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Rafael Alves Rezende A Corrida dos Ratos Brasil em guerra CAPÍTULO 7 Agosto 2016

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Rafael Alves Rezende

A Corrida dos Ratos

Brasil em guerra

CAPÍTULO 7

Agosto

2016

VII

Guerra

Eu estava atordoado com o relato e já tinha fumado uns três ou quatro

cigarros enquanto o escutava e aquilo tinha me embrulhado o

estômago, sem falar na ansiedade que me consumia por causa da

revolução, que estava a poucas horas de acontecer; apesar do cansaço

físico, meu sono tinha desaparecido e agora Dom me lançava uma

questão insolúvel, pelo menos às minhas percepções. Dom esfregava

os olhos e passava as mãos na cabeça, parecia esgotado e o dia estava

prestes a amanhecer; estávamos como cães vadios encostados no

canto, sem reação e assim ficamos durante instantes intermináveis.

Logo que amanheceu, Maria entrou acelerada no quarto, com uma

energia vibracional muito mais intensa que a nossa, parecia ter tomado

uma garrafa de café e nos olhou com um olhar de desaprovação que só

as mulheres sabem dar; fez cara de nojo e gritou, “Que porra é essa?

Que porra é essa? Vocês dois estão um lixo! Parecem a foto de Che

Guevara morto. Levantem e vamos fazer a revolução, ou vamos

perder o momento certo e vai tudo por água abaixo”.

Maria era determinada e agora estava mais determinada do que nunca!

Estava prestes a se tornar a primeira-dama da revolução e não deixaria

essa chance escapar jamais; sua mãe, desde a infância quis

transformá-la numa princesinha: vestia a pequena Maria como uma

burguesinha bem nascida, levava-a à Disney desde o berço e fê-la

amar o Mickey e iam juntas ao shopping para realizarem, desde a mais

tenra idade, o ritual sagrado do consumo; colocou-a na aula de

etiqueta para que se portasse com refinamentos inacessíveis aos

homens do povo, obrigou-a a entrar no curso de Direito porque queria

transformá-la numa juíza, criou-a na igreja para que se casasse

virgem, com um belo e bem sucedido rapaz, que professasse a mesma

fé na religião e no dinheiro.

Assim como toda a classe burguesa, Maria fora criada para acreditar

que a miséria era uma fatalidade, e não um esquema bem montado

para manter todo o povo com medo de chegar a essa situação-limite, e

jamais atentar contra os padrões estabelecidos; fora criada para

acreditar que um edifício bem construído era fruto da competência do

arquiteto, e não das mãos dos peões que trabalharam meses sob o sol

para levantar cada alicerce, cada laje, cada parede, carregando sacos

de pedra e cimento nas costas; fora criada para viver como um

parasita, delegando aos empregados as tarefas mais simples, como

lavar um prato, arrumar um quarto, trocar um pneu, etc.; fora educada

a viver para adquirir bens e objetos, a existir em nome dos benefícios,

dos confortos, das garantias e das facilidades e a buscar vantagens

pessoais em todas as situações; a típica mentalidade burguesa dos

‘bem-nascidos’.

Os planos de sua mãe tinham fracassado, pelo menos de uma certa

maneira: seis meses após seu ingresso no curso de direito, numa

faculdade renomada e caríssima, abandonou o sonho da mãe pra fazer

Ciências Sociais na USP; mas é claro que a maioria de seus amigos

também era proveniente das classes média e alta paulistana, todos

educados com a mesma mentalidade dela e com os mesmos

privilégios; por mais que lutassem contra os traços de sua formação

familiar, carregariam sempre consigo as marcas dessa domesticação

cultural.

E foi o que aconteceu com Maria, que apesar de tentar renegar os

valores e princípios que foram os pilares de sua educação familiar,

apenas direcionou-os para outro lado, oposto ao gosto de sua mãe,

provavelmente como um exercício de autoafirmação; encravou esses

mesmos princípios em terreno próprio: encontrou um homem bem

sucedido, mas era ignorante e bandido, vindo da favela mas com a

chance de se tornar um dos grandes nomes da política brasileira após a

revolução; Maria continuou, pelo menos na minha percepção, com

aquele oportunismo ensinado por sua mãe, mas talvez ela tenha

evoluído o oportunismo a um novo nível e ao invés de se adaptar às

exigências do mundo para se dar bem, queria fazer o mundo se

adaptar às suas exigências.

Ela se dizia marxista para legitimar inconscientemente sua ação

revolucionária, mas ela queria apenas conquistar o poder, e jamais

entregá-lo ao povo, como qualquer marxista burguês... e na USP está

cheio de marxista burguês. Ela queria que sua mãe se orgulhasse dela,

mas isso só aconteceria se ela se tornasse rica e poderosa, e Maria

estava prestes a jogar isso na cara de sua mãe, com todo o rancor,

quando tomássemos o poder.

Já tínhamos produzido o vídeo explicativo da revolução e o

transmitiríamos ao vivo para o mundo inteiro, a partir de duas grandes

redes de televisão aberta, no horário da abertura das Olimpíadas; era

um vídeo pedagogicamente explicado, com legendas em inglês, de

modo que as pessoas do mundo inteiro, em todas as classes e níveis

socioculturais, pudessem compreender claramente nossos objetivos,

nossas intenções e nossos métodos.

