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Capítulo XXXI - A Cooperativa Mista de Pequenos Agricultores da Região Sul (COOPAR) e o Fortalecimento da Rede Produtiva do Feijão: diálogo entre saberes
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A Cooperativa Mista de Pequenos Agricultores da Região Sul (COOPAR) e o
Fortalecimento da Rede Produtiva do Feijão: diálogo entre saberes
CABRAL, Márcia Cristina de Lima120
RESUMO
Estudo de caso que analisa o método de trabalho utilizado na execução do Programa Municipal de Desenvolvimento da Cadeia Produtiva do Feijão do município de São Lourenço do Sul - RS. O programa foi elaborado através de um processo de parceria entre a Cooperativa Mista dos Pequenos Agricultores da Região Sul (COOPAR), a EMATER/RS-ASCAR121 local, a EMBRAPA122 Clima Temperado e agricultores cooperados, que juntos formaram um grupo de trabalho com o objetivo de identificar as melhores variedades de feijão para o município, tendo em vista a adaptação ambiental, a segurança alimentar e o padrão qualitativo (uniformidade em tamanho e coloração de grãos, uniformidade varietal e de safra etc.). Focado na marca Pomerano da COOPAR, já atuante no comércio, o programa visa a melhorá-la e consolidá-la no mercado, mantendo o padrão de qualidade como diferencial. O artigo analisa esse método de trabalho em parceria utilizado pelo programa e que visa ao aprimoramento da rede produtiva do feijão da cooperativa (desde o cultivo até o consumidor final). É importante salientar que esse processo envolve os saberes acadêmico-científicos trazidos pela extensão rural (EMATER/ RS-ASCAR) e pela pesquisa (EMBRAPA) e as experiências trazidas pela cooperativa através dos saberes tradicionais dos seus agricultores e pondera sobre a ação de cada um desses atores/instituições na construção de um novo saber, resultante da sinergia de conhecimentos.
Palavras-chave: Diálogo de saberes. Conhecimento acadêmico-científico.
Conhecimento tradicional-empírico. Cooperativismo.
ABSTRACT
Case study that analyzes the working methods used in the implementation of the Municipal Program of Development of Productive Chain of Bean in São Lourenço do Sul - RS. The program was built through a partnership process between the Mixed Cooperative of Small Farmers in Southern Region (COOPAR), the local EMATER/RS-ASCAR123, the EMBRAPA124 Temperate Clime and the cooperative farmers, which together formed a working group to identify the best varieties of beans for the county, in view of environmental adaptation, food safety and qualitative standard (size and color of grain uniformity, varietal and crop uniformity etc.). Focused on the Pomerano (COOPAR) brand, already active in the market, the program aims at improving it and consolidating the brand in the market, maintaining 120Socióloga, Extensionista Rural da EMATER/RS-ASCAR, Especialista em Gerenciamento
Ambiental. E-mail: [email protected] 121 EMATER/RS-ASCAR: Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural oficial do Rio Grande do Sul. 122 EMBRAPA: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. 123 EMATER/RS-ASCAR: Official Technical Assistance and Rural Extension Enterprise of Rio Grande do Sul. 124 EMBRAPA: Brazilian Enterprise for Agricultural Research.
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the standard of quality as a differentiator. The article analyzes this partnership working method used by the program and that aims at improving the productive chain of beans (since its cultivation until reaching the final consumer). It is important to point out that this process involves both the academic-scientific knowledge brought by rural extension (EMATER/RS-ASCAR), by research (EMBRAPA) and the experiences brought by the cooperative through the traditional knowledge of their farmers and ponders the action of each of these actors/institutions in the construction of new learning, which results from the synergy of knowledge. Keywords: Dialogue of knowledge. Academic and scientific knowledge. Traditional
and empirical knowledge. Cooperatives.
1 INTRODUÇÃO
A cultura do feijão ocupa lugar de destaque na agricultura brasileira, tanto em
área plantada quanto em volume de produção, além de ser importante na ocupação
de mão-de-obra. Desde a colonização, o feijão é cultivado em todas as regiões do
país e se constitui em um componente importante na dieta básica do povo brasileiro.
(LOLLATO; SEPULCRI; DEMARCHI, 2001).
Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
(FAO), a produção mundial de feijão oscilou entre 16,1 e 17,8 milhões de toneladas
na década de 90, índice que segundo Lollato, Sepulcri e Demarchi (2001) demonstra
que mesmo com um decréscimo na área cultivada, a produção mundial e o
rendimento cresceram. Esse fato pode significar que a cultura do feijão está ficando
mais especializada e talvez deixando de ser produzida somente por pequenos
produtores. Contudo, o cultivo do feijão ainda continua a ter papel relevante na
agricultura familiar, pois além de ser uma alternativa alimentar para a família, pode
ser comercializado, convertendo-se em mais uma fonte de renda.
O município de São Lourenço do Sul tem na produção integrada de fumo uma
de suas principais atividades agrícolas. Conforme afirma Paulilo (1987, p. 71),
comumente o produto integrado, no caso o fumo, não é o único a ser cultivado na
propriedade, existindo, além dele, mais uma série de outras culturas destinadas, em
sua maioria, ao próprio consumo da família. Apesar de voltadas prioritariamente
para o autoconsumo, nada impede que os produtos oriundos das demais culturas
sejam também comercializados na forma de excedentes.
Paulilo (1987) e Guanziroli et al. (2001) atribuem importância ao feijão,
especialmente, por se constituir em uma opção alimentar para a família agricultora.
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Entretanto, segundo Neves (2009, p. 73):
A importância desse produto vai além de colaborar para a subsistência alimentar da família, pois em 87% das propriedades nas quais ele é plantado os produtores também o comercializam, fazendo assim concluir que a produção de feijão é uma importante fonte de recursos para as famílias agricultoras de São Lourenço do Sul.
