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RUTE ELISA JORGE MENDES A CRIAÇÃO DO CONFLITO EM NARRATIVAS LITERÁRIAS ESCRITAS POR MULHERES MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 2007

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RUTE ELISA JORGE MENDES

A CRIAÇÃO DO CONFLITO EM NARRATIVAS LITERÁRIAS

ESCRITAS POR MULHERES

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE

SÃO PAULO

2007

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RUTE ELISA JORGE MENDES

A CRIAÇÃO DO CONFLITO EM NARRATIVAS LITERÁRIAS

ESCRITAS POR MULHERES

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para obtenção do título de Mestre em

Língua Portuguesa, sob a orientação do Professor

Doutor João Hilton Sayeg de Siqueira.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE

SÃO PAULO

2007

Agradecimentos

A Deus, fonte inesgotável de energia;

Ao Professor Doutor João Hilton Sayeg de Siqueira, pela confiança, paciência, e

pelas orientações na pesquisa e elaboração deste trabalho;

Ao Professor Doutor Luiz Antônio Ferreira e à Professora Doutora Márcia Serra

Ribeiro Viana pelas preciosas contribuições sugeridas no momento da qualificação;

A minha família, pelo amor, base de tudo nesta vida;

Aos amigos, pelo incentivo e companheirismo;

À Professora Reginalice Nakao Ferreira da Silva, Dirigente da Diretoria Regional de

Ensino – Região de Registro, por oportunizar esse processo.

À Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, pelo apoio financeiro concedido

por meio de bolsa de estudo.

(...)

Dentro da fêmea Deus pôs

Lagos e grutas, canais,

Carnes e curvas e cós

Seduções e pecados infernais

Em nome dela, depois

Criou perfumes, cristais

O campo de girassóis

E as noites de paz.

(Tororó, Edu Lobo e Chico Buarque)

Banca Examinadora

________________________________

________________________________

________________________________

________________________________

________________________________

RESUMO

Este trabalho trata da caracterização do conflito em narrativas literárias escritas por

mulheres, com enfoque em sua construção. Desenvolve-se a partir de um modelo de

análise, que considera a estrutura narrativa, baseado no trabalho de Sayeg Siqueira

em que destaca os aspectos organizacionais, o percurso narrativo e a modalização

da atitude das personagens. Contempla ainda a análise crítica do discurso,

fundamentada na teoria de Fairclough que mostra o modo como as práticas

lingüísticas discursivas imbricam estruturas sociopolíticas mais abrangentes de

poder e dominação e esperam produzir mudanças não apenas nas práticas

discursivas, mas também nas práticas e estruturas sociopolíticas que apóiam as

práticas discursivas. Para tanto, dois contos foram analisados: “Amor”, de Clarice

Lispector; e “Venha ver o pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles. Mediante essas

considerações, pretende-se mostrar como se constrói o conflito narrativo em textos

escritos por mulheres. Considera-se importante estabelecer a constituição do

universo feminino, e inicia-se por um breve histórico da situação das mulheres,

principalmente as brasileiras, desde a colonização até a atualidade, abordando-se

ainda outros aspectos como o gênero, que expõe como homens e mulheres

organizam-se social e culturalmente em virtude da identidade sexual dos indivíduos;

como o sexismo, que reflete sobre as atitudes discriminatórias em relação ao sexo

oposto; e ainda, como o ethos, com enfoque no ethos feminino, que permite

considerar a imagem que se constrói de si em um discurso. O discurso feminino

auxilia na formação de uma nova imagem da mulher, permite o seu reconhecimento

como sujeito social. Evidencia-se o poder que as regras sociais impuseram, e ainda

o fazem, aos papéis femininos, e caracteriza-se o conflito para esse universo com a

quebra de expectativas causadas por pressão social.

ABSTRACT

This work treats of the characterization of the conflict in literary narratives written by

women, with focus in its construction. It is developed starting from an analysis model

that considers the analysis of the narrative structure, based on Sayeg Siqueira's work

in which he shows up the organizational aspects, the narrative course and the

modalization of the characters' attitude. It also contemplates the critical analysis of

the speech, grounded in Fairclough’s theory that also shows the way how the

practices discursive linguistic overlay sociopolitical structures more comprehensive of

power and dominance and they hope to produce changes not just in the discursive

practices, but also in the practices and sociopolitical structures that support the

discursive practices. For that two short stories were analyzed: "Amor" (Love) by

Clarice Lispector and "Venha ver o pôr-do-sol” (Came to see the sunset) by Lygia

Fagundes Telles. By those considerations, we intend to show how the narrative

conflict is built in texts written by women. It is considered important to establish the

constitution of the feminine universe, for that we present a concise historical of the

Brazilian women's situation from the colonization to the present time, it still

approaches other aspects as the gender that exposes how men and women are

organized social and culturally because of the individuals' sexual identity; the sexism,

that reflects about the discriminatory attitudes in relation to the opposite sex; and still

the ethos, with focus in the feminine ethos, that allows to consider the image that is

built of itself in a speech. The feminine discursive speech assists in the formation of a

new woman’s image, it allows her recognition as social subject. It is evidenced the

power that the social rules imposed, and still do, to the feminine papers, and it is

characterized the conflict for that universe with the break of expectations caused by

social pressure.

ÍNDICE

INTRODUÇÃO...........................................................................................................1

CAPÍTULO I – UNIVERSO FEMININO....................................................................21

1.1 Breve histórico....................................................................................................21 1.2 As transformações ocorridas no Século XIX ......................................................29 1.3 As primeiras escritoras (Século XIX) ..................................................................32 1.4 A constituição do universo feminino ...................................................................381.5 O gênero ............................................................................................................41 1.6 O sexismo ..........................................................................................................43 1.7 Ethos feminino....................................................................................................45

CAPÍTULO II - ANÁLISE DO CONTO: AMOR........................................................48

2.1 Modelo de análise ..............................................................................................48 2.2 O conto: “Amor”..................................................................................................48 2.3 Análise da estrutura narrativa.............................................................................56 2.4 Análise crítica do discurso..................................................................................62 2.5 A constituição da realidade social ......................................................................68

CAPÍTULO III – ANÁLISE DO CONTO: VENHA VER O PÔR-DO-SOL ................74

3.1 O conto: “Venha ver o pôr-do-sol” ......................................................................743.2 A autora e a obra................................................................................................82 3.3 Análise da estrutura narrativa.............................................................................84 3.4 Análise crítica do discurso..................................................................................92 3.5 A constituição da realidade social ....................................................................100

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................107

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................1111

1

INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como tema a criação do conflito em narrativas literárias

escritas por mulheres. O conflito traz à narrativa um elemento imprevisível, surge da

necessidade de escolha entre situações que podem ser incompatíveis. Essas

situações perturbam a ação e a tomada de decisão por parte da(s) personagem (ns)

envolvida(s), o que provoca a quebra de expectativa.

Dois contos foram escolhidos para a realização de uma análise: “Amor”, de

Clarice Lispector, e “Venha ver o pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles. Pretende-se

averiguar se os conflitos criados nas narrativas femininas são próprios desse

universo e apurar como o discurso feminino os constrói, uma vez que o discurso

retrata aspectos sociais, significações e construções da realidade que colaboram

para estabelecer as relações em uma sociedade.

Faz-se necessário apresentar um breve histórico das mulheres no Brasil, com

o intuito de subsidiar a compreensão da constituição do universo feminino e de como

os conflitos narrativos são constituídos. Reflexões sobre gênero, sexismo e o ethos

feminino também são consideradas. O universo feminino é produto de fatores sociais

de circunstâncias históricas, firmados num determinado tempo. A mulher busca seu

lugar e sua identidade e durante um longo período, confronta-se com valores

instituídos socialmente que a posicionam como inferior ao homem, estereotipada

como um ser frágil, dependente, incapaz de autonomia e liberdade.

Espera-se com este trabalho contribuir para a divulgação dos modelos de

análises que permitam a exploração dos contos em sua estrutura, bem como realizar

uma leitura na qual se percebam as intenções de um discurso como produções

sociais historicamente situadas que revelam crenças, ideologias, relações

interpessoais e identidades. Outro enfoque está na linguagem, que é construída

para manter relações de poder. A permanência ou não dessas relações dependerá

de um trabalho de conscientização que promova mudanças.

Para tanto, dois modelos de análises nortearam esta pesquisa: o primeiro,

conforme estudos de Sayeg Siqueira (1992), trata da estrutura da narrativa,

estabelece os percursos narrativos nos contos e a modalização das atitudes das

personagens.

Para uma melhor compreensão de como ocorre a construção da narrativa, em

Sayeg Siqueira (1992) encontram-se os itens da organização macroestrutural: a

2

expectativa, o conflito, a tentativa de resolução (ou a resolução) do problema, o

desfecho e a avaliação, que serão apresentados com o intuito de esclarecer e

ressaltar a sua importância.

O processo de enunciação das narrativas se constrói na criação de uma

expectativa que relate uma situação cotidiana, normal, conhecida para as

personagens da história. Essa expectativa pode estar implícita ou explícita no texto.

Cria-se um conflito, traz-se um elemento inesperado, imprevisível. O conflito

surge quando há a necessidade de escolha entre situações que podem ser

incompatíveis. Essas situações perturbam a ação ou a tomada de decisão por parte

da(s) personagem (ns) envolvida(s), provoca uma quebra de expectativa inicial e faz

com que a narrativa ganhe novos caminhos.

No tocante à extensão da narrativa, esta também depende do conflito criado.

Há um problema, que pode surgir por diferentes motivos, e que precisa ser

solucionado. É no decorrer do embate e na busca por soluções que a narrativa

ganha expansão. O texto tem uma extensão adequada não pelo seu tamanho ou

pelo número de palavras que possui, mas sim quando cumpre o propósito do autor

de transmitir a sua mensagem ao leitor. Depende do grau de complexidade do

conflito, ele pode ou não ser solucionado e isso gera a expansão da narrativa, e seu

desfecho, que é o resultado dessa solução para o problema, marca a narrativa como

sendo de sucesso ou de fracasso.

Quanto a sua finalidade, a narrativa foi concebida com o intuito de trazer para

o homem um aprendizado, uma lição de moral, um exemplo de vida. A finalidade da

narrativa revela a referência do texto.

Ao conhecer a história “Chapeuzinho Vermelho”, por exemplo, percebe-se a

intenção de ensinar às pessoas, principalmente às crianças, que para se viver em

sociedade é necessário seguir algumas regras, entre elas a de que existe uma

hierarquia. Quem não a respeita será punido, portanto, essa é a finalidade desse

texto, cuja referência está contida na “desobediência” (Chapeuzinho desobedeceu a

sua mãe). A referência é o assunto. O que garante que a referência do texto seja

mantida e exemplificada são as ações das personagens que constroem o percurso

narrativo. A finalidade na narrativa é, portanto, uma forma de trazer um ensinamento

para o homem e sua vida, e pode aparecer de maneira implícita ou explícita no texto.

3

Há uma diferença entre a narrativa e o relato. Uma narrativa deixa de ser um

simples relato de acontecimentos quando apresenta um problema que implica

transformações no percurso narrativo, na verdade, essa transformação é que

caracteriza o conflito, característica principal da narrativa de ficção. Ocorre assim a

quebra da expectativa, que envolve o leitor na situação, deixando-o curioso, ansioso

por querer saber o desfecho desse embate. Já o relato não possibilita uma

representação que possa ser qualificada como história, pois não visa à resolução de

um problema, desenvolvendo-se somente por meio de uma seqüência de

ocorrências factuais. Nele o problema poderá existir, porém não trará

transformações no percurso narrativo.

No tocante ao percurso narrativo, segundo Sayeg Siqueira (1992: 43), “os

percursos narrativos se organizam a partir de uma personagem que tem instaurado

para si, por vontade própria ou por obrigação, um determinado objetivo a alcançar

ou a cumprir”. Mas para alcançar seus objetivos, a personagem deve passar por

alguns obstáculos. Há a quebra de expectativa com a criação do conflito, que pode

ser o aparecimento de um opositor. Este não precisa ser, necessariamente, um ser

animado, pode aparecer em forma de sentimento, de uma inabilidade etc.

Para a resolução do problema, a personagem pode lançar mão de algum

artifício ou receber alguém que vem em seu auxílio, chamado de auxiliar.

Dependendo da força do auxiliar para aniquilar o obstáculo, o desfecho da narrativa

pode ser de sucesso ou de fracasso, cumprindo assim sua finalidade. Para Sayeg

Siqueira (1992:45): “Cada item da organização macroestrutural da narrativa:

EXPECTATIVA, RESOLUÇÃO, DESFECHO e AVALIAÇÃO é descrito pelo

estabelecimento de um percurso narrativo, que, no seu conjunto, forma o texto como

um todo coerente, o que possibilita o cumprimento de sua finalidade”.

Para exemplificar a esquematização do percurso narrativo, citar-se-á a

crônica de Ivan Ângelo, “Negócio de menino com menina”.

“O menino, de uns dez anos, pés no chão, vinha andando pela estrada de

terra da fazenda com a gaiola na mão. Sol forte de uma hora da tarde. A menina, de

uns nove anos, ia de carro com o pai, novo dono da fazenda. Gente de São Paulo.

Ela viu o passarinho na gaiola e pediu ao pai:

_Olha que lindo! Compra pra mim?”

4

O percurso narrativo pode ser esquematizado dessa forma:

auxiliar: poder aquisitivo

P --------------------------------------------------------------- O

A menina Ter o passarinho

“O homem parou o carro e chamou:

_Ô menino.

O menino voltou, chegou perto, carinha boa. Parou do lado da janela da

menina. O homem:

_Esse passarinho é pra vender?

_Não senhor.

O pai olhou para a filha com uma cara de deixa pra lá. A filha pediu suave

como se o pai tudo pudesse.

_Fala pra ele vender.

O pai, mais para atendê-la, apenas intermediário:

_Quanto você quer pelo passarinho?

_Não tou vendendo não senhor.”

A história prossegue com o homem a oferecer dez, vinte, trinta, chega até

cinqüenta mil, e o menino nada, não aceita nenhuma proposta. A menina não

desiste, quer o passarinho de qualquer jeito.

Para que a narrativa se estabeleça, é necessário o surgimento de um conflito,

assim representado:

auxiliar: poder aquisitivo

P ------------------------------------------------------------------------------- O

Menina opositor: resistência do menino ter o passarinho

à venda do passarinho

5

O homem tenta argumentar com o menino, mas ele não cede.

“-_Quero não senhor. Tou vendendo não.

_Não vende por quê, hein? Por quê?

O menino acuado, tentando explicar:

_ É que eu demorei a manhã todinha pra pegar ele e tou com fome e com

sede, e queria ter ele mais um pouquinho. Mostrar pra mamãe.

O homem voltou para o carro, nervoso. Bateu a porta, culpando a filha pelo

aborrecimento:

_Viu no que dá mexer com essa gente? É tudo ignorante, filha. Vam’bora.

Nesse percurso, a narrativa teria um desfecho de fracasso, porém ocorre a

substituição do auxiliar, que transforma o fracasso em sucesso.

O menino chegou pertinho da menina e falou baixo, para só ela ouvir:

_Amanhã eu dou ele pra você!

Ela sorriu e compreendeu.”

Auxiliar: a bondade

P--------------------------------------------------------------------------------- O

Menina ter o passarinho

Na tentativa de resolução do conflito, a narrativa pode expandir-se e a

personagem criar meios para solucionar seu problema, inclusive recebendo a ajuda

de um auxiliar.

Esta história conclui-se com um desfecho de sucesso, pois a personagem

consegue obter o que almejava. A avaliação indica que nem tudo se consegue só

por meio do poder aquisitivo. No percurso narrativo, devem aparecer os itens da

organização macroestrutural que garantem um texto coeso.

6

Quanto à modalização das atitudes das personagens constata-se que, no

intuito de resolver o conflito gerado na história, a personagem pode mudar seu

objetivo. A mudança está relacionada à própria alteração na atitude da personagem,

ao descobrir um valor de falsidade, segredo ou mentira, em relação ao que

acreditava como sendo uma verdade. A mudança não gerará uma quebra de

coerência do texto, pois a personagem central continua a mesma e a ela são

atribuídos os percursos narrativos. A modalização está relacionada à atitude da

personagem. Essas atitudes podem ser avaliadas como verdadeiras ou falsas,

secretas ou mentirosas.

Chama-se VERIDICTÓRIA a modalidade que opera com valores de verdades.

Para Sayeg Siqueira (1992:49,50), pode-se esquematizá-la dessa forma:

A relação entre ser e parecer nos dá o valor de verdade (é e parece ser).

ser + parecer = verdade

A relação entre ser e parecer nos dá o valor de falsidade (não é e não

parece ser), já que são elementos não pertinentes.

ser + parecer = falsidade

A relação entre ser e parecer nos dá o valor de segredo (é mas, não pode

ser).

ser + parecer = segredo

A relação entre ser e parecer nos dá o valor de mentira ( não é,mas parece

ser).

ser + parecer = mentira

7

Na crônica: “Negócio de menino com menina”, o menino é e parece ser

egoísta, apresenta uma modalidade de verdade, porque insiste em dizer não à

venda, possui a habilidade de caçar passarinhos, mas recusa-se em vendê-lo.

Auxiliar: habilidade de caçar passarinhos

P--------------------------------------------------------------------------------- O

Menino ter o passarinho

Ao justificar o motivo da recusa à venda, apresenta uma modalidade de

segredo, pois é e não parece ser generoso, quando diz que só quer ficar com o

passarinho até mostrá-lo para sua mãe.

A modalidade de mentira instaura-se quando o menino não é e parece ser

egoísta, porque insiste na decisão de não vender o passarinho.

Ao final, o menino não é e não parece ser egoísta, ao dizer que dará o

passarinho à menina, descobre-se a mentira. O menino é e parece ser generoso,

revela-se o segredo.

Outro exemplo pode ser dado pelo conto de fadas – A Branca de Neve.

“Relata a história da princesa Branca de Neve, assim chamada por ter a pele

muito branca, os lábios vermelhos como o sangue e os cabelos negros como o

ébano e que vivia num lindo castelo com seu pai e sua mãe. Havia um príncipe do

reino vizinho que muito a admirava,mas secretamente. Passado algum tempo, o rei

enviuvou e voltou a casar com uma mulher belíssima, mas extremamente cruel e,

além disso feiticeira que desde o primeiro dia tratou muito mal a menina.

Quando o rei morreu, a feiticeira, vendo que a Branca de Neve possuiria uma

beleza que excederia a sua, obrigou-a a fazer todo o trabalho no castelo. A rainha

tinha um espelho mágico e todos os dias lhe perguntava quem era a mulher mais

bonita do mundo. Todas às vezes o espelho respondia que era ela. Um dia, ao fazer

a habitual pergunta, o espelho respondeu que a rainha era bela, mas que Branca de

Neve era mais bela do que ela. A inveja da malvada rainha a fez mandar um caçador

levar Branca de Neve, ao bosque, e lá matá-la. Como prova de que havia cumprido

este ato, ordenou-lhe que trouxesse o coração de Branca de Neve. Mas o caçador

8

teve pena da princesa e poupou-lhe a vida, ordenou-lhe que fugisse. Para

comprovar que havia obedecido às ordens da madrasta, entregou-lhe o coração de

um veado.

Branca de Neve andou pelo bosque e, quando estava muito cansada,

adormeceu profundamente numa clareira. No dia seguinte, quando acordou, estava

rodeada pelos pequenos animais da floresta, que a levaram até uma casinha no

centro do bosque. Dentro, tudo era pequeno: mesas, cadeiras, caminhas. Por todo o

lado reinava a desordem e tudo estava muito sujo. Ajudada pelos animaizinhos,

deixou a casa toda arrumada e depois foi dormir.

Ao anoitecer, chegaram os donos da casa. Eram os sete anõezinhos,

voltando da mina de diamantes onde trabalhavam. Quando a princesinha acordou,

eles se apresentaram: Soneca, Dengoso, Dunga (o único que não tinha barbas e

não falava), Feliz, Atchim, Mestre e Zangado. Ao serem informados dos problemas

da princesa, eles resolveram tomar conta dela e deixaram ela ficar.

A malvada rainha não tardou, por meio do seu espelho mágico, a saber que

Branca de Neve estava viva e continuava a ser a mulher mais bonita do mundo.

Decidiu então acabar pessoalmente com a vida da princesinha. Disfarçou-se de

pobre-velhinha-indefesa, envenenou uma maçã e foi até a casinha dos anões.

Quando eles saíram para trabalhar, ofereceu a maçã envenenada e Branca de Neve

mordeu-a e caiu adormecida.

Quando os anõezinhos regressaram, pensaram que Branca de Neve tivesse

morrido. De tão linda, eles não tiveram coragem de enterrá-la. Então fizeram um

caixão de diamantes. Estavam junto da princesa adormecida, quando por ali passou

o príncipe do reino vizinho que há muito tempo a procurava. Ao ver a bela Branca de

Neve deitada no seu leito, aproximou-se dela e deu-lhe um beijo de amor. Este beijo

quebrou o feitiço e a princesa despertou. O príncipe pediu à Branca de Neve que

casasse com ele. E o feliz casal encaminhou-se para o palácio do príncipe e foram

felizes para sempre.”

O início desta história retrata a modalização da atitude da personagem

Branca de Neve avaliada como verdadeira: Branca de Neve é meiga e uma boa

pessoa, portanto é e parece ser. Já a feiticeira é invejosa e má, sua modalidade

9

revela uma mentira, pois não é, mas quer parecer uma pessoa amável perante os

outros.

A mudança de atitude começa no momento em que a feiticeira sente-se

ameaçada pela beleza de Branca de Neve. Para alcançar seu objetivo, ser a mais

bela, precisou mudar, disfarçou-se de pobre velhinha, e passou a assumir uma

modalização de segredo, é a feiticeira, mas não pode aparecer como é para a

Branca de Neve, o que implica também mentira, pois ela não é uma boa velhinha,

mas toma atitudes que a fazem parecer. Já a personagem Branca de Neve

permanece com atitudes que podem ser avaliadas como verdadeiras, ela sempre é e

parece ser.

Ressalta-se a importância das ações das personagens. São elas que

garantem a coerência do texto e revelam sua referência pelos valores decorrentes. A

coerência é garantida pela manutenção da mesma referência em toda sua extensão.

No tocante à quebra de linearidade, pode-se prever a ocorrência de duas

narrativas se desenvolverem de forma integrada, ao apontar para uma mesma

avaliação. Não é a ocorrência de duas narrativas, mas sim de dois episódios de uma

mesma narrativa; pode haver até mais de dois episódios, dependendo de sua

complexidade. Os episódios podem estar vinculados pela manutenção das mesmas

personagens, pela referência, pela tematização, pelo desfecho ou avaliação.

Caracteriza-se a narrativa como sendo alinear quando nela houver a organização de

um ou mais episódios que por vezes rompem a linearidade dos acontecimentos no

momento em que trabalha com tempo e locais diferentes.

Vale lembrar que o texto narrativo não é caracterizado lingüisticamente só

pela presença de verbos de ação. Há dois recursos básicos utilizados para tecer por

meio do código verbal a seqüência dos acontecimentos. Esses recursos são

elementos essenciais que atuam com o objetivo de dar coesão à narrativa. São eles:

a seqüência temporal e o jogo de causa e conseqüência, e podem ocorrer com

freqüência textos que imbricam a prosseqüência, ou seja, uma seqüência

progressiva no tempo, com o jogo de causa e conseqüência.

Em relação às técnicas, há diferentes possibilidades de compor uma trama.

