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A INFLAÇÃO NORMATIVA E A ABERTURA DO DIREITO L'INFLATION NORMATIVE ET L'OUVERTURE DU DROIT Leonardo D'Avila de Oliveira RESUMO Na atualidade, a velocidade das mudanças sociais se acelera e o direito se vê compelido a aderir a tal rimo para se manter útil. No entanto, quando o direito passa a se modificar de forma excessiva, perde seu potencial regulatório dando lugar a uma inflação normativa. Cabe a este texto dissertar sobre a investigação da inflação normativa associada à crescente abertura do direito sustentada pelas teorias que predominam, as quais, em sua grande maioria, tendem a colocá-lo como uma construção em contraposição ao positivismo normativista. Demonstra-se que a inflação normativa não é necessariamente uma decadência do ordenamento ou de sua sistematicidade, mas que essa relativização dá ao direito um caráter cada vez mais aberto porém casuístico e que o excesso, em vez de decadência, é o maior fundamento da exceção. PALAVRAS-CHAVES: INFLAÇÃO, NORMAS, SISTEMA, ACIDENTE, EXCESSO, EXCEÇÃO RESUME Actuellement, la vitesse des changements dnas la société s’accelère et le droit est obligé a adhérer a ce rithme pour qu’il se maintien utile. Toutefois, quand le droit se modifie excessivement, il perd son potentiel de réglement et fait surgir une inflation normative. Ce texte disserte sur l’investigation de l’inflation normative associé à la croissante ouverture du droit dans ses théories actuelles, lesquelles le comprennent comme une construction et pas comme dans le positivisme normativiste. On démontre que l’inflation normative n’est pas nécessairement une décadence de l’ordre normative ou de sa sistematicité mais, que la rélativisation fait un droit ouvert mais au même temps accidentel e que l'excès, avant d'être une décadence, est la plus grande justification de l'exception. MOT-CLES: INFLATION, NORMES, SYSTÈME, ACCIDENT, EXCÈS, EXCEPTION Introdução 7680

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A INFLAÇÃO NORMATIVA E A ABERTURA DO DIREITO

L'INFLATION NORMATIVE ET L'OUVERTURE DU DROIT

Leonardo D'Avila de Oliveira

RESUMO

Na atualidade, a velocidade das mudanças sociais se acelera e o direito se vê compelido a aderir a tal rimo para se manter útil. No entanto, quando o direito passa a se modificar de forma excessiva, perde seu potencial regulatório dando lugar a uma inflação normativa. Cabe a este texto dissertar sobre a investigação da inflação normativa associada à crescente abertura do direito sustentada pelas teorias que predominam, as quais, em sua grande maioria, tendem a colocá-lo como uma construção em contraposição ao positivismo normativista. Demonstra-se que a inflação normativa não é necessariamente uma decadência do ordenamento ou de sua sistematicidade, mas que essa relativização dá ao direito um caráter cada vez mais aberto porém casuístico e que o excesso, em vez de decadência, é o maior fundamento da exceção.

PALAVRAS-CHAVES: INFLAÇÃO, NORMAS, SISTEMA, ACIDENTE, EXCESSO, EXCEÇÃO

RESUME

Actuellement, la vitesse des changements dnas la société s’accelère et le droit est obligé a adhérer a ce rithme pour qu’il se maintien utile. Toutefois, quand le droit se modifie excessivement, il perd son potentiel de réglement et fait surgir une inflation normative. Ce texte disserte sur l’investigation de l’inflation normative associé à la croissante ouverture du droit dans ses théories actuelles, lesquelles le comprennent comme une construction et pas comme dans le positivisme normativiste. On démontre que l’inflation normative n’est pas nécessairement une décadence de l’ordre normative ou de sa sistematicité mais, que la rélativisation fait un droit ouvert mais au même temps accidentel e que l'excès, avant d'être une décadence, est la plus grande justification de l'exception.

MOT-CLES: INFLATION, NORMES, SYSTÈME, ACCIDENT, EXCÈS, EXCEPTION

Introdução

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Observa-se na teoria contemporânea do direito uma crescente tendência por uma busca de abertura com relação ao normativismo, o qual se fez muito presente na primeira metade do século XX. Tal abertura, por sua vez, não se dá de uma forma ausente de justificação, de teoria ou de necessária sistematização. Tanto na concepção tipicamente neoconstitucionalista quanto na teoria dos sistemas de Luhmann, entre outras, existe uma inegável preocupação com a flexibilização do ordenamento face às novas mudanças sociais, cujo ritmo cada vez mais se acelera de sorte que o direito de cunho estritamente positivista já não consegue acompanhá-las.

No entanto, enquanto novos modelos vêm sendo construídos no direito, não há uma necessária preocupação com o problema do excesso de mudanças dentro do próprio ordenamento, normalmente tidas como conseqüências naturais de um direito que pretenda dar respostas a uma sociedade em constante mutação. Contudo, até que ponto um direito pode querer absorver o ritmo das mudanças sociais de forma a conseguir manter a sua coerência e sistematicidade? Neste contexto, a inflação normativa é um termo que merece ser devidamente conceituado uma vez que, muito embora ela seja reconhecida, muito pouco sobre ela foi pensado.

Sustenta-se que a inflação normativa, antes de dizer respeito apenas à criação excessiva de leis (inflação legislativa) ou mesmo à proliferação de normas de baixa hierarquia, como decretos, instruções normativas, etc, também deve considerar as próprias decisões judiciais e até mesmo os mais diversos atos administrativos. Isto, contudo, não implica criar uma tipificação conforme várias espécies ou modalidades diferentes de normas, já que o que pode servir como principal ponto de apoio para a sustentação deste conceito consiste em uma axiologia para cada caso específico, ou seja, normas ad hoc, noção abrangente o bastante para associar lei, jurisprudência e ato administrativo. Em outras palavras, o ponto de partida para se pensar a proliferação das normas passa a ser a imperatividade da decisão sem estar acompanhada de universalidade, o que faz da prática judiciária, principalmente a jurisprudência, algo cada vez mais casuístico.

Muito embora se possa pensar que quando o ritmo da sociedade se acelera a produção de normas também deva aderir a uma nova velocidade, isto termina por criar uma espécie de ameaça à noção clássica de ordenamento, a qual é imprescindível mesmo aos maiores críticos do direito positivista.