Considerando que a cultura do feijão constitui uma possibilidade importante no
contexto de desenvolvimento do município e da região, a COOPAR apresenta-se como
um “ator” importante ao estruturá-la, valorizar e incentivar a pesquisa e oferta de novas
variedades com maior vida útil de prateleira e melhor qualidade de cocção, bem como
ao capacitar os produtores e participar de/realizar campanhas para o aumento do
consumo do feijão. Apostar no papel da cooperativa nesse contexto de estruturação se
justifica, pois esta já possui experiência na comercialização de feijão (sob a marca
Pomerano), o que lhe confere conhecimento sobre quais são os aspectos falhos que
impedem que o feijão tenha uma melhor qualidade e padronização e, portanto, sobre os
pontos a serem melhorados para o fortalecimento da marca.
No ano de 2011, a COOPAR e seus associados produtores de feijão,
juntamente com a EMATER/RS-ASCAR e a EMBRAPA Clima Temperado, iniciaram
a execução do Programa Municipal de Desenvolvimento da Cadeia Produtiva do
Feijão, que, de forma mais ampla, busca a qualificação dos produtores, visando à
melhoria de todo o processo de produção, desde o seu cultivo até a comercialização
ao consumidor final. Assim, esses atores uniram-se formando um grupo de trabalho,
que busca identificar as melhores variedades de feijão para o município, tendo em
vista adaptação ambiental, segurança alimentar e padrão qualitativo (uniformidade
em tamanho e coloração de grãos, uniformidade varietal e de safra etc.). O projeto
tem como foco a marca Pomerano da COOPAR, com o objetivo de melhorá-la e
consolidá-la no mercado, mantendo um alto padrão de qualidade como diferencial.
Dessa forma, o artigo pondera acerca do processo/método que vem sendo
articulado por esses diferentes atores sociais (cooperativa e seus agricultores
associados, pesquisa e extensão rural), enfim, analisa sobre a ação de cada um
desses atores/instituições visando à qualificação da produção, estruturação do
processo produtivo e fortalecimento da cooperativa com vistas ao seu
desenvolvimento, bem como da marca Pomerano. Assim, avalia o diálogo entre os
diferentes saberes envolvidos neste grupo de trabalhado, ou seja, o saber
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acadêmico-científico, trazido pela EMBRAPA e pela EMATER-RS/ASCAR, e o saber
tradicional-empírico, trazido pelas vivências dos agricultores cooperados, cotejando
como esse diálogo possibilita a formulação de um conhecimento mais abrangente e
transversal e resulta em um novo saber, que contempla diversos conhecimentos.
A análise desse método de trabalho mostra-se relevante na medida em que
seus resultados podem possibilitar à cooperativa incrementos na área humana
(social) e na área produtiva (econômica), que passam desde a capacitação de
agricultores até a comercialização final do produto, influindo na economia local,
geração de renda e empoderamento dos agricultores familiares, podendo ser
condicionantes que levam ao desenvolvimento da cooperativa. É um “pacote” de
esforços coletivos que inclui capacitações com produtores, questões relativas à
segurança e soberania alimentar, diversificação produtiva, padronização para o
mercado, resultando em maior competitividade no mercado, etc., enfim, um rol de
atividades que podem servir como alavancas para o desenvolvimento.
A pesquisa qualitativa foi adotada para esta análise, através da utilização de
técnicas como observação participante, revisão bibliográfica e acompanhamento das
reuniões técnicas realizadas entre cooperados e parceiros. Além disso, foram
realizadas entrevistas semiestruturadas com os quatro agricultores cooperados
(produtores de feijão) que se tornaram os “demonstradores” do método, com um
técnico da COOPAR, com dois técnicos da EMATER/RS-ASCAR e com um
pesquisador da EMBRAPA.
2 COOPAR: O COOPERATIVISMO SURGE COMO ALTERNATIVA
Conforme relato de Ellemar Wojahn125, sócio fundador e primeiro presidente
da cooperativa, o surgimento da COOPAR está diretamente ligado ao trabalho do
Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA)126 de São Lourenço do Sul e região,
sendo que a ausência de organização dos agricultores, como associações
comunitárias, no meio rural foi o principal propulsor para a sua criação. Segundo ele,
125 Relato de Ellemar Wojahn retirado do site da Pomerano Alimentos. 126 O Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA) é uma organização não-governamental, criada
em 1978, que busca contribuir de forma decisiva para a prática social e de serviço junto a agricultores familiares e outros públicos ligados à área rural. Através da parceria com a Fundação Luterana de Diaconia (FLD), o CAPA recebe apoio financeiro da Organização Protestante para a Diaconia e o Desenvolvimento (Evangelisches Werk für Diakonie und Entwicklung), com sede Berlim (Alemanha), uma organização que visa ao desenvolvimento sustentável e vida digna a todas as pessoas.
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o tema da comercialização era uma preocupação das famílias. Os pequenos
comércios e intermediários não conseguiam mais responder às necessidades de
mercado para produtos como milho, feijão, batata, cebola, alho e hortaliças. A falta
de perspectivas de comércio firme para esses produtos estava se tornando um forte
fator de desestímulo para sua produção. O fumo cada vez mais era visto como única
alternativa para a pequena propriedade.
A necessidade de organização entre os agricultores foi sendo percebida e
compreendida como fundamental para a busca de alternativas. Assim, a COOPAR
foi inaugurada em 1992 por 41 agricultores familiares. A cooperativa foi criada para
facilitar o acesso dos agricultores a novas tecnologias, baratear o preço dos insumos
e abrir novos mercados.
Atualmente, a cooperativa possui cerca de 3000 associados, com uma
produção diversificada, se destacando o milho, a batata inglesa, o arroz, o feijão e,
principalmente, o leite. A COOPAR vive um momento de expansão: no início de
2011 inaugurou uma indústria de beneficiamento de leite, na qual passou a produzir
queijo mozarela e prato, ricota, bebidas lácteas e doce de leite.