Cada escritor cria seu estilo, o que confere ao texto singularidade lingüística e marca

o seu jeito de escrever. O estilo individual manifesta os movimentos do pensar e do

10

sentir de cada um. Suas escolhas diante das possibilidades que o código oferece,

sua seleção vocabular, a maneira como ordena as palavras, seus arranjos próprios e

criações são elementos que constituem o escrever de cada autor e caracterizam-no

de maneira diferenciada. Neste ponto, merecem destaque o foco e os discursos

narrativos. Não se deve confundir narrador com autor. O autor é um ser real, alguém

que existe fisicamente, já o narrador é uma simulação enunciativa criada pelo autor,

um contador.

A perspectiva de quem escreve é dada pelo foco narrativo. Para contar é

preciso que o narrador assuma uma determinada posição em face dos

acontecimentos. Encontra-se em Todorov in Barthes (1971:247) uma descrição

interessante a respeito do narrador:

É êle que dispõe certas descrições antes das outras, embora estas as precedam no tempo da história. É êle que nos faz ver a ação pelos olhos de tal personagem, ou mesmo por seus próprios olhos, sem que lhe seja por isto necessário aparecer em cena. É êle, enfim, que escolhe relatar-nos tal peripécia através do diálogo de dois personagens ou mesmo por uma descrição “objetiva”. Temos portanto uma quantidade de informações sôbre êle, que nos deveriam permitir compreendê-lo, situá-lo com precisão; mas esta imagem fugitiva não se deixa aproximar e se reveste constantemente de máscaras contraditórias, indo desde a de um autor em carne e osso, à de um personagem qualquer.

Uma história pode ser contada em 1ª ou 3ª pessoa e o narrador pode assumir

três pontos de vista na narrativa:

Narrador participante ou personagem: O texto é narrado em 1ª pessoa

e o narrador participa dos fatos, é personagem (principal ou secundária) da história.

Pode acontecer a exploração ampla dos sentimentos da(s) personagem (ns),

o narrador demonstra conhecê-la profundamente. A esse domínio pleno da situação,

na qual o narrador traduz por meio das palavras o seu saber penetrante a respeito

da(s) personagem (ns), o que sentem, falam, pensam; dá-se o nome de onisciência

do narrador.

Narrador-observador: Ele simplesmente narra os fatos, registra as

ações e falas da(s) personagem(s) como um espectador. A narrativa é escrita em 3ª

pessoa.

11

O narrador-observador pode ter traços de onisciência, pode conhecer e

revelar sentimentos da(s) personagem (ns), é então chamado de observador-

onisciente.

Ainda no tocante às relações que se estabelecem entre narrador e

personagem, aparecem em Todorov in Barthes (1971) como “aspectos da narrativa”

os diferentes tipos de percepção, reconhecíveis e refletidos na relação entre ele (na

história) e um eu (no discurso), personagem e narrador.

Todorov in Barthes (1971: 239,240) destaca três tipos como sendo principais:

1. NARRADOR > PERSONAGEM (a visão “por trás”):

Apresenta diferentes graus. O narrador sabe mais que a personagem e sua

superioridade pode se manifestar por meio do conhecimento de desejos secretos,

íntimos, ou ainda pelo conhecimento de muitos pensamentos das personagens, ou

na narração de acontecimentos que não são percebidos por um único personagem.

2. NARRADOR = PERSONAGEM (a visão “com”):

Nela o narrador estará no mesmo nível de conhecimento da personagem, ele

não poderá apresentar explicações antes de as personagens a terem encontrado.

A narrativa pode aparecer em 1ª ou 3ª pessoa, porém sempre segundo a

visão que um mesmo personagem tem dos acontecimentos.

3. NARRADOR < PERSONAGEM (a visão “de fora”)

O narrador limita-se a descrever o que vê, o que ouve, como se fosse uma

testemunha que, na verdade, não quer saber de nada. Ele não tem acesso a

nenhuma consciência, sabe, portanto, menos que a personagem.

Quanto à interlocução no discurso narrativo, o narrador pode reproduzir a fala

da(s) personagem (ns) empregando as seguintes possibilidades, segundo a

nomenclatura adotada: discurso direto, discurso indireto ou discurso indireto livre.

O discurso direto: O narrador reproduz na íntegra a fala da(s)

personagem(s) ou interlocutor (es). Esse discurso vem sinalizado pelo uso do

travessão ou das aspas. Geralmente apresentam VERBOS DE DIZER, que

expressam a maneira como a personagem falou. Exemplo:

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Emocionado e um pouco bêbado, aos cinco minutos do ano novo ele resolveu telefonar para o velho desafeto: - Alô? - Alô. Sou eu. - Eu quem? - Eu, pô. O outro fez silêncio. Depois disse: - Ah. É você.

(VERÍSSIMO, Luís Fernando. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.83)

O discurso indireto: O narrador reproduz ao leitor aquilo que ouviu da(s)

personagem (ns). Por meio de encaixamentos sintáticos, como as orações

subordinadas substantivas, o narrador transforma a fala da(s) personagem (ns). Os

verbos aparecem na 3ª pessoa, seguidos dos conectivos que e se para introduzirem

a fala da personagem na voz do narrador. Exemplo:

Diz que quando recebe um paciente novo no seu consultório a primeira coisa que o analista de Bagé faz é dar lhe um joelhaço.

(VERÍSSIMO, Luís Fernando. O analista de Bagé. L&PM Editores Ltda, 1983, p.23)

O discurso indireto livre: É o resultado da mistura dos discursos direto

e indireto e produz grande efeito estilístico. É uma espécie de monólogo interior

da(s) personagem (ns), mas expresso pelo narrador. O foco narrativo é em 3ª

pessoa, as orações são, em regra, independentes, sem pontuação que marque a

passagem da fala do narrador para a fala da personagem. Exemplo:

Fez meia volta e correu para casa, onde Maneco e Antonio combinavam o que deviam fazer quando os castelhanos se aproximassem. Recebê-los à bala? Era loucura. Estavam em número muito inferior e não poderiam resistir nem durante meia hora...

(VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o vento. 31ªEd,S.Paulo:Globo, 1995,p.120)

As técnicas narrativas variam de autor para autor. São as variantes de estilo

que conferem à obra um toque especial na produção do enredo. O autor dispõe

também de muitos recursos com os quais pode brincar com o imaginário do leitor,

levá-lo a instaurar a realidade ou ainda a promover inúmeras outras situações.

Toda criação requer talento e sensibilidade. Com o texto não é diferente,

depende das intenções de quem o cria. Há uma permutação entre o leitor e a

história que o prende e, nessa troca, personagens, ações, conflitos, seguem seu

13

percurso apontando para um final no qual o leitor, ao fechar o livro, aguarda a

sensação de que algo fantástico lhe aconteceu.

Essas considerações ora apresentadas fundamentam a primeira análise da

narrativa. O segundo modelo de análise orienta-se por meio dos trabalhos de

Norman Fairclough (2001) em Análise Crítica do Discurso (ACD), que considera o

uso da linguagem como forma de prática social. A prática social possui uma relação

dialética com a estrutura social, e sendo o discurso uma prática, contribui para a

constituição de todas as dimensões da estrutura social que o moldam e o

restringem. Segundo Fairclough (2001: 92):

A constituição discursiva da sociedade não emana de um livre jogo de idéias nas cabeças das pessoas, mas de uma prática social que está firmemente enraizada em estruturas sociais materiais, concretas, orientando-se para elas.

Podem-se evidenciar três aspectos dos efeitos construtivos do discurso: em

primeiro lugar, contribui para a construção das identidades sociais; em segundo,

para construir as relações sociais entre as pessoas e, em terceiro, para a construção

de sistemas de conhecimentos e crenças. Assim, a prática discursiva contribui para

reproduzir a sociedade e ainda colabora para sua transformação.

Destaca-se o discurso como práticas política e ideológica, pois as mesmas

estabelecem, mantêm e transformam as relações de poder e as entidades coletivas

(classes, blocos, comunidades, grupos) entre as quais existem relações de poder.

Pretende-se abordar as relações que se estabeleceram e que, ao longo do

tempo, instituíram e moldaram o perfil da mulher na sociedade, o que contribui para

a constituição do universo feminino. Existe um mecanismo social que impõe uma

imagem à mulher, mostra-se a mulher que a sociedade dirigida por homens constrói

e quer ver representada. Caberia à sociedade estabelecer relações de reciprocidade

na eqüidade e no respeito às diferenças.

Observar as relações entre as práticas discursivas e os fenômenos sociais e

culturais mais amplos é a base dos estudos de Fairclough. Para tanto, propõe uma

análise de discurso tridimensional que foca o texto falado e/ou escrito, a prática

discursiva e a prática social na qual o texto foi produzido, e objetiva a compreensão

dessa complexa relação que existe entre discurso e sociedade.

14

Modelo tridimensional de análise de discurso:

Os textos são feitos de formas às quais a prática discursiva passada,

condensada em convenções, dota de significado potencial, são em geral

ambivalentes e abertos a múltiplas interpretações. Os intérpretes costumam reduzir

a ambivalência potencial por um sentido particular ou um conjunto de sentidos

alternativos. A análise do evento discursivo como texto privilegia a descrição dos

elementos lingüísticos, destacados em quatro itens: o vocabulário, a gramática, a

coesão e a estrutura textual.

Imaginados em uma escala ascendente, o vocabulário trata das palavras

individualmente, das lexicalizações alternativas e de sua significância política e

ideológica, da relexicalização dos domínios da experiência como parte de lutas

sociais e políticas, como certos domínios são mais lexicalizados que outros. Foca

ainda o sentido das palavras, como os sentidos entram em disputa dentro de lutas

mais amplas. A gramática trata das palavras combinadas entre as orações e frases,

toda oração é multifuncional, é uma combinação de significados ideacionais,

interpessoais e textuais. Ao escrever ou dizer uma oração, é preciso fazer escolhas

sobre o modelo e a estrutura das orações, o que resulta em escolhas sobre o

significado (e a construção) de identidades sociais, relações sociais, conhecimento e

crença. A coesão trata da ligação entre orações e frases e de como estas são

organizadas para formar unidades maiores nos textos. Para Foucault (1972:57), a

coesão seria como “vários esquemas retóricos segundo os quais grupos de

enunciados podem ser combinados (como são ligadas descrições, deduções,

definições, cuja sucessão caracteriza a arquitetura de um texto)”. E por último, a

estrutura textual que trata das propriedades organizacionais de larga escala dos

TEXTO

PRÁTICA DISCURSIVA (Produção, distribuição. Consumo)

PRÁTICA SOCIAL

15

textos. Por exemplo, a maneira e a ordem em que os elementos ou episódios são

combinados para constituírem um texto, como uma reportagem policial no jornal ou

uma entrevista.

A dimensão de análise de um evento discursivo como prática social explica

como o texto é investido de aspectos sociais ligados a formações ideológicas,

significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as

identidades sociais); as práticas discursivas contribuem para a produção, a

reprodução ou a transformação das relações de dominação e formas de hegemonia

no todo social, considerando-as como sendo um foco de luta constante sobre pontos

de maior instabilidade entre classes e blocos para construir, manter ou romper

alianças e relações de dominação/subordinação, que assumem forças políticas,

econômicas e ideológicas.

A linguagem demonstra a fronteira de interação entre mulher, homem e

sociedade, dando visibilidade ao universo cultural, social e político em que surgem

determinados discursos.

No tocante ao entendimento da complexidade do que seja o universo

feminino, Ferreira (2002:117) diz:

Para entender essa complexidade, reconhece-se a existência de uma rede anatômica, na qual viabiliza-se o construto da identidade do ser feminino; esse construto é revelado pela linguagem que, por sua vez, junto com o sujeito instauram-se nos níveis social, cultural e ideológico.

Busca-se identificar como as mulheres aparecem, o que fazem, em que

situação socioeconômica se encontram, o que sentem, como são tratadas dentro

das histórias em que são criadas e recriadas, e quem são seus criadores.

Por meio dos textos analisados neste trabalho, pretende-se conferir como o

discurso retrata aspectos sociais, significações e construções de realidades que

colaboram para as relações de dominação/subordinação em uma sociedade onde

homens e mulheres buscam desempenhar um papel social que lhes traga

reconhecimento e valorização.

No tocante à Análise Crítica do Discurso, segundo Pedro (1998), opera com

uma abordagem de discurso em que contexto é uma dimensão fundamental. Toma

como base a teoria de Fairclough, que conceitua o sujeito não como agente

16

processual, mas como sujeito construído e construindo os processos discursivos a

partir de sua natureza de ator ideológico. Essa dimensão ideológica na construção

do sujeito, e por conseqüência, na constituição do discurso é que fundamenta as

diferenças na Análise Crítica do Discurso a outras abordagens. (1998:20).

Na Análise Crítica do Discurso, os seres humanos são julgados a partir de

sua socialização, de suas subjetividades e de seus usos lingüísticos como

expressões de uma produção realizada em contextos sociais e culturais, orientados

por formas ideológicas e desigualdades sociais.

A linguagem organiza o cotidiano das pessoas, é responsável pela vida em

sociedade, é instrumento de socialização, pois oferece sentido aos movimentos,

permite que as pessoas compartilhem dos significados comuns à realidade.

Fairclough (1989) discute a importância da linguagem na produção, manutenção, e

mudança das relações sociais de poder e ainda manifesta sua preocupação em

aumentar a consciência de como a linguagem contribui para a dominação de umas

pessoas por outras, visto que é essa consciência que contribuirá para uma efetiva

emancipação.

Assim, a ACD objetiva dar conta da estrutura interna, da organização global

do texto, bem como fornecer uma dimensão crítica à análise do texto. Pretende

ainda mostrar o modo como as práticas lingüístico-discursivas imbricam estruturas

sociopolíticas mais abrangentes de poder e dominação, esperam poder produzir

mudanças não apenas nas práticas discursivas, mas também nas práticas e

estruturas sociopolíticas que apóiam as práticas discursivas.

Para construção de modelo de análise da narrativa, a ACD contribui com um

modelo textual concentrado nas propriedades analíticas de textos que estão ligados

às formas como as relações sociais são exercidas e as identidades sociais são

manifestadas no discurso (serão averiguados o controle interacional, a modalidade,

a polidez e o ethos), e ainda os aspectos da análise de texto que se relacionam com

a função ideacional da linguagem e com os sentidos ideacionais, enfatizando o

papel do discurso na significação e na referência (serão vistos: conectivos e

argumentação, transitividade e tema, significado de palavras, criação de palavras e

metáforas).

Quanto às propriedades analíticas, apresenta-se primeiramente o controle

interacional. As características de controle interacional para Fairclough (2001: 178),

17

“Estão ligadas à garantia de que a interação funcione regularmente num nível

organizacional: que os turnos na conversação sejam distribuídos regularmente, que

os tópicos sejam escolhidos e mudados, perguntas sejam respondidas, e assim por

diante”.

Características como: tomada de turno, estruturas de troca, controle de

tópicos, policiamento de agendas e formulação asseguram uma boa organização

interacional. Essas características serão explicadas nas análises dos textos

selecionados para este trabalho. As realizações e negociações concretas das

relações sociais, na prática social, podem ser explicadas pela investigação do

controle interacional.

A modalidade se refere ao grau de “afinidade” do produto de um enunciado

proposicional com aquilo que está propondo. Pode ser categórica, e ainda

“subjetiva” ou “objetiva”. A “subjetiva” é caracterizada pelo grau de afinidade com a

proposição, representado geralmente pelas palavras “penso / suspeito / duvido”,

como também com a expressão “eu acho”. Na “objetiva” a base subjetiva está

implícita, não apresenta pontos de vista ou opiniões de forma clara ou particular.

Nessa última, o produtor demonstra um baixo grau de comprometimento com

sua proposição, apresentando-a como um fato ou verdade compatível e, portanto,

de forma categórica.

Fairclough (2001: 201) conceitua-a: “A modalidade é, então, um ponto de

“intersecção” no discurso, entre a significação da realidade e a representação das

relações sociais – ou, nos termos da lingüística sistêmica, entre as funções

ideacional e interpessoal da linguagem”.

Já a polidez na linguagem está relacionada à preservação da face. Todo

indivíduo possui duas “faces”: positiva e negativa. A negativa corresponde ao

espaço de cada um, as pessoas não querem ser incomodadas, impedidas ou

controladas por outros. A face positiva tem relação com a imagem que se passa

socialmente ao outro. Nela as pessoas querem garantir a aceitabilidade, a proteção,

o carinho.

Quanto ao ethos, compreende as posições do “eu”, ou identidades sociais

dos participantes e é estabelecido pelo discurso como um todo, mas não só pelo

discurso como também pelo comportamento em geral.

18

Focar no discurso somente as expressões de quem fala pode ser uma

contribuição um tanto tímida, porém quando se enfatiza o papel do discurso na

construção do eu, têm-se contribuições significativas, conforme constata-se em

Fairclough (2001:209):

A função da identidade da linguagem começa a assumir grande importância, porque as formas pelas quais as sociedades categorizam e constroem identidades para seus membros são um aspecto fundamental do modo como elas funcionam, como as relações de poder são impostas e exercidas, como as sociedades são reproduzidas e modificadas.

Além das propriedades analíticas, apresentam-se os tópicos analíticos

específicos, os conectivos e a argumentação que mostram de que forma as

orações e os períodos estão interligados no texto.

A coesão focaliza as relações funcionais entre as orações e pode ser usada

para investigar “os esquemas retóricos” nos textos. Em alguns textos as marcas que

revelam as relações entre orações e períodos aparecem de maneira mais explícita.

Essa variação aponta para a necessidade de distinguir dois níveis na análise de

coesão: a análise das relações funcionais coesivas (como exemplo, pode-se citar

quando nas relações entre as orações uma oração (período) elabora o sentido de

outra por meio de uma descrição ou maior especificação, ou ainda quando se

expande o sentido de outra ao acrescentar-lhe algo novo), e a análise dos

marcadores coesivos explícitos na superfície do texto, como por exemplo: as

conjunções, a elipse. Segundo Fairclough (2001:220): ”Os marcadores coesivos têm

de ser interpretados pelos intérpretes de textos como parte do processo de

construção de leituras coerentes dos textos; a coesão é um fator de coerência”.

Há que se considerar os marcadores coesivos da perspectiva do produtor do

texto. Estes estabelecem relações coesivas de tipos particulares no processo de

posicionar o (a) intérprete como sujeito. A coesão pode tornar-se, nesse processo

dinâmico, um modo significativo de trabalho ideológico por meio do texto.

A transitividade e o tema tratam dos tipos de processos que são codificados

em orações e com os tipos de participantes envolvidos, sendo os principais: os

processos relacionais entre os participantes e os processos de ação. Para tanto,

trabalha com a transitividade, função ideacional da linguagem, que verifica que tipos

de processos (ação, evento) e participantes são favorecidos no texto, que escolhas

19

de voz (ativa ou passiva) e a nominalização, que transformam processos e

atividades em estados e objetos, e ações concretas em abstratas.

Afirma Fairclough (2001: 223):

Uma motivação social para analisar a transitividade é tentar formular que fatores sociais, culturais, ideológicos, políticos ou teóricos determinam como um processo é significado num tipo particular de discurso (e em diferentes discursos), ou num texto particular.

Quanto ao tema, analisá-lo significa examinar suas funções textuais e como

elas estruturam a informação. É a parte inicial da oração e final, referida algumas

vezes como rema. Vale a pena ficar atento ao que é colocado inicialmente nas

orações e nos períodos, pois isso pode auxiliar nos pressupostos e estratégias que

não são tornados explícitos.

O tema é o ponto de partida do (a) produtor (a) do texto numa oração e geralmente corresponde ao que pode ser considerado (o que não significa que realmente seja informação dada, isto é, informação já conhecida ou estabelecida para os produtores e intérpretes do texto). (2001: 227)

No tocante ao significado das palavras, as palavras possuem vários

significados e estão lexicalizadas de várias maneiras. Os indivíduos como

produtores ou como intérpretes estão sempre diante de escolhas a serem

realizadas: como usar as palavras e como expressar um significado por meio delas,

e ainda, como interpretar as escolhas realizadas por outros produtores.

É possível verificar na análise as palavras-chave que apresentam significado

cultural, as palavras com significado variável, o significado potencial de uma palavra,

como elas funcionam como um modo de hegemonia e um foco de luta.

Existe ainda uma multiplicidade de meios de expressar-se com novas

palavras. Essa perspectiva contrasta com a visão de vocabulário que tem como base

o dicionário, cuja tendência é padronizar e codificar as línguas na apresentação dos

significados das palavras como únicos.

No processo de criação de novas palavras consideram-se os domínios

particulares de experiências que estão atrelados aos aspectos culturais e

ideológicos, que implicam formas diferentes de expressar e interpretar essas

experiências.

20

Outro aspecto importante no estudo do vocabulário é o da metáfora.

Inicialmente considerada como aspecto da linguagem literária, hoje penetra em

quase todos os tipos de discursos.

Por meio de seu uso retrata-se uma realidade, escolhe-se uma forma de dizer

que é esta e não outra, revela-se uma maneira de pensar e agir, traduz-se

conhecimentos e crenças de forma tão natural, que as pessoas nem percebem e

ainda consideram difícil a sua retirada dos discursos. É possível também analisar

nos discursos que fatores culturais, ideológicos e históricos determinam a escolha de

metáforas, constatando-se o efeito metafórico sobre o pensamento e a prática.

Após considerações a respeito do segundo modelo de análise desta

dissertação, apresenta-se a sua organização:

Capítulo I: nele são apresentados alguns tópicos relevantes para a

compreensão da constituição do universo feminino, tópicos que trazem à tona

questões que colaboraram para a construção do papel da mulher na sociedade.

Capítulo II: é analisado o conto “Amor” de Clarice Lispector a partir da análise

da estrutura da narrativa e da análise crítica do discurso.

Capítulo III: o mesmo modelo de análise é realizado no conto “Venha ver o

pôr-do-sol”, de Lygia Fagundes Telles.

21

CAPÍTULO I – UNIVERSO FEMININO

1.1 Breve histórico

Este capítulo pretende traçar um breve histórico sobre as mulheres,

principalmente as brasileiras, como viveram, como era o mundo que as cercava,

desde a época do Brasil colonial até os dias atuais. Revelar um pouco dessa

história que trata de sua sexualidade, da violência que sofreram, dos seus amores e

desamores, de sua forma de estar no mundo. Retratos de mulheres que viveram em

diferentes espaços, pertencentes a múltiplos extratos sociais: escravas, operárias,

sinhazinhas, burguesas, donas de casa.

A história das mulheres inclui tudo o que envolve o ser humano, suas

aspirações e realizações, seus parceiros e contemporâneos, suas construções e

derrotas. Conhecer um pouco mais sobre as intrincadas relações entre a mulher e o

grupo social do qual foi parte integrante numa determinada época, são aspectos que

colaboram para uma melhor compreensão da constituição do universo feminino.

Segundo Del Priore (2001: 09) “as transformações da cultura e as mudanças nas

idéias nascem das dificuldades que são simultaneamente aquelas de uma época e

as de cada indivíduo histórico, homem ou mulher”.

O livro História das mulheres no Brasil, organizado por Mary Del Priore, traz

como ponto de partida dados sobre a vida das mulheres indígenas na sociedade

tupinambá. Foram os viajantes europeus que observaram a cultura indígena no

Brasil colonial, e embora os registros deixados não sejam precisos, são

representações da realidade. É importante ressaltar que a cultura indígena foi

descrita a partir dos princípios da igreja católica e do princípio de que os brancos

eram os eleitos de Deus, por isso superiores aos povos do novo continente.

