sua esmagadora maioria, os cientistas alemães da educação assu-

miram unia atitude passiva e não reagiram ao desafio lançado pelas pro-

postas nazis, embora uma série de conhecidos professores do ensino

superior, que, antes da tomada hitleriana do poder, simpatizava com o

movimento nacional-socialista, se identificasse com a linha nazi da ciên-

cia da educação, ocupando progressivamente cátedras de Ciência da Edu-

cação e de Psicologia Pedagógica em universidades como, v.g., Tuebingen,

Goettingen, Breslau, Hamburg, Halle, etc. Outros com renome na Peda-

gogia como E. Spranger, catedrático de Filosofia e Pedagogia na Unive-

rsidade de Berlim, e W. Flitner, catedrática de Ciências da Educação no

Instituto Pedagógico de Hamburgo, e editores da revista «A Educação»,

deliraram com a vitória nazi nas eleições de 1933 e saudaram a eliminação

de partidos, o combate contra o bolchevismo e o renascimento de um

Estado nacional e forte. E. Spranger acusou a República de Weimar de

materialismo, de marxismo e apontou nela muitos sintomas de dissolução

entre os quais estava o programa ocidental de uma reforma puramente

interior da sociedade e sua exigência de realizar o bem-estar e a felicidade

de uma massa popular nivelada segundo o estilo democrático e socialista

69 M. RIEDEL, o.c. 109-110.

70 W. KEIM, o.c. Bd. 1, 165-166.

71 ID., o.c. 169.

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em que progressivamente com o olvido da raça fenecia a verdadeira coesão

do povo. Poucos dias após o ataque desferido por Spranger contra a Psi-canálise criada pelo judeu S. Feud e acusada de destruir «a saúde espiritualdo povo», ardiam nas fogueiras nazis de Berlim as obras de Freud, de Adlere de outros representantes da Psicanálise. Contra a obsessão semprepresente de degenerescência, o núcleo positivo do movimento nacional--socialista é situado por Spranger na sua «vontade de se tornar povo», no«sentido da nobreza do sangue e da comunidade de sangue», na protecçãoconsciente da saúde do povo e no cuidado por uma eugenia de superior

qualidade 72.Vítimas de depuração nazi foram, cm primeiro lugar, os pedagogos

tidos por não-arianos e os que revelavam tendências pedagógicas e políticasde esquerda. Por motivos racistas foram demitidos professores judeus,como, v.g., a amiga e confidente de M. Heidegger, E. Blochmann, espe-cialista em Pedagogia Social, que, demitida em 1933, se exilou na Ingla-terra em 1934 e foi integrada na Universidade de Marburg em 1952 73 eK. Loewith, a quem, após a promulgação da lei da cidadania alemã, foiretirada a permissão de ensinar em 1935, o que o levou depois a solicitara H.-G. Gadamer que anulasse o título e a função de padrinho da sua filha,o que Gadamer energicamente recusou 74. O caso de K. Mannheim ésingular: da segunda edição do seu livro Ideologia e Utopia restava aindaum terço dos exemplares por ocasião da ascensão e vitória do III Reich,que se esqueceu de o proibir expressis verbis até que um ataque à bombadestruiu em 1943 todos os exemplares. É de espantar para os investigadoreseste olvido do poder no caso de K. Mannheim a quem se reconheceu umespecial sentido profético na denúncia do conluio de irracionalidade e demitomania na ideologia fascista, o que esteve na base do abandono em1933 da sua cátedra em Frankfurt/M. e da sua integração na «School ofEconomics and Political Science» de Londres 75. Em 1935-1936 concluíao velho Mestre da Fenomenologia, E. Husserl, o manuscrito principal deCrise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental 16,

72 ID., o.c. 169-171.11 M. HEIDEGGER-E. BLOCHMANN, Briefwechsel 1918-1969, hrsg. von J. W.

Stork 2 (Marbach am Neckar 1990) 79-102.74 J. GRONDIN, Hans-Georg Gadanter. Eine Biographie (Tuebingen 1999) 378.75 G. SCHULTE-BULMKE, «Vorwort zur dritten Auflage» in: K. MANNHEIM,

Ideologie und Utopie 5 (Frankfurt/M. 1969) IX.76 Cf. 1. KERN, «Die Lebenswelt ais Grundlagenproblem des objektiven Wissens-

chaften und ais universales Wahrheitsproblem und Seinsproblem» in: E. STROEKER,

Hrsg., Lebenswelt und Wissenschaft in der Philosophie Ednuutd Husserls (Frankfurt/

M. 1979) 68.

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redigido com a consciência da grande crise, que se abatera sobre aEuropa 77. Porém, no momento em que Husserl mais teria que dizer àjuventude, ao seu país e aos homens, que não abdicaram da vida doespírito, é-lhe vedada, desde 1934, toda a possibilidade de acção pessoalacadémica, toda a manifestação pública ou actividade de escrita 78. Naopção husserliana pelo espírito e pela reflexão sobre o que fenomeno-logicamente se mostra, estava a denúncia do pacto diabólico entre ciênciae corpo assinado pela fisiognomia, pela frenologia, pela craneologia ou porum Darwinismo grosseiro, que prometia a selecção de elites e a purezarácica. Em 1939, o delírio, o medo e a selecção, que descriminava os estu-dantes universitários, impressionaram P. Ricoeur, que em Munique apro-fundava o estudo da língua alemã, interrompido depois pela guerra:«Quanto aos alemães da minha idade, eles eram ou hitlerianos vibrantesou pessoas, que preferiam calar-se. Além disso, fiquei muito chocado como facto de os estudantes romenos e húngaros, que lá estavam, serem todoshitlerianos: só se permitia acesso à universidade a pessoas cuidadosamenteseleccionadas» 79.

A Ciência da Educação, de cariz democrático-socialista, da Univer-sidade de Frankfurt/M. e o número considerável de professores democratas,que, durante a República de Weimar, criticaram o fascismo, como K. Man-nheim e M. Horkheimer, fizeram dessa Universidade o lugar privilegiadopara a criação do «Instituto de Investigação Social» (1924), cuja direcçãofoi confiada em 1930 a M. Horkheimer s0, que teve como colaboradoresfiguras de alto coturno: E. Fromm, F. Pollock, L. Loewenthal, Th. W.Adorno e M. Marcuse, que, perseguidos em 1933, procuraram refúgio nosEstados Unidos 10. Num contexto interdisciplinar orientado para a praxissocial desenvolveu-se a chamada Pedagogia de Frankfurt, que, no começoda década de 30, empreendeu uma análise da crise social da época com

projectos e perspectivas de uma vida social autenticamente humana, criti-

cando os padrões conservadores e fascistas do tempo como fugas para

representações retrógadas, anti-iluministas e pré-modernas de tipo meta-

físico ou popular de Estado, a que o regime nazi respondeu em Março e Abril

de 1933 com a proibição de ensinar, coagindo os demitidos à emigração s1.

77 E. HUSSERL, «La Crise de I'Humanité européenne et Li Philosophic». Extrait de

Révue de Métaphysique et de Morale, Juillct-Octobre 1949, 229, 230, 246, 258.78 CL S. STRASSER, «Préface». in: E. HUSSERL. La Crise de l'Humanité

européenne 227-228.79 P. RICOEUR, La Critique et la Conviction. Entretien avec François A;ouvi et Marc

de Launav (Paris 1995) 23.

s0 R. WIGGERSHAUS, Die Franlfi rter Scluile. Geschichte, Theoretische Ent-

s'icklung, Politische Bedeunmg 2 (Muenchen 1989) 36. 49.si W. KEIM, o.c. Bd. I, 176-179.

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À educação alicerçada numa teoria crítica da sociedade e da história,que rememorava as vítimas do passado e do presente humanos, opunha-seradicalmente a ditadura nazi da educação fundada numa visão de mundo,que sob a recusa do pensamento democrático e cega para as vítimas con-fundidas com desnaturados, tentava dar esta terra ao povo de melhor raçae, neste sentido, aos homens superiores. Tal visão de mundo devia logica-mente obedecer a um princípio aristocrático, que assegurava às cabeçasbiologicamente superiores a condução e a máxima influência no povo.Neste caso, esta visão de mundo não se construía sobre o pensamento damaioria tuas sobre o «da personalidade» em sentido nazi, isto é, sobre ohomem de raça forjado na luta dura pela vida, onde apareceria como umser eleito. Para Hitler e correligionários, este processo de selecção acon-tecia nas esferas do pensamento, da criação artística, da administração doEstado, da organização militar e da economia, cuja crise tornava maispesado o processo vital da selecção. Em todas estas esferas tinha deprevalecer a ideia de «personalidade», dotada de autoridade relativamenteao inferior e de responsabilidade perante o superior, contra a República deWeimar, que se desviou deste princípio naturalíssimo 82.

O caminho da nova ascensão germânica já era assinalado em 1927pelos marcos basilares da raça, da «personalidade» e da luta. A consistênciae o futuro de povos nesta terra baseiam-se, em primeiro lugar, no valor dasua raça, depois na força da «personalidade» conquistadora e, finalmente,na convicção de que toda a vida do universo significa luta 83. Neste caso,a decadência e a degenerescência do tempo de Hitler provinham da negaçãodestas três grandes leis: em vez do valor do povo e da nação, milhões dealemães cultivavam a miragem do internacionalismo; em vez da força e dogénio da «personalidade», proclamava-se a maioria numérica, isto é, afraqueza e a estupidez, como estava patente na essência da democracia; emvez da necessidade do combate, pregava-se a teoria do pacifismo, dareconciliação dos povos e da paz eterna do mundo 84. Estes três crimes delesa-humadade, que podemos detectar na história como os sinais verda-deiros da degenerescência dos povos e dos Estados e cujo propagandistamais zeloso é o judeu internacional,são as notas características do Mar-xismo, que domina, na análise de Hitler, cada vez mais o povo alemão, nãopropriamente enquanto organização delimitada e definida, mas comoepidemia espiritual, que grassa em quase toda a Alemanha, embora muitos

82 A. HITLER, «Ueber Rasse, Autoritaet, Lebenskampf, Wirtschaft und Demokratie»in: R. KUENL, o.c. 114-115.

83 ID., o.c. 119.84 ID., o.c.1.c.

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não tenham disso consciência 85. O Marxismo, na leitura de Hitler, é atentativa do judeu para eliminar em todas as esferas da vida humana osignificado transcendente da «personalidade» e o substituir pelo número damassa. A isto corresponde, do ponto de vista político, a forma de regimeparlamentar, cuja acção maléfica seria visível em toda a sociedade desdeas células mínimas até à acção superior do Estado e, do ponto de vistaeconómico, o sistema de um movimento sindical, que não serve os interes-ses reais do operário mas exclusivamente as intenções destruidoras dojudeu cosmopolita e internacional 86. Por seu lado, a Economia, ao furtar--se aos efeitos do princípio da «personalidade» e ao entregar-se apenas àsinfluências da massa humana, perde necessariamente a capacidade de acçãoem prol de todos e para todos valiosa e cai num retrocesso inevitável 87.O Destino parece querer indicar o caminho, porque, ao entregar a Rússiaao bolchevismo, roubou ao povo russo aquela inteligência, que até entãolhe cimentara e garantira a existência como Estado. Porém, o reino dos gigan-tes do Oriente está prestes a cair e, no caso da Rússia, o fine do domíniodos judeus arrastará consigo o fim da Rússia como Estado. Nesta con-juntura, «nós somos escolhidos pelo Destino para sermos testemunhas de umacatástrofe, que será a confirmação mais violenta da verdade da teoria ra-cista de povo» na sua dimensão de luta pela vida e de selecção natural» 88.

O problema da educação não está, para o nazismo, na solução vinda deuma maioria nem da criação de uma coligação especial de partidos ou

de um novo regime nem na preparação de melhores eleições mas exclusi-

vamente na formação segundo os princípios fundamentais do valor da raça,

da aristocracia de «personalidades», da luta pela vida e na consequente

«eliminação da desagregação do corpo do nosso povo oriunda da igno-

rância destes princípios e dos efeitos do Marxismo» 89. Há uma ética da raça,

da personalidade e da luta, que promove no educando o amor providente

do Povo e da Pátria consorciado com a força militar. Nascido da articulação

interna entre «nacionalismo» e «socialismo», o Nacional-socialismo de-

fende que o nacionalismo supremo se identifica com a máxima providência

e o socialismo mais elevado é o amor ao Povo e à Pátria, resultando da

união dos dois a realização plena e responsável do dever único de ser Povo.

A máxima providência e o amor ao Povo e à Pátria, unificados num dever

único, não prescindem da força, pois era convencimento do nazismo de que

«o espírito, que ele prega», será um dia também o espírito daquela Ins-

85 ID., o.c.1.c.86 ID., o.c. 115.87 ID., o.c.1.c.88 ID., o. c. 117.89 ID., o. e. 119.

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tituição, que não só é o último rasto do exército antigo mas também escolapara o futuro 90. A organização das forças armadas de um país, seja elegrande ou pequeno, está sempre internamente relacionada com uma dou-trina do valor da «personalidade», com uma visão do combate e uma éticado amor da Pátria. Doravante, involuntária e inconscientemente, Movi-mento Nacional-socialista e Exército aproximar-se-ão na mesma proporçãoem que o Estado oficial se tornar popularmente mais corrupto, «persona-listicamente» mais desvalorizado e pacifistamente mais cobarde 91.

Ao Nacional-socialismo subjaz o binómio dualista, que o obriga asatanizar o diferente até à «solução final»; de um lado, genialidade do«corpo imortal» da raça ariana, pleno de possibilidades criadoras e,do outro, degenerescência do diferente, sem possibilidades criadoras,não-povo, parasita irrecuperável a caminho do extermínio, simbolizadopelo judeu. Para o cap. 11 de O Meu Combate intitulado «Povo e Raça»conflui o que o séc. XIX já havia teorizado sobre povo, raça, degene-rescência, darwinismo social, «história das raças» numa interpretaçãodualista e gnóstica da «nova divisão da Terra pelas diferentes espécies ouraças de homens» proposta em 1684 por F. Bernier 97. A «raça genial», nostermos de O Meu Combate» 93, é raça pura e plena de valor mas passívelde queda, pois, se acontecer o cruzamento do sangue ariano com raçasinferiores, colher-se-á como resultado «o fim do sustentáculo da cultura» 94.