No entanto, por mais que esta aceleração no direito possa hoje chamar atenção aos estudos dos juristas, seria forçoso pensar este fenômeno como algo exclusivo da época recente, como se algum dia houvesse existido um ordenamento jurídico perfeito e que conseguisse ter uma imperatividade que fosse completamente condizente com o mundo dos fatos. É por tal razão que a observação da inflação normativa como decadência do ordenamento seria uma conclusão precipitada enquanto não se observa a relação mesma que existe entre excesso de normas e ordenamento jurídico. O ordenamento em si, desde que se respeite os procedimentos de criação de normas não é formalmente ameaçado. O mesmo não se pode dizer da sistematicidade do ordenamento, a qual, como se demonstrará, é fonte de inúmeras manobrais intelectuais por parte da teoria do direito no sentido de manter um sistema, ainda que maleável. Cumpre, portanto, repensar a distinção entre sistema e acidentes desse mesmo sistema bem como sua relação aos fatos sem cair em um retorno nostálgico ao normativismo, o que seria uma desconsideração completa da preocupação dos autores contemporâneos da teoria do direito. Com certeza estes tinham alguma coisa a dizer. Analisar todas as teorias

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individualmente, no entanto, seria inviável neste artigo, razão pela qual cumpre tomá-las em conjunto e apenas no que diz respeito a uma abertura de sistematização. Cumpre, portanto, estabelecer o que estas teorias que primam por um direito mais flexível e a um sistema mais genérico – um direito como construção – ameaçam os pressupostos mínimos de ordenamento jurídico, do qual não podem e nem querem dispor.

1. Excesso de normas e crise de legalidade: leis, jurisprudência e atos administrativos.

Como salienta Jean-fraçois Lyotard, o tempo se acelera na modernidade, sobretudo no pós-guerra, o que evidencia a verdade de que “o desenvolvimento impõe que se ganhe tempo. Andar depressa é esquecer depressa, reter apenas a informação útil no momento, como acontece com a ‘leitura rápida’.”[1] A sociedade é cada vez mais dinâmica e as comunicações reduzem as distâncias da informação a praticamente zero. No entanto, com o avanço também surge a deficiência de assimilação de um tempo marcado pelo efêmero.[2]

A princípio, o ordenamento jurídico não poderia ser simplesmente enquadrado neste contexto uma vez que não necessariamente existe um paralelismo simples entre a aplicação do direito e os anseios e mudanças sociais. Entretanto, com a progressiva descrença no direito estritamente positivista, o direito posto passa também a se aproximar novamente dos fatos sociais e de discussões sobre valores. Muito embora haja diferença de ritmo entre um direito mais lento e uma sociedade cada vez mais dinâmica, é certo que o direito passa a não mais desconsiderar a realidade social para que não perca sua eficácia e caia no desuso[3]. Sobre esta aproximação, evidenciam-se as teorias neoconstitucionalistas, o garantismo, os sitemas, a argumentação, etc.[4] Mas esta ingerência dos fatos nos direitos (e vice versa) também não é isenta de problemas. Eis porque Danilo Zolo na introdução da obra “Estado de Direito: história teoria e crítica”, em co-autoria com Pietro Costa argumenta que o acúmulo das mudanças sociais não pode ser absorvido intantaneamente pelo direito, a não ser à custa de sua própria lógica.

O processo de diferenciação dos subsistemas sociais estimula o ordenamento jurídico a perseguir essa evolução com uma crescente produção de normas, de conteúdo sempre mais específico e particular. Mas o direito é um instrumento muito mais rígido e lento com respeito à flexibilidade e rapidez evolutiva de subsistemas como, em particular, o científico-tecnológico e o econômico, que são dotados de alta capacidade de autoprogramação e de autocorreção. Desse fato deriva a crise inflacionária do direito, que traz consigo desvalorização, redundância e instabilidade normativa e, enfim, impotência reguladora.[5]

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Esta particularização crescente de normas, portanto, quando é tomada em relação aos casos específicos que o direito sempre se arroga a tutelar, com certeza é tratada como benéfica uma vez que reflete a evolução social ou mesmo a tentativa do direito de lidar com um mundo cada vez mais complexo. No entanto, se o fenômeno da proliferação normativa for observado em relação à idéia clássica de ordenamento, sobretudo a de Hans Kelsen relida por Norberto Boobio[6], da qual mesmo o neoconstitucionalismo não parece se opor completamente[7], observar-se-á que um excesso de particularização prioriza a normatividade em detrimento da legalidade. Em outras palavras, a constante adequação do ordenamento a casos específicos anunciaria o seu próprio fim na medida em que a regra passa a ser a exceção e o direito não emite decisões baseadas em um sistema, mas em uma arbitrariedade que lida diretamente com os fatos.[8]

Por um lado, as normas não necessariamente perderiam a sua validade porque permanecem emissões de uma autoridade competente e dentro de um ordenamento jurídico. Uma das principais diferenças de um ordenamento “sadio” para um inflacionado, ou seja, com legalidade comprometida, consiste que a validade em vez de estar centrada na convivência entre aspecto material e formal[9], persiste apenas na formalidade, ou seja, na autoridade que aplica e não no sentido objetivado por uma norma superior dentro da hierarquia escalonada das normas.

Tudo isto indica que a conceituação de inflação normativa não diz respeito apenas ao excesso de leis, por isso evita-se falar aqui em inflação legislativa. Ao contrário, cumpre voltar as atenções às normas[10], as quais podem ser percebidas em diferentes âmbitos do direito, como na jurisprudência e nos diversos atos normativos. O que mais interessa para a conceituação é observar como o direito vem apresentando sinais de deficiência de legalidade tanto em razão da prática judiciária que procura se ater cada vez mais aos fatos e às necessidades momentâneas bem como a teoria do direito, diante das mudanças sociais busca uma progressiva abertura sistemática. Diante deste quadro, a inflação normativa muito mais corresponde a um excesso que mantém toda a imperatividade do ordenamento sem necessariamente manter a universalidade, visto que se dá caso a caso ou segundo critérios de decisão cada vez mais abertos.

