a costureirinha chinesa análise do romance

Upload: antonio-carlos-viard

Post on 04-Jun-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    1/14

    A Costureirinha Chinesa

    Anlise do Romance

    Bildungsroman

    No final do sculo XVIII, Goethe causou profundo impacto em seus contemporneos aopublicarOs anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Dentre os crticos do romance, avultou-se Karl Morgenstern, a quem se deve o termo Bildungsroman para designar o gneroliterrio que foca o desenvolvimento psicolgico e moral do protagonista ou dosprotagonistas, na passagem da adolescncia vida adulta.

    Embora caiba discutir a qualidade da formao moral e poltica que tiveram os jovenspersonagens de Dai Sijie, Balzac e a Costureirinha Chinesa sem dvida um Bildungsroman.Mas um tipo particular de romance de formao, endereado ao corao do pblico francs. Oautor destas notas, mesmo carecendo de referncias abalizadas, ousa afirmar queA educaosentimental de Flaubert o modelo oculto do livro de Dai Sijie. Seno, vejamos:

    1. os dois romances, ao menos em parte, so autobiogrficos;2. h dois amigos, um voltado para a ao e outro mais reflexivo: Frdric e Charles, no caso

    de Flaubert; Luo e o Narrador, no caso de Sijie;

    3. cada livro tem uma revoluo como pano de fundo: a de 1848 para Flaubert, e a RevoluoCultural para Dai Sijie. Ambassegundo os respectivos autorescom finaisdecepcionantes;

    4. Sijie compartilha a tcnica de Flaubert de usar narradores mltiplos. Em alguns trechos,serve-se at do flaubertiano discurso indireto livre, quando o Narrador fala na terceirapessoa ou faz referncia a contextos bem posteriores poca da ao. Seria o Autorocupando o proscnio?

    Nos captulos finais, Sijie multiplica os narradores. Os personagens principais oferecem suaviso pessoal de determinados acontecimentos. Alm deles, um personagem secundriose destaca: o Moleiro. Sobretudo pela qualidade potica de sua interveno, ao descreveros encontros amorosos que testemunhou entre a heronae o herido romance. Alis, um dos poucos momentos nos quais Dai Sijie permite que o lirismo domine o discurso;

    5. em carta a Mlle. Leroyer de Chantepie, de 6 de outubro de 1864, Flaubert assimcomentava a obra recm-iniciada: C'est unlivre d'amour,depassion,mais depassiontelle qu'ellepeutexistermaintenant,c'est--direinactive 1. Ora, paixo inativa exatamente a que liga o Narrador Costureirinha! Quase ao final do romance de Sijie, dizo Narrador, referindo-se jovem:

    ... je me sentais autant trahi que Luo (...) pour elle,je navais t et ne serais jamais quun ami de son ami.

    1Vide Flaubert, Corresp., V, 158, cf. Introduo ed. Portuguesa de A Educao Sentimental. S. Paulo,Nova Alexandria, 2009, p. 9.

    http://www.dicocitations.com/citation.php?mot=esthttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=livrehttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=amourhttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=passionhttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=maishttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=passionhttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=tellehttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=ellehttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=peuthttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=existerhttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=maintenanthttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=est_a_direhttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=inactivehttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=inactivehttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=est_a_direhttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=maintenanthttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=existerhttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=peuthttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=ellehttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=tellehttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=passionhttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=maishttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=passionhttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=amourhttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=livrehttp://www.dicocitations.com/citation.php?mot=est
  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    2/14

    2

    6. A crtica quase unnime ao considerarA educao sentimentalcomo o romance do fimda aventura. Seus personagens so, na verdade, anti-heris, vivendo aqueda de umadinastia, as tribulaes de uma frgil repblica, a ecloso da guerra de classes e, por fim, aascenso de uma monarquia espria como a de Napoleo III

    2.