Para esta catarismo racista, «o que nós hoje observamos na cultura humanae nos êxitos da arte, da ciência e da técnica, é praticamente resultadoexclusivo da criação ariana. Este facto permite a conclusão não infundadade que só ele (o ariano) foi o fundador do homem superior em geral e, porisso, representa o tipo originário daquilo que nós entendemos pela palavra«homem». Ele é o Prometeu da humanidade de cuja fonte luminosa saltoua centelha divina do génio para todos os tempos» 95. Esta genialidade ésempre inata, instintiva e jamais simples produto de educação ou deaprendizagem, quer se trate do indivíduo ou da raça: «Povos criadores nasua actividade são desde sempre e na sua raíz criadores por heredi-tariedade» 96. A cultura nazi procedente do génio é, por outro lado, umdomínio organizado segundo o princípio da hierarquia nobre e perso-nalizada, pois o ariano subordina-se à sua comunidade como indivíduo e

9> ID., o.c. 120.

91 ID., o.c.1.c.112 Cf. M. B. PEREIRA, Modernidade, Racisnio e Ética Pós-convencional 21-29.13 A. HITLER, Mein Kampf 321.

4̀ ID., o.c. 313.

'S ID., o.c. 317.'t' ID., o.c. 321.

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escraviza as raças submetidas 97, estando neste domínio interior e exterioro sinete do seu génio, a que se contrapõe o antigénio do judeu ou parasita,que nunca é criador mas apenas imitador servil e exterior 98 e por esta viaentra no racismo hitleriano o binómio poesis-mimesis ou criação-imitaçãodo séc. XVIII.

Na sua crítica aniquiladora do judeu, Hitler equaciona a inteligênciajudaica, as faculdades espirituais e o especificamente «intelectual» com oelemento humano não-criador, anti-genial, destruidor e segregador. Emsentido pejorativo e insultuoso, também a direita francesa tinha em 1898chamado «lês intellectuels» aos que exigiram com E. Zola e G. Clemenceaua revisão do processo de alta traição em que fora injustamente condenadoo capitão judeu Dreyfus. O termo «intelectual» foi depois usado pela im-prensa nacionalista e anti-semita em França com o significado de «seminstinto», «anti-nacional», «decadente» e, sobretudo, «judeu». A esta acusa-ção responderam os visados que o verdadeiro intelectual se comprometiapoliticamente com a justiça, a consciência moral e o pensamento democrá-tico, o que gerou nos franceses a admiração por tudo o que é racional 99

Na Alemanha, porém, o sentido negativo de intelectual apareceu no Mar-xismo, que julgou o «intelectual» estranho à classe trabalhadora e aliadoda burguesia e, sobretudo, na direita conservadora e no Nacional-socia-lismo, que identificaram o «intelectual» com o «sem instinto», o «desa-gregador», o «sem-carácter», o «judeu», o «sem-raíz», o «sem-sangue», o«doente». Neste contexto, ao «intelectual» a propaganda nacional-socialistaopôs o instinto sadio do germânico, o seu carácter criativo e genial, o seu«idealismo» no sentido de confiança cega no «Fuehrer» e de capacidadede imolação pelo povo, o seu sentimento são. Deste modo, ergueu-se airracionalidade instintiva e autoritária contra o espírito e o entendimentoracional e analítico do pensamento alemão fiel à racionalidade das coisas,

que se mostram, quando as expressões «criador», «genial» e «génio»

exprimiram apenas a tentativa dogmática para subtrair a essência dohomem e das suas acções a toda a justificação racional e manter a «raça»

como algo intocável, que se não deveria interrogar mais mas apenas

apreender através do «instinto anti-intelectual» e não da «intuição inte-

lectual» promovida a fonte de verdade filosófica no séc. XVIII e no

Idealismo Alemão. Desprovido de instinto, o intelectual produziria «arte

degenerada» no estilo destruidor do judeu, quando na genial raça ariana a

97 ID., o.c. 323.98 ID., o.c. 332.99 J. SCHMIDT, Die Geschichte des Genie-Gedankeizs iti der deutscheti Literatur,

Philosophie und Politik 1750-1945. Bd. 2. Von der Romantik bis zuni Ende des Dritten

Reichs 2 (Darmstadt 1988) 229-230.

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capacidade de criar cultura e de construir artisticamente está para além dosisolados «dotes intelectuais» 10°, pois o seu «intelecto genial» criou com«o punho selvagem» os «monumentos da cultura humana» 101. Privada doinstinto, que religa ao colectivo mítico e ao irracional, na expressão deG. Benn, a liberdade de espírito do intelectual é liberdade de desagregaçãoe «ideologia anti-heróica» 102 e, neste sentido, é um pecado contra o sentidoda omnipresente cruz suástica.

II

No discurso de abertura da «Grande Exposição de Arte Alemã» em 1937,o Fuehrer criticou a linguagem vazia e oca de todos os partidos, que, sob aorquestração do judaísmo internacional, ameaçava destruir a sensibilidadecultural e artística do povo alemão. O Nacional-socialismo aparece como aleitura única da realidade alemã, a sua verdadeira «Aufklaerung», que traduze esclarece o modo de ser e de se comportar do povo alemão, distinta por-tanto da Modernidade, cujas «modas que passam» são incapazes de exprimira «imortalidade» e a «eternidade» do ser ariano e da sua autêntica arte.

À distância de quase duas décadas, dois acontecimentos estão viva-mente presentes no discurso, por vezes violento e duro, pronunciado porHitler: o primeiro, de política interna, é a revolução de Novembro de 1918com a proclamação da República pluripartidária, em oposição à visão desonho de um partido único, que exprimisse o ser soberano da raça alemã,simbolizado na cruz suástica; o segundo é de política externa e abriu nasensibilidade alemã uma chaga incicatrizável: o tratado de Versalhes, de28.06.1919, em que foi assinada a paz entre a Alemanha e os seus inimigosvitoriosos, com a perda de territórios, que formavam o «chão» do «sangue»da raça, o abandono de todas as colónias, a redução do exército a cem milhomens e da marinha a quinze mil e o pagamento total da dívida de guerra(132 mil milhões de marcos-ouro) 103. Os partidos da direita, do centro eda esquerda revelaram-se a Hitler impotentes para analisar com verdade oestado da nação alemã, cuja crise mais do que económica e política tinhauma raíz cultural no estado de desagregação e ruína da Alemanha, que jáera antigo e a que a derrota apenas deu relevo e maior visibilidade. Nestecontexto de degenerescência cultural, propôs-se Hitler responder à perguntase havia ainda uma Arte Alemã 104. Do ponto de vista da política interna,

100 A. HITLER, Mein Kampf 326.1°1 ID., o.c. 327.102 G. BENN, Gesammelte Werke in vier Baenden Hrsg. voo Dieter Wellersshoff,

Erstes Band: Essaps, Reden, Vortraege 3 (Wiesbaden 1965) 440, 448 ss.

103 J. KERSHAW, «Trauma der Deutschen» in: Der Spiegel, Nr. 19/7.5.2001, p. 68.loa A. HITLER, «Hitlers Rede zur Eroeffnung der `Grossen Deutschen Kunstaus-

stellung» 1937 in: P.-K. SCHUSTER, Hrsg., o.c. 242.

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usavam os partidos a linguagem retórica dos lugares comuns e das frasessonantes mas sempre alheia e distante da realidade carente, que de modoalgum se transformava com o gongorismo das teorias socialistas ou comu-nistas e das posições liberais. Contudo, era muito mais difícil ocultar como fraseado retórico a miséria económica proveniente do desempregode milhões do que a fraqueza do próprio discurso político altissonante.A dureza dos factos, porém, ajudou a formar o povo alemão, abrindo-lheos olhos para a profundidade da sua crise e para a debilidade das análisesdos discursos partidários. A República de Weimar não encarou a dureza dosfactos, pois nela o fraseado oco pululou, invadindo modos democráticos emarxistas de falar, que, após a vergonha e a injustiça de Versalhes, aludiamconstantemente à solidariedade internacional, perturbando a consciência dopovo alemão e desviando-a da visão real da sua decadência e do seu estadode catástrofe sem exemplo. Antecipando o sentido de «claro», que maisadiante Hitler atribui à natureza do povo alemão e de que, neste caso, aRepública de Weimar estaria privada, o Nacional-socialismo é a «Aufklae-rung», que revela a dureza dos factos sentida pelo povo e permite umaanálise precisa dos mesmos: «Homens em número crescente reconheceramque a decomposição da visão de mundo e da política levada a efeito pelaDemocracia Marxista e pela Economia do Centro conduziu necessaria-mente a uma dissolução crescente do sentimento uno do povo e darespectiva comunidade e, consequentemente, à paralisia da força interiore exterior da vida do nosso povo» 105. Por esta fraqueza, abriu-se o povoalemão ao internacionalismo, cuja ausência de justiça ele já tinha sentidoao nível da política externa, quando lhe foi constantemente recusada aigualdade de direitos. Por isso, só o esquecimento dos homens explica ofacto de hoje nos círculos políticos ou dos diplomatas estrangeiros se falarda boa vontade de oferecer ou, pelo menos, de garantir a uma AlemanhaDemocrática, isto é, regida de modo marxista e parlamentar, vantagensneste mundo, sabe Deus quais. Porém, esta forma de regime democrático

e parlamentar, imitada e copiada do estrangeiro, não impediu de modoalgum que a Alemanha fosse alvo de opressão, extorsão e saque 100, numaalusão ao Tratado de Versalhes (1919) após a proclamação da República

Democrática e pluripartidária de Weimar (1918). Em síntese, enquanto osinimigos internos e externos tentavam encobrir com a névoa de frasesinternacionalmente usadas a situação crítica alemã, a dureza dos factos, na

óptica da «Aufklaerung» nacional-socialista, ajudou a educar o povo

alemão e a abrir-lhe os olhos para a extensão do desmoronamento e ruína,

que ele sofreu sob os auspícios dos ideólogos democratas e federalistas, de

105 ID., o.c. 243.

106 ID., o.c.l.c.

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orientação ocidental. Porém, muito mais eficaz e contínua do que aocultação da impotência alemã por este fraseado nacional e internacional,foi a confusão semeada por palavras e frases sonantes quanto à essênciada cultura alemã. O judaísmo apoderou-se dos meios, que formam a opi-nião pública e a dirigem e, através da sua posição na imprensa e com oauxílio da crítica da arte «semeou a confusão no que tange a essência, astarefas e o fim da arte e destruiu a sensibilidade sadia na esfera artística» 107.Em vez do entendimento e do instinto normal do homem, o judaísmo domi-nante manteve esta «verborreia» em fluxo permanente e constante repe-tição, gerando insegurança e até certo temor naqueles que se ocupam daarte e já se não atrevem a criticar tal fraseado. Deste modo, a tentativapermanente de confundir o entendimento e o instinto sadios do homemestendeu-se desde afirmações de carácter geral, como, v.g., a de que a arteé internacional, até a análises da criação artística através de expressões, queno fundo nada dizem. Ao propalar-se que a arte é apenas «uma vivênciacomunitária internacional», matando toda a compreensão da sua vinculaçãoao povo, submete-se a arte cada vez mais ao tempo, isto é, deixa de haverqualquer arte dos povos, ou melhor, das raças, para haver apenas uma artedos tempos. Segundo esta teoria, os Gregos não criaram a arte helénica masfoi um tempo determinado que permitiu que ela nascesse. O mesmo se diznaturalmente da arte romana, que só por acaso coincidiu com a ascensãoimperial de Roma. Do mesmo modo, as épocas artísticas posteriores dahumanidade não foram criações, v.g., de árabes, alemães, italianos, fran-ceses, etc. mas apenas fenómenos condicionados pelo tempo. É por issoque hoje não há arte alemã, francesa, japonesa ou chinesa, etc. massimplesmente uma «arte moderna». Deste modo, a arte enquanto tal nãosó é totalmente arrancada às suas raízes populares mas é simplesmente aexpressão de um determinado período temporal, a que hoje se chama «mo-derno», amanhã naturalmente «não-moderno», porque entretanto passarade moda 108. Por esta teoria, a arte e a produção artística são definiti-vamente identificadas com os trabalhos dos modernos ateliers de moda,segundo o anúncio geral: «em cada ano, algo de diferente, isto é, uma vez«impressionismo», depois «futurismo», «cubismo», talvez «dadaísmo»,etc.. Uma nova fraseologia artística engrossa a da política, pois para osprodutos mais loucos se encontrarão ou já se encontraram milhares dedesignações. Se não fosse triste, poderia ser divertido verificar com quantaspalavras e frases sonantes «os chamados aficcionados da arte nos últimosanos apregoaram e explicaram os seus lastimáveis produtos» 109. Usando

107 ID., o.c.l.c.

1DK ID., o.c. 244.