Dom sabia ser claro e persuasivo e Maria aparecia junto com ele no

vídeo, para criar uma identificação com o público feminino e mostrar

que nossa intenção era incluir todas as parcelas da população em

nosso governo revolucionário. Sabíamos que a imprensa do mundo

todo repercutiria a informação de modo massivo e em tempo real e

estaríamos instantaneamente sob a ameaça de uma invasão

estrangeira, e não tínhamos a menor estrutura contra um ataque

externo. Dom confiava em sua diplomacia e em seu carisma, mas

agora, com aquela cara desfigurada e o ânimo fragmentado, Dom

precisava mais do que nunca da atitude focada, decidida e quase

fascista de Maria pra fazer a revolução acontecer.

Dom levantou-se do chão, ergueu a cabeça e falou bem alto: “Cansei

da Poesia! Agora vou traficar armas na África!, foi o grito de

libertação de Rimbaud contra o circo literário... e eu... eu grito que

cansei do aquário da Universidade! Agora eu vou nadar com os

tubarões!” e olhou determinado pra Maria, que ligou os chuveiros de

dois banheiros e mandou que entrássemos imediatamente e

recuperássemos nossas forças, e disse isso já puxando-nos pelo braço.

Saímos do banho e ela tinha preparado um balde enorme e cheio de

gelo pra enfiarmos a cabeça e sairmos cheios de energia pra fazer a

revolução. Mergulhei a cabeça no balde e meus pensamentos se

aceleraram absurdamente, senti novas sinapses desbravando meu

cérebro com violência e minhas pupilas dilatando como se o universo

fosse penetrar meus olhos. Tomei uma lata de energético gelado que

Maria nos trouxe da geladeira e ainda adicionou algumas pedras de

gelo, acendi o primeiro cigarro do dia e saí para o quintal.

Maria estava com Dom porque sabia que ele precisaria de ajuda; Dom

era genial em muitos aspectos, mas sem a presença de Maria naquele

momento dos planos, a revolução não se concretizaria ou seria um

desastre. Ela não foi à Brasília acompanhar Marcinho, seu namorado,

pois sabia que Marcinho, apesar de limitado intelectualmente, saberia

realizar sua tarefa de modo impecável, pois já tinha tomado as bocas

de fumo da grande Vitória; Marcinho já tinha experiência em fazer

guerra, e em Brasília ele apenas a realizaria de modo mais radical e

sério, com uma equipe bem treinada e sem medo de morrer.

O que eu, Dom e Maria tínhamos a realizar no Rio de Janeiro era mais

complexo e importante, pois tomaríamos as redes de TV pra nos

comunicarmos ao vivo com o mundo todo, além de confundirmos a

polícia com várias equipes realizando diferentes ataques em diferentes

lugares do Rio, ao mesmo tempo, e assim desviar o foco de nosso

principal alvo, que eram as redes de TV. Maria veio conosco ao Rio

porque sabia que precisaríamos dela e porque queria muito ser a

primeira-dama da revolução em rede nacional e internacional; queria

ter certeza que não fracassaríamos na realização dos planos.

Dom saiu do banho ainda angustiado e aquele semblante começou a

irritar Maria, apesar dela se manter calada. Ele olhou-a nos olhos e

começou a dizer, “Qual o valor do poder humano, do poder político?

Qual o valor das riquezas produzidas pelo homem? Maria, o que nos

motiva a chegar onde queremos chegar? Maria, não se entorpeça com

o poder, apenas me responda essas questões pra que eu possa fazer a

revolução em paz!”, e Maria se irritou definitivamente e partiu para o

ataque verbal, com toda a sua determinação: “Porra Dom, você é um

frouxo do caralho! Depois de cinco anos organizando o Movimento e

preparando a revolução, depois de toda a energia gasta nesse

empreendimento, agora que estamos prestes a tomar o poder você vai

se acovardar, vai vir com essa conversinha de consciência? Vai tomar

no cu!”; Maria se aproximou de Dom, chacoalhou seus ombros e,

“Hoje é o grande dia! Vamos tomar o poder e fazer do nosso jeito,

vamos fazer história... Os homens jamais se esquecerão de nós,

estaremos em todos os livros de história e seremos inspiração pra

muitos outros povos que querem derrubar seus líderes corruptos e

escravistas! Dom, eles são o crime organizado, e nós vamos derrubá-

los!”.

Maria viu que o ânimo de Dom não melhoraria em pouco tempo, e

sabia que mesmo com aquela frouxidão momentânea, Dom era

essencial para o sucesso da revolução, então tentou argumentar já

quase em desespero, porém mantendo-se controlada e, “Dom, você

está parecendo aqueles intelectuais frouxos que tanto criticou quando

começamos o Movimento. Você sempre quis transformar essa porra

desse país, sempre quis fazer justiça aos desgraçados... lembre-se dos

planos que temos pra libertar a mentalidade do povo; lembre que

mandaremos imprimir e distribuir gratuitamente uma infinidade de

livros para o povo, entre eles Shakespeare, Dostoievski, Foucault e um

monte de gente boa... proibiremos essa publicidade criminosa que se

pratica abertamente e sem pudor, aprisionando as consciências e

transformando a mentira num sucesso, mandaremos prender os

corruptos e faremos justiça na prática e não apenas nos artigos

científicos ou meios de expressão da internet...”.

