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A CONVENÇÃO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLÓGICA: ACORDO GLOBAL RUMO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL LA CONVENTION SUR LA DIVERSITÉ BIOLOGIQUE: UN ACCORD GLOBAL VERS LE DÉVELOPPEMENT DURABLE Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega Héctor Leandro Arroyo Pérez ∗∗ RESUMO A espécie humana é a responsável pelo processo extinção que se vive atualmente. Segundo Hans Jonas, a manutenção da vida no planeta está sob o encargo da raça humana, que com a desenvolução da técnica adquiriu a capacidade de descaracterizá-la irreversivelmente. Essa responsabilidade engendrou a idéia do desenvolvimento sustentável. Este é um novo paradigma na atividade produtiva, inserindo a variável ambiental no desenvolvimento. Gérard Monédiaire explica que o desenvolvimento sustentável está dividido em quatro pilares básicos: eficácia econômica, proteção ao meio ambiente, eqüidade social e respeito às culturas. No campo da Biodiversidade a Convenção sobre a Diversidade Biológica é instrumento chave para o desenvolvimento sustentável, na medida em que traz como objetivos principais a conservação, uso sustentável e repartição justa e eqüitativa dos benefícios advindos da exploração dos elementos da biodiversidade. Dado o exposto, este trabalho demonstra como a Convenção sobre a Diversidade Biológica, através dos seus três objetivos principais surge no cenário internacional como um acordo global visando à concretização do desenvolvimento sustentável. PALAVRAS-CHAVE: CONVENÇÃO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLÓGICA - DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL - DIREITO INTERNACIONAL AMBIENTAL Dra. Em direito e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) ∗∗ Graduando em direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG) 1

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A CONVENÇÃO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLÓGICA: ACORDO GLOBAL

RUMO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

LA CONVENTION SUR LA DIVERSITÉ BIOLOGIQUE: UN ACCORD GLOBAL

VERS LE DÉVELOPPEMENT DURABLE

Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega∗

Héctor Leandro Arroyo Pérez∗∗

RESUMO

A espécie humana é a responsável pelo processo extinção que se vive atualmente.

Segundo Hans Jonas, a manutenção da vida no planeta está sob o encargo da raça

humana, que com a desenvolução da técnica adquiriu a capacidade de descaracterizá-la

irreversivelmente. Essa responsabilidade engendrou a idéia do desenvolvimento

sustentável. Este é um novo paradigma na atividade produtiva, inserindo a variável

ambiental no desenvolvimento. Gérard Monédiaire explica que o desenvolvimento

sustentável está dividido em quatro pilares básicos: eficácia econômica, proteção ao

meio ambiente, eqüidade social e respeito às culturas. No campo da Biodiversidade a

Convenção sobre a Diversidade Biológica é instrumento chave para o desenvolvimento

sustentável, na medida em que traz como objetivos principais a conservação, uso

sustentável e repartição justa e eqüitativa dos benefícios advindos da exploração dos

elementos da biodiversidade. Dado o exposto, este trabalho demonstra como a

Convenção sobre a Diversidade Biológica, através dos seus três objetivos principais

surge no cenário internacional como um acordo global visando à concretização do

desenvolvimento sustentável.

PALAVRAS-CHAVE: CONVENÇÃO SOBRE A DIVERSIDADE BIOLÓGICA -

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL - DIREITO INTERNACIONAL

AMBIENTAL

∗ Dra. Em direito e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) ∗∗ Graduando em direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG)

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RÉSUMÉ

L'espèce humaine est la responsable par le processus extinction qui se vit actuellement.

Selon Hans Jonas, la manutention de la vie dans la planète est sous la charge de la race

humaine, qui avec l’évolution de la technique a acquis la capacité de la faire perdre le

caractère irréversiblement. Cette responsabilité a produit l'idée du développement

durable. Celui-ci est un nouveau paradigme dans l'activité productive, insérant la

variable environnementale dans le développement. Gérard Monédiaire explique que le

développement durableble est divisé dans quatre piliers basiques: efficacité

économique, protection à l'environnement, équité sociale et respect aux cultures. Dans

le champ de la Biodiversité la Convention sur la Diversité Biologique est un instrument

fondamental pour le développement durable, dans la mesure où apporte comme des

objectifs principaux la conservation, l'utilisation soutenable et la répartition juste et

équitable des bénéfices arrivés de l'exploration des éléments de la biodiversité. Donné

cet exposé, ce travail démontre comme la Convention sur la Diversité Biologique, à

travers de ses trois objectifs principaux, apparaît dans le scénario international comme

un accord global en visant à la concrétisation du développement durable.

MOTS-CLÉ: CONVENTION SUR LA DIVERSITÉ BIOLOGIQUE -

DÉVELOPPEMENT DURABLE - DROIT INTERNATIONAL DE

L’ENVIRONNEMENT

INTRODUÇÃO

No presente trabalho tratar-se-á sobre a biodiversidade e seus valores, das

implicações da atividade econômica na sua manutenção e de como o desenvolvimento

sustentável propõe a conciliação entre conservação dos recursos, desenvolvimento

social e econômico e respeito à diversidade cultural e de como a Convenção sobre a

Diversidade Biológica tem papel crucial na concretização do desenvolvimento

sustentável no que tange à biodiversidade.