101 ID., o.c.1.c.

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este palavreado, os hábeis comerciantes judeus de arte ofereceram e classi-ficaram, de um dia para o outro, os maiores borrões em tela como criaçõesde uma arte nova e moderna enquanto obras de maior valor eram rapida-mente despachadas e os seus criadores rejeitados como não-modernos.Assim como hoje os factos se não avaliam segundo a sua beleza masapenas segundo a moda, também os antigos mestres são postos de lado,porque já não é moderno expô-los nem comprá-los 110. Contra tal con-cepção revolta-se naturalmente «o grande artista real», pois os géniosverdadeiramente grandes, que do passado nos chegaram, foram no seutempo simplesmente eleitos como singulares entre inúmeros chamados. Porpoucos que fossem, eles teriam protestado, em virtude da consciência doseu próprio valor, contra a sua redução a uma moda, que passa. Daí, a tesehitleriana de crítica da Modernidade: a verdadeira arte é e permanecesempre nas suas realizações uma arte eterna, isto é, jamais se submete àlei sazonal, que regula os trabalhos de um atelier da moda. A verdadeiraarte exige ser avaliada «como uma revelação imortal, proveniente daessência mais profunda de um povo» 111. Por outro lado, perante estesgigantes que se devem considerar «os reais criadores e portadores de umacultura humana superior», os espíritos mais pequenos, libertos «daeternidade pressionante desses Titãs», sentem-se aliviados e contentam-secom o significado momentâneo, que o presente, à maneira de moda,confere às suas obras, pois quem nos seus trabalhos não é bafejado pelaEternidade, não fala desta de bom grado e até deseja obscurecer, quantopossível, os gigantes do mundo humano, que desde o passado atingem ofuturo. As obras desses espíritos párvulos não ultrapassam o estatuto de«chama pequena e débil», dada na curta «vivência temporal»: o que ontemnão existia, hoje é moderno e, além de amanhã, é esquecido 112.

Estes pequenos produtores de arte deliciaram-se com a descobertajudaica da vinculação da arte ao tempo, pois, por falta de chamamento, nãopodiam esperar ser «fenómenos da eternidade» e, por isso, se refugiavamnas vivências do presente. Estas «libelinhas» mínimas ou anões da arte aquem a Revolução de 1918 abriu as portas das Academias e das Galerias,exigiram a maior tolerância aquando da crítica das suas obras e mostrarama maior intolerância na avaliação dos trabalhos de outros, do passado oudo presente 113. Como na política, houve também na arte uma conspiraçãodo incapaz e do inferior contra o melhor do passado, do presente e dofuturo. Como na política, também na arte super-abundou um léxico de

uo ID., o.c1.c.

ID., o.c.1.c.

112 ID., o.c.l.c.113 ID., o. c. 245.

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palavras e de frases sonantes em contraste com a pequenez do valor dosultrajadores e charlatães da arte, que o usavam. A cobardia silenciosa daburguesia possidente e a insegurança dos novos ricos incultos favoreciamesses «pequenos fabricantes da arte do presente» e os respectivos vende-dores, que justificavam o alto preço com a difícil compreensão da quali-dade da obra, o que foi muito bem entendido pelos «nossos judeus» eceleremente assimilado pelos teóricos modernos de arte 114. Até à tomadado poder pelo Nacional-socialismo, esta «Arte Moderna» mudava de anopara ano mas agora a Alemanha Nacional-socialista quer de novo uma«Arte Alemã», que deve ser e será eterna «como todos os valores criativosde um povo».

Quando se lançou a primeira pedra desta «Casa da Arte Alemã»,iniciou-se a «construção de um templo» não para a «Arte Moderna» maspara «uma verdadeira e eterna Arte Alemã» ou, em termos mais precisos,iniciou-se a construção de «uma Casa para a Arte do Povo Alemão» e nãopara qualquer arte internacional dos anos de 1937, 40, 50 ou 60» 115.

A razão está no facto de nenhuma arte se fundar no tempo mas unicamentenos povos e, por isso, o artista não ergue um monumento a um tempo masao seu povo. O tempo é algo mutável, os anos chegam e partem de tal modoque todo aquele, que quiser viver apenas num tempo determinado, tem dedesaparecer com ele. Na inconsistência do que passa, submergir-se-ia nãosó o que nasceu antes de nós mas também o que hoje aparece ou o quesomente no futuro receberá configuração. Nesta óptica, a degenerescênciaé a queda do povo no tempo. Conhecedor das teorias de Gobineau e deChamberlain, afirma Hitler sem qualquer hesitação: «Nós, nacional-socia-listas, conhecemos apenas uma caducidade: é a caducidade do própriopovo, cujas causas nos são conhecidas» 116. Porém, na medida em que umpovo subsiste, ele é «o pólo permanente no fluxo dos fenómenos», é o serque é e o que permanece. Também a arte enquanto expressão essencialdeste ser do povo, é um monumento eterno, que também é e permanece.Não há qualquer paradigma de ontem e de hoje, de moderno e de não--moderno mas apenas daquilo que «vale» e é «eterno» ou do «efémero» e,neste caso, degenerado. Porém, esta eternidade está na vida dos povosenquanto estes subsistirem 117. Por isso, o paradigma da «Arte Alemã» ésituado por Hitler no povo alemão, na sua essência e vida, no seusentimento e sensibilidade, desenvolvidos ao ritmo da sua própria evoluçãoou degenerados na sua crise: «Nas dimensões do ser do povo está o modelo

114 ID., o.c.1.c.115 ID., o.c. 245-246.116 ID., o.c. 246.

117 ID., o.c.1.c.

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A crítica do nazismo na hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer 257

do valor ou do sem-valor da nossa vida cultural e, por esta, da nossa criação

artística» 118. Para Hitler, o povo alemão é o resultado de um número de

raças mais ou menos distintas, que, no decurso dos séculos, em virtude do

influxo configurador de determinado núcleo rácico superior, geraram«aquela mistura, que nós hoje registamos no nosso povo». Esta força, queoutrora formou o povo e ainda hoje o configura, está no mesmo homem

ariano em que «nós conhecemos não só o portador da nossa própria cultura

mas também das culturas antigas, que nos precederam». É este modo de

composição da nacionalidade alemã que condiciona não só a polimorfia do

seu desenvolvimento cultural próprio mas também o parentesco natural daí

resultante com os povos e culturas dos núcleos rácicos da mesma espécie

dentro da família europeia de povos. Falando em nome dos alemães, que

são o resultado final deste desenvolvimento histórico, Hitler enlaça o ser

do povo alemão com a arte nestes termos: «Nós desejamos para nós uma

Arte», que corresponda cada vez mais à unificação desta esfera rácica e,

deste modo, ostente uma linha de estreita coesão 118. Neste contexto, Hitler

pergunta que significa realmente «ser alemão». Entre todas as definições,

que foram apresentadas no decorrer dos séculos, parece a Hitler ser a mais

digna aquela que não visa, em primeiro lugar, dar unia explicação mas sobre-

tudo apresentar «uma lei» segundo a qual o alemão se comporta na sua

vida. Para o Fuehrer, «a lei mais bela», que poderia traduzir a tarefa da vida

do povo alemão, fora já formulada: «Ser alemão significa ser claro», no sen-

tido de ser lógico e verdadeiro, e realizar por sua natureza rácica a autêntica

«Aufklaerung», ao contrário das modas ocas e obscuras dos modernos.

Desta clareza lógica e verdadeira retira Hitler «um modelo válido uni-

versal» para a «essência da nossa arte» e em correspondência com «a lei

da vida do nosso povo» 119. Neste caso, o desejo íntimo e profundo de

«uma Arte Alemã verdadeira», caracterizada pelos traços da lei da clareza,

esteve sempre vivo no povo alemão, segundo Hitler, como provam os seus

grandes pintores, escultores, arquitectos, pensadores, poetas e músicos. Por

isso, foi uma catástrofe o incêndio do antigo Palácio de Cristal de Munique

a 6.06.1931 em que as chamas destruíram «um tesouro imortal de verda-

deira Arte Alemã». «Embora românticos, os autores destas obras foram

apenas «os representantes mais belos daquela busca alemã do modo de ser

real e verdadeiro do nosso povo e da expressão autêntica e válida da lei

interior da sua vida» 120. Não só os materiais escolhidos para a expressão

artística mas também o modo claro e simples da exteriorização dos senti-

mentos caracterizaram a «essência alemã». Não é por acaso que precisa-

118 ID., o.c.1.c.119 ID., o.c.l.c.

120 ID., o.c.1.c.

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mente tais Mestres estiveram muito perto «da parte mais alemã e simul-taneamente mais natural do nosso povo» 121. Estes Mestres foram e sãoimortais mesmo hoje, quando muitas das suas obras já não existem nooriginal mas apenas em cópias ou reproduções. Quão longe esteve o tra-balho e a influência destes homens da «deplorável empresa comercial demuitos dos nossos assim chamados modernos criadores de arte, isto é, dosseus borrões e montes de nódoas sem naturalidade», incentivados, prote-gidos ou elogiados pela «actividade sem carácter nem consciência deliteratos» mas completamente estranhos e até horrorosos para o instintosadio do povo alemão! E trágico que uni incêndio devorasse obras de taisMestres, restando-nos infelizmente perante o olhar e por tempo demasiadoas produções desses modernos «fabricantes de arte», que mais não são doque «documentos da mais profunda decadência a que desceu o nosso povoe a nossa cultura» 122. Sendo saudável o conhecimento da própria degene-rescência, foi organizada uma exposição de «Arte Degenerada», cuja visitaHitler recomendou, pois do contraste ressaltaria a luz da arte verdadeira esadia.

Embora a Economia e a Política fossem pilares da concepção nacional--socialista, a cultura teve a primazia, dada a necessidade da depuração eda limpeza de ideias na luta contra a degenerescência do povo. Nos longosanos de planificação, de orientação mental e de configuração de um novoReich, ocupou-se Hitler frequentemente das tarefas exigidas pelo renas-cimento da nação na esfera da sua purificação cultural e declarou-seconvencido de que no futuro caberia à cultura um papel superior ao daPolítica e da Economia 123, contrariando «a opinião dos... pequenos espí-ritos do tempo de Novembro», que recusaram qualquer grande projectocultural e arquitectónico com o argumento de que a situação de um povoarruinado política e economicamente se não deveria agravar com taisplanos culturais. Sobre tais propósitos saídos da Revolução de 1918 emitiuHitler o seguinte parecer destruidor: «Tudo foi inútil. Todas as vítimas eprivações, a fome e a sede de meses sem fim, as horas em que nós, aco-metidos pelo medo da morte, cumprimos contudo o nosso dever, a mortede dois milhões... foram inúteis». Tais heróis da guerra, apesar de ven-cidos, não foram perpetuados pela política cultural de Weimar. Nos anosde luta pelo poder, Hitler verberou sempre os cabecilhas da «revolução deNovembro» a quem chamou «criminosos de Novembro» e, durante aSegunda Guerra Mundial, repetiu frequentemente que jamais haveria um

121 ID., o.c. 247.122 ID., o.c.1.c.123 ID., o.c.1.c.

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Novembro de 1918 124. Na sequência da afirmação de 1934 de que a Arte

Alemã é a defesa mais orgulhosa do povo alemão 1225, Hitler corrobora no

discurso de 1937 a ideia de que não há documento mais glorioso para o

direito soberano de um povo à vida do que as suas actividades culturais

imortais, que a República de Weimar e os partidos não compreenderam mas

cuja memória o Fuehrer imporá sem discussões. Na realidade, nem a todos

foi dada a compreensão de tão grandes tarefas e, por isso, é inútil falar com

espíritos apoucados sobre problemas, que eles simplesmente não entendem,

porque tais assuntos transcendem o seu horizonte 126. Nem todos, porém,

são tardos e provincianos na compreensão destes problemas culturais e, por

isso, mais falso seria deixar-se enganar por aqueles, que, sendo inimigos

fidagais de um renascimento nacional, conhecem muito bem o significado

da elevação cultural mas procuram destruí-la e impedi-Ia por todos os

meios ao seu dispor.Terminada a Primeira Grande Guerra, gizou Hitler muitos e variados

planos, que servissem de panaceia contra o trauma da derrota, entre os

quais avulta a construção de um novo e grande palácio de exposições de

Arte em Munique, onde o alemão tomasse consciência da sua grandeza e

nobreza arianas. Após a já referida deflagração do incêndio que destruiu o

antigo palácio de exposições da capital bávara (1931), juntou-se à dor pela

perda irreparável de altos valores culturais alemães o perigo de «os repre-

sentantes da pior corrupção artística da Alemanha» se anteciparam com um

projecto de construção, que, muitos anos antes, já Hitler reservara para o

novo Reich, como uma das tarefas mais necessárias 1227. Ao aludir a um

projecto rival de construção dos «homens de Novembro», Hitler acusa-o

de nada ter a ver com a Arte Alemã mas com a conjuntura «bolchevista» do

tempo ou destruição caótica de toda a vida cultural alemã e de apresentar

linhas, que poderiam ser de uma fábrica, de uma praça mediana, de uma

estação de caminho de ferro ou de uma piscina. Por contraste, a «Casa da

Arte Alemã» era já parte integrante do combate epopeico do povo alemão

renascido: «A jovem Alemanha constrói para a sua arte a sua própria

casa» 1223. O pensamento novo a que obedeceu o «Templo da Arte», é um

projecto verdadeiramente imponente, único e incomparável, sem modelo

em qualquer construção existente, podendo fixar-se na memória de cada um

e impor-se como verdadeiro monumento na capital bávara e no campo da

124 R. ZITELMANN, Hitler. Selbstverstaendnis eines Revolutionaers 51.

125 Cf. nota 12.126 A. HITLER, Hitlers Rede 247.

127 ID., o.c. 247.128 M.A. von LUETICHEN, « Deutsche Kunst und `Entartete Kunst ': Die Muenchner

Ausstellung 1937» in: P.-K. SCHUSTER, Hrsg., o.c. 84.