A começar pelo nascimento de uma criança, documentações dos séculos XVI

e XVII registram que o nascimento de um tupinambá contava com a presença de

todas as mulheres. As crianças do sexo masculino tinham o cordão umbilical cortado

pelo pai, já as meninas recebiam os primeiros cuidados da mãe. Após o seu

nascimento eram banhadas no rio, momento em que o pai ou o compadre achatava-

lhes o nariz com o polegar e depois de secos os bebês eram untados com óleo e

22

pintados com urucum e jenipapo. Os pais aguardavam no resguardo o umbigo da

criança cair e nesse período não executavam nenhum tipo de trabalho. Após a

queda do umbigo, as mães levantavam-se e pressionavam o ventre contra os

troncos mais fortes, a fim de evitar a flacidez. Um mês depois elas retomavam o

trabalho na roça. Os chefes religiosos recomendavam a abstinência sexual para

garantir o nascimento de crianças fortes e valentes, e o não cumprimento desta

recomendação acarretaria aos pais doenças incuráveis.

Algumas práticas eram empregadas pelas mulheres ao longo da educação

dos filhos: ao chorar muito as mães punham algodão, penas ou madeira sobre a

cabeça dos pequenos; para ajudar no crescimento massageavam os recém

nascidos na palma da mão. Os filhos mamavam durante um ano e meio e as mães

não se separavam deles, carregavam-nos nas costas ou encaixados nos quadris.

Raminelli in Del Priore (2001) afirma que há alguns registros que retratam as

mães índias como feras e trazem exemplos como: uma índia caeté que para se livrar

do choro da criança resolveu atirá-la no rio; outra que trazia seu filho nas costas e se

dirigia à roça, irritada com o choro resolveu enterrá-lo vivo, e ainda índias que

engravidavam do inimigo e esperavam a criança nascer para então matá-la e comê-

la. Quando o marido adoecia, a mãe matava o filho porque se acreditava que o

restabelecimento só aconteceria com o frescor da infância, remédio capaz de

devolver força vital ao guerreiro.

É importante destacar a figura feminina dentro dessa cultura, pois sempre

desempenharam funções importantes para o grupo, funções que eram valorizadas.

A menina atingia a idade adulta depois da primeira menstruação, momento em que

acontecia um ritual, no qual cortavam seus cabelos rentes à cabeça, depois as

moças subiam numa pedra e os índios faziam incisões em sua pele com um dente

de animal, riscando-a das espáduas às nádegas. Após o primeiro ritual, elas

permaneciam em uma rede durante três dias, sem comida, sem bebida, sem

companhias e, ao término desse período, voltavam à pedra novamente e novos

cortes eram realizados. Só então retornavam à rede e alimentavam-se de farinha e

raízes cozidas e bebiam apenas água, não comiam carne e sal.

Quando se casavam, as mulheres eram proibidas de manter relações sexuais

no período menstrual, diziam a seus esposos que não estavam bem. O primeiro

fluxo menstrual era motivo de festa na tribo, pois a jovem estava adentrando no

23

mundo dos adultos e em breve poderia se casar. As relações de parentesco eram

vistas com pouca rigidez, pois o tio poderia desposar a sobrinha. As relações entre

irmãos eram proibidas e as regras para união eram simples: se houvesse o desejo

da união, o varão dirigia-se à mulher e perguntava sobre sua vontade de casar.

Observa-se como os valores eram diferentes se comparados à comunidade branca

do Brasil colonial, pois as índias podiam opinar em relação ao suposto noivo,

mostrar seu desejo, eram ouvidas, convidadas a participar. Se o interesse fosse

recíproco, pediam a permissão do pai ou do parente mais próximo. Não havia

cerimônias, bastava o consentimento e os noivos já eram considerados casados. O

marido poderia expulsar a mulher e vice-versa, e ambos poderiam procurar outros

parceiros, sem nenhum constrangimento. Mais uma vez, direitos iguais para homens

e mulheres. A maioria dos índios tinha uma mulher, mas os homens que possuíam

mais de uma eram considerados valentes. Eles tratavam-nas muito bem e

protegiam-nas de diversas formas.

Quanto à sexualidade, todos andavam nus, arrancavam todos os pêlos que

cresciam sobre a pele. Os cabelos femininos cresciam naturalmente e não eram

tosquiados na frente nem aparados na nuca. Essa seria uma diferença entre os

sexos, elas cuidavam dos longos cabelos, faziam tranças com cordões de algodão.

As índias diferiam também pelo fato de não furarem os lábios nem as faces para

ornamentação. Para alguns europeus, a nudez feminina incitava à lascívia e à

luxúria. Entre os portugueses, até mesmo os padres eram tentados por causa dos

corpos nus. Raminelli in Del Priore (2001:26) relata:

O padre Antônio da Rocha, por exemplo, confessou suas fraquezas em relação à nudez das índias. Desde que chegara ao Espírito Santo, o religioso não passava uma hora sem sentir “estímulos gravíssimos”. Em Portugal, fora acometido pelos mesmos arroubos, mas lá a volúpia surgia de forma mais branda, pois as mulheres andavam vestidas. Nos trópicos, as índias ostentavam as partes íntimas e não hesitavam em provocar a lascívia nos homens.

As perversões sexuais marcaram as representações dos índios. Os

tupinambás eram afeiçoados ao pecado nefando e sua prática era considerada

normal. Os índios-fêmeas montavam tendas para servirem como prostitutas.

Algumas índias abandonavam as funções femininas e passavam a imitar os homens

e ainda possuíam uma mulher para servi-la. O viajante Gabriel Soares de Sousa

24

dedicou uma parte de sua crônica para os desvios sexuais dos tupinambás,

considerou-os luxuriosos, pois cometiam todos os pecados da carne, até as índias

velhas que ensinavam aos índios com pouca idade a fazer o que eles não sabiam;

foram descritas como elemento pervertedor, cujo apetite era comparado ao desejo

de comer carne humana e deliciar-se na vingança contra o inimigo. Para Raminelli

in Del Priore (2001:42):

A Bíblia já havia representado a mulher como fraca e suscetível. Desde Eva as tentações da carne e as perversões sexuais surgem do sexo feminino. Os eruditos do final da Idade Média partem comumente da falta de autocontrole para explicar as perversões sexuais das mulheres. Aí está incluído o desejo canibal, que aproxima o ato de beber e comer da cópula. A correlação é fartamente repetida entre os viajantes e missionários que descrevem o cotidiano ameríndio.

Os homens não eram vistos da mesma forma pelos viajantes que preferiram

descrever mais a imagem das velhas índias. Elas apareceram estereotipadas,

primeiro por serem mulheres e depois por serem idosas, simbolizavam o

afastamento das comunidades ameríndias do Cristianismo, e de certa forma,

representavam a resistência indígena aos colonizadores europeus.

Já na colônia a igreja exercia forte pressão sobre o adestramento da

sexualidade feminina. Sob o argumento de que o homem era superior e, portanto,

cabia a ele exercer a autoridade, as mulheres deveriam ficar sujeitas aos mandos

dos seus maridos, já que elas partilhavam da essência de Eva, tinham de ser

permanentemente controladas. Foram muitas as condenações feitas pela igreja às

mulheres, entre elas: o uso de enfeites, tranças, objetos de ouro e, além disso,

pregava-se que a mulher se conservasse em silêncio, com toda submissão, pois

primeiro fora formado Adão e depois Eva. Admitia-se serem as mulheres mais

impressionáveis e mais predispostas a receberem o espírito descorporificado;

possuidoras de língua traiçoeira, não se intimidavam em contar às amigas tudo que

aprendiam por meio das artes do mal. Proibia-se qualquer feitiçaria destinada a

interferir no sentimento das pessoas. Mas em Salvador as feiticeiras eram teimosas

e vendiam seus serviços a quem quisesse conquistar o amor de outrem ou ainda

àquele que estivesse carente de afeto. As mulheres que não pertenciam a esse

grupo eram sempre muito vigiadas e a sociedade pregava que havia apenas três

ocasiões em que a mulher poderia sair do lar: para se batizar, para se casar e para

ser enterrada. Assim, a igreja comandava o adestramento da sexualidade, ao

25

conduzir o destino das mulheres, que deviam respeito e obediência ao pai, depois

ao marido, além de ter uma educação exclusivamente voltada para os afazeres

domésticos.

No tocante à educação formal, Araújo in Del Priore (2001) atesta que

documentos básicos sobre a educação feminina são os estatutos elaborados pelo

bispo Azeredo Coutinho, em 1798. As mestras do recolhimento, ou seja, dos

conventos, ensinavam às meninas os princípios da religião, a fim de protegê-las das

armadilhas de seu sexo. O programa de estudos destinado às meninas era mínimo e

bem diferente do dirigido aos meninos: aprendiam latim e música, a como

administrar o lar, a ler, escrever, contar, coser e bordar, enfim, era uma educação

que projetava a mulher para o casamento. Meninas com doze anos de idade podiam

casar e se a menina de quatorze ou quinze anos ainda não casara, o pai já ficava

inquieto, pois o matrimônio era decidido por ele. A mulher desde muito cedo devia

ter seus sentimentos abafados, e a própria igreja cuidava disso no confessionário,

ao vigiar de perto atos, gestos, sentimentos e até sonhos. Após o casamento, que

poderia ser com um homem bem mais velho, seu senhor passava a ser o marido, e

a igreja continuava a interferir mesmo no leito conjugal, ao reprimir o erotismo e o

sexo em excesso, pois o ato sexual era destinado à procriação. Com prazer ou sem

prazer a mulher tornava-se mãe e a maternidade teria de ser o ápice da vida da

mulher. Agora ela se afastava de Eva e aproximava-se de Maria, a mãe do salvador

do mundo.

O ideal do adestramento nem sempre obtinha sucesso, nem todo mundo

aceitava passivamente a interferência, principalmente quando as proibições

passavam dos limites aceitáveis. Os desvios da norma eram comuns numa

sociedade colonial que se formava e improvisava seus próprios caminhos. Afirma

Araújo in Del Priore (2001:54):

a troca de informações, a difusão de saberes restritos ao cotidiano feminino davam às mulheres, em certa medida, de criar um mundo feminino, expressado em laços de solidariedade e amizade entre vizinhas, amigas e parentes, nos expedientes alternativos de esperança e num poder informal e difuso.

Ao apresentarem-se, suas vestes eram notadas. O vestuário ou a falta dele

era uma forma de chamar a atenção. As mulheres diferenciavam-se na maneira de

vestir, as mais abastadas usavam tecidos de qualidade, como veludos, sedas e

26

ornamentos; e as pobres andavam pelas ruas de Salvador quase nuas, com camisas

desgarradas que deixavam ombros e peitos à mostra. As escravas que se

prostituíam faziam de tudo para atrair seus homens com trajes feitos para chamar a

atenção. Araújo in Del Priore (2001:58) confirma: “Trajes sumários, trajes

excessivos, trajes decompostos, todos eram artifícios culturalmente aceitos e

admirados para incitar o desejo masculino, confirmar posição social e sublinhar a

sedução do feminino”.

Quanto ao adultério, a mulher arriscava-se muito ao cometê-lo. A lei era

rígida, pois permitia ao homem matá-la, caso a encontrasse em adultério. Mas nem

sempre as aventuras extraconjugais femininas acabavam tão mal, era freqüente o

marido mantê-la num recolhimento, ou se separava ou ainda dava-lhe uma boa

surra.

As transgressões não se acabavam no adultério. Uma das maneiras de

violar, agredir e se defender estava no refúgio ao amor de outra mulher, pois o

homossexualismo (ou sodomia) era condenado na legislação civil que instituía:

“quem o pecado de sodomia por qualquer maneira cometer, seja queimado e feito

fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória, e todos

os seus bens sejam confiscados para a Coroa”, e salientava o sexo feminino “E

esta lei queremos que também se estenda e haja nas mulheres que uma com as

outras cometem pecado contra natura, e de maneira que temos dito nos homens”.

As mulheres eram alertadas quanto à punição, mas a verdade é que, no Brasil

colonial nenhuma delas foi queimada; foram apenas ameaçadas, repreendidas,

sujeitas a penitências espirituais.

A Igreja persistia em manter sob controle os impulsos femininos, a mulher

podia ser mãe, irmã, filha, esposa, religiosa, mas jamais amante e até a doença

seria uma advertência divina. O corpo feminino era visto como palco nebuloso no

qual Deus e o Diabo se digladiavam e qualquer doença que atacasse uma mulher,

era interpretada como um castigo de Deus contra os pecados cometidos. O estudo

de seu corpo era associado ao aspecto moral e metafísico. Del Priore (2001:78) cita

a explicação do médico Francisco de Melo Franco, dada em 1794:

27

Se as mulheres tinham ossos “mais pequenos e mais redondos”, era porque a mulher era “mais fraca do que o homem”. Suas carnes, “mais moles [...] contendo mais líquidos, seu tecido celular mais esponjoso e cheio de gordura”, em contraste com o aspecto musculoso que se exigia do corpo masculino, expressava igualmente a sua natureza amolengada e frágil, os seus sentimentos “mais suaves e ternos”.

A ciência médica, além de investir em conceitos que subestimavam a mulher,

passou a perseguir aquelas que possuíam conhecimentos sobre como tratar de seu

corpo, saber transmitido de mãe para filha, necessário à sobrevivência e

manutenção dos costumes. Os médicos eram substituídos por curandeiras,

benzedeiras, que com suas palavras, ervas e orações chegavam onde eles não

conseguiam. Nesse período, todo conhecimento médico existente sobre o corpo

feminino dizia respeito à reprodução. Insistir na dignidade da procriação, na

excelência dos sentimentos maternos e na necessidade do equilíbrio para evitar as

“afecções morais” era a prática médica que só enxergava a vocação biológica das

mulheres. Para Vainfas in Del Priore (2001: 116), muitos são os retratos

perfilados pelos historiadores sobre a mulher e destaca:

As mulheres brancas, em pequeno número no acanhado litoral do século XVI, teriam vivido em completa sujeição, primeiro aos pais, os todo-poderosos senhores de engenho, Depois aos maridos [...] As mulheres índias, essas sim, foram amantes dos portugueses desde o início... As índias eram as “negras da terra”, nuas e lânguidas, futuras mães de Ramalhos e Caramurus, todas a desafiar, com seus parceiros lascivos, a paciência e o rigorismo dos jesuítas [...] A mesma fama tinham as negras da Guiné, as crioulas, especialmente as da casa-grande, amantes de sinhôs e sinhozinhos.

Vainfas in Del Priore (2001) confirma que inúmeros historiadores

demonstraram em pesquisas recentes, outras facetas das mulheres que diferem

desses estereótipos comuns. Eram mulheres que saíam às ruas para vender

quitutes, agiam como chefes de família quando abandonadas, gerenciavam tudo que

dizia respeito à maternidade, desde os mistérios do parto até as práticas de

contracepção, e souberam construir sua identidade. Mulheres que experimentaram

relações homoeróticas (algumas uma só vez, outras sempre, casadas ou não). No

entanto, para falar sobre os amores femininos, é preciso falar da própria inquisição,

que estabelecida a partir de 1536 com o propósito de perseguir os cristãos novos,

ampliou os limites de seu foro. Ainda no século XVI, passou a julgar determinados

delitos morais, desvios de conduta familiar ou sexual que por vários meios foram

28

considerados heresias. Dos desvios de conduta transformados em erros de crença,

o mais perseguido foi a sodomia. Os teólogos medievais deram conotação ampla ao

termo sodomia, entendendo-o não só como indicador das relações entre pessoas do

mesmo sexo, mas também como variados excessos sexuais.

Muitas mulheres antes de casar costumavam extravasar sua sexualidade com

relações homoeróticas, realizando-as com meninas de tenra idade. Na maioria das

vezes, essas relações nasciam no cotidiano que irmanava senhoras, escravas e

mulheres livres, na troca de segredos, mexericos e alcovitagens; da mesma maneira

que ocorria com os meninos da casa-grande e os moleques, eram relações que não

passavam de flertes próprios de jovens recém-saídos da puberdade.

Quanto aos casos femininos, é possível afirmar que as mulheres eram muito

discretas em suas relações. Ao contrário dos homens, elas costumavam manter

suas relações em sigilo, e se envolviam com mulheres das mais variadas posições

sociais. Assim, a sexualidade feminina foi registrada nos documentos da Inquisição

de maneira quase imperceptível, porém esses valiosos documentos permitiram

rastrear a sexualidade feminina de séculos atrás.

Há um registro curioso, segundo Vainfas in Del Priore (2001:135), redigido no

século XVIII pelo dominicano português Frei Lucas, que mostra como as mulheres

usavam de várias palavras para se referirem às partes íntimas, a seus prazeres e a

do seu corpo:

As freiras de santa Ana as chamavam de “passarinho”; as de santa Marta , “carriso”, as do Salvador, “clitário”; as da Rosa, “covinha”; as de santa Clara, “montezinho”; as putas, “ave de rapina”; as castelhanas, “correio”; as melindrosas, “cousinha”; e assim por diante. Conhecimento feminino da própria anatomia, valorização, com graça, de tal ou qual sensação de prazer, eis o que sugere semelhante vocabulário, a um só tempo barroco e popular.

Seguir aos impulsos sexuais e fazer as vontades do corpo, eram atitudes que,

algumas vezes, geravam problemas, entre eles uma gravidez indesejada, fruto de

uma relação proibida, ou sem planejamento. Para resolver esse problema, outro era

criado, o abandono das crianças que nasciam. Durante o período colonial, segundo

Venâncio in Del Priore (2001), muitas mulheres precisaram abandonar seus filhos e

esse abandono revelou importantes aspectos da condição feminina no passado

colonial. Os motivos diferem: boa parte das crianças conheceu o abandono em

29

decorrência da morte da mãe, outras podiam ser filhas de escravas que fugiam ou

de mulheres brancas que, por motivos morais ou miséria, encaminhavam os filhos a

outros domicílios. Alguns historiadores sugeriram como interpretação que o

abandono seria uma forma de controle de natalidade, uma maneira de determinar a

dimensão ideal da família, já que não havia métodos contraceptivos seguros, e o

aborto era considerado crime, uma prática demoníaca.

Em uma sociedade que herdara a religião européia, o abandono causava

indignação, repercutia de forma negativa, o que gerava preocupação. Coube às

Santas Casas auxiliarem a essas mulheres, implementando junto à parede lateral ou

frontal do hospital um cilindro que unia a rua ao interior, dispositivo bastante

difundido em Portugal, e então a Casa de Misericórdia passou também a receber

essas crianças na chamada Roda dos Expostos. Abandonavam-se também crianças

mortas, pois a Roda servia de cemitério gratuito às famílias e mães pobres que

queriam garantir um enterro cristão a seus filhos. Os abandonados pagavam um alto

preço por não terem nascido em uma sociedade não estruturada, pois não havia

orfanatos tampouco leis favoráveis à adoção.

Os diferentes ritmos de crescimento do mundo colonial afetavam na condição

de vida das crianças. No campo, em área dominada por pequenos agricultores, o

abandono raramente acontecia, pois os camponeses não tinham escravos e a força

do trabalho familiar ocupava um papel fundamental na sobrevivência da unidade

doméstica. As mães ensinavam os filhos a realizarem pequenas tarefas desde muito

cedo e abandonar um filho significava também perder uma ajuda preciosa na

economia da família, que embora pobre, não vivia em condição de miséria; o mesmo

não se podia garantir às crianças que viviam na cidade, pois lá o trabalho infantil

tinha pouco valor.

1.2 As transformações ocorridas no Século XIX

Durante o século XIX, o capitalismo firmou-se e a vida urbana oferecia

alternativa, até mesmo para as mulheres que podiam reorganizar suas atividades

domésticas e familiares, sua sensibilidade e sua maneira de amar. A burguesia

emergia e buscava adaptação à nova sociedade. Essas mudanças colaboraram

para que a sociedade remodelasse o papel da mulher.

30

A vida urbana passou a existir e trouxe com ela uma série de situações

novas, exigiu medidas que trouxessem limpeza, organização, enfim, leis públicas

que regulamentassem o uso da cidade. Nascia o espaço público, as ruas passaram

a ser lugares públicos e com isso ganharam um significado oposto ao do uso

particular. As casas mais ricas passaram a receber outras famílias para que a

apreciassem. As salas de visita e os salões, espaços entre o lar e a rua eram

abertos de tempos em tempos para a realização de saraus, festas, jantares. A

mulher da elite passou a marcar presença em cafés, bailes, teatros, porém era

sempre vigiada pelo marido e agora pela sociedade, por isso teve de aprender a

comportar-se em público. Mulheres casadas ganharam um uma nova função:

contribuir para o projeto familiar de mobilidade social por meio de sua postura na

vida cotidiana como esposas modelares e boas mães. Redefiniu-se o papel feminino

e reforçou-se a idéia de que para ser mulher era preciso ser mãe dedicada,

atenciosa e esposa exemplar, pois dela dependia o sucesso da família, embora a

autoridade familiar se mantivesse em mãos masculinas do pai ou do marido.

Ainda com relação ao espaço público, na Europa os grandes magazines, os

salão de chá, e a igreja eram lugares importantes para as mulheres de certa

condição financeira freqüentarem. As mulheres das classes populares encontravam-

se nas ruas, no mercado e na lavanderia, lugares de sociabilidade, de comunicação

e de ajuda mútua. Perrot (1998) afirma que homens e mulheres situavam-se em

extremidades na escala de valores. Os homens públicos desempenhavam papel

importante e reconhecido, participavam do poder; a mulher pública era depravada,

rapariga, uma criatura que pertencia a todos. Há que se considerar que foi nesse

espaço que homens e mulheres se encontraram, se evitaram ou se procuraram.

O lugar das mulheres no espaço público sempre apresentou problemas. Três

santuários constituíram espaços onde as mulheres não poderiam estar, núcleos de

poder e símbolos que diferenciavam os sexos: o militar, o religioso e o político, como

três ordens da Idade Média.

Desde a Grécia antiga, a cidadania foi construída considerando a política

como o centro das decisões e do poder, temia-se a intrusão das mulheres na

política, pois a percepção da mulher estava ligada a uma idéia de desordem:

instintiva, selvagem, mais sensível do que racional, ela incomodava e ameaçava.

Para Perrot (1998:09):

31

Essas representações, esses medos atravessam a espessura do tempo e se enraízam num pensamento simbólico da diferença entre os sexos, cujo poder estruturante foi mostrado pelos antropólogos. Mas assumem formas variáveis conforme as épocas, assim como as maneiras de geri-las. Nas sociedades que pensam o político, isso se traduz por uma divisão racional dos papéis, tarefas e dos espaços sexuais.

Da prostituição à galanteria, surgiram os bordéis, que atendiam a várias

categorias. O bordel propriamente dito tinha uma clientela mais popular, porém havia

lugares mais sofisticados que atendiam o burguês. Perrot (1998) retratou os

privilégios do burguês que podia ter várias mulheres: uma para cuidar de sua casa e

de seus filhos, outra para os momentos de escapadas na cidade, e outra ainda para

ser amante sofisticada e fervorosa.

A mulher definiu-se pelo seu corpo, pelos critérios de beleza e passou a possuir

poder por meio da estética. O brilho das cortesãs alcançou imediatamente as

mulheres da alta burguesia, que passaram a imitá-las nas vestes ao mesmo tempo

em que passaram a ditar a moda da época. Na França, uma ordenação imperial

proibiu o uso de calças. O uso de chapéu implicava respeito, pois as mulheres

precisavam andar com a cabeça coberta, não podiam sair sem capuz; as burguesas

usavam chapéus e as mulheres do campo uma touca simplificada ou um boné. Eram

cobrados comportamentos exemplares: gestos, palavras, a maneira de se

apresentar em público eram vigiados o tempo todo, principalmente sendo a mulher

ainda solteira.