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1 CONCEITO E VALORES DA BIODIVERSIDADE

A extinção de espécies é algo corriqueiro na história, onde uma espécie

dominante dá espaço a uma outra, operando-se a evolução das formas de vida

existentes. Segundo o Earth Policy Institute, o planeta já passou por cinco grandes

processos de extinção, todos eles devidos a causas naturais, como erupções vulcânicas e

mudanças climáticas. A última onda de extinção, a mais famosa, foi há cerca de 65

milhões de anos, quando 75% das espécies foram eliminadas, inclusive os dinossauros.1

No entanto, segundo os cientistas2, vive-se um novo processo, só que, ao contrário dos

anteriores, este não é causado por fatores naturais, e sim pelas atividades desenvolvidas

pela espécie humana.

Em geral, a intervenção do homem na natureza se calca na crença de que todas

as suas conseqüências são limitadas, incapaz de provocar danos ao conjunto da

natureza. Hans Jonas, ao explicar o pensamento antes da “consciência ecológica”,

afirma que “as liberdades que ele (o homem) toma com os habitantes da terra, do mar, e

do ar deixam, entretanto, imutável a natureza global desses ‘reinos’, e não diminuem

suas forças criadoras.” (tradução livre). 3

A degradação dos recursos naturais no decorrer da história teve conseqüências

impressionantes. Estima-se, considerando-se que existem cerca de 10 milhões de

espécies no planeta4, que cerca de 5% são extintas a cada década, o que perfaz cerca de

50 mil espécies extintas por ano! O impacto é ainda maior de acordo com as

características da área em questão. Estudos mostram que quando uma área sofre

diminuição de cerca de 10% do seu tamanho o “número de espécies eventualmente se

reduz à metade, e algumas espécies desaparecem imediatamente, enquanto outras

perduram mais um tempo sem expectativa de continuidade no futuro, e por esta razão

são chamadas de mortas-vivas”.5

1 LARSEN, Janet. The sixth Great Extinction: a Status Report. In http:// www.earth-policy/Updates35_printable.htm . Acessado em 31 de julho de 2006. 2 Cf. LEAKEY, Richard e LEWIN, Roger. La sixième extinction – Évolution et Catastrophes. Paris : Flammarion, 1999. 3 JONAS, Hans. Principe Responsabilité. Paris: Champs Flammarion, 2003. p. 24. 4 As estimativas quanto ao número de espécies existentes variam de 10 milhões até 100 milhões, sendo mais consensual a primeira. 5ALENCAR, Gisela Santos de. Mudança ambiental global e a formação do regime para proteção da biodiversidade. Brasília: Universidade de Brasília, 1995. p. 105.

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De acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN)6,

são seis as principais causas de extinção das espécies7: a) Fragmentação e deterioração

de habitats; b) Introdução de espécies exóticas; c) Super exploração de espécies de

plantas e animais; d) Poluição do solo, água e atmosfera; d) Mudança climática global;

e) Agricultura e florestamento Industrial.

O artigo 2º da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) define

biodiversidade como: a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas (art. 2º da CDB).

Diversidade em nível genético significa diversidade de genes dentro de uma

espécie, ou seja, pode ser caracterizada com a existência de várias populações dentro de

uma mesma espécie ou pela variação genética existente dentro de uma mesma

população. Diversidade de espécies é a quantidade de espécies em uma área. A

diversidade de ecossistemas relaciona a diversidade de espécies com os seus processos e

interações e a troca da composição de espécies de uma região com a outra. Segundo

Sarla a diversidade dos ecossistemas é avaliada em termos de “distribuição mundial (...)

ou continental (...) grau de participação do ambiente em parques ou mosaicos

biológicos, ou seja, mede a continuidade de habitats diferentes no espaço base de tipos

de ecossistemas definidos segundo suas características gerais”(tradução livre).8

Dentro do conceito de biodiversidade também está inserida a diversidade

cultural humana, a sociobiodiversidade. Ela compreende, o patrimônio cultural de povos

autóctones e de comunidades tradicionais9, incluídos seus conhecimentos, inovações

quanto ao manejo da biodiversidade. A inclusão desses elementos culturais se deve ao

reconhecimento da relação de dependência existente entre os recursos biológicos e o

modo de vida tradicional de comunidades locais e indígenas. Segundo Santilli,

“diversos estudos atestam serem os povos indígenas e as populações tradicionais

6 A UICN (IUCN – International Union for Nature Conservation) é uma associação internacional de natureza híbrida, pois está composta de tanto de Estados como de ONGs e até mesmo de entidades privadas, sendo a maior organização internacional para a proteção do meio natural existente, da qual o Brasil é membro. 7 IUCN – UNEP – WRI. Global Biodiversity Strategy: Guidelines for action to safe study end use Earth’s biotic wealth Sustainably and Equitably. Gland, Switzerland, p. 7. 8 SARLA, Rosalía Ibarra. La explotación petrolera mexicana. Ciudad de México: UNAM, 2003. p. 14.

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responsáveis, em grande parte, pela diversidade biológica de nossos ecossistemas,

produto da integração e do manejo da natureza em moldes tradicionais”.10

É a biodiversidade que assegura o equilíbrio ambiental do planeta, quanto maior

for, melhor a capacidade de se reagir às alterações ambientais decorrentes da poluição

ou o aumento demográfico. Segundo Albagli, a biodiversidade oferece condições para

que “a humanidade adapte-se às mudanças operadas em seus meios físico e social e

disponha de recursos que atendam a suas novas demandas e necessidades”.11 Além

disso, a biodiversidade tem valor econômico. Para se ter uma idéia, estima-se que o

mercado mundial da indústria química farmacêutica de derivados da biodiversidade

movimenta cerca de US$ 300 bilhões por ano.12 A possibilidade de valoração

econômica dos recursos da natureza e a sua degradação fazem surgir a necessidade de

sua regulação e a emergência de um novo paradigma econômico, o desenvolvimento

sustentável.