Maria acariciou o rosto barbado de Dom, olhou-o com ternura e disse

“Dom, você vai conquistar o Brasil e o mundo com seu carisma, sua

genialidade... imagine-se falando com o mundo todo, podendo

discursar de modo envolvente, como você sabe fazer, e levar as

pessoas ao entendimento do mundo ao seu redor. Dom, as pessoas se

apaixonarão por você... foi por isso que me apaixonei por você”, e

Dom, ao ouvir isso, acariciou o rosto de Maria correspondendo ao

carinho e ambos se olharam por alguns instantes. Dom, apesar de

saber de seu namoro com Marcinho, e de certa forma respeitar a

relação, não resistiu e perguntou-lhe, “E você ainda sente algo quando

me vê ou quando chega perto de mim?”, e Maria sabia que a resposta

poderia mantê-lo naquele estado de frouxidão e passividade ou talvez

arrancá-lo daquele limbo; deu um sorriso de cumplicidade, mostrou-se

receptiva e, “Você tem uma capacidade enorme de perder o foco... por

que quer saber? Apenas pra ter certeza que todas as pessoas ao seu

redor estão fascinadas por você? Você sempre teve essa necessidade, é

verdade, mas isso importa agora?”.

Dom olhou-a e viu a receptividade em seus olhos, como só uma fêmea

experiente sabe olhar, e a beijou; beijaram-se demoradamente e com

uma intensidade que foi aumentando; esfregaram-se com paixão,

arrancaram as roupas um do outro e transaram intensamente, sentindo

os cheiros, as energias e experimentando todas as possibilidades

sensíveis daquele momento. Há tempos não sentiam essa energia

revigorante que uma trepada sincera pode trazer; entregaram-se ao

fascínio que um exercia sobre o outro, e mesmo Maria, que ia viver

aquele momento apenas pela funcionalidade que traria à revolução,

entregou-se aos resquícios de paixão que ainda sentia por Dom e os

ânimos de ambos foram renovados.

Maria abriu um sorriso sincero como não fazia há algum tempo e

sentiu uma sensação de vida genuína percorrer seu corpo e instalar-se

em sua mente, e pensou sobre a força da conexão entre as pessoas;

mesmo essa conexão descompromissada e infiel produzia efeitos

fantásticos dentro de si, e imaginou um contexto em que os humanos

se amassem mutuamente, se respeitassem mutuamente, e por alguns

instantes seus olhos marejaram. Estava tão embrutecida pela obsessão

da revolução, que aquela sensação tinha quase se extinguido de seu

interior; naquele momento ela percebeu que ainda havia vida genuína

dentro de si.

Dom sentiu suas energias vitais voltarem completamente, como se há

menos de cinco minutos ele não estivesse completamente prostrado e

entregue. Sentiu as forças do universo apossarem-se dele e já estava

disposto a conquistar o mundo inteiro, mesmo às custas de sua alma.

Dom e Maria conectaram-se de modo sinérgico durante as horas

seguintes, e acredito que esse tenha sido um dos fatores essenciais

para o sucesso da revolução, talvez uma dessas coisas inexplicáveis

que Nelson Rodrigues cismava enxergar no futebol, a visita do

imponderável. Dom e Maria sabiam o que tinham que fazer e

simplesmente fizeram, sem questionar o que quer que fosse em suas

consciências; eu apenas me adaptei a essa lógica, pois funcionava tão

avassaladoramente bem que não havia outra possibilidade que não

fosse seguir aquele fluxo.

Dom chamou nossa equipe, formada por vinte soldados além de nós

três, organizou-os e preparou-os pra sair em seis carros e dar uma

volta de reconhecimento no perímetro que faríamos até as redes de

televisão; já tínhamos mapeado as delegacias próximas, e elas seriam

atacadas por outras equipes em sincronia com nossa invasão às redes

de TV.

O Rio de Janeiro estava muito movimentado por causa das

olimpíadas, muitos turistas passeavam por toda a Zona Sul, a Mônaco

carioca, deslumbravam-se com a natureza exuberante, com a vista de

Ipanema, com as bundinhas brasileiras e nem imaginavam o que

estava prestes a acontecer; torravam seus dólares e seus euros na

intenção de vivenciarem a intensidade da experiência no Brasil e não

se arrependeriam, pois veriam o povo tomar o poder de maneira

apoteótica, hollywoodiana.

Protestos estavam programados para acontecer e várias ruas da cidade

já estavam bloqueadas para evitar que qualquer manifestação

atrapalhasse o circo do entretenimento global, e isso tudo contribuía

para o sucesso de nossos planos.

Eu dirigia o primeiro carro e junto comigo estavam Dom, Maria e

Juninho, um dos soldados do Movimento, passávamos pela orla da

praia de Ipanema e vimos a imensidão quase apocalíptica do morro

‘dois irmãos’ se levantando brutalmente sobre a geografia do Rio.

*****************************************

Brasília, a ‘Grande Prostituta’, já era território de Marcinho e Éder

que conduziam a revolução por lá e já se adiantavam nos preparativos,

de tão ansiosos que estavam para derrubar os poderosos; Marcinho

parecia uma debutante de quinze anos esperando ansiosamente a

viagem à Disney e o encontro com o Mickey; ele realizaria um sonho

de infância, cultivado em suas noites de abandono e solidão: meter

fogo nos prédios do governo e em tudo o que estivesse pela frente,

metralhar as delegacias e sequestrar os políticos! Marcinho se sentia

numa ‘colônia de férias do caos’! O caos o seduzira e sua intenção,

antes de tomar o poder, era destruir tudo ao seu redor sem dó nem

piedade, queria rir malevolamente dos poderosos como os demônios

riem de nós.

