a contribuição da sociologia da educação

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1 SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO A Contribuição da Sociologia da Educação para a Compreensão da Educação Escolar* Marília Freitas de Campos Tozoni-Reis Resumo: O texto traz uma análise geral da contribuição da sociologia da educação para a compreensão da educação escolar. Neste sentido, busca identificar a relação da educação, escola e sociedade para conceituar a escola como uma instituição social com origem e desenvolvimento na modernidade. A seguir, traz infor- mações históricas sobre a escola pública no Brasil, problematizando-a, numa perspectiva sociológica, com a desigualdade social. É importante destacar aqui que o texto analisa, cuidadosamente, a função da escola, concluindo com sua finalidade social e política de contribuir para a organização da sociedade brasileira. Palavras chaves: Escola, Escola Pública, Desigualdade Social. A Escola como instituição social Pensar a escola na perspectiva da Sociologia da Educação implica, em primeiro lugar, que pensemos sobre a relação entre educação, escola e sociedade. Tomemos como ponto de partida uma das mais brilhantes definições de educação que temos na literatura pedagógica brasileira, ainda que de conteúdo muito mais filosófico do que sociológico. Trata-se da de- finição de Saviani, na qual afirma que “[...] o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2005, p.13). Temos aqui a afirmação de que o processo educativo é um processo de formação humana, isto é, um processo em que todos seres humanos - que nascem inacabados do ponto de vista de suas características humanas - são produzidos, construídos, como humanos. É um processo – histórico e social – de tornar humanos os seres humanos. Para compreender melhor esta definição de educação como um processo histórico e so- cial de formação humana, tomemos como referencial os escritos de Marx (1993) no mais im- portante de seus textos sobre a concepção de homem: os Manuscritos Econômicos e Filosó- ficos. Ali, este pensador desenvolveu uma concepção de homem como ser natural, universal, social e consciente. Isto é, embora ao nascer, ele conte com uma base biológica, natural, para Professora Livre Docente do Departamento de Educação do Instituto de Biociências da UNESP-Botucatu.

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A Contribuição Da Sociologia Da Educação

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    a contribuio da sociologia da educao para a compreenso da

    educao escolar*Marlia Freitas de Campos Tozoni-Reis

    Resumo: O texto traz uma anlise geral da contribuio da sociologia da educao para a compreenso da educao escolar. Neste sentido, busca identificar a relao da educao, escola e sociedade para conceituar

    a escola como uma instituio social com origem e desenvolvimento na modernidade. A seguir, traz infor-maes histricas sobre a escola pblica no Brasil, problematizando-a, numa perspectiva sociolgica, com a desigualdade social. importante destacar aqui que o texto analisa, cuidadosamente, a funo da escola,

    concluindo com sua finalidade social e poltica de contribuir para a organizao da sociedade brasileira.

    Palavras chaves: Escola, Escola Pblica, Desigualdade Social.

    a escola como instituio socialPensar a escola na perspectiva da Sociologia da Educao implica, em primeiro lugar,

    que pensemos sobre a relao entre educao, escola e sociedade. Tomemos como ponto de partida uma das mais brilhantes definies de educao que temos na literatura pedaggica brasileira, ainda que de contedo muito mais filosfico do que sociolgico. Trata-se da de-finio de Saviani, na qual afirma que [...] o trabalho educativo o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivduo singular, a humanidade que produzida histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens (SAVIANI, 2005, p.13). Temos aqui a afirmao de que o processo educativo um processo de formao humana, isto , um processo em que todos seres humanos - que nascem inacabados do ponto de vista de suas caractersticas humanas - so produzidos, construdos, como humanos. um processo histrico e social de tornar humanos os seres humanos.

    Para compreender melhor esta definio de educao como um processo histrico e so-cial de formao humana, tomemos como referencial os escritos de Marx (1993) no mais im-portante de seus textos sobre a concepo de homem: os Manuscritos Econmicos e Filos-ficos. Ali, este pensador desenvolveu uma concepo de homem como ser natural, universal, social e consciente. Isto , embora ao nascer, ele conte com uma base biolgica, natural, para

    Professora Livre Docente do Departamento de Educao do Instituto de

    Biocincias da UNESP-Botucatu.

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    se objetivar como gnero humano para vir a ser humano os homens, todos os homens, necessitam de um processo de humanizao, que seja direto e intencional, um processo so-cial e consciente: [...] a finalidade imediata da educao (muitas vezes no cumprida) a de tornar possvel um maior grau de conscincia, ou seja, de conhecimento, compreenso da realidade da qual ns, seres humanos, somos parte e na qual atuamos terica e praticamente (RIBEIRO, 2001).