2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A degradação do meio ambiente trouxe para o homem a responsabilidade de

viabilizar a continuidade da vida na Terra. As conseqüências das suas ações podem se

fazer sentir durante gerações, pois alteram as condições da existência da própria vida.

Isso foi constatado no ponto 1 do preâmbulo da Declaração de Estocolmo, que diz que

“graças à rápida aceleração da ciência e da tecnologia, o homem adquiriu o poder de

transformar, de inúmeras maneiras e em uma escala sem precedentes, tudo que o

cerca”.13

Nasce, assim, a idéia de uma eqüidade intergeracional, que se manifesta pela

preocupação com as necessidades das gerações futuras. Esta é pautada na percepção de

que os recursos naturais são essenciais à vida na Terra e, ao mesmo tempo, esgotáveis,

9 Entendidas como comunidades rurais não indígenas que estabeleceram modos de vida próprios, como os seringueiros e castanheiros da Amazônia, quilombolas, babaçueiros do Maranhão etc. 10 SANTILLI, Juliana. Biodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados: novos avanços e impasses na criação de regimes legais de proteção. In Revista da Fundação da Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Brasília, Ano 10, vol. 20, jul/dez 2002. p. 53. 11 ALBAGLI, Sarita. Geopolítica da biodiversidade. Brasília: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, 1998. p. 60. 12 CERSKI, Paula, AZEVEDO, Cristina e MOREIRA, Teresa. A convenção sobre a diversidade biológica no Brasil. In Revista de Direito Ambiental. Ano 10, n. 37. jan/mar 2005. p. 116.

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cabendo às gerações presentes cuidar para que estes permaneçam em condições de uso,

possibilitando a existência de vida humana14.

Os marcos do nascimento e desenvolução da idéia de desenvolvimento

sustentável foram a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano,

reunida em Estocolmo em 1972, o relatório Bruntland (Nosso Futuro Comum) de 1987,

a Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992 e,

por fim, a Conferência de Joanesburgo, onde se discutiu uma via comum para sua

implementação.

O Desenvolvimento sustentável está ligado a duas preocupações, o esgotamento

dos recursos naturais e o compromisso com a as necessidades das gerações futuras,

deixando-lhes meios suficientes. O relatório Brundtland resume tal pensamento da

seguinte forma: “o desenvolvimento sustentável pretende satisfazer as necessidades do

presente sem comprometer os recursos equivalentes de que farão uso no futuro outras

gerações”.15 Segundo Gérard Monédiaire, o desenvolvimento sustentável foi “dividido

em ‘pilares’. Inicialmente em número de três (eficácia econômica, proteção ao meio

ambiente, eqüidade social), conta-se com quatro deles a partir de agora, em

conseqüência da recepção cada vez mais corrente do ‘respeito às culturas’”.16

O princípio da eficácia econômica privilegia o aspecto financeiro do

desenvolvimento. Segundo Nusdeo, este é um processo “contínuo pelo qual a

disponibilidade de bens e serviços cresce em proporção superior ao do incremento

demográfico de uma dada sociedade”.17 Implica o desenvolvimento da acumulação de

capital, da tecnologia e a criação de um mercado consumidor. Para isso, envolve

medidas nacionais internacionais. Agenda 21, no que diz respeito à postura dos países

em desenvolvimento, sugere a criação de um ambiente interno favorável a um equilíbrio

ótimo entre produção para o mercado interno e a produção para o mercado de

13 ONU, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Declaração de Estocolmo. In http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/estoc72.htm . Acessado em 7 de agosto de 2006. 14 Cf. princípio 3 da Declaração do Rio de Janeiro. 15 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. 2 ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991, p. 46. 16 MONEDIAIRE. Gerard. A hipótese de um direito do desenvolvimento sustentável e as mutações jurídicas contemporâneas. In Antídoto. Goiânia, ano 0, número 1, 2006, p. 72. 17 NUSDEO, Fábio, Curso de Economia: introdução ao direito econômico. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 349.

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exportação.18 No âmbito internacional, exige-se uma “justa distribuição de riquezas

entre os países”.19 Isso porque “a questão da conservação da natureza integra uma

perspectiva mundial, não só pelos efeitos da destruição ambiental que desconhece

fronteiras, mas sobretudo pela sua vinculação à dinâmica do mercado internacional.” 20

O segundo pilar expressa a conciliação da atividade econômica com o meio

ambiente. As atividades econômicas “modificam o meio ambiente, e este ambiente

modificado representa uma restrição externa para o desenvolvimento econômico e

social”21, exigindo um ajuste de modo que a economia se dê dentro de parâmetros de

respeito à natureza. Um caminho a ser tomado é a adoção de alguns princípios que

contribuem para a diminuição do impacto ambiental, como o do “poluidor-pagador”,

segundo o qual “arca o causador da poluição com os custos necessários à diminuição,

eliminação ou neutralização deste dano”22. Princípio da precaução, que veda a

intervenção ao meio ambiente até que se tenha certeza dos efeitos destas sob o mesmo.

Segundo Derani tal postulado implica na “modificação do modo de desenvolvimento da

atividade econômica” 23 pois afasta no tempo e no espaço o perigo e garante a segurança

das gerações futuras.