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arte alemã. Na linguagem do Fuehrer, esta obra-prima, de material nobree execução exacta e perfeita, é tão grande na sua beleza como útil na suaestrutura e organização, sem submissões servis a exigências técnicas: «É umTemplo de Arte e não uma fábrica nem uma obra de aquecimento nem umaestação de caminho de ferro ou uma central eléctrica» 129. Assim, nasceuuma Casa suficientemente digna para dar às superiores realizações da Artea oportunidade de se mostrarem ao povo alemão. A construção desta Casarepresenta um ponto de viragem, que põe termo ao trabalho anterior, infe-rior e caótico e se integra «nos trabalhos imortais da nossa vida histórico-artística alemã» 130, não só pela obra-prima, que é, mas também pelas expo-sições, que vai oferecer contra «a decadência vivida da arte da escultura eda pintura». Esta decadência está no olvido e no abandono das raízesrácicas da Arte Alemã, defendidas pela política nacional-socialista numalonga e difícil luta contra os opositores e em prol de um florescimento novoe vigoroso da arte. Os coleccionadores bolchevistas de arte e seus satélitesliterários não desceram aos fundamentos reais da arte nem de modo algumlhe asseguraram a continuidade na Alemanha, ao contrário do Nacional--socialismo, que formou um Estado Novo, dotou a arte de meios maispoderosos e atribuiu-lhe novas e grandes tarefas 131. Na leitura de Hitler,a «Casa da Arte Alemã» exprimia na pedra os fundamentos da arte e erauma crítica permanente da arte moderna desnaturada: «Se eu nada maisfizesse na minha vida do que apenas ter contribuído para construir aqui esteedifício, eu teria já feito mais pela Arte Alemã do que todos os escribasridículos dos nossos primeiros jornais de judeus ou os pequenos pinta--monos, que, prevendo o seu próximo desaparecimento, curaram somente...da modernidade das suas construções» 132.

Na sequência da construção da «Casa da Arte Alemã», «o novo Reich»promete pela boca do Fuehrer um florescimento inaudito da Arte Alemã,pois jamais foram cometidas à Arte tarefas mais grandiosas como no«terceiro Reich» nacional-socialista. Dando voz a este novo «Reich», Hitlerafirma a sua eternidade como «organismo vivo do povo», acredita e traba-lha «em e por uma Arte Alemã eterna», que jamais se medirá pelos padrõesantigos ou modernos mas terá, enquanto alemã, de assegurar na história asua imortalidade 133. Prosseguindo no seu pensamento recorrente, o Fuehrerrelembra que a arte não é uma moda mas é avessa à mutabilidade arbitráriae, à semelhança da estabilidade da «essência e do sangue do nosso povo»,

129 A. HITLER, o.c. 248.130 ID., o.c. 249.131 ID., o.c.1.c.131 ID., o.c.1.c.133 ID., o.c.1.c.

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tem de se purgar do carácter fugaz e transitório a fim de, nas suas progres-sivas criações, ser expressão digna do «percurso vital do nosso povo».Nada têm a ver com o povo alemão as modas do Cubismo, do Dadaísmo,do Impressionismo, etc., pois tais conceitos não são antigos nem modernosmas variações de um tartamudear artificial de homens, «a quem Deusrecusou a graça de um talento verdadeiramente artístico e, em seu lugar,lhes deu a esmola do palavreado ou do engano». Perante este estado decoisas, Hitler esboça o seu programa de acção: «Eu quero... confessar nestahora que é minha decisão inabalável acabar com o palavreado na vida

artística alemã com o mesmo rigor que no campo da confusão política» 134

ou, por outras palavras, impor um partido único e uma arte única. Dora-vante, «obras de arte», que em si se não podem compreender mas neces-

sitam de uma apresentação verbalista e gongórica para encontrarem por fim

alguém, que pacientemente acolha tal sem-sentido louco ou atrevido, «não

serão mais acessíveis ao povo alemão» 135. A arte moderna e degenerada

carece de força realizante e de poder na luta pela vida. Todas as frases feitas

ou expressões de um intimismo sem realização como «vivência interior»,

«mentalidade forte», «querer pleno de força», «sentimento portador de

futuro», «atitude plena de força», «intropatia significativa», «ordem tem-

poral de vivências», «primitivismo originário», etc. são expressões ou ditos

idiotas e sem verdade, que jamais podem justificar produções em si

mesmas sem valor, porque simplesmente impotentes. Todo este psicolo-

gismo lânguido e débil carece de obras, que são expressões de poder e,

por isso, Hitler conclui a sua diatribe nestes termos: «Só por obras e não

por palavras pode alguém provar se tem um querer forte ou uma vivência

interior» 116. De facto, ao Nacional-socialismo interessava muito menos o

chamado «querer», que pode ser uma veleidade evidente, do que o poder

e a luta. Nesta perspectiva, os artistas, que pretendam expor na «Casa da

Arte Alemã» ou entrar doravante na Alemanha, deverão dispor do poder

das obras, de contrário serão palradores, que procuram dar sabor artístico

às suas produções, apresentando-as como expressões «de um tempo novo»,

quando, de facto, não é o tempo mas a vida universal dos povos, que

procura novas figurações e expressões adequadas. Nas últimas décadas,

falou-se do «novo tempo alemão», que não pode ser o dos literatos mas o

dos combatentes ou das figuras dos que realmente dão forma aos povos,

os conduzem e, deste modo, os tornam históricos. De tais figuras lutadores

se afastam os pinceladores mesquinhos e confusos ou os poetaços, cujo

atrevimento descarado e idiotice dificilmente concebível os levam a propor

134 ID., o.c.1.c.135 ID., o.c.1.c.136 ID., o.c. 250.

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ao tempo alemão de hoje obras, que poderiam ter sido produzidas porum homem da idade da pedra lascada, há dez ou vinte mil anos. Falam deum primitivismo da arte e esquecem totalmente que não é tarefa da artedistanciar-se, recuando, do desenvolvimento de um povo mas simbolizar

este desenvolvimento vivo. Por isso, «o novo tempo de hoje» trabalha num«novo tipo de homem» e foram já realizados esforços gigantescos em inú-meras esferas da vida para elevar o povo, tornar mais saudáveis, fortes e belosos homens e as mulheres, os jovens e adolescentes. É «desta força e destabeleza que jorra um sentimento de vida e uma nova alegria de viver» 137.

É na luta e no combate de hoje que o homem mais se aproxima domelhor da Antiguidade a ele unida pelo vínculo da raça: jogos desportivos,campeonatos e jogos de guerra espalham força por milhões de corposjovens a subir em forma e compleição como durante milénios se não viunem tão-pouco se pôde prever. Este tipo de homem, figura do tempo novo,vira-o Hitler concretizada em 1936 nos Jogos Olímpicos de Berlim em todaa sua força corpórea irradiante, orgulhosa e plena de saúde, em contrastecom as produções pré-históricas dos tartamudos da arte, que apresentamaleijados e cretinos, mulheres nojentas, crianças, que, se assim vivessem,seriam consideradas uma maldição de Deus. E esta cena que esses cruéisdiletantes do mundo de hoje se atrevem a propor como «a arte do nossotempo» ou como a expressão daquilo, que dá forma ao tempo de hoje e lheimprime o seu sinete 138.

Hitler concede que há realmente homens, que, por deficiência de visão,vêem nos alemães actuais «cretinos», sentem e experienciam os pradoscomo se fossem azuis, o céu como verde, as nuvens com cores de enxofre.Hitler pretende, «em nome do Povo Alemão», proibir que esses infelizes,que padecem claramente de perturbações da visão, tentem impingir aosoutros, como realidade e arte, os resultados da sua visão errónea. Porém,se tais «artistas» vêem de facto a realidade desse modo defeituoso e nelaacreditam, há que investigar se tal defeito acontece por qualquer acidenteou por hereditariedade. Se o primeiro caso é uma infelicidade lamentável,o segundo é da alçada do Ministério do Interior do Reich, que se ocupa doproblema de impedir a transmissão hereditária de tais graves perturbaçõesda visão. Porém, se tais artistas não acreditam na realidade de tais impres-sões mas procuram, por outras razões, agravar a nação alemã, então o seuprocedimento cai na esfera do Direito Penal 139.

O artista não cria para o artista mas para o povo, que é chamado a serjuíz da arte do artista. Não se pode dizer que o povo não compreende o

137 ID., o.c.1.c.13R ID., o.c.l.c.139 ID., O.C. 251.

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enriquecimento do real valor da sua vida cultural, pois muito antes que oscríticos fizessem justiça ao génio de um R. Wagner, já este tinha o povopelo seu lado. Porém, desde as últimas décadas o povo já nada tem a ver com«a chamada arte moderna», que lhe é proposta, e, por isso, passa desin-teressado pelas exposições de arte ou permanece longe delas. A «grandemassa» do povo, com sua sensibilidade sã, viu nos borrões das exposiçõeso que elas são, isto é, o fruto de uma petulância atrevida e sem vergonhaou de uma incapacidade, que simplesmente mete medo. Milhões de alemãessentiram instintivamente e com segurança que o balbuciar artístico dosúltimos decénios, que de facto correspondeu aos trabalhos toscos e semtalento de crianças de oito a dez anos, em nenhum caso se pôde julgarexpressão dos tempos de hoje ou do futuro alemão. Se hoje sabemos queem cada indivíduo humano se repete em poucas décadas o desenvolvimentode milhões de anos, isto é prova, segundo Hitler, de que uma produçãoartística, que não ultrapasse o nível de uma criança de oito anos, não é«moderna» nem «prenhe de futuro» mas, pelo contrário, é profundamente ar-caica, pois provavelmente recua para além do período em que homens dopaleolítico gravaram nas paredes das cavernas o ambiente, que os rodeava.

Daí, a conclusão de Hitler: «Estes ignorante não são modernos mas tristes retró-grados muito primitivos, para quem neste tempo moderno não há lugar» 140.

Após esta denúncia da degenerada arte moderna, Hitler pressentia que

o «povo alemão», ao percorrer os espaços da «Grande Exposição da Arte

Alemã», o reconheceria a ele mesmo como seu interlocutor e conselheiro,

pois verificaria que, pela primeira vez desde há muitas décadas, se valo-

rizou não a «batota» artística mas o trabalho honrado da arte. O povo alemão,

que dá o seu acordo às construções do Fuehrer, «exprimirá, internamente

aliviado, a sua adesão feliz a esta limpeza da arte» 141, que se torna inadiá-

vel. Na verdade, uma arte, que não pode contar com a aceitação íntima e

alegre das largas massas saudáveis do povo, mas apenas se apoia em redu-

zidas camarilhas, é insuportável, pois ela procura confundir o sentimento

saudável, instintivamente seguro de um povo, em vez de o apoiar com

alegria. Tal arte sem base na adesão popular apenas gera desgostos e

dissabores e os seus criadores ridículos e miseráveis não se podem reclamar

da incompreensão de que foram vítimas os grandes Mestres do passado por

parte de «critiqueiros», que, ao torturarem como verdugos esses génios, se

situaram fora do seu povo. De novo, é o povo que deve avaliar o trabalho

honrado, a aplicação séria e o esforço dos seus artistas, que se expõem ao

seu próprio povo «a partir do fundo mais profundo do coração alemão» 142.

140 ID., o.c.1.c.

141ID., o.c.1.c.

142 ID., o.c. 252.

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No juízo de Hitler, a «Grande Exposição de Arte Alemã» de 1937 eraum começo necessário e promissor, que instaurava na arte uma viragemvitoriosa. Era clara a tese de fundo do Nacional-socialismo: libertar o «Reichalemão» e com ele o povo de todas aquelas influências, que lhe destruiama existência, na certeza de que tal purificação não surgiria de imediato masum dia seria uma realidade insofismável. Por isso, com a abertura da«Grande Exposição» iniciava-se «o fim da loucura artística alemã e... da ani-quilação cultural do nosso povo» 143 e declarava-se a «guerra implacável delimpeza» contra os últimos elementos da decomposição cultural alemã.Quatro anos de Fuehrer (1933-1937) bastam para um juízo definitivo e, porisso, são eliminados todos os grupelhos de charlatães, diletantes e burlõesde arte, que se apoiam e sustentam uns aos outros, não restando a tais homensda cultura da pedra lascada e tartamudos da arte outra alternativa que nãoseja regressar às cavernas dos seus antepassados para aí exporem as suasgaratujas internacionais e primitivas 144

Ao terminar o discurso de abertura, Hitler confessou com a maior satis-fação que se perfilam «ao lado de muitos artistas sérios mais velhos, atéagora aterrorizados e reprimidos mas sempre alemães fiéis no mais profundode si mesmos», novos Mestres entre a juventude alemã. Por isso, a «GrandeExposição» exibe a aliança entre o belo, o honesto, o bem, apresentandoo caminho a novos artistas capazes de sentir os estímulos da grandeza dotempo em que vivem e, sobretudo, de manter a coragem para um trabalhodiligente e coroado de êxito 145

Evocando a relação entre a esfera da arte e a consciência do Sagrado, queo símbolo da cruz suástica pretendia acordar no povo alemão, Hitler nãoduvidou de que o Omnipotente arrancaria de novo da massa de criadoresartísticos sérios personalidades singulares, elevando-as ao céu estrelado dosartistas imortais divinamente inspirados de épocas grandes, pois o tempo daforça criadora de individualidades inspiradas não se esgotou com osgrandes homens dos séculos passados nem se dissolveu no cronos devora-dor da massa colectiva, proteica e informe da Modernidade. Pelo contrário,ao lado de actividades de alto nível em muitas esferas, também luzirá nocampo da arte o valor supremo e vitorioso das grandes personalidades 146

III

A fenomenologia das coisas, que aparecem aos homens finitos, que,embora saibam com Sócrates que nada sabem, se reúnem persistentemente

143 ID., o.c.1.c.

144 ID., o.c.1.c.145 ID., o.c.1.c.146 ID., o.c.1.c.

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A crítica do nazismo na hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer 265

em diálogo para indefinidamente questionarem o que delas aparece, foi um

modelo de filosofia, que H.-G. Gadamer praticou nos tempos sombrios em

que o Nacional-socialismo justificava com a unidade da raça nobre e genial

a eliminação de todo o pluralismo político, cultural e artístico. Na lingua-

gem dialógica em que os fenómenos se mostram e velam, joga-se outrossim

o ser do homem com outros homens, como em 1960 escreveu H.-G.

