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ANA CLAUDIA BRIDA A CRIAÇÃO FANTÁSTICA DO HUMANO E O CONHECIMENTO DE MUNDO: CONTEXTOS PARA O ESTUDO DA OBRA FRANKENSTEIN DE MARY SHELLEY UEMS / 2005

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  • ANA CLAUDIA BRIDA

    A CRIAO FANTSTICA DO HUMANO E O CONHECIMENTO DE MUNDO:

    CONTEXTOS PARA O ESTUDO DA OBRA FRANKENSTEIN DE MARY SHELLEY

    UEMS / 2005

  • ANA CLAUDIA BRIDA

    A CRIAO FANTSTICA DO HUMANO E O CONHECIMENTO DE MUNDO:

    CONTEXTOS PARA O ESTUDO DA OBRA FRANKENSTEIN DE MARY SHELLEY

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado Fundao Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, curso de Letras/Ingls, sob orientao da Prof. MSc. Luiza Mello Vasconcelos.

    DOURADOS MS

    2005

  • Senhora Mary Wollstonecraft Shelley, pela genialidade

    e sensibilidade para elaborar a histria de criao humana mais

    fantstica, significativa e representante do conhecimento de

    mundo do ser humano, depois da Criao do Homem por Deus,

    relatada no Gnesis, por Moiss.

  • Gostaria de agradecer primeiramente a Deus e ao

    Senhor Jesus Cristo pela profunda f e auxlio nos

    momentos mais rduos da minha vida, e s pessoas que

    colaboraram com a minha jornada nestes quatro anos e

    muito me incentivaram a ser persistente:

    Mrcio de Alencastro Brida,

    Maria da Silva Brida,

    Neuza Bordini Brida,

    E principalmente a um ser, que mais do que tudo

    me foi a grande inspirao para enfrentar todas as

    dificuldades e vencer todos os obstculos:

    Julia Brida Loureiro.

  • Of what a strange nature is knowledge! It clings to the

    mind, when it has once seized on it, like a lichen on the rock.

    Frankenstein Mary Shelley

    Oh, que coisa estranha o conhecimento! Uma vez

    que alcanou o crebro, agarra-se a ele como o lquen numa

    rocha.

  • SUMRIO

    RESUMO........................................................................................

    ABSTRACT.....................................................................................

    1 INTRODUO.....................................................................................

    2 FRANKENSTEIN DE MARY SHELLEY A OBRA............................................

    2.1 O romance gtico e o romance de fico cientfica...........................................2.2 Histria do romance Frankenstein.............................................................2.3 Estrutura da obra Frankenstein.............................................................102.4 Anlise dos Personagens.......................................................................2.5 Foco Narrativo em Frankenstein...............................................................2.6 O Tempo e o Espao em Frankenstein........................................................2.7 A Mitologia em Frankenstein...............................................................222.8 Filmografia.....................................................................................2.9 A Intertextualidade presente em Frankenstein................................................

    3 A CRIAO FANTSTICA DO HOMEM E O CONHECIMENTO DE MUNDO............3.1 Conceito de Fantstico.........................................................................3.2 A Criao Fantstica do Humano em Frankenstein...........................................3.3 Conhecimento de Mundo......................................................................

    4 CONSIDERAES FINAIS.......................................................................

    REFERNCIAS.................................................................................

  • RESUMO

    Frankenstein, a obra, narra a histria da criao do homem pelo homem e as suas conseqncias. Utilizando uma srie de recursos fantsticos, considerado como um romance gtico; no entanto, a obra vai alm: pode se caracterizar como um dos primeiros romances cientficos da histria e tambm o que estuda mais aprofundadamente as relaes humanas. Paralelos com a Bblia, o Paraso Perdido de John Milton e a histria de Prometeu no faltam, pois todos tm a temtica da vida e a degradao do homem, e assim como todas essas obras citadas, Frankenstein tambm tem uma moral que poderia ser: a sociedade (ou humanidade), com seus vcios e preconceitos, destri as virtudes do homem. Na adaptao de Kenneth Brannagh para o cinema, a Criatura pergunta para Victor, seu Criador: Quem eram estas pessoas que me formam? Pessoas boas? Pessoas ms?... Voc me deu vida, e depois me abandonou para que eu morresse... Quem sou eu?... Acha que eu que sou mau? Justamente por essas questes que neste trabalho analisada A Criao Fantstica do Homem e o Conhecimento de Mundo, pois esta passa por toda a srie de valores e conceitos formados ao longo da histria da humanidade, e em Frankenstein que se torna possvel encontrar a chave, ou a resposta, para as aes dos homens, as criaes dos homens, suas descobertas e o seu egosmo.

  • ABSTRACT

    Frankenstein, the work, talks about the history of the mans creation by the man and its consequences. Using a series of fantastic resources, this is considered a Gothic novel; however, the work goes beyond: it can be characterized as one of the first scientific novels of the history that also studies more deeply the human relationships. Parallels to the Bible, John Milton's Lost Paradise and the history of Prometheus don't lack, therefore they all have the thematic of life and mans degradation, and as well as all those mentioned works, Frankenstein also has a morals that could be: the society (or humanity), with its addictions and prejudices, destroys mans virtues. In Kenneth Brannaghs adaptation for the movies, the Creature asks Victor, its Creator: "Who were these people that form me? Good people? Bad people?... You gave me life, and later you left me so that I died... Who am I?... Do you think I am bad?". This is the reason why Man's Fantastic Creation and the Knowledge of World are analyzed in this work, for it goes through the whole series of values and concepts formed during the history of humanity' and Frankenstein becomes possible to find the key, or the answer, for mens actions, mens creations, mens discoveries and mens selfishness.

  • 1 INTRODUO

    Quando Mary Shelley teve o lampejo de construir sua histria espetacular sobre a vida

    de um cientista e o ser por ele criado, apenas como um passatempo, num castelo prximo aos

    Alpes Suos no ano de 1816, mal sabia ela que sua obra se tornaria, ao longo da histria da

    humanidade, uma verdadeira premonio dos tempos futuros, nos quais Deus no mais

    precisaria estar no posto de Criador, mas que competiria com a criao do homem pelo homem.

    Frankenstein, a obra, conta a histria de um homem obcecado pela busca da verdade e

    pelas possibilidades que a cincia lhe oferece. Prottipo do cientista louco, Victor Frankenstein

    deixa-se levar, sozinho e cada vez mais afastado da sociedade, por todos os caminhos que a sua

    curiosidade cientfica procura. Buscando compreender os mecanismos mais profundos da vida,

    Victor acaba por dar origem ao seu monstro (que lhe vai roubar o nome no imaginrio popular),

    que passa a assombr-lo e no fim o leva destruio pessoal, ao destruir tudo o que lhe caro.

    A dramaticidade, a eloqncia, a seriedade e a criatividade com que Mary Shelley

    comps Frankenstein so citadas por todos os seus analisadores. E, principalmente, o fato de

    uma mulher ter composto um texto narrativo gtico, com a finalidade de despertar horror no

    corao a torna a pioneira nas histrias de suspense e fico cientfica que chegam at os dias

    atuais.

    Desnecessrio tambm catalogar quantas filmagens foram feitas utilizando os

    personagens dessa histria, mas, uma que perdura, justamente por procurar respeitar a

  • literariedade e ir a fundo nos textos que se interligam a Frankenstein, a verso de 1994,

    dirigida por Kenneth Brannagh.

    Este trabalho tem por objetivo estudar a criao fantstica do homem, no apenas no

    sentido biolgico e fantasioso do termo, mas em todas as esferas como a criao de um ponto de

    vista mais transcendente, onde so englobados os sentidos religiosos, sociais e filosficos; ainda

    pretende analisar o conhecimento de mundo (seus valores) na obra Frankestein, de Mary

    Shelley, voltado para os resultados que se obtm quando h posse do saber e quando se depara

    com uma realidade que no a imaginada, e que desconsidera o anmalo; vale ressaltar que,

    para isso, alm de uma anlise da obra e do estudo da intertextualidade entre referncias e a

    verso cinematogrfica citada, e ainda, a referenciao bibliogrfica e os paralelos traados,

    possvel, com um conhecimento maior, chegar aos elementos que compem o fantstico e

    relacion-lo com a criao do homem e a aquisio do saber.

    2

  • 2 FRANKENSTEIN DE MARY SHELLEY A OBRA

    2.1 O romance gtico e o romance de fico cientfica

    Frankenstein, ou o Moderno Prometeu, contm elementos dos dois gneros principais

    da literatura romntica: o estilo gtico e a fico cientfica.

    Maria Cristina Gozzoli (1986, p. 08) explica que o gtico parte do movimento

    romntico que surgiu no incio do sculo XVIII e permaneceu at as trs primeiras dcadas do

    sculo XIX. O movimento romntico caracterizado pela inovao (ao invs do

    tradicionalismo), espontaneidade de acordo com o poeta Wordsworth, a poesia boa um

    transbordamento espontneo de sentimentos poderosos , liberdade de pensamento e expresso

    (especialmente os sentimentos e pensamentos do prprio poeta), uma idealizao da natureza

    (os poetas romnticos tambm eram chamados de poetas da natureza) e a convico de viver

    numa era de novos comeos e altas possibilidades.

    O primeiro romance que foi identificado como tendo influncia gtica foi O Castelo

    de Otranto: Uma Histria Gtica, em 1764, de Horace Walpole. O Castelo de Otranto, assim

    como muitos outros romances gticos, fixa-se numa sociedade medieval, tem muitos

    desaparecimentos misteriosos como tambm algumas ocorrncias sobrenaturais. O personagem

    principal geralmente tem um carter solitrio de natureza egocntrica. Embora este gnero seja

  • uma fase do movimento romntico, considerado como o precursor do mistrio moderno ou o

    romance de fico cientfica.

    Muitos dos elementos acima citados surgem em Frankenstein. Por exemplo, a natureza

    freqentemente utilizada para criar a atmosfera envolvente da histria. Os campos desertos

    glaciais dos Alpes e as nvoas do rtico servem para indicar o isolamento dos personagens

    principais. O carter solitrio em Frankenstein pode ser aplicado tanto a Victor como a sua

    Criatura, pois ambos os personagens, em momentos cruciais da vida, se isolam socialmente.

    Embora muitos dos romances gticos sejam escritos para provocar terror em seus

    leitores, eles tambm servem para mostrar o lado negro da natureza humana, conforme nos

    relata Cynthia Hamberg (2005), pois eles descrevem os pesadelos horrorosos que vivem na

    controlada e ordenada superfcie do crebro. Surpreendentemente, existe um vasto nmero de

    autores gticos femininos. No improvvel que este tipo de fico tenha promovido uma

    liberao dos desejos secretos dessa classe prejudicada pela autoridade masculina ento vigente.

    O gnero gtico tambm se estende poesia. Poemas compostos por Coleridge e Keats

    (Christabel e Vspera de Santa Agnes, respectivamente) apresentam a transao do fantstico

    para a explorao da mente inconsciente.