    Ento, se os seres humanos, para serem humanos, necessitam de um processo de hu-manizao, histrico e social de formao humana de educao , a educao tem como objetivo realizar esta tarefa. Isso implica em um processo de conscientizao que significa conhecer e interpretar a realidade social e atuar sobre ela, construindo-a. Assim, o processo educativo constri, ao mesmo tempo, o ser humano como humano e a realidade na qual ele se objetiva como tal. Constri, tambm, a humanidade do ponto de vista histrico e social. Se os seres humanos no trazem ao nascer os instrumentos necessrios para compreender as leis da natureza e da cultura (das sociedades), e no podem contar com a possibilidade de que isso acontea naturalmente, o processo de formao do ser humano tem que ser intencionalmen-te dirigido, pelos prprios seres humanos que se relacionam socialmente.

    Ocorre que, na histria social da humanidade, diferentes e diversas instituies sociais se responsabilizaram por esse processo de formao humana, pelo processo educativo. Nas sociedades primitivas, por exemplo, vemos a importncia dos ritos de iniciao realizados por diferentes coletivos no processo educativo dos sujeitos mais jovens como expresso da organizao do processo de formao humana para a convivncia naquelas sociedades que tinham, como tal, caractersticas prprias. Muitos estudos no campo da sociologia e da an-tropologia mostram diferentes formas sociais de apropriao dos elementos da cultura nes-sas sociedades primitivas. Mas, o que temos em comum nesses estudos o fato de que, mais ou menos sistematicamente, h um processo educativo expresso na vida social dessas socie-dades. Nesse sentido, tambm merece destaque o processo de preparao para o trabalho a que eram submetidos os jovens aprendizes de ofcios nas sociedades pr-industriais como os apresentados por Enguita (1989). Na abordagem do autor, vemos a famlia como principal instituio social responsvel pelo processo de formao humana para convivncia naquelas sociedades, em especial, como instituio responsvel pela formao para o trabalho: alm da famlia de origem, muitos jovens aprendizes eram encaminhados a outras famlias para a aprendizagem dos ofcios.

    Em Enguita (1989), podemos buscar a tese de que a escola, tal como a conhecemos hoje, uma instituio social nova, moderna. E como instituio a principal responsvel pela formao dos jovens para sua integrao ao mundo social adulto na modernidade. Se, em perodos histricos anteriores, a famlia foi a principal responsvel pelo processo de formao dos sujeitos para a integrao na sociedade, a modernidade com suas profundas transformaes buscou uma nova instituio que se responsabilizasse pela formao hu-mana para este novo modo de organizao da vida social: a escola.

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    Lembremos que as profundas modificaes nas formas de organizao das sociedades, no final da Idade Mdia, culminaram com as revolues do sculo XVIII, caracterizadas pela ascenso da classe social denominada burguesia e a implantao na Europa de um novo modo de produo base da organizao social o capitalismo. Foi a partir da segunda me-tade do sculo XVIII, com a Revoluo Industrial, que o capitalismo consolidou-se. Do pon-to de vista econmico, tem incio um processo intenso e contnuo de explorao do trabalho em grandes propores, gerao de lucro e acumulao de capital. Do ponto de vista poltico e social, a aristocracia perde o poder poltico para a burguesia urbano-industrial, surgindo ainda uma outra classe: os trabalhadores (ou operrios). Isso tudo implicou em profundas modificaes nas prticas sociais, em especial, no modo de produo. Ento, segundo ainda a tese de Enguita (1989), foi a preparao para essas novas relaes sociais que modificou tambm a organizao do processo de formao humana, elegendo a escola como principal instituio preparatria para a vida social.

    Se, desde a antiguidade, temos algumas manifestaes de um processo educativo um pouco mais sistematizado, o qual nos acostumamos a chamar de escola, somente na moder-nidade, a escola assume o papel de uma instituio educativa significativa na sociedade para a organizao do processo educativo socialmente representativo. Vejamos, como ilustrao desta tese, um trecho de ris no conhecido Histria Social da Criana e da Famlia:

    Nem todo mundo, porm, passava pelo colgio, nem mesmo pelas peque-nas escolas. (...) Ainda no sculo XVII, a distribuio da escolaridade no se fazia necessariamente segundo o nascimento. Muitos jovens nobres ig-noravam o colgio, evitavam a academia e se uniam sem delonga s tropas em campanha. (ARIS, 1981, p. 188).

    Portanto, Aris desenvolveu tambm a tese de que a escola uma instituio da so-ciedade moderna, assim como a sua correlata: a infncia, tal como a entendemos hoje. De acordo com o sentimento da infncia, que corresponde conscincia da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criana do adulto, mesmo jo-vem (1981, p. 156). Na idade mdia, a infncia se limitava ao perodo inicial da vida no qual a criana dependia do constante cuidado do adulto, me ou ama. A partir desse limite, ela ingressava no mundo dos adultos no se distinguindo mais destes. A dilatao do perodo da infncia foi correlata de uma transio da escola que durou do sculo XV ao sculo XVIII. A escola foi um meio de isolar cada vez mais as crianas durante um perodo de formao tanto moral quanto intelectual, de adestr-las, graas a uma disciplina mais autoritria, e, desse modo, separa-la da sociedade dos adultos (ARIS, 1981, p. 165).