Os produtos da COOPAR são comercializados em um mercado crescente,
que abrange desde o município de São Lourenço do Sul até as regiões sul e centro-
sul do Rio Grande do Sul, bem como a região metropolitana. Cabe destacar a
importância da participação nos Programas de Aquisição de Alimentos (PAA/Fome
Zero) e da Alimentação Escolar (PNAE), que tem ajudado a viabilizar a
comercialização, tanto em São Lourenço do Sul, como em vários municípios da
região.
Em 2004, a cooperativa organizou o beneficiamento de feijão para atender a
demanda do PAA. Foi então criada a marca “Pomerano Alimentos”. A cooperativa
investiu em equipamentos para limpeza, seleção, polimento e embalagem do feijão
preto, produzido em duas versões: tradicional e orgânico.
A organização para a participação no PAA foi a porta de entrada da COOPAR
para o mercado privado. Com a versão orgânica do feijão Pomerano, a cooperativa
se transformou em fornecedora de uma grande rede de mercados de Porto Alegre.
Assim, a especialização revelou-se como caminho para o crescimento da
cooperativa.
Nesse contexto, é possível observar o potencial de desenvolvimento local, e
até mesmo regional, que uma iniciativa de associativismo, que surgiu por uma
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necessidade bastante pontual de comercialização local, pôde gerar, revelando assim
a importância do cooperativismo para a organização de pequenos agricultores
familiares, bem como a importância dos demais atores sociais envolvidos em todo o
processo de aprimoramento da cooperativa.
O associado da cooperativa, a própria cooperativa, o médico, a professora, o artista, o padeiro, todos são atores importantes dentro da ideia de desenvolvimento local. Isso porque, cada um a sua maneira, pode trazer benefícios para a sua comunidade. (LINS; PIRES, 2006, p. 87).
Potencialmente, portanto, todos seriam atores sociais. Assim, torna-se
importante considerar a cooperativa (através dos seus associados) como um ator
importante no desenvolvimento local. Para isso, é preciso situar o cooperativismo na
sua capacidade de trazer respostas aos desafios contemporâneos de globalização,
de desemprego e de crise do Estado. (LINS; PIRES, 2006).
A relação entre cooperativismo, globalização e desenvolvimento local é
fortemente estimulada pelo fato de que, a partir da organização da produção e de
sua comercialização sob as exigências da globalização, as cooperativas vêm
contribuindo para a potencialização dos locais em que estão inseridas. Observa-se,
com isso, um aumento do poder de barganha dos produtores e do crescimento do
emprego e da renda, confirmando a perspectiva presente na literatura que identifica
as cooperativas, ao lado de outras iniciativas empresariais, como uma estratégia
importante dentro da perspectiva de desenvolvimento rural. (MARTÍNEZ; PIRES,
2000; PIRES, 1999; PRÉVOST, 1996).
Conforme Lins e Pires (2006), não apenas as cooperativas, mas todo o
empreendimento econômico capaz de gerar emprego e renda é capaz de promover
o desenvolvimento de uma dada localidade, desde que, evidentemente, seja uma
prática econômica de reconhecido sucesso. Nesse aspecto, pode-se afirmar que o
que define o sucesso ou insucesso das práticas econômicas é a capacidade de
adequação permanente às transformações produtivas.
Assim, a sobrevivência e crescimento das organizações econômicas — sejam elas empresas cooperativas ou empresas capitalistas, depende das estratégias usadas para responder aos desafios da acirrada competição que tem lugar na economia globalizada. (LINS; PIRES, 2006, p. 90).
Neste contexto, devido à necessidade de qualificar ainda mais seu mercado,
a COOPAR, através do trabalho realizado pela EMATER/RS-ASCAR, em parceria
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com a EMBRAPA Clima Temperado, vem participando deste programa que busca a
qualificação dos produtores e visa à melhoria de toda a rede produtiva e por
consequência de sua marca de feijão (Pomerano), bem como ao empoderamento de
seus associados.
3 O MÉTODO, “JEITO DE FAZER”: EXTENSÃO, PESQUISA E AGRICULTORES
COOPERADOS TROCANDO E CONSTRUINDO SABERES
Os produtos da COOPAR carregam a marca Pomerano127, que faz menção
às raízes da grande maioria dos agricultores de São Lourenço. A denominação
Pomerano é dada àqueles que moravam na Pomerânia e falavam a língua
Pomerana, e é justamente na região de São Lourenço do Sul que os imigrantes
Pomeranos formam o maior grupo étnico dessa descendência, sendo caracterizados
por uma forte ligação com a agricultura e uma grande experiência com a terra,
preservando muitos de seus costumes, como a linguagem, os feriados religiosos e a
gastronomia.
Dessa maneira, o Programa Municipal de Desenvolvimento da Cadeia
Produtiva do Feijão de São Lourenço do Sul, articulado através do diálogo entre
diferentes atores sociais, também tem como objetivo o fortalecimento dessa marca
tão importante para o município e que vem dando visibilidade à cooperativa.
Estabelecer relações entre as abordagens do conhecimento gerado no meio
científico e aquele gerado e acumulado pelos agricultores, em particular de base
familiar, é um desafio que perpassa o desenvolvimento de modelos agrícolas
sustentáveis. Segundo Agrawal (1995), diferenças entre essas abordagens ocorrem
em função das características dos dois campos de conhecimento, por aplicarem
diferentes métodos de investigação da realidade e por razões contextuais. O
conhecimento local/tradicional é mais profundamente enraizado no ambiente, é
aquele calcado no empirismo, fruto das demandas do dia-a-dia, das necessidades
latentes, e se reproduz de geração para geração, arraigando-se na cultura local.