    A fico cientfica explora as maravilhas das descobertas e pesquisas que podem

    resultar em desenvolvimentos futuros na cincia e na tecnologia. Mary Shelley usou um dos

    mais recentes estudos tecnolgicos de sua poca para criar Frankenstein. Ela substituiu o fogo

    divino do mito de Prometeu com a fasca da eletricidade recentemente descoberta. Os conceitos

    de eletricidade e calor conduziram descoberta do processo de galvanismo que se supunha ser a

    chave da vida. Realmente, este um dos processos utilizados para reanimar a criatura de Victor.

    2.2 Histria do romance Frankenstein

    4

  • Quanto s circunstncias em que a obra foi criada, vale lembrar que ele aconteceu

    quase de maneira casual. Conforme nos relata Harold Bloom (2002, p. 262), Mary Shelley e seu

    marido Percy estavam passando o vero de 1816 s margens de um lago na Sua e tinham

    como vizinho o poeta Lord Byron1. Durante as noites ou quando o tempo no estava propcio

    aos passeios, os amigos reuniam-se para ler histrias alems de fantasmas e discutirem teorias

    cientficas que estavam em propagao naquela poca, como, por exemplo, o galvanismo2 e as

    experincias do Dr. Erasmus Darwin (av de Charles Darwin) no campo das leis da vida

    orgnica. No fulgor das discusses, eles chegaram a cogitar a possibilidade de se reanimar um

    cadver.

    Para passar o tempo, Byron props que cada pessoa presente (ele prprio, seu amigo

    Polidori e os Shelley) escrevesse uma histria fantasmagrica. Sob a influncia das histrias

    lidas e das discusses filosficas e cientficas, Mary Shelley conforme ela mesma diz, viu em

    uma noite que estava com insnia a cena principal de sua histria: um jovem cientista

    apavorado diante da criatura disforme que acabara de dar vida. No outro dia, Mary disse aos

    seus amigos que tinha pensado em uma histria e escreveu um conto de poucas pginas que se

    iniciava com a frase: It was on a dreary night of November [...] (SHELLEY, 1996, p. 25)3

    que, na verso definitiva da obra, est localizada no incio do captulo V, pgina 25, onde

    justamente a Criatura recebe a vida. Entusiasmados com o que leram, os amigos, e

    principalmente o marido, incentivaram-na a transformar aquele conto num romance, que foi

    publicado pela primeira vez em 1818. A idia de Mary Shelley foi a melhor que surgiu no grupo

    naquele momento e a nica que foi concluda.

    1 Lord Byron: George Gordon Noel Byron (1788-1824) considerado o principal expoente do movimento mal-do-sculo, na lngua inglesa; sua vida repleta de momentos intensos caracterizam a postura do homem romntico. autor do clebre Don Juan, bem como Beppo: Uma Histria Veneziana e inmeros poemas (BURGESS, 1999, p. 187).2 Galvanismo: conjunto de fenmenos de natureza eletroqumica que se passam em sistemas constitudos por metais diferentes postos em contato com eletrlitos (SILVA; FRIEDMAN, 2005).3 Traduo: Era uma noite lgubre de Novembro (SHELLEY, 2002, p. 65).

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  • A histria dividida em grandes blocos narrativos, a comear pelas quatro cartas do

    explorador ingls Robert Walton, o grande-narrador, por assim dizer: ele quem descobre,

    numa expedio ao Plo Norte, em meio s geleiras, o definhado doutor Frankenstein, que ir

    contar-lhe toda a sua histria. Sendo assim, na opinio de Cynthia Hamberg (2005), os

    episdios desenvolvem-se de maneira seqenciada e admitem, muito mais do que cenas de

    terror propriamente, mas tambm um carter de reflexo filosfica.

    He then told me that he would commence his narrative the next day when I should be at leisure [] This manuscript will doubtless afford you the greatest pleasure; but to me, who know him, and who hear it from his own lips, with what interest and sympathy shall I read it in some future day!4 (SHELLEY, 1990, p. 11).

    Depois de alguns dias de repouso no navio, Victor Frankenstein decide contar a sua

    histria para o capito, com a finalidade de no deixar que a busca desenfreada pelo

    conhecimento e sabedoria arruinasse a vida de Walton.

    Victor conta sua vida desde quando era pequeno. Relata como sua amada Elizabeth

    entrou para a famlia; como procurava descobrir a origem das coisas; a morte de sua me e o

    desejo dela de que Victor e Elizabeth se casassem. Antes de se casar, no entanto, Victor vai para

    a universidade em Ingolstadt estudar medicina. Aps dois anos de estudo, decide estudar

    Fisiologia e descobre como animar a matria sem vida devido s conseqncias catastrficas

    de tal descobrimento, Victor no especifica este segredo:

    I was surprised that among so many men of genius, who had directed their inquiries towards the same science, that I alone should be reserved to discover so astonishing a secret5 (SHELLEY, 1990, p. 23).

    4 Traduo: Disse-me ento que comearia sua narrativa no dia seguinte, quando eu estivesse de folga [...] esse manuscrito, sem dvida, proporcionar a voc um enorme prazer; para mim, porm, que o conheo e que ouo tudo de seus prprios lbios com que interesse e simpatia hei de l-lo em algum momento, no futuro! (SHELLEY, 2002, p. 32-33).5 Traduo: Surpreendi-me de que, entre tantos homens de gnio que haviam dirigido suas indagaes no mesmo sentido, a mim apenas estivesse reservada a revelao de um segredo to espantoso (SHELLEY, 2002, p. 59).

    6

  • Ento constri com parte de cadveres, um ser gigantesco e lhe d vida. Quando a

    Criatura abre os olhos e respira, percebe que infundiu vida num ser que lhe causa horror e

    repulsa. Victor ento cai num sono repleto de pesadelos; ao despertar, v a face horrenda da

    Criatura a lhe contemplar; sai correndo desesperadamente pela noite chuvosa e s pra quando

    encontra, descendo de uma carruagem, o amigo de infncia, Henry Clerval, que veio estudar em

    Ingolstadt. Eles vo casa de Victor, o qual fica to contente em no mais encontrar a Criatura

    que tem um ataque de riso, muito prximo loucura, e desmaia. Victor fica acamado durante

    alguns meses, tendo, como enfermeiro, Henry.

    Ao ter a sade restabelecida, Victor comea a estudar Literatura juntamente com

    Henry. Um dia, recebe a notcia de que William, seu irmo mais novo, estava morto. Ele retorna

    imediatamente a Genebra. Ao chegar, impossibilitado de entrar porque era tarde da noite e os

    portes da cidade j estavam fechados. Ento, visita o lugar onde seu irmo foi morto. L v a

    Criatura e logo deduz que ela a responsvel pela morte de William. Ao chegar em casa, seu

    irmo Ernest diz que Justine Moritz era culpada pela morte da criana, porque a jia que ele

    estava usando naquele dia foi encontrada em seu poder. Justine foi julgada e condenada ao

    cadafalso pelo crime.

    Melanclico com a morte de Justine, Victor vai passear pelas montanhas e encontra a

    Criatura; ela implora a Victor que oua a sua histria. Esse, movido pelo remorso, decide ouvi-

    la: aps receber vida, vendo-se sozinha no laboratrio, a Criatura pega algumas roupas e segue

    para a floresta. Ali, aprimora seus sentidos e aprende algumas coisas, como, por exemplo, a

    utilidade do fogo. Devido escassez de comida, muda-se dali e refugia-se sob uma cabana.

    Nesse lugar, a Criatura observa, atravs de uma fenda na parede, o comportamento de seus

    moradores. Uma famlia composta por um velho cego, de nome De Lacey, e seus filhos Flix e

    gata. Eles viviam em Paris e tiveram seus bens confiscados porque Flix auxiliou um

    comerciante turco a fugir da priso por acreditar em sua inocncia. O turco, em gratido,

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  • prometeu-lhe a mo de sua filha Safie. No entanto, aps a fuga, o turco volta para sua terra natal

    e tenta levar a filha com ele, mas a moa foge para viver junto ao seu amado. Como ela no

    sabia falar a lngua inglesa, Flix comea a ensinar-lhe o idioma. Atravs dessa fresta, a

    Criatura assiste s aulas e aprende a falar. Logo depois, encontra uma pasta com alguns livros e

    toma conhecimento da leitura e da escrita. Nessa poca, encontra, entre as roupas que trouxera

    do laboratrio, o dirio de Victor. Por meio dele, descobre a sua origem, quem era seu criador e

    passa a odi-lo. Esse dio aumenta quando a Criatura sente-se rejeitada pelos homens; primeiro,

    ela tenta uma aproximao com o velho De Lacey (que a acolhe carinhosamente), mas Flix o

    espanca e foge com sua famlia da cabana; em seguida, aps salvar uma criana da morte,

    ferida pelo homem que a acompanhava.

    Depois de se recuperar, a Criatura segue para Genebra, na esperana de encontrar seu

    criador. Um dia, enquanto descansava, v um menino brincando na floresta. Ela acredita que

    aquela criana, por ser inocente, no iria rejeit-la. Movida por esse impulso, agarra o menino,

    que comea a gritar que seu pai, o Sr. Frankenstein, a castigaria. Ao ouvir esse nome, a Criatura

    mata o garoto. Logo depois, encontra uma jovem adormecida num celeiro e coloca em sua

    roupa a jia que retirou do garoto.

    Ao terminar sua histria, a Criatura pede a Victor para criar uma fmea para lhe fazer

    companhia. Victor concorda com essa idia, desde que eles deixem para sempre os lugares

    habitados pelo homem. Por sentir repulsa em desenvolver seus trabalhos em casa, vai

    Inglaterra. Nessa viagem, tem a companhia de Henry; no entanto, Victor desvencilha-se dele e

    vai para uma ilha quase deserta montar seu laboratrio.

    Aps construir o novo ser, Victor percebe que est cometendo outro erro e o destri

    antes de lhe dar vida. Isso desperta a ira vingativa da Criatura, que promete acompanh-lo em

    sua noite de npcias. Victor abandona a ilha e, aps adormecer num barco que tomou para se

    desvencilhar do cadver, aporta na Irlanda. L, acusado da morte de um homem, ningum

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  • menos que o seu amigo Henry. Ao ver o corpo, desespera-se e cai em coma profundo. Aps

    recuperar a sade, Victor absolvido das acusaes e volta a Genebra para se casar com

    Elizabeth. Desta forma, determinaria seu futuro: ou morreria ou destruiria a Criatura.

    Aps o casamento, o casal segue para sua noite de npcias. Victor arma-se e aguarda

    que a Criatura venha ao seu encontro. Enquanto inspecionava a hospedaria, ouve um grito

    terrvel. Ele corre at o quarto e encontra Elizabeth morta no leito nupcial. Atravs das vidraas,

    v a figura sinistra da Criatura. Victor saca a sua arma, atira, mas ela consegue sumir no lago.

    Depois disso, seu pai adoece e morre de desgosto.

