a crise da modernidade e o estado democrático de direito

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Brasília a. 42 n. 165 jan./mar. 2005 231

Wilson Roberto Theodoro Filho

1. IntroduçãoO presente artigo tem o intuito de forne-

cer uma análise de algumas das relaçõesexistentes entre o paradigma da Moderni-dade e sua crise e o Estado Democrático deDireito. Propõe-se que as característicasapontadas pela teoria constitucional hodi-erna sobre o Estado Democrático de Direitorespondem a várias das tensões que consti-tuem a crise do paradigma da Modernidade.

Entre os vários relatos possíveis e váli-dos para a Modernidade Ocidental, a pro-posta teórica de Boaventura de Sousa Santosé útil para se compreender as relações entrea crise do paradigma moderno e o direito e ateoria jurídica do século XX. Não se tratan-do de uma visão única, ou superior a outraspossibilidades de compreensão do paradig-ma da Modernidade, o pensamento do filó-sofo português, ao tratar diretamente dasrelações entre direito, ciência e sociedade,serve de esteio para uma análise do papelexercido pelo Estado Democrático de Direi-to em fornecer respostas adequadas aos ele-mentos que constituem a crise do paradig-ma moderno.

Do mesmo modo, a teoria dos paradig-mas constitucionais posta por Menelick de

A crise da Modernidade e o EstadoDemocrático de Direito

Wilson Roberto Theodoro Filho é Advoga-do, Mestrando em Direito Constitucional pelaUniversidade de Brasília.

Sumário1. Introdução. 2. A Modernidade sob a ótica

de Boaventura. 3. Os paradigmas constitucio-nais: o Estado Democrático de Direito. 4. Con-clusões.

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Carvalho Netto é de fundamental importân-cia para a compreensão da teoria constitu-cional desenvolvida ao longo do século XX,além de fornecer um relato coerente das prin-cipais características do Estado Democráti-co de Direito nos dias atuais. A contraposi-ção entre o relato acerca dos paradigmasconstitucionais e a crise da Modernidadepossibilitará um melhor entendimento so-bre o papel do paradigma constitucional doEstado Democrático de Direito e suas possi-bilidades de estabelecer um novo equilíbrioentre o direito e a participação comunitáriatanto no processo jurídico decisional quan-to na atividade política – fornecendo, dessemodo, algumas respostas para as tensõesinerentes ao paradigma da Modernidade.

2. A Modernidade sob a óticade Boaventura

Boaventura de Sousa Santos define a mo-dernidade ocidental como o paradigma só-cio-cultural dominante do pensamento filo-sófico e científico a partir do século XVI1. AModernidade, assentada em uma ideologiade base iluminista (racional, individualistae humanista, caracterizada pela prevalên-cia do conhecimento científico sobre as ou-tras formas de cognição humana), atuousobre toda a atividade intelectual e socialocidental. Boaventura estabelece seu racio-cínio crítico sobre a modernidade a partirda distinção e tensão entre a regulação soci-al e a emancipação social. Três princípioscaracterizam o pilar da regulação: merca-do, Estado e comunidade. Três racionalida-des caracterizam o pilar da emancipação: aracionalidade estético-expressiva, a racio-nalidade cognitivo-instrumental e a racio-nalidade moral-prática.

O pilar da regulação volta-se para o con-trole, para o estabelecimento de regras deconduta que possibilitem o desenvolvimen-to das sociedades modernas tendo em vistao projeto do paradigma da Modernidade.Nessa medida, o mercado funciona como omecanismo de controle da produção e troca

de bens; o Estado detém a função de regulara atividade e participação políticas no seioda sociedade; e a comunidade é a instânciana qual se realizam efetivamente as trocassociais, a vida privada e pública em seusaspectos propriamente comunitários e par-ticipativos.

O pilar da emancipação volta-se para apossibilidade de desenvolvimento intelec-tual, social e espiritual humanos, vinculan-do-se diretamente ao conceito de liberdade,caro à proposta da Modernidade. Nessamedida, Boaventura compreende que todasas três formas de racionalidade que caracte-rizam a Modernidade guardam, ao menosem suas origens, o potencial e a intençãoemancipatórios, voltados para a libertaçãoprogressiva do homem em todos os aspec-tos de sua atividade social.

A racionalidade estético-expressiva liga-se às artes, à literatura, à produção humanapropriamente estética, ou seja, à produçãode conhecimento cuja finalidade primeira éinterior à própria criação. Procura estabele-cer padrões de beleza e de prazer, tendo emvista a participação criativa e lúdica do ho-mem no ambiente e na comunidade à suavolta.