Com relação ao acúmulo de leis para disciplinar a vida em sociedade, com certeza podem se dar de forma excessiva de sorte que atentem para toda a sistematicidade do ordenamento jurídico. Neste sentido, o tributarista Hugo de Brito Machado se queixa com relação ao excesso de mudanças que ocorrem a cada ano na regulação tributária:

Pior do que a rapidez das mudanças, porém, é a falta de respeito dos elaboradores dessas normas à lógica e aos conceitos jurídicos. Legislam como se o Direito não fosse um sistema, tornando extremamente difícil, quase impossível, o trabalho da doutrina de explicar as normas à luz da teoria jurídica.[11]

No entanto, a princípio, este excesso de leis não contradiz o ordenamento jurídico uma vez que o art. 30 do Decreto-lei de Introdução ao Código Civil é enfático em afirmar que ninguém se escusa de não conhecer a lei. Por mais absurdo que seja, neste caso ainda não se pode falar claramente de uma ameaça ao próprio ordenamento jurídico. O

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principal efeito seria a impossível cognição do conjunto das leis uma vez que elas mudam de forma muito rápida. Mas, se respeitado o período de vacância e o procedimento legal, não há, a princípio, ilegalidade na criação excessiva de leis. O que se vê realmente ameaçado é a sistematicidade do ordenamento, ou seja, aquilo que não se escreve no texto legal, mas que se pressupõe ao seu funcionamento. Assim, a princípio, não é a lógica da subsunção que é ameaçada, mas a sistematicidade e organicidade do ordenamento, como irregularidades quanto à retroatividade das leis, incompatibilidade de textos ou simplesmente a criação de diplomas legais marcados pelo casuísmo. Este fenômeno chega até mesmo nas disposições constitucionais, a exemplo do que ocorreu com a Emenda Constitucional 41/2003 quando passou a cobrar que os já pensionistas voltassem a contribuir para a previdenciária ainda que já houvesse se consolidado o ato jurídico perfeito no momento da aposentadoria.

Entretanto, a inflação normativa, como já se sustentou, não é sinônimo de inflação legislativa. Aquela é muito mais abrangente do que esta. Portanto, as decisões dos juízes também podem ser lidas quando se pensa em normatividade. Isto é um gesto interessante porque, por mais, que os parlamentares continuem a produzir leis em excesso, o mesmo se poderia dizer dos magistrados, com a diferença de que, neste último caso, a grade maioria das normas não têm aplicabilidade erga omnes.

Portanto, sobre a capacidade decisória dos magistrados, vale a pena exemplificar o caso da com uma argumentação que vem sendo aceita no Supremo Tribunal Federal recentemente. Trata-se de uma fala do ministro Eros Grau, o qual, sustenta que, os casos especiais, devem ser julgados como exceção. Eis um trecho sem cortes do entendimento do tribunal em um Agravo Regimental em reclamatória trabalhista :

Ocorre, no entanto, que a situação de fato de que nestes autos se cuida consubstancia uma exceção. Com efeito, estamos diante de uma situação singular, exceção, e, como observa CARL SCHMITT, as normas só valem para as situações normais. A normalidade da situação que pressupõem é um elemento básico do seu “valer”. A propósito, MAURICE HAURIOU menciona “... cette idée très juste que les lois ne sont faites que pour un certain état normal de la société, et que, si cet état normal est modifié, il est natural que les lois et leurs garanties soient suspendus”. E prossegue: “C’est très joli, les lois; mais il faut avoir le temps de les faire, et il s’agit de ne pas être mort avant qu’elles ne soient faites”.

6. O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade, uma zona de indiferença capturada pela norma. De sorte que não é a exceção que se subtrai à norma, mas ela que, suspendendo-se, dá lugar à exceção --- apenas desse modo ela se constitui como regra, mantendo-se em relação com a exceção. A esta Corte, sempre que necessário, incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Ao fazê-lo, não se afasta do ordenamento, eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção. [12]

É de se surpreender que a Corte mais importante do país sustente que a manutenção do ordenamento somente se dá com a sua própria suspensão. Para tanto, justifica-se este

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entendimento com a teoria de Carl Schmitt, sem dúvida um grande constitucionalista do século XX mas que, apesar de tudo, foi o jurista que se debruçou em justificar o regime de Hitler na Alemanha Nazista.[13] Certamente tal acórdão não vem para indicar as concepções políticas dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, sobretudo a do relator. Muito pelo contrário, é curioso observar como, na deficiência do direito em dar conta da realidade social e, por outro lado, na necessidade que os magistrados têm de julgar, o ordenamento, em casos extremos, se dá na sua própria suspensão.[14] Por bem ou por mal, o pesquisador já não pode desconsiderar este tipo de teoria e de argumentação. A falha entre norma (linguagem) e realidade (fato), portanto, é algo que deve ser explorado com afinco, inclusive para a conceituação de inflação normativa já que o movimento excessivo de produção normativa e decisão se dá, em parte, por uma deficiência das sistematizações em relação à sociedade.

Por fim, a inflação normativa não diz respeito apenas à quantidade de leis ou à qualidade das decisões, mas também nos mais diversos atos normativos, como, por exemplo, no âmbito da administração pública. Nada impede que o gestor atue com imperatividade, mas sem a devida universalidade, ou seja, que se prime pela arbitrariedade em detrimento da discricionariedade, que é a decisão limitada pela legalidade. Ainda que haja a possibilidade de enquadramento do gestor dentro de improbidade administrativa, enquanto não for provado o contrário, as suas decisões serão formalmente válidas. Além disso, em caso de urgência, o administrador deve dar uma resposta rápida e, por diversas vezes, justifica-se o descumprimento de certos procedimentos legais por motivo de urgência. Este tipo de caso mostra o direito em sua última fronteira e relembra que os fatos sempre surpreendem o direito escrito, razão pela qual ele necessita de ações que não se enquadram em conformidade com o ordenamento para poder mantê-lo. A suspeita que surge com essa imperatividade sem universalidade, no entanto, passa a ser a de que, além dos acidentes justificarem os sistemas, eles não são apenas uma novidade no mundo dos fatos que justifica a modificação do direito. Nem sempre, no entanto, se pode dizer que este apelo aos fatos seja algo concreto, já que a reivindicação é também um trabalho retórico. Sobre este assunto, que considera os fatos como justificadores ou pretexto para normas de urgência, diz o professor francês Pierre-Laurent Frier que

Sem dúvida, numerosas obras foram dedicadas aos poderes de crise e à jurisprudência das circunstâncias excepcionais. Se elas parecem concernir, ao menos indiretamente, ao tema da urgência, esses livros permanecem, no entanto, em função mesmo da matéria escolhida, parciais. Eles vislumbram essencialmente as hipóteses segundo as quais o Estado estaria confrontado a uma situação extraordinária. Também negligenciam, pela força das coisas, uma parte do problema da urgência posto que esta, e a doutrina é unânime sobre este aspecto, está presente em conjunturas muito mais banais: ela pode existir alheia a qualquer crise.[15]

Mas como se pode reconhecer que tanto as leis contrárias ao ordenamento jurídico[16], como as decisões que o suspendem ou os atos administrativos arbitrários motivados por

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urgência sejam, ainda assim, direito? Outra pergunta que surge a partir daí seria: como a inflação normativa, que se dá em diversos âmbitos, pode ser conceituada se, a princípio, o ordenamento pode manter-se, como indicou o voto de Eros Grau baseado em Carl Schmitt, mesmo em sua suspensão? Estas perguntas levam à conclusão de que qualquer conceituação acerca da inflação normativa ou da queda de legalidade depende diretamente de concepções como ordenamento e sistema jurídico. Não bastaria buscar em número de leis, atos administrativos ou mesmo em decisões contra legem visto que em primeiro lugar, poder-se-ia sempre argüir em contrário no sentido de que aqueles casos elencados são excepcionais e, em segundo lugar, que dizer se uma lei é inconstitucional ou se uma decisão está contra o ordenamento é algo muito subjetivo.