    Movido pela vingana, Victor passa a perseguir a Criatura por vrias partes do mundo;

    sofre muito durante essa perseguio, que s acaba quando fica preso num bloco de gelo no mar

    e salvo por Robert.

    Assim termina a narrativa de Victor Frankenstein. O que segue foi descrito por Walton.

    Vrias vezes, o capito tenta arrancar informaes sobre a criao da Criatura, mas o cientista

    sempre se nega a dar tal informao. A sade de Victor foi piorando a cada dia, at culminar

    com a sua morte. Na noite em que isso ocorreu, Walton entra na cabina onde estava o corpo e se

    depara com a Criatura chorando abraada ao cadver. No entanto, agora tarde para

    lamentaes, como ele mesmo diz. A Criatura promete rumar para o Norte, onde acenderia sua

    pira funerria e, assim, encontraria seu fim. Dizendo isto, salta do navio e desaparece na

    escurido infinita.

    2.3 Estrutura da obra Frankenstein

    Construda em camadas sucessivas de flashback, com histrias dentro de histrias; na

    opinio de Jorge Candeias (2005), a obra Frankenstein seria surpreendentemente moderna, no

    fosse toda a carga de romantismo que contm. um livro onde so levantados dilemas morais

    9

  • que ainda hoje continuam sem resposta, e onde se abriram portas para todas as dvidas sobre o

    lugar que a busca pelo conhecimento deve ter na sociedade humana, dvidas que atravessaram a

    fico cientfica desde os seus primrdios at atualidade, e que so hoje uma preocupao

    muito real e concreta das sociedades modernas. Ser que a busca pelo conhecimento, um fim

    em si mesmo, ter de ter limites, ser que as conseqncias previsveis so compensadas pelas

    recompensas possveis?

    Shelley levanta as questes, mas no lhes d respostas definitivas, ainda que seja bvio o

    lado para que pende: o monstro um criminoso, mas no um criminoso sem corao. Limita-

    se a reagir s injustias e ofensas de que foi vtima. Assim sendo, quem o maior criminoso? O

    monstro, ou Frankenstein, que lhe deu vida e depois o repeliu, repugnado pela sua fealdade?

    No fim das contas, para Michel Jalil Fauza (2005), em Frankenstein tem-se uma fbula

    acerca da responsabilidade humana perante a sociedade como um todo e perante cada um dos

    seus componentes, uma grande parbola acerca dos atos que se praticam e das suas

    conseqncias, e que mostra como a vida toma rumos inesperados devido, por vezes, a

    pequenas coisas. Escusado ser dizer que uma obra-prima, um grande livro de fico

    cientfica e um timo exemplo do que a fico cientfica pode ser quando usada de forma sria.

    Estruturalmente, o livro possui quatro cartas iniciais, vinte e quatro captulos e pode

    ser dividido da seguinte maneira conforme Antonio Carlos Pinho Silva e Ablio Friedman

    (2005):

    Introduo do incio at o final do captulo IV. A temos:

    apresentao dos personagens;

    a maneira como Robert Walton faz a sua viagem ao Plo Norte;

    como foi constituda a famlia Frankenstein;

    a maneira como Elizabeth passou a integrar a famlia;

    10

  • a afinidade entre Victor e Elizabeth;

    a morte da me de Victor;

    o incio dos estudos de Victor na universidade.

    Complicao captulo V.

    A complicao ocorre no momento em que Victor d vida a sua Criatura.

    Desenvolvimento captulo V ao XXII:

    a Criatura mata William, irmo mais novo de Victor;

    Justine acusada por esse crime e morre no cadafalso;

    Victor encontra a Criatura e esta lhe narra a sua histria;

    Victor concorda em construir a fmea, mas se arrepende e destri o ser antes de

    lhe dar vida;

    a Criatura promete vingana e ameaa a lua-de-mel de Victor;

    a Criatura mata Henry Clerval;

    Victor se casa com Elizabeth.

    Clmax captulo XXIII.

    O clmax se d quando a Criatura cumpre a sua promessa de vingana e mata Elizabeth

    no leito de npcias.

    Desfecho captulo XXIII at o final da obra:

    o pai de Victor morre de desgosto;

    Victor comea a percorrer o mundo atrs da Criatura;

    11

  • Victor morre a bordo do navio de Walton;

    a Criatura diz a Walton que se suicidar, conforme o desejo do seu criador e

    some na escurido.

    2.4 Anlise dos Personagens

    Protagonista Victor Frankenstein

    Victor nasceu em Genebra como o filho primognito de uma famlia distinta. Como ele

    mesmo descreve em sua histria, teve uma infncia muito agradvel, graas aos pais carinhosos

    e indulgentes e Elizabeth. Desde criana ele j possui um temperamento agitado, paixes

    veementes e sede por conhecimento. Seu primeiro interesse a poesia, mas depois de certo

    tempo focaliza suas atenes cincia. Este interesse em breve se torna uma obsesso: ele se

    dedica completamente a aprender os segredos do cu e da terra. Sua obsesso diagnosticada

    por mudanas radicais de carter e de sade. Ele muda de um homem sensvel e saudvel para

    se tornar um egosta, doentio e que se afasta da amada e da famlia durante alguns anos. Depois,

    Victor alega que foi enganado por uma paixo e que estava sobre o jugo da: Evil influence,

    the Angel of Destruction, which asserted omnipotent sway over me from the moment I turned

    my reluctant steps from my father's door6 (SHELLEY, 1996, p. 19).

    apenas depois da criao do monstro que Victor passa a pensar nas conseqncias

    dos seus atos. A obsesso o havia cegado, aparentemente antes de concluir sua obra. No entanto,

    segundo Cynthia Hamberg (2005), ele no leva a culpa pelo que aconteceu. De fato, parece

    ansioso para esquecer isto de qualquer forma, mas fica claro que a Criatura no o deixar

    esquecer.

    6 Traduo: Demonaca influncia do Anjo da Destruio que me dominou desde o instante em que, relutantemente, eu me afastei dos degraus da porta da casa de meu pai (SHELLEY, 2002, p. 51).

    12

  • Depois que a Criatura lhe conta sua histria, Victor sente um pouco de compaixo, a

    ponto de sentir, at mesmo, responsabilidade pela sua criao. Porm, a responsabilidade de um

    ser humano da sua categoria eventualmente desaparece, e ele decide, ao final, no acatar ao

    pedido da Criatura. Esse sentimento de compaixo pela Criatura desaparece totalmente quando

    Elizabeth assassinada. A nica coisa que Victor passa a sentir o dio. O nico propsito de

    sua vida ser exclusivamente matar ao ser que deu vida e vingar sua famlia.

    No final de sua vida, o dio violento desaparece, mas Victor permanece to

    determinado quanto antes. Isto resulta em algumas aes contraditrias e comentrios que faz.

    Por um lado, o fato de contar sua histria, pode ser algo positivo. Fazendo isto, ele assegura que

    a histria real e serve de advertncia para as geraes futuras. Isto leva concluso que ele

    descobriu seu erro e que finalmente se responsabilizou pelos seus atos. Mas, por outro lado, h

    o episdio em que a tripulao do navio de Walton exige a volta para a sua terra natal, e Victor

    responde a este fato com um discurso emocionante e apaixonado. Entre outras coisas, ele acusa

    aos homens de covardia e fraca ndole. Se eles iriam abandonar a expedio, que voltassem para

    casa com um estigma de desgraa. Julgando por este comentrio, Victor no apreendeu muito

    da sua provao; aparentemente, ainda sente que as pessoas deveriam colocar seus sentimentos

    e desejos acima de tudo. Este um raciocnio interessante da natureza egosta de Victor.

    Outro exemplo de seu egosmo, retratado por Antonio Carlos Pinho Silva e Ablio

    Friedman (2005), a maneira como ele lida com as ameaas da Criatura. bvio que a Criatura

    quer feri-lo; desta forma, Victor acredita que apenas ele quem ela quer eliminar. Porm,

    parece claro que a melhor forma de atingir Victor ferir as pessoas que ele ama. Isto

    exatamente o que faz a Criatura ao exterminar sua famlia e seus amigos. Assim, Victor no

    percebe isto; se ele tivesse percebido, teria protegido mais a Elizabeth, por exemplo.

    Essencialmente, h duas formas de Victor escapar da vingana da Criatura: uma forma matar a

    Criatura. Victor tenta, mas a Criatura sempre escapa; outra forma seria sacrificar a sua vida em

    13

  • troca das vidas dos amigos e familiares, em outras palavras, suicidar-se. Desta forma, Victor

    teria como se vingar da Criatura; esta ttica poderia ter sido trabalhada no final do livro. Este

    modo drstico de parar com os assassinatos da Criatura no passa pela mente de Victor, no

    entanto, ele no tem medo de morrer. Alis, quando estava adoentado, com febre, ele mesmo

    deseja estar morto: Soon, oh! Very soon, will death extinguish these throbbings, and relieve me

    from the mighty weight of anguish that bears me to the dust; and, in executing the award of

    justice, I shall also sink to rest7 (SHELLEY, 1996, p. 98-9).

    Antagonista A Criatura

    A primeira aparncia da Criatura, que permanece sem nome, descrita por seu criador,

    ela construda de vrios corpos diferentes:

    His yellow skin scarcely covered the work of muscles and arteries beneath; his hair was of a lustrous black, and flowing; his teeth of a pearly whiteness; [] his watery eyes, that seemed almost of the same colour as the dun white sockets in which they were set, his shrivelled complexion and straight black lips8 (SHELLEY, 1996, p. 26).

    Combinadas estas caractersticas sua estatura gigantesca, sua deformidade, a

    imagem de monstro est completa, no parecer de Cynthia Hamberg (2005). Seu aparecimento se

    mostra como a causa de todos os problemas. As pessoas ficam horrorizadas quando a vem, e

    impedem que a Criatura tente manter contato com elas. Essa falta de contato pessoal e o

    isolamento resultam, indiretamente, nos crimes que ela vem a praticar.

    Ela tenta se comunicar com as pessoas em vrias ocasies, mas sempre rejeitada.

    Acaba por perder um pouco da esperana, at o momento em que se refugia na choupana da

    famlia De Lacey. Ela os observa durante muito tempo, enquanto aprende seu idioma e seus

    7 Traduo: Breve, muito breve a morte extinguir essas palpitaes e me aliviar da pesada carga de angstia que me conduzir ao p e, cumprindo a deciso da justia, eu tambm deverei mergulhar no repouso eterno (SHELLEY, 2002, p. 212).8 Traduo: Sua pele amarela mal cobria o relevo dos msculos e das artrias que jaziam por baixo; seus cabelos eram corridos e de um negro lustroso; seus dentes, alvos como prolas; ... seus olhos desmaiados, quase da mesma cor cinzenta das rbitas onde se cravavam, e com a pele encarquilhada e os lbios negros e retos (SHELLEY, 2002, p. 65).