O desenvolvimento sustentável também é calcado na idéia de eqüidade social e

bem-estar, seu terceiro pilar. O uso sustentável dos recursos naturais auxilia a realização

da equidade social. A título de exemplo, vê-se a poluição dos recursos hídricos devido à

falta de saneamento básico e a degradação dos recursos naturais quando do surgimento

de uma oportunidade relativamente rentável, como venda de madeira. Nesse sentido

Priya Shyamsundar diz que “sob várias circunstâncias, pode ser ótimo para pessoas

pobres minar recursos naturais, como é o caso da degradação do solo em vários países

ao redor do mundo” (tradução livre).24 Segundo Derani, “exige-se uma adequação a

finalidades mais abrangentes, abraçadas pela expressão qualidade de vida e bem-estar,

18 Ver: Agenda 21, capítulo 2. 19 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 2º ed. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 131. 20 Idem, pp. 125 e 126. 21 Idem, p. 142. 22 Idem, p. 162. 23 Idem, p. 170. 24SHYAMSUNDAR, Priya. Poverty – Environment indicators. Washington, The World Bank Environment Departement. 2002, p. 23.

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produzindo uma mudança social de valores assentada num outro consenso ético sobre os

objetivos da economia”.25

O quarto pilar, o respeito às culturas, foi reconhecido pelo princípio 22 da

Declaração do Rio que diz que “os povos indígenas e suas comunidades, bem como

outras comunidades locais, têm um papel vital no gerenciamento ambiental e no

desenvolvimento, em virtude de seus conhecimentos e de suas práticas tradicionais.” O

processo de uniformização das culturas, com o conseqüente desaparecimento de

conhecimentos sobre propriedades medicinais e nutricionais dos componentes da

natureza causa preocupação. Nesse sentido, Luiz Magno compara a morte de um

curandeiro com o incêndio de toda uma biblioteca, lamentando mais ainda o primeiro

incidente, visto que “os conhecimentos que o curandeiro possuía, diferentemente de

uma biblioteca, encontrar-se-ão perdidos, para sempre”.26 Destarte, desenvolvimento

que não respeite o espaço das comunidades indígenas e sociedades tradicionais não

pode ser considerado como sustentável.

3 ASPECTOS GERAIS DA CDB

A CDB é fruto da confluência dos esforços do PNUMA27 e da IUCN. Seu

projeto original visava uma “umbrella convention”28 para racionalizar as atividades

nesse campo. Tal projeto baseava-se em três pilares: a) obrigação dos Estados de

conservar a diversidade biológica; b) princípio da liberdade de acesso aos recursos

genéticos selvagens e; c) distribuição eqüitativa entre as partes dos custos da

conservação. Entretanto, durante os trabalhos decidiu-se que o tratado global para a

conservação da biodiversidade deveria ser feito na forma de uma framework convention,

ou “convenção-quadro”, que inovaria na regulação do tema.

25DERANI, op. cit., p. 147. 26BASTOS JÚNIOR, Luiz Magno Pinto. A Convenção sobre Diversidade Biológica e os instrumentos de controle das atividades ilegais de bioprospecção In. Revista de Direito Ambiental. n. 23. julho-setembro de 2001, p. 208. 27 Programa das Nações Unidas para o meio ambiente – PNUMA, conhecida em inglês como United Nations environment programme – UNEP. Criado em 1972, em Estocolmo, quando da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. 28 Convenção cujo objetivo é consolidar e organizar normas de outras convenções já existentes, não instituindo nada novo.

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Ao se analisar a origem da CDB, um dos aspectos que mais chamam a atenção é

a transformação do caráter do documento produzido. No início, esperava-se um

documento conservacionista abrangente, encarando a biodiversidade como patrimônio

comum da humanidade, concepção que legitimava o livre acesso ao patrimônio

ambiental dos países. No entanto, em virtude da estratégia dos países ricos em

biodiversidade, sendo todos, na grande maioria, países subdesenvolvidos, foram

inseridos pontos que se relacionam com o desenvolvimento, como o custo das medidas

conservatórias, acesso regulamentado ao patrimônio natural dos países, transferência de

tecnologia e partilha dos benefícios advindos do uso comercial dos recursos naturais.

Graças a estas transformações “a Convenção de Biodiversidade, que nascera uma

convenção conservacionista global (...), a partir de 1991, fo(i) transformada em um

acordo global sobre desenvolvimento sustentável”.29

Convenção-quadro é uma das inovações jurídicas trazida pelo direito ambiental

internacional. Ela tem como pontos principais o fato de anunciar dispositivos de lege

ferenda e demais princípios que funcionam mais como diretivas e menos como

obrigações jurídicas, além de estabelecer um quadro institucional produtor de novas

regras. Alexandre Kiss a define como

um instrumento convencional que enuncia os princípios que devem servir de fundamento à cooperação entre os Estados partes (do tratado) em um domínio específico, deixando-lhes o cuidado de definir, por acordos separados, as modalidades e os detalhes da cooperação, e prevenindo, se for o caso, uma ou várias instituições adequadas para este efeito(...) Trata-se, portanto, de conjuntos, ou melhor, de sistemas convencionais, ao mesmo tempo únicos e múltiplos. (tradução livre).30

Em outras palavras, constitui um acordo que enuncia princípios fundamentais

entre os Estados. A partir daí, por meio de acordos posteriores com arrimo na

convenção, estabelecem-se outras obrigações, dando maior concretude ao pacto inicial.

Sua função é nortear a atividade legislativa interna das partes, os acordos posteriores

realizados dentro de sua dinâmica. Esse tipo de convenção facilita a inserção no direito

internacional de novos princípios ambientais que, com o tempo, podem se tornar

princípios gerais do direito internacional, com vinculação jurídica.