A racionalidade moral-prática, que pres-creve condutas, refere-se diretamente à éti-ca, à religião, ao direito. Tenciona estabele-cer formas, procedimentos e conteúdos paraa atuação social e os relacionamentos co-munitários, influindo diretamente na orga-nização dos três pilares: mercado, Estado ecomunidade.

E a racionalidade cognitivo-instrumen-tal caracteriza as ciências e a filosofia: trata-se de uma racionalidade que busca delimi-tar critérios objetivos para a construção doconhecimento e para a busca da “verdade”– estabelece padrões de reconhecimentopara o que é cientificamente válido, ou seja,para qual conhecimento possui “valor”.

O projeto da Modernidade, se levado acabo idealmente, promoveria a maximiza-ção do mercado, do Estado e da comunida-de, e a máxima emancipação das racionali-

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dades cognitivo-instrumental (científica),moral-prática (jurídica) e estético-expressi-va (artística). Entretanto, Boaventura iden-tifica uma série de distorções dentro da “exe-cução” do projeto da Modernidade, que aca-baram por saturar o paradigma e principiarsua crise.

No pilar da regulação, identifica-se o su-focamento da comunidade em face do Esta-do e do mercado. As relações capitalistas detroca e a atividade estatal superpõem-se àspossibilidades comunitárias, que se atrofi-am em face de interesses que, em vez de ascomplementarem, terminam por diminuirseu potencial. Nessa medida, a comunida-de fica excluída, tendo que sobreviver emcontraposição, e não em harmonia, com ossupervalorizados princípios do mercado edo Estado.

No pilar da emancipação, nota-se umacolonização das racionalidades moral-prá-tica e estético-expressiva pela racionalida-de cognitivo-instrumental. Os pressupostose métodos científicos passam a reger tam-bém a produção ético-jurídica e a produçãoartística. Os pressupostos originais das ra-cionalidades colonizadas enfraquecem-se,sendo substituídos pelos critérios e padrõesda racionalidade científica.

O potencial emancipatório de cada umadas racionalidades diminui paulatinamen-te, à medida que as características indivi-duais perdem-se e se amalgam em um úni-co critério válido de racionalidade – a racio-nalidade científica deixa de ser um meca-nismo emancipatório para se tornar um me-canismo regulatório. O mercado, o Estado ea comunidade, portanto, passam a ser regi-dos também pela racionalidade cognitivo-instrumental, concebida, a partir desse mo-mento, como a única racionalidade válidapara a regulação desses setores: a emanci-pação torna-se subordinada e inferior à re-gulação.

No campo jurídico, foi possível observarprimeiramente uma colonização da racio-nalidade moral-prática pela racionalidadecognitivo-instrumental. Entretanto, em um

segundo momento, após o direito revestir-se de um caráter científico (principalmenteno século XX), nota-se uma recolonizaçãode outros setores por uma nova racionali-dade moral-prática de cunho científico,oriunda do campo jurídico.

Nessa medida, o Estado, o mercado, asrelações sociais, passam a ser regulados porregras de conduta que se revestem de umaforma científica, mas possuem caráter mo-ral-prático. O direito torna-se um verdadei-ro “leviatã”, que prescreve regras e padrõesde conduta para todos os aspectos da socie-dade, legitimado pela sua suposta “cientifi-cidade”. A atrofia do pilar da emancipaçãose agrava, pois a racionalidade propriamen-te moral-prática e a racionalidade estético-expressiva são esquecidas em detrimento da“superioridade” científica; também a comu-nidade, espaço no qual poderiam exsurgirnovas possibilidades emancipatórias, é pre-judicada: o direito a regula totalitariamen-te, em todos os seus aspectos, e a esvazia deseu papel original dentro do plano paradig-mático da Modernidade.

Os desequilíbrios entre o pilar da regu-lação e o pilar da emancipação deram cau-sa à colonização das racionalidades artísti-ca e jurídica pela racionalidade científica,ao sufocamento do princípio da comunida-de pelo mercado e pelo Estado e à atrofia daemancipação em face da regulação: o direi-to torna-se um mecanismo não emancipató-rio, unicamente regulatório, substituto daracionalidade científica como mecanismo deregulação.

Dessa forma, a crise da Modernidadevincula-se diretamente aos desequilíbriosentre os elementos que a compõem, sendoque o direito, colonizado pela racionalida-de científica, esvazia-se de seu conteúdoemancipatório original (em relação ao pa-radigma da Modernidade) para se tornar ummecanismo de reprodução regulatória dospilares do mercado e do Estado.