    A situao da China, um sculo depois, bem diversa. A Revoluo de 1949 e a RevoluoCultural que lhe segue, as duas so o prenncio de uma nova era para a China. Balizam ocaminho que deve seguir uma grande civilizao, vilipendiada por mais de um sculo, pararetomar seu papel de grande potncia. As massas humanas nelas se agitam numa escala

    jamais vista! No so milhares; so dezenas ou mesmo centenas de milhes de pessoasengolfadas na voragem dos acontecimentos. Porm, os personagens de Dai Sijie veem opartejar de um mundo novo como um fim de mundo; como algo que perturba suasvidinhas de meninos mimados da provncia;

    7. os pseudo-heris de Flaubert assim se consolam, no fecho deA educao sentimental: Foio que tivemos de melhor! *Cest l ce que nous avons eu de meilleur!+. Esse mesmo

    esprito melanclico marca, no filme, o reencontro dos dois amigos:Voc a amava, diz Ma, o Narrador ao qual o filme deu um nome. Responde

    Luo: Sim, talvez. S que cada um de ns a amava a seu modo.

    A seu modo, o amor de cada um deles pela Costureirinha era falso. Neles existiaapenas o desejo de posse; como de um objeto cujo nome real os dois jamaisquiseram saber.

    Ritos de passagem

    Conforme lembra Wilma Patrcia Maas3, nos ritos de passagem da adolescncia vida adulta

    estariam sempre presentes trs tipos de experincia: a sobrenatural, a sexuale o convviocom a morte, figurada ou real.

    certo que, hoje, h mais lugar para os mistrios do aqum (de lau-de) que para osmistrios do alm (de lau-del). No livro risvel a interveno das trs feiticeiras chamadas aacudir o heri, derrubado pelo impaludismo. Sequer tm poder para vencer o prprio sono.Porm, o sobrenaturalquase se faz presente, quando o Narrador narra seus sonhos. O pontoalto o delrio que lhe ocorre na mina de carvo, certamente desencadeado pela emanaode gases, muito comum nesses ambientes.

    A experincia sexual a posse da Costureirinha por parte de Luo, simbolicamentecompartilhada pelo Narrador, que v o amigo na posio de macho dominante. Resqucios de

    uma ligao mais prxima entre o Narrador e o amigo transparecem apenas no final do filme,quando eles se reencontram, vrios anos depois. E faz sentido: impossibilitado de amar seresinferiores, restar-lhes-ia o amor narcsico pela sua grei.

    A experincia figurada com a morte uma constante: naquelas grimpas cheias de precipcios,qualquer escorrego poderia ser fatal. Para o Narrador, a experincia real com a morte extremamente traumtica: ele planeja, induz a Costureirinha ao aborto e corrompe o mdicoque o executa. Experincia culposa, essa do macho beta que mata a cria do macho alfa. Embusca de expiao, torna-se criado da Costureirinha e deriva prazer ao ser desprezado pelos

    2Vide Samuel Titan Jr., in bravonline.abril.com.br. Outubro de 2009.3O romance de formao (Bildungsroman) no Brasil. Modos de apropriao. Dissertao de

    mestrado apresentada na UNESP, p.1.

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    3/14

    3

    machesda aldeia onde mora amocinha: Sale laveur de culottes de laPetite Tailleuse, lhe dizem eles...

    Condicionada viso de mundo hojehegemnica, para a qual o trabalho

    algo degradante, prprio das classessubalternas, Wilma Maas se esquecede mencionar o que mais decisivonos ritos de passagem: a execuo dealguma tarefa ingente, dolorosa, cujaexecuo a comunidade considerenotvel. isso que acontece com oQuatro-Olhos: a despeito de sua limitada acuidade visual, aprende a tanger bfalos e arar oarrozal. E proeza notvel: convincente em manifestar seu orgulho pelo aprendizado.

    Segundo o Narrador, a me de Quatro-Olhos teria subornado o Chefe da aldeia onde seu filhose hospedara para liberar o rapaz em apenas seis meses. O suborno poderia ser a condionecessria, mas jamais a condio suficientepara a liberao do jovem. Essa ltima condioera a avaliao positiva do rapaz, por parte do Comit Revolucionrio da Montanha Fnix,reunido em assembleia. Ou a me do rapaz subornou todo o Comit Revolucionrio, ou odirigente imediato do rapaz fez um timo trabalho de convencimento. Haveria uma terceirapossibilidade, mais adiante esmiuada: estariam todos os dirigentes mancomunados para severem livres do maior nmero de reeducandos, no menor prazo possvel.