29 ALENCAR, op. cit., p. 121. 30 KISS, Alexandre. Les traités-cadres: une technique juridique caractéristique du droit international de l’environement. In Annuaire Français de droit international XXXIX. Paris : CNRS, 1993, p. 793.

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4 CARACTERÍSTICAS ESSENCIAIS

A CDB possui três objetivos principais, definidos no Artigo 1º, quais sejam: a

conservação da biodiversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e

a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos

genéticos, mediante acesso adequado aos recursos e a transferência de tecnologias

pertinentes. Destes objetivos, trabalhar-se-á de forma mais direta o terceiro, que

transcende a questão da conservação e se relaciona mais com a temática do

desenvolvimento.

4.1 PRINCÍPIOS GERAIS

O acesso aos recursos naturais dos países membros da CDB devem respeitar três

princípios básicos: soberania dos países sobre seus recursos naturais; repartição justa e

eqüitativa dos benefícios auferidos com o empreendimento e; a participação das

comunidades tradicionais e autóctones.

4.1.1 SOBERANIA DOS PAÍSES SOBRE SEUS RECURSOS BIOLÓGICOS

Antes da CDB o aproveitamento dos recursos biológicos era feito sem que o

Estado de origem recebesse contrapartida. O patrimônio biológico era considerado

patrimônio comum da humanidade, vigorando o livre-acesso. O conceito de herança

comum foi rechaçado, prevalecendo a soberania sobre seus recursos naturais. Destarte,

o que se tornou comum apenas a preocupação quanto à sua preservação e uso

sustentável. É o que diz o terceiro parágrafo do preâmbulo da CDB: “a conservação da

diversidade biológica é uma preocupação comum à humanidade”. O parágrafo quarto

acrescenta “que os estados têm direitos soberanos sobre os seus próprios recursos

biológicos”, e o artigo 3º que “os Estados (...) têm o direito soberano de explorar seus

próprios recursos” (grifo meu).

Neste ensejo, o artigo 15.1 diz que “em reconhecimento dos direitos soberanos

dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a

recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional”.

Logo, cabe aos governos regular o acesso à biodiversidade.31 Entretanto, isso não

31 Cumpre-se com o princípio 17 da declaração de Estocolmo: “Deve-se confiar às instituições nacionais competentes a tarefa de planejar, administrar ou controlar a utilização dos recursos ambientais dos

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significa que o este possa dificultá-lo arbitrariamente, afinal, um dos objetivos da

convenção é justamente o acesso adequado aos recursos genéticos. O art. 15.2 diz que

os Estados devem procurar criar condições para que o mesmo ocorra, não criando

restrições aos objetivos da CDB. Acrescenta ainda que o processo deve ser

ambientalmente saudável. Desta feita, uma vedação total dos recursos naturais é

incompatível com a convenção assim como um acesso que não preserve ou utilize de

maneira não sustentável os recursos da diversidade biológica.

O acesso pode se dar de duas maneiras, in situ ou ex situ, dependendo da

situação do recurso. O art. 2º da CDB estabelece que condições in situ são “condições

em que recursos genéticos existem em ecossistemas e habitats naturais e, no caso de

espécies domesticadas ou cultivadas, nos meios onde tenham desenvolvido suas

propriedades características”. O acesso ex situ ocorre quando o material genético está

fora do seu meio natural. Normalmente é feito através de bancos genéticos e coleções,

que aglutinam uma variedade de material seja para o fim de pesquisa, conservação e até

mesmo para exploração comercial. Tal forma de acesso é secundária na convenção,

primeiro porque esta não retroage aos recursos extraídos antes de sua vigência (art.

15.3), segundo porque as novas descobertas de elementos úteis provavelmente serão

extraídos diretamente do país de origem, e não de bancos e coleções. Os recursos que

foram retirados sob a égide da CDB e são conservados ex situ, têm seu regime definido

nos termos estabelecidos na sua retirada.

4.1.2 REPARTIÇÃO JUSTA E EQÜITATIVA DE BENEFÍCIOS

Outro princípio inovador é a repartição justa e eqüitativa dos benefícios

advindos do uso dos recursos genéticos acessados e a transferência de tecnologia. O art.

15.7 diz que quando houver o acesso as partes devem “compartilhar de forma justa e

eqüitativa os resultados da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os

benefícios derivados de sua utilização comercial e de outra natureza com a Parte

Contratante provedora desses recursos”.

Os benefícios podem monetários e não monetários, sendo a escolha feita no

momento do acesso e de comum acordo. No entanto, vale lembrar e existência do Guia

Estados, com o fim de melhorar a qualidade do meio ambiente”; e com o princípio 11 da declaração do