    14

  • hbitos. Ao ler romances como o Paraso Perdido de John Milton, comea a desejar conhecer

    sobre a sua origem e porque a sua aparncia a isola dos outros: I was apparently united by no

    link to any other being in existence9 (SHELLEY, 1996, p. 67). Claro est que ela almeja um

    pouco de bondade, proteo e companhia. Estes desejos se tornam mais evidentes at mesmo

    quando l o dirio que Victor manteve durante sua criao. Atravs da leitura, percebe que seu

    criador no ficou contente por t-la criado, isso a faz se sentir mais s e rejeitada at por ela

    mesma.

    Apenas quando se convence da bondade dos De Lacey, que decide se aproximar para

    fazer um contato pela primeira vez. A sua conversa inicial com o velho De Lacey muito

    positiva; isto acontece, principalmente, pelo fato do velho ser cego e, desta forma, o

    aparecimento da Criatura no pode levar a qualquer idia preconceituosa. Inesperadamente, os

    demais familiares retornam ao lar, e a Criatura expulsa da casa. Ainda assim, ela se recusa a

    pensar mal deles e se culpa por ter sido descoberta. Apenas quando ela descobre que a famlia

    fugiu apavorada da choupana que comear a nutrir sentimentos negativos como o dio e a

    vingana. Estes sentimentos no so dirigidos famlia De Lacey, mas sim, para o seu criador.

    Posteriormente, ela declara que as matanas no lhe fizeram bem. Alega que era: the

    slave, not the master, of an impulse which I detested, yet could not disobey10 (SHELLEY, 1996,

    p. 121), um estado que se assemelha ligeiramente com a obsesso de Victor pela cincia. A

    Criatura, da mesma forma que Victor, chega a um ponto onde no nutre outro sentimento alm

    do dio. Quando v que sua ltima vtima, Victor Frankenstein, est morto, mostra remorso. Ela

    agora aceita que nunca haveria possibilidade de: pardoning my outward form, would love me

    for the excellent qualities which I was capable of unfolding11 (SHELLEY, 1996, p. 121), com

    9 Traduo: Aparentemente, eu no possua liame algum com qualquer outra criatura viva (SHELLEY, 2002, p. 150).10 Traduo: O escravo, e no o senhor, de um impulso que, embora detestasse, no podia deixar de obedecer (SHELLEY, 2002, p. 256).11 Traduo: Perdoando a minha forma exterior, me amassem pelas excelentes qualidades que era capaz de revelar (SHELLEY, 2002, p. 258).

    15

  • um imenso rancor, promete a Walton: consume to ashes this miserable frame para que as

    curiosas geraes do futuro no criem such another as I have been12 (SHELLEY, 1996, p.

    122).

    Coadjuvante Robert Walton

    Walton era um jovem aventureiro que pretendia desvendar os mistrios do Plo Norte.

    Teve sua viagem financiada por uma herana que recebeu de um primo. Nunca se dedicou aos

    estudos, mas sempre gostou muito de ler. Seu pai morreu numa viagem martima. por meio de

    suas cartas, destinadas irm Margaret, tomadas enquanto Victor estava enfermo em seu navio,

    que se conhece a histria de Victor Frankenstein e a sua Criatura.

    Secundrio Elizabeth Lavenza Frankenstein

    rf muito cedo, vive com uma famlia de camponeses em Milo antes de ser adotada

    pela famlia Frankenstein. Eles a levam para Genebra, onde ela iniciada em seus costumes.

    Desde o momento que Elizabeth entrou na casa, j estava certo que ela seria esposa de Victor.

    Este sempre achou que ela era realmente sua propriedade, ou seja, o matrimnio era algo

    inevitvel: No word, no expression could body forth the kind of relation in which she stood to

    me--my more than sister, since till death she was to be mine only13 (SHELLEY, 1996, p. 14).

    Uma clara descrio do surgimento de Elizabeth apresentada quando seus futuros

    pais adotivos a vem pela primeira vez:

    This child was thin, and very fair. Her hair was the brightest living gold, and, despite the poverty of her clothing, seemed to set a crown of distinction on her head. Her brow was clear and ample, her blue eyes cloudless, and her lips and the moulding of her face so expressive of sensibility and sweetness, that none could behold her without looking on her as of a distinct species, a

    12 Traduo: Reduzirei a cinzas este corpo miservel...outro ser igual a mim (SHELLEY, 2002, p. 259).13 Traduo: Nenhuma palavra, nenhuma expresso poderiam incorporar melhor o tipo de parentesco que ela representava para mim mais do que irm, j que at a morte ela deveria ser apenas minha (SHELLEY, 2002, p. 39).

    16

  • being heaven-sent, and bearing a celestial stamp in all her features14 (SHELLEY, 1996, p. 13).

    Todos os termos dessa descrio so representativos do bem e do angelical. Assim

    como pode ser apresentada por vrias outras descries no romance, para Joo Lus Almeida

    Machado (2005), Elizabeth encarna a mulher jovem e perfeita de classe-mdia. Ela sempre est

    tranqila e concentrada, sem preconceitos, ama a poesia e a beleza da zona rural e sempre leal

    aos amigos e familiares.

    Secundrio Henry Clerval

    Henry o nico amigo de Victor. difcil determinar porque eles so to amigos, pois

    a relao parece um pouco unilateral, na opinio de Cynthia Hamberg (2005). Ao longo do

    livro, Henry acompanha seu amigo: cuida da sua sade e o acompanha em suas viagens.

    Henry e Victor tm personalidades opostas. evidente que Victor admira a

    sensibilidade de Henry, a imaginao entusistica e a gentileza. Ao contrrio de Victor, Henry

    est mais interessado em literatura (canes hericas, livros de cavalheirismo e romances),

    estudo da lngua e da natureza. Embora Henry tambm tenha uma mente questionadora e esteja

    ansioso por obter experincia e instruo, nunca deixa isso interferir em suas relaes pessoais.

    No romance, declarado que Henry tem uma percepo aguda dos outros; por causa

    disto e pela frgil sade de Victor, Henry sente que h algo de terrivelmente errado acontecendo

    com o amigo. Mas, sendo leal, nunca pergunta a Victor sobre isto, pois bvio que este no

    quer compartilhar seu problema. Para Antonio Carlos Pinho Silva e Ablio Friedman (2005),

    14 Traduo: Esta era esguia e muito bela. Seu cabelo era vvido e brilhante como o ouro, parecia ostentar uma coroa de distino sobre a cabea. Sua fronte era larga, seus olhos azuis sem uma nvoa, os lbios e o contorno do seu rosto exprimiam tanta sensibilidade e doura que ningum podia contempl-la sem ver nela uma origem distinta, um ser enviado pelo cu, com a marca celestial em todas as suas feies (SHELLEY, 2002, p. 38).

    17

  • talvez, se Victor tivesse dividido seu segredo ao amigo em quem tinha tanta confiana, Henry

    no teria pago o preo mais caro por sua amizade.

    Secundrio Alphonse Frankenstein

    O pai de Victor, Alphonse, um homem nobre e bem respeitado na comunidade.

    Tambm protetor e leal a todos que esto sua volta. Por exemplo, ele sempre partir em

    defesa do filho, at mesmo quando este acusado de assassinato, sem sequer questionar sua

    inocncia. Ele adora a esposa Caroline, por ter lhe aliviado os sofrimentos quando esta era

    criana.

    Alphonse paciente, extremamente benevolente e tem um grande autocontrole. Pode

    ser considerado uma pessoa sensata em relao aos estados psquicos de Victor:

    Had taken the greatest precautions that my mind should be impressed with no supernatural horrors. I do not ever remember to have trembled at a tale of superstition, or to have feared the apparition of a spirit. Darkness had no effect upon my fancy; and a churchyard was to me merely the receptacle of bodies deprived of life, which, from being the seat of beauty and strength, had become food for the worm15 (SHELLEY, 1996, p. 22).

    Secundrio - Caroline Beaufort Frankenstein

    Sendo uma pessoa atenciosa, Caroline, como uma adolescente, cuida de seu pai

    gravemente doente durante vrios meses. As circunstncias so difceis para ela, mas sua

    coragem a tira das dificuldades. Ela trabalha arduamente e faz pequenos trabalhos manuais para

    ajudar no oramento.

    Depois que se casa com Alphonse Frankenstein, as finanas no mais lhe preocupam;

    ela se torna um anjo da guarda dos menos afortunados. Ela delicada, sensvel e indulgente

    com seus filhos, em resumo, uma me perfeita. A descrio de Caroline pode ser comparada

    15 Traduo: Tomara todas as precaues para que minha mente no se impregnasse de horrores sobrenaturais. No me lembro de haver me arrepiado ante um conto de superstio ou haver temido o aparecimento de um esprito. A escurido jamais me perturbou, e um cemitrio nada mais era para mim do que o receptculo de corpos privados de vida, que depois de terem sido sede da beleza e da fora, se haviam transformado em alimento dos vermes (SHELLEY, 2002, p. 59).

    18

  • de Elizabeth; ambas so a imagem perfeita da feminilidade na metade do sculo XVIII pela

    ideologia da nobreza, para Cynthia Hamberg (2005).

    Secundrio William Frankenstein

    Irmo mais novo de Victor, criana meiga e alegre que foi assassinada pela Criatura

    quando passeava na floresta.

    Secundrio Ernest Frankenstein

    Irmo de Victor; rapaz forte e vigoroso que aspirava entrar para o servio militar; sua

    ltima apario na obra foi no julgamento de Justine.

    Secundrio Justine Moritz

    Veio morar com a famlia Frankenstein quando tinha doze anos; uma garota muito

    humilde e perturbada pela me que era insana, mas sempre atenta s necessidades da famlia

    que a acolheu. Foi acusada injustamente pela morte de William. No entanto, seu confessor a

    assediou e ameaou-a de tal forma que ela confessou um crime que no cometera e morreu no

    cadafalso como assassina.

    Secundrios Professor Krempe e Professor Waldman

    Ambos so os professores de Victor quando este chega universidade de Ingolstadt; o

    primeiro causar certa repugnncia a Victor, devido postura moralista que adota, e sempre

    entraro em discusso. O segundo ser o professor com quem Victor se identificar e que ir

    colaborar para seu aprendizado das cincias de composio do homem.

    2.5 Foco Narrativo em Frankenstein

    19

  • Na obra Frankenstein, h trs focos narrativos em primeira pessoa. Primeiro, Robert

    Walton conta, por meio de quatro cartas enviadas a sua irm, os detalhes de sua viagem, que

    tinha o intuito de chegar ao Plo Norte. Depois, tem-se a narrativa de Victor Frankenstein, que

    relata sua histria at o momento do encontro com a Criatura numa cabana abandonada nas

    montanhas. Em seguida, a Criatura narra a sua histria, desde quando se viu abandonada no

    laboratrio at aquele encontro com Victor. Aps isso, a narrativa volta para Victor que termina

    de relatar sua histria, e os detalhes finais da obra so feitos por Walton.

    Exemplos de focos narrativos:

    Robert Walton - My affection for my guest increases every day, he excites at once

    my admiration and my pity to an astonishing degree16 (SHELLEY, 1996, p. 09).