A classe média fica horrorizada com essa ‘violência gratuita’, mas a

idiotice e a cegueira mental não lhes permite ver que nada é gratuito;

não compreendem os denominados ‘vândalos’ quando quebram as

vidraças dos grandes bancos, quando apedrejam prédios públicos,

quando ateiam fogo em ônibus ou em carros da polícia. Vivem da

ilusão moral da finalidade consciente de todas as coisas, da

racionalidade fundamental das escolhas individuais e coletivas,

acreditam na busca do bem-estar como atividade racional de qualquer

indivíduo normal e que qualquer um que assim não viva, atenta contra

o bem e o progresso social. Será que sabem que a busca do conforto,

do bem-estar, da ‘felicidade’ nada tem a ver com progresso ou

evolução, mas com um adestramento, uma educação, uma

domesticação dos ânimos e dos comportamentos? Educação para o

consumo, o atual ritual social. No entanto, nem todos são

domesticáveis e onde há coerção e domesticação, há também

resistência e reivindicação libertadora. Se a violência se revelou

selvagem, ‘gratuita’, é porque a coerção que ela contesta é igualmente

selvagem e ‘gratuita’.

Nós éramos o efeito colateral desse Sistema Totalitário Mercantil, do

acesso controlado à ‘felicidade’, da ética totalitária da abundância e

queríamos a liberdade que esse sistema prometeu dar e não deu.

Liberdade verdadeira causa arrepios em muita gente e um enorme

prazer em outros tantos.

Éder também parecia ter prazer naquilo tudo, mas estava mais sério,

introspectivo, talvez pensando nas consequências da revolução, em

como seria o dia de amanhã e o desenrolar da revolução. A maioria de

nós evitava pensar em como seria o dia seguinte à revolução; parecia

estupidez, e de fato era, mas sabíamos de algum modo que aquilo não

duraria muito. Éder talvez fosse o mais sóbrio de todos, apesar do

tormento que o assolava e o desequilibrava em alguns momentos; na

verdade, todos estávamos atormentados, uns mais, outros menos, e a

energia do caos parecia estar nos possuindo.

As equipes de Brasília estavam distribuídas em pousadas simples e

baratas, nas periferias da cidade, bem distantes do centro de poder, e

também estavam fazendo reconhecimento dos locais de ataque e

acertando os últimos detalhes antes do grande momento. Tinham

muitas armas pesadas e muita munição, muitos coquetéis molotov e

um exército com muitos homens, em sua maioria meninos, ex-

detentos dos centros correcionais para menores infratores, recrutados e

treinados formando o maior exército de desprezados já visto! Eram

adolescentes e jovens revoltados, maltratados pelos pais, torturados

pela polícia, abandonados pela justiça, um exército de pessoas que não

tinham nada a perder e avançava sem medo para a vitória ou para a

morte, tanto fazia. Eram como vermes devoradores, escondidos nas

brechas e esperando o momento de saírem do esconderijo e

consumirem os alicerces da sociedade.

Ao longo do dia, algumas equipes realizaram os sequestros de figuras

importantes, que estavam previstas em nossos planos. O único

sequestro frustrado foi o do Ministro da Fazenda, pois sua escolta era

um pouco maior e mais bem armada e na troca de tiros nossos

soldados acabaram metralhando tudo e matando o Ministro. Alguns

soldados nossos foram mortos também e, de raiva, os outros atearam

fogo a todos os carros do comboio do Ministro, parando o trânsito

numa importante via de Brasília no final da tarde.

As redes de televisão não sabiam o que transmitir, pois os jogos

olímpicos estavam prestes a iniciar e a notícia do assassinato do

Ministro estragaria toda a festa e colocaria o país em alerta. Como as

instituições tem uma dificuldade para lidar com a verdade, esperaram

ainda algum tempo antes de veicular a notícia para ter uma posição

oficial da presidência da república.

No início da noite, quando a polícia e as forças armadas começaram a

investigar o caso, os soldados do Movimento já estavam todos

fortemente armados e com aqueles lenços no estilo Yasser Arafat

amarrados até a metade do rosto; lotavam carros grandes e pick-ups

que tinham alugado em Brasília e se dirigiam aos alvos dos ataques. A

equipe de Marcinho tinha duzentos homens e se dirigiu ao Palácio do

Planalto e estava especialmente instruída pelo próprio Marcinho a usar

o máximo de violência possível; ao longo do trajeto, Marcinho repetia

“não existem cidadãos de bem nem pais de família, são todos agentes

e defensores desse sistema. São todos inimigos!” e aquilo foi

impregnando nas mentes e nos corações dos que o acompanhavam, e

toda essa lógica era aprofundada pelo som frenético do Skrillex que

tocava em seu carro e acelerava aquelas consciências.

Ele estava concentrado e seu rosto estava quase sem expressão, seus

olhos revelavam determinação e suas pupilas estavam excessivamente

dilatadas; apesar da cocaína o estimular bastante e o deixar agitado,

Marcinho estava tão concentrado que conseguia se manter parado e

segurando o fuzil com firmeza. Beijou seu patuá, apertou suas guias

numa das mãos, deu uma longa tragada no cigarro que estava fumando

e mandou o motorista encostar o carro, e atrás deles parou o comboio.