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de Boas Condutas de Bonn, instrumento internacional que atua no sentido de

sugestionar etapas do processo de acesso e formas de benefícios. O guia de traz um rol,

com caráter não exaustivo, com cerca de 17 formas de benefícios não monetários, dos

quais destaca-se a participação nos resultados da investigação; a colaboração e a

cooperação em programas de pesquisa científica. A maioria dos benefícios não

monetários são benefícios de processo32, que independem do resultado final do projeto,

seja ele científico ou comercial. Eles são definidos de acordo com o papel que os atores

locais desempenham em cada etapa e deveriam ser priorizados por “ser muito difícil

levar em consideração o risco e a incerteza que acompanham a previsão da

comercialização futura, na fase da coleta dos recursos genéticos.”33

Dentre estes, destaca-se o acesso e a transferência de tecnologia, prevista

expressamente no artigo 16 da CDB. Estão referidos no seu texto dois tipos de

tecnologias a serem transferidas, as que são pertinentes à conservação e utilização

sustentável da biodiversidade e as que utilizam os recursos genéticos acessados. Caso

incidência de propriedade intelectual, esta deve ser respeitada. Através desse benefício

os países do sul anseiam acesso às tecnologias geradas no norte, enquanto estes,

pressionados pelo setor privado, resistem. Os Estados Unidos, em 1993, chegaram a

condicionar sua adesão à CDB a uma interpretação do artigo 16, no sentido que “a

expressão ‘termos justos e mais favoráveis’ (do artigo 16.2) significa termos

determinados por um mercado livre, sem restrições comerciais ou coerção

governamental” (tradução livre).34

Os benefícios monetários são previstos em menor número na pauta de Bonn, em

torno de 10 tipos, dos quais destacam-se: pagamentos de entrada, pagamentos por

espécime coletado e co-propriedade dos direitos de propriedade intelectuais pertinentes.

Rio: “Os Estados adotarão legislação ambiental eficaz”. 32 Os benefícios auferidos durante o procedimento de acesso e independentes com o resultado final deste, não importando se monetários ou não monetários, são chamados “benefícios de processo”, sendo geralmente estipulados aos atores locais conforme sua contribuição com o projeto implementado. 33 HAYASHI, Kichiro. Esfera de Ação de Elementos de Repartição de Benefícios – Decisões em Casos de Acesso e Repartição de Benefícios e Instrumentos Legais Nacionais e Internacionais. In Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Org. VARELLA, Marcelo Dias. Belo Horizonte:Del Rey, 2004. p. 209. 34 US Interpretative Statement on CBD. In http://www.bioline.org.br/request?nl93022 acesso no dia 2 de setembro de 2006

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A definição de quais serão auferidos depende do acordo entre as partes envolvidas,

assim como das exigências mínimas da legislação nacional pertinente ao assunto.

4.1.3 O PAPEL DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS E AUTÓCTONES

A CDB dispõe sobre o papel e os direitos das comunidades locais e indígenas na

questão do acesso apenas no art. 8(j), o qual diz que as partes da convenção deverão, em

conformidade com a sua legislação nacional e na medida do possível, fazer com que as

comunidades locais e indígenas participem do processo decisório e o aprovem, fruindo

também da repartição de benefícios. As populações indígenas e comunidades

tradicionais são profundamente conectadas aos recursos biológicos. Para que se tenha

uma idéia dessa, cerca de 40% das áreas de extrema importância biológica e 36% das de

altíssima importância biológica na Amazônia estão inseridas em terras indígenas.35

Além disso, os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade possuem

valor real ou potencial quando utilizados em conjunto com o patrimônio genético.

Como exemplo, Barbosa36 explica que quando a coleta de plantas para a produção de

novos remédios se dá ao acaso, “bioprospecção aleatória”, esta apresenta um percentual

de êxito de apenas 1/10.000, enquanto que a bioprospecção associada aos

conhecimentos tradicionais sobre propriedades medicinais de plantas e ervas,

“etnobioprospecção”, apresenta a possibilidade de êxito por amostra de até 50% ou

75%.

No campo do acesso, as comunidades indígenas têm aproveitado o espaço

concedido pelo artigo 8(j) para lutarem por seus interesses. Segundo Rojas, os principais

direitos reivindicados pelos povos indígenas nesse domínio são: “direitos de

autodeterminação; direito a exercer o direito consuetudinário de acordo com suas

práticas sociais e culturais; direito a ser representado legal e politicamente por meio de

suas próprias instituições; direito a controlar a propriedade do conhecimento

tradicional” (tradução livre).37 Todavia, pode-se dizer que a questão continua em aberto,

pois até hoje não se conseguiu a criação de um sistema de proteção específico que seja

35 SANTILLI, op. cit., p. 52. 36 BARBOSA, op. cit., p. 208. 37 ROJAS, Grethel Aguilar. En Busca de uma Distribución Eqüitativa de los Benefícios de la Biodiversidad y el Conocimiento Indígena. San José – C.R, IUCN/Mesoamerica: 2005. p. 95.

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reconhecido e adotado globalmente aos CTA, evitando que sejam indevidamente

apropriados por terceiros. Isso sem contar que as questões de participação das

comunidades dependem muito da legislação nacional, havendo uma disparidade

internacional muito grande concernente à regulação do tema.

4.2 INSTRUMENTOS

Os próprios empreendimentos envolvendo signatários da CDB é que fixam, em

maiores detalhes e condições, como este será realizado e os benefícios repartidos. Essa

definição, feita caso a caso, lança mão de três instrumentos previstos na CDB para a

concretização dos seus princípios: medidas legislativas e administrativas nacionais,

consentimento prévio informado, também conhecido por sua sigla em inglês, PIC (prior

informed consent) e a elaboração de contratos.

4.2.1 MEDIDAS LEGISLATIVAS E ADMINISTRATIVAS

As diretrizes de Bonn enumeram diversas responsabilidades das autoridades

nacionais. Estas consistem basicamente em autorizar o acesso segundo suas leis,

assessorar no processo de negociação, definir condições para a obtenção do PIC e do

comum acordo entre as partes envolvidas e avaliar os acordos realizados.