Portanto, não seria suficiente para reconhecer um direito excessivo e desvalorizado a simples busca empírica de dados que comprovem a hipótese se, por outro lado, não for observado os diversos tipos de sistematização presentes na teoria do direito. Isto porque, ainda que o ordenamento sobreviva mesmo à sua suspensão, como em uma decisão absurda de um tribunal superior, o que mais fica comprometido não é seu funcionamento, mas a sua sistematicidade. Isto porque todos os casos vistos acima podem ser contornados por algum tipo de justificativa ou mesmo pela ignorância para que o problema da inflação normativa seja omitido. Por outro lado, pode-se observar como a tendência do direito à abertura sistemática demonstra-se uma tentativa de lidar com a inflação normativa e a crise de legalidade que dela advém.

2. A maleabilidade do ordenamento e a abrangência da noção de sistema na teoria do direito contemporânea

A pesquisa do autor italiano Mario Losano, que foi aluno de Norberto Bobbio, é vital para a compreensão das diversas divisões e a pluralidade de concepções de sistema dentro do mundo do direito. Sua principal contribuição foi classificar localizar a idéia de sistema dentro das teorias do direito ocidental. Segundo o autor, poder-se-ia entender que algumas teorias, como aquelas do direito natural, primam por um sistema externo ao ordenamento e que, portanto, influencia as leis ainda que não se possa determiná-lo exatamente, como seria o caso de uma Lei da razão ou da sociedade. Por outro lado, poder-se-ia pensar em um sistema interno ao ordenamento e que bastaria o seu funcionamento para se tornar legítimo, como seria o caso do positivismo jurídico, sobretudo o da concepção de Kelsen. Dentro desta divisão, o autor procura identificar as teorias do direito que sucedem o positivismo jurídico, portanto a grande maioria daquelas da segunda metade do século XX, como escritos que prescrevem novamente uma volta do sistema externo, visto que, em linhas gerais, volta a haver uma maior aproximação entre a teoria do direito e as ciências sociais.

A segunda metade do século XX é caracterizada por uma crescente vastidão e pelo caráter abstrato dos sistemas jurídicos, pois os grandes sistemas de pensamento voltam a se ocupar do direito. Porém, esses grandes sistemas já não são os dos filósofos, mas os dos sociólogos, dos lingüistas ou dos cientistas: são superteorias que atribuem ao direito

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um espaço no edifício novamente abrangente, exatamente como tinha ocorrido no século XIX com os grandes sistemas filosóficos. O direito recebe assim das superteorias aqueles modernos princípios metodológicos que os juristas parecem ansiosamente buscar fora do direito. (LOSANO, 2008, p. xxxuii)

Por mais que se possa observar que haja com o crescimento do dinamismo social uma proliferação de normas de todos os gêneros que tentam lidar com a complexidade da vida, não se pode deixar de mencionar que boa parte da teoria do direito contemporânea, entre elas a de cunho neoconstitucionalista, entende que a sociedade deve ser regida por leis cada vez mais genéricas, como os princípios e garantias, desde que limitados pela Constituição. Neste contexto, quando já não se acredita no dogma da completude que dava tranqüilidade ao juspositivismo, as especificidades contemporâneas somente podem ser decididas enquanto especificidade e, para que não haja uma completa desregulamentação, a fidelidade à constituição serve de paradigma à decisão do magistrado ou à argumentação dos demais operadores jurídicos. Susanna Pozzolo, ao tratar do neoconstitucionalismo compreende que

Esse modelo jurídico apresenta uma visão universalista do direito constitucional a qual representa uma dimensão axiológica do direito constitucional, a qual representa uma dimensão axiológica do jurídico, em que os valores não são simplesmente expressões de um ponto de vista, mas a expressão de um ideal moral universal. Nesse modelo, a Constituição não é somente ‘norma de autorização’ e limite do direito infraconstitucional; esta apresenta um conteúdo que sustenta todo o sistema jurídico.[17]

Na visão da autora supracitada, o que mais marcaria a superação do positivismo jurídico pelo neoconstitucionalismo seria a interpretação moral da constituição vinculada a valores positivados por ela. No entanto, esta nova forma de se pensar o direito não seria um novo modelo imposto de forma vertical, mas, em última hipótese, uma modificação do próprio modelo positivista quando este já não se adéqua ao mundo de hoje. O que importa para o reconhecimento da inflação normativa, no entanto, é o fato de que o normativismo do direito positivo e os seus procedimentos de produção normativa não necessariamente são superados pelo modelo neoconstitucional, que vem principalmente para acrescer ao direito um fundamento axiológico baseado sobretudo na força normativa dos princípios. “A positivação dos princípios, efetivamente, é aquilo que permite ao neoconstitucionalismo negar a distinção entre justiça e validade, reconhecendo ao direito uma tendência intrínseca à satisfação do ideal moral.”[18]

Já no entender de Zagrebelsky, também defensor de um neoconstitucionalismo que adéqüe as regras a princípios,

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La dogmática constitucional debe ser como el líquido donde las sustancias que se vierten – los conceptos – mantienen su individualidad y coexisten sin choques destructivos, aunque com ciertos movimientos de oscilasción, y, em todo caso, sin que jamás un sólo componente pueda imponerse o eliminar a los demás. Puesto que no puede haber superación en una síntesis conceptual que fije de una vez por todas las relaciones entre las partes, degradándolas a simples elementos constitutivos de una realidad conceptual que las englobe con absoluta fijeza, la formulación de una dogmática rígida no puede ser el objetivo de la ciencia constitucional.[19]