Quando estavam todos os carros em frente ao Palácio, Marcinho

mandou o motorista arrancar com o carro em direção ao gramado do

Palácio, e aproximando-se viram seguranças que já se preparavam

para atirar, mas a equipe de Marcinho os metralhou sem dar chance e

continuou atirando em direção ao Palácio, acertando muitos vidros e

destroçando as colunas. Seguiram com os carros até o limite onde

havia um espelho d’água, saíram dos carros e metralharam toda a

fachada do Palácio durante um bom tempo.

Marcinho comandava toda a ação, estava na linha de frente e seus

soldados faziam como ele; pegou um coquetel molotov numa das

pick-ups e dirigiu-se à porta do Palácio que já estava com os vidros

estilhaçados, meteu o pé na porta, como sempre quis fazer, e entrou

definitivamente naquele lugar sagrado e intocável, pelo menos até

então.

Invadiu outros ambientes do Palácio que estava vazio e quando

encontrou um auditório acarpetado, acendeu seu coquetel molotov e o

lançou bem no símbolo da república federativa do Brasil, que

imediatamente ficou em chamas e começou a se espalhar pelo chão e

pelo teto.

Em seguida, empunhou seu fuzil e começou a atirar nas cadeiras

luxuosas, na mesa de madeira maciça e no lindo lustre que enfeitava o

ambiente, e fazia isso como uma espécie de vômito lançado contra

aquela ostentação criminosa. Marcinho saiu daquele ambiente, viu-se

num hall amplo e cheio de seus soldados que entravam com coquetéis

molotov acesos pra meterem fogo em tudo e gritou “Isso aqui é a casa

dos criminosos! Vamos incendiar a cena do crime porraaaaa!”, e seus

soldados berraram ensandecidos enquanto corriam para destruir tudo.

Unidades da polícia e do exército foram chamadas para conter o

ataque, mas quando abriram os portões de seus batalhões para se

dirigirem ao Palácio, foram metralhados por nossas equipes que já

esperavam de tocaia, e mataram todos os agentes da polícia e soldados

do exército que tinham sido destacados para aquela missão, como

Marcinho tinha instruído. Depois entraram nesses batalhões e atearam

fogo em tudo.

A equipe de Éder tinha ido à Câmara dos deputados realizar o mesmo

ritual de destruição que Marcinho realizava no Palácio do Planalto, e

também encontraram pouca resistência, pois a maioria dos políticos

estava no Rio de Janeiro acompanhando a abertura das Olimpíadas, e

só havia alguns poucos seguranças que foram rapidamente

metralhados sem chance de reação.

Os soldados do Movimento saíram dos carros e atacaram a Câmara

antes das ordens de Éder, de tão ansiosos que estavam pra colocar

aquele ódio pra fora e direcionar aos corruptos e aos símbolos de

respeitabilidade oficial. Éder observava a sede de vingança que havia

em seus soldados; eram iconoclastas e não poupavam nada que

estivesse à sua frente, metralharam tudo e logo começaram a jogar os

coquetéis molotov em todos os ambientes da Câmara.

Enquanto o ataque ao Palácio do Planalto estava sendo violento,

porém controlado pelo pulso firme de Marcinho, o ataque à Câmara

era violento e descontrolado, cada um fazia o que queria e todos iam

colocando seus ódios, raivas e frustrações pra fora. Uns pegaram os

funcionários da Câmara engravatados e os submeteram a humilhações,

espancamentos, outros chegaram atirando em quem aparecesse na

frente, algumas mulheres foram estupradas, cabeças foram cortadas e

aquilo parecia cena de guerra civil africana ou árabe em estágio

avançado de ódio.

Éder achou que havia um estranho descontrole nos soldados do

Movimento, como se seus ódios estivessem sendo potencializados,

espiritualmente potencializados, talvez porque Éder fosse ligado à

busca pelo entendimento da espiritualidade, mas ele disse depois que

sentiu uma espécie de névoa, uma maresia maligna que permeava todo

o ambiente e tornava os atos de barbárie menos absurdos. “As portas

do inferno estavam escancaradas e nós, os demônios, nos fartávamos

com as vísceras abertas da humanidade”, foram as palavras de Dom

para explicar no interrogatório policial após nossa prisão, o caos

criado por nós.

A essa altura, a Agência Brasileira de Inteligência e o centro de

inteligência da Polícia Federal já estavam em chamas, muitos corpos

estavam espalhados, queimados e o sangue já manchava a terra e

atormentava nossas consciências. Brasília estava em chamas, como

uma espécie de sacrifício macabro ao deus da vingança.

A Revolução e as câmeras

No Rio de Janeiro já tínhamos invadido as sedes das duas redes de TV

que planejáramos; entramos numa das sedes sem falar nada, apenas

apontando os fuzis e rendendo quem estivesse à nossa frente;

fechamos as portas da emissora e não deixamos ninguém entrar ou

sair; eu, Maria e Dom nos dirigimos à sala do diretor geral, pois

sabíamos que ele estaria de plantão na abertura das Olimpíadas. Maria

estava vestida com muito estilo e despojamento, roupas claras e leves,

salto alto, como uma mulher de negócios.

“Como é seu nome?”, perguntou Maria entrando sem cerimônia na

sala do diretor; quando o sujeito ia questionar a invasão, viu o fuzil na

minha mão e arregalou os olhos com uma surpresa e um desespero,

como quem acha que algo jamais o atingirá em sua torre de marfim.