    Convencer a Comunidade do sucesso de sua reeducao era a concluso do rito depassagem. S ento os jovens poderiam retornar cidade grande, devidamente purificadospelo convvio com os camponeses e libertos dos vcios da vida burguesa. Da porque Luo e oNarrador tiveram de esperar tantos anos, at retornar vida urbana. No eram casos

    simples...No caso especfico do Autor, possvel considerar Balzac et la petite tailleuse chinoisecomoseu rito de passagem para o mundo ocidental. Dai Sijie teve a acuidade de perceber que umromance de formaoem ambiente extico poderia convert-lo em enfant gt, mais aindase contivesse a dose certa de propaganda anticomunista. Se fosse elegante e sbria, melhorainda...

    H um pblico numeroso, mesmo entre pessoas ditas deesquerda, que adora verconfirmadas suas piores suspeitas sobre os comunistas, mais ainda quando se trata deorientais, naturalmente estranhos e perigosos.

    O auge dessa propaganda ocorreu

    quando do massacre da Praa da PazCelestial, , em 1989, no qual teriammorridosegundo The New YorkTimesentre 400 a 800 pessoas. Afoto do rapaz desafiando os tanques at hoje reproduzida exaustopara manter viva na memria daopinio pblica mundial a maldadeintrnseca do regime chins. O moo,cujo nome e paradeiro at hoje sodesconhecidos, foi eleito pela revista

    Timeuma das pessoas maisinfluentes do sculo XX.

    QUATRO-OLHOS TRABALHANDO AOS DOMINGOS

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    4/14

    4

    Esse tipo de propaganda um recurso quase infalvel para obter citaes favorveis, ganharprmios literrios e tornar-se um best seller, com o establishiment editorial trabalhando afavor. Dentre os comentrios favorveis, cabe destacar o de The New York Times Book Review,para o qual o livro potico e tocante (...) as descries da vida em meio a esses tempos elugares inslitos so to envolventes que o leitor termina querendo mais.

    A nosso ver, a obra nada tem de potica. E, de tocante, s o tratamento generoso dispensadopelos camponeses da montanha Fnix do Cu aos filhos dos inimigos do povo. Generosidadeque o Autor no consegue esconder, a despeito do dio e dos preconceitos de classe queescorrem pelas bordas do livro.

    Eram perversos os camponeses?

    Como podiam ser perversos os camponeses, diante de sua crena infantil na possibilidade dereeducar os filhos dos inimigos do povopor meio do exemplo e da exortao? Veja-se que,em nenhum momento, no livro ou no filme, h registro de violncia fsica contra osreeducandos.O que se v sua plena aceitao e livre circulao pela aldeia e pela regio.

    No auge de seu ardor revolucionrio, ao queimar o livro de culinria encontrado na bagagemdos rapazes, assim fala o Chefe da aldeia, que o filme torna ainda mais nefando:

    O presidente Mao mandou-os aqui para serem reeducados, no para fazerembanquetes reacionrios. Na nossa montanha, trabalharo duro e comero repolho

    e milho *como ns+.

    Os camponeses no aprenderamcomo a burguesiaa reeducar dissidentes por meio dafome, da misria e da excluso. Ou a servir-se, no caso dos recalcitrantes, de mtodosdesenvolvidos aps a Comuna de Paris, aperfeioados pelos pieds-noirs na Arglia e maisrecentemente pelos generais argentinos.

    Que se lance luz sobre a mistificao:

    Est dito no livro que as aldeias mais ricas podiam receber cinco ou mais jovens; mas umaaldeia pobre como a descrita pelo Narrador s podia receber dois4. Ora, receber, no caso, sinnimo de sustentar.

    Os recm-chegados nada entendiam das lides rurais e s trariam prejuzos com sua ignornciae baixa produtividade. Sob o ponto de vista estrito, no pagavam o que comiam. Ou seja,sequer satisfaziam o princpio bsico que sempre regeu a escravido.

    Corta o corao das leitoras mais gentis o relato dos jovens trabalhando na mina de carvoinsegura e insalubre. No entanto, o livro e/ou o filme mostram que:

    em vez de imposio do Chefe, houve negociao prvia, com Luo e o Narrador aceitandotrabalhar na mina para melhorar sua avaliao;

    4Este escriba trabalhou quase 10 anos em projetos de desenvolvimento sustentvel no interior da

    Bahia. E testemunhou quo difcil vida de comunidades situadas em lugares ngremes, na qual invivel o uso de veculos, tratores e outros meios mecnicos que permitam substituir o trabalhomanual e o dorso humano.

    Receber os filhos dos inimigos

    do povoera um nus para as

    aldeias!