A liquidez institucional, que é tema muito presente no filósofo Zygmunt Bauman, o qual tem insistentemente repetido que as “organizações sociais [...] não podem manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam”[20], como se pode observar com a fala de Zagrebelsky, já pode ser observada diretamente no campo da teoria direito. No entanto, fica evidente que o que é motivo de maior preocupação para o filósofo é um modelo para o jurista italiano.[21] Para além da direta associação entre o dinamismo social e a crise do modelo positivista normativista e a conseqüente abertura do direito rumo a uma flexibilização que esteja a par da necessidade de mudanças da atualidade, o que não fica explícito, é como pode haver, por um lado, uma proliferação de normas, conforme alerta Danilo Zolo, e, por outro, um apego maior à generalidade, como garantias e princípios constitucionais. E, por mais que Susanna Pozollo indique que não há na atualidade um modelo jurídico que seja estranho ao positivismo, mas que parte de sua própria obsolescência, a dinâmica gerada pela complementação de um modelo baseado na norma e outro na decisão (ainda que fundamentada) ainda não foi propriamente explorada nem no que diz respeito ao seu funcionamento e nem com relação às suas conseqüências. A conceituação de inflação normativa deve abarcar tanto o problema da decisão quanto o problema da subsunção. O que pode unir ambas as noções é justamente a falta de universalidade de um direito cada vez mais ad hoc, portanto, que não consegue se distinguir nitidamente dos fatos.

Esta conseqüente flexibilização do direito, no entanto, não é tratada somente por Zagrebelsky e tampouco é de exclusividade dos neoconstitucionalistas[22]. Um outro tipo de exemplo de teoria do direito que pretende uma certa abertura do sistema consiste em observar o direito enquanto procedimento. Por mais que estes trabalhem sempre extremamente próximos ao problema e, por exemplo, a teoria dos sistemas de Nicklas Luhmann constantemente acuse a produção excessiva de leis, ainda que operada legalmente. Segundo o autor, em vez do principal problema às mudanças do direito se dar com relação às irregularidades, o que exsurge como problema é o da “segurança contra as ações legais envolvendo, portanto, complicadas disposições contrárias no próprio direito, que exigem constantes controles e adaptações jurídico-políticos.”[23] Ainda segundo o autor, “o direito tornou-se definitivamente tão complexo ao ponto do indivíduo não mais poder conhecê-lo.”[24] Marcelo Neves, com muita propriedade, aproxima os pensamentos de Luhmann e Habermas de forma a encontrar uma mútua complementação no que diz respeito ao dissenso dos sistemas sociais e a sua conseqüente legitimação pela procedimentalização ao passo que, a partir de Habermas, entende ser interessante que as discussões não se limitem a elementos estritamente

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internos ao direito, de forma que possa responder a uma discursividade que lhe é estranha, ou seja, uma melhor relação entre facticidade e validade.

Pode-se afirmar que Luhmann procura enfatizar sociologicamente o dissenso em torno de conteúdos morais na sociedade moderna. Habermas discute a construção do consenso mediante procedimentos com potencialidade normativa universal como característica da modernidade, sem desconhecer a diversidade de conteúdos valorativos. [...] De acordo com essa releitura da relação entre esses dois paradigmas teóricos, a modernidade, em face da ampla divergência em torno dos conteúdos morais ou valorativos, implica a exigência funcional e normativa da absorção do dissenso conteudístico através do consenso procedimental.[25]

Enquanto os acidentes gerados pela hipercomplexidade se impõem ao direito, os autores concordam quanto a um procedimento comum que possa garantir legitimidade às adequações do sistema jurídico. De qualquer forma, não se lida com um direito estritamente normativo ou formalista, mas a uma concepção de direito como construção, o que é uma tendência comum nas teorias jurídicas a partir da segunda metade do século XX.

Sem dúvida não cabe a este artigo esgotar toda a discussão que existe entre a construção da idéia de sistema tanto no neoconstitucionalismo quanto na teoria dos sistemas de Luhmann ou da razão comunicativa de Habermas. Cada uma delas tem especificidades que, se levadas em conta, podem trazer elementos à discussão da inflação normativa. Também não se quer dizer que são apenas essas as teorias que se pensaram recentemente e muito menos que são apenas elas que tomam um direito como construção. Neste sentido, poderia ser lembrada a hermenêutica de Ronald Dworkin, a nova retórica de Chaïm Perelmann ou a teoria da argumentação de Alexy, a teoria crítica, entre muitas outras possíveis. Todas elas, apesar de divergirem, apresentam o traço comum de uma abertura sistemática se comparadas com a dureza do positivismo jurídico. Portanto, em um passo inicial, que consiste no reconhecimento do problema, o mais curioso é a constatação de que praticamente a grande maioria das teorias recentes do direito trazem um sistema aberto se comparado com aquele da primeira metade do século XX em autores como Kelsen ou mesmo Schmitt. O direito já não é norma ou decisão, mas, cada uma a sua maneira, coloca um direito como construção, o que justifica Mario Losano[26] descrever tais teorias como uma abertura do direito à abstração.

É claro que esta abertura não é gratuita. François Ost, por exemplo, sustenta que a constante flexibilização do direito em razão de necessidades sócio-econômicas tende a criar uma situação de crise dentro do ordenamento jurídico o qual não conseguiria manter imperatividade concomitante à universalidade. O resultado seria um direito efêmero e impossível de ser assimilado pelo sujeito de direitos.

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A urgência, temporalidade do excepcional, tende a impor-se como tempo normal – a exceção que anula a regra, de algum modo. Provocando curto-circuito nas formas, nos prazos, e nos processos, a urgência, autorizando-se o estado de necessidade (necessidade que cria a lei), erige-se, assim, em ‘salvo conduto generalizado’. Disso resulta um risco de tipo novo, a insegurança jurídica: não insegurança econômico-social (perigo externo), mas risco ‘endógeno’, produto colateral e indesejável de uma engenharia jurídica cujo ritmo disparou. (OST, 2005b, p. 338-339)

Com certeza a preocupação do jurista belga é atualíssima. No entanto, o pensamento sobre a inflação normativa já não pode acreditar que ela consiste apenas em um processo de “acidentalização” do sistema, já que a própria busca por um sistema é quem diz o que é acidentário e o que não é. Por outro lado, também não se pode crer que a inflação normativa, ou o excesso que se opera na dinâmica sistema-acidente, seja algo inédito das últimas três décadas ou algum efeito da globalização, etc. Sem dúvida elementos de sociologia valem para explicá-la, mas não são os únicos. A sistematização é o que melhor indica – como um sintoma – de um direito inflacionado pelo excesso de normas em detrimento da legalidade.