Ele não sabia como reagir e ficou estático, nos olhando com terror;

Maria se aproximou, segurou seu rosto com força e perguntou, “Como

é seu nome, porra?”, e o sujeito, coagido por nós três, respondeu

tremendo, “Carlos...”, e eu, “Carlos de que, porra?”, e ele, “Carlos

Henrique...”, e Maria, “então Carlos Henrique, vamos para a sala de

controle central porque agora o Brasil vai acordar de seu longo sono!”,

e o levamos até a porta para que ele nos conduzisse até a sala de

controle central, onde se conduzia a programação de TV em tempo

real.

Por onde passávamos dentro daquela emissora, a cara das pessoas era

de terror, como se o fim do mundo tivesse chegado e o apocalipse

estivesse em curso; mulheres impecavelmente trajadas e com seus

crachás no peito choravam em desespero ou arregalavam os olhos

como se vissem assombrações; homens engravatados, também com

seus crachás de identificação, símbolo da rotulação corporativa e toda

essa babaquice de gestão de pessoas, sentiam suas pernas bambearem

de medo e seus olhos revelavam perplexidade diante de nossa ousadia.

Dom tinha uma Desert Eagle .50 em cada mão e exalava

autoconfiança por todos os poros; estava vestido com estilo, óculos

escuros e barba por fazer e já exercia um certo magnetismo por onde

passava; nossos soldados vinham logo atrás de nós para ocupar o

prédio e impedir qualquer tentativa de reação de qualquer um, pois o

prédio estava cheio de gente.

Chegando próximo à sala de controle, o âncora mais famoso da TV

brasileira, do jornal mais assistido e respeitado da TV brasileira estava

saindo de seu camarim e deu de cara conosco. Seu rosto estava

maquiado, seu cabelo estava milimetricamente bem penteado e seu

terno parecia ter acabado de chegar do alfaiate e com os olhos mais

arregalados que já vi nessa vida, ele nos olhou e disse “Isso não pode

ser real! Isso não pode ser real!” e foi se encostando na parede e se

encolhendo, e em sua mente devia ter a esperança de que aquilo fosse

bastidores de gravação, e ele tivesse sido pego de surpresa, ou

qualquer outra fantasia midiática que pudesse salvá-lo da realidade.

Dom, que ia logo atrás do diretor da emissora, colocou uma das armas

na cintura, tomou a frente e estendeu a mão para cumprimentar o

famoso âncora; tirou os óculos de sol e com um sorriso no rosto disse

“William, que surpresa encontrá-lo!”. O âncora olhou aterrorizado

para aquela mão estendida, estendeu a sua para cumprimentá-lo

também e continuou dizendo para si mesmo, mas em voz alta, “Isso

não pode ser real! Isso não pode ser real!”, e Dom puxou-o pra perto

de si com classe e disse “Aqui é Brasil, e no Brasil a realidade é muito

mais delirante do que a mais delirante das imaginações! Não quer vir

conosco para presenciar a libertação dos escravos?”, e o âncora

respondeu “Não, obrigado...”.

Dom sorriu, soltou a mão do sujeito e disse “é melhor você não ver

isso mesmo, é melhor arrumar as malas e fugir porque o povo já sacou

qual é a sua, e é possível que venham atrás de você... até os cães mais

adestrados podem atacar seus adestradores. E chama aquele seu

amigo, apresentador de reality show, pra fugir com você! Vocês já

ganharam bastante papel pintado pra enganar o povo”, e saiu andando

em direção à sala de controle que já estava à nossa frente, enquanto

nossos soldados se encarregaram de conter aquelas pessoas em seus

lugares.

Na sala de controle, Maria quase teve um orgasmo de tão excitada que

ficou; respirava fundo e não conseguia tirar o sorriso do rosto, estava

diante de sua apoteose, da fama, do estrelato como ‘a primeira-dama

da revolução’. Ela sabia da importância ideológica da revolução e

tudo mais, mas fazia semanas que só conseguia pensar na revolução

como apoteose midiática de si mesma, com muito glamour e estilo,

muitos famosos, champanhe, cocaína e maconha; acreditava que boa

parte dos famosos ‘alternativos’ apoiaria a revolução e participaria de

suas festas, festas que ela já programava para dar após a revolução,

apinhadas de artistas e gente da mídia, muitos holofotes e fotografias

para as revistas mais famosas do mundo.

Ficamos diante da máquina que colocaria nosso vídeo pra rodar e

diante do técnico que seria nosso porteiro para a fama revolucionária;

Maria tirou o pen drive da bolsa e o entregou carinhosamente ao

técnico, dando-lhe um beijinho no pescoço. Ele se arrepiou e colocou

o pen drive na máquina, procurou o arquivo, clicou e o vídeo

começou, com Dom falando calmamente e Maria ao seu lado,

cortando abruptamente a transmissão das Olimpíadas e surpreendendo

a todos os telespectadores:

“Querido povo brasileiro,

Há cinco séculos nós somos enganados por uma classe de corruptos,

que sempre criou meios de nos manter distraídos em relação à

exploração que praticam conosco.

Nós somos o Movimento, e venho convidá-los, nessa data

comemorativa de abertura das Olimpíadas, a pensarem no verdadeiro

significado de ser humano e de partilhar com o resto da humanidade

esse momento especial. Porque é que nos unimos no dia de hoje?