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    5/14

    5

    do jeito que trabalhavam os dois rapazes, sua produtividade era mnima; depois que Luo, ao final da sexta semana, contraiu impaludismo, o estgio dos dois parece

    ter sido cancelado.

    O estgio dos rapazes na mina foi fixado em dois meses. Dois meses? Mas foi o mesmotempo que mile Zola usou para trabalhar, comer, beber e conviver com mineiros... numa

    mina de carvo, no final do sculo anterior! Enquanto Zola usou esse tempo comoaprendizado para escrever Germinal, uma obra prima, uma ode ao trabalho, nossos dois tristesheris aprenderam ater medo e Luo teve o impaludismo por prmio.

    O caso do impaludismo serve para evidenciar como os camponeses, mesmo os mais atrasadosdentre eles, que eram os mineradores, no nutriam dio pelos rapazes. O tratamento-padrona montanha era aoitar as costas do doente com ramos de pessegueiro e salgueiro. Depoisque um dos mineiros se cansou de vergastar Luo, nenhum outro se habilitou. Viu-se oNarrador constrangido ao papel de verdugo.

    No filme, mais propagandstico, Dai Sijie carrega nas tintas: em vez de um mineiro qualquer,pe o Chefe da aldeia a jogar Luo na gua fria (no livro, a possibilidade fora afastada, diante do

    risco do menino morrer afogado) e a vergastar as costas do rapaz at cansar-se.

    Quanto a carregar merda nas costas, issoos camponeses chineses aprenderam afaz-lo desde tempos imemoriais. Paraeles, sempre houve uma relaobiunvoca entre comer e defecar. Ensinaressa verdade aos jovens aburguesadosera importante para que aprendessem apraticar a verdadeira humildade; aquelaque deriva da aceitao de nossa realcondio humana.

    Para os jovens aburguesados era umtratamento de choque, porque estessempre tiveram algum das classes ditasinferiores para cuidar de seusexcrementos.

    Dai Sijie no se inspirou em Zola. Seus heris detestavam trabalhar!

    Quando a Costureirinha aparece na vida de ambos, os rapazes tm todo o tempo do mundopara visit-la na distante aldeia de Olho do Cu. Durante seu namoro com a jovem sem nome,como Luo conseguia ausentar-se durante tanto tempo? Por sua vez, como o Narrador pde

    servir de criado da Costureirinha, ao longo do ms inteiro em que Luo esteve na cabeceira dame?

    O Narrador credita seus desaparecimentos ausncia do Chefe da aldeia. Ora, qualquerpessoa com responsabilidade de liderana, mesmo a mais inculta, sabe como manter-seinformado durante sua ausncia. Caso contrrio, j teria deixado de ser lder. Alm disso, nocaso de uma aldeia minscula, como evitar que a vida alheia seja compartilhada por todos?

    Como passaria despercebido um caso amoroso, a envolver uma das meninas mais lindasda regio, ainda mais a filha (segundo o livro) ou neta (segundo o filme) de uma pessoa deelevada posio social?

    O que, diabos, faria um obstetra numa aldeia, se no havia nenhum parto para cuidar? Issono seria notado pelas mulheres, em sua maioria clientes desse mdico?

    Como houve tempo para ler os livros que enchiam a valise roubada?

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    6/14

    6

    A resposta a essas perguntas uma s: o Chefe e os aldees providenciavam o necessrio paragarantir o bem-estar de seus hspedes, assim como fechavam os olhos aos pecadilhos dos dois

    jovens.

    Aos poucos o Chefe tomou conscincia que ele e os seus precisavam conviver com doisrapazes que jamais seriam reeducados com sucesso. No filme, o momento marcante do

    amadurecimento dessa conscincia foi a cerimnia em homenagem a Quatro-Olhos. V-seclaramente a expresso desolada do Chefe da aldeia, quando ele ouve que somente 3 % dosfilhos dos inimigos do povo iriam, algum dia, retornar cidade grande.

    Mas o Chefe se anima, quando presta atenona conversa de dois homens que se achavam nafileira de trs, comentando a programao defilmes na cidade mais prxima. Num timoentendeu o que podia fazer com os dois rapazessob sua guarda: convert-los em contadores dehistrias para a aldeia.