3. A inflação normativa como prática da decisão acerca de uma “crise” que nunca deixa de ser

A inflação normativa pode servir de chave para se compreender o direito como algo acometido por uma crise de legalidade. José Eduardo C. O. Faria, sobre o assunto, ensina que

Em termos organizacionais, o Poder Judiciário foi estruturado para operar sob a égide dos códigos processuais civil, penal e trabalhista, cujos prazos e ritos são incompatíveis com a multiplicidade de lógicas, procedimentos decisórios, ritmos e horizontes temporais hoje presentes na economia globalizada. O tempo do processo judicial é o tempo diferido. O tempo da economia globalizada é o real, isto é, o tempo da simultaneidade. Além disso, o Poder Judiciário também não costuma dispor de meios materiais nem de condições técnicas para tornar possível a compreensão, em termos de racionalidade substantiva, dos litígios inerentes a contextos socioeconômicos cada vez mais complexos e transnacionalizados.[27]

No entanto, ainda que se concorde com uma prática do direito em crise, provavelmente impulsionada pelo aspecto sociológico da globalização sócio-econômica das últimas décadas do século XX, em um plano conceitual, observa-se que a flexibilização do normativismo ou a concepção de um direito como sistema aberto e que esteja a par da

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filosofia, da história ou da sociologia não é exatamente um fenômeno completamente novo nas teorias do direito.

Mesmo que se lide com a sociologia do direito, é certo que já em 1959 Jean Carbonnier havia se ocupado do tema da crise do direito em razão de necessidades sociais e econômicas. Este texto demonstra que a crise de 1929 serviu também a justificações para uma suspensão do ordenamento padrão para a emergência de um direito flexível.

Poderia ser uma característica de nosso tempo que o direito, pela primeira vez, participa da angústia histórica. O direito, que até então dispensava certezas, que era cheio de certezas sobre si, coluna de mármore, mesa de bronze. Certamente, a partir de um dado momento, os juristas descobriram que o direito se movimentava. Léon Duguit, desde 1912 e Gaston Morin em 1920 transformaram em clássicas as transformações do direito privado no Código Napoleônico, a revolta dos fatos contra o código. Mas essas transformações, essas revoltas eram retratadas como um progresso pacífico, e a narrativa se inseria numa visão otimista do advir das sociedades. O tom iria logo se entristecer porque o céu se tornava mais sombrio. Quando, a partir de 1930, deu-se a queda da economia, um pouco em cada canto do mundo, começam a surgir recursos jurídicos inéditos (inéditos nos sistemas liberais), moratórias de dívidas e de constituições, direito de urgência, direito de crise, o que levou muitos a profetizar que o direito de crise havia desencadeado a crise do direito.[28]

Há que se entender, portanto, que tanto a noção de ordenamento quanto a de sistema variam de acordo com as épocas, como foi o contexto das codificações no século XIX. Não se sustenta que a natureza do direito sofre algum ir e vir natural ou progresso evolutivo em seu conceito, mas que os conceitos de sistema são representações que se colocam, algumas vezes, como dominantes. Por esta razão a teoria do direito no que diz respeito à inflação normativa não pode deixar de considerar que o excesso de normas somente faz sentido dentro de uma determinada visão de sistema; além disso, os sistemas variaram dentro do direito continental, chegando a algumas vezes a haver intensos debates entre diversas concepções, como foi o caso do dissenso entre o direito codificado de Thibaut e o direito como construção cultural para a escola histórica, cujo autor mais célebre foi Savigny. O historiador do direito António Manuel Hespanha, sobre o tema das codificações, compreende que “esta animosidade em relação à codificação ficou bem traduzida numa famosa polémica entre Savigny e Thibaut, este último favorável a uma codificação geral do direito alemão, que o primeiro considerava artificial e inorgânica.”[29]

Já na teoria constitucional é exemplar a teoria de Ferdinand Lassale a qual trouxe à tona a problemática dos fatos e, portanto, teorizou a constituição real em contraposição ao modelo formal pregado pelos juristas que o precederam. Sua influência seria sentida inclusive no século, como salienta Paulo Bonavides.

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A teoria material da Constituição, partindo de Lassale no século XIX, teve durante a Constituição de Weimar na Alemanha os seus mais brilhantes teoristas.

Com efeito, Rudolf Smend, Carl Schmitt, Hermann Heller trazem a alternativa social e anti-individualista, pressentindo pois a queda definitiva de uma ordem jurídica assentada em pressupostos lógicos e formalistas daquele positivismo que nas Constituições chegava aparentemente ao ocaso. [30]

O que é importante destacar é que na segunda metade do século XX o direito passa a ser tomado como uma construção cuja origem é inalcançável, mas que, nem por isso, perde seu valor ou sua capacidade regulatória. A hermenêutica passa assim a ser novamente preponderante no pensamento jurídico diante das insuficiências do dogmatismo positivista. Recentemente, contudo, a interpretação passa a se conflitar com as teorias da argumentação, principalmente com a de Robert Alexy ou com a nova retórica de Chaïm Perelmann, para as quais o jurista não mais tem no texto da norma sua segurança para o direito. Portanto, a leitura e a ponderação entre princípios e regras se torna imprescindível. Por outro lado, as teorias que primam pela análise procedimental do direito, como a razão comunicativa de Habermas ou a teoria dos sistemas de Luhmann, por mais que se diferencie das interpretativas ou argumentativas, não pensam em legitimar o direito apenas com a norma jurídica, mas pretendem encontrar nele uma forma regrada de resposta aos anseios da sociedade.

O que interessa marcar, no entanto, é que tais teorias podem ser muito elucidativas tomadas em conjunto, ainda que isto soe como algo estranho ou de difícil compreensão. Isto porque, em sua grade maioria, fica evidente uma tendência em estabelecer critérios que dêem ao direito uma aproximação mais coerente com os fatos para que ele seja construído de forma mais harmônica e genérica. Para tanto, cada uma dessas teorias, como se observou, estabelece uma diferente noção de sistema, mas sempre o tomando como algo aberto e que somente se manifesta em um direito enquanto construção, de modo a superar o positivismo jurídico. O sistema passa, assim, a trabalhar em face do acidente que a cada momento se apresenta ao jurista, e, em vez de apresentar uma resposta interna ao próprio sistema, as teorias da segunda metade do século XX tendem a compor uma superação da cisão entre direito e fato. Paulo Bonavides, que é um autor bastante popular no meio acadêmico alerta até mesmo em seu manual para o fato de que atualmente “o sistema constitucional surge pois como expressão elástica e flexível, que nos permite perceber o sentido tomado pela Constituição em face da ambiência social, que ela reflete, e a cujos influxos está sujeita.”[31]