Gadamer: «Deste modo, a linguagem é o verdadeiro meio do ser humano,

se a virmos apenas naquela esfera, que somente ela preenche - a esfera do

entendimento com outros, do acordo sempre e de novo a despontar, que é

tão indispensável à vida humana como o ar, que respiramos. Como Aristó-

teles afirmou, o homem é o ser que tem linguagem, pois tudo o que é

humano, devemos deixá-lo dizer» 147. O ser humano vai-se dizendo na orali-

dade e na escrita dos nossos encontros, sem exclusão de ninguém nem

exaustão de temáticas. O mais assombroso na essência da linguagem e do

diálogo «é que também eu mesmo não fico preso do que opino, quando falo

com outros sobre algo, que nenhum de nós abarca na sua opinião a verdade

total que, ao mesmo tempo, nos pode abranger aos dois no nosso opinar

singular» 141. Deste encontro dialógico com outros participaram natural-

mente os professores, colegas e amigos de H.-G. Gadamer, que se sentiu

imunizado contra a absurda tensão de raças de que Hitler fizera uma arma

política: «Em Marburg, quase todos os meus amigos eram judeus... Eu só

notei este facto quando surgiu a primeira propaganda do III Reich e os

amigos judeus ficaram muito preocupados» 149. Ao espírito dialógico e não-

-violento de Gadamer não só repugnava a perseguição anti-semita como era

inconcebível trocar os argumentos de um possível acordo pelo abate cruel

de milhões de vítimas. Quando em 1934 (30.06) Hitler mandou assassinar

os rivais do mesmo partido, que se haviam revoltado, tornou-se para Gada-

mer definitivamente claro que sem um mar de sangue se não mudaria «o regime

deste ditador paranóico», embora então não previsse que «a Europa um dia

haveria de atravessar a vau um mar de sangue» 150. Quando Hitler iniciava

a redacção de O Meu Combate em 1923, entrava Gadamer no Instituto

Filosófico da Universidade de Freiburg, onde já havia quatro anos se proces-

sava uma investigação intensa e um ensino novo conduzidos por Heidegger

e caracterizados pela recepção crítica da Fenomenologia de Husserl, pela

meditação dos textos aristotélicos e pela elaboração de uma analítica do

147 H.-G. GADAMER, «Mensch und Sprache» (1966) in: ID., Kleine Scln•ifien 1. Phi-

losophie. Hermeneutik (Tuebingen 1967) 100.148 ID., «Was ist Wahrheit? (1955) in: ID., Kleine Schriften 1, 58.119 ID., «Breslauer Studienjahre. Hans-Georg Gadamer im Gespraech» in: Paedago-

gische Rundschau 51 (1997) 125.

150 ID., «Erinnerung» in: Jahrbuch der deutschen Schillergesellschaft 34 (1990) 465.

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ser-aí, em que todo o homem é Hermes do seu próprio ser fáctico, per-guntável, temporal, finito e único 151. A Gadamer, recém-chegado do Neo-kantismo de Marburg, foi-lhe proposto um novo sentido prático de Herme-nêutica: «A Hermenêutica tem por tarefa tomar acessível, comunicar a esteser-aí o seu existir próprio no seu carácter de ser, ocupar-se da auto-alie-nação com que o seu «aí» está ferido. Na Hermenêutica, desenvolve-se umapossibilidade de o ser-aí se tomar e ser compreensor de si mesmo» 152. Nasua raíz, o homem pelo «aí» do seu ser é abertura ao que aparece mas pelaauto-alienação e falta de vigilância pode tornar-se vítima de aparênciasincontroláveis e capazes dos delírios megalómanos da vontade de poder.Enquanto Hitler sonhava na luta vitoriosa da vida biológica através de«personalidades» de génio saídas do sangue ariano, Gadamer preparavadesde 1923 na Ontologia Fenomenológica a Hermenêutica a crítica dascorrentes filosóficas da época e regressava aos Gregos para fundar essamesma crítica no seguimento da convicção heideggeriana de que o ser-no--mundo se caracteriza pela abertura do poder ser, que a compreensãocuidadosa pode realizar, mas também pelo não-poder e pelo correlativonão-compreender, dado o estatuto de lançamento e de abandono de todo oexistir humano, cuja única certeza racional é a da morte reprimida pelohomem anónimo e impessoal. Contra o dualismo irredutível de nobres pornatureza e de degenerados, todo o homem está condenado a uma abertura,que é também clausura, sendo por isso obrigado a decidir-se pela vigilânciasobre si mesmo, que o proteja criticamente de ilusões e de alienações. Naida aos Gregos em 1923 na companhia de Heidegger, salientam-se o semi-nário sobre Ética a Nicómaco, em que phronesis foi traduzida não porprudentia mas por consciência da razão prática do homem, cujo ser estásempre em jogo, e os encontros semanais no mesmo ano em que Heideggere Gadamer leram em comum os textos sobre a substância da Metafísica deAristóteles, ficando gravada na memória de Gadamer a ideia de que naleitura fenomenológica de Aristóteles se esboçam já respostas a questõesprementes do nosso tempo. Destes encontros escreveu mais tarde Gadamerque foram «a primeira introdução prática à universalidade da Herme-nêutica» 153, em que o ser de todo o homem era apelo a si mesmo. O «pen-samento apelativo» da verdade existencial contrapõe-se na linha da phro-nesis grega à techne do saber fazer e ao método da Idade Moderna. No

151 M. B. PEREIRA, «O Século da Hermenêutica Filosófica: 1990-2000» in: RevistaFilosófica de Coimbra 19 (2001) 6 ss.

152 M. HEIDEGGER, Ontologie (Hermeneutik der Faktizitaet) 2 GA, 63 (Frankfurt/IM. 1995) 15.

153 H.-G. GADAMER, Henneneutik II. Wahrheit und Metltode . Ergaenzungenl

IRegister 2 (Tuebingen 1986) 486.

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A crítica do nazismo na hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer 267

comportamento humano e respectiva experiência de mundo, há «uma camadamuito mais profunda» do que o «comportamento objectivador da cons-ciência e sua consumação na ciência» e, por isso, Gadamer sentiu em 1924,em Marburg, que esta distinção filosófica respondia à insuficiência, queafectou o Neo-kantismo da sua formação universitária 154. Na ida crítica atéàs coisas, inscrita por Gadamer no diálogo da alma consigo mesma e comos outros, devem os obstáculos ser removidos pela argumentação no sentidode «destruição» de deformações e arbitrariedades, que prepara o caminhopara a profundidade do real como em Hegel a eliminação sublimadora enão-arbitrária introduzia na reflexão interior do Infinito. Mais tarde, em1990, Gadamer recorda, nestes termos, o papel da «destruição» heidegge-riana na sua leitura das experiências fontais da filosofia: «Com Heideggeraprendemos o que significa destruir conceitos e por que o devemos fazer.Trata-se de regressar às experiências humanas originárias imediatas, de queeles (os conceitos) nasceram. Se a «destruição» for assim entendida, entãoela não tem o sentido de demolição aniquiladora mas de libertação, deeliminação daquilo que encobre e, portanto, de nova abertura de horizontespara as perguntas originárias da filosofia» 155. No diálogo da alma consigomesma e com os outros em que todas as línguas ao deixarem aparecer ascoisas, realizam o melhor de si mesmas, processa-se a «destruição» dos pre-conceitos e desvios, que distorcem e desfiguram o que as representaçõeshumanas devem à realidade e, por isso, a luta, que a barbárie travava, mace-rando corpos e destruindo vidas, é transposta para o discurso dialógico afim de melhor se desvelar, nos limites da humana finitude, a verdade de todos.

Após a tese de habilitação sobre a interpretação fenomenológica doFilebo de Platão (1929) 156, Gadamer vai praticar a «destruição» nas aulas

de Ética e de Estética, que em 1933 lhe foram confiadas pela Universidade

de Marburg e em 1936 com o título «Arte e História (Introdução às Ciên-

cias do Espírito)» se tornaram pedras basilares do alicerce da futura obra«Verdade e Método», em que a «destruição» do predomínio do método liberta

a verdade como desvelamento na arte, na história e na linguagem. Após ter

ouvido em 1936 as conferências de Heidegger em Frankfurt/M. sobre

A Origem da Obra de Arte 157, Gadamer declarou-se familiarizado com o

154 ID., «Die phaenomenologische Bewegung» (1963-1972)» in: ID., Kleine Schriften

111. Ideee und Sprache. Plato, Husserl, Heidegger (Tuebingen 1972) 171.155 ID., «Hegel und die Sprache der Metaphysik» in: VÁRIOS, Sprache tutd Ethik

im technologischen Zeitalter, Bamberger Hegehvoche 1990 (Bamberg 1991) 29.156 ID., Platos dialektische Ethik. Phaenoinenologische Interpretation zuni Philebos

(Leipzig 1931).157 M. B. PEREIRA, «A Essência da Obra de Arte no Pensamento de M. Heidegger

e de R. Guardini» in: Revista Filosófica de Coimbra 13 (1998) 7.

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propósito filosófico de Heidegger, que foi para ele «mais uma confirmaçãodaquilo... que ele mesmo desde há muito procurava na filosofia» 158Professor catedrático de filosofia na Universidade de Leipzig desde 1939,ano do início da Segunda Grande Guerra, e Reitor eleito da mesma Univer-sidade desde 1946, Gadamer pronunciou a 22.09.1945 perante os docentesde Leipzig uma conferência sobre o significado da filosofia para a novaeducação, após a queda do Nazismo e dois anos depois (1947) desenvolveuo tema da relação entre Filosofia, Arte e Ciência em Berlim na «Sociedadede Ciência da Associação Cultural para a Renovação Democrática da Ale-manha». A primeira afirmação de Gadamer visou o aparecimento real dascoisas e não meras aparências e ilusões, porque a formação do professorcarece do tema real da filosofia, que é o «chão comum em que nós, filhosdo mesmo tempo, estamos» e, de modo algum, se identifica com «umavisão do mundo» no sentido de uma «figura do espírito já acabada» saídada fornalha do génio mas «é busca socrática da verdade de todos nós» 159.

Nesta busca socrática, por essência dialógica, finita e aberta, nós jamaisconhecemos suficientemente «o nosso lugar» e a «nossa realidade», emboranos seja lícito esperar «dizer algo, que respeita o futuro de todos nós» numa«imagem filosófica de mundo», já que é tarefa permanente da filosofia«buscar em nós», isto é, no acordo sobre as coisas, o que é verdade e futuropara todos 160. Assim, o filósofo partilha com os educadores de «uma basecomum», isto é, da convicção de que «nós só podemos educar, quando hou-ver acordo entre nós mesmos» e não sob uma imagem de mundo imposta.Por isso, desde o tempo de Sócrates a filosofia propôs-se contribuir paratal acordo, embora ele hoje seja mais difícil e mais necessário do que notempo de Sócrates, dado que do passado imediato nos chega como impo-sição oficial «a imagem delirante da visão popular de mundo», em que foiimpossível qualquer entendimento dialógico e, por isso, os alemães sofre-ram a violência da cisão entre o que realmente eram e o que tinham de simu-lar ser. De facto, foi loucura e delírio a fundamentação rácica da visãopopular de mundo: «Nós experienciámos como esta loucura pseudo-cien-tífica e a criação de um sistema político de vida sobre tal base insustentada,não provada nem passível de prova contribuíram para a profunda destruiçãoético-política em que o nosso povo hoje se encontra». Invertendo o sentidodas exposições de Arte Alemã e de Arte Degenerada de 1937, concluiGadamer: «Nós sofremos a degenerescência desta visão popular de mundo

15" H.-G. GADAMER, «Hermeneutik im Rueckblick» in: ID., GW, Bd. 10 (Tuebingen1995) 76.

159 ID., «Ueber die Urspruenglichkeit der Philosophie» in: ID., Kleine Schriften 1, 11.

160 ID., o.c. 12.

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A crítica do nazismo na hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer 269

em auto-divinização e na loucura do poder» 161. Para Gadamer, é necessáriocompreender esta visão popular de mundo mas isto só será possível seconcebermos claramente «a violência desta loucura como a desfiguraçãode uma verdade» em vez de ficarmos pasmados perante algo puramenteincompreensível e se reconhecermos o que nela está degenerado e invertidode modo tão horrível. Segundo o conceito antigo da Metafísica Cristã Oci-dental, o mal é a inversão do bem e, neste contexto, julga Gadamer «queum entendimento autêntico entre nós só é possível, se nós penetrarmos nestainversão como tal», a que pertence a visão popular de mundo fundada naraça 162. A inversão total, que desaguou no niilismo activo do biologismoariano, mascarou-se de visão de mundo. Esta visão popular dentro do rela-tivismo e pluralismo das visões de mundo, a que se guindou a MetafísicaModerna da Subjectividade, é conflituosa, é luta entre visões antagónicas,cujas possibilidades se não mostraram previamente nem tão-pouco se deci-diram. Dado o contacto estreito com o pensamento de Hegel não só na idaaos Gregos mas também na determinação do conceito de HermenêuticaFilosófica, Gadamer recorda que a expressão «visão de mundo» no seusentido pluralista se encontra, pela primeira vez, em Hegel aplicada àsmudanças históricas da Arte. Com a ruptura da filosofia hegeliana ruiu aconciliação dialéctica das visões de mundo e surgiu a sua militânciaconflituosa e antagonismo. Antes da sua plurificação, o conceito e a reali-dade de visão de mundo eram o resultado final de um grande desenvol-vimento histórico-mundial, isto é, do Idealismo, que, desde os Gregos, atéao tempo de Hegel, «forjou a unidade de uma magna explicação de mundo»,

que marcou o destino da história do pensamento ocidental. Após o sentido

platónico de ideia como realidade verdadeira perante a mudança e a mobi-

lidade da experiência sensível e o de espírito enquanto forma realizadora

da ideia, Gadamer apresente Hegel como a última grande figura no contexto

uno desta crença idealista do Espírito» e o abencerragem desta visão comum

do Ocidente 161. Por necessidade interna, ao colapso da filosofia hegeliana

sucedeu «o combate das visões de mundo», cujo poder eclipsou qualquer

sobrevivência da forma académica da filosofia idealista, ao mesmo tempo

que o espírito crítico das Ciências da Natureza e das Ciências do Espírito

destruiu o esquema da dialéctica hegeliana da natureza e da história. Ao

ver espiritual da ideia, que se esfumou, contrapôs-se a experiência da

existência concreta de Kierkegaard, aos possíveis em cujo mundo negativo

navegava a razão, o fáctico, o contingente e o concreto propostos pelo

Schelling tardio. Neste horizonte anti-idealista, Gadamer salienta duas

161 ID., o.c.1.c.162 ID., o.c.1.c.163 ID., o.c. 14.

Reviva Filusófca de Coimbra - n.° 20 (2001) pp. 227-284

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críticas ao domínio do pensamento especulativo : o modelo kierkegaardianodo ser do indivíduo perante Deus, que desnudou a impotência real da filo-sofia hegeliana , abriu o caminho a K. Jaspers e à «destruição » de Hei-degger, e a crítica dos jovens hegelianos compendiada na formulação deK. Marx, que opôs a exigência de uma filosofia assente «nas pernas» oufundamentos reais, concretos e históricos da existência, ao pensamento domundo situado apenas na «cabeça», como sonhara Hegel 164. Ao materia-lismo dominante reagiu a filosofia académica de meados do séc. XIX como regresso aos Mestres idealistas, sobretudo a Kant, substituindo « a objec-tividade da ideia», que uniu Platão e Hegel , pelo «idealismo moral » de finslongínquos, segundo o estilo neo-kantiano da consciência cultural liberal,assumido como forma de moralidade cristã burguesa 165. Gadamer consideradolorosa a história deste idealismo cultural impotente, facilmente destruídopelo psicologismo extremo, cuja prática de compreensão psicológica aban-donava todos os pontos de vista normativos , deslumbrada pela sedução decompreender o errado e o incompreensível segundo a fórmula «compreen-der tudo é desculpar tudo» 166