    A respeito, diz o Narrador, atribuindo apenas aLuo o talento que ele tambm partilhava: Leseul homme au monde avoir vritablement

    apprci ses talents de conteur, jusqu le rmunrer gnreusement, fut le chef de notrevillage, le dernier des seigneurs amateurs de belles histoires orales . (p.29)

    Da porque que a aldeia foi indenizada pelos dias que os jovens ficaram sem trabalhar,contando histrias ao Alfaiate. Ora, no era justo que a aldeia se privasse do nico servio queos dois rapazes sabiam fazer bem, em benefcio exclusivo do ilustre visitante.

    Com o tempo, os camponeses se tornaram lenientes em relao queles jovens cujareeducao perceberamimpossvel, mas que no podiam devolv-los sob pena de

    desagradar o presidente Mao. Carregaram o fardo anos a fio, at que a diminuio do ardorrevolucionrio permitiu mand-los de volta cidade grande...

    Desqualificando o inimigo de classe

    Nos anos 1940, um jesuta francs estivera nas cercanias da montanha Fnix do Cu. Na poca,recomendaram-lhe evitar a regio, pois os camponeses locais seriam perigosos cultivadores depio que, nas horas vagas, se divertiam assaltando os viajantes. Embora no se cultive pio,mas papoulas, o Narrador pespega a seus hospedeiros o rtulo usado pelo padre, vendo oChefe da aldeia como um antigo facnora, autoritrio, ignorante e repulsivo. Ao examinar um

    inocente violino, o Chefe approcha son nez du trou noir e reinfla un bon coup. Plusieurs grospoils, longs et sales, qui sortaient de sa narine gauche, se mirent grelotter . E d umveredito, capaz de escandalizar at um leitor que no aprecie msica erudita: Il faut lebrler ! (p. 11).

    Ora, a China pr-revolucionria, alm de campo de pilhagem das potncias imperialistas, era opasto de senhores de guerra, com seus exrcitos particulares e guerras intestinas, quemantinham os camponeses em clima de terror permanente.

    O respeito dos moradores da aldeia pelo presidente Mao no era aquele de criminososarrependidos. Era a venerao de camponeses pobres libertados desses senhores de guerra

    que os submetiaminclusive suas mulheresa violncias inauditas. Tais camponeses noficaram pobres porque foram impedidos de cultivar papoula. Muito pelo contrrio, ficarammenos pobres e se viram livres de uma prtica perigosa, sempre associada violncia e explorao.

    OCHEFE DA ALDEIA EM DESALENTO

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    7/14

    7

    Luo v nessa venerao uma oportunidade de enganar os crdulos camponeses e evitar que oviolino seja queimado. O golpe do tipo Mozart pense au prsident Mao s poderia ocorrera um estamento milenarmente condicionado a enganar camponeses. Para convencer o Chefeacerca da utilidade do violino bastaria tocar uma msica revolucionria, como o Narrador feztempos depois, na noite em que Luo foi tomado de insnia.

    Mas os garotos citadinos no param nessa primeira mentira! Eles tm uma necessidadepremente de enganar a todos... o que ocorre no caso da Costureirinha, cuja curiosidade acesa, quando o Narrador lhe diz que havia um galo de verdade dentro do despertador. E DaiSeiji usa o mesmo relgio para enganar at o Leitor, contando que os dois rapazes adiantavame atrasavam com tanta frequncia o despertador, a ponto de perderem a noo do tempo.

    Ora, camponeses acostumados a consultar o Sol e a observar o transcurso do tempo poderiamser enganados uma vez. Sistematicamente, jamais! Tanto isso verdade que, anos depois,quando Ma, o Narrador, volta aldeia, constata que o antigo relgio, nas mos do Chefe, estatrasado apenas 20 minutos.

    Ainda sobre o relgio, nota-se o prazer do Narrador em comentar os improprios que o Chefe

    dirigia aos aldees, quando os ponteiros marcavam nove horas. Pobre menino: em primeirolugar, no entendeu o papel daquele instrumento mecnico na suavizao das relaes demando: eram os ponteiros do relgio e no o Chefe que determinavam o incio os trabalhoscomunitrios. Em segundo lugar, se a ida aos campos era s 9h, os camponesesquecostumam acordar junto com a auroratinham tempo suficiente para cuidar dos afazeresdomsticos; ou seja, no viviam num mundo de servido. Em terceiro lugar, a maneiragrosseira de o Chefe falar com seus iguais nada tinha de ofensiva, muito pelo contrrio. Quem

    j frequentou os campos ou, ao menos, um canteiro de obras sabe disso:

    Na fico, indispensvel a cumplicidade permanenteentre o criador e o expectador. Essa cumplicidade mantida enquanto o criador respeita o que plausvel.Um caso clssico, em histria em quadrinhos, o rolocompressor que passa sobre a pessoa e a achata comouma folha de papel, bastando uma sacudidela paraque volte ao normal.