Assim, entende-se que o direito das soci-edades hodiernas está diretamente vincu-lado ao paradigma da Modernidade, cons-

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truído em torno da racionalidade moral-prá-tica do pilar da regulação e suas inter-rela-ções paradigmáticas decorrentes do desen-volvimento e desvirtuamento do projeto daModernidade – dessa forma, também a teo-ria constitucional é tributária do processode formação e crise da Modernidade, poden-do ser analisada à sua luz.

3. Os paradigmas constitucionais: oEstado Democrático de Direito

Menelick de Carvalho Netto estabeleceuma série de análises gerais sobre o direito,de acordo com os paradigmas constitucio-nais vigentes ao longo da história ociden-tal. Cada um desses paradigmas propõe umaforma diferente de pensar e fazer o direito,exercendo profunda influência sobre todosos campos vinculados ao sistema do direito.

A organização política e jurídica pré-mo-derna pode ser largamente condensada emum único paradigma, caracterizado por “umamálgama normativo indiferenciado de re-ligião, direito, moral, tradição e costumestranscendentalmente justificados e que essen-cialmente não se discerniam” (CARVALHONETTO, 1998, p. 237). O direito é fixado deacordo com critérios de hierarquia e estrati-ficação sociais.

A dissolução do paradigma pré-moder-no, erodido pelo surgimento da moralidadeindividualista e racionalista característicada Modernidade, conduz ao surgimento doparadigma do Estado de Direito, primeiroparadigma constitucional moderno. O di-reito passa a ser compreendido como “umordenamento de leis racionalmente elabo-radas e impostas à observação de todos porum aparato de organização política laiciza-do” (CARVALHO NETTO, 1998, p. 239).Idéias abstratas e racionais extraídas do jus-naturalismo, definidas e impostas pelosEstados Nacionais, tornam-se universal-mente válidas para todos os membros dasociedade, homens livres, que são ao mes-mo tempo proprietários e sujeitos de direi-tos.

O direito público tem a função de evitaro retorno ao Absolutismo, por meio da ado-ção dos princípios da limitação do Estado eda separação dos Poderes, promovendo arepresentação censitária da “melhor socie-dade” na sociedade política. O direito pri-vado deveria resguardar, por meio da me-nor quantidade possível de leis, a liberda-de, a igualdade e a propriedade dos cida-dãos. Há um fosso entre a sociedade civil ea sociedade política: o Estado controladopela “melhor sociedade” restringe-se a es-tabelecer direitos negativos (direitos de pri-meira geração), pretendendo assim resguar-dar a liberdade de cada indivíduo.

Segundo Cristiano Paixão Araujo Pinto(2003, p. 19-20), há uma nítida assimetriaentre o direito público e o direito privado,sendo que o último é superdimensionado evalorizado, e o primeiro é visto com descon-fiança, reforçando uma concepção jurídicaligada a liberdades “negativas”. A ativida-de hermenêutica do juiz é compreendidacomo uma atividade mecânica, diretamentevinculada ao texto legal, evitando-se qual-quer espécie de interpretação.

A inefetividade da liberdade e da igual-dade meramente abstratas conduzem ao sur-gimento do paradigma do Estado Social, noqual pretende-se a materialização dos di-reitos anteriormente formais (a conquistados direitos coletivos e sociais de segundageração e a redefinição dos direitos de pri-meira geração). A liberdade e a igualdadepressupõem garantias materiais por meio dodireito público. A propriedade passa a seradmitida apenas tendo em vista a sua funçãosocial. Todo o direito torna-se público, namedida em que o Estado passa a ser o res-ponsável pela sociedade, tendo as suas fun-ções extraordinariamente ampliadas e com-plexificadas2. O Estado, acima da sociedade,deve promover a materialização do direito.

A atividade do juiz torna-se mais sofisti-cada, e reclama por métodos hermenêuticos“capazes de emancipar o sentido da lei davontade subjetiva do legislador na direçãoda vontade objetiva da própria lei, profun-

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damente inserida nas diretrizes de materia-lização do direito que a mesma prefigura...”(CARVALHO NETTO, 1998, p. 243).