A construção de uma lei sobre o tema foi uma tarefa difícil para os países

interessados. Tinha-se pouca experiência nessa área, o tema era inovador e faltavam

referências doutrinárias. Para dar certo, é necessário que o processo legislativo estime

de maneira realista qual o valor econômico potencial dos recursos do país e que não

torne o empreendimento desinteressante. Nesse sentido, Arcanjo informa que “pela

coleção de questões jurídicas, somos desafiados hoje a construir uma disciplina legal

inovadora, para um campo de direitos até então não positivado, onde contribuições

doutrinárias e fontes comparadas são escassas”.38

Os pontos normativos de uma legislação de acesso devem constituir, no mínimo:

a) objeto; b) princípios; c) definições dos termos utilizados na lei e dos não estipulados

na CDB; d) limitações ao acesso; e) procedimento e requisitos para a concessão do PIC

38 ARCANJO, Francisco Eugênio. Convenção sobre Diversidade Biológica e Projeto de Lei do Senado 306/95: Soberania, propriedade e acesso aos recursos genéticos. In Revista de Direito Ambiental. Ano 2. nº 7. Jul-Set de 1997, p. 143.

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e para a celebração do contrato de acesso mediante condições mutuamente acordadas e

respeito a requisitos mínimos; f) autoridade competente para receber e autorizar os

pedidos e celebrar os contratos de acesso; g) meios de fiscalização dos contratos em

vigência; h) os direitos das comunidades indígenas, formas de assessoramento jurídico e

técnico e o modo de como participarão ativamente das negociações; i) possíveis

modalidades de repartição de benefícios e formas de acesso à tecnologia, bem como os

beneficiários dos mesmos; j) direitos dos proprietários de áreas privadas onde se

encontram os recursos visados; l) infrações e sanções, podendo existir, inclusive,

previsão de infrações penais.

Importante dizer que não é razoável que as legislações nacionais restrinjam

muito a liberdade de contratar das partes, dando espaço para sua liberdade de contratar.

4.2.2 CONSENTIMENTO PRÉVIO INFORMADO

O artigo 15.5 da CDB prevê que o acesso deve estar sujeito ao consentimento

prévio fundamentado da parte provedora. Não há definição exata do seu conteúdo,

deixando-o para a lei e para a doutrina. Sua finalidade é que o acesso ao recurso seja

antecipado por uma autorização do país provedor do recurso, sendo que, para isso, a

parte tomadora deve prestar esclarecimentos sobre o empreendimento que deseja

implantar. Bertoldi39 diz que o PIC instaura um mecanismo de facilitação de

informações pelo qual provedores e demais implicados têm o primeiro contato com o

projeto, servindo também de forma de controle da atividade de bioprospecção e do seu

compromisso com a conservação e utilização sustentável da biodiversidade.

Segundo o Guia de Boas Condutas de Bonn, um sistema de concessão do PIC

deve ser claro, fácil e de baixo custo, não indo de encontro aos objetivos da CDB. Deve

incluir as autoridades nacionais e outras partes envolvidas, como comunidades

autóctones e proprietários de áreas privadas. Portanto, é legítimo que a legislação

nacional estabeleça requisitos necessários para analisar o pedido. Quando existem

comunidades tradicionais estas têm direito de serem consultadas e de darem seu

consentimento.

39 BERTOLDI, Márcia Rodrigues. Regulação Internacional do Acesso aos Recursos Genéticos que Integram a Biodiversidade. Revista de Direito Ambiental. ano X. n 39. jul/set. 2005. p. 136.

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Para que tais fins sejam alcançados, o guia de Bonn prevê, de forma não

taxativa, que o pedido de acesso deve constar: a) pessoa jurídica e filiação do

interessado; b) tipo e quantidade de recursos genéticos utilizados; c) data de início e

duração da atividade; d) zona geográfica de prospecção; e) avaliação de impactos

previsíveis advindos da atividade; f) usos previstos do recurso e do CTA; g) lugar onde

a pesquisa ou desenvolvimento será realizado; h) instituições locais que colaborarão

com o projeto; i) fins do projeto e resultados esperados; j) tipos de benefícios esperados;

k) orçamento; l) tratamento da informação confidencial.

Com o fito de tornar o processo mais democrático e acessível às comunidades

tradicionais e indígenas envolvidas, Firestone40 algumas medidas, como: a) informações

traduzidas ao idioma local; b) incluir toda a comunidade na consulta, respeitando a sua

organização; c) respeito à privacidade, cultura, dignidade e tradições da comunidade; d)

registrar por escrito as consultas realizadas e; e) realizar a consulta com antecedência

adequada, para que a comunidade possa sopesar adequadamente as vantagens do

projeto. Acrescente-se que o governo nacional deve assegurar, assistência técnica e

jurídica à comunidade, seja por ONG ou através de instituição do governo.

Eventual mudança no material acessado, inclusão de terceiro no projeto, ou outra

transformação de aspecto fundamental deve dar ensejo a um novo processo de

consentimento prévio informado. Afinal, muda-se o conteúdo do acordo inicial, não se

admitindo sua alteração unilateral.

4.2.3 O CONTRATO

O artigo 15.4 da CDB erigiu o contrato como instrumento para a concretização

de seus objetivos. Assim como no campo da legislação, essa nova área do direito

também consistiu um desafio aos juristas, que tiveram que enfrentar a tarefa de

desenvolver novas tipologias contratuais a partir de instrumentos já existentes. Desta

maneira, “a maior parte dos contratos de bioprospecção se aproximam de toda uma

40 FIRESTONE, Laurel. Consentimento Prévio Informado: princípios orientadores e modelos concretos. In LIMA, André & BENSUNSAN, Nurit (org). Quem cala consente? : subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2003. passim.