Conhecimento empírico, também chamado vulgar ou de senso comum, é o conhecimento do povo, obtido ao acaso, após ensaios e tentativas que resultam em erros e em acertos. Este tipo de conhecimento é ametódico e assistemático.
127 Informações sobre a marca Pomerano foram retiradas do site da Coopar.
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Cada qual se serve da experiência do outro ora ensinando, ora aprendendo, em um intenso processo de interação humana e social. Pela vivência coletiva, os conhecimentos são transmitidos de uma pessoa à outra, de uma geração à outra. (CERVO; BERVIAN, 2002, p. 8).
Por outro lado, o conhecimento científico é aquele que vai além do empírico,
procurando conhecer, além do fenômeno, suas causas e leis.
Nessa busca mais rigorosa, a ciência pretende aproximar-se cada vez mais da verdade através de métodos que proporcionem controle, sistematização, revisão e segurança maior do que possuem outras formas de saber não científicas. (CERVO; BERVIAN, 2002, p. 10).
Quando conhecimentos de naturezas diferentes entram em contato, esse
intercâmbio deve ser bem conduzido para que não se corra o risco de um sobrepujar
o outro, sendo muito comum que o conhecimento científico tenha domínio sob o
conhecimento tradicional.
Gehlen retrata bem esse “risco”:
Para ser eficiente na agricultura moderna, é preciso renunciar a saberes tradicionais e apropriar-se de outros, levando à perda do controle do processo em sua totalidade, criando dependência do(s) técnico(s). É através da relação mediada pelos técnicos que se produzem a dominação e a expropriação. (GEHLEN, 2004, p. 97).
Assim, segundo essa concepção, para serem eficientes na agricultura
moderna, os produtores necessitam renunciar parte de seu saber tradicional e se
apropriar de um novo saber. Tal processo ocorre no ritmo das exigências do
mercado e não no da maturação de um aprendizado ou do saber reelaborado,
levando muitas vezes à perda do saber técnico herdado. (GEHLEN, 2004).
Todavia, o grupo de trabalho que forma o Programa Municipal de
Desenvolvimento da Cadeia Produtiva do Feijão, a partir dos métodos participativos
que vem utilizando, demonstra trabalhar com uma perspectiva que vai à contramão
do “perigo” alertado por Gehlen. O grupo tem como objetivo a construção coletiva
entre os diferentes saberes, valorizando e utilizando os conhecimentos de cada ator
participante do programa, sejam conhecimentos acadêmico-científicos consolidados,
sejam os conhecimentos empírico-tradicionais advindos da vivência dos agricultores
que precisam buscar soluções para seus problemas cotidianos.
O contexto dessa ação, que faz interagir saberes de naturezas diferentes,
atores sociais/instituições diferentes, nos remete ao conceito de aprendizagem
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significativa, que é o processo através do qual uma nova informação (um novo
conhecimento) se relaciona de maneira não arbitrária e substantiva (não literal) à
estrutura cognitiva do aprendiz. É no curso da aprendizagem significativa que o
significado lógico do material de aprendizagem se transforma em significado
psicológico para o sujeito.
Para Ausubel (1963, p. 58), a aprendizagem significativa é o mecanismo
humano, por excelência, para adquirir e armazenar a vasta quantidade de ideias e
informações representadas em qualquer campo de conhecimento.
A essência do processo da aprendizagem significativa está, portanto, no
relacionamento não arbitrário e substantivo de ideias simbolicamente expressas a
algum aspecto relevante da estrutura de conhecimento do sujeito, isto é, a algum
conceito ou proposição que já lhe é significativo e adequado para interagir com a
nova informação. É dessa interação que emergem, para o aprendiz, os significados
dos materiais potencialmente significativos, ou seja, suficientemente não arbitrários
e relacionáveis, de maneira não arbitrária e substantiva, a sua estrutura cognitiva. É
também nessa interação que o conhecimento prévio se modifica pela aquisição de
novos significados.
Fica, então, claro que na perspectiva ausubeliana, o conhecimento prévio (a
estrutura cognitiva do aprendiz) é a variável crucial para a aprendizagem
significativa. Dessa maneira, pode-se considerar que todo o conhecimento empírico
já trazido pelo agricultor é elemento essencial para a interação com o conhecimento
(científico) que se apresenta, sendo imprescindível para que o novo saber gerado a
partir da sinergia dos dois tenha real significado. O outro lado da troca também
segue a mesma “lei”: o conhecimento científico dos técnicos e pesquisadores em
interação com o saber do agricultor gera um novo conhecimento pleno de
significância.
Novak (1981) tem o que ele chama de sua teoria de educação: “A
aprendizagem significativa subjaz à integração construtiva entre pensamento,
sentimento e ação que conduz ao engrandecimento (“empowerment”) humano”. Em
síntese, o grupo de trabalho criado em São Lourenço do Sul, pautado na perspectiva
da aprendizagem significativa, utiliza um método de trabalho que contribui em
diversas perspectivas, desde o contexto econômico da cooperativa, ao contexto de
desenvolvimento humano de seus cooperados.
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3.1 EXTENSÃO RURAL: A EMATER/RS-ASCAR NO DIÁLOGO E MEDIAÇÃO
Conforme Lteif et al. (2007), o termo extensão rural pode ser compreendido
como uma forma de interação, mediação e comunicação com o outro, mas também
pode estar relacionado à persuasão, intervenção, invasão cultural e manipulação do
outro.
O conhecimento na extensão rural convencional percorre um sentido unidirecional, não havendo troca, mas transmissão de conhecimentos, daquele que julga saber (técnico) até aquele que se julga não saber (agricultor), desconsiderando os saberes tradicionais e/ou empíricos deste último. Não havendo espaço para a participação e troca de saberes, não sendo configurada assim, uma mediação no sentido do estabelecimento de uma relação horizontal e simétrica. (LTEIF et al., 2007, p. 3).