Este afundamento do idealismo encontrou o seu ponto extremo naquiloa que Nietzsche chamou o niilismo e que os alemães viveram realmente noseu passado mais recente . De facto, este abismo, que devorou o idealismo,tornou-se «o chão da inversão da verdade , que nós experienciámos em nósmesmos na época nacional - socialista». Perante a fraqueza etérea da cons-ciência axiológica alemã o apelo à dureza da vontade ganhou para muitosuma força demoníaca de sugestão . O ideal único a que todos teriam deservir, era o da vontade de poder no sentido em que Nietzsche influiu , isto é,o «querer do querer» sem qualquer conhecimento do que se quer, semresponsabilidade pelo saber daquilo que se quer. A palavra de ordem daépoca passada, que deu expressão a tal vontade , é «activismo », arvoradosimplesmente em valor, mesmo quando se sentia a vacuidade daquilo comque a acção se tinha de comprometer . A insegurança da consciênciaintelectual gerou «uma forma própria de fanatismo», que teve medo do seupróprio vazio e procurou refúgio em ideias biológicas delirantes ampla-mente divulgadas , que eram a base pseudo-científica desse activismo esvaziado.

A crítica ao idealismo prosseguiu através da filosofia da vida de Diltheye do pensamento da existência de K. Jaspers , com a novidade de o conceitode vida implicar uma esfera do «pré-consciente » dominador da «consciên-cia subjectiva do espírito » e de o conceito da existência nas últimas décadassignificar o «estar lançado no seu destino de ser- aí, que se pretende com-

164 ID., o.c. 15.X65 ID., o.c.1.c.166 ID., o.c. 16.

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A crítica do nazismo na hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer 271

preender», e o «estar exposto, desnudado, perante o qual fracassam todasas seguranças da razão e que desde então designa o limite do pensamentoidealista». Deste modo, «o poder soberano do espírito, a força da com-preensão» estão limitados pelo destino do ser da existência, pelo seu lugar

histórico concreto, pelo movimento histórico-social, que suporta a vida do

singular. As consequências desta crítica ou «destruição» do idealismo

tocam assim os alicerces da nossa existência e culminam na visão de que«a própria verdade é histórica e se realiza no acontecer do espírito histórico

ou desta realidade da consciência, que se temporaliza» 167. Faz parte do

entendimento autêntico inter-humano perguntar pelo «movimento histórico

da verdade», que continua vinculativo através de normas racionais, que

visam a realização inteligente dessa verdade. Tudo se resume a tomar

consciência real da premência deste problema de uma verdade histórica 168,

que se manifesta até na sua inversão, como acontece nos abusos da palavra,

do discurso, do prestígio da ciência e da investigação, na crise da razão

aquando do activismo de uma vontade sem entendimento. Por isso, após

o fracasso do Nacional-socialismo, que substituiu a verdade pelo nada e

pela raça, retorna a pergunta pela verdade no seu movimento de desvela-

mento temporal e histórico e pela essência da razão, que não pode prescin-

dir da normatividade da verdade, embora muitas vezes caia na dependência

de ilusões e de cegueira perante a realidade, como aconteceu num passado

recente ao povo alemão. Porém, «isto não foi apenas imaturidade política,

foi um devir prepotente da vontade de embuste e de auto-engano, pro-

veniente do fracasso de todas as esperanças fantásticas com que o povo

alemão fora alimentado» 169

Gadamer aponta «o grande perigo», que pode acometer a dependência

da verdade e da razão humana: a sua redução a um instrumento de um po-

der mais alto, inconsciente e irresponsável. Quer tenha sido a força de uma

minoria terrorista ou da vida pulsional degenerada ou qualquer outro poder,

que levaram «às crueldades dos campos de concentração», em todos os

cenários esteve a redução da razão a um «instrumento de tais forças irra-

cionais»: «O perigo... que cresce a partir da dependência experienciada e

inegável da razão, está em pensá-la como instrumento em mãos alheias,

está na transformação radical do sentido da razão num instrumento» 170.

Embora se conceda que a razão humana é dependente, nem por isso a sua

essência se limita a servir um interesse dominador ou uma visão coman-

dada. Tal descrédito da razão, como as experiências mais recentes demons-

167 ID., o.c. 16-17.'Fa ID., o.c. 17.

J69 ID., o.c. 18.

170 ID., o.c.1.c.

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traram, é um dos perigos maiores que ameaçam a vida humana, ao negar--lhe a capacidade de entender a verdade essencial. Embora seja correctoque a razão não é auto-produtora nem se pode temporalizar a si mesma,pois ela acontece no tempo segundo um «destino histórico-social», com suastradições e valores, também é verdade que a razão, enquanto temporalizadae dependente, pretende ser, em última análise, inteligência dos conteúdosverdadeiros da realidade, que estão para além do mundo grandioso cons-truído pela técnica racional. A razão por si mesma não produz realidademas é, como diz M. Scheler, razão «eidética», que vê a essência das coisas

e, para tal, é impulsionada, como todo o amor e desejo de saber, pela dinâ-mica subconsciente das pulsões e por factores naturais e históricos, cujaenergética contribui para a visão racional das coisas. Por isso, a tarefa, quea «Fenomenologia do Espírito» de Hegel se propôs realizar, parece a Gada-mer necessitar de uma renovação a partir da crítica radical da razão doúltimo século, isto é, de uma nova mediação entre impulso e espírito 171.

Contudo, a essência da nossa razão e do nosso espírito é poder pensar con-tra o nosso proveito próprio, é poder libertar-nos da opressão dos nossosimpulsos, das nossas necessidades e interesses e poder dobrar-nos à lei dascoisas. Ora, nós devemos estas possibilidades «ao trabalho intenso de edu-cação», realizado para todos nós «por gerações sem nome», que nos prece-deram. De início, eram as imagens pulsionais, que impediam permanente-mente «o rosto verdadeiro da realidade» e, por isso, o advento da razão edo reconhecimento significa que «nós fomos de tal modo desencantados»que podemos por pensamento e reconhecimento experienciar a realidade.Neste caso, «o processo deste desencantamento é o caminho da homini-zação» e será um retrocesso do homem aos estádios pré-humanos dodesenvolvimento se o véu da nossa fantasia pulsional e do nosso apetite deilusões cair e se estender tão compactamente sobre nós que a própria rea-lidade desapareça. Já vimos generalizar-se à nossa volta e tivemos de sofrera negação terrível da realidade de tudo aquilo em que se crê e afirma, sefaz e ousa 172. Daqui se colige a necessidade de aprendermos de novo a razãocomo a faculdade de reconhecer a realidade contra os nossos próprios inte-resses. Nesta aprendizagem, sobressai a vontade e a coragem de realidade,o que para Gadamer equivale à reabilitação honrosa da razão do seu estadode difamação e calúnia. É sobretudo o filósofo que tem de alertar para estaquestão de fundo e de percorrer o caminho da auto-formação do espírito, deque também se não pode alhear o político, que deve reconhecer de novo a rea-lidade e rasgar o véu das frases românticas, tomando-nos capazes de trans-formar em democracia autêntica a que até agora tem sido apenas formal.

171 ID., o.c. 19.172 ID., o.c. 20.

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A crítica do nazismo na hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer 273

Gadamer reconhece em 1945 que as imagens, que a Alemanha tinha daessência da democracia, estavam pelo menos tão corrompidas como asideias acerca do valor da razão e do entendimento 173. Não foi apenas nosdoze anos da ditadura nazi (1933-1945) que na política grassou corrupçãoideológica, pois infelizmente ela já vinha de longe. De facto, o que é paratodos a verdade social e política, deve transparecer da forma de demo-cracia, pois «o sentido autêntico da votação é... encontrar a verdade, quea todos vincula 174, e não a derrota e a exclusão de grupos mais fracos pelosmais fortes, o que reduziria o princípio da democracia ao uso regula-mentado da violência. O sentido autêntico de democracia deve ser apren-dido na Alemanha de modo totalmente novo, pois após 1918 ela não entrouna consciência pública. Embora em democracia cada um possa fazer valera sua opinião política, o que é verdadeiramente decisivo, é a exposição decada um «ao ensino através da opinião dos outros», significando a derrotademocrática a recepção de um ensino sobre a verdadeira vontade do Estado.É imprescindível uma base para a política, pois o que nós, filosofando dia-logicamente, conhecemos quanto à essência da verdade, ensina-nos o quepoliticamente devemos aprender sempre enquanto cidadãos do Estado pararealizarmos a essência da autêntica democracia. Ser ensinado mesmo contraas nossas próprias convicções subjectivas «é o caminho da pesquisa daverdade histórica autêntica». Com este pressuposto fundamental da exis-tência política nutrida pela verdade filosófica está rasgado o caminho de umdesenvolvimento próprio das nossas possibilidades políticas 175. Orientarpara esta tarefa os professores futuros do povo alemão e sempre nos cami-nhos de um entendimento histórico-filosófico inter-humano pareceu aGadamer ser uma das poucas possibilidades abertas à sua própria acção con-

tra a idolatria nazi do sangue e do chão telúrico da raça.

O ensino filosófico tem de recordar e de se apropriar criticamente de

três grandes decisões históricas do espírito ocidental: a doutrina grega do logos,

o conceito moderno de método e o brilho e a impotência do idealismo

moderno. O regresso aos Gregos na companhia de Hegel e de Heidegger

permitiu a Gadamer discutir criticamente o sujeito moderno e seu método de

construção, o espírito dialéctico da marcha idealista do Absoluto e propor,

dentro da finitude humana, a hermenêutica dialógica polarizada pela per-

guntabilidade da verdade, sempre abscôndita nos seus históricos desve-

lamentos. Assumir conscientemente estas decisões significa servir tanto os

pressupostos concretos de toda a formação científica como as tarefas da

173 ID., o.c.1.c.

174ID., o.c.I.c.

175 ID., o.c. 21.

Revista Filastjica de Coimbra - a." 20 (200/) pp. 227-284

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educação do povo alemão para uma existência política 176. A nova educaçãoexige realidade e verdade contra o logro e o embuste, os «idola» e as des-figurações e a destruição da instrumentalização da razão mediante o acessoàs experiências originárias da verdade da Arte e da respectiva concep-tualização pela filosofia desta mesma temática.

Em 1947, tratou Gadamer na cidade de Berlim da relação da Filosofiacom a Arte e a Ciência 177, pois, se não é fácil falar sobre filosofia, torna--se necessário, se pretendermos reflectir sobre «quem é que nós somos».Desde Leibniz até Hegel é evidente a «grande riqueza» da contribuiçãofilosófica alemã para o tesouro da humanidade como a difusão do filosofarem todos os Estados faz da Alemanha uma «pátria especial». Porém, agora aimagem histórica e a consciência de mundo estão profundamente abaladas,dada a tremenda falta de sentido de realidade e de vontade responsável, quearrastou a desgraça sobre os alemães e não passa de «reverso daquela incli-nação para a Filosofia», que sempre os caracterizou. Toma-se agora impe-rioso filosofar com autenticidade, realizando hoje o que acontecia a todoo ouvinte de qualquer diálogo socrático, isto é, a participação na discussãode problemas, que tocam a todos. Porém, esta discussão dialógica abertaa todos sobre os caminhos da realidade para o homem foi obstaculada pelocostume moderno de se arrogar o direito de ter um ponto de vista filosóficopróprio e de legitimar esta postura tenaz através de uma visão de mundoou de um apelo à ciência, sem previamente curar dos modos originárioscomo a realidade se mostra. Realmente, no processo histórico e concreto emque intervêm «todas as tendências reais da vida» 178, a filosofia separou--se da arte e da ciência, embora não abolisse o seu relacionamento de fundocom elas. Olhando para a situação tal qual aparecia em 1947 numa Alema-nha destruída e dividida, Gadamer destacou a sujeição da cultura ocidentalà ciência, cujo método se aplicou à técnica, à indústria, à ordenação da vidasocial e também à destruição, à planificação, à construção e ao domínio 179.