Seu corpo também marcaria a sua moral, a sua honra. Essa concepção impôs

ao gênero feminino o desconhecimento de seu próprio corpo e permitiu a repressão

de sua sexualidade; a mulher passou a manter uma relação de culpa, de impureza,

de vergonha por não ser mais virgem ou por estar menstruada. É importante

destacar que a virgindade feminina era um quesito fundamental, funcionava como

um dispositivo para manter o status da noiva como objeto de valor econômico e

político. Assim, a mulher permaneceu por longo tempo sem poder dispor livremente

de seu corpo, de sua sexualidade, violência que construiu outras violências. Afinal,

pureza era fundamental num contexto em que a imagem da Virgem Maria era o

exemplo a seguir.

Nem seu corpo nem suas vontades eram respeitados. Ao pai caberia a

escolha do cônjuge e amar ou se apaixonar por alguém que não fosse o escolhido

implicava problemas. Apesar disso os enamorados não se intimidavam e sempre

32

encontravam oportunidades para manter uma aproximação. Em relação às moças

mais pobres esse controle era mais flexível, já que, entre outras coisas, não havia

recursos a serem trocados pelas famílias envolvidas na união. A literatura informa

que as mulheres das classes mais baixas tiveram mais oportunidades de poder amar

pessoas de sua condição social, enquanto as mulheres de mais posses sofreram

com a vigilância e a autoridade exercida sobre elas, não tendo o direito a realizar

suas próprias escolhas no amor.

Em relação ao trabalho, não havia espaço nem era permitido às mulheres

trabalharem fora de casa. Aquelas mais empobrecidas, que necessitavam trabalhar,

as viúvas ou as abandonadas faziam doces, arranjos de flores e bordados para

manter a prole, mas essas atividades não eram bem vistas nem valorizadas e

tornavam-se alvos daqueles que passavam a julgar a incapacidade do homem da

casa, quando havia, e sua decadência econômica. Por isso, muitas vendiam seu

produto por intermédio de outras pessoas para não se exporem.

O estereótipo do marido dominador e da mulher submissa, próprio da classe

dominante, não se aplicava plenamente às camadas subalternas. Muitas mulheres

reagiam à violência doméstica, não suportavam situações de humilhação e abriam

mão do matrimônio. Ao partilharem com seus companheiros as despesas para

manter o lar, ganhavam uma relação mais simétrica, ao contrário dos estereótipos

vigentes na época, que previam a subordinação feminina.

Soihet in Del Priore (2001) considerou que as dificuldades sofridas pelas

mulheres em uma sociedade injusta e discriminatória, não as intimidaram de se

apropriar de diversos espaços e as obrigaram a uma constante luta pela

sobrevivência e pelos seus direitos. E com esse espírito as mulheres adentraram no

mundo letrado.

1.3 As primeiras escritoras (Século XIX)

Segundo Telles in Del Priore (2001), o número de mulheres que escreveram

nessa época não foi insignificante como alguns pensam. Elas habitaram diversas

áreas do Brasil, pertenceram a mais de uma classe social, da mais abastada a bem

pobre, foram brancas arianas ou negras africanas. Escreveram abordando os

conflitos da época: a educação das mulheres, a posição da mulher na sociedade,

33

suas reivindicações de igualdade, a sociedade escravocrata, o sufragismo... O

surgimento de mulheres escritoras ocorreu principalmente a partir do século XIX, no

contexto da crescente importância da imprensa e do início de movimentos em prol

dos direitos das mulheres. Nesse período também surgiram os primeiros textos

escritos por mulheres brasileiras que tiveram alguma divulgação entre o público

letrado. Perrot (1998) afirma que na França, a palavra das mulheres passou

primeiramente pelo domínio da conversação, que se firmou nos salões do século

XVII. Conscientes do poder das palavras, passaram a ocupar um lugar importante

como donas de salões onde se encontravam homens que conversavam sobre

política, período em que os homens eram os únicos escritores e filósofos. Atentas e

curiosas, as mulheres discutiam sobre tudo, e pela conversação criaram possíveis

réplicas entre vozes femininas e masculinas.

No Brasil dos tempos coloniais, a mulher nada escreveu, ou escreveu, mas os

textos não apareceram ou apareceram como exceção, entre a maioria quase

absoluta de textos escritos por homens. Vale lembrar Tereza Margarida da Silva e

Orta – filha de um português e de uma brasileira, que viveu desde os cinco anos em

Portugal. Escreveu obra de cunho moralista, intitulada Aventura de Diófanes

publicada em 1752, que é considerada por alguns como o primeiro romance

brasileiro, já que a escritora nasceu no Brasil, e por outros como obra portuguesa, já

que a autora foi menina para Portugal e nunca mais retornou ao Brasil.

Num contexto de cultura colonial, em que a fundação de universidades era

proibida, em que o analfabetismo imperava e em que as tipografias passaram a

funcionar livremente apenas depois de 1808, quando a família Real chegou ao

Brasil, os textos feitos por mulheres, se é que existiram, devem ter circulado

oralmente. Outros textos por elas escritos fariam parte de um contexto de cultura

bem específico: o espaço doméstico registrado nos livros de receitas, diários, cartas,

anotações, orações, pensamentos, lista de deveres e obrigações, que em sua

grande maioria desapareceram.

Podem-se citar os textos escritos por Nísia Floresta Brasileira Augusta, como

exemplos de textos de caráter mais artístico, que eram exceções. Nísia foi

considerada a primeira feminista brasileira. Dionísia Gonçalves Pinto ou “Nísia

Floresta” (1810-1885), foi poetisa e prosadora potiguar das mais importantes do

século XIX. Escritora e combatente pelas causas mais nobres, teve forte

participação na imprensa nacional desde 1830 e publicou vários livros no Brasil, na

34

França e na Itália, nos quais se destacou a defesa consciente da mulher.

Republicana e abolicionista, escreveu em jornais do Rio de Janeiro, mas suas idéias

provocaram polêmica e adotou o pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta.

Outras escritoras também mereceram destaque pela forma como atuaram na

tentativa de construir uma sociedade que propiciasse um papel mais digno à mulher.

Vejamos algumas delas: Maria Firmina dos Reis (1825-1917), mulata bastarda

nascida no Maranhão, foi professora primária e em 1859 publicou Úrsula, primeiro

romance abolicionista do Brasil. Foi colaboradora assídua de jornais e publicou em

1887 o conto A Escrava, o Hino da Libertação dos Escravos e deu voz ao escravo

que, pela primeira vez em nossa literatura, contou a sua História desde a África.

Narcisa Amália (1852-1924), poeta fluminense, foi também a primeira jornalista

profissional do Brasil. Movida por forte sensibilidade social, combateu a opressão da

mulher, o regime escravista, defendeu os oprimidos e foi um dos raros nomes

femininos que falaram de identidade nacional, buscou sua própria identidade numa

poética uterina que imprimiu o retorno ao lugar de origem. Júlia Lopes de Almeida

(1862-1934), foi jornalista e autora de livros de sucesso. Casou-se com o jornalista

Filinto de Almeida e em suas crônicas fez campanha em defesa da cidade, da

educação da mulher, do divórcio, da exposição de flores, da abolição e da

República. Era palestrante e viajou muito. Escreveu peças de teatro e a mais

conhecida A Herança foi representada pela primeira vez no Teatro da Exposição

Nacional, em 1908. Talvez tenha sido a única escritora do período que conseguiu

ganhar dinheiro com seu trabalho.

No campo da poesia outros nomes mereceram destaque: Adélia Fonseca

(1827-1920), poetisa baiana, com seu verso comovente, marcado pela economia do

qual exclui qualquer exagero sentimental e de influência camoniana, teve sua força

reconhecida por Machado de Assis em resenha no Diário do Rio de Janeiro. Beatriz

Francisca Brandão (1779-1868), poetisa mineira e professora publicou bastante nos

periódicos da época. Escreveu sonetos primorosos em que o tema do amor fundiu

tradição clássica com lampejos românticos. Sua concepção do amor como valor

maior da existência chegou a assumir um tom filosófico. Maria Clemência S.

Sampaio (1823-?), gaúcha, deixou uma poesia de exaltação da natureza local, e

captou bem o clima generalizado de euforia pós-independência. Sua poesia teve

mais valor documentário que estético. Ildefonsa L.César (1794-?), poetisa baiana,

levou vida amorosa à margem das regras sociais. Professora, mãe solteira, deixou

35

uma poesia marcada pelo tema da paixão e foi a primeira autora cuja poesia teve

condimento erótico, afrontando a sociedade com revelações de paixões proibidas.

Esteve acima de outros poetas de seu tempo pela franqueza e naturalidade. Muitos

outros nomes destacaram-se: Rita Barém de Melo (1840-1868), notável poetisa

gaúcha; Gabriela de Andrade (1852-1922), poetisa paulista; Adelaide de Castro

Guimarães (1854-1940), poetisa, irmã de Castro Alves; Maria Carolina Souza –

(1856-1910) catarinense; Alexandrina da Silva C. dos Santos (1859-1934), poetisa

do Rio de Janeiro; Júlia da Costa (1844-1911), paranaense; e Ana Luísa de Azevedo

e Castro (1823-1869), catarinense, educadora, avançada e romancista, simpática

aos índios.

A literatura feminina foi presença constante nos periódicos do século XIX,

tanto nos dirigidos por homens quanto nos criados e mantidos por mulheres e teve

papel fundamental no despertar da consciência das mulheres brasileiras. Podem-se

destacar algumas dessas autoras, primeiramente as pioneiras: Josefina Álvares de

Azevedo (1851-?), nascida em Recife, jornalista e dramaturga cuja luta em prol do

sufragismo foi marcante; Corina Coaracy (1859-1892), nascida nos Estados Unidos

e radicada no Rio de Janeiro, foi abolicionista ativa, intelectual acima da média,

dramaturga, cronista, tradutora, crítica de artes, dotada de visão avançada da

história e da cultura; Carmem Dolores (1852-1910), fluminense, foi dramaturga,

romancista, cronista e boa contista, mesclava literatura e jornalismo. Via o divórcio

como uma necessidade, mas foi ambígua em relação a outros direitos da mulher.

Observaram-se ainda algumas mulheres muito atuantes nos periódicos: Ana Aurora

do Amaral Lisboa, Ildefonsa Laura César, Maria Firmino dos Reis, Júlia Lopes de

Almeida, Delia, entre outras.

Uma das razões para a criação dos periódicos de mulheres no século XIX

partiu da necessidade de conquistarem direitos. Em primeiro lugar o direito à

educação, em segundo lugar o direito à profissão, e bem mais tarde, o direito ao

voto, sendo que um dos primeiros veículos dessa emancipação foi o jornal carioca O

Espelho Diamantino, lançado em 1827, que divulgava questões relacionadas às

mulheres e textos literários ou políticos escritos por mulheres.

Considerado o primeiro jornal feminino fundado em nosso país O Jornal das

Senhoras, de Joana Paula Manso de Noronha, anunciava a colaboração para a

educação da mulher. No editorial do primeiro número do O Jornal das Senhoras, em

1º de janeiro de 1852, ela afirmava que o que a motivava era a vontade e o desejo

36

de propagar a ilustração, e cooperar com todas as suas forças para o melhoramento

social e para a emancipação da mulher. Dezenove anos antes do surgimento do O

Jornal das Senhoras, apareceu uma gaúcha, raramente mencionada, chamada

Maria Josefa Barreto Pereira Pinto, que foi poetisa, escritora, professora e jornalista.

Fundou um jornal como meio de subsistência, pois seu marido desaparecera após

ser condenado. Seu jornal era estranhamente intitulado Belona Irada contra os

sectários de Momo, popularmente conhecido por Belona. Era um periódico fundado

na província e o que se passava nesse lugar ficava ali confinado.

Em 1873, foi fundado o primeiro jornal feminista Sexo Feminino, de

propriedade de Francisca Senhorinha de Mota Diniz, defensora da capacidade

intelectual da mulher para as ciências, a literatura, a filosofia, a história, a geografia,

a química, o que quer que fosse e que tinha como objetivo defender a educação da

mulher. Outro foi o jornal A Família, fundado por Josefina Álvares de Azevedo em

1888. Josefina era abolicionista, republicana, e defendia a emancipação da mulher.

Em 1890, publicou no folhetim A Família uma comédia em um ato O voto feminino,

apresentada no palco em 23/06/1893 e noticiada por um jornal feminino em Paris.

No Rio Grande do Sul, o Escrínio e o Corymbo das irmãs Revocata Heloísa

de Melo e Julieta de Melo Monteiro durou sessenta anos (1884-1944) e durante todo

esse tempo cobriu aventuras de mulheres brasileiras em vários campos de atuação.

Outros jornais saudavam essas iniciativas femininas, bem como o aparecimento de

livros escritos por mulheres.

A Revista Mensageira, da escritora Prisciliana Duarte de Almeida, surgiu no

final do século, 1897, em São Paulo. Seu objetivo era levar idéias novas aos lares, e

ao mesmo tempo, estabelecer uma simpatia espiritual pela comunhão dessas

mesmas idéias. Noticiava todos os livros publicados por escritoras em todo o Brasil e

no exterior, resumia conferências e conquistas profissionais, foi solidária com as

mulheres do mundo todo ao publicar artigos sobre mulheres inglesas, polacas,

francesas, suecas e chinesas. Entre as colaboradoras freqüentes: Júlia Lopes de

Almeida, Áurea Pires, Narcisa Amália, Francisca Júlia, Auta de Souza, Ignez Sabino,

Josefina Álvares de Azevedo e a portuguesa Guiomar Torrezão, todas bem

conhecidas.

Na Europa, nos primeiros tempos da construção da democracia, as

correspondências aumentaram consideravelmente, tornando-se meio de

comunicação generalizado. A mulher passou a escrever, principalmente cartas aos

37

familiares, mas opinava sobre política e educação, consciente do desafio que isso

representava para seus filhos.

A partir do século XVIII, principalmente no século XIX, a imprensa não tinha

concorrência e não parou de crescer. Lentamente as mulheres apropriaram-se

desse universo masculino cuja leitura a princípio era quase proibida, pois os lugares

que possuíam jornais eram reservados aos homens: casas burguesas, escritórios e

bibliotecas ficavam localizadas no primeiro andar, e os espaços destinados ao

público feminino ficavam no térreo. Elas iniciaram suas escritas na Grã-Bretanha,

mas também na França e na Inglaterra, primeiro na imprensa da moda, como

redatoras ou diretoras. Em seguida passaram a fazer do jornal um modo de

expressão do feminismo em quase toda a Europa.

As últimas décadas do século XIX no Brasil apontaram para outras

necessidades, e a mais importante delas era a da educação para a mulher. Segundo

Louro in Del Priore (2001:471):

O discurso sobre a educação e o ensino, sobre os sujeitos que deveriam reger o processo educativo ou sofrê-lo, ou seja, sobre mestres e mestras e estudantes, transformavam-se, alimentavam-se de novas teorias, incorporavam novos interesses, refletiam e constituíam novas relações de poder. As mulheres professoras teriam de fazer-se, agora, de modos diferentes, incorporando em suas subjetividades e em suas práticas as mudanças sociais.

Já nos anos 1950, segundo pesquisas de Bassanezi in Del Priore (2001),

democracia e participação eram idéias fortalecidas nos discursos políticos.

Entretanto as distinções entre os papéis femininos e masculinos permaneciam

nítidas; o trabalho da mulher era cercado de preconceito e a moral sexual

diferenciada permanecia forte. Os homens tinham autoridade e poder sobre as

mulheres, e eram os provedores da família. As características próprias da

feminilidade aguçavam a maternidade, a resignação e a doçura; a mulher ideal

definida a partir dos papéis femininos tradicionais.

Muitas moças fugiram aos padrões estabelecidos, jovens transgrediram as

normas de diferentes maneiras: fumavam, liam coisas proibidas, exploravam a

sensualidade no uso de roupas e nas formas dos penteados, investiam no futuro

profissional, discordavam dos pais, muitas abriram mão da virgindade e do

casamento para viverem além dos limites impostos.

38

Houve um aumento da participação feminina no mercado de trabalho, o que

exigiu que as mulheres se qualificassem e fossem em busca de escolaridade, fato

que promoveu mudanças em seu status social. Mulheres inteligentes ou cultas

poderiam ajudar o marido, desde que ele não se sentisse humilhado.

As insatisfações femininas eram desqualificas e qualquer forma de protesto

desestimulada, restando às mulheres usarem de estratégias sutis para fazer valer os

seus desejos. A grande ameaça era a separação, pois as deixava em uma situação

muito delicada perante a sociedade: mulheres separadas eram mal vistas, e a sua

realização percorria os caminhos do casamento.

Quanto aos filhos, os casais de classe média alta praticavam o controle da

natalidade, entretanto ter filhos era um processo natural. Para a mulher, mais que

um direito ou uma alegria, era uma obrigação social, uma sagrada missão feminina

da qual dependia a continuidade da família.

Fatores sociais, políticos e econômicos explicaram as mudanças ocorridas

durante esses anos e ajudaram a desvendar e compreender um pouco mais a

respeito da história das mulheres; suas atitudes, seu comportamento perante uma

sociedade tão castradora, e ainda, a revelar os papéis vividos e estabelecidos num

determinado tempo e espaço, revelar uma história que caminhou paralelamente à do

homem.

1.4 A constituição do universo feminino

Para estabelecer a possibilidade de que existe um universo feminino, é

necessário reconhecer o seu oposto, o universo masculino. Mulheres e homens são

diferentes, e essa concepção tão visível foi ao longo da história o fator predominante

que gerou inúmeras formas de estabelecer referências entre os dois seres. Seja na

atuação política, social ou conjugal, seja nas relações com o outro, o ser diferente

serviu para que as práticas sociais marcassem o papel de cada um.

Desde a origem da espécie humana, ao homem compete a tarefa de

alimentar a família, proteger os filhos e a mulher, trabalhar para manter o bem-estar

de todos. Assim, ao homem é oferecido o mundo externo, a exploração do espaço

39

que está fora de sua casa, o que sempre lhe oportunizou uma participação política e

social mais intensa.

À mulher coube a procriação, ter filhos, educá-los e assim propagar a

espécie. Seu mundo ficou reduzido ao lar, aos afazeres domésticos, o que lhe

possibilitou maior contato com os filhos. As tarefas destinadas à mulher nem sempre

exigiam força física, mas requeriam coragem, determinação, sensibilidade, ao

possibilitar a troca de experiências nas relações com o outro, tornando-a mais

sensitiva. Já afirmava Meneses (2001:21): “É no contexto de uma relação afetiva

que se flagra o fundamental do feminino”.

Essa mesma mulher educa meninos e meninas e já distingue na sua

educação o papel que cada um deverá exercer, prepara-os conforme os modelos

estabelecidos socialmente: brincadeiras de meninos são diferentes das de meninas,

isso é permitido para os meninos e não para as meninas, roupas para meninos e

para meninas... As diferenças continuam e as crianças devem reconhecer e aceitar

o seu sexo; será encaminhada para um crescimento e terá autonomia conforme seu

sexo, o que influenciará também o meio social e cultural de seu tempo, moldados

pelos adultos que perpassam e se impõem como modelos.

Pode-se constatar que em sociedades primitivas essa organização é

diferente. Existem tribos em que as mulheres têm uma vida mais ativa e participativa

no grupo, outras nem tanto, há outras ainda que reconhecem às mulheres igualdade

ou superioridade. Enfim, os costumes variam de um tipo de cultura para outra.

Mas quem preparou e designou os papéis do homem e da mulher na

sociedade? Pode-se encontrar uma resposta nas pesquisas realizadas por Simon

(1976:25), que declarava:

Não foi a luta dos sexos, um contra o outro, mas a necessidade de enfrentar um conjunto de tarefas, igualmente urgentes para a sobrevivência da espécie, tarefas para as quais quer o homem, quer a mulher encontram-se mais bem preparados por sua constituição e sua função fisiológicas.

Assim, a mulher passa a ter um papel complementar na sociedade composta

e formada pela força masculina. E como se constitui o seu universo? A partir do

espaço que a sociedade reserva-lhe, a mulher molda sua história, ora passiva ora

defensora de seu grupo, entre a omissão e a coragem, observa e reconhece as

40

mudanças contínuas pelas quais passa toda sociedade e nesse compasso começa

a se organizar para reivindicar um novo papel e um novo espaço.

O universo feminino é produto de fatores sociais e circunstâncias históricas,

firmados num determinado tempo. Nesse contexto, a figura feminina busca seu lugar

e sua identidade. Segundo Lobo in Silva (1993:120): “É possível o conhecimento de

que a qualidade feminina vem da admissão de que ser mulher faz parte de um

caminho, de uma história. E que, como toda história, é escrita no desconhecido e

lida a posteriori”.

O estereótipo de seres frágeis, dependentes, inferiores, sem vida própria e

incapazes de liberdade e de autonomia, já não vigora com tanta força. Seu universo,

hoje, não está configurado em apenas parir, criar, cuidar, coser, servir ao seu marido

e permanecer no espaço lar, ele amplia-se e ganha outras formas de estar no

mundo e de ser.

A luta feminina não é pela diferença e sim pela igualdade, não a igualdade do

outro, a imitação de um pelo outro, mas aquela que permite aos homens e mulheres

aspirações e desejos individuais, porém idealizadores de situações vividas que

exijam a colaboração dos dois sexos e que os levem a tornarem-se mais humanos.

O universo feminino é o retrato do que o homem permitiu à mulher, e mais do

que isso, é o próprio universo constituído pelo ser mulher. Definir esse ser não é

tarefa fácil, porém há alguns aspectos que se aproximam do território feminino:

vínculo com a natureza, atenção às relações humanas, intuição como forma

desenvolvida de percepção. É óbvio que não são características exclusivas do sexo

feminino, mas há que se concordar que se revelam com maior predominância e

constância nas mulheres. Conforme dizia Oliveira (1993:108):

Não há como nem por que conceituar a cultura feminina, mas há sim como tocá-la, percebê-la, intui-la, talvez. E saber que dela, desse universo fluido e fugidio, pode vir um enriquecimento certo e seguro para o diálogo humano. Ela falará, por exemplo, de melhorar a relação entre as pessoas, de melhor entender os mistérios dessa relação, mistérios tão ou mais densos que os mistérios da natureza. Falará de mais reciprocidade entre nós e a natureza, pois que entre as mulheres e a natureza há uma relação ancestral que se pode transmutar em nova aliança.

A diferença entre o homem e a mulher é o elemento que revela a existência

de um universo feminino. Um corpo que faz experiências histórica e social, um ser

41

que faz cultura, que lança a mulher aos centros do saber e do poder, possibilitando

se fazer ouvir e existir: corpo e alma, juntos constituindo valores para a formação da

identidade feminina que hora surge em todas as esferas e dimensões da vida social

para pertencer ao grupo.

Faz-se necessária a exploração de dois tópicos que complementarão essa

análise ao universo feminino: o gênero e o sexismo.

1.5 O gênero

As diversidades entre homens e mulheres remetem à noção de sexo.

Socialmente surgem inúmeras explicações sobre diferenças entre homens e

mulheres baseadas nas distinções de sexo e centradas, na maioria das vezes, nas

diferenças físicas. Todo ser humano nasce com características que são específicas

para homem e mulher; exemplo disso é a capacidade de procriar das mulheres.

Elas representam o corpo, a reprodução da espécie, a natureza. Eles

representam o social. Essas características, embora variem em algumas

sociedades, são usadas como referenciais na construção de um conjunto de

representações sociais, culturais, de valores e atribuições sociais. Aquino (1998:96)

estabelece uma definição de gênero:

O gênero começou a ser utilizado como uma maneira de se referir à organização social entre os sexos, de insistir no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas sobre o corpo, e de destacar o caráter relacional das definições normativas da feminilidade e da masculinidade, isto é, mulheres e homens passam a ser definidos em termos recíprocos. Gênero remete, portanto, a uma tentativa de incorporar, na análise, aspectos que são socialmente construídos, observando que cada cultura define o que é masculino e feminino. Ou seja, trata-se de definições mutáveis que podem e, por vezes, devem ser alteradas.