Entretanto, o quadro descrito acima está mudando, haja vista a proposição de
um novo modelo de extensão rural que surge no momento em que o Estado
brasileiro afirma seu compromisso com a extensão rural pública e gratuita, expressa
pela Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER) instituída
no ano 2004, sob a coordenação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),
objetivando o desenvolvimento de uma nova forma de conceber o extensionismo
rural. Essa nova proposta de ATER exige das partes envolvidas na interação,
sobretudo dos técnicos extensionistas, a cooperação necessária para conferir
credibilidade na fala, ação e experiência do outro. A proposta sugere que se
modifique radicalmente o comportamento e a forma de interagir com o outro, enfim,
significa uma fonte inicial para a inovação da interação social no processo de
extensão rural.
Para a presente análise vislumbra-se essa interação na relação entre
agricultor e técnico (extensionista rural), tendo como pressuposto que o
extensionista possui papel de mediação, o que para Novaes (1994, p. 178) implica
em “ser ponte, estar entre e fazer o meio de campo”, a mediação apresenta-se ainda
como uma possibilidade de “traduzir e/ou introduzir falas e linguagens”.
Em conversas com os técnicos da EMATER/RS-ASCAR obteve-se um relato
do método utilizado para o desenvolvimento do Programa Municipal de
Desenvolvimento da Cadeia Produtiva do Feijão junto à cooperativa. A primeira
etapa do trabalho consistiu na união entre a COOPAR e a EMATER/RS-ASCAR
local, que conjuntamente elencaram, entre os agricultores cooperados produtores de
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feijão, aqueles que poderiam iniciar o trabalho, concentrando-os por proximidade
entre eles e a cooperativa, com o intuito de facilitar a assistência técnica e o
intercâmbio. Posteriormente, foi realizada uma reunião entre esses agricultores, a
COOPAR, a EMBRAPA e a EMATER/RS-ASCAR para apresentar, ajustar e pactuar
a proposta para o desenvolvimento do programa.
Para atingir o objetivo proposto, concluiu-se que a tecnologia necessária
iniciaria com a utilização de semente de boa qualidade (padrão agronômico, aceito
pelo agricultor e aprovado pelo consumidor). Para a escolha do material a ser
utilizado, buscou-se uma parceria com a EMBRAPA para a formação de unidades
de observação e demonstração, onde seriam avaliadas coleções com material
baseados nas indicações da EMBRAPA, com sugestões da COOPAR e seus
agricultores e da EMATER/RS-ASCAR.
Nas fotos abaixo podem ser observados dois exemplos de unidades de
observação.
Figura 12 - Unidades de observação para comparação e avaliação de cultivares
Fonte: EMATER/RS-ASCAR.
Foram montadas duas unidades, denominadas parcelões, cuja área era maior
do que as usualmente utilizadas em unidades comumente empregadas, para que se
pudesse ser mais fiel ao tamanho de área normalmente utilizada pelos agricultores.
Em uma dessas áreas foi utilizada irrigação. Também foram montadas unidades
menores, com coleções em que constavam algumas variedades iguais as dos
parcelões e outras diferentes, procurando aumentar o universo a ser avaliado e
utilizar diferentes locais e solos.
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Além dessas unidades foi montada outra avaliação denominada pela EMBRAPA de PBio (Partitura de Biodiversidade), com cultivares tradicionais melhoradas, crioulas e algumas cultivares coloridas, que, conforme a Embrapa, possuem potencial para serem utilizadas em mercados de feijões de cor, com produção orgânica e agroecológica, que proporcionará avaliações para o atendimento dos objetivos futuros. Cabe ressaltar que o objetivo inicial do programa era suprir o mercado tradicional na região e estado, baseado em feijão preto, buscando um aprimoramento dessas cultivares. Porém, com a evolução do programa, vislumbra-se no futuro desenvolver produtos varietais e atingir nichos de mercado de feijões coloridos, orgânicos e agroecológicos. (Entrevista 1)
Após a implantação das unidades, e durante o ciclo vegetativo, foram
realizadas avaliações das cultivares pelos técnicos da COOPAR e da EMATER/RS-
ASCAR, com os agricultores das unidades. Também durante esse período, em
épocas oportunas, foram realizadas excursões e Dias de Campo com os demais
agricultores e técnicos da EMBRAPA, com o intuito de avaliar e discutir a tecnologia
utilizada. No período de colheita, foram avaliadas a produtividade e a produção de
cada cultivar. Após a safra, foram implantadas unidades no período de safrinha, para
que também se pudessem obter avaliações considerando essa época de cultivo.
Posteriormente, o grupo realizou uma grande reunião conjunta, na qual foi
apresentado todo o processo desenvolvido até aquele momento, para avaliação dos
resultados e para que se tirassem alguns indicativos de melhores variedades,
buscando a implantação da produção de sementes a ser executada pela COOPAR e
utilizada pelos agricultores na formação do feijão da marca Pomerano. O resultado
desse trabalho foi a identificação de quatro variedades de feijão preto, que deverão
ser priorizadas para desenvolvimento do trabalho, tendo em vista o mercado
tradicional.
Vencidas as etapas técnicas/agronômicas, partiu-se para a avaliação pelos
consumidores das cultivares destacadas. Aproveitou-se a 35ª Expofeira de São
Lourenço do Sul, promovida pelo Sindicato Rural, onde tradicionalmente o IRGA128
realiza um evento chamado “Coma Arroz”. Nessa edição, foi realizada uma parceria
com o Programa do Feijão e realizou-se o “Coma Arroz, Com Feijão”, ocasião em
que se fez uma explanação do Programa de Desenvolvimento do Feijão, bem como
a degustação e avaliação das cultivares, do ponto de vista culinário, gastronômico e
128 Instituto Rio Grandense do Arroz: entidade pública, com autarquia administrativa, subordinada ao
Governo do Estado do Rio Grande do Sul, por intermédio da Secretaria da Agricultura. Tem como finalidade principal incentivar, coordenar e superintender a defesa da produção, da indústria e do comércio de arroz produzido no Estado.