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parafernália de contratos clássicos, com os quais os profissionais do direito estão

acostumados e os adaptam às necessidades das partes no que concerne a este assunto”41.

Bellivier42 traz como espécies de contrato o contrato de acesso in situ e o acordo

de transferência de material (ATM). O contrato de acesso in situ pode ser subdividido

em contrato de pesquisa ou então em acordo com fins econômicos, reais ou potenciais.

No primeiro caso, o usuário dos recursos biológicos tem por finalidade a realização de

estudos científicos sem valor econômico. No entanto, se no desenrolar da pesquisa esta

ganha um caráter comercial, um novo contrato deve ser feito. O segundo tipo de

contrato trata de atividade que já tem, previamente, intuito de exploração comercial,

devendo, conter cláusulas de repartição de benefícios, como titularidade de propriedade

intelectual, repartição de royalties e transferência de tecnologia.

Conforme Gollin43, os acordos de transferência de material são uma típica

transação de transferência de material biológico a um receptor contendo restrições sobre

o que este pode fazer com o material recebido. Embora seja instrumento contratual

amplamente difundido em pesquisa científica, nos casos englobados pela CDB são

instrumentos mais complexos por questões de soberania. Podem ser estabelecidas

restrições ao receptor que se relacionam com o tipo de atividade a ser desenvolvida com

o objeto, a finalidade da mesma ou ainda com possibilidade ou não de transferência do

mesmo a terceiros. Essa restrição é legitimada pela soberania do país sobre o produto e

delimitada no âmbito do PIC.

Bellivier alerta para algumas dificuldades técnicas, como a divisão do contrato

em contrato de mera pesquisa e de atividade com potencial econômico. Em tese, não

haveria qualquer problema, pois primeiro pesquisa-se o material para depois, em

havendo, explorá-lo economicamente. No entanto, cada vez mais a pesquisa científica

se aproxima da atividade industrial, sendo que seus resultados têm, em muitos casos,

valor econômico. Dessa forma, para agência governamental responsável, fica difícil

estabelecer critérios para enquadrar os projetos apresentados.

41 BELLIVIER, Florence. Os Contratos sobre os Recursos Genéticos Vegetais: Tipologia e Eficácia. In VARELLA, Marcelo Dias & PLATIAU, Ana Flávia (org). Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.p. 165. 42 Idem, passim. 43 GOLLIN, Michael. Elementos de Acordos Comerciais de Prospecção de Biodiversidade. In Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Org. VARELLA, Marcelo Dias. Belo Horizonte:Del Rey, 2004, p.138.

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A inserção das comunidades locais e indígenas também constitui uma querela

jurídica. As comunidades podem estar inseridas no empreendimento através de

representantes, mas sem serem parte do acordo; ou ainda serem partes efetivas do

contrato, o que causa preocupação para o empreendedor, pois na maioria dos casos as

populações não têm personalidade jurídica e não se é legítimo, segundo a lei nacional, o

sistema de representação nativo. Outra situação é quando o conhecimento acessado

pertence a mais de uma comunidade, sem que se possam identificar todas, existindo,

desta forma, para o empreendedor, o risco de ser acusado de biopirataria. Ambas

dificuldades devem ser solucionadas pela legislação de cada país.

A terceira dificuldade diz respeito à fiscalização das utilizações do recurso.

Existe a dificuldade de controlar as transferências sucessivas do material a terceiros,

bem como a cadeia de responsabilidade pelo descumprimento do acordado; controlar as

pesquisas desenvolvidas pelo usuário do recurso, de modo a se ter notícia de quais

descobertas foram feitas, quais são as economicamente interessantes e de como isso será

transmitido às instituições locais; e ainda como negociar os benefícios da exploração

comercial sendo que, muitas vezes, a parte tem apenas a patente da invenção,

concedendo licença a outras empresas para que a explorem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento sustentável baseia-se em quatro pilares, a eficácia

econômica, o desenvolvimento social, a preservação do meio ambiente e o respeito às

culturas. Ele é inovador porque insere a variável ambiental na lógica econômica, o que

implica no nascimento de obrigações positivas por parte do Estado e dos agentes

privados. Deve-se trabalhar para que as externalidades negativas advindas do processo

produtivo não sejam suportadas apenas pelo meio ambiente, devendo-se tomar medidas

para a desenvolução rumo a uma produção limpa.

A Convenção sobre a Diversidade Biológica é criada como um acordo rumo ao

desenvolvimento sustentável. Ela contem três objetivos principais: conservação da

biodiversidade; o uso sustentável da mesma; repartição justa e eqüitativa dos benefícios

derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante acesso adequado aos recursos e

a transferência de tecnologias pertinentes. Dentre os três, o último se destaca por inserir

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valores do desenvolvimento sustentável na exploração econômica da biodiversidade,

tendo reflexos principalmente no sistema de patentes.

Antes da CDB, vigorava o livre-acesso, podendo-se utilizar livremente os

recursos da natureza para a confecção de produtos industrializados sem que os países de

origem nada recebessem. A CDB põe termo a isso ao reconhecer a soberania dos países,

instituindo que eles têm a responsabilidade de regular o seu acesso e o direito de receber

uma parcela dos benefícios auferidos pelo seu uso. Ademais, reconhece a importância

das comunidades tradicionais e autóctones na conservação da biodiversidade, dos seus

conhecimentos tradicionais e do seu direito a também serem recompensados pelo papel

que exercem.

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