No império da tecno-ciência, a filosofia é reduzida a uma reflexão gnosio-lógica sobre a ciência e a técnica realizadas e a arte toma-se numa espéciede alívio das tensões da existência, de libertação realizada pela «aparênciabela da arte» no mundo sem oposições da imaginação criadora. Numa cul-tura dominada pelo primado da ciência a filosofia pode considerar-se «uma con-cepção sistemática total da experiência trabalhada pela ciência» e «uma cons-ciencialização das visões de mundo», que orientam os nossos sentimentos,

176 ID., o.c.1.c.177 ID., Das Verhaeltnis der Philosophie zu Kunst und Wissenschaft 21-38.171 ID ., o.c. 22.179 ID., o.c. 23.

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A crítica do nazismo na hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer 275

tendências e trabalhos nesta idade científico-técnica 180. A esta concepçãoem que mergulhou também o consórcio entre raça e tecno-ciência do Nacio-nal-socialismo, opõe Gadamer a tese de que a filosofia não é posterior masprecede o conceito moderno de ciência e suas alianças, pois foi a trans-formação da Metafísica Grega operada pelo Nominalismo que, ao super--valorizar o sujeito individual concreto e ao converter em representaçõestodas as essências da tradição, criou os pressupostos históricos em queassenta o sujeito moderno e respectiva ciência ou ordem de razões ou leisa que a realidade é submetida 181. Neste caso, é o ocultamento das essênciasda Metafísica ou a sua transformação em representações, que possibilitou

o aparecimento da ciência do séc. XVII. Isto significa simplesmente que

o todo ordenado do ser ou o cosmos das ideias platónicas patentes perantenós como esfera típica da realidade precedeu e abriu espaço ao trabalho de

formação da ciência moderna, quando, na sequência do Nominalismo, Des-

cartes converteu as ideias platónicas em representações de uma subjec-

tividade, que a si mesmo se pensa, mudando a ciência e o comportamento

do homem perante o mundo 182, em contraste com as «ideias» e a «alma»

em Platão que permaneciam na ordem do ser e, por isso, não conferiam àsubjectividade do sujeito aquela prioridade gnosiológica atribuída pela

Modernidade ao pensamento. No entanto, as «ideias» platónicas são con-

dições históricas de possibilidade das futuras representações do sujeito

moderno, cuja autonomia a Arte moderna recriou na sua esfera como

especial «visão de mundo», segundo a terminologia da Estética Hegeliana,

e como «uma espécie de apresentação eidética» ou «uma forma de Plato-

nismo» no dizer de Schopenhauer 183.

Após a crise da subjectividade moderna vivida sobretudo no após-

-guerra, há que problematizar a transformação do real em representação

dominadora e, por isso, perguntar o que é hoje filosofia e interrogar o

significado actuante e actual da abertura helénica do espaço de pensamento,

que a Modernidade disfarçou em ideias da subjectividade criadora e, por

isso, ocultou. Daí, a explicitação gadameriana do sentido da prioridade da

filosofia ou do seu carácter prévio relativamente à ciência moderna: Em todo

o processo cultural proveniente do chão helénico age o carácter originário

deste pensamento e, por isso, ao lado da ocultação sempre crescente deste

começo filosófico acontece a sua reminiscência ou «o esforço permanente

para de novo pensar o originário de modo originário... e isto é a História

da Filosofia», que se não confunde com a história das opiniões filosóficas

180 ID., o.c.1.c.181 ID., o.c. 24.182 ID., o.c. 25.183 ID., o.c.l.c.

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276 Miguel Baptista Pereira

mas é uma história do «filosófico» na Filosofia ou, para usar uma expressãode Hegel, do «especulativo» da filosofia ou do reconhecimento do «mesmo»,na medida em que «a matéria da tradição estranha do pensamento» é reme-morada como assunto nosso 184.

O apriorismo gnosiológico e o empirismo modernos não só subjec-tivaram o real mas esqueceram a linguagem, que os vincula à raíz helénicado pensamento. Ora, a linguagem em Platão diz-se da esfera das ideiasplatónicas e a de Aristóteles é a elevação a conceitos do que já estavadepositado na língua do povo grego e da família linguística indo-germâ-nica, como a atribuição a uni sujeito de diferentes predicatos, donde Aris-tóteles elegeu o primado da proposição, prosseguida na estrutura mate-mática da lei científica moderna e concretizada na aparelhagem do domíniotécnico, segundo o ideal da univocidade rigorosa, que reduz ao mínimoas possibilidades de ambiguidades, de equívocos e de mal-entendidos 185

Ora, para Gadamer, a essência da linguagem não se reduz a uma Apofân-tica, pois a proposição é simplesmente «um lado possível» da linguagem,a que de modo algum se pode reduzir a expressão do mundo. O platonismoda linguagem ontológica sem dimensão histórica e o primado aristotélicoda proposição passariam ao lado da essência da linguagem se não aten-dessem à polissemia das palavras nas situações concretas de uma históriada sedimentação de experiências e de usos semânticos, onde têm lugar as«expressões ocasionais». Toda a significação é um pedaço de história, cujohorizonte vago tem de ser determinado pela situação, pelo contexto e pelasrelações fácticas 186. Porém, é nas criações poéticas que Gadamer procurasurpreender «a verdadeira realidade da linguagem» sem que isto signifiquepredilecção pelo irracional ou uma tendência para o agnosticismo. Gadamervaloriza o papel que, desde o Romantismo, a Arte representou para a cons-ciência filosófica. Assim, a ideia de um entendimento intuitivo, que fasci-nou Goethe no estudo da Crítica da Faculdade de Julgar de Kant e pôs emmovimento o pensamento especulativo de Schelling e de Hegel, deu à Arteum peso filosófico, que ultrapassou toda a problemática da Estética. Alémdeste papel dinamizador do pensamento filosófico, a arte assumiu umaposição orientadora no esclarecimento da existência humana depois que osgrandes sistemas metafísicos em ruptura conjunta com a filosofia hegelianaperderam o domínio sobre as ciências e a vida da sociedade. Já Diltheyafirmara com razão que no decurso do séc. XIX os enigmas originários dahumanidade já não eram matéria das escolas filosóficas mas dos grandespoetas do século. Por isso, os grandes romancistas, v.g., franceses, ingleses

1R4 ID., o.c. 26.185 ID., o.c. 28.186 ID., o.c. 29.

pp. 227-284 Revista Filosófica de Coimbra - o ." 20 (2001)

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A crítica do nazismo na hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer 277

e sobretudo russos não foram apenas os verdadeiros filósofos da sua épocamas também os depositários autênticos do legado vivo da Metafísica Oci-dental. O mesmo acontece hoje (1947), quando poetas como Rilke ou Hoel-derlin invadem a consciência filosófica com poemas, que já transcendemo domínio poético na direcção do pensamento. As duas grandes figurasfilosóficas assinaladas por Gadamer, que nas últimas décadas fecundaramna Alemanha o pensamento filosófico - Nietzsche e Kierkegaard - não sãoapenas «escritores» num sentido pleno até então desconhecido na Alema-

nha mas distinguem-se pela escolha de formas de expressão poética paraa construção da própria filosofia.

Deste modo, o problema da linguagem desloca-se para o centro do pró-prio filosofar, recuperando o lugar central, que lhe coube de início, pois «a

forma de existência da filosofia é necessariamente linguística» 187, embora

acompanhada de confusões e desfigurações. O acto de criação poética não

é uma exteriorização e comunicação de conteúdos mas um modo de expe-

riência do ser, que se torna presente pela linguagem nova e original do

poeta. Por isso, Hoelderlin exigia que se dissolvessem todas as rotinas,

proposições fixas e projecções antecipadas a fim de se não destruir a «tona-

lidade» do sentimento poético ou da abertura de um espaço de oscilação

em que o todo de uma poesia se estrutura em ritmo, som e relações ori-

ginais de sentido. Deste modo, a linguagem é aparecimento originário de ser

e não mero instrumento de comunicação de coisas já conhecidas ou de

opiniões sobre elas e, por isso, encontrar expressão não significa que se dê

visibilidade ao que se passa na mente mas que apareça externamente e se

apresente «o que eu e o mundo somos». Longe de possuirmos e de usarmos

a linguagem como instrumento de expressão do já vivenciado e conhecido,

é a linguagem que originariamente nos exprime e diz a nós mesmos, como

todo o poeta sabe, ao experienciar o acontecer novo da linguagem, que

precede todas as leis dos significados rígidos das palavras, faz estremecer

o comportamento no mundo, torna fluída a matéria linguística e possibilita

estruturar a novidade do que chega. O que perfaz o mistério autêntico, a força

dizente e genuína da palavra e o seu poder de nomear por nós experien-

ciado, não é a relação das palavras às coisas mas o que pelas palavras se

apresenta em primeiro lugar perante nós, isto é, um mundo por nós nunca

visto em parte alguma é-nos posto perante o olhar mediante o eclodir das

palavras 188. Esta é a dimensão originária da linguagem, cuja força des-

veladora de sentido é gerida pelo poeta a partir do passado com futuro, que

vive em cada palavra e cuja força se liberta pelo poeta, que deixa o ser da

187 ID., o.c. 31.'» ID., o.c. 33.

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278 Miguel Baptista Pereira

linguagem dominar e impor-lhe a ele mesmo o que ele pode e deve dizer.

Da recusa de representações e de palavras ditadas e impostas nasce a expe-riência poética e, por isso, pelo mundo novo, que chega, perpassa o sopro

do originário , que é a alma da palavra poética 159.O que Gadamer tentou tornar claro no exemplo concreto da linguagem

poética, declara válido «para o todo da essência da filosofia». De facto, se

a linguagem por sua essência autêntica não é uni sistema de signos comuni-cantes mas «uma relação do falante ao ser, a si mesmo e ao mundo», seaquilo, que o poeta consegue realizar , muito mais do que dar nomes aopensamento , é sempre a experiência e a apresentação de novas possibi-lidades de ser, então na essência da poesia, nas suas metáforas e símbolos,torna-se paradigmaticamente visível algo daquilo, que perfaz no reino dosconceitos a essência da filosofia . Como escreveria mais tarde (1971),Gadamer considera indiscutível que a linguagem poética é linguagem numsentido eminente , tem com a verdade uma relação muito própria e que é aarte da linguagem que decide não só do êxito ou do fracasso da poesia mastambém da sua exigência de verdade . Por esta relação à verdade , a palavravincula os homens uns aos outros , deixando que algo lhes seja dito, comoacontece sempre que nos entregamos a «um diálogo real» 190 . Não impedirmas deixar positivamente que algo seja dito, caracteriza a finitude do «ani-mal que tem linguagem » mas sabe que não sabe tudo, reconhece pergun-tável mesmo aquilo que sabe, pratica no jogo mútuo de perguntas e res-postas a relação dialógica e reconhece ao primado da pergunta sobre todaa resposta o carácter hermenêutico da fala ou a herança enigmática deHermes. Reportando- se à experiência poética, Gadamer recorda o duplosentido de aletheia na Filosofia Grega mais antiga: abertura pela palavraou veracidade do que se diz relativamente ao que se pensa e mostração dascoisas como são ao pensamento , que as diz ou as desvela pela palavra . O amigonão se diz verdadeiro porque parece mas porque realmente se mostra comotal e neste sentido pergunta Gadamer pela verdade da poesia 191 . A reduçãoeidética de Husserl , que suspende ou neutraliza as posições rotineiras, osinteresses quotidianos e as manipulações ideológicas , é o que o poetapratica para poder ouvir a profundidade das coisas , surgindo - lhes a palavracomo o ser- aí de algo, que não necessita de ser confirmado como se fossecópia servil e de que o próprio poeta é ouvinte e servidor antes de ser oseu efabulador 192. O texto poético «enuncia» e diz fielmente a realidade

119 ID., o .c.1.c.

190 ID., «Ueber den Beitrag der Dichtkunst bei der Sache nach der Wahrheit» in: ID.,Kleine Schriften IV. Variationen (Tuebingen 1977) 218-219.

191 ID., o. c. 221.191 ID., o.c. 224-225.

pp. 227- 284 Revista Filosófica de Coimbra - a.° 20 (2001)

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A crítica do nazismo na hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer 279

que se mostra como no tribunal a testemunha tem de dizer totalmente o quesabe, sem nada calar nem acrescentar. A eminência da palavra, que anunciao que transcende a rotina dos interesses humanos, não é exclusiva do textopoético mas caracteriza também o texto religioso e o jurídico. Assim, a escritavinculativa religiosa anuncia ao crente uma promessa, que uma vez aceite,estabelece um vínculo entre Deus e o crente, em que a escrita pela leiturarealiza no crente a promessa que significa 193 e o texto jurídico enuncia alei, cuja escrita pela sua dimensão de anunciação vincula o homem. A enun-ciação «no sentido eminente da palavra» aparece na obra literária, isto é,em textos, cujo sentido autónomo surge como algo por si mesmo desejávelnuma esfera, que precede a dimensão cultural, jurídica, filosófica e cien-tífica e é directamente visada na pergunta pela verdade poética. Não foi poracaso que a poesia se tornou objecto de reflexão filosófica, apareceu emPlatão como «a antiga rival da exigência própria da filosofia» 194 e levouAristóteles a escrever a sua Poética. Neste regresso aos Gregos, recordaGadamer o seu Mestre Heidegger, que, após a crítica do aparelho concep-tual da Metafísica e da Estética, rasgou na década de 30 «um novo acesso»,que lhe permitiu interpretar a obra de arte como o «pôr-em-obra-da ver-dade» e defender a sua unidade contra todos os dualismos ontológicos.A preferência de Gadamer vai incidir sobre a obra poética em sentido estrito,dado o primado da linguagem, que faz aparecer as coisas, sobre a matériadas outras artes, como a cor, o som, o movimento, a pedra ou a madeira.Por este primado, «a obra da linguagem é a poesia mais originária do ser» 195

Na linguagem corrente ocultam-se novas forças de dizer, próprias de rela-ções rítmicas, métricas e vocalizações, que aumentam o poder de dizer,resultando o dito mais presente do que nunca. Enquanto as cores e as for-mas de um quadro são ainda elementos do mundo, as palavras não o sãono mesmo sentido, pois remetem para uma língua e candidatam-se às suascriações artísticas: «Onde soa uma palavra, é chamada a língua no seu todocom tudo o que ela pode dizer...» 196. Na palavra que mais diz e como talé ouvida, não aparecem elementos singulares de sentido mas o todo de ummundo com diferenças a que o ouvir é mais sensível do que o próprio ver elo-giado por Aristóteles. Este aparecimento de mundo com suas possibili-dades e diferenças só acontece numa linguagem, que suspende a fugacidade

193ID., O.C. 222.