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agrado do consumidor, com representantes do comércio, restaurantes e entidades
representativas de organizações, poder público e público participante da 35ª
Expofeira. Com essa iniciativa, buscou-se oferecer aos consumidores um feijão de
qualidade, que combinado com o arroz caracteriza o principal prato diário dos
brasileiros.
Na fotografia abaixo há um registro da atividade para avaliação gastronômica
das variedades de feijão durante a 35ª Expofeira.
Figura 13 - Evento "Coma Arroz com Feijão", para degustação e avaliação de cultivares
Fonte: EMATER/RS-ASCAR.
Com a validação das cultivares pelos consumidores, constatou-se a importância do trabalho bem conduzido, que em pouco tempo conseguiu promover o direcionamento para a estruturação de uma rede importante do feijão, para o município de São Lourenço do Sul. (Entrevista 2)
Segundo os técnicos, os próximos passos do programa visam à continuidade
das avaliações de cultivares (é um processo contínuo e dinâmico) e à formação das
lavouras comerciais a partir do material selecionado, bem como dos campos de
produção de sementes. Nesse relato de como o trabalho vem sendo conduzido,
observa-se a ação da Assistência Técnica e Extensão Rural como mediadora e
facilitadora do processo, favorecendo o diálogo entre os atores envolvidos, além de
partícipe do intercâmbio de saberes.
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3.2 PESQUISA CIENTÍFICA: A EMBRAPA NO DIÁLOGO DE SABERES
A Embrapa Clima Temperado129 tem por missão viabilizar soluções de
pesquisa, desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura na
região de clima temperado, em benefício da sociedade. Assim, tem entre seus
objetivos gerar tecnologias para melhorar a eficiência e a qualidade dos sistemas
produtivos agropecuários na sua região de abrangência, garantindo sua
competitividade e sustentabilidade, bem como transferir, eficientemente, as
tecnologias geradas, satisfazendo as demandas da sociedade.
Desta maneira, tendo em vista a missão dessa instituição, a participação no
programa de fortalecimento da rede produtiva do feijão vem ao encontro dos almejos
da instituição, sendo que o panorama favoreceu também, pela confluência de
necessidades das diversas partes (COOPAR e seus agricultores, EMATER/RS-
ASCAR e EMBRAPA), a articulação do programa no município.
Um apanhado sobre o cenário que foi “pano de fundo” para que o grupo de
trabalho para fortalecimento da rede produtiva do feijão fosse estruturado foi
relatado pelo pesquisador da EMBRAPA Clima Temperado. Para começar a montar
esse painel, ele ressalta a existência de um grupo de agricultores com tradição na
produção de feijão:
Seus conhecimentos remetem àqueles dos produtores convencionais, cujo sistema de produção agrega o uso de insumos sintéticos, externos à propriedade (ureia, supersimples, ou triplo, aplicação de alguns agrotóxicos no controle de doenças e pragas, cultivares disponibilizados por alguma entidade de pesquisa, pública ou privada etc.). (Entrevista 3)
Somando-se a esse perfil, apresenta-se uma cooperativa de agricultores à
qual os agricultores mencionados em sua maioria estão associados, que possui uma
marca de feijão disponibilizada no mercado (Pomerano), à qual se quer acrescentar
qualidade e confiabilidade, de modo a conquistar mercado.
O cenário apresenta ainda:
Uma instituição de pesquisa, a Embrapa, com uma oferta de tecnologias (cultivares), cujo potencial produtivo, além de qualitativo, é altamente promissor, mas que obedece ao que se chama interação genótipo x ambiente que, na prática, significa dizer que nem toda cultivar é adequada para todos os ambientes e que cada ambiente tem a sua cultivar melhor
129 Informações sobre a EMBRAPA Clima Temperado foram retiradas do site.
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adequada. Que, além disso, oferece diferentes cultivares quanto ao tipo de grão que possuem. (Entrevista 3)
Frente a esse painel, o pesquisador relata que esses atores se reúnem, sob
os auspícios da entidade líder da iniciativa, a EMATER/RS-ASCAR, para entender a
maneira mais correta de identificar a forma mais viável de tornar exequível a ideia.
Decidindo, por fim, que o mais correto é testar as cultivares (tecnologias)
disponíveis, nas condições usuais de exploração na região, e a partir dos
conhecimentos tradicionais dos agricultores, aos quais são agregados
conhecimentos sobre essas tecnologias desenvolvidas pelo órgão de pesquisa.
As observações de campo são analisadas e, a partir de quatro cultivares de feijão que se sobressaem nestas análises, decide-se avaliar sua qualidade culinária em um teste amplo, com a participação de consumidores potenciais, atividade esta realizada durante o evento “Coma Arroz com Feijão”. Neste momento são escolhidas as variedades preferidas. (Entrevista 3)
Percebe-se, assim, uma confluência, primeiro durante a definição das práticas
a serem adotadas quando do cultivo das cultivares a serem testadas, depois na
definição daquelas a serem consideradas as melhores na avaliação de campo, entre
os saberes dos agricultores e dos pesquisadores. Aí se incluem o ciclo das
cultivares, a reação às doenças presentes no campo, o porte das plantas, a
adaptação ao ambiente considerado, resultando na produtividade alcançada, o
desempenho durante a colheita, o comportamento durante o processo de
armazenamento e finalmente, com o diálogo entre todos os parceiros, a qualidade
de cocção.