Para celebrar a competição? Para celebrar a eliminação do mais

fraco? Para ver as ‘grandes potências’ econômicas ficarem com a

maior parte das medalhas de ouro, como fazem com a riqueza do

planeta? Então as Olimpíadas são a celebração da exclusão dos mais

fracos, a exclusão da maioria dos humanos; as Olimpíadas são a

legitimação da lei do mais forte, a confirmação pelo esporte (o teatro

pedagógico da pós-modernidade) da superioridade de uns e da

inferioridade de muitos!

É nisso que vocês acreditam? É esse o pedaço de humanidade que

vocês dizem existir em vocês? Enquanto brigamos uns com os outros

por Flamengo e Vasco, homem e mulher, zona sul e zona norte, Brasil

e Argentina, além das porras dos partidos políticos, os poderosos

riem largamente de nossa ignorância, conseguindo nos manter cegos

para a verdade.

E a verdade é que, utilizando-se dos meios mais inteligentes e

refinados, os poderosos estão nos mantendo cativos e produtivos,

como gado... somos vigiados, coagidos e punidos para que sejamos

dóceis e previsíveis, pra que sejamos produtivos e repetitivos; e se

vocês ainda não enxergaram isso, é porque foram seduzidos por todo

o espetáculo do consumo e da fabricação de si mesmo.

Sei que vocês têm medo da mudança, medo da violência, da guerra,

da perda de seus empregos e de suas garantias; vocês estão

dominados pelo medo, mas é preciso que estejamos prontos para

reconstruir nosso país com base na verdade e na liberdade. Se vocês

ainda não sentiram falta da liberdade, é porque se acostumaram à

escravidão!”

Maria se aproximou da câmera, tinha escolhido um vestido muito

estiloso que definia suas curvas, um penteado despojado e um salto

alto que a deixou belíssima, passou à frente de Dom e,

“Esse corruptos, além de praticarem a corrupção, fazem seus

herdeiros ainda mais corruptos que eles! Eles aprendem a compor o

gesto, a interpretar humores, a mentir honestamente... aprendem a

leveza das palavras, aprendem a escolher o vinho, a espumar de

sorriso nos dentes, aprendem o ‘sim’ e o ‘não’ mais oportunos;

querem apenas a vantagem pessoal, jamais o bem coletivo e vão

eternizando a exploração do povo como algo comum. Querem

qualquer coisa que os coloque em posição de vantagem em relação a

nós, aí pode ser diretor de empresa pública, coordenador de

campanha, assessor de ministro, Ministro, diretor-executivo,

presidente da Caixa, embaixador em qualquer país aí por perto,

qualquer coisa! Não se enganem com esses bandidos respeitáveis!

Dom tomou novamente a palavra e continuou o discurso,

Sei que há pessoas obstinadas nos assistindo, pessoas que se

inspiraram; sei que em alguns corações há raiva, em outros há ódio

feroz talvez cultivado por anos, em outros corações sei que há emoção

esperançosa e até lágrimas duramente contidas, mas sei que vocês

não estão indiferentes ao que acontece no nosso país, nosso querido

Brasil que está sendo prostituído por essa corja de cafetões que

chamamos de políticos.

Multidões morrendo de fome enquanto esses bandidos dão festa pro

mundo assistir!

Nesse exato momento, enquanto nós invadimos as maiores emissoras

de TV do país e paramos com esse circo de entretenimento e

enganação pra falar um pouco de verdade, nossos soldados estão

tirando do poder essa corja de bandidos e mentirosos. Estamos

dominando Brasília e tirando os opressores de seus lugares de

conforto! Estamos desarticulando essa polícia corrupta e violenta,

esses capangas dos poderosos que só servem pra proteger a

propriedade privada e massacrar os pobres! Não podemos deixar

nossa segurança nas mãos de bandidos fardados!

Estamos dominando as capitais que apoiam o governo federal, e

implantando um governo comunitário, onde os cidadãos serão

ouvidos e a democracia deixará de ser apenas uma lenda.

Vamos transformar essa falsa democracia que é nosso Brasil

corrupto, desengonçado e ignorante, numa democracia libertária e

real para todos. Se democracia é o governo do povo, então vamos

governar nosso país com nossas próprias mãos! Nós não precisamos

ser uma potência econômica, não precisamos competir com o resto do

mundo, não precisamos devorar a Terra, não precisamos viver de

maneira competitiva... precisamos apenas viver como irmãos, de

maneira cooperativa, até que cheguemos a um estado em que os

indivíduos poderão se autogovernar.

Existem alternativas a esse modelo político econômico escravista que

está dominando todo o planeta, esse modelo demoníaco e excludente

que relega milhões de irmãos nossos à miséria e ao desaparecimento,

e nos relega à hipocrisia e à indiferença em relação ao sofrimento da

maioria de nossos irmãos!

Se dentro de vocês houver um canto engasgado de liberdade e justiça,

uma vontade de mudar esse país tão explorado e tão massacrado por

esses filhos-da-puta; se em seu coração houver o espírito dos deuses,

promova a mudança conosco! Nós somos a revolução! Nós somos a

transformação do mundo num lugar melhor!

Maria tomou novamente a palavra e,

Se vocês também querem revolucionar esse país e vê-lo administrado

por gente de verdade, amarre um lenço no rosto e venha para as ruas

apoiar o Movimento!