    A histria da obturao do dente viola o plausvel nocontexto de uma histria real que pretende ser umadenncia contra o totalitarismo.

    No propsito de denegrir o Chefe da aldeia, Dai Sijie o coloca na posio simultnea dechantagista e covarde. Como se no bastasse, a vingana vem a cavalo: Luo destri suaautoridade ao amarr-lo e o Narrador o tortura, diminuindo a rotao da broca, ao pedalarlentamente a mquina de costura.

    Por mais que o leitor se solidarize com os rapazes, no h como aceitar a transformaoimediata da mquina de costura em broca dentria. Na madrugada, o Alfaiate sai da casa dosrapazes, onde ouvia a histria reacionria, e vai acordar a filha para que esta ajude os jovens

    na obturao. Quando a moa chega, a parafernlia est pronta para funcionar!

    O xingamento entre pessoas de classes sociais diferentes umademonstrao de dio.

    O xingamento entre iguais uma demonstrao de afeto.

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    8/14

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    9/14

    9

    Transparece cristalino o dio de classe que os dois jovens votavam aos camponeses, quandoeles falam da Costureirinha. Desde o primeiro momento, Luo e o Narrador observam que elaera indigna de ser amada:

    Quand elle riait, ses yeux rvlaient une nature primitive, commeceux des sauvageonnes de notre village. Son regard avait lclat des

    pierres prcieuses mais brutes, du mtal non poli.

    Que somente iria tornar-se interessante depois de educada:

    Avec ces livres, je vais transformer la Petite Tailleuse.Elle ne sera plus jamais une simple montagnarde.

    No se v, ao longo do namoro de Luo com a Costureirinha, um verdadeiro sentimento deamor. O que lhe interessa, to-somente, a posse. De lamentvel baixeza a cena em que Luomostra, ao amigo, folhas de gingko empapadas com o sangue virginal da Costureirinha (p. 76).Ao possu-la como um animalcomme les chevaux,diz eled mais uma prova de seudesprezo pela gente daquele lugar.

    O ponto alto acontece quando o Pigmaleo de araque percebe-se abandonado. Ela, alis, implacvel com aqueles risveis rapazes, mais ainda pelo que grita por ela, oferecendo-lhebatatas assadas. Batatas? Ela teria quantas quisesse na cidade grande...

    Diante do sentimento de perda, o que fazem os candidatos a intelectuais? Num auto de f,queimam os livros ao som do violino. Sequer os detm a conscincia de que os livros poderiamser teis a outros jovens que viviam em situao anloga, na montanha de Fnix do Cu. Ou aeles prprios, nos anos vindouros.

    Em todo o livro, no h um s ato de bondade ou de altrusmo da parte dos dois jovens. Etrabalhar para que, se Luo e o Narrador podem, sempre, roubar de bons lgumes dans lespotagers des paysans?

    Dentre as maldades, a maior a que se v, no fecho do livro, quando Lu conta ao Narrador, oque teria sido a ltima frase da Costureirinha:

    Elle ma dit que Balzaclui a fait comprendre une chose : la beautdune femme est un trsor qui na pas de prix.

    A Costureirinha realmente disse isso? Em que sentido? Que iria cidade grande prostituir-se?Convenhamos: de um cavalheiro jamais se deveria esperar qualquer ato ou palavra quepudesse depor contra a honra de uma dama, mais ainda se a tiver amado...

    Portanto, estamos de acordo: nem Luo nem o Narrador so cavalheiros!

    Quando o enfant gt comea a incomodar

    Quando foi anunciada a primeira visita de Sting ao Rio, a galera vibrou: - Cambada, Sting vema!Que legal!

    Sting, todo animado com o sucesso, vem uma segunda vez. A galera vibra com as fotos docantor ao lado do cacique Raoni, mas no com o mesmo entusiasmo. Sting est para chegarmais uma vez. A galera exclama: - P, de novo?