O que interessa para a conceituação de inflação normativa consiste em saber que tipo de representações são firmadas no propósito de sistematização frente a um mundo que é tido por caótico. Mas o trabalho de sistematização somente faz sentido pelos acidentes que se apresentam infinitamente ao jurista, a princípio, identificado com a irrepresentabilidade dos fatos. Sendo assim, em vez de se tomar a inflação normativa como um excesso de acidentes face a um limite do sistema, o que vem à tona é pensá-la como um movimento acelerado dessas dicotomias sendo apenas uma pista de que algo exterior ao próprio sistema precisa ser capturado. Eis que os acidentes não ameaçam o sistema, mas são sua própria razão de ser. Não levar em consideração que o direito se modifica sempre relacionado a uma idéia de sistema consiste em acreditar que um dia o

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sistema existiu de forma absoluta ou que em algum momento o direito chegou a ser totalmente assimilável ao sujeito de direitos.

Portanto, uma vez que a teoria do direito predominantemente pós-positivista toma força a partir da segunda metade do século XX e prega uma maior abertura dentro da noção de sistema, a flexibilização do ordenamento em razão das mudanças sociais passa a servir de objeto a uma nova gama estudos que questionam as conseqüências deste tipo de posicionamento. Eis que a partir de seus binarismos e de suas fragilidades é possível enquadrar a inflação normativa como sintoma de um processo de queda de legalidade que se opera em conjunto com a abertura ou flexibilização sistemática.[32]

Portanto, as teorias que sustentam um direito como construção pretendem uma maior dinamicidade entre o direito e a sua capacidade de dar resposta aos fatos. No entanto, uma inflação de normas que acarretaria uma crise de legalidade, portanto um excesso de acidentes de um sistema, não pode ser entendida como uma de-sistematização do direito. Isto porque a compreensão dos acidentes como passo a frente e desvio, reforço e ameaça não são exatamente cabíveis já que, primeiramente, o acidente é o que dá razão de ser ao sistema de forma que este binômio nunca fica resolvido; em segundo lugar, a necessidade não é sempre um choque do direito com os fatos, mas manifestação de força que constrói a própria urgência e faz da própria indistinção o seu paradigma. Essa junção entre a linguagem e o mundo, pondera Giorgio Agamben, somente se torna possível na suspensão do próprio direito. Dessa forma, “a união impossível entre norma e realidade, e a conseqüente constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma da exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação”.[33] Dentro de tal contexto, a inflação normativa não é patologia, mas testemunho da força que precede o ordenamento e que somente se pode reconhecê-la indiretamente, ou seja, nas falhas do próprio direito. Isto indica que é possível suspeitar sobre a própria natureza de um direito inflacionado, não como conseqüência de um excesso de facticidade por parte dos teóricos e operadores jurídicos, mas que as próprias necessidades podem ser discursividades construídas para fins nem sempre dignos de serem mencionados, mas que encontram em um apelo aos fatos seu melhor pretexto.

Considerações Finais

A teoria do direito do século XX esteve sempre pautada por um intuito de sistematização. Enquanto na primeira metade do século se observa um sistema fechado dentro da lógica da subsunção, na segunda, os sistemas passam a buscar uma maior abertura de critérios sob o pretexto de haver uma maior correspondência do direito com a dinamicidade da sociedade atual. Isto indica que o fenômeno da inflação normativa está diretamente ligado a uma tentativa teórica de se compreender o direito mesmo sob um processo de fragmentação em decorrência de uma proximidade aos fatos. Eis que , em vez de decadência do sistema, o conceito aqui proposto de inflação normativa – que é uma crise de legalidade – consiste em uma hiper-realização do sistema, como que o sistema para algo em particular e a cada vez. A suspeita que surge com essa imperatividade sem universalidade, no entanto, passa a ser a de que, além dos acidentes justificarem os sistemas, eles não são apenas uma novidade no mundo dos fatos que

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justifica a modificação do direito. A interação entre direito e fato é muito mais complexa do que se supõe. Não se trata somente de pensar que os fatos servem de obstáculo e ao mesmo tempo razão de ser do próprio direito. Ambos se influenciam mutuamente e a maior conseqüência disso é que a necessidade a que se apela para a suspensão ou modificação do ordenamento jurídico, a origem da inflação normativa, é, no mais das vezes, construída e não simplesmente dada.

A questão da inflação normativa, antes de ser buscada no número de leis ou na quantidade de decisões contra legem, portanto, é indiscernível da noção de sistema. Contudo, a questão deve ser deslocada de forma que o que seria tomado como deficiência do sistema jurídico passe a ser visto como uma parte dele e até mesmo um pressuposto, o qual pode se apresentar como grande quantia de normas de exceção ou mesmo em arbitrariedades por parte dos intérpretes. Dentro deste enquadramento, a inflação normativa que se deixa entrever por um direito cada vez mais tomado como construção, não pode mais ser tomada somente como desconstrução – avanço misturado a ameaça – necessária do sistema para que se abra uma desconfiança de que a própria necessidade pode ser construída, e que, em última instância, o excesso é exceção.

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[1] LYOTARD, 1990, p. 10.

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[2] No ensaio “O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, Walter Benjamin argumentou que “uma geração que ainda foi à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecia inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.” (BENJAMIN, 1994, p. 198) Eis que sem a capacidade de narrar também foi perdida a capacidade de se intercambiar experiências e, por assim dizer, o homem se encontra numa rotina que justifica a marcha em um tempo tão acelerado que não permite a sua assimilação.

[3] Até mesmo Norberto Bobbio, que foi uma grande teórico do direito positivo, não deixa de desconsiderar que no pós-guerra há uma mudança na atividade jurisdicional que parte do formalismo em direção à funcionalidade. Diz o autor: “o jurista como conservador e transmissor de um corpo de regras já dadas, de que é depositário e guardião; e o jurista como criador, ele mesmo, de regras que transformam – a ele integrando-se e inovando-o – o sistema dado, do qual não é mais apenas receptor, mas também colaborador ativo e, quando necessário, crítico.” Segundo Bobbio esta última opção seria a mais corrente entre os juristas a partir da segunda metade do século XX. (BOBBIO, 2007, p. 37-38)

[4] Apesar de tais teorizações não constituírem o objeto imediato deste artigo, logo elas serão retomadas para uma melhor análise de suas respectivas importâncias.