A crise do Estado Social inicia-se com ofim da Segunda Guerra Mundial e aprofun-da-se com a crise econômica, a falência daracionalidade tecnocrata e dos planejamen-tos econômicos, a antítese entre técnica e po-lítica. A falência do modelo de racionalida-de do Estado-interventor dá causa ao surgi-mento de um novo paradigma constitucio-nal apto a satisfazer as novas demandas eproblemas que surgem no seio das socieda-des modernas:

“É com a crise do Estado Social quese viabiliza a construção – ainda empleno andamento – de um novo para-digma: o Estado Democrático de Direi-to. Ele decorre da constatação da crisedo Estado Social e da emergência – apartir da complexidade das relaçõessociais – de novas manifestações dedireitos. Desde manifestações ligadasà tutela do meio ambiente, até reivin-dicações de setores antes ausentes doprocesso de debate interno (minoriasraciais, grupos ligados por vínculosde gênero ou de orientação sexual),passando ainda pela crescente preo-cupação com lesões a direitos cuja ti-tularidade é de difícil determinação(os chamados interesses difusos), se-tores das sociedades ocidentais, a par-tir do pós-guerra e especialmente dadécada de 1960, passam a questionaro papel e a racionalidade do Estado-interventor” (PINTO, 2003, p. 26-27).

O paradigma do Estado Democrático deDireito prefigura um direito participativo,pluralista e aberto, capaz de abarcar os di-reitos de terceira geração (direitos difusos) edar novo significado aos direitos de primei-ra e segunda gerações, inserindo-os no de-bate público que informa a soberania demo-crática prevista pelo paradigma em ques-tão. Nessa medida, a comunidade assumeum papel de relevância fundamental na pro-dução e consecução do direito; a atividade

do cidadão exige uma participação ativa dacomunidade na atividade política e no pro-cesso jurídico decisional:

“A ênfase conferida ao paradigmaemergente concentra-se na idéia decidadania, compreendida em sentidoprocedimental, de participação ativa.Como seria de se esperar de uma mu-dança paradigmática, os direitos con-sagrados nos modelos anteriores deconstitucionalismo são redimensio-nados. Verificam-se, no interior dasociedade, novas formas de associa-ção: organizações não-governamen-tais, sociedades civis de interesse pú-blico, redes de serviço não-verticali-zadas” (PINTO, 2003, p. 27).

A dicotomia entre direito público e direi-to privado é novamente redimensionada. Emum ambiente no qual a comunidade exercepapel efetivo na vida jurídica e política, odireito público e o direito privado se refor-çam e se inter-relacionam constantemente,tendo em vista a promoção democrática dasoberania popular e dos valores e princípi-os contidos na carta constitucional; as ques-tões públicas não se restringem unicamenteao Estado, nem tampouco as questões pri-vadas se limitam somente aos indivíduos –a participação ativa em prol da cidadaniaexige que ambos os campos tenham aten-ção constante tanto por parte dos cidadãos,quanto por parte do Estado:

“Para esse último paradigma, aquestão do público e do privado équestão central, até porque esses di-reitos, denominados de última gera-ção, são direitos que vão apontar exa-tamente para essa problemática: opúblico não mais pode ser visto comoestatal ou exclusivamente como esta-tal e o privado não mais pode ser vis-to como egoísmo. A complexidade so-cial chegou a tal ponto que vai ser pre-ciso que organizações da sociedadecivil defendam interesses públicoscontra o Estado privatizado, o Estadotornado empresário, o Estado inadim-

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plente e omisso” (CARVALHONETTO, 2001).

Assim, enquanto a esfera pública é reva-lorizada, na medida em que sua defesa eproteção é responsabilidade de toda a co-munidade política, também a esfera priva-da ganha nova importância: a autonomiaprivada, diretamente vinculada às preten-sões de autodeterminação e liberdade, tor-na-se independente da atividade estatal – odireito administrativo, eminentemente, per-de o seu caráter de regulador precípuo davida social para se tornar um mecanismoemancipatório em prol da garantia demo-crática dos direitos e liberdades dos cida-dãos. Setores anteriormente regulados pelodireito estatal tornam-se desregulados; domesmo modo, aspectos originalmente vin-culados à iniciativa privada passam a inte-grar o direito público3.

A atividade hermenêutica do juiz atingenovas dimensões. O juiz não só deve estarapto a interpretar racionalmente os textosjurídicos, mas deve também analisar e in-terpretar os elementos fáticos de cada casoconcreto. Assim, cada decisão deve retraba-lhar os elementos do direito vigente, bus-cando a harmonia dos princípios e regrasjurídicas com o sentimento de justiça relati-vamente a cada caso concreto específico,tendo em vista a atividade constitucionalrealizada por toda a comunidade:

“Desse modo, no paradigma doEstado Democrático de Direito, é pre-ciso requerer do Judiciário que tomedecisões que, ao retrabalharem cons-trutivamente os princípios e as regrasdo direito vigente, satisfaçam, a umsó tempo, a exigência de dar curso ereforçar a crença tanto na legalidade,entendida como segurança jurídica,como certeza do direito, quanto nosentimento de justiça realizada, quedeflui da adequabilidade da decisãoàs particularidades do caso concreto”(CARVALHO NETTO, 1998, p. 245).