    Victor Frankenstein - How can I describe my emotions at this catastrophe?17

    (SHELLEY, 1996, p. 25).

    A Criatura - It is with considerable difficulty that I remember the original era of

    my being; all the events of that period appear confused and indistinct18

    (SHELLEY, 1996, p. 52).

    2.6 O Tempo e o Espao em Frankenstein

    Apesar de existir, na obra, uma certa ordem de narrativa, segundo Antonio Carlos

    Pinho Silva e Ablio Friedman (2005), o tempo que predomina o psicolgico, uma vez que

    Victor, na maior parte da histria, relata a Robert Walton a sua histria de infortnios, para que

    16 Traduo: Aumenta a minha estima pelo hspede, na razo direta da minha admirao e da minha piedade (SHELLEY, 2002, p. 29)17 Traduo: Como posso descrever minhas emoes ante aquela catstrofe? (SHELLEY, 2002, p. 65).18 Traduo: com muita dificuldade que me lembro dos primeiros tempos da minha existncia. Todos os acontecimentos daquele perodo esto encobertos pela nvoa do tempo e me parecem confusos e indistintos (SHELLEY, 2002, p. 119).

    20

  • sirva de exemplo ao jovem capito e ele, na sua nsia por conhecimento, no cometa um erro

    semelhante ao seu.

    A maior parte da histria se passa em Genebra e Ingolstadt. Embora existam vrias

    descries de montanhas, vales, rios e vegetao abundante, as cenas de maior tenso ocorrem

    em lugares fechados e at macabros:

    durante o processo de criao do monstro, Victor walk to the occult ones, as a

    fugitive19 (SHELLEY, 1996, p. 24) e se enclausurava em seu laboratrio;

    a Criatura sempre habitou lugares escondidos e de difcil acesso, primeiro

    refugiou-se na floresta e depois, escondeu-se sob uma cabana;

    o encontro entre Victor e a Criatura d-se numa cabana no alto das montanhas;

    a morte de Elizabeth, clmax da obra, passa-se num quarto de hospedaria;

    finalmente, o desfecho ocorre na cabina de um navio.

    2.7 A Mitologia em Frankenstein

    O subttulo O Prometeu Moderno refere-se figura da mitologia grega que foi

    responsvel por um conflito entre o gnero humano e os deuses. De acordo com Antonio Carlos

    Pinho Silva e Ablio Friedman (2005), Prometeu era filho do tit Lpeto e de Clmene. Ele

    esposou Celeno e teve Deucalio, Lico e Quimereu. Prometeu manteve-se neutro durante a luta

    entre os Tits e os Olmpicos. Entretanto, quando notou que a vitria caberia aos Olmpicos,

    ofereceu seus prstimos a Jpiter. Desse modo, foi recebido no Olimpo, participando das

    assemblias e dos banquetes das divindades. Em determinada ocasio, para se vingar do pai dos

    deuses por ter exterminado a sua raa, resolveu criar um ser diferente dos animais apanhou o

    19 Traduo: Caminhava s ocultas, como um foragido (SHELLEY, 2002, p. 62).

    21

  • barro do cho, umedeceu-o com gua e esculpiu a massa, at obter as feies iguais de um

    deus. Inspirado nessa primeira esttua, modelou muitas outras. Em seguida, insuflou-lhes a

    fidelidade do cavalo, a fora do touro, a esperteza da raposa, a avidez do lobo. Minerva fez as

    novas criaturas sorverem algumas gotas de nctar e elas adquiriram o esprito divino: estava

    criada a raa humana.

    Algum tempo depois, num banquete em que um boi seria dividido entre os Olmpicos

    e os homens, Prometeu encarregou-se de fazer a partilha. De um lado, ps a carne e as

    entranhas do animal; de outro, apenas os ossos disfarados sob gordura branca. Jpiter escolheu

    a segunda parte. Ao verificar que fora vtima de um ardil, encolerizou-se contra Prometeu e os

    mortais. Para puni-los, escondeu-lhes o fogo, ltimo elemento que lhes faltava para

    desenvolverem uma civilizao. Para ajudar o ser humano, Prometeu subiu ao Olimpo e roubou

    o fogo de Zeus; a partir deste instante, definitivamente, as pessoas foram diferenciadas dos

    animais, no momento em que receberam o fogo dos deuses e desenvolveram as habilidades de

    criar armas e ferramentas. Enganado mais uma vez, Jpiter, para vingar-se, mandou Pandora

    terra para espalhar toda a sorte de desgraas entre os homens e acorrentou Prometeu no cume do

    monte Cucaso, onde abutres iam todos os dias comer-lhe o fgado imortal. Apesar do

    sofrimento, o tit manteve a sua atitude de revolta. Desafiou Jpiter, declarando que sabia um

    segredo sobre a sua deposio. Passados trinta anos, ou trinta sculos, Jpiter permitiu que

    Hrcules libertasse Prometeu. Este revelou um orculo20, segundo o qual, se Jpiter esposasse

    Ttis, ela teria um filho que o destronaria.

    Esta narrao mitolgica, para Alexander Martins Vianna (2005), tambm recorre

    plasticidade com que Prometeu criou o ser humano atravs do barro; esse mito, infundido em

    conjunto com o fogo que Prometeu tinha roubado, torna-se o fogo da vida com que ele animou

    suas esttuas.

    20 Orculo: divindade que responde a consultas e orienta o crente. (SILVA; FRIEDMAN, 2005).

    22

  • Por causa do aspecto de criao, segundo Cynthia Hamberg (2005), Prometeu tornou-

    se um smbolo para a criao artstica do sculo XVIII. Victor Frankenstein, por exemplo, pode

    realmente ser visto como o Prometeu moderno. Ele desafia aos deuses (ou a Deus) quando cria

    a vida. No instante da criao, ele toma o lugar de Deus e se torna o criador. Da mesma forma

    que Prometeu, Victor castigado por suas aes. No entanto, castigado por sua prpria

    Criatura, ao contrrio do tit, que foi castigado pelos deuses.

    2.8 Filmografia

    Como todo grande livro, Frankenstein j teve vrias verses cinematogrficas, sendo

    um dos mais adaptados em toda a histria do cinema, somando a marca de 110 produes

    (FRANCO, 2005), entre as quais se destaca o clssico de 1921, dirigido por James Whale, tendo

    Boris Karloff no papel da Criatura e imortalizando seu rosto (como podemos constatar atravs

    do desenho de capa da edio de 2002 da editora L&PM Pocket). Alguns desses filmes no

    foram fiis estrutura da obra criada por Mary Shelley e ligaram o nome Frankenstein

    Criatura e no ao criador; outros, como a verso do ingls Kenneth Brannagh, Mary Shelleys

    Frankenstein, de 1994, procuraram manter o esprito da obra, sendo esta a adaptao mais fiel

    para o cinema, estudando com afinco as referncias citadas no livro.

    A obra de Brannagh, justamente por ater-se ao texto original, d uma clara dimenso

    do embate entre criador e Criatura, entre a cincia e a religio, temas to presentes no momento

    atual devido s polmicas descobertas cientficas. Como nos relata Joo Lus Almeida Machado

    (2005), algumas das questes que esto em pauta no debate acerca da clonagem aparecem na

    trama do Dr. Frankenstein (mas estudar-se- mais aprofundadamente estas questes na prxima

    unidade). Debates de carter filosfico rondam o texto e transparecem nas telas. Afinal, o que

    motivou a criao desse temvel monstro? Se ele foi criado, o que motivou seu criador a rejeit-

    23

  • lo de forma to veemente? Devem ser criados limites para a ao da cincia? A criao da vida

    no apenas atributo de Deus? Os homens, imperfeitos como so, no devem restringir suas

    aes e acatar os desgnios de Deus? Observando estas indagaes e tendo como base o livro, o

    filme tenta respond-las.

    A verso cinematogrfica de 1994 conta com a escalao de um elenco brilhante e que

    realmente d vida aos personagens do livro de Mary Shelley: alm de dirigir, Kenneth Brannagh

    tambm atua no filme, fazendo o papel do atormentado Dr. Frankenstein; Robert de Niro, como

    a Criatura, concede uma maior expressividade e dramaticidade figura do monstro; tm-se

    ainda outros nomes como Aidan Quinn, Helena Bonham Carter e John Cleese.

    Sem dvida alguma, uma das passagens mais marcantes do filme o dilogo

    estabelecido entre Victor e a Criatura no interior de uma caverna no rtico; apesar da adaptao

    feita pelos roteiristas na fala da Criatura, a mesma repleta de uma intensa filosofia e

    romantismo. Nesta ocasio, a Criatura questiona seu criador pela morte de Willie e Justine, pois

    sua culpa o fato dela no saber usar adequadamente as capacidades que possui. Pergunta se ela

    tem alma ou se o criador se esqueceu disso: Quem eram estas pessoas que me formam?

    Pessoas boas? Pessoas ms?... Voc me deu vida, e depois me abandonou para que eu

    morresse... Quem sou eu?... Acha que eu que sou mau?

    Diante de tal argumentao, Victor sente-se totalmente impotente e comovido, como se

    fosse assumir a sua responsabilidade pelo ser que criara; mas, devido ao seu prprio egosmo,

    v-se que, no transcorrer da histria, ele acredita que a Criatura tem um forte poder

    argumentativo, mas que no passa de uma armadilha. A adaptao cinematogrfica utiliza, com

    um senso acurado, os espaos fechados e abertos, o jogo do claro e do escuro, e a trilha sonora

    envolvente. Neste trabalho de anlise, sero desenvolvidos argumentos tendo como base esta

    verso, que se encaixa perfeitamente no estudo da fantstica criao do homem e do seu

    conhecimento de mundo.

    24

  • 2.9 A Intertextualidade presente em Frankenstein

    possvel constatar a intertextualidade em Frankenstein no apenas atravs do

    relacionamento da figura mitolgica de Prometeu a Victor, mas tambm pelas diversas menes

    que a obra faz a cientistas que influenciaram a criao do monstro, poetas do perodo

    romntico, e algumas obras literrias que se relacionam com a temtica do livro, que podem ser

    os limites ticos e religiosos da cincia, bem como a rejeio ao diferente e ao anmalo,

    caractersticas da sociedade de massa. Abaixo, seguem as referncias:

    Erasmus Darwin: av de Charles Darwin, publicou o livro Zoonomia ou Leis da Vida

    Orgnica onde assinalou que a variao do ambiente provoca uma resposta do organismo

    (estrutura de um rgo). Portanto, os animais transformavam-se pelo hbito provocado pelas

    necessidades. Joo Lus Almeida Machado (2005) relata que, em suma, Erasmus Darwin

    acreditava na herana de caracteres adquiridos e, com essa crena, produziu o que decerto era

    uma emergente teoria da evoluo, embora, de fato, ainda deixasse muitas questes sem

    resposta. A citao a este cientista surgir na Introduo da Autora, feita para a edio de

    1831, onde Mary Shelley conta a histria que ouviu da boca de seu marido e de seus amigos, e

    que a fez pensar na estrutura inicial de seu romance: Eles falavam do Dr. Darwin... no me

    refiro ao que o doutor fez ou disse que fez, mas no meu prprio interesse, no que se falava que

    ele teria feito (SHELLEY, 2002, p. 9).