E amarrou um lenço árabe até a metade do rosto e gritou, dando um

soco no ar,

REVOLUÇÃO!

Em seguida, Dom e Maria saíram de cena e o vídeo começou a

mostrar cenas emocionantes de pessoas ajudando umas às outras e

uma narração tocante falando a respeito de cooperação, amor,

equidade e valores que não são a matéria-prima dessa Babilônia que

habitamos.

Nosso vídeo apelava para a consciência dos indivíduos, mas também

parecia um filme publicitário, com muitos elementos de sedução dos

telespectadores; não havia outra maneira de nos comunicarmos com

os ignorantes que não fosse em sua própria linguagem, a da sedução

do consumo, e nós apelávamos para o consumo de uma ideia, a ideia

da Revolução. Tínhamos contratado uma produtora de vídeos

publicitários para colocar em ação nossas ideias e tornar nosso vídeo

bastante atrativo e popular. Maria tinha um apelo fashion, moderno e

independente, o estereótipo desejado pelas mulheres em geral; Dom

parecia um revolucionário de novela, com charme, carisma e um

discurso persuasivo. Além disso, o discurso tinha legenda em inglês,

para que suas palavras tivessem um alcance global imediato.

Toda revolução demanda uma dose de maldade, e agora não é o

momento para reflexões sobre esse aspecto, mas nós havíamos

estudado o povo como as empresas estudam seu público-alvo.

Houve uma comoção mundial instantânea por causa do nosso vídeo e

a cerimônia de abertura das Olimpíadas já era notícia secundária e

desimportante; recebemos milhões de mensagens de apoio de pessoas

de todas as partes do mundo em todas as redes sociais e sites de

compartilhamento da internet; o Anonymous mostrou apoio em seus

sites pelo mundo, a mídia NINJA começou a cobrir os acontecimentos

para evitar qualquer manipulação da informação, os Black Blocs e

muitos outros movimentos com ideais revolucionários, nos apoiaram

logo de cara e se puseram à disposição para qualquer tipo de trabalho

ou confronto. Na verdade, todos esses movimentos já estavam

organizados para protestarem contra as Olimpíadas, como haviam

feito na Copa da FIFA em 2014, tentando impedir a realização dos

jogos, bloqueando ruas, fazendo manifestações e sendo duramente

reprimidos e injustamente presos.

Com o advento de nossa revolução, o barril de pólvora estourou e

nossa rede de apoio se multiplicou pelo Brasil e pelo mundo; nosso

setor de Inteligência teve dificuldades para lidar com tantas adesões e

tantos novos soldados.

No entanto, os governos oficiais já se organizavam para interferir num

golpe de estado que lhes era desfavorável. Reuniões extraordinárias

foram convocadas na ONU e representantes dos principais países

membros se reuniram horas depois para deliberar sobre nossa

situação.

Porta-aviões americanos já estavam sendo direcionados para nossa

costa e bases americanas, instaladas em território brasileiro quando da

realização da Copa do Mundo, já estavam em alerta para qualquer

situação de emergência e fornecendo muitas informações sobre os

acontecimentos.

Nossa estratégia para conter esse contra-ataque já esperado era colocar

em prática o projeto virtual de postagem de mensagens e práticas

revolucionárias, que poderiam ser executadas por qualquer um, em

qualquer lugar e com pouquíssimos recursos, revolucionando o

cotidiano e as percepções das pessoas, tipo distribuir sementes de

maconha para serem plantadas nos canteiros das cidades, estimular o

escambo para diminuir a importância e o uso do dinheiro, pedir ao

povo que fechasse as delegacias colocando seus carros estacionados

na frente dos distritos policiais, etc.

Nosso objetivo era travar qualquer tentativa de reação do governo

federal, das forças armadas e das polícias, uma tarefa que precisava

ser executada em várias frentes e que precisava de muita criatividade

para ser realizada sem os instrumentos e métodos tradicionais. Como

éramos filhos da era tecnológica, tínhamos que pensar em meios que

estivessem fora do alcance dos métodos utilizados pelo governo e

pelas polícias, e foi o que fizemos. Espalhamos mensagens em forma

de vídeos e imagens, veiculados na internet e nas maiores emissoras

do país, estimulando as pessoas a mudarem de atitude, a apoiarem a

revolução e saírem às ruas.

Daquele momento em diante estávamos em guerra com o resto do

mundo. O Brasil era peça-chave dessa mundialização

homogeneizadora que se pratica sob o nome de neoliberalismo

democrático, e os senhores do mundo não permitiriam que uma

economia forte como a brasileira caísse nas mãos de gente como nós.

Tomando o poder, eles sabiam que o Brasil deixaria de ser a galinha

dos ovos de ouro que sempre foi, dando muitos lucros ao capital

estrangeiro e aos grandes bancos; o povo deixaria de ser tratado como

gado e de servir como escravo desse sistema, e isso seria uma enorme

perda aos gordos cofres desses senhores do mundo.

Sendo assim, restava-nos resistir, como já esperávamos também, e

nossa resistência seria, por um lado, a violência revolucionária, se

concretizando com os sequestros de figuras centrais do governo e dos

grandes bancos, os ataques armados às instalações oficiais, minando

seu poder de organização e estabelecendo um caos administrativo, e

por outro lado, estabelecer canais de comunicação com a população,

ouvindo suas demandas e necessidades e organizar meios de viabilizar

nosso governo revolucionário com o apoio do povo.