    Algo semelhante est a ocorrer com Dai Sijie, na Frana. Segundo notcias recentes, o Autorprossegue em seu papel de propagandista poltico de direita, mas enfrentamesmo naimprensa conservadora francesaum problema srio: a fadiga do material.

    Aps o sucesso do livro e do filme sobre a Costureirinha, Dai Sijie sentiu-se estimulado aproduzir mais e mais.

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    10/14

    10

    Dentre outras obras, lanou Lacrobatie arienne de Confucius, em 2009. O crtico Yves Kedrel,de Le Figaro, caiu de pau (a tomb bras raccourcis). Depois de comentar queA Costureirinhaera une bluette pour mamies dpressives , prosseguiu : Je ne supporte plus, enlittrature, le bien vu. Les petites sagacits, les petites astuces de narration, les petites feintes,les petites roublardises du rcit. Les chausse-trappes bien trousses, les gentils coups de

    thtre, les personnages bien historiques et superbement extrme-orientaux. Bref, c'est de laworld littrature: de la Chine pour Franais, des chinoiseries pour touristes littraires . Nottulo de seu artigo, a crtica demolidora: trata-se do Paulo Coelho chins.

    A respeito de seu ltimo livro, Trois vies chinoises, de 2010, disse o crtico Frdric Beigbeder,tambm em Le Figaro :

    Le peuple chinois que nous montre Sijie n'est pas compos demilliardaires mais de clochards vivant dans des conteneurs rouills,

    des rservoirs pollus ou des prisons vtustes. Tout ceci seraitformidable[notre accent]...

    E prossegue o crtico do jornal da direita que se considera a mais sria da Frana : ... s'il n'y

    avait ce petit problme : Dai Sijie veut crire directement en franais (...) lire Dai Sijie donnel'impression d'tre trs fatigu. On relit plusieurs fois ses phrases sans les comprendre, onculpabilise, on se sent idiot, on ressaie le lendemain, toujours sans rsultat. Si la lecture deBalzac est recommander aux demoiselles, a contrario celle de Sijie est proscrire : cet auteurrisque de dgoter les petites lectrices franaises et de les renvoyer leur messagerieBlackBerry.... Dai Sijie crit peut-tre en franais, mais il aurait tout de mme besoin d'un bontraducteur !

    Em suma, a direita francesa que se considera esclarecida est a dizer:Prezado Dai Sijie, osenhor j nos foi til. J teve seus 15 minutos de fama. Foi regiamente pago pela suapropaganda anticomunista. Embora carregue nas tintas, tentando escrever um novo Lesmisrablesambientado na China, o senhor nos cansou. No queremos mais da mesma coisa.

    No precisamos mais aterrorizar nossas vovs com os fantasmas do comunismo. Estamos embusca de algo mais vibrante.

    ACVAnlise do Romance 112/12/2013

    A Revoluo Cultural

    No final da dcada de 1950, a Unio Sovitica havia reconstrudo sua indstria pesada, combase nas tecnologias mais avanadas. Com o lanamento do Sputnik em 1957, era incontestesua liderana na rea espacial, dentre outras reas de ponta.

    Na poca, alguns economistas soviticos mostraram que o desafio do momento era estimulara produo de bens de consumo, o que exigiria ousadas reformas, a exemplo dadescentralizao do planejamento e o uso de estmulos financeiros, a beneficiar os

    administradores e operrios das fbricas que se revelassem mais produtivas.

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    11/14

    11

    No artigo publicado no Pravdade 14 de janeiro de1966, o economista sovitico E. Liberman afirmava:

    Los comunistas no luchan por hacer felices a

    las generaciones venideras a cambio delrenunciamiento asctico de las presentes, sino

    llaman a edificar un futuro feliz para nuestrosdescendientes, haciendo a la vez todo posiblepara que la vida sea ms alegre y rica ya hoy

    da, para nuestros contemporneos.5

    Ocorre que E. Liberman, O. Nekrasov, A. Volkov eoutros defensores da reforma econmica foram

    progressivamente afastados das decises antes do final dos anos 1960. A oportunidade foiperdida. Enquanto a burocracia sovitica, Leonid Brejnev frente, se perpetuava no poder, adescentralizao econmica era progressivamente adiada, os bens de consumo continuavamracionados e a economia sovitica entrava em declnio irreversvel.