Assim, cada sociedade organiza sua divisão de trabalho firmada no princípio

das diferenças, ao considerar também a tendência praticada socialmente que

estabelece a separação da vida social entre homens e mulheres; cabe ao homem a

política e o mercado de trabalho, portanto a esfera pública; e a mulher a esfera

privada, doméstica.

42

A medicina, as ciências biológicas e a antropologia colaboraram muito para a

expansão dessas normas sociais, devido às explicações que justificavam as

desigualdades entre homens e mulheres. O homem teria uma composição biológica

que favorecia a caça, e a mulher, o cuidado com os filhos e a coleta de alimentos. A

força física passou a ser um referencial masculino que conduzia o homem ao seu

papel de líder do grupo. A base da identidade masculina era construída sobre a

força física e a virilidade. Já a mulher tinha sua base identitária em seu papel

reprodutivo, sendo, portanto, fêmea, nutridora, maternal, centrada no domínio da

família. A própria história registrou fatos em que esses padrões precisaram ser

rompidos, e relações de aliança e cumplicidade, amor e amizade foram

fundamentais. Perrot (1998) registrou que na Europa, em tempos de guerra, os

homens foram para as frentes de batalhas, enquanto as mulheres tiveram de invadir

espaços que nunca ocuparam: dirigir bondes e táxis, trabalhar em usinas e fábricas;

no campo, lavraram e venderam gado em feiras. Quando a guerra acabou, as

mulheres devolveram os lugares aos homens e retornaram a seus lares.

É fato que nesses aspectos muitas transformações já ocorreram nas relações

de gênero. As sociedades atuais exibem um quadro diferente, no qual homens

dividem com suas companheiras o cuidado com os filhos, as tarefas da casa e até

mesmo o orçamento doméstico. As mulheres não são mais vistas somente no lar;

ocupam cargos antes previstos apenas para homens, participam de decisões na

esfera pública, ou seja, em todos os aspectos políticos e sociais, com todos os

direitos e deveres que antes eram aprovados somente aos homens. Ainda assim,

masculino e feminino se definem por uma relação que privilegia as diferenças, como

se fossem sinais determinados a conduzir o percurso de cada ser.

O refrão da diferença sexual aparece como alicerce da própria cultura em

diferentes tipos de sociedade; ao marcar modos de organização e de relações entre

os seres, deixa de se observar que cada ser se define não somente em função de

suas relações com o outro sexo, mas em função de relações que estabelecem com

os outros, com as coisas e com o mundo.

A existência da separação e da diferença emerge como princípio modelador

da imagem e da função de cada sexo. Não importa o que cada ser adquira em suas

experiências pessoais tampouco que variem os conteúdos do universo de cada

43

sexo, o que se evidencia é o fato de que toda cultura mantém, de uma forma ou de

outra, acesa a chama desse dualismo sexual. Para Simon (1976: 53):

As indicações da anatomia e da fisiologia separam nitidamente os dois sexos; os modelos sociais, propostos pelas civilizações ou pelos grupos sob a forma de imagens coletivas do homem e da mulher ou de papéis a realizar, tendem mais ainda a diferenciar, mesmo a opor a existência dos homens e das mulheres.

Institui-se um mundo de homens e mulheres, lado a lado, mas com traços

distintos que se tornam cada vez mais evidentes. Homens que observam as

mulheres como um “outro” e vice-versa; cada qual desenvolve sua própria

psicologia, sua sociabilidade, seu jeito de ser e de estar no mundo. O traço essencial

está no fato de que todo homem e toda mulher é antes de tudo um ser humano,

porém essa característica, na prática social, parece estar dissolvida e só é oportuno

lembrá-la em contextos mais específicos, os quais necessitam de uma

representação mais abrangente. Para Oliveira (1993:143): “Dissolver e fundir

homens e mulheres, masculino e feminino, no magma de uma natureza humana

indiferenciada é romper a própria dinâmica da vida”.

1.6 O sexismo

A princípio, a cultura masculina construiu representações das mulheres como

sendo seres inferiores, alheias aos problemas sociais, frágeis, mais instintuais que

os homens; nelas a natureza guardaria seus direitos de permanência, de

regularidade. O discurso masculino sempre definiu o que é uma mulher, seu lugar,

seu papel, sua imagem e identidade e as dissidentes desses modelos eram

rejeitadas para fora do campo de visibilidade social.

As mulheres obtiveram um lugar diferenciado na cultura humana. O seu

confinamento na relação limitada com alguns aspectos do meio ambiente

transformou-se em desigualdade de status e de poder. As representações

ideológicas e mitológicas confirmaram a existência dessa hierarquia, marcada pelas

diferenças que se iniciavam no corpo. Assim, a existência feminina esteve atrelada à

natureza, pautada na permanência e regularidade, levando-a então à condição de

dominada e o homem à condição de dominador. Essa condição explicava-se e

44

mantinha-se somente por uma determinação sociocultural e por fatores biológicos. A

sociedade reproduziu esses conceitos e criou estereótipos. Simon (1976:33)

afirmava que: “O estereótipo é uma espécie de clichê mental coletivo, carregado de

tradições, de saudosismo, de aspirações insatisfeitas que crêem exprimir-se

racionalmente em um julgamento de conjunto”.

Portanto, cada cultura oferece à mulher e também ao homem uma imagem

deles mesmos, um estereótipo; imagem concebida e expressa pelos próprios

homens e que separa os indivíduos em categorias.

O espírito de dominação não é uma exclusividade do ser homem, existem

mulheres que são dominadoras, líderes, que seguem a frente do grupo; assim como

a submissão ou a doação de si, não é uma exclusividade feminina. Ambas são

formas de estar no mundo que podem ser vivenciadas independentemente do sexo.

A origem dessa hierarquia é ainda um ponto obscuro, o que fez o masculino se

transformar em autoridade política e social, impondo seu modelo às dimensões da

convivência humana, não é fato que se possa justificar.

As desigualdades vivenciadas e aceitas pelos membros do grupo favorecem

as relações de subordinação de gênero, e produzem os preconceitos diversos. Não

há como não as reconhecer, mas não se pode renunciar à idéia de igualdade, ao

menos como um desejo político de que as relações entre os sexos não se baseiem

na desigualdade e na subordinação de um pelo outro.

Reforça-se a desigualdade quando não há posição crítica diante de atitudes

preconceituosas. Há um processo de acomodação e resistência pertinente às

atitudes e aos comportamentos definidos para homens e mulheres, o que dificulta a

possibilidade de ruptura e de construção de novas definições do que está, e é

socialmente concebido como masculino/feminino.

As relações que denotam subordinação: adulto/criança, homem/mulher,

mulher/homem, adulto/idoso; são fortificadas por um discurso que insiste em se

impor e que aparece em vários contextos, ora para ironizar ora para desprestigiar

um ser dentro da relação. Exemplos: “criança e velho não têm querer” / “mulher só

pilota fogão” / “fórmula do casamento duradouro: sopa quente, sexo sempre” ...

Entende-se que não há pensamento sem representação. E As

representações sociais são mutáveis. A todo o momento, formulam-se novas idéias,

45

noções, valores e imagens como resultado das relações com o meio. É comum que

as diferenças e o preconceito façam parte do cotidiano, visto que a conduta é

apoiada num conjunto de representações sociais.

Seria interessante investir em uma educação que tivesse como proposta a

possibilidade de investigação e de descobertas de novas relações que até então não

foram percebidas, possibilitando assim a produção de novos sujeitos.

Colaborarão para a compreensão da constituição do universo feminino,

considerações a respeito do ethos, pois reúne características que contribuem para a

construção do eu e de identidades sociais.

1.7 Ethos feminino

Deliberadamente ou não, ao efetuar um discurso o orador realiza uma

apresentação de si. Suas crenças, seu estilo, sua competência lingüística, seu

vocabulário, são elementos suficientes na construção de uma representação de sua

pessoa. Essa apresentação se efetua nas trocas verbais corriqueiras e mais

pessoais. Essa imagem de si que se constrói no discurso é designada pelo termo

ethos.

A intenção do falante é criar uma boa imagem de si por meio de sua fala, nem

sempre se importando se o discurso é verdadeiro ou não; basta lembrar do discurso

político, por exemplo. Em Imagem de si no discurso, Amossy (2005:10) destaca: “Os

antigos designavam pelo termo ethos a construção de uma imagem de si destinada

a garantir o sucesso do empreendimento oratório”.

É possível reconhecer qual foi a imagem da mulher no contexto social de

algumas décadas ou séculos passados. Mas que imagem ela teria de si? A imagem

que cada um faz de si mesmo é influenciada por diversos fatores: a cultura, a

educação, a pressão social, e ainda pelos anseios e desejos do grupo ou do

indivíduo, portanto não é difícil concluir que para a mulher, a submissão a moldou

por um longo período.

A princípio, a trajetória das mulheres na sociedade foi modelada por um

discurso masculino, que contribuiu para gerar o estereótipo da mulher ideal; porém

com as mudanças ocorridas nas diferentes esferas sociais, o discurso feminino

emergiu com o intuito de promover mais modificações.

46

Essas mudanças puderam ser constatadas nas mais diversas áreas de

atuação do universo masculino. A mulher passou a mostrar a sua voz, o seu corpo, a

sua alma; como se descortinasse e se mostrasse mulher. E foi por meio de seu

discurso que o feminino apareceu para traçar uma nova trajetória na sua história.

Como já assegurava Oliveira (1993:70):

O movimento feminista foi o fio que permitiu às mulheres tecerem um novo desenho na trama do social. O desvio não é uma disfunção parcial e passageira que deve ser corrigida, mas um processo fundamental da existência das sociedades. É o acontecimento inesperado sobre o qual repousam o crescimento e a complexificação do sistema social.

O impulso que levou as mulheres a reivindicar seu espaço no mundo

masculino foi motivado por várias situações: o desejo da independência econômica,

o acesso ao saber, a novas instruções, a novas experiências, à convivência com o

outro, o direito a fazer e a rever escolhas sexuais, o controle de seus corpos...

Para isso, o discurso feminino ousou com firmeza em seus ideais e

convicções, e a mulher precisou construir-se forte; tarefa nada fácil a uma sociedade

ainda preconceituosa. Foi preciso esquecer e desviar as comparações (universo

masculino x universo feminino), fazer-se ouvir e ser compreendida por meio de

ações e ainda articular um discurso mais autônomo, que lhe permitisse transitar num

universo de valores, em cultura feminina, próprio e diferente, fundamentado numa

proposta de igualdade.

Chegava o tempo de dizer à sociedade que todo trabalho oriundo da força

feminina, até então desvalorizado porque gratuito, poderia ser dividido com o

universo masculino, sem que isso menosprezasse ou diminuísse alguém. Chegava o

tempo da linguagem, de poder dizer e encontrar a força da palavra.

Assim, a imagem que a mulher constrói de si, vem desenhada em seu dizer,

somada às suas atitudes, às suas vestes, aos seus movimentos, à postura que tem

ou apresenta em diferentes situações. Ela é atualmente a mulher do lar, do mundo

dos negócios, a aventureira, a prostituta, a amante, a mãe, a religiosa, enfim, tudo o

que queira ser.

Ao tratar da noção retórica de ethos à análise do discurso, Amossy (2005) cita

a posição de Benveniste ao introduzir a noção de “quadro figurativo”, na qual a

enunciação, como forma de discurso, apresenta duas figuras necessárias, uma que

47

emite o enunciado e a outra que o ouve. Durante o discurso o emissor faz uma

imagem de si e de seu interlocutor e reciprocamente, o interlocutor faz uma imagem

do emissor e de si mesmo.

Amossy (2005) menciona as pesquisas realizadas por Erving Goffiman, numa

perspectiva interacional e que destacam a produção de uma imagem de si nas

interações sociais e o quanto essa interação contribui para que os atores forneçam

uma impressão de si mesmos que os auxilie a influenciar o outro do modo desejado.

Para investigar o ethos na análise do discurso, Amossy (2005) destaca os

trabalhos realizados por Dominique Maingueneau, para o qual a noção de ethos se

desenvolve de forma articulada à cena de enunciação. O discurso comporta uma

distribuição preestabelecida de papéis, cabe ao locutor escolher sua cenografia.

Exemplifica com o discurso político, no qual o candidato pode falar a seus eleitores

sob diferentes ângulos: como homem do povo, como homem experiente, ou como

tecnocrata.

A maneira de dizer constrói uma imagem de si, na medida em que o locutário

se vê obrigado a depreendê-la, contribui para estabelecer a inter-relação entre o

locutor e seu parceiro. A imagem pode causar impacto, favorecer a sua adesão ao

discurso, quando as palavras são colocadas de maneira eficaz.

Permite-se concluir que o discurso feminino, construído com intencionalidade,

colabora na construção de uma nova imagem do feminino, consente à mulher ser

reconhecida como sujeito social.

Os capítulos que seguem, trazem a análise narrativa e a análise crítica de

dois textos que constituem objetos de estudo deste trabalho, ambos escritos por

mulheres; visa-se buscar elementos auxiliadores na identificação da construção do

conflito num universo feminino. Os textos são intitulados “Amor” e “Venha ver o pôr-

do-sol”, de Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, respectivamente.

48

CAPÍTULO II - ANÁLISE DO CONTO: AMOR

2.1 Modelo de análise

Este capítulo apresenta o modelo de análise baseado, primeiramente, na

estruturação da narrativa: seus aspectos organizacionais e seus percursos

narrativos, nos quais serão descritos os itens da organização macroestrutural; e

ainda a modalização das atitudes das personagens.

Em seguida, faz-se uma análise textual baseada na teoria de Fairclough em

ACD, que destaca a estrutura interna do texto, sua organização global, com intuito

de fornecer uma dimensão crítica à análise do texto.

Para tanto, contribui com um modelo textual centrado nas propriedades

analíticas de textos que estão ligados às formas como as relações sociais são

exercidas e as identidades sociais são manifestadas no discurso, bem como os

aspectos da análise de texto que se relacionam com a função ideacional da

linguagem e aos significados ideacionais. O capítulo III também apresentará o

mesmo modelo de análise. O texto ora analisado é intitulado “Amor”, de Clarice

Lispector.

2.2 O conto: “Amor”

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana

subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-

se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam

banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha

era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no

apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas

que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa,

olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha

na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua própria

49

conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus

filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de

fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo,

tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que

plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No

entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era

de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando

estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há

muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo

decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto

que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma

aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E

isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de

mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com

quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros.

Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia

aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia:

abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como

quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana

antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação

perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em

troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e

escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando

a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família

distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava

um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura

pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa

lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para

consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da

tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua

50

tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava

os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a

ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E

alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e

escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais

úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana

respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar.

Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A diferença entre ele e os

outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham

avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma

coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um

homem cego mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo

que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada,

olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma

na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação

fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como

se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma

mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu

uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô

despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de

parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros

olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se arrumava pálida.

Uma expressão de rosto há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda

incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas

os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas

pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as

mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos

foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o

bonde deu a nova arrancada de partida.

51

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos

trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A

rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer

com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao

redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade

a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do

acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O

mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas

escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram

periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e

por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para

onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da

frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas

com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com

que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado,

tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia

prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar

empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura

sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as

pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora

de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um

empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana

caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse.

Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as

roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o

filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego

mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma

vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na

fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas

52

débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não

conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de

medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que

descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-

lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um

pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava apressadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia

ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um

atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela

adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos

ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas

entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde.

De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido

de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia

se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos

eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no

chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter

caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela

começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços

secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco

estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas.

No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do

mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que

pensávamos.

53

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os

dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por

parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse

uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando

Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à

garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra.

Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um

mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas

flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau

ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as

pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados

pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais

adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve

medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na

sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante,

e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada,

ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho

obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua

impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a

madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre.

Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A

piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu,

sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as

maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava —

que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora

pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou

correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a

abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era

54

periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do

mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago

sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a.

Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal

— o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de

tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O

que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e

ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as

costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe,

chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe

mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e

correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que

jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha

vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e

a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que

tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se

enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem

pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado que

lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com

horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar

a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria

apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada.

Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos

ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora

verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas

era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E,

estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como

um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os

55

olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja.

Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a

empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e

constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão,

onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o

horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho

secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O

pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na

água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros

inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror.

Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em

torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma

noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria

o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos

irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia,

ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom.

Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era

verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente

com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas

janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não

discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam de tudo, com o coração bom e

humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma

borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse

seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela

era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente.

O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até

envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas

com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as

56

vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim

Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou

correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a

si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele

sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa

tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de

dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural,

segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do

perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do

espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como

se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

2.3 Análise da estrutura narrativa.

Após apreciações sobre o universo feminino, considerar-se-á neste capítulo a

escrita feminina no tocante à caracterização do conflito, ou seja, como se constrói o

conflito em narrativas femininas. A escrita nas narrativas deve seduzir, transgredir

normas, invocar o imaginário. Que objeto melhor para análise que as ciladas textuais

de uma mulher?

Contar histórias significa ter disposição para vivê-las, o que requer o

enfrentamento de papéis femininos, ainda que a escritora não se conforme com eles.

57

Por meio da escrita é possível experimentar, em suas múltiplas possibilidades, e

revelar o gosto, o desgosto, o medo e o que incomoda.

O gênero feminino carrega uma espécie de poder, de que a mulher pode

usufruir e tirar proveito como escritora, já que, como se observou nos capítulos

anteriores, por muito tempo, a sociedade quis excluí-las da posição de sujeito, sob o

domínio de um poder patriarcal.

Sabe-se que a escrita feminina nem sempre é feita por uma mulher, há

grandes escritores que têm sua escrita enquadrada nessa categoria. Porém, a

condição de ser mulher implica e garante uma maior familiaridade com o que

nomeamos “feminino”, que, mesmo não sendo exclusivo, lhe é próprio. Peixoto

(2004:18) já denunciava em suas pesquisas, características de Clarice Lispector em

sua luta com o gênero e a narrativa.

Desafiando limites e cortejando o excesso, ela invoca uma força dionisíaca em sua tentativa de pôr em xeque as expectativas de papéis associados ao sexo, aos gêneros literários e às formas narrativas estabelecidas, quebrando-lhes a fixidez. Com isso, pretende autorizar uma escrita que não só represente a vida de mulheres como muitas vezes afirma ser ela mesma, a escrita, movida por forças especialmente acessíveis às mulheres.

É importante ressaltar que desde os anos 1970, a produção literária escrita

por mulheres se impôs à crítica e despertou interesse não só pela literatura infantil e

juvenil, como também pela literatura da negritude. Segundo Coelho (1993), foi

inegável a emergência do diferente, das vozes divergentes, oprimidos pelo sistema

de valores dominantes. Foi na área da ficção que a ruptura com o tradicional e a

busca pelo novo surgiu de forma contundente. Questionar a maneira de seu estar no

mundo, deixar os temas absolutos e dar lugar às sondagens existenciais, redescobrir

o mito ou a história, foram propósitos que dinamizaram uma significativa produção

literária empenhada na busca da identidade do ser mulher.

Nesse contexto, o ser mulher interrogou as realidades, buscou e lutou com as

palavras no encalço de um novo conhecimento do mundo e dos outros e, mais que

isso, buscou a mulher o conhecimento de si mesma e dos mistérios que circundam a

vida.

Clarice Lispector destacou-se com contribuição definitiva para a renovação da

ficção brasileira atual. A crítica atenta reconheceu de imediato a originalidade e

58

grandeza de sua obra. Coelho (1993) cita Sérgio Milliet, em 15 de janeiro de 1944,

no jornal Diário Crítico-II, p.32, quando, ao comentar a respeito da obra inaugural de

Lispector Perto do coração selvagem, concluía:

A obra de Clarice Lispector surge no nosso mundo literário como a mais séria tentativa de romance introspectivo. Pela primeira vez um autor nacional vai além, nesse campo quase virgem da nossa literatura, da simples aproximação.(...) Penetrar até o fundo da complexidade psicológica da alma moderna, alcançar em cheio o problema intelectual, vira no avesso, sem piedade nem concessões, uma vida eriçada de recalques.

Neste conto “Amor”, Clarice Lispector, por meio da personagem Ana, permite

ao leitor a descoberta de que todas as pessoas são prisioneiras de um mundo de

aparências, estratificado em rituais rotineiros, convencionais e irredutíveis, pois é

preciso manter o funcionamento do sistema social, que condena o indivíduo a ser e

estar no mundo de um modo inconsciente, quer dizer, submisso a um sistema que

nem sempre oferece possibilidades para a autodescoberta. Ana reconhece o que a

aprisiona, mas se afasta, sem coragem de assumir uma nova maneira de estar no

mundo.

Coelho (1993) comenta sobre duas posturas conflitantes no pensamento

contemporâneo: sentir ou pensar a vida? Manifestadas nos primeiros romances e

contos de Clarice Lispector. Ana, personagem do conto, inclui-se no sentir apenas e

como tantas outras personagens de suas obras, vive a mesmice diária,

absolutamente alienada de suas possíveis verdades – a não ser em súbitos

momentos de revelação que logo se desvanecem. Coelho (1993:184) conclui:

É através dessa perspectiva da leitura que se torna mais fácil compreendermos a grande arte clariceana, cuja coerência orgânica resulta de um perfeito amálgama entre a problemática universal e a sua verdade íntima, cada vez mais aprofundada nos desvãos do seu ser- em- si em busca do ser-com-os-outros, em um nível de integração que ultrapasse de muito o mero convívio superficial cotidiano ou social.

A obra de Clarice Lispector revela uma longa aprendizagem existencial e

criadora que testemunha a crise das certezas e incertezas vividas pelo homem. Os

textos analisados são registros de impressões femininas que nortearam esta

59

pesquisa, no tocante à criação da expectativa para identificação do conflito no

universo feminino.

Em “Amor”, de Clarice Lispector, o percurso narrativo esquematiza-se assim:

P---------------------------------------------------------------------- O

Ana vida familiar

Há uma mulher (Ana), protagonista, que durante o percurso da história tem

como objetivo manter uma suposta felicidade, centrada em sua vida familiar.

A modalização da sua atitude revela uma mentira: ser + parecer = mentira,

Ana não é, mas representa um papel social e tenta mostra-se feliz, o que denota sua

mentira, pois sabe que não é feliz.

Ao deparar-se com um cego, ocorre um momento de revelação crucial, a

personagem ganha, de repente, a consciência de seus desejos reprimidos. É um

momento em que a consciência altera-se, Ana compreende o seu aprisionamento,

gera-se o que ela denomina como a crise, ao deixar à mostra a culpa e o medo que

a acompanham, o questionamento de seu papel convencional. O cego proporcionou-

lhe uma visão apavorante de seu destino. O percurso narrativo ganha um obstáculo,

no qual se instaura o conflito:

P------------------------------------------------------------------------------ O

Ana Opositor : Infelicidade

Fluxo de consciência

O percurso conta agora com um obstáculo, um problema que necessita ser

questionado e resolvido. Embora Lispector atribua papéis femininos tradicionais às

suas personagens mulheres; nesse caso, Ana é o estereótipo da mulher frágil, dona

de casa, mulher dedicada, que busca equilíbrio e realização em seu casamento;

revela também que as ambições e os desejos são diferentes e existem para esse

60

universo. Contesta esses papéis tradicionais e mostra que a lealdade aos outros

impõe um preço alto para aquelas que aceitam desempenhar tais papéis. É a

instituição da família que sustenta essa personagem, ao mesmo tempo em que a

aprisiona.