    Paracelso: conforme a Enciclopdia Barsa (p. 257, vol. 10), o fundamento do seu

    sistema uma filosofia visionria neoplatnica, na qual a vida humana vista como inseparvel

    do universo. O corpo humano primeiramente composto de sal, enxofre e mercrio, e a

    separao destes elementos msticos seria a causa das doenas. Para ele, o mdico deve

    25

  • conhecer as Cincias Fsicas e a Alquimia, a Astronomia e a Teologia, pois, alm do corpo e do

    esprito, h, nos seres humanos, um terceiro elemento, criado por Deus, a alma. Em

    Frankenstein, Paracelso influir nos conhecimentos cientficos de Victor atravs de suas

    leituras: when I returned home, my first care was to procure the whole works of this author,

    and afterwards of Paracelsus21 (SHELLEY, 1996, p. 16). Na verso cinematogrfica de

    Kenneth Brannagh, a Criatura pergunta a Victor se ela possui alma ou, se ele, ao cri-la,

    esqueceu deste fato; subentende-se que, em determinado momento, o cientista no observou

    profundamente os ensinamentos de Paracelso.

    Albertus Magnus: santo padroeiro das cincias naturais, procurou adaptar as teorias

    de Aristteles filosofia crist, e recuperou para a cultura ocidental os estudos cientficos do

    grande pensador. Especulando sobre o conhecimento da verdade, Albertus Magnus procurou

    demonstrar que se podia alcan-la tanto por meio da revelao e da f, quanto da filosofia e da

    cincia no havia contradio entre esses dois caminhos. Embora houvesse mistrios

    acessveis somente f, alguns aspectos da doutrina crist, como a imortalidade da alma,

    podiam ser compreendidos tambm pela razo. A importncia dada razo viria a ser uma das

    principais caractersticas da filosofia de seu mais notvel discpulo, santo Toms de Aquino. De

    especial interesse foram os estudos de santo Albertus sobre Aristteles, nos quais introduziu

    comentrios e descries de suas prprias observaes e experincias nos campos da biologia,

    da astronomia e das matemticas. Quando, na obra, segundo Cristina Maria Teixeira Martinho

    (2005), Victor comea a construir sua criatura, no sente que est desafiando as leis de Deus,

    justamente por acreditar que os princpios da cincia e da religio eram compatveis ao que ele

    se propunha a fazer; no caso, essa seria a influncia de Albertus Magnus: I little expected, in

    21 Traduo: Quando voltei para casa, meu primeiro cuidado foi procurar toda a obra daquele autor e, depois, as de Paracelso (SHELLEY, 2002, p. 43)

    26

  • this enlightened and scientific age, to find a disciple of Albertus Magnus22 (SHELLEY, 1996,

    p. 19).

    Cornelius Agrippa: foi um mago que viveu na Renascena, adotou o nome de Agrippa

    em homenagem ao fundador de sua cidade natal na Alemanha. Trabalhou como mdico,

    advogado, astrlogo e com curas atravs da f. Mas fez tantos inimigos quanto amigos e foi

    acusado de feitiaria. Em 1529, publicou um livro chamado Sobre a Filosofia Oculta, valendo-

    se de textos hebraicos e gregos para argumentar que a melhor maneira de chegar a conhecer a

    Deus era por meio da magia. A Igreja declarou-o um hertico e o prendeu. Agrippa foi uma das

    inspiraes de Goethe para escrever a pea Fausto, na qual um homem de cincia faz um pacto

    com o diabo segundo Nelson Ascher (2004, p. 14). Seu nome tambm um termo para designar

    um livro de magia muito especial, cortado em forma de pessoa. Ele tambm inspirou Mary

    Shelley na composio do carter de Victor Frankenstein:

    In this house I chanced to find a volume of the works of Cornelius Agrippa. I opened it with apathy; the theory which he attempts to demonstrate, and the wonderful facts which he relates, soon changed this feeling into enthusiasm. A new light seemed to dawn upon my mind; and, bounding with joy, I communicated my discovery to my father. My father looked carelessly at the title page of my book, and said, - Ah! Cornelius Agrippa! My dear Victor, do not waste your time upon this; it is sad trash.23 (SHELLEY, 1996, p. 15).

    Luigi Galvani: mdico e fisiologista italiano que, ao realizar pesquisas sobre o

    comportamento dos msculos das rs, fez descobertas importantes para a eletricidade (implantar

    agulhas em pontos vitais do anfbio para observar a contrao muscular); segundo a

    Enciclopdia Barsa (p. 414, vol. 6), ele colaborou para a criao das pilhas eltricas. Sua

    doutrina chamada de galvanismo. No filme de Kenneth Brannagh, antes de dar vida

    22 Traduo Jamais esperei encontrar, nesta idade das cincias e das luzes, um discpulo de Albertus Magnus (SHELLEY, 2002, p. 52).23 Traduo: Nessa casa, eu encontrei por acaso um volume das obras de Cornelius Agrippa. Abri-o displicentemente; a teoria que ele tenta demonstrar e os maravilhosos fatos que ele relata logo transformaram esse sentimento em entusiasmo. Parecia que uma nova luz surgia em meu crebro, e vibrando de alegria, comuniquei minha descoberta a meu pai. Meu pai olhou descuidadamente para a capa do meu livro e disse: - Ah! Cornelius Agrippa! Meu caro Victor, no perca tempo com isso. uma bobagem (SHELLEY, 2002, p. 43).

    27

  • Criatura, Victor faz uma experimentao reanimando um sapo atravs de descarga eltrica em

    seus pontos vitais. No livro, existem vrias passagens referentes doutrina de Galvani, tais

    como:

    On this occasion a man of great research in natural philosophy was with us, and, excited by this catastrophe, he entered on the explanation of a theory which he had formed on the subject of electricity and galvanism, which was at once new and astonishing to me24 (SHELLEY, 1996, p. 17).

    Wordsworth e Coleridge: Anthony Burgess (1999, p. 198-1999; 200-201) apresenta

    algumas das principais caractersticas desses dois grandes poetas do romantismo ingls. O

    primeiro caracteriza-se pelo uso da intuio, misticismo, bucolismo, idealizao das pessoas

    simples (so mais puras, mais sbias que os habitantes da cidade, e a sua linguagem menos

    corrupta, possuem uma conduta de acordo com natureza). Pode-se estabelecer um paralelo das

    suas caractersticas principais com a mentalidade inicial da Criatura, que age intuitivamente,

    refugia-se em localidades rurais ou prximas natureza e tambm pela idealizao da famlia

    de camponeses De Lacey. Como exemplo, h um trecho de seu poema Tintern Abbey, que est

    dentro da obra, referindo-se a um desabafo de Victor sobre a personalidade do amigo

    assassinado, Henry Clerval:

    The sounding cataract / Haunted him like a passion: the tall rock, / The mountain, and the deep and gloomy wood, / Their colours and their forms, were then to him / An appetite; a feeling, and a love, / That had no need of a remoter charm, / By thought supplied, or any interest / Unborrow'd from the eye25 (SHELLEY, 1996, p. 83).

    O segundo poeta tem fixao pelo sobrenatural, os elementos mgicos e misteriosos,

    geralmente voltados para o mal ou sensaes sinistras e as qualidades demonacas das suas

    descries. Um trecho do seu mais famoso poema, Ancient Mariner, est inserido no captulo V,

    24 Traduo: Nesta ocasio, achava-se conosco um homem, grande pesquisador das cincias naturais, que excitado por este acidente, se ps a explicar uma teoria que elaborara sobre a eletricidade e o galvanismo, ao mesmo tempo nova e espantosa para mim (SHELLEY, 2002, p. 46).25 Traduo: Assaltava-o uma paixo: as rochas altaneiras, as montanhas e os bosques profundos e sombrios, com suas cores e suas formas, despertavam nele sensaes e um amor que no precisavam de recnditos encantos, nascidos da imaginao, ou de interesses emprestados pelo que a viso lhe podia proporcionar (SHELLEY, 2002, p. 182).

    28

  • justamente o da criao do monstro, e expressa o estado emocional de Victor aps esta

    realizao: Like one who, on a lonely road, / Doth walk in fear and dread,/ And, having once

    turned round, walks on, / And turns no more his head; / Because he knows a frightful fiend /

    Doth close behind him tread26 (SHELLEY, 1996, p. 27).

    Volney: com a sua obra Imprios Arruinados, apresenta uma legtima descrio

    geogrfica e historiogrfica de vrias naes, dando-lhes um carter romanesco segundo

    Antonio Carlos Pinho Silva e Ablio Friedman (2005). A Criatura ler este livro e partir dele

    que saber se orientar em direo a Genebra para procurar seu criador, conhecer as regies

    inabitadas do planeta e aprender o caminho para o Plo Norte que lhe servir de esconderijo e

    sepultura:

    The book from which Felix instructed Safie was Volney's Ruins of Empires... Through this work I obtained a cursory knowledge of history, and a view of the several empires at present existing in the world; it gave me an insight into the manners, governments, and religions of the different nations of the earth27 (SHELLEY, 1996, p. 61).

    Plutarco: fez um verdadeiro catlogo de personalidades mistura de heris, figuras

    mticas, e exemplares cidados estadistas , era o sacerdote de Apolo e escreveu 46 biografias

    comparadas e mais 4 adicionais. Intitulou-as de os Vares Ilustres (que conhecemos como Vidas

    Ilustres), onde rende seu tributo s grandes figuras do mundo greco-romano, humanizando-os

    ao coletar-lhes anedotas e pequenos incidentes. Foi nele que Shakespeare abeberou-se para

    encenar Antnio e Clepatra, e Jlio Csar, segundo Michel Jalil Fauza (2005), enquanto Jean-

    Jacques Rousseau recomendava-o como leitura obrigatria na formao do carter dos jovens.

    O prprio Plutarco, que criou um cnone, isto , uma apresentao padro para as vidas que

    26 Traduo: Como algum que numa estrada solitria, caminha temeroso e aterrorizado, e, tendo olhado em derredor, avana, sem virar mais a cabea; por saber que um terrvel inimigo aproxima-se por trs dele (SHELLEY, 2002, p. 67).27 Traduo: O livro com que Flix instrua Safie era Imprios Arruinados de Volney... Atravs deste livro, obtive um breve conhecimento da histria e uma viso dos imprios atualmente existentes no mundo. Consegui compreender os costumes, os governos e as religies das diferentes naes da Terra (SHELLEY, 2002, p. 138).