    Na China, que seguia criteriosamente o exemplo sovitico, na dcada de 1960 j era sensvel opoder concentrado pelo estamento burocrtico. O alarme no demorou a soar: via-se aRepblica Popular reproduzir uma intelligentsiaem tudo semelhante quela que governara oEstado chins durante a dinastia Qing e que levara a China dominao estrangeira e aodescalabro. Conforme conta Giovanni Arrighi, foi sobre esse estamento que se abateu aRevoluo Cultural, minando gravemente a base burocrtica do poder e os privilgios de seus

    quadros e autoridades. 6

    A essa intelligentsiaderrotada e humilhada pertenciam os pais de Luo, do Narrador e deoutros milhares de jovens encaminhados para reeducao junto s comunidades

    camponesas.

    Hoje se sabe que coube s autoridades chinesas a iniciativa em provocar, em maro de 1969, oincidente do Rio Ussuri, na fronteira sino-sovitica. A morte de dezenas de soldados dos doispases cortou o cordo umbilical que unia a China Unio Sovitica e preparou suaaproximao com os Estados Unidos, concretizada com a visita de Richard Nixon China, em1972.

    Ao assim proceder, Mao teria mudado o ulterior desenvolvimento poltico e econmico de seupas, impedindo que a China acompanhasse a Unio Sovitica em seu declnio.

    Pode-se questionar, a essa altura, que a China escolheu um caminho subalterno, ao seconverter na fbrica do mundo, concentrando em seu territrio a classe operria que aburguesia dos pases desenvolvidos tanto queria livrar-se.

    Cabe lembrar que:

    1. o papel de fbrica do mundo foraescolhido por Lnin ao trmino da guerra civil, em1921, quando lanou a NEPNova Poltica Econmica e abriu a Unio Sovitica aoinvestimento estrangeiro. Era uma estratgia para recompor a classe operria, dizimadapor anos seguidos de conflito, e torn-la a mais numerosa no pas dos sovietes. Tal polticafoi abrupta e precocemente interrompida por Stalin na dcada de seguinte, via totalestatizao da indstria e coletivizao forada da agricultura.

    5

    Vide Liberman e outros, inU.R.S.S.: la actual reforma econmica. Buenos Aires, Juarez Editor, 1968.Trata-se de um livro raro e muito precioso.6Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do sculo XXI. S. Paulo, Boitempo, 2008, p. 371.

    Mao e Nixon em 1972

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    12/14

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    13/14

    13

  • 8/13/2019 A costureirinha chinesa Anlise do romance

    14/14

    14

    Il est vrai que, pour les naturels des Indes orientales et occidentales, les avantages commer-ciaux qui peuvent avoir t le fruit de ces dcouvertes [ont t perdus et noys dans un ocan

    de calamits qu'elles ont entranes aprs elles. Toutefois, ces calamits semblent avoir tplutt un effet accidentel que le rsultat naturel de ces grands vnements. A l'poqueparticulire o furent faites ces dcouvertes, la supriorit de forces se trouva tre si grandedu ct des Europens, qu'ils se virent en tat de commettre impunment toutes sortesd'injustices dans ces contres recules. Peut-tre que dans la suite des temps les naturels deces contres deviendront plus forts ou ceux de l'Europe plus faibles, de sorte que les habitantsde toutes les diffrentes parties du monde arriveraient cette galit de forces et de couragequi, par la crainte rciproque qu'elle inspire, peut seule contenir l'injustice des nationsindpendantes, et leur faire sentir une sorte de respect des droits les unes des autres.

    Adam Smith, Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations (1776).

    Traduction de Germain Garnier, 1881, partir de ldition revue par Adolphe Blanqui en 1843,

    p .188.http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html

    A l'poque particulire o furent faites [la dcouverte de l'Amrique et celle d'un passage parle cap de Bonne-Esprance], la supriorit de forces se trouva tre si grande du ct desEuropens, qu'ils se virent en tat de commettre impunment toutes sortes d'injustices dansces contres recules. Peut-tre que dans la suite des temps les naturels de ces contresdeviendront plus forts ou ceux de l'Europe plus faibles, de sorte que les habitants de toutes lesdiffrentes parties du monde arriveraient cette galit de forces et de courage qui, par lacrainte rciproque qu'elle inspire, peut seule contenir l'injustice des nations indpendantes, etleur faire sentir une sorte de respect des droits les unes des autres.

    http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.htmlhttp://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.htmlhttp://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.htmlhttp://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html