Teria Clarice Lispector escolhido o nome da personagem Ana na tentativa de

aproximá-la a um anjo? Pela forma com que Ana aceita, resignada, as implicações

de sua vida, não é difícil acreditar que para ela era mais fácil ser um anjo ou ser

designada uma santa do que ser humana. Santa Ana, cujo nome em hebraico

significa graça, teve seu marido censurado por não ter filhos. Já idosa e estéril

possuía como características marcantes a paciência e a resignação, tal qual a Ana

de Lispector ao enfrentar os revezes de sua vida. O casal estéril, confiante no poder

divino, algum tempo depois, alcança a graça e Santa Ana engravida, recebe por filha

aquela que havia de ser a mãe de Jesus. A personagem Ana encerra seu dia,

resignada, aguarda uma graça em sua vida.

Quanto ao conflito gerado, é próprio do universo feminino e surge a partir de

uma situação aceita pela personagem Ana: desempenhar o papel imposto pela

sociedade, mesmo tendo em seu íntimo a sensação de que a mulher requer algo

mais, e ainda, que abdicar de seus sonhos e vocações fizeram-na infeliz. É a sua

postura diante do mundo a partir de uma perspectiva interior. O mundo representado

por uma sociedade que a marginaliza, que não lhe permite mostrar-se tal como é,

não revela o seu íntimo. Neste ponto, a modalização de sua atitude enfatiza uma

verdade: ser + parecer = verdade. Ana parece e está infeliz, portanto, sua única

verdade revelada é ser infeliz.

O conflito está presente em Ana, em sua consciência, na própria essência de

seu existir, na força que a empurra a desempenhar um papel que a aprisiona. Só a

mulher permite-se adentrar no íntimo do que é humano, pois possui sensibilidade e

observa o mundo com um olhar mais propenso a considerar o sentir, a emoção mais

que a razão, as relações com o outro e com o universo. A sua própria condição

permitiu-lhe apropriar-se desses atributos. Esteve sempre próxima à natureza,

adquiriu habilidades que acentuaram sua intuição, evidenciando a subjetividade.

A crise dramatiza os campos de força que movem a consciência de Ana, há o

impasse entre o que ela é e o que deixa de realizar, ou seja, o que poderia ter sido.

A expectativa criada pela narrativa sugere que mediante tal crise haverá um

61

confronto, uma ação que liberte a personagem para que assim alcance seu objetivo:

ser feliz.

O conflito, portanto, é revelador ao leitor, mas para a personagem é só o

momento no qual ela coloca em xeque a sua realidade; pois, em seguida, ela retorna

em busca de um refúgio, retira-se à procura do espaço que possui, seu espaço: o

seu lar. Essa fuga é uma tentativa de aplacar seu fluxo de consciência. O percurso

narrativo passa a ser representado assim:

Auxiliar: aplacar o fluxo

P----------------------------------------------------------------------------- O

Opositor: fluxo da consciência vida familiar

Não ocorre o enfrentamento ou uma possível revolta, nenhuma transgressão

que a liberte para um outro papel. As pressões sociais, a vida em família, embora

proporcionem às mulheres a satisfação dos laços afetivos, também as restringem ao

papel subordinado de atender, primeiramente, às necessidades dos outros,

privando-as de realizar seus desejos pessoais.

Ana reencontra-se com a verdade, a de que sua dedicação à família exclui

qualquer possibilidade para si mesma. A personagem não se rebela, o que os

leitores talvez aguardassem ou quisessem, simplesmente retira-se em busca da

suposta proteção que o âmbito familiar lhe oferece.

A indiferença com que aceita o seu destino espelha para Ana as suas

próprias limitações, coloca-a diante da verdade: a falta de liberdade pessoal na vida

que escolheu. O percurso narrativo poderia ser retratado desta forma:

Auxiliar: retorno ao lar como fuga

para aplacar o fluxo

P---------------------------------- ---------------------------------------------------- O

Ana Opositor: fluxo de consciência Infelicidade

62

Ana não atinge seu objetivo, não demonstra possuir coragem necessária para

enfrentar os possíveis reveses que um novo papel lhe traria, continua assegurando

sua modalização: ser + parecer = mentira, ou seja, não é, mas parece ser feliz.

Constata-se a influência e o poder que as regras sociais impõem aos papéis

femininos. Não há como negar que a mulher utiliza-se da escrita para mostrar essas

forças sociais e o quanto elas interferiram no ser mulher.

No conto “Amor”, a escritora desenha a sociedade da época, retrata o seu

poder e sua influência na vida da personagem Ana. Revela ainda que o papel

escolhido por Ana foi, na verdade, imposto pela sociedade. Se por outro lado Ana

recusasse desempenhar esse papel, teria forças suficientes para se impor, ser

aceita na sociedade, desempenharia uma profissão e seria feliz? Esse era o desafio

que Ana não ousou vivenciar. Tem-se uma narrativa com desfecho de fracasso.

P----------------------------------------------------------------------------------- O

Ana vida familiar

infeliz

No conto, a liberdade que Ana almeja não acontece, mas instiga e mexe com

os conceitos e o pensar do leitor, ao revelar a intenção da autora, que ao tecer um

mundo tão real e conflituoso, descortina a face de uma sociedade que limita e

aprisiona os papéis femininos.

2.4 Análise crítica do discurso

O Controle Interacional é uma dimensão da estrutura textual, e tem como

característica garantir que a interação funcione num nível organizacional, pertencem

à construção das relações sociais e do eu. No conto “Amor”, aparecem poucos

diálogos, os primeiros entre Ana e seu filho e, posteriormente, entre Ana e seu

marido. A primeira interação acontece com Ana abraçada ao filho:

63

“__A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta.”

“__Tenho medo.”

“__Mamãe, chamou o menino.”

“__Não deixe mamãe te esquecer.”

Nessa seqüência de enunciados, Ana deixa transparecer a sua necessidade

de proteção. Demonstra uma fragilidade que ao mesmo tempo em que a convida

enfrentar outras realidades, traz-lhe também a possibilidade de transformação, uma

mudança tão perturbadora que a aproxima da loucura: Ana teme esquecer seu filho.

O tópico sugerido é uma reflexão sobre a vida e o quanto viver implica um processo

doloroso, sofrido, o que causa medo à personagem.

As marcas de controle de interação aparecem em sua última fala “não deixe

mamãe te esquecer”. Em sua súplica, tenta partilhar a responsabilidade da

manutenção dos laços afetivos entre ela e o filho. O filho chama-a, como se

quisesse trazê-la ao estado normal, quer reconhecê-la, e logo em seguida esquiva-

se, busca refúgio em seu quarto. Há um policiamento de agenda, um mecanismo de

defesa manifestado pelo silêncio. O olhar que o filho remete à mãe, descrito como

confiante, devolve a Ana sua condição de fragilidade.

Nesse discurso as relações mãe e filho invertem-se. Na prática social cabe à

mãe proteger os filhos. Na situação descrita a mãe recorre ao menino e manifesta

seu desejo de proteção, está implícita a idéia de que os homens são mais fortes,

portanto, devem amparar e proteger as mulheres, condição instituída socialmente. A

mãe reafirma por meio de suas ações e palavras essa proposição e, de certa forma,

impõe-lhe o papel que terá de representar por ser homem.

No discurso com seu marido a personagem grita ao fazer a primeira pergunta.

Essa entoação já é indício de seu desespero, de seu medo:

“__O que foi?”

“__Não foi nada, disse, sou um desajeitado.”

A resposta do marido já é enunciada com uma justificativa, ou seja, se ele é

desajeitado é natural que provoque pequenos acidentes. A seqüência dada à

interação revela uma Ana preocupada em perder o que acredita realmente possuir:

64

“— Não quero que lhe aconteça nada, nunca!”

O marido percebe a sua aflição e tenta tranqüilizá-la, lembrando-a de que na

vida tudo pode acontecer, inclusive um simples incidente como o do fogão.

“— É hora de dormir! É tarde!”

A palavra final é a do homem, cabe-lhe tirar de Ana todas as suas aflições.

Nas relações de poder, o homem enuncia a palavra final. O término da interação é

figurado, nesse trecho, como sendo uma forma de controle, de determinação.

Essas são as interações explícitas no texto. Há, porém, interações que são

manifestadas no decorrer de todo o texto, interações provocadas pela personagem

Ana no duelo entre o que ela vive e o que ela sente, no instante em que sua

consciência parece lhe revelar uma Ana adormecida.

A personagem desencadeia relações entre ela e sua própria consciência,

instaura-se o conflito:

P------------------------------------------------------------------------------------ O

Opositor: fluxo de consciência Vida familiar

“O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança?”

“Por quê? Teria esquecido de que havia cegos?”

“E o cego?”

Para cada indagação, a personagem tece dentro do percurso narrativo, as

próximas ações. A princípio perturbada com o que chama de crise, busca encontrar

o equilíbrio dentro do Jardim Botânico, até que ao olhar em seu entorno, começa a

perceber que também ali há uma decomposição profunda: “De onde vinha o meio

sonho pelo qual estava rodeada?” Percebe que o equilíbrio que buscara não existe,

só o encontrará quando apagar o que a transtorna: seu fluxo de consciência.

Auxiliar: Ida ao Jardim

P-------------------------------------------------------------------------------------- O

Ana Opositor: Fluxo de consciência Vida familiar

65

Na seqüência abandona o jardim, como se quisesse voltar ao seu mundo.

Retorna a sua casa: “Que nova terra era essa? E o cego e o belo jardim? De que

tinha vergonha?” Precisa livrar-se de seu conflito, retomar o equilíbrio, encontra uma

saída: abafar seus próprios pensamentos. Decide voltar a seu mundo, e, como se

despertasse de um sonho, desvanece aquilo que a perturba, o seu fluxo de

consciência, mais que depressa, retorna a sua vida, a sua casa, pois lá tudo volta ao

normal, tem seus afazeres, seus filhos, a proteção de seu marido, a casa é a

representação do amparo, da proteção de que tanto necessita para livrar-se de suas

crises.

Auxiliar: Retorno ao lar

P-------------------------------------------------------------------------------------- O

Ana Opositor: Fluxo de consciência Vida familiar

São as indagações de Ana, apresentadas por um narrador onisciente, que

promovem a tomada de turnos. Como participante dominante a personagem sugere

os tópicos: aceitação de sua posição, a desconfiança, o sofrimento, a piedade, o

desespero, o medo, o encontro consigo mesma, a vergonha, o viver. Todos esses

tópicos são relevantes para o desenvolvimento de um tópico geral. Nesse texto, o

tópico geral está contido nas descobertas da personagem que a levam a uma

reflexão profunda sobre sua vida.

Quanto à modalidade, é um ponto de intersecção no discurso, entre a

significação da realidade e a representação das relações sociais. O verbo ser, no

presente do indicativo; “A vida é horrível” mostra uma modalidade categórica, na

qual o falante demonstra não ter dúvida quanto à verdade de seu enunciado.

“— Tenho medo, disse. – Estou com medo!”

Nesse exemplo a modalidade é subjetiva, está explícita, a personagem deixa

claro o seu grau de afinidade com a proposição expressa. Os dois exemplos

demonstram a fragilidade da personagem perante a vida. Já no trecho:

“— Não foi nada, sou um desajeitado!”, há um indício de baixa afinidade

expressa no marcador de modalidade subjetiva (sou) mais o adjetivo (desajeitado).

66

Primeiro ele ameniza a situação “não foi nada” e em seguida justifica-se: “sou um

desajeitado!”

Nos exemplos:

“__Não deixe mamãe te esquecer!”

“__Não quero que lhe aconteça nada, nunca!”

A negação no início do enunciado é uma forma de expressar alta afinidade

com a proposição, é o mesmo que a afirmação “Mamãe deve lembrar de você/

Mamãe sempre lembrará de você!” e “— Você está protegido, nada lhe acontecerá!”

Demonstra ainda solidariedade e afinidade com a pessoa com quem se fala.

Uma pergunta com negativa antecipa uma resposta positiva. Há de maneira

implícita um pedido de proteção, é o que faz aplacar o fluxo, e a personagem não

quer vê-lo negado.

Nos diálogos com o filho “A vida é horrível...”, “Tenho medo...”, “Não deixa

mamãe te esquecer.” a personagem reproduz relações sociais e de poder, pois

explicita sua fragilidade feminina diante dos problemas do mundo. Recorre ao filho

como se lhe pedisse proteção. A polidez está relacionada à preservação da face

positiva, pois Ana admite seu medo e quer ser protegida.

Na interação com o marido, a preservação é a mesma. Ao dizer “Não quero

que lhe aconteça nada, nunca!”, está implícita a idéia de dependência, ao marido

nada pode acontecer porque ela necessita dele. O “não quero” não atribui à Ana

uma conotação de poder, mas sim de dependência. Essa relação de dependência

permite à Ana demover seu fluxo de consciência.

Na análise textual, o ethos constitui a identidade social do indivíduo, pois é

capaz de demonstrar os sentimentos e as atitudes dos seres humanos em relação

ao universo. Maingueneau (1993:138) afirma que o ethos não é dito explicitamente,

mas é mostrado:

O que o orador pretende ser, ele o dá a entender e mostra: não diz que é simples ou honesto, mostra-o por sua maneira de se exprimir. O ethos está, dessa maneira, vinculado ao exercício da palavra, ao papel que corresponde a seu discurso, e não ao indivíduo “real”, (apreendido) independentemente de seu desempenho oratório: é portanto o sujeito da enunciação uma vez que enuncia que está em jogo aqui.

67

O ethos da personagem principal é construído e mostrado nas escolhas que

são efetuadas pelo orador, neste caso, o narrador onisciente, que a apresenta por

meio de ações, movimentos e pensamentos, conforme os exemplos:

“Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de

vida”.

“Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se”.

“No fundo, Ana sempre tinha necessidade de sentir a raiz firme das coisas.”

“Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento...”.

“Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves

do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim”.

O narrador onisciente tece o perfil da personagem e no decorrer da história,

Ana conforma-se e aceita a posição de mulher na sociedade da época, a mulher que

foi criada para ser mãe, dedicada ao lar, à família.

Nos trechos que seguem:

“Incapaz de se mover para apanhar as compras, Ana se aprumava pálida”.

“A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente”

“Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco”

“O que chamava de crise viera afinal”

“Desviou o olhar depressa”

“Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa”

“Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse...”

“Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto”

“Seu coração batia de medo”

O ethos que se instaura é de uma pessoa frágil, temerosa, com receio de tudo

e de todos, inclusive dela mesma, por isso quer aplacar o fluxo e voltar para casa.

Teme o momento no qual ela se depara com seus sentimentos e constata que não é

feliz. Nota-se que a autora do texto faz uma escolha lexical que conota o sentido de

debilidade: incapaz, pálida, sufocava, respirava pesadamente, crise, caíra, dolorosa,

fraqueza, atingia, batia. Nos trechos finais:

68

“Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre”.

“A vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco

de viver”

“Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula”.

“Tenho medo”

“Não havia como fugir”

“Um cego me levou ao pior de mim mesma”

“— Não quero que lhe aconteça nada, nunca”.

A participação da personagem, a sua postura diante dos fatos ocorridos, a

maneira como se manifesta e se apresenta, constroem um ethos típico da mulher

que necessita do homem para protegê-la. Esse papel tem início nas relações

estabelecidas entre pai/filha, posteriormente ganha força também nas relações entre

namorado/namorada, filho/mãe, até chegar à instituição do casamento no qual o

marido passa a assumir o controle da situação, arcando com as responsabilidades

de sustento, proteção e amparo.

Ana reproduz a condição de sexo frágil, de ser inferior perante o homem.

Nessa perspectiva, o sujeito é posicionado ideologicamente, à medida que incorpora

significações para manter as relações de poder. Possui ainda um discurso no qual

admite suas fragilidades, e atitudes que a afastam de tomadas de decisões; ao

estabelecer e permitir uma dependência total dos outros. Dessa forma, as ideologias

representadas nesse contexto tornam-se naturalizadas e alcançam o status de

senso comum. Ao observar a personagem, não aparece resistência ou tentativa de

luta para remoldar as práticas discursivas que pertinentemente colocam a mulher na

posição de frágil.

2.5 A constituição da realidade social

Nesta análise serão considerados os aspectos da análise de texto que se

relacionam com a função ideacional da linguagem e com os sentidos ideacionais,

69

enfatizando o papel do discurso na significação e na referência. Para tanto, os

tópicos analisados serão: conectivos e argumentação, transitividade e tema,

significado de palavras, criação de palavras e metáforas.

No tocante aos conectivos e argumentação, a coesão num texto é usada para

relacionar os períodos e, além disso, para servir de base aos esquemas de

argumentação. No texto encontram-se exemplos nos quais a coesão trará uma visão

expansiva, ou seja, um período expande o outro, acrescentando-lhe uma informação

nova. Observam-se casos com os usos dos conectivos: e (junção); mas

(contrajunção) e ou (disjunção). Transcrevem-se apenas alguns exemplos:

“Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar.”

“O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de

sorrir, sorrir e deixar de sorrir.”

“... sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo”.

“Ela plantara as sementes que tinha nas mãos, não outras, mas essas

apenas.”

“O moleque dos jornais ria entregando-lhe um volume. Mas os ovos se

haviam quebrado no embrulho de jornal.”

“A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe

parecia seu, sujo, perecível, seu.”

“Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar...”

“Como se soubesse de um mal – o cego ou o belo Jardim Botânico?”

“Já não sabia se estava ao lado do cego ou das espessas plantas.”

Esses conectivos aparecem com a função de ligar uma oração à outra,

constituindo os períodos que se encadeiam uns com o outro para tecer o discurso. A

argumentação sugerida constitui um ethos para Ana no qual se notam algumas de

suas características: conformada com seu destino, instável quando se depara com

suas verdades, insegura. Com predominância descritiva, a argumentação revela

características do seu cotidiano e institui o tipo de identidade social atribuída à

personagem.

70

Há ainda exemplos de uso da coesão em orações que realçam o significado

de outras, qualificando-as de várias maneiras: pela referência de tempo (quando,

então, enquanto, depois), de condição (se), de espaço (onde) e de comparação

(como), respectivamente.

A estrutura argumentativa do texto poderá variar dependendo da escolha dos

elementos coesivos, tornando-se um modo significativo de trabalho ideológico que

ocorre no texto.

“Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde,

quando a casa estava vazia sem precisar mais dela...”

“Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava

chicles...”

“Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os

arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar...”

“Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois

atraiu-a a si, em rápido afago”.

“Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que

se quisesse podia parar e enxugar a testa...”

“O que faria se seguisse o chamado do cego?”

“De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada?”

“... estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde

vitórias-régias boiavam monstruosas.”

“... e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura...”

“Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha nas mãos...”

“Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem

arrependidos...”.

“A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a

tricotara”

A coesão lexical ocorre com a repetição de palavras ou expressões, pois

estabelece relações coesivas de base semântica pela seleção vocabular.

71

Desempenha ainda uma função referencial no texto, o que se pode constatar nos

exemplos:

“Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite

cálida...”.

“E cresciam árvores. Crescia sua própria conversa com o cobrador de luz,

crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com

comidas...”.

“Assim ela o quisera e o escolhera”

No contexto abaixo, a repetição aparece como uma marca que evidencia os

fatos do cotidiano, a rotina que se estabelecia na vida da personagem:

“E cresciam árvores. Crescia sua própria conversa com o cobrador de luz,

crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com

comidas...”.

A transitividade é marcada pelo verbo, que registra a relação existente entre

os participantes numa interação. A princípio todas as ações são marcadas por um

narrador observador que usa a voz ativa para tecer as ações da personagem Ana,

mas suas narrações e também as descrições que faz dela contribuem para a

constituição de uma personagem extremamente fragilizada perante a vida.

As interações que ocorrem entre Ana e o filho são marcadas pelos verbos ser

e ter: “A vida é horrível...” - “Tenho medo”, e ainda pelo processo de ação, no qual

aparece o agente em busca de um objetivo:

“Não deixe mamãe te esquecer”.Neste processo a ação é dirigida, o agente

age em direção a um objetivo.

Na interação entre a Ana e seu marido, “O que foi?” – “Não foi nada, disse,

sou um desajeitado”, há o verbo (ser) que marca uma relação entre os participantes,

nela há indício de cumplicidade. Já nas falas seguintes:

“— Não quero que lhe aconteça nada, nunca!”.

“— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro”.

A transitividade é marcada pela voz ativa nas duas falas: em ambas, as ações

são dirigidas, estão explícitos os desejos de Ana e de seu marido.

72

O tema é o ponto de partida para a discussão do texto, é a informação dada

pelo autor. Nesse texto o tema seria “um acontecimento” que gerasse conflito e que

perturbasse a vida construída por Ana, acontecimento que a levaria ao medo e à

fragilidade. Assim a transitividade e o tema reforçam o fator cultural e ideológico de

que a mulher é um ser frágil que necessita de proteção.

Quanto aos significados das palavras, existem vários, que são “lexicalizados”

de várias maneiras. Quando se produz um texto, o autor fica diante de escolhas

sobre como usar uma palavra e como expressar um significado por meio de

palavras, e o leitor sempre se confrontará com decisões sobre como interpretar as

escolhas que os produtores fizeram, ou seja, que valores atribuir a elas. As escolhas

e as decisões são individuais. Os significados das palavras e a lexicalização de

significado são questões que são variáveis e contestáveis socialmente.

Destaca-se no conto “Amor” o uso de metáforas que contribuíram para a

construção de uma personagem que se encontra, a princípio num estágio de

conformismo e aceitação da vida que escolhera:

“... a vida podia ser feita pela mão do homem”

“Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher”.

“Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto”

Em seguida aflige-se por ter de enfrentar a vida e assumir uma nova postura

diante dela, o que para Ana é um processo doloroso:

“A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido”

“O mundo se tornara de novo um mal estar”,

Num terceiro momento, surge a fragilidade humana, a sua fragilidade

declarada, a vontade de não ter de viver as horas mais perigosas das tardes.

“Ela adormecia dentro de si”.

“A vida é horrível, faminta”.

Neste conto, apresentou-se um estereótipo de mulher que seguiu as regras

determinadas pela sociedade quanto ao sexismo e ao ethos: casar, ter filhos, cuidar

do lar, dos filhos e do marido, essas eram as funções e esse era o papel a ser

73

desempenhado pela mulher. Ao seguir essas regras, abdicou de seus sonhos, inibiu

suas vontades e desejos, e, embora tivesse consciência de que a vida que

escolhera a deixava infeliz, temerosa, preferiu continuar a rotina a mudá-la. Ana era

muito frágil, desempenhou seu papel e temeu os momentos de crise, pois a

colocavam diante da verdade.

Constatou-se a força que as regras sociais impuseram à mulher durante muito

tempo, impedindo-a de realizar outros projetos em sua vida, limitando-a, tornando-a

prisioneira de um sistema que serviu de modelo ideal, estabelecido para as relações

entre as pessoas, o que colaborou para a constituição desse universo feminino e

revelou ainda o ser mulher em sua total fragilidade, pois a sua dependência e

obediência eram primordiais para que fosse reconhecida como um ser social.

74

CAPÍTULO III – ANÁLISE DO CONTO: VENHA VER O PÔR-DO-SOL

3.1 O conto: “Venha ver o pôr-do-sol”

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas

iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos

baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro,

algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na

quietude da tarde.

Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo

blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de

estudante.