Segundo os pesquisadores da EMBRAPA, se observa a íntima coparticipação
dos diversos segmentos envolvidos no programa, cada qual contribuindo com seus
respectivos saberes, visando à definição daquilo que é considerado o melhor para o
desenvolvimento da rede produtiva do feijão e à conquista de um mercado que,
seguramente, se conquistado, poderia remunerar de forma justa e estável os
agricultores e sua cooperativa.
Enfim, conforme a EMBRAPA, este foi um caso de aplicação de um método
racional, reconhecido imediatamente por outros grupos de agricultores, de outras
regiões, que dele vieram a aprender para, em seu favor, aplicá-lo.
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3.3 A COOPAR E SEUS ASSOCIADOS NO DIÁLOGO DE SABERES
As conversas com o técnico da cooperativa que integra o grupo de trabalho e
que vem acompanhando todo processo evidenciam o interesse do trabalho com a
cultura do feijão, tendo em vista o potencial existente entre os associados, que já
cultivam áreas significativas em suas propriedades, e a existência de uma marca
comercial própria. Conforme seu relato, o maior problema é a falta de um padrão
para a comercialização, considerando um mercado consumidor atual cada vez mais
competitivo. Atualmente, não existe uma organização para a produção, sendo que
os agricultores produzem diversas variedades, que resultam variados padrões de
grãos e valores culinários, dificultando assim uma padronização para
empacotamento e venda.
Desta forma, através de seu discurso, a cooperativa demonstra perceber a
importância do intercâmbio entre a pesquisa científica e as práticas de seus
agricultores, para que o objetivo de padronização tão almejado pela COOPAR seja
aos poucos concretizado. Os cooperados que aderem ao programa como
demonstradores têm papel fundamental em todo esse processo de diálogo de
saberes, pois é a partir da sua disponibilidade e “espírito curioso” (podemos
considerá-los como aspirantes a cientistas!) que se viabiliza a concretização do
programa na cooperativa. Sua ação como demonstradores e multiplicadores dos
conhecimentos construídos poderá auxiliar na formação de uma rede de saberes
sobre o feijão no município.
Segue uma breve descrição sobre a participação de cada um dos
demonstradores:
Um dos agricultores demonstradores instalou uma coleção-padrão da
EMBRAPA, com variedades de feijão registradas existentes no mercado. O
principal objetivo foi observar o comportamento ambiental de cada variedade,
considerando adaptação climática e de solo. Nessa coleção, a grande maioria
das variedades foi de feijões pretos, seguindo uma lógica comercial de consumo
desse alimento.
Dois agricultores demonstradores instalaram um parcelão em cada
propriedade, unidades-padrão da EMBRAPA, com variedades de feijão
codificadas sem registro, em sua maioria, objetivando observá-las quanto ao
comportamento ambiental, considerando adaptação climática e de solo. Nessas
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unidades, constaram algumas variedades novas de feijões de cor, tendo em vista
a aposta da EMBRAPA nesse tipo de alimento, que tem crescido em demanda de
consumo.
Por fim, um agricultor instalou uma coleção-padrão da EMBRAPA,
denominada PBio (Partitura de Biodiversidade), com variedades crioulas de
feijão. O principal objetivo também foi observar o comportamento ambiental de
cada variedade, considerando adaptação climática e de solo. Nessa coleção,
predominaram os feijões de cor, tendo em vista nichos de mercado,
especialmente orgânicos.
Desta maneira, os experimentos que cada um dos demonstradores realizou
permitiram com que fizessem observações e constatações orientadas pelos
técnicos da EMATER/RS-ASCAR e EMBRAPA, criando um espaço para
formulação de novos conhecimentos para os agricultores e auxiliando na
definição das melhores cultivares.
Nas entrevistas com os agricultores demonstradores, fica evidente a ânsia
por adquirir mais conhecimentos técnico-científicos. Todos demonstram um saber
sobre a produção de feijão, entretanto, mostram-se com dúvidas e dificuldades
que são decorrentes da falta de embasamento científico. Assim, relatam que a
iniciativa do grupo de trabalho está sendo de grande utilidade para o
aprimoramento da sua atividade como produtores de feijão.
Segundo um dos produtores entrevistados:
Os Dias de Campo, excursões, a apresentação de variedades novas, de novas técnicas, insumos, a assistência técnica, a troca com outros produtores, enfim as orientações e pesquisas que são trazidas nas reuniões vêm contribuindo para a melhora da nossa produção. (Entrevista 4)
As fotos abaixo ilustram como as reuniões técnicas e os dias de campo
proporcionam momentos de troca e construção entre técnicos, pesquisadores e
agricultores.
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Figura 14 - Reunião técnica com EMBRAPA, EMATER, COOPAR
Fonte: EMATER/RS-ASCAR.
Figura 15 - Dia de campo na propriedade de agricultor demonstrador
Agricultores
Fonte: EMATER/RS-ASCAR.
Outro relato dos agricultores é de que a cooperativa tem um forte trabalho
junto aos produtores de leite e milho, viabilizando capacitações técnicas para essas
produções constantemente, entretanto, na área produtiva do feijão, até então, não
havia muitas atividades, o que melhorou muito com o início do programa no
município, que vem proporcionando momentos para a troca de informações e
conhecimentos, enriquecendo assim o trabalho. Também foi narrada a falta de
orientações técnicas para a produção de sementes próprias de qualidade, assim
como a dificuldade para a aquisição de sementes no município, considerando a
necessidade de implantação de novas lavouras, situação que o programa vem
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mudando através da Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) e da oferta de
tecnologias (cultivares) por parte da instituição de pesquisa.