194 ID., «Von der Wahrheit des Wortes» in: ID., Gesanunelre Werke, 8, Aesthetik und

Poetik /, Kunst und Aussage (Tuebingen 1993) 45.195 ID., «Zur Einfuehrung» in: M. HEIDEGGER, Der Ursprung des Kunsto'erkes

(Stuttgart 1960) 113-114.196 ID., «Von der Wahrheit des Wortes» 54.

Revista Filosófica de Coinihra - n.° 20 (200 1) pp. 227-284

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280 Miguel Baptista Pereira

e a desvanescência do dizer e se fixa na proximidade do ser 191, isto é, numalinguagem, cujo «aí» é essa mesma vizinhança. Por tal proximidade se carac-teriza a plenitude da palavra poética e, por isso, só por esvaziamento ouafastamento ela se empobrece em signo de algo em cujo aparecimento nãoparticipou. Pela riqueza da palavra poética, a linguagem pode ser tambémmeio de informação mas sem a proximidade do ser a informação não élinguagem 191. Retomando uma vez mais o tema da «proximidade» da Cartasobre o Humanismo (1946) de Heidegger em que o homem é o «vizinhodo ser>, o ser é o próximo e a verdade é a proximidade 199, Gadamer chamaao «ser dizente» da palavra o «manter da proximidade», que se não limitaapenas à obra de arte literária mas a toda a obra de arte, que «põe em obra»a verdade de modo simultaneamente fáctico e agónico, pois na concreçãoda obra de arte acontece a luta entre desvelamento e ocultação. Esta dimen-são fáctica e agónica acontece de modo especial na obra de arte da palavra,que pressupõe uma linguagem, que diz o ser, que nela se abriga: «Só quemestá em casa numa linguagem, pode experienciar a enunciação da palavrapoética, que se mantém e permanece na proximidade como alétheia e fruida confiança originária de um «estar-em-casa» 200. Sem a proximidade ouverdade do ser, a «competência linguística» tematizada pela investigaçãomoderna «parece... o estar-fora-de-casa do falar» no sentido do uso ilimi-tado, vazio e oco do discurso, que é a sua perda. Manter a proximidadecomo verdade é dar consistência ao que, de outro modo, flui e sossobra nopassado do esquecimento e, por isso, a palavra poética jamais pode deixarde se converter em discurso, a fim de sempre e de novo se jogarem as suaspossibilidades de sentido e de penetrar no pensamento de quem pensa 201.

Aos três textos poético, religioso e jurídico, como aliás a todo o falar,subjaz o perguntável, que nos obriga a aceitar a palavra como resposta 202.

No caso do poeta, não se trata do que ele pessoalmente julga ou daquiloque o motiva no seu caso a dizer isto ou aquilo, mas da pergunta a que eleresponde no mundo da poesia. Na nossa experiência de seres temporais, ascoisas fogem-nos, os conteúdos desvanecem-se a ponto de parecerem narecordação cintilações longínquas de brilho quase irreal. Ora, é a palavra poé-tica como enunciação por excelência, que interrompe a fugacidade dotempo, sendo o poeta desafiado a trazer à palavra o que a esta parecia

197 ID., o.c. 54-55.198 ID., o. c.1. c.199 Cf. E. KETTERING , Naehe. Das Denken Martin Heideggers (Pfullingen 1987)

37-65.200 H .- G. GADAMER , «Von der Wahrheit des Wortes» 56.201 ID., o.c . 56-57.202 ID ., Ueber den Beitrag der Dichtkunst bei der Sache nach der Wafhrheit 223.

pp. 227-284 Revista Filosófica de Coimbra - n.° 20 (2001)

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A crítica do nazismo na hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer 281

fechado. Na corrente flutuante das impressões aparece o «estar-na-palavra»como um «estar-em-casa», na sequência da aprendizagem da língua ma-terna, que é a construção primeira de uma ordem crescente de um todo deexperiência linguisticamente interpretado. Com a aprendizagem da línguamaterna sentimo-nos em casa, cresce a confiança na primeira articulaçãode mundo em que permanentemente nos movemos, apesar da correnteflutuante das impressões. Tal confiança desponta da proximidade do pergun-tável, que nos rodeia, pois crescer numa linguagem significa sempre queo mundo se aproximou de nós em determinada ordem e as palavras são aarticulação de fundo, que conduzem à compreensão de mundo, que aflora

ao discurso dos homens. Contudo, a perguntabilidade inesgotável de mundo

obriga a palavra poética finita a ficar na sua proximidade e no seu acesso,

que nela ganham permanência. Neste contexto, é a nossa linguisticidade

que abre o acesso universal a mundo em que se destacam as três formascaracterísticas da linguagem humana: o anúncio da salvação, a sentença que

nos diz o justo e o injusto na sociedade e a palavra poética, que nos mantém

na proximidade do perguntável 203. Como todo o homem, também o cien-

tista e o filósofo devem sempre agradecer ao poeta o facto de as palavras,

que nós falamos, se não degradarem totalmente em moeda desvalorizada

ou até mesmo de morrerem. A esta experiência do poeta soma-se a de todos

os artistas, que destroem, v.g., a linguagem cristalizada das cores, das

formas e dos sons rumo a uma expressão nova e desconhecida 204. Este

caminho deve ser também o da filosofia, cujo destino histórico marcado

pelas vicissitudes do conceito a obriga hoje a tomar consciência do que

autenticamente a caracteriza, a exemplo da criação artística. De facto, a

linguagem conceptual, própria da filosofia, vem-lhe de muito longe, do seu

berço helénico, passou pelas ciências, que no seu ritmo avassalador esque-

ceram a origem da sua linguagem conceptual. Como Vico reconheceu, a

história da linguagem humana é um afastamento crescente da sua origem,

uma progressiva intelectualização, que enfraqueceu cada vez mais a força

criadora originária das palavras, que a actividade do poeta tem por missão

restituir 205. Assim como o poeta serve a palavra originária contra a

permanente desvalorização da moeda quotidiana do falar, o filósofo e a

filosofia têm igual função de serem gerentes do originário na pulsão das

ciências e da vida. O cientista e o homem da civilização tecno-científica,

sem preocupação pela origem, vivem do domínio progressivo das situações

sem qualquer olhar retrospectivo nem memória para o que deu espaço e

203 ID ., o.c. 218-227.204 ID., Das Verhaeltnis der Philosophie zu Kunst und Wissenschaft 34.

205 ID., o.c.1.c.

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possibilidades ao seu actual comportamento. Porque lhes falta a memória

do originário, que abre espaço e possibilidades, a ciência e a praxis de vidanela fundada não são por si mesmas «aí», isto é, na clareira do originário,como, aliás, a produtividade do investigador, do inventor, do técnico e doorganizador. O conceito existencial de «aí», que Gadamer ouviu nas lições

de 1923 em Freiburg e em Marburg, leu em Ser e Tempo (1927) e mais recente-mente na Carta sobre o Humanismo (1946), torna-se o topos espaço-tempo-ral da proximidade do originário. Ao escrever em 1971 sobre a «verdade dapalavra» ou do que nela acontece de desvelamento e da ocultação, Gadamersintetiza nestes termos o sentido de «aí»: «O desvelamento que advém ao

sendo e no qual ele aparece, surge em si mesmo como uni «aí» absoluto,como a luz na descrição aristotélica do 'Nous poietikos' e como a 'clareira',que se rasga no ser e como ser» 206. O próprio relâmpago, que de um golpetorna tudo presente, oferece por curtos momentos a sua presença e, por isso,Heidegger prendeu-se do fascínio da palavra de Heraclito em que se tornaravisível o conúbio do desvelamento e da ocultação, como experiência onto-lógica fundamental. À finitude da existência humana pertence, de modoigualmente originário, a autenticidade e a inautenticidade, o dizer e o taga-relar, a palavra e o silêncio. Pela decisão nascida da angústia perante amorte, um sentido de autenticidade invade não só o silêncio mas tambéma palavra, que é a quebra do silêncio. Assim como a essência da verdadese mantém referida ao «mistério» como ocultamento absoluto, também apalavra e a linguagem se referem existencialmente ao ouvir e ao silênciocomo lugar da verdade do ser-aí autêntico. A enorme tarefa do pensamentoé tornar durável e acolher na palavra, no discurso, que a todos atinge, «esterelâmpago em que de repente se faz claridade». Ao dizer a verdade comodesvelamento e ocultação, a palavra foge à fugacidade do tempo, que tudodevora, para se realizar como «dizente», que permanece e exige validadee duração. No «mistério da escrita» vê Gadamer reforçada esta exigência 207

e daí o valor e o poder implicados na expressão «está escrito». Lutero,relembra Gadamer, traduziu por «palavra» o Logos do prólogo do Evan-gelho de João, mas tal tradução teve por base toda a teologia da palavra,que pelo menos remonta às interpretações de Agostinho sobre a Trindadee subjaz à crença cristã na «palavra da promessa viva, feita carne». Gada-mer restringe a pergunta pela verdade da palavra ao domínio racionalfilosófico em que a palavra é plenamente o que é. No fim, é sempre a pala-vra, que permanece e dura, apesar de pronunciada na unicidade irreversíveldo tempo, como mensagem de salvação, benção ou maldição, como prece,

206 ID., «Von der Wahrheit des Wortes» 39.207 ID., o.c. 40.

pp. 227-284 Revista Filosófica de Coimbra - u.° 20 (2001)

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A crítica do nazismo na hermenêutica filosófica de H.-G. Gadamer 283

mandamento ou lei, como sentença de tribunal, saga de poeta ou princípiofilosófico fundamental 2201. Pela sua relação ao passado concreto da lin-guagem, os conceitos gregos não são criações do nosso espírito, comopensou o conceptualismo na controvérsia medieval dos universais nem sereduzem a sinais, que remetem para uma realidade já conhecida de antemãoe que se pretende fixar e comunicar. Segundo o paradigma helénico, a pala-vra adequada chega-nos pelo cordão umbilical da língua materna, que nosune à terra-mãe misteriosa do ser sempre em excesso sobre as suasmanifestações. Neste contexto, constata Gadamer uma diferença incon-tornável entre a interpretação de uma frase de Platão ou de Aristóteles e ade uma proposição de Kant ou de Leinbiz, pois no caso destes últimos, emvez do regresso à linguagem, onde todo o ser se torna presente, encon-tramos apenas um simulacro seu, formado por uma rede de conceitos. Paraos Gregos, a verdadeira totalidade real torna-se presente pela linguagem e,por isso, «o significado de uma palavra determina-se a partir do todo dalinguagem natural falada, que, como toda a linguagem, torna visível umtodo» 209

O investigador é autêntico se pela filosofia habitar o «aí» ou clareira

por onde luz o fundo das coisas e, por isso, não o satisfaz a mera «empresa»

das ciências em que estas não participam «daquele olhar que vê tudo

originariamente e de novo» 210. A filosofia enquanto amor do originário

cabe «manter desperto este processo interno do nosso ser humano», cuja falta

converte a ciência em empresa a laborar no vazio e sem raízes. A filosofia

tem de interrogar as «evidências» das imagens e visões de mundo desen-

raízadas da historicidade e originalidade do ser e de transcender as visões

epocais, que instrumentalizam e funcionalizam o pensamento, reprimindo

a sua relação ao acontecimento originário do ser. Irredutível a uma mera

função social de qualquer época, a filosofia só está em obra, quando, com

memória do passado e abertura ao futuro desvela o espaço primordial em

que a ciência e as visões de mundo encontram as olvidadas condições da

sua realização 211.

À vontade de poder sem verdade, ao niilismo activo, ao génio da raça

do biologismo ariano opôs Gadamer o modelo socrático do encontro ou

«aí» dialógico, sempre imprevisto e novo, onde ele releu a diferença estóica en-

tre «palavra falada» ou proposta (;^ó'yoç rtpo(poptxóç) e a «palavra interior»,

208 ID., o.c. 37-38.209 ID., «Die Gegenwartsbedeutung der griechischen Philosophie» (1972) in: ID.,

Herineneutische Entwuerfe. Vortraege und Aufsaetze (Tuebingen 2000) 101.

210 ID., «Das Verhaeltnis der Philosophie zu Kunst und Wissenschaft» 35.211 ID., o. c. 36.

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não-dita, da nossa existência perguntante e preguntável (? óyoç a v8tá13Eioç),reencontrada no De Trinitate de S. Agostinho , que nos ensinou que «a pala-vra do coração» é de todas e não de nenhuma língua: «A palavra, que dize-mos no coração, não é grega nem latina nem de qualquer outra língua» (DeTrinitate , XV, cap. X, 19), não fosse ela rasto humano do diálogo trinitáriode Diferentes , da comunhão e solidariedade infinitas, cuja influência na suaobra Gadamer registou nestes termos : «Eu aprendi muito com os livros deAgostinho De Trinitate... A Trindade significa precisamente o limite. Porisso, apenas por analogias humanas nos podemos aproximar » 212. Porém,a pergunta da «palavra interior », de que todo o homem é capaz, descobrenos desnaturados as vítimas da natureza e da história com direito a um lugarna arte, no pensamento e na educação , que lhes é devido, prosseguindo semfim a crítica do Nazismo.

212 ID., «Dialogischer Rueckblick auf das Gesammelte Werk und dessenWirkungsgeschichte » ( 1996) in : J. GRONDIN, Hrsg ., Gadamer Lesebuch (Tuebingen1997) 287-288.

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