— Minha querida Raquel.

Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.

— Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes.

Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria

aqui em cima.

Ele riu entre malicioso e ingênuo.

— Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece

nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas,

lembra?

— Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela,

guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hein?!

— Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço.

— Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul

e dourado...Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse

perfume. Então? Fiz mal?

— Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso

aí? Um cemitério?

75

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de

ferro, carcomido pela ferrugem.

— Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem

os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo –

acrescentou, apontando às crianças na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou

a fumaça na cara do companheiro. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o

programa?

Brandamente ele a tomou pela cintura.

— Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um

instante e te mostrarei o pôr- do -sol mais lindo do mundo.

Ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.

— Ver o pôr- do -sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um

último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta

buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr- do- sol num

cemitério...

Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.

— Raquel , minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu

gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se

isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que

vive espiando pelo buraco da fechadura...

— E você acha que eu iria?

— Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então

pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada...- disse ele,

aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério.

E, aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos

ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão

astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede

de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e

meio desatento.

— Você fez bem em vir.

76

— Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num

bar?

— Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

— Mas eu pago.

— Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque

é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não

concorda comigo? Até romântico.

Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

— Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber

que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das

suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.

— Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se

arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado,

veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos

gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que

estivemos aqui.

— É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E

se vem um enterro? Não suporto enterros.

— Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a

mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos

sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.

O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos

canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores,

invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua

violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram

andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam

sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre

os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança.

Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos

medalhões de retratos esmaltados.

77

— É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável,

que deprimente – exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um

anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.

— Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei

onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite,

está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um

crepúsculo numa bandeja e você se queixa.

— Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

— Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

— É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar

mais.

— Ele é tão rico assim?

— Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já

ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a

se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente

escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.

— Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?

Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.

— Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de

tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Quando penso não

entendo como agüentei tanto, imagine, um ano!

— É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda

sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora.

— Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a

inscrição de uma laje despedaçada: — A minha querida esposa, eternas saudades.

— leu em voz baixa. — Pois sim. Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

78

— Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra

mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse

apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da

fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as

raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem

o nome sequer. Nem isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

— Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo

que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir

assim. – Deu-lhe um beijo rápido na face. — Chega, Ricardo, quero ir embora.

— Mais alguns passos...

— Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para

trás. — Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.

— A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio – lamentou ele, impelindo-a

para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se

vê o pôr do sol. — Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com

minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha

trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e

minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo

tantos planos.

Agora as duas estão mortas.

— Sua prima também?

— Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente

bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os

seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que

toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.

— Vocês se amaram?

— Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. – Enfim, não tem

importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o

79

— Eu gostei de você, Ricardo.

— E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?

Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.

— Esfriou, não? Vamos embora.

— Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira

selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta

rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes

enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar

meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquiria cor do tempo. Dois vasos

de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da

cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como

farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede

lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de

pedra, descendo em caracol para a catacumba.

Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos

da capelinha.

— Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico.

— Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas,

sinais da minha dedicação, certo?

— Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse

abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a

morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da

portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das

quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.

— E lá embaixo?

— Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó-

murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta

80

no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A

cômoda de pedra. Não é grandiosa?

Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.

— Todas estas gavetas estão cheias?

— Cheias?....- Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está

o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as

pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.

Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

— Vamos, Ricardo, vamos.

— Você está com medo?

— Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!

Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu

um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:

— A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato,

duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se

exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e

gravemente.__ Não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é

impressionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.

— Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando!

Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.

— Pegue, dá para ver muito bem... — Afastou-se para o lado.- Repare nos

olhos.

— Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se

apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria

Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito

e ficou um instante imóvel. — Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há

mais de cem anos! Seu menti... Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo

meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No

81

topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio

inocente, meio malicioso.

— Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais

cretina! — exclamou ela, subindo rapidamente a escada. — Não tem graça

nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro.

Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

— Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou,

torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É

no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!

— Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na

porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do

sol mais belo do mundo.

Ela sacudia a portinhola.

— Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!-

Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por

entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. —

Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...

Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles,

reapareceram as rugazinhas abertas em leque.

— Boa noite, Raquel.

— Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços

por entre as grades, tentando agarrá-lo.__Cretino! Me dá a chave desta porcaria,

vamos! — exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as

grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até

a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando

contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o

corpo. Foi escorregando.

— Não, não...

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Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi

puxando as duas folhas escancaradas.

— Boa noite, meu anjo.

Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola.

Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.

— Não...

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve

silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos.

E, de repente, o grito medonho, inumano:

— NÃO!

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram,

semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando

mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que

atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento.

Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e

foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

3.2 A autora e a obra

A busca de um novo conhecimento do mundo, aliada ao conhecimento de si

mesma, é marco para a ruptura com as estruturas tradicionais da literatura escrita

por mulheres, conforme comentários já feitos anteriormente. Num processo lento,

abre-se caminho para as contestações, enquanto outras trabalham no nível da

realidade cotidiana. Para Coelho (1989), Lygia Fagundes Telles é das primeiras a

desvendar a face maldosa e perigosa da mulher, na qual se oculta o medo de não

agradar aos outros, de não corresponder aos modelos exigidos pela sociedade.

Em seu conto, o tema amor é fonte de conflito das situações dramáticas, ora

como ausência inexplicável, ora como desencontro ou frustração, jogos de disfarces

e desencontros que geram a solidão a dois. Ela foca os problemas que vivem as

83

mulheres e as projeta como seres humanos. Consagrada ficcionista, Coelho (1993)

atesta que Lygia Fagundes Telles é uma das mais lúcidas e apaixonantes

testemunhas deste mundo em crise, um mundo que traz uma burguesia convicta em

suas verdades; valores como a fé que criam culpa nos homens ou ainda o sucesso

material como forma de avaliar o valor das pessoas. Certezas e valores que foram

geradores de medo, insatisfação e insegurança, sentimentos que corroem as

relações humanas. Coelho (1993:245) acrescenta:

Seu mundo de ficção dá pleno acesso ao leitor, embora não lhe dê o conhecimento direto ou definitivo dos dramas ou situações em causa. A ficção de Lygia Fagundes Telles empenha o leitor e entrega-lhe a cada momento a decisão sobre o que acontece, e como.

Neste conto revela-se extraordinária a capacidade da autora para construir a

síntese dramática. A ação caminha paralela ao diálogo e nos detalhes,

complementando-se reciprocamente. Ataíde (1972) afirma que é comum nas

narrativas em terceira pessoa, a escritora deixar que suas criaturas se revelem por

meio do diálogo, é uma conquista das personagens diante do mundo. Ela só

intervém quando é necessário, indispensável para que o leitor compreenda o

enredo. Ainda acrescenta que a autora dá liberdade para que suas personagens

vivam a vida. Tudo isso elaborado com talento e sensibilidade, ao visar à criação de

uma atmosfera que ilustre a situação e o ambiente. Para isso, ela utiliza técnicas que

encontra prontas e deixa sua sensibilidade fluir sobre ela. Para Ataíde (1972:111):

“Não é o processo técnico que faz do ficcionista um escritor moderno ou não, é o

emprego do processo num conjunto humano que faz a modernidade da obra e a

valoriza”.

O conto “Venha ver o pôr-do-sol”, que apresenta um desfecho trágico, envolve o

leitor nas complexidades humanas. Desvenda a personagem condenada à solidão

por falhar em seu relacionamento com o outro (solidão ontológica - inerente à

condição humana). Em Lygia Fagundes Telles é possível o leitor deparar-se consigo

mesmo, ao perceber que a matéria de sua ficção é, pois, matéria viva, que decorre

das relações que se estabelecem entre a consciência do homem, os seres e as

coisas que o rodeiam.

84

3.3 Análise da estrutura narrativa

Ao selecionar o conto Venha ver o pôr-do-sol considerou-se a escolha da

protagonista, neste caso, a personagem principal é um homem, e pode-se observar

que tal personagem foi criada para que, por meio de sua existência, fosse possível

avaliar suas atitudes diante das mulheres e observar a mulher sob o enfoque

masculino.

A linguagem feminina rodeia-nos de afeto, revela a aptidão para atenuar as

diferenças, o amparo nas relações face a face; contudo seu poder de comunicação

traz à tona também outras nuances que revelam o cotidiano de maneira sedutora e

ao mesmo tempo surpreendente.

No conto “Venha ver o pôr-do-sol” o protagonista é um jovem chamado

Ricardo, que, ao ser abandonado por sua namorada, planeja um encontro com a

intenção de vingar-se. Porém é necessário considerar que o fato motivador da

vingança é gerado antes dos acontecimentos narrados no conto. Há uma situação

inicial, uma relação amorosa vivida por Ricardo e Raquel, na qual o protagonista

encontra-se bem e feliz. A sua modalização de atitude revela uma verdade: ser +

parecer = verdade, ou seja, ele é e parece ser o amante de Raquel. O percurso

narrativo esquematiza-se abaixo:

P ---------------------------------------------------------------------------------- O

Ricardo Felicidade

Amante de Raquel

O fato que gera a inquietação de Ricardo também se encontra num período

que antecede o conto. Ao abandoná-lo, Raquel provoca o seu sofrimento, um

desconforto, instaura-se o conflito. Representa-se o percurso narrativo:

P ------------------------------------------------------------------------- O

Ricardo Obstáculo: Abandono Felicidade

85

A modalização de sua atitude permanece com a verdade, ele não é e não

parece feliz, o que pode ser confirmado em sua atitude ao planejar uma vingança à

amada. O conto inicia-se com o protagonista colocando em prática seu desejo de

vingança.

Sua modalização altera-se, prevalecerá o segredo, seu aliado na conquista de

seus propósitos. Ele é (está magoado, ferido e quer vingar-se), mas não pode

parecer; constrói um ethos de pessoa confiável, e por meio de argumentos e da

persuasão pretende ganhar a confiança de Raquel.

A expectativa é criada, inicialmente, com enfoque nas ações de Raquel, pois

dela dependerá o desenrolar da trama e o sucesso do plano de Ricardo. Aceitar ou

não os seus propósitos, segui-lo ou não, continuar a conversa ou encerrá-la, esses

são os aspectos que constroem a expectativa inicial:

“— Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes.

Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria

aqui em cima.”

“— Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela,

guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. __Hein?!”

“— Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso

aí? Um cemitério?”

“— Ver o pôr-do-sol!... Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um

último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta

buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num

cemitério....”

“— Raquel , minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu

gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se

isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que

vive espiando pelo buraco da fechadura...”

“— E você acha que eu iria?”

As ações de Raquel caracterizam-na como sincera, portanto sua modalização

é de verdade: ela é e parece estar insatisfeita com a situação, quer resolver logo o

embate entre os dois, não precisa mentir nem simular. Tem-se o percurso narrativo:

86

Auxiliar: sinceridade

P -------------------------------------------------------------------------------- O

Raquel Opositor: astúcia de Ricardo Resolver a

situação

É na manutenção do diálogo que a história se desenvolve. Ricardo é quem

expande a narrativa, pois conta com a habilidade que possui de persuadir,

envolvendo-a por meio de simulações e mentiras. Sua modalização permanece no

segredo, pois precisa que Raquel acredite nele. Esquematiza-se o percurso

narrativo:

Auxiliar: astúcia

P--------------------------------------------------------------------- O

Ricardo Vingança

Na tentativa de resolver sua situação com Ricardo, Raquel ainda recorre às

desculpas, mas tem como opositor a sagacidade de Ricardo, a forma como ele a

envolve com argumentação consistente.

“__ Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num

bar?”

“__Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.”

“__ Mas eu pago.”

“__Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque

é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não

concorda comigo? Até romântico.”

“__Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber

que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das

suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.”

87

“__Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se

arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado,

veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos

gonzos gemeram. __ Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que

estivemos aqui.”

“__É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E

se vem um enterro? Não suporto enterros.”

“__Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a

mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos

sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.”

A modalização das duas personagens não se altera, Raquel continua

verdadeira e Ricardo permanece no segredo, ele guarda o segredo da vingança.

Tem-se o percurso narrativo:

Auxiliar: desculpas

P--------------------------------------------------------------------------------------- O

Raquel Opositor: astúcia de Ricardo Resolver a

Situação

A mesma situação analisada sob a perspectiva do protagonista, apresenta

este percurso:

Auxiliar: astúcia

P-------------------------------------------------------------------------------------- O

Ricardo Opositor: desculpas de Raquel Vingança

Com um discurso persuasivo e intencional, ao objetivar sua vingança,

Ricardo constrói um ethos de pessoa confiável, delicada e sensível, características

que permitem a Raquel aderir a suas idéias. Recorre às mentiras como artimanha

88

para resguardar o segredo da vingança. Usa sempre um tom suave, palavras

afetuosas:

“__Raquel, minha querida, não faça assim comigo.”

“__Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.”

“__Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se

arrisque, meu anjo.”

“__Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.”

No decorrer da trama, Raquel consente às ações de Ricardo, aceita-as,

abandona sua resistência. Restabelece a confiança, baseada no relacionamento que

outrora tiveram e é envolvida por um discurso carregado de emoção e

reminiscências:

“__Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para

trás. — Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta”.

“__A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio – lamentou ele, impelindo-a

para frente. __Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se

vê o pôr do sol. — Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com

minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha

trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e

minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo

tantos planos.”

“__Agora as duas estão mortas”.

“__Sua prima também?”

“__Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente

bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os

seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que

toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.”

“__Vocês se amaram?”

89

“__Ela me amou. Foi a única criatura que... - Fez um gesto. – Enfim, não tem

importância.”

“__Eu gostei de você, Ricardo.”

“__E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?”

Ricardo posiciona-se como vítima da situação, promove um discurso cheio de

inverdades, apresenta proposições com a intenção manipulativa. Constata-se em

Fairclough (2001:91): “O discurso é um modo de ação, uma forma em que as

pessoas podem agir sobre o mundo, sobre os outros, como também um modo de

representação.”

Somente no desfecho, a protagonista muda sua modalização de atitude,

passa a ser verdadeiro, já que, finalmente, tem seu propósito concluído. Nos trechos

abaixo, a verdade se instaura: ser + parecer = verdade; ele é e parecer estar

realizado com sua vingança. Não precisa mais mentir, seu propósito está revelado,

conseguiu tudo o que almejara.

“__Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na

porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-

sol mais belo do mundo.”

“Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles,

reapareceram as rugazinhas abertas em leque.”

“__Boa noite, Raquel.”

Embora Ricardo conseguisse seu objetivo: vingar-se de Raquel, a narrativa é

de fracasso, pois o protagonista destrói o objeto de sua felicidade.Tem-se o percurso

narrativo:

Auxiliar: astúcia

P-------------------------------------------------------------------------------- O

Ricardo Opositor: abandono Infelicidade

Ausência do amor

Quanto à avaliação, destaca-se o papel da mulher que é castigada por

abandonar o amante, neste conto a mulher é retratada como um objeto de posse. A

90

argumentação de Raquel não apresenta forças suficientes para mudar sua situação.

Ela pede, ameaça-o, implora e ao final grita, desesperadamente, não obtendo êxito

algum. Vê-se a mulher na sua condição de ser frágil. Há a comparação de Raquel a

um animal que, enjaulado, será enterrado vivo, embora o desfecho do texto não seja

explícito, podendo-se apenas presumi-lo.

Não há para Raquel nenhum fator que a auxilie, o que a deixa em uma

posição bastante delicada, e contradiz sua imagem constituída até então: mulher

forte, determinada e ambiciosa. No conto, Raquel aparece com o estereótipo da

mulher que sai do espaço lar e ganha o externo, fato que não a intimida. Está em

busca de sua felicidade, mesmo que lhe custe alguns sacrifícios. Abandona o

namorado (Ricardo) e uma situação de privações para relacionar-se com um homem

que lhe proporciona uma vida financeira mais confortável, possivelmente, não o

ama, pois não há indícios no texto de que essa relação tenha outros interesses

senão o conforto que o dinheiro possibilita.

O perfil da mulher é traçado pelo olhar de Ricardo. É ele quem aponta em

suas ações o retrato de uma mulher que cai facilmente em uma cilada, é persuadida,

manipulada, é ele quem revela o quanto a mulher, embora queira parecer dona da

situação, é passível de sedução. Consegue provar que com um discurso meigo,

ingênuo, que eleve a auto-estima da vítima, é possível sim enganá-la. Descortina a

face de Raquel, um ser frágil, que quer ser tratada como alguém especial, facilmente

envolvida em seu plano de vingança. Basta constituir um ethos de bom menino e de

bom rapaz, apaixonado, que a mulher já se ilude e sai da retaguarda.

Ao se estabelecer o conflito, a autora sugere uma reflexão: Até que ponto é

possível confiar no outro? O que levaria alguém a cometer, com tanta frieza, um ato

tão insano? E vai além quando permite ao leitor deparar-se com as formas de poder

que transitam na sociedade. O amor e o ódio são paixões, forças que permitem

estabelecer nas relações a luta pelo poder e determinar quem é o mais forte.

O homem não pode ser apontado como o ser fraco, aquele que sofre por

amor, muito menos ser abandonado por uma mulher, o que implica ter sua virilidade

e sua força contestadas. Essas afirmações podem se confirmar nas palavras de

Muszkat in Silva (1993:77):

91

O modelo de herói masculino, cultivado por todas as culturas, não mostra qualquer condescendência com a fraqueza. As grandes guerras mundiais deste século em nada contribuíram para desfazer o mito do herói guerreiro... ... ser homem na cultura patriarcal também é uma tarefa difícil. Nos homens detectamos duas obsessões básicas: seu desempenho profissional e seu desempenho sexual.

Para o protagonista a vingança é o único meio de recuperar-se e retornar a

seu papel social. O abandono o incomoda, o sofrimento pela ausência de Raquel e,

conseqüentemente, a rejeição ao seu amor, perturbam-no, é preciso ser forte e

resolver o conflito. Deve-se considerar que Ricardo sofre por não admitir a perda, e é

movido pela paixão. Para Aristóteles (1998:35), a paixão faz o homem oscilar e

correr o risco de se perder de alguma maneira, e conceitua:

A paixão é a relação com o outro e representação interiorizada da diferença entre nós e esse outro. A paixão é a própria alteridade, a alternativa que não se fará passar por tal, a relação humana que põe em dificuldade o homem e, eventualmente, o oporá a si mesmo. Compreende-se, nessas condições, que a paixão remete às soluções opostas, aos conflitos, à diferença entre os homens.

No tocante à construção do conto, a autora pode instalar-se no corpo de um

homem e promover a história através de um narrador para alcançar as

cumplicidades da narrativa com estruturas violentas de dominação.

Justifica-se o conflito criado pelo feminino no momento em que a autora faz

uso de toda a sua sensibilidade para envolver o leitor na trama e revelar-lhe também

por meio do universo masculino a face da mulher, representada neste conto por

Raquel. A imagem que a sociedade cristã, burguesa, patriarcal, propõe como

modelo de comportamento é contestada pelas atitudes de Raquel, é uma forma de

mostrar-se livre. Porém a figura de Ricardo impõe o padrão de comportamento

aceitável às mulheres; e confirma a elas uma certa inferioridade por serem

manipuladas com facilidade, por ouvirem mais a voz do coração do que da razão.

Vale ressaltar que os textos abordados neste trabalho permitem às autoras

mostrarem os impasses da vida de mulheres como Ana e Raquel, mas elas não têm

a intenção de defendê-las ou colocá-las sempre como vítimas de um sistema, têm

sim o intuito de instaurar uma conscientização aguda das lutas em que elas

necessitam ser participantes ativas.

92

Conforme citação de Muszkat in Silva (1993:77): “O mito feminista de que a

mulher é o único ser prejudicado pela cultura patriarcal acaba por conduzir a

interpretações unilaterais e simplistas. Acaba reafirmando a condição de vítima para

um e de carrasco para outro”.

3.4 Análise crítica do discurso

Em “Venha ver o pôr-do-sol”, o controle interacional aparece pelas interações

que são marcadas por um jogo de perguntas entre as personagens Ricardo e

Raquel. No início do texto, essas sucessões de perguntas marcam uma insatisfação

por parte da personagem Raquel, um certo descontentamento:

“... Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui... — Hein?!”

“__ Então? Fiz mal?”

“— Podia ter escolhido um outro lugar, não? — E que é isso aí? Um

cemitério?”

A princípio é Raquel quem controla a organização básica da interação. Ao

abrir e fechar o ciclo de conversação, promove a expectativa no conto. Não há

indícios de que tenha uma agenda preestabelecida. As perguntas são abertas e

Ricardo ao respondê-las busca o controle da situação, porque percebe claramente o

desconforto de Raquel:

“... Ver o pôr -do-sol! Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso! “

“— E você acha que eu iria?”

“— Mas eu pago.”

“— Não gosto de cemitério. E ainda mais cemitério pobre.”

Nas falas seqüenciais a interação ainda é marcada por perguntas e

respostas. Ricardo agora é quem tem o controle e expande a narrativa. Ele tenta

persuadi-la, elogia-a, argumenta, conduz a conversa e manipula-a para a aceitação.

Assim ele realiza o controle dos tópicos que o conduzem ao seu objetivo. Por meio

93

de seus argumentos consegue ganhar sua confiança, tranqüiliza-a. Os tópicos são

mudados pelo participante Ricardo que mantém o domínio da situação e traz uma

agenda estabelecida previamente, pois age conforme o que deseja alcançar: a

vingança.

“__Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima...”

“__Você fez bem em vir.”

Há no discurso de Raquel traços que a caracterizam como sendo irônica,

interesseira, prepotente. O uso de verbos no imperativo conotam a sua forma de

dizer e de se colocar perante o outro. Esses trechos atribuem a Raquel um certo

poder, uma postura de quem está em situação de vantagem perante o outro, mas

suas formulações, aspecto do controle interacional, não ganham a aceitação de

Ricardo:

“... Ver o pôr-do-sol! Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso! “

“— E você acha que eu iria?”

“— Mas eu pago.”

“— Esfriou, não? Vamos embora.”

“— Chega, Ricardo! Você vai me pegar!”

Há a formulação também no discurso de Ricardo, que tenta ganhar a

aceitação de Raquel para o que diz:

“— Então? Fiz mal?”

“— Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende”

“— Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? ...”.

“— Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa”

“— Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo”.

“— E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?”

94

Outro aspecto é a determinação e o policiamento de agendas mantidos por

Ricardo para iniciar a interação e encerrá-la. A sua maneira de conduzir a interação,

inicia-se com elogios a Raquel e, na seqüência, com uma justificativa:

“— Minha querida Raquel!”

“— Você está uma coisa de linda...”

“—Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do

mundo.”

Há hesitação no momento em que Raquel mostra-se bem ao lado do outro

homem:

“__Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então

pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada...”

“__Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já

ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...”

“Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão.”

Ricardo retoma a interação e a conduz, alterna os tópicos e o mantém por

perguntas abertas, que propiciam a retomada de situações vividas no passado:

“__Eu também te levei um dia para passear, lembra?”

“__É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda

sentimental. E agora? Que romance está lendo agora?”

Com muita astúcia, introduz novos tópicos à conversação, elogia Raquel,

pondera, é carinhoso e aos poucos, Raquel é conduzida ao seu destino:

“___Já chegamos, meu anjo.”

“__ A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato,

duas semanas antes de morrer...”

“... é impressionante como tinha os olhos iguais aos seus.”

95

Ao final, seu discurso encerra com determinação, a mesma que o conduz ao

sucesso de suas intenções. A última interação revela a despedida e não requer

resposta, encerra-se apenas: “__Boa noite, meu anjo!”

Observa-se a posição do sujeito na modalidade categórica das seguintes

proposições enunciadas por Raquel. É possível utilizar uma entonação firme com o

propósito de afirmar com convicção a sua fala:

“— Ele é ciumentíssimo”

“— É um risco enorme!”