Os trabalhos nas unidades se caracterizaram pela construção do
conhecimento gerado no andamento dos trabalhos. A junção da experiência
acumulada dos agricultores (saber constituído), da orientação técnica da pesquisa e
do acompanhamento da extensão rural constituiu-se em um formato importante de
trabalho, considerando os objetivos propostos. Cita-se a importância que foi a
abertura das propriedades para o acompanhamento e a avaliação do trabalho de
forma participativa entre todos os atores envolvidos: agricultores, pesquisadores,
extensionistas rurais e técnico da cooperativa.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O intuito dessa parceria entre EMATER/RS-ASCAR, EMBRAPA Clima
Temperado, COOPAR e agricultores é, a partir da união de esforços das diferentes
instituições e seus conhecimentos, promover uma estratégia de melhoria, que visa a
sanar uma demanda advinda da cooperativa, ou seja, a melhoria da rede produtiva
do feijão, qualificando o produto e incrementando, assim, a competitividade da
cooperativa no mercado.
Os mecanismos que o grupo de trabalho articulou foram focados na
qualificação dos agricultores, através de reuniões técnicas, palestras, assistência
técnica e visitas que vêm sendo realizadas pela cooperativa, EMATER/RS-ASCAR e
EMBRAPA. Além disso, foram implantadas unidades demonstrativas de feijão, com
o intuito de avaliar as cultivares em uso no Rio Grande do Sul, visando a determinar
quais as melhores cultivares de feijão para o município. Enfim, todo o esforço de
qualificação dos produtores visa a um produto final padronizado, conforme as
demandas de mercado, um produto que identifique o feijão produzido pela
cooperativa, ou seja, a marca Pomerano.
Para além da estruturação produtiva, observa-se que o programa formatado
pelo grupo de trabalho obteve, como resultado secundário, o auxílio à promoção da
segurança alimentar. Assim, a iniciativa alinha-se ao programa “Feijão com Arroz” do
Governo do Estado, que visa a incentivar essas duas culturas que têm importância
estratégica para o Estado, tanto do ponto de vista econômico, como do social.
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Programa este que reforça também a importância do feijão do ponto de vista social,
cultural, econômico e nutricional.
Outro resultado secundário que o programa pode suscitar é que o incentivo
ao cultivo do feijão também surge como alternativa à cultura do fumo, típica da
região. O apoio à diversificação é uma estratégia que vem sendo adotada para que
os produtores vislumbrem alternativas de cultivo frente à fumicultura, que é bastante
penosa para o agricultor e tende a reduzir gradativamente, tendo em vista a queda
que vem ocorrendo no consumo de cigarros. Dessa forma, é essencial planejar
ações visando à substituição, ao longo dos anos, desse cultivar, necessidade tanto
no âmbito de saúde pública, como também de economia.
Todos esses elementos que vem sendo trabalhados no programa de
estruturação produtiva do feijão denotam aspectos agregadores para o processo de
desenvolvimento local e rural, tornando a cooperativa e seus parceiros (aliados)
atores promotores dessa estratégia de desenvolvimento. No entanto, essa iniciativa,
que busca compreender todas as etapas da produção do feijão, desde a formação
da lavoura, até o consumidor final, só foi possível graças à construção coletiva dos
diferentes atores envolvidos, cada qual contribuindo em uma etapa do processo e
resultando em um saber que poderá corroborar para o fortalecimento da COOPAR e
de seus cooperados, através do fortalecimento do feijão Pomerano.
Saberes tradicionais advindos dos agricultores foram colocados em contato
com informações provindas de pesquisas acadêmicas. A prática diária dos
produtores e suas constatações acerca da produção de feijão foram observadas
pelos pesquisadores e técnicos e relacionadas e debatidas em contraponto aos
resultados científicos já obtidos nessa área. Tudo isso possibilitou momentos de
construção, que levaram em conta todos os aspectos suscitados, acrescentando
tanto a um como ao outro tipo de conhecimento.
O trabalho realizado através da COOPAR e seus associados, aliados aos
demais atores (EMATER/RS-ASCAR e EMBRAPA), se desvela como instrumento
estratégico para, além de desenvolver a cadeia produtiva do feijão, viabilizar
também o desenvolvimento da própria cooperativa. A busca pela padronização do
feijão produzido pelos cooperados, visando à maior competitividade e buscando
tornar a marca Pomerano referência no mercado comercial, vem como mecanismo
de superação frente à competição da economia globalizada, favorecendo assim o
desenvolvimento local.
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A articulação dos diferentes atores sociais na perspectiva de organizar e
conhecer processos socioeconômicos locais, incluindo os pequenos agricultores na
matriz econômica e produtiva do município e da região, amplia as liberdades dos
cooperados, permitindo-lhes apropriarem-se de conhecimentos, técnicas e
processos, facilitando o desenvolvimento de aptidões e capacidades.
Referendando o que Rosa e Freire (2010) já afirmaram, enquanto o saber
popular serve de base para pesquisa, e inclusive podem ser utilizadas explícitas
referências aos conhecimentos tradicionais, ele deve passar por um crivo
metodológico que exponha o conhecimento tradicional à prova de suas capacidades,
sempre considerando o conhecimento como horizontal, ou seja, ninguém é melhor
ou mais sabido do que ninguém; e sempre considerando que as práticas são locais
e só devem ser transpostas a outros contextos e outros meios depois de estudos de
viabilidade, para que não ocorra a homogeneização das práticas e dos
conhecimentos agrícolas. Assim, um necessita do outro, pois se não houver o
conhecimento tradicional, a pesquisa fica comprometida, afinal de contas a
curiosidade gerada a partir do saber empírico é que aguça o espírito da ciência.
Dessa forma, o método de fazer em parceria do grupo de trabalho formado
por diferentes saberes, saber acadêmico-científico e saber tradicional, permitiu a
construção de um processo de melhoria para uma demanda pontual da cooperativa.
Entretanto, esse processo, viabilizado pela sinergia construída por esses
conhecimentos diferenciados, pode ser aplicado a outras demandas que surjam,
servindo o “jeito de fazer juntos” como modelo para futuros projetos que visem ao
desenvolvimento da cooperativa.
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