    29

  • escreveu em grossos volumes, concorda que no fez histria no sentido maior, de investigao

    acurada, como assume, por exemplo, com um Tucdides, mas simples biografias, algo mais

    descomprometido com os rigores metodolgicos, mas que at hoje atrai um universo maior de

    leitores. Na obra Frankenstein, quem cita a obra de Plutarco a Criatura; esta conta que sentiu

    grande comoo ao tomar conhecimento do carter humano atravs da leitura:

    The volume of Plutarch's Lives, which I possessed, contained the histories of the first founders of the ancient republics [...] but Plutarch taught me high thoughts; he elevated me above the wretched sphere of my own reflections to admire and love the heroes of past ages28 (SHELLEY, 1996, p. 67).

    Goethe: no romance As Tristezas de Werther relatada a vida do jovem artista

    Werther, pertencente ao mundo blas da alta burguesia, que refugia-se numa buclica vila, onde

    busca o modo de vida contemplativo. Cerca-se dos clssicos gregos, passeia pelos campos e

    quase que rejeita as frivolidades burguesas, inclusive arengando contra alguns cnones daquela

    sociedade. Mas ele prprio est preso quela condio: sua existncia revela a caricatura

    daquele savoir-vivre burgus: freqenta bailes das altas rodas, relaciona-se com a aristocracia e

    nunca revela a que veio: apenas a potncia de um artista, que no se manifesta. Pois esta

    figura de homem acaba por vergar-se paixo (impossvel) por Lotte. A menina agrada-lhe por

    seus modos e pelas feies pintadas em tons pastis pelo romntico Goethe. Mas noiva de

    Albert, que se torna barreira intransponvel a Werther: a lealdade e correo impedem-no do ato

    mais verdadeiramente sincero. E em meio a este enredo de amor-ideal e renncia que

    permeiam os conceitos de suicdio de Werther, segundo Nelson Ascher (2004, p. 16). Em

    Frankenstein, a Criatura sente uma profunda identificao com o personagem Werther, no

    apenas por procurar o refgio no campo, mas por se sentir preso na terrvel condio de

    28 Traduo: O volume que eu possua das Vidas Ilustres de Plutarco continha as histrias dos primeiros fundadores das antigas repblicas... mas Plutarco ensinou-me pensamentos mais sublimes, elevou-me para acima da ruinosa esfera de minhas prprias reflexes, ensinando-me a admirar e amar os heris do passado (SHELLEY, 2002, p. 149-50).

    30

  • rejeitado que seu criador lhe causou e por tomar o romance como verdico, concedia ao

    personagem atributos quase divinos:

    In the Sorrows of Werther, besides the interest of its simple and affecting story, so many opinions are canvassed, and so many lights thrown upon what had hitherto been to me obscure subjects, that I found in it a never-ending source of speculation and astonishment... I thought Werther himself a more divine being than I had ever beheld or imagined; his character contained no pretension, but it sunk deep.29 (SHELLEY, 1996, p. 66-67).

    Roger Shattuck (2000, p. 84-111) tenta identificar um paralelo entre o personagem

    Victor Frankenstein com mais um personagem que d ttulo a outro romance de Goethe,

    Fausto, pois ambos so mdicos e cientistas obcecados por vencer a idia da morte, ambos

    perdem suas amadas em conseqncia dos seus erros e ambos criam um ser deformado. A

    Criatura, neste caso, posta em paralelo com o Homnculo, ser grotesco criado por Fausto, e

    ainda com Mefistfeles, por ser deficiente, incompleto. Como a autora Mary Shelley no faz

    referncia a esta obra em seu romance, no h porque aprofundar este estudo no presente

    trabalho.

    John Milton: um dos pilares da cultura de lngua inglesa, bem como um clssico em

    que a erudio pica renascentista se associa sonoridade retrica e religiosa do barroco; sua

    obra-prima a epopia Paraso Perdido, em que recria o conflito entre Lcifer e Deus e o mito

    da criao do homem, bem como sua expulso do paraso com uma metafsica monista (dita

    tambm filosofia biolgica, em que a realidade total se reduz sempre

    unidade monista da matria, vida e esprito; neste sentido no h Deus

    separado do mundo, nem h alma separada da matria, da qual o

    psiquismo apenas uma epifenmeno; encontrou fundamento atravs das

    teorias positivistas de Rousseau e Comte) e uma espcie de materialismo cristo.

    29 Traduo: Em As Tristezas de Werther, alm do interesse da narrativa simples e comovente, so examinadas tantas opinies e tanta luz foi lanada sobre o que at ento foram os meus temas obscuros, que nele eu encontrei uma infindvel fonte de especulao e espanto... Eu achava que Werther era, em si mesmo, um ser mais divino de quantos eu j vira ou imaginara; seu carter, sem o pretender, penetrava no fundo de minha alma (SHELLEY, 2002, p. 149).

    31

  • Composta de doze livros e escrita em pentmetros ingleses, a obra apresenta a inovao dos

    versos brancos, com extraordinrio senso de ritmo e sonoridade. A relao da obra Frankenstein

    com o Paraso Perdido profundamente evidente para Harold Bloom (2002, p. 265), no

    apenas por causa das duas histrias abordarem a criao e queda do homem, mas por mostrar

    que geralmente o grotesco, o anmalo o smbolo do mal. Alm da epgrafe ser um trecho do

    texto de Milton, onde Ado aborda a Deus sobre a sua criao, quem tomar conhecimento no

    romance de Mary Shelley sobre esta histria a Criatura, ora se identificando com Ado, por

    ser um objeto de criao, ora o invejando por ter um Criador sempre presente; outras vezes se

    identificando com Satans, pela rejeio porque passa e pela inveja do convvio harmonioso

    entre as pessoas: But Paradise Lost excited different and far deeper emotions... Many times I

    considered Satan as the fitter emblem of my condition; for often, like him, when I viewed the

    bliss of my protectors, the bitter gall of envy rose within me30 (SHELLEY, 1996, p. 67).

    Schiller: importante poeta, dramaturgo e filsofo alemo, interessado, sobretudo, na

    Esttica; faleceu jovem, mas deixou poesias, peas teatrais e escritos que marcaram a literatura

    e a filosofia alems. No livro, ele no mencionado; mas faz uma pequena participao no

    filme de Kenneth Brannagh, como um jovem e arrogante estudante de Ingolstadt, que se

    interpe no caminho de Victor e Henry Clerval.

    30 Traduo: Mas o Paraso Perdido provocou-me sensaes ainda mais diversas e profundas... muitas vezes considerei Satans como o emblema que mais se adaptava minha situao, pois no raro, como ele, quando eu via a alegria de meus protetores, sentia dentro de mim o gosto amargo da inveja. (SHELLEY, 2002, p. 150-1).

    32

  • 3 A CRIAO FANTSTICA DO HOMEM E O CONHECIMENTO DE MUNDO

    3.1 Conceito de Fantstico

    Primeiramente, para que se possa entrar no estudo do elemento fantstico dentro da

    obra de Mary Shelley, faz-se necessrio conceitualizar o termo. Segundo Aurlio Buarque de

    Holanda Ferreira (2004, p. 338), o fantstico o elemento existente apenas na fantasia, no

    imaginrio de cada um, tambm pode representar o que extraordinrio ou o que falso e

    simulado. Tambm na obra de Selma Calasans Rodrigues (1988, p. 9), o termo fantstico (do

    latim phantasticu, por sua vez do grego phantastiks, os dois oriundos de phantasia) recebe

    conceito similar, acrescentando que se aplica melhor a um fenmeno de carter artstico, como

    a literatura, cujo universo sempre ficcional por excelncia, por mais que se queira aproxim-lo

    do real.

    No sentido restrito, o fantstico ainda se elabora a partir da rejeio que o Sculo das

    Luzes faz do pensamento teolgico medieval e de toda a metafsica. Nesse sentido ele operou

    uma transformao sem precedentes do pensamento ocidental. A partir do grande movimento de

    racionalizao, pode-se afirmar que se procurou absorver os antigos terrores e dar uma

    explicao leiga para a histria da humanidade. Entretanto, a racionalidade se depara com um

    limite imposto pela prpria situao do homem que a pensa, segundo Cristina Maria Teixeira

    Martinho (2005).

  • A moderna narrativa fantstica remonta, em ltima instncia, ao romance gtico

    (Gothic Novel) que surgiu no sculo XVIII. Ao contrrio de seu ancestral que explorava

    diretamente os ambientes macabros, os lances dramticos e o ritmo acelerado de aventura o

    fantstico foi paulatinamente sendo depurado ao longo do sculo XIX at chegar no XX com

    um arsenal narrativo mais sutil, enredos mais condensados, escritura mais requintada. Seu

    campo temtico, porm, foi abandonando a rpida sucesso de acontecimentos surpreendentes,

    assustadores e emocionantes para adentrar esferas mais complexas que o aproximam do mito e

    do smbolo. Cynhtia Hamberg (2005) relata que a narrativa fantstica tornou-se receptiva

    inquietao perante os avanos cientficos e tecnolgicos (principalmente com a obra

    Frankenstein, de Mary Shelley), aos devaneios onricos ou de faz-de-conta, s angstias

    existenciais e psicolgicas, e sensao de impotncia frente s opresses.

    Qualquer que seja seu pretexto ou contexto, a narrativa fantstica efetua uma

    reavaliao dos pressupostos da realidade, conforme refere-se Selma Calasans Rodrigues (1988,

    p. 35), questionando sua natureza precpua e colocando em dvida nossa capacidade de

    efetivamente capt-la atravs da percepo dos sentidos. Em conseqncia disso, o fantstico

    faz emergir a incerteza e o desconforto diante daquilo que era tido como familiar. Ao contrrio

    do gnero Fantasy (The Lord of the Rings, de J. R. R. Tolkien), to ao gosto dos leitores

    modernos, o fantstico no cria mundos fabulosos, distintos do nosso e povoados por criaturas

    imaginrias, mas revela e problematiza a vida e o ambiente que conhecemos no dia-a-dia.

    Esse realismo do fantstico no implica, porm, em uma limitao ou pauperizao

    de seu alcance na abordagem de problemas humanos. Antes, a fonte de sua complexidade

    esttica e de representao social estando a justamente sua distino da simples histria de

    horror, composta de personagens e situaes macabras visando no somente o efeito de terror,

    na viso de Cristina Maria Teixeira Martinho (2005). Bom exemplo dessa diferena est entre o

    livro Frankenstein ou o novo Prometeu (1818), de Mary Shelley que realiza um profundo

    34

  • estudo da psicologia humana (efeitos da rejeio e falta de afeto sobre o indivduo) e tambm

    das relaes sociais (preconceitos e valorizao das aparncias causando a marginalizao

    daqueles que formam uma minoria) e diversas verses cinematogrficas da mesma obra, em

    que as nuances do texto original esto apagadas e, em seu lugar, apresentada apenas a

    trajetria de um monstro feio e mau.

    Selma Calasans Rodrigues (1988, p. 14) relata que ao longo do caminho, o fantstico

    atravessou fases distintas, em que lanou mo de expedientes diferentes para criar a sensao de

    insegurana e, se inicialmente o inslito era produzido no nvel semntico, no sculo XX ele se

    infiltra no nvel sinttico: em fins do sculo XVIII e comeo do XIX, o fantstico exigia a

    presena do elemento sobrenatural, advindo o medo da figura de um fantasma ou monstro (a

    causa da angstia est no ambiente externo); tambm passa a explorar a dimenso psicolgica,

    sendo o sobrenatural substitudo por imagens assustadoras cuja origem est na loucura, em

    alucinaes, pesadelos (a causa da angstia est no interior do sujeito).