“— É imenso, hein!... é deprimente.”

“— Que triste é isto, Ricardo...”

Aparece uma proposição um pouco menos categórica em:

“— Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã...”

A categorização é amenizada pelo emprego do verbo (acho) que gera a

subjetividade na proposição e projeta o ponto de vista de quem fala. A subjetividade

presente nos trechos abaixo deixa à mostra o grau de afinidade do falante com a

proposição:

“— Juro que tinha que ver uma vez toda essa beleza...”

“— Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí...”

“— Prefiro beber formicida...”

No exemplo seguinte, Ricardo, com o intuito de convencê-la,

categoricamente afirma: “— Mas é esse abandono na morte que faz o encanto

disto.”

É importante salientar que na modalidade há mais do que o comprometimento

do falante com suas proposições. Para Fairclough (2001:200):

Os produtores indicam comprometimento com as proposições no curso das interações com outras pessoas, e a afinidade que expressam com as proposições é freqüentemente difícil de separar de seu sentido de afinidade ou solidariedade com os interagentes.

96

Há hesitação na proposição: “— Ela me amou. Foi a única criatura que... —

Faz um gesto – Enfim não tem importância.” , uma proposição falsa, pois há

intenções com esse discurso. A pausa é o marco da hesitação citada, representada

graficamente pelo uso de reticências. Pode-se verificar também que o

comprometimento com as proposições no curso das interações está ligado à

afinidade presente entre as personagens. Nos exemplos abaixo, perguntas

negativas pressupõem que a afinidade é compartilhada de maneira solidária com o

outro, as frases negativas carregam tipos especiais de pressuposições que

funcionam intertextualmente.

“— não se zangue, sei que não iria...”

“... não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado...”

“— não insista nessas brincadeiras, por favor.”

“—... não tenha medo...”

“— não gosto de cemitérios, já disse.”

“— Não é grandiosa?”

As perguntas negativas ao final do enunciado antecipam uma resposta

positiva, como se o emissor pedisse o consentimento, o aval do ouvinte para as suas

proposições:

“— Jamais, não é?”

“— Podia ter escolhido outro lugar, não?”

“— Esfriou, não?”

Nota-se a polidez no encontro das personagens, que é iniciado com um tom

de insatisfação por parte de Raquel, que não gosta do local nem da situação em que

se encontra. Suas indagações permitem concluir que ela tenta preservar sua face

positiva, embora esteja presente também a face negativa, no momento em que

explicita que não quer ser impedida ou controlada pelo outro. Destacam-se

exemplos de face positiva, nos quais procura demonstrar afeição, simpatia:

“— É um risco enorme, já disse.”

97

“— Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Apesar de tudo,

tenho às vezes saudade daquele tempo...”

“— Vamos embora, Ricardo, chega.”

“—... pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.”

“— Eu gostei de você, Ricardo.”

“— Que triste é isto Ricardo, nunca mais você esteve aqui?”

“— Ouça meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos,

abra...”

Na preservação da face negativa, destaca-se o uso do pronome “você”, o que

chama a atenção para as atitudes de Ricardo. Exemplo de preservação de face

negativa:

“— Só mesmo você inventaria um encontro destes...”

“— E você acha que eu iria?”

“... só mesmo um cara como você podia me divertir tanto assim.”

“— Você vai me pagar! “

Já o protagonista tenta o tempo todo construir mediante seu discurso uma

face positiva e a mantém ao longo do conto.

“— Jamais, não é?”

“— Quando você andava comigo... lembra?”

“— Então? Fiz mal?”

“— Não se zangue, sei que não viria, você está sendo fidelíssima...”

“— Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida...”

“—... não quero que você se arrisque”

“— vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.”

“— Ah, Raquel, olha um pouco esta tarde! Deprimente por quê?”

98

“— Eu também te levei... lembra?”

“— Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.”

Existem atos que ameaçam a face positiva de Ricardo, quando Raquel critica-

o, esnoba-o, humilha-o:

“— E você acha que eu iria?”

“— Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então

pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... - disse ele,

aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério.

E, aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos

ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão

astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede

de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e

meio desatento.”

“__Ele é tão rico assim?”

“__Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já

ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a

se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente

escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.”

“__Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?”

Por meio de um discurso polido, Ricardo usa da estratégia do argumento

associada a sua astúcia, cativa Raquel, ganha sua confiança e afasta qualquer

possibilidade de conflito entre ambos. Nesse caso, a polidez foi usada como forma

de manipulação, ocultando suas reais intenções. Ricardo alia a polidez aos seus

argumentos, conquista dessa forma seus objetivos:

“— Sei que você gostaria de encontrar tudo limpo certo?”

“— A cômoda de pedra. Não é grandiosa?”

“— Você está com medo?”

99

Em nenhum momento ele muda o seu tom polido no discurso, nem mesmo

para encerrá-lo:

“— Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na

porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você verá o pôr-do-

sol mais belo do mundo.”

“— Boa noite, meu anjo.”

A face positiva mantida até então se perde para dar entrada à face negativa

com a qual impõe o destino de Raquel.

Fairclough (2001) ressalta outra parte importante da polidez, a propriedade de

indiretividade da estratégia implícita, ou seja, quando se dizem coisas indiretamente.

Constatam-se no discurso de Ricardo trechos em que ele aponta suas intenções,

porém de maneira sutil e indireta que dessa forma não são percebidas por Raquel:

“... não tem lugar mais discreto que um cemitério.”

“__Ah! Raquel, olha um pouco esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde

foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está

no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo

numa bandeja e você se queixa.”

“__Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra

mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos...”

No tocante ao ethos, os discursos construídos e os comportamentos

apresentados fazem que se perceba em Raquel, uma mulher determinada, segura

de si... Preocupada em não perder sua posição social, deixa claro que mantém por

interesse um relacionamento e não quer que nada a traga de volta para uma vida de

pobreza. Seu discurso destaca-se como discurso da razão, invertendo assim os

papéis representados socialmente pelo homem e pela mulher. Contestadora e

segura, representa uma ameaça para Ricardo, que se vê frágil perante essa mulher.

Porém sua ingenuidade e confiança, a facilidade com que se deixa enganar,

aparecem como reforço ao discurso instituído de que toda mulher age mais pela

emoção, pelos sentimentos, fatos que a levaram à prisão.

Configura-se em Ricardo um ethos de homem apaixonado, que vê na dor da

perda, a possibilidade de vingança ou ainda a idéia de que “se a amada não é

100

minha, não será de mais ninguém”.Todas as ações são, a princípio, previamente

planejadas e em seus discursos constrói a imagem de um homem calmo, sensível,

apaixonado, amante da natureza, apegado à família. Constrói, portanto, uma

imagem agradável de si mesmo.

Suas dificuldades financeiras parecem não lhe afetar muito. É passivo e

aceita-as com normalidade. Porém, toda essa normalidade não revela realmente o

ethos da personagem, que simula o tempo todo. O homem é racional por natureza.

Constata-se que seu discurso, bem como suas atitudes, são assim conduzidos

intencionalmente, porque possui um objetivo. Suas ações revelam uma personagem

apaixonada sim, mas fria, calculista, sem piedade, motivada pela perda amorosa a

cometer uma loucura.

As relações de poder constituem-se, nesse texto, no propósito de que o

homem não pode ser abandonado por uma mulher. Em uma relação amorosa o

homem é o dominante, é o provedor, é o que dá a última palavra, enfim, a sociedade

espera que a sua força e sua posição sejam mantidas, inclusive sua honra. Qualquer

abandono ou traição efetiva a constatação de homem fraco, adjetivo que a

sociedade rejeita ao homem. Assim, a personagem colabora com as práticas

discursivas que mantêm o homem nas relações de poder, como o ser mais forte.

Inicia-se a análise do discurso com enfoque na significação e na referência.

3.5 Constituição da realidade social

Há coesão marcada pelos conectivos que expandem o sentido das orações,

atribuindo-lhes algo novo; nas orações com uso de conectivos e – nem (junção);

mas (contrajunção) e ou (disjunção)..

Aditivas (ligam termos ou argumentos)

“— Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me

aparece nessa elegância.”

“— Você está uma coisa linda. E fuma agora uns cigarrinhos...”

101

“— Quer dizer que o programa... E não podíamos...”

“— É imenso hein? E tão miserável...”

“— E eu te amei. E eu te amo ainda.”

“— Suba e vamos embora...”

“... a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite...”

Adversativas (indicam uma contraposição)

“— Raquel, minha querida,... Você sabe que eu gostaria era de te levar ao

meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda.”

“__É, mas fiz mal. Pode ser engraçado, mas não quero me arriscar mais.”

“.. . Não era propriamente bonita, mas tinha olhos...”

“__Ouça, meu bem, foi engraçado, mas agora preciso ir mesmo, vamos

abra...”

Variação (apresentam uma alternativa)

“... Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos

aqui.”

Outra relação entre as orações que pode ser destacada é a de realce,

marcada pelas referências de tempo, lugar e modo, comparação, espaço, causa e

condição. Exemplos:

Tempo (operadores que servem para dar continuidade ao texto)

“... Quando você andava comigo...”

“— Então fiz mal?”

“— Se nos pilha juntos, então sim...”

“— palavra que, quando penso não entendo até hoje como agüentei tanto,

imagine um ano”

“— Tínhamos então doze anos”

102

“... morreu quando completou quinze anos”

“... depois vai se afastando devagarinho, bem devagarinho.”

O advérbio circunstancial de lugar faz orientação por referência ao falante,

“aqui” fixa o ponto de referência do evento da fala, indica lugar próximo ao falante.

“... aqui estão meus mortos”

Já o advérbio “lá” indica distância do evento da fala:

“__Dobrando esta alameda, fica o jazido, é de lá que se vê o pôr-do-sol”

“__ E lá embaixo?”.

Espaço

“... todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa

capelinha onde já estava enterrado meu pai.”

Modo

“... Depois vai se afastando devagarinho, bem devagarinho”

Causa

“... escolhi este passeio porque é de graça e muito decente...”

“... lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque,

meu anjo.”

As conjunções “se” indicam uma forma de condicionar uma proposição a

outra. É um ponto de apoio para a referência condicional.

“... então pensei, se pudéssemos conversar um instante. “

“... Se nos pilha juntos, então sim...”

103

“... e se vem o enterro?”

A comparação faz referência a outro item encontrado no texto para sua

interpretação.

“... não tem lugar mais discreto do que um cemitério”

“... eram assim verdes como os seus.”

Dentre as marcações coesivas de superfície, há um exemplo de elipse, que

realiza um elo coesivo, com a ausência do verbo “estar” na segunda frase:

“... Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes.”

Há também exemplos de referências, marcadas pelo uso do pronome

demonstrativo referindo-se a uma parte anterior e outra posterior ao texto. Um

elemento anafórico fará referência a todo enunciado anterior:

“__Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui?”

“__Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí”

“... nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.”

“__Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros”

Um elemento de referência catafórica dependerá de algo que segue no texto:

“ __E que é isso aí? Um cemitério?

A coesão lexical é marcada pelas repetições de palavras e expressões.

Estabelecem coesão por meio das relações semânticas desses vocábulos, conforme

os trechos:

“... não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja,

completamente abandonado.”

“... eram assim verdes como seus olhos, parecidos com os seus... “

104

“... pó, meu anjo, pó.”

O advérbio aparece como modalizador e tem como característica expressar

uma intervenção do falante na definição da validade e do valor de seu enunciado,

modalizar quanto ao dever:

“__Ricardo, abre isso imediatamente! Vamos, imediatamente!”

E modaliza para definir a atitude:

“... depois vai se afastando devagarinho, bem devagarinho.”

Os marcadores coesivos, segundo Fairclough (2001), devem ser

considerados também da perspectiva do produtor do texto, que estabelece relações

coesivas de tipos particulares no processo de posicionar o (a) intérprete como

sujeito.

Quanto à transitividade, está aparente nos processos relacionais onde

aparecem os velhos ser e ter entre os participantes:

“— Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.”

“— É, mas fiz mal.”

“— Sabe Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Apesar de tudo,

tenho às vezes saudade daquele tempo.”

“... tínhamos então 12 anos...”

“—... foi a única criatura que...”

“— É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses...”

No texto aparecem também verbos intransitivos. A ação não dirigida envolve

um agente e uma ação, sem explicitar o objetivo:

“— E você acha que eu iria?”

“— Não se zangue, sei que não iria...”

“— Mas eu pago.”

“— Não quero que você se arrisque, meu anjo.”

105

“— Já chegamos, meu anjo.”

Esses verbos aparecem com mais freqüência nos trechos em que Ricardo

usa seus argumentos para convencer Raquel a aceitar sua proposta, tomando

cuidado para não revelar suas reais intenções. Já na parte final do texto, a

transitividade é marcada pela presença de verbos transitivos, as ações são dirigidas

por um agente em direção ao objetivo:

“— Ela me amou... — Enfim não tem importância.”

“— Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho...”

“— Ela adiantou-se.”

“— Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta... “

“— Ela cruzou os braços.”

“— é impressionante como tinha os olhos iguais aos seus”

“— Ela desceu as escadas...”

“— Pegue, dá para ver muito bem... – Repare nos olhos.”

“— Deixou cair o palito no chão...”

“— Olhou ao redor.”

“— No topo, Ricardo a observara.”

“— Não tem graça nenhuma, ouviu?”.

“— Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta ...”

Há uma incidência de temas marcados pelos pronomes pessoais Eu/Ele/Ela,

pelos nomes Ricardo/Raquel e pelo pronome Você, colocando as personagens em

evidência e revelando o ponto de partida para a discussão.

A escolha do tipo de processo pode significar um processo real e ter

significação cultural, política e ideológica. O texto constrói-se a partir de verbos

afetivos (gostar, temer) e cognitivos (pensar) geralmente concretizados como

orações transitivas que promovem a interação, ao mesmo tempo em que permitem a

Ricardo contornar algumas situações e garantir o seu propósito.

Em relação às metáforas, elas estruturam o modo de pensar e de agir, bem

como o sistema de conhecimento e crença de forma penetrante e fundamental. O

106

autor não faz uso de muitas metáforas, mas, nos exemplos abaixo, fica implícita a

idéia da morte. Na primeira oração, ao usar a palavra “viva”, sugere morte as demais

notas; e na segunda oração, ao estabelecer a comparação, cita Medusa, divindade

da mitologia grega, que possuía o dom de matar e ressuscitar pessoas.

“A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.”

“... a dona é uma medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura.”

Destaca-se o uso da palavra anjo, repetida por várias vezes nos discursos de

Ricardo. Na tentativa de aproximá-la as criaturas celestiais, enaltecê-la, com o intuito

de demonstrar um afeto que extrapola os sentimentos do que seja humano, “meu

anjo”, é a forma que ele encontra para referenciar ou eternizar esse amor.

Outro destaque é o título do conto Venha ver o pôr-do-sol. A primeira leitura

sugere um convite romântico, valoriza-se a natureza, a oração possui um sentido

angelical, pacífico e harmonioso. Após a leitura do conto, a oração ganha um sentido

totalmente oposto ao inicial, aquilo que parecia harmonioso, torna-se trágico,

sinistro.

107

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nos estudos realizados, identificam-se as mulheres analisadas nos

contos “Amor” de Clarice Lispector e “Venha ver o pôr-do-sol” de Lygia Fagundes

Telles, como estereótipos de mulheres que se constituem a partir de atitudes

discriminatórias e que se comportam socialmente pela submissão. A primeira

personagem, Ana, do conto “Amor”, aparece como uma mulher submissa, frágil,

dependente, que vivia com e em função da família, possuía uma situação

socioeconômica estável, mas não era feliz. Em alguns momentos do dia, quando

ninguém mais precisava dela, sentia uma enorme angústia pela vida que escolhera,

e deparava-se com o que chamava de crise. Não podia ser o que quisera, estava

condenada a representar um papel que lhe determinaram. Já Raquel, personagem

da Lygia Fagundes Telles, aparece como uma mulher que ousou escolher outro

destino, seguir um novo caminho ao lado de um homem que lhe proporcionava uma

situação financeira confortável, e para isso fez uma escolha e abandonou Ricardo.

Não se sentia infeliz, estava muito bem, mas foi fisgada pela astúcia e pela mentira e

assim tornou-se presa fácil para Ricardo que não admitiu ser abandonado.

Impossibilitado de sonhar com seu ideal de felicidade, ter Raquel, buscou solucionar

o problema que manchava seu papel social, mas não resolveu o problema maior,

sua solidão. Preferiu levar a esperança para o túmulo a ter que viver sem o seu amor

e sem a sua honra.

No primeiro capítulo, realizou-se um breve histórico sobre as mulheres, com

enfoque nas brasileiras, desde a época do Brasil colonial até os dias atuais. Uma

história de opressão da população feminina ao longo dos tempos. No Brasil colônia

as mulheres foram exploradas pelos homens, serviram aos pais, aos patrões, aos

maridos, manipuladas pela Igreja. Foram excluídas desde o início e não ofereceram

nenhum tipo de resistência significativa.

No Brasil Imperial a mulher ganhou um novo papel a ser representado

socialmente: ser mãe, esposa e responsável pela organização do lar. Seu espaço

era a sua casa, enquanto aos homens cabiam as decisões políticas, portanto o

108

espaço público. Com o desenvolvimento iniciou-se uma ínfima participação das

mulheres na sociedade. Algumas passaram a freqüentar as escolas e outras até

ingressaram em universidades.

O século XIX foi palco de grandes transformações e uma das mais

significativas, sem dúvida, foi a aparição das primeiras escritoras, o que possibilitou

uma conscientização da situação das mulheres e abriu espaço para que

reivindicações importantes fossem discutidas, como por exemplo a luta pelo direito à

educação, à profissão e ao voto.

Conhecer um pouco a respeito da história das mulheres, colaborou na

compreensão sobre a constituição do universo feminino, ponto importante para as

análises ora exibidas neste trabalho. Foram apresentadas também reflexões sobre

gênero, que estabeleceu explicações sobre as diferenças entre os homens e as

mulheres, baseadas nas distinções de sexo e centradas nas diferenças físicas;

sobre o sexismo que comportou as atitudes discriminatórias em relação ao sexo

oposto, e sobre o ethos, que considerou a imagem que as mulheres construíram de

si nos discursos analisados.

O universo feminino é produto de fatores sociais e circunstâncias históricas,

formados em uma determinada época, e sua existência se dá em oposição à

existência de outro universo: o masculino.

Produziu-se no capítulo II a análise do conto “Amor”, de Clarice Lispector. A

autora apresentou uma personagem extremamente fragilizada, que abdicou de seus

sonhos para assumir um papel imposto pela sociedade, o de ser mãe e esposa

zelosa, e pagou um alto preço pela escolha. A análise da narrativa inicia-se com a

personagem Ana em busca de um objetivo, encontrar felicidade, porém já na sua

modalização de atitude isso se revelou uma mentira, pois Ana não era feliz, mas

representava um papel social e mostrava-se feliz a todos. O percurso narrativo

recebeu um obstáculo, um opositor: o fluxo de consciência de Ana, seu inimigo,

aquele que trazia a Ana um conflito impiedoso e que necessitava, portanto, ser

solucionado. Ao ver um cego mascando um chicle, ela deparou-se consigo mesma,

com o que era, o que queria para si, e tudo isso a perturbara, e a partir de então, o

conflito se instaurou. Averiguou-se que o conflito tornou-se próprio do universo

feminino, ao revelar a abdicação, a aceitação das condições que lhe foram impostas.

Ao encontrar-se com suas verdades, Ana considerou os laços afetivos e voltou-se

109

para atender às necessidades daqueles que a cercavam, privou-se de realizar seus

desejos mais íntimos. Era no lar que sua figura tinha valor, e lá ela se refugiou.

Sabia que não era feliz, porém não se arriscou a vivenciar outros papéis. A narrativa

teve um desfecho de fracasso, porque Ana preferiu voltar às suas atividades

rotineiras e continuar oprimindo qualquer possibilidade de não aceitação desse

papel que lhe fora imposto.

Na análise crítica do discurso, realizada segundo o modelo de análise de

Fairclough (2001), observaram-se as marcas de controle de interação entre as

personagens, o tópico, a modalidade, a polidez no discurso, o ethos e ainda as

considerações feitas a respeito dos aspectos da constituição da realidade social, que

destacaram: os conectivos e a argumentação, a transitividade e o tema, o significado

das palavras, a criação das palavras e as metáforas, itens que comprovaram o perfil

da mulher estereotipada como frágil, inoperante, aquela que precisava ser protegida.

Ana não demonstrou resistência alguma, não lutou para remoldar as práticas

discursivas que colocaram a mulher na posição de fragilizada e dependente.

Observou-se a força com que as regras sociais impuseram às mulheres

papéis femininos e o quanto influenciaram suas escolhas. Dessa forma, as

ideologias alcançaram o senso comum e mantiveram o discurso de que a mulher

pertence ao sexo frágil, é dependente, só pode se realizar no lar e desempenhar

suas funções: ser mãe e esposa fiel, esses são os papéis que lhe são reconhecidos

socialmente.

O mesmo modelo de análise seguiu para o conto “Venha ver o pôr-do-sol” de

Lygia Fagundes Telles, no capítulo III. Constatou-se a construção do conflito e pode-

se averiguar que a autora revelou o universo feminino por meio do olhar masculino,

pois foi a personagem principal, Ricardo, quem descobriu as faces da mulher neste

conto.

A análise da estrutura narrativa teve em seu percurso o objetivo da vingança,

já que Ricardo fora abandonado pela amante Raquel. Ricardo contou com a astúcia

para realizar seus planos e para tanto, permaneceu na sua modalidade de atitude o

segredo, pois não podia revelar suas reais intenções. Para sustentar essa

modalidade, contou com argumentos mentirosos. Apareceram como obstáculos as

desculpas de Raquel para não aceitar suas propostas, porém ela foi ludibriada,

envolvida, seduzida por palavras doces, por um discurso de homem apaixonado,

110

amante da natureza, que só queria passar um dia, uma tarde ao lado de sua amada.

Ricardo conseguiu seu objetivo, porém a narrativa teve seu desfecho de fracasso,

pois ao concretizar seu plano e prender Raquel no jazigo de um cemitério

abandonado, ele destruiu o objeto de sua felicidade.

A análise crítica do discurso, bem como a constituição da realidade social,

trouxeram elementos que comprovaram o discurso como meio manipulador e

permitiu a Ricardo mostrar-se forte e vencedor, mesmo não obtendo a felicidade de

conviver com sua amada, reforçou-se a idéia de que ao homem, nas relações

amorosas, não cabe ser o perdedor, pois era ele quem oferecia as regras do jogo.

Ao papel desempenhado por Raquel, instituiu-se o ser manipulável, a mulher que

agiu pela emoção, e que foi facilmente seduzida por um bom discurso, por palavras

suaves e mentirosas. Revelou-se um processo real de significação ideológica,

política e cultural, que teve por princípio ser o homem mais forte que a mulher. As

relações de poder foram estabelecidas e mantidas nos discursos do conto.

A partir das análises e dos estudos efetivados, considerou-se que os conflitos

analisados nos contos escritos por mulheres foram construídos a partir de

ideologias, próprias de uma época, que marcaram as relações interpessoais, e

estabeleceram nas relações de poder a condição da mulher e seu papel social. As

análises permitiram também observar o quanto as regras estabelecidas pela

sociedade atuaram como forças que impulsionaram o agir das personagens. Ora

movidas pela paixão, ora pela necessidade em ter seu lugar social garantido, as

personagens buscaram resolver seus conflitos, porém encontraram resistência

nessas mesmas forças, que as detiveram, ao impossibilitar qualquer movimento de

libertação.

111

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