Os princípios constitucionais passam aexercer papel fundamental para a interpre-

tação e decisão jurídicas, na medida em queo seu escopo de aplicação condiciona a va-lidade de aplicação de uma norma a cadacaso concreto específico. As normas não sãoconsideradas auto-aplicáveis, na medidaem que é necessário o “crivo” e “autoriza-ção” principiológicos, mediados pela ativi-dade interpretativa do juiz, para a aplicaçãode uma norma a um caso concreto específico.

4. Conclusões

É clara a relação entre o paradigma doEstado Democrático de Direito e a crise pa-radigmática da Modernidade. O paradigmado Estado Democrático surge como uma res-posta aos efeitos da crise da Modernidadesobre o direito e a prática constitucional: aoprever a participação ativa da comunidadeno processo jurídico, o paradigma pugnapor um equilíbrio entre os pilares do Estadoe da comunidade – a supremacia estatalparte-se diante de uma nova possibilidadeemancipatória voltada para a maximizaçãotanto das potencialidades estatais quantodas potencialidades comunitárias.

Do mesmo modo, o caráter regulatóriodo direito cientificamente colonizado é subs-tituído por um retorno às potencialidadesemancipatórias do direito, conforme conce-bido no projeto original do paradigma daModernidade. O direito torna-se um mecanis-mo de participação comunitária na vida polí-tica, possibilitando uma interação coerente eequilibrada entre as diversas racionalidades,por meio do debate aberto entre as esferaspública e privada no seio da sociedade.

O paradigma constitucional do EstadoDemocrático de Direito encontra-se aindaem construção: mas é possível notar, pelomenos em seus delineamentos iniciais, quesuas principais propostas são respostas aoselementos que deram causa à crise do para-digma da Modernidade.

Nessa medida, o surgimento de organi-zações não governamentais, a maior parti-cipação da sociedade civil na vida políticae na defesa de interesses difusos, a preocupa-

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ção com a tutela de direitos de última geraçãoe de direitos cuja responsabilidade direta per-tence ao Estado (direitos que não podem sercompensados, mas apenas protegidos: meioambiente, proteção ao consumidor) constitu-em novas possibilidades de desenvolvimen-to da Modernidade, já que se voltam para aharmonização da problemática decorrente dasupremacia da regulação sobre a emancipa-ção, e da colonização das racionalidadesmoral-prática e estético-expressiva pela raci-onalidade cognitivo-intrumental.

Pretendeu-se, portanto, expor algumasdas relações existentes entre a crise do pa-radigma da Modernidade, conforme identi-ficada por Boaventura de Sousa Santos, e asrespostas fornecidas pelo paradigma do Es-tado Democrático de Direito às tensões e pro-blemas inerentes ao direito e teoria consti-tucional hodiernas. A construção do Esta-do Democrático de Direito, ainda em anda-mento, volta-se, no intuito de apresentarnovas propostas e soluções para a própriacrise que deu causa ao seu surgimento, paraa efetivação da participação da comunida-de civil na vida política de forma responsá-vel e soberana, potencializando, dessemodo, as vias emancipatórias e democráti-cas que constituem a essência do EstadoDemocrático de Direito.

Notas1 “A partir dos séculos XVI e XVII, a moderni-

dade ocidental emergiu como um ambicioso e re-

Bibliografia

PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Arqueologia deuma distinção: o público e o privado na experiênciahistórica do direito. In: PEREIRA, Claudia Fernan-da de Oliveira (Org.). O novo direito administrativobrasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razãoindolente: contra o desperdício da experiência. 2. ed.São Paulo: Cortez, 2000.

CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêuti-ca constitucional sob o paradigma do estado de-mocrático de direito. Notícia do direito brasileiro, Bra-sília, v. 1998, n. 6, dez. 1998.

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volucionário paradigma sócio-cultural assentenuma tensão dinâmica entre regulação social eemancipação social” (SOUSA SANTOS, 2000, p.15).

2 “É o que Kelsen observa muito bem (...) Paraele, podemos manter a distinção didática entre Di-reito Público e Direito privado, mas, na verdade,todo Direito é público, todo Direito é estatal (...).”(CARVALHO NETTO, 2001).

3 “E, da mesma forma, algumas das discipli-nas antes classificadas como de direito públicopassam a assumir uma feição cada vez mais aber-ta à possibilidade de argumentação, à inserção deelementos ligados à iniciativa individual. Um exem-plo ilustrativo são as normas que autorizam tran-sação penal ou suspensão da punibilidade em faceda admissão do ilícito.” (PINTO, 2003, p. 29).

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