[5] ZOLO, Danilo. Teoria e crítica do Estado de Direito. In: COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (orgs.) O Estado de Direito: história, teoria e crítica. Tradução de Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 72-73.

[6] BOBBIO, 2008.

[7] Consultar o artigo “Un constitucionalismo ambíguo” de Susanna Pozollo. In: CARBONELL, 2003.

[8] Como logo será visto, não se trata de uma decadência, mas de uma imperatividade sem universalidade.

[9] Na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen (2006), não há uma solução acerca dos fundamentos últimos da validade de uma norma. Por mais que ela se caracterize como o sentido objetivo de um ato de vontade, sendo, para isso, imposta por uma autoridade competente e estando colocada em um ordenamento, o sentido exato destes quesitos não pode ser encontrado. Isto porque pode-se supor que a inserção em um ordenamento se dê pelo sentido do texto fundamentado em uma norma superior (sentido material) ou também se pode colocar que a inserção no ordenamento seja muito mais centrada na qualidade do intérprete bem como na universalidade da decisão (sentido formal). Eis que o desdobramento da validade em formal ou material não pode ser resolvido completamente. Mas é justamente por este choque persiste que se pode sempre continuar a pensar sobre a validade e, assim, sobre o próprio direito positivo.

[10] Consultar nota anterior.

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[11] MACHADO, Hugo de Brito. Inflação normativa. 2003. Disponível em: <://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bd000024.pdf >. Acesso em: 21 abr. 2009.

[12] BRASIL, 2006.

[13] Sobre o assunto, consultar Giorgio Agamben, 2004.

[14] Isto também não justifica que um Ministro apele a este tipo de argumentação. O interesse para o estudo é que, apesar dos argumentos baseados na exceção e fundamentados em Schmitt serem lamentáveis, eles são, sem sombra de dúvida, sintomáticos da situação crítica em que o Direito se vê.

[15] FRIER, 1987, p. 02. Tradução nossa. Original: Sans doute, des nombreux ouvrages ont-ils été consacrés aux pouvoirs de crise et à la jurisprudence des circonstances exceptionelles. S’ils semblent concerner, à tout le moins indirectement, le thème de l’urgence, ces livres restent, cependant, en fonction même du sujet choisi, partiels. Ils envisagent essenciellement les hypothèse où l’État est confronté à une situation extraordinaire. Aussi negligent-ils, par la force même des choses, une partie du problème de l’urgence puisque celle-ci, et la doctrine est unanime sur ce point, est présente dans des conjonctures beaucoup plus banales : elle peut exister en dehors de toute crise.

[16] Propositalmente não se fala em desrespeito à Constituição porque nada impede que a própria Constituição seja contrária aos princípios gerais de direito ou a uma idéia básica de ordenamento.

[17] DUARTE, Écio Oto Ramos; POZZOLO, Susanna, 2006, p. 81.

[18] DUARTE, Écio Oto Ramos; POZZOLO, Susanna, 2006, p. 82.

[19] ZAGREBELSKY, 2002, p. 17.

[20] BAUMAN, 2007, p. 7.

[21] O mesmo pode ser dito sobre Eros Grau citar Agamben em sua argumentação no textto supracitado.

[22] Consultar CARBONELL, XXXX para um melhor esclarecimento acerca da pluralidade e da grande diversidade de teorias que se intitulam neoconstitucionalistas.

[23] LUHMANN, 1985, p. 55.

[24] LUHMANN, 1985, p. 55.

[25] NEVES, 2008, p. 124.

[26] LOSANO, 2008, p. xxxvii.

[27] FARIA, 2001, p. 9.

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[28] CARBONNIER, 1988, p. 168. Tradução nossa. Original: Ce pourrait être une caractéristique de notre temps que le droit, pour la première fois, participe à l’angoisse historique. Le droit, jusqu’alors dispensateur de certitudes, plein de certitude lui-même, colonne de marbre, table d’airain. Certes, depuis un moment déjà, des juristes s’étaient aperçus que le droit bougeait. Léon Duguit, dès 1912, Gaston Morin, en 1920, avaient rendu classiques les transformations du droit privé depuis le Code Napoléon, la révolte des faits contre le Code. Mais ces transformations, ces révoltes mêmes étaient dépeintes comme un progrès pacifique, et le récit s’en insérait dans une vision optimiste de l’avenir des sociétés. Le ton allait bientôt s’attrister, parce que le ciel devenait plus sombre. Quand, à partir de 1930, la chute de l’économie eut, un peu partout dans le monde, fait surgir des expédients juridiques inouïs (inouïs dans les systèmes liberaux), moratoires des dettes et des constitutions, droit d’urgence, droit de crise, beacoup prophétisèrent que ce droit de crise avait déchainé la grande crise du droit.

[29] HESPANHA, 2005, p. 386. Ainda como fonte para a leitura sobre esta sobre esta querela entre Thibaut e Savigny, Jacques Stern publicou alguns textos que a ilustram no volume La codificación: una controversia programatica baseada en las obras de Thibaut y Savigny. (SAVIGNY; THIBAUT, 1970)

[30] BONAVIDES, 2005, p. 101.

[31] BONAVIDES, 2005, p. 95. O autor trabalha em um capítulo de seu curso de direito constitucional sobre a necessidade de se rediscutir e conceituar o sistema no âmbito do direito constitucional e mesmo no direito em geral. Apesar do autor concordar que já está assentado na teoria política o conceito de sistema político, o mesmo não se pode dizer no caso do direito, o qual ainda está profundamente marcado pela concepção predominantemente analítica.

[32] A diferença para com tais autores, no entanto, consiste em não mais procurar encontrar uma estrutura fundamental ou a volta a uma origem perdida, mas fazer as oposições do discurso falarem algo que escapa a elas mesmas, portanto, uma marca de algo que a supera. Segundo Jacques Derrida, “o nosso discurso pertence irredutivelmente ao sistema das oposições metafísicas. Só se pode anunciar a ruptura desta ligação através de uma certa organização, uma certa disposição estratégica que, no interior do campo e dos seus poderes próprios, voltando contra ele os seus próprios estratagemas, produza uma força de deslocação que se propague através de todo o sistema, rachando-o em todos os sentidos e delimitando-o por todos os lados.” (DERRIDA, 2002, p. 37) Eis que a um estudo que pretenda observar o motivo e a operação de binarismos como sistema e acidente, não cabe descartar todos os textos que trabalham com esses conceitos metafísicos, mas justamente levá-los a seu limite para que se perceba algo que não ficou dito e que, portanto, escapa à própria sistemática colocada.

[33] AGAMBEN, 2004, p. 63.

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