    Ainda em Selma Calasans Rodrigues (1988, p. 17), encontramos o parecer de Arvde

    Barine sobre o fantstico na literatura do sculo XVIII:

    Nosso sculo foi favorvel literatura fantstica. Nele ela encontrou seu renascimento, do qual ns no vimos seno a aurora. A honra dessa nova florao tem origem provavelmente na cincia. Quando essa nos ensina que uma ligeira alterao de nossa retina faria o mundo para sempre descolorido, ela sugere a todos o pensamento de que o mundo real poderia bem no ser uma aparncia, como j os filsofos o sabiam. Quando ela nos prov de criaturas dotadas de rgos e de sentidos diferentes dos nossos, ela faz pressentir que deve haver tantas aparncias de mundos quantas formas de olhos e de variedades de entendimento. A cincia torna-se assim a aliada e, mais ainda, a inspiradora do escritor fantstico: ela o encoraja a sonhar mundos imaginrios ao falar-lhe sem cessar de mundos ignorados. (RODRIGUES,1988, p. 17).

    Justamente em decorrncia dos fatos acima citados que se descobriu a importncia

    do indivduo, o despontar de diversos elementos basilares para a modernidade como a

    declarao dos direitos humanos, o acesso universal educao e conseqente ampliao do

    35

  • pblico leitor, a transformao da arte em mercadoria e o surgimento da literatura de massas

    ou seja, a narrativa fantstica imps-se como veculo de expresso do sujeito e mecanismo de

    crtica e transgresso da situao vigente.

    3.2 A Criao Fantstica do Humano em Frankenstein

    Mary Shelley trabalha a interao obra e mundo, apresentando uma obra que pode ser

    lida de diversas formas. Produzida num contexto que via surgir o declnio do poeta como

    demiurgo, o ato de criar toma a direo da fantasia sobrenatural, fugindo de uma concretizao

    esquematizada, conforme Joo Lus Almeida Machado (2005). E isto tem a ver com a

    depreenso do imaginrio e sua natureza pois:

    O difuso do imaginrio a condio para que ele seja capaz de assumir configuraes diversas, o que sempre exigido pois se trata de tornar o imaginrio apto para o uso. A fico e a configurao apta para o uso do imaginrio (porque) cria possibilidades dele se organizar, mas provoca tematizaes pragmticas correspondentes. A fico a configurao contrafactual da realidade existente; ela ultrapassa os limites dos dois planos - imaginrio e real. (LIMA, 1983, p. 379).

    Mary Shelley trabalha esta dialtica do imaginrio e prope trs narrativas que se

    interconectam, contadas por homens totalmente destitudos do sentimento de vida familiar.

    Cada um deles apresenta a perspectiva de negao desta experincia. Walton, Victor e a criatura

    so seres que problematizam o TER da vida burguesa, segundo Lus Carlos Calil (2005).

    Walton est determinado a encontrar regies no Plo Norte para nelas viver e deseja partilhar

    sua descoberta com a humanidade, da mesma maneira que Victor. Os dois se encontram

    duplos / parceiros no isolamento. Victor, para gerar uma vida artificial se exila da humanidade,

    dos confortos da casa, da noiva. Incapaz de confessar seus atos, no consegue avisar sua famlia

    do perigo que a ronda. A Criatura, centro da narrativa, por sua vez, est colocada como um

    marginal na sociedade; sem famlia, apreende o mundo pelos livros e, enfurecida por

    36

  • comportamentos para ela incompreensveis, aniquila todos que possam contribuir, de alguma

    forma, para com a vida feliz de seu criador.

    Vivendo numa poca que j mostra os sinais da decadncia de uma ordem que no

    satisfazia as demandas do real, na opinio de Harold Bloom (2002, p. 268), Mary Shelley

    parece impregnada das idias da me, famosa escritora feminista, e delas se serve para criar

    uma fantasia que fala sobre os efeitos periculosos e perniciosos da manuteno rgida das

    esferas masculina e feminina do domnio pblico. Trabalho versus lazer, razo versus

    imaginao so a tnica que impulsiona subversivamente o real ficcional. Inocncia versus

    marginalidade so eixos que determinam os narradores.

    De acordo com Cristina Maria Teixeira Martinho (2005), as trs narrativas

    concntricas impem um desdobramento linear da linha do enredo. Este inicia-se e termina com

    Walton, escrevendo para sua irm inglesa, da periferia exterior do mundo civilizado, limite

    entre o conhecido e o desconhecido. Deste ponto, caminhamos para dentro do crculo da

    civilizao, os arrabaldes rurais de Genebra, centro da tica Protestante. Neste lugar, homens e

    mulheres demonstram os bons sentimentos, a compostura e o decoro decorrentes das

    convenes tradicionais. As famlias ligadas temtica esto bem codificadas. Estas famlias

    no mostram a viso de tantos romances da poca, com as aventuras que sempre apresentaram

    finais felizes, triunfando sobre qualquer posicionamento contrrio.

    Temos, em Frankenstein, na viso de Harold Bloom (2002, p. 270), o caminho oposto.

    Os leitores se deparam primeiro com a civilizao e seus descontentes, em suas tentativas de

    resgatar-se dentro desta sociedade com aventuras miraculosas que atinjam o valor de uma

    regenerao de vida. A circularidade do enredo enfatiza um outro tipo de vida mantida pela

    conscincia das personagens que se vinculam a outros valores. Cegos para quaisquer outros

    contextos, Walton e Victor, na realidade, no se compreenderam ainda como trnsfugos sociais.

    37

  • Mary Shelley no tematiza o processo inconsciente que os leva ao isolamento, mas trabalha a

    transcendncia dos valores que permeiam suas aes.

    Vale ressaltar que este trabalho no tem a inteno de se posicionar sob uma ou outra

    perspectiva, mas sim o de apresent-las como plos de pensamento concernentes aos caminhos

    da evoluo (no propriamente biolgica, mas tambm social), configurando na dialtica citada

    anteriormente. Estaramos, pois, diante de duas provises: aquela por base rousseauniana, de

    apego natureza e a seus costumes, cultura rstica e tribal que resulta em convivncia justa; e

    a que dita o progresso, o desenvolvimento como percalo natural do homem, destino natural de

    sua espcie e que a ela faz jus como caracterstica significante do processo vital e de suas

    geraes.

    neste ponto que entra Shelley e sua advertncia com relao ao furor cientfico

    vivido principalmente no sculo XVIII, colocando em plena Europa uma criana deformada,

    mal-amparada e, o que pior, por ningum aceita, conforme Cristina Maria Teixeira Martinho

    (2005). The being, por vezes no propriamente traduzido como o monstro, no cresce de

    forma diferente aos prias das sociedades modernas, sem o mnimo possvel de assistncia ou

    compaixo, e dessa forma se transforma no assassino de conscincia incomum. , sem dvida,

    o personagem mais humano da obra, mesmo sendo o nico que no foi gerado como um.

    Michel Jalil Fauza (2005) alega que por essa razo e a partir do pressuposto de sua

    poca, Frankenstein consensualmente considerado o pai da fico cientfica, e no apenas um

    conto de horror, como assim se transformou para muitos leitores:

    Na verdade, trata-se do grande, seno nico mito original produzido pela idade da cincia e da tcnica, a cujos primrdios sua autora assistiu na Inglaterra e cuja culminao estamos hoje vivendo pelo mundo todo com o advento da ciberntica e da engenharia gentica (FAUZA, 2005).

    A complementar estas palavras, diz-se que a culminao ainda est por vir, j que no

    incio do sculo XXI, difcil a tarefa de definir o que j aconteceu, o que est acontecendo e o

    38

  • que est por vir em termos de tecnologia e cincia. Porm, certo que o ser de Frankenstein,

    criado a partir do casamento homem & cincia foi o primeiro de muitos humanides da

    espcie na literatura, segundo Edgar Franco (2005).

    De conformidade com Jos Paulo Paes (1997, p. 235), a respeito deste tpico, no

    captulo V de Frankenstein, onde descrito o momento decisivo em que o monstro se anima,

    inexiste qualquer indicao acerca dos meios utilizados pelo seu criador para insuflar-lhe a

    centelha da vida. Esta produto, todavia, no de artes mgicas ou de recurso ao sobrenatural,

    como na fico gtica, mas de uma descoberta cientfica; a artificialidade dessa recriao de

    vida est bem marcada, no prefcio de 1831, pela aluso ao uso de uma mquina para consegui-

    la e ao prprio carter maquinal dos movimentos executados pelo monstro, que j parece

    participar dessa simbiose entre o mecnico e o biolgico caracterstica dos cyborgs da moderna

    fico cientfica.

    Na verso cinematogrfica de Kenneth Brannagh, possvel chegar mais longe, pois

    os roteiristas mergulharam nas fontes intertextuais citadas na obra e criaram uma forma de

    apresentar a criao do monstro ao pblico. Primeiramente, Victor, obcecado, invade o

    laboratrio do professor Waldman e rouba suas anotaes. Constata que o professor usou

    material errado, precisa de fontes auxiliares; aqui est a experincia: um fracasso, o ser

    reanimado deformado e a sua figura causa asco; esse fator depende de matria-prima

    apropriada, a matria-prima a que se refere seriam os cadveres (pressupe-se, de corpos

    ainda frescos). Utilizando todos os seus conhecimentos sobre a eletricidade, o galvanismo e

    os estudos de vrios cientistas, alm de acupuntura e uma idia original de utilizar lquido

    amnitico que seria o responsvel pela manuteno da vida nos estgios iniciais, a Criatura

    construda e modelada recebe, alm de descargas eltricas, vrios choques de enguias que esto

    na soluo preparada por Victor, e reanimada. Nesse ponto da criao humana, tanto de forma

    implcita no romance, como explcita no filme, define-se o elemento fantstico a partir do efeito

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  • de incerteza e da hesitao provocada no receptor em face de um acontecimento sobrenatural,

    visto de uma forma plausvel.

    Para Roger Shattuck (2000, p. 100), no h lugar para gracejos e lembrado ao

    receptor que a produo artificial de vida tem conseqncias terrveis, como se pode comprovar

    logo depois que Frankenstein d vida Criatura; essa empresa recebe os eptetos de

    catstrofe... horror, operao que traz luz um monstro... desgraado... um cadver

    demonaco (captulo V). Ainda nesta ocasio, Victor foge para o seu quarto e sonha com

    Elizabeth, sua irm de criao e verdadeiro amor. Em seus braos, ela se transforma no cadver

    cheio de vermes de sua falecida me. difcil evitar uma interpretao simblica: Frankenstein,

    em busca da realizao de um milagre cientfico que merea admirao, descobre ter violentado

    a prpria Me Natureza.