    Segundo este autor, na idade mdia, a escola era destinada a um pequeno nmero de clricos de diferentes idades. A abertura da escola aos demais manteve a mistura de diferen-tes idades e a excluso das mulheres . Mais tarde, criou-se a separao dos estudantes por classes (o que constituiu a primeira subdiviso no interior da populao escolar), mas o cri-

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    trio para formao das classes foi o grau de capacidade, no a idade. A criao das classes por idade ocorreu somente no sculo XVIII:

    A regularizao do ciclo anual das promoes, o hbito de impor a todos os alunos a srie completa de classes, em lugar de limit-la a alguns apenas e as necessidades de uma pedagogia nova adaptada a classes menos nume-rosas e mais homogneas, resultaram, no incio do sculo XIX, na fixao de uma correspondncia cada vez mais numerosa entre a idade e a classe (ARIS, 1981, p. 177).

    At o sculo XVIII, a distino entre populao escolarizada e no escolarizada no correspondia s condies sociais, embora o ncleo principal da escola fosse constitudo de indivduos oriundos das famlias burguesas de juristas e ligados ao clero. No sculo XIX, a escola nica foi substituda por um sistema de ensino duplo, em que cada ramo correspon-dia no a uma idade, mas a uma condio social: o Liceu e o Colgio para os burgueses (o secundrio) e a escola para o povo (o primrio) (RIES, 1981, p. 192).

    Existe, portanto, um notvel sincronismo entre a classe de idade moderna e a classe social: ambas nasceram ao mesmo tempo, no fim do sculo XVIII, e no mesmo meio: a burguesia (RIES, 1981, p. 194).

    Se do ponto de vista scio-histrico a escola uma instituio moderna, ento, qual a funo da escola no processo de formao humana nas sociedades atuais? Se a educao uma exigncia humana individual e coletiva e a escola foi, historicamente, a instituio social escolhida pela humanidade para cumprir esta tarefa, como podemos considerar a funo especfica da escola atualmente?

    Lembremos que os estudos sobre o papel da escola, na sociedade moderna, apontam para o fato de que no existe uma funo nica, consensual, universal da escola. Se vive-mos, na modernidade, em uma sociedade contraditria uma sociedade de classes com interesses antagnicos e contraditrios cada grupo social compreende este papel segundo seu prprio conjunto de valores e interesses sociais, culturais e polticos. Isso significa di-zer que a escola no uma instituio social neutra, uma instituio educativa a servio de todos, igualmente. A forma como se realiza o processo de formao humana na sociedade moderna, portanto, a educao no interior da instituio social chamada escola, diz respeito aos valores, ideologias e intenes dos diferentes grupos sociais que disputam seu lugar na hierarquia social. Assim, os estudos da sociologia da educao apontam para a ideia de que a educao escolarizada nestas sociedades tem, em geral, algumas funes. Pode ter o obje-tivo redentor de salvar a sociedade da situao em que se encontra, como pode ter como objetivo reproduzir a sociedade na sua forma de organizao, ou ainda, mediar a busca de entendimento da vida e da sociedade, contribuindo assim para transform-la (LUCKESI, 1990). Muitos estudos sobre a funo da escola tm refletido sobre o antagonismo destas trs funes: redentora, reprodutora e transformadora.

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    O estudo empreendido por Saviani (2008) sobre as bases tericas da educao, apresen-tado no conhecido Escola e Democracia com todas as polmicas que ainda gera , analisa a impossibilidade terica e prtica das propostas educativas denominadas por ele como teorias no-crticas da educao. Essas teorias, conforme o autor, no enfrentam no sentido de sua superao o problema da marginalidade (o problema em estudo). Lembremos que uma das mais importantes categorias de anlise, eleita por ns, para a compreenso das relaes entre a educao e a sociedade nestes estudos a desigualdade social. Diante desta caracterstica definidora da sociedade capitalista moderna, como sustentar a tese das teorias no crticas de que a educao escolarizada um instrumento de equalizao social? Neste sentido, a socie-dade concebida como essencialmente harmoniosa, tendendo a integrao de seus membros (SAVIANI, 2008, p. 4). Assim, de caracterstica definidora da sociedade capitalista moder-na, a desigualdade social e, consequentemente, a marginalidade concebida como uma distoro que, pela educao, pode ser superada. Esse o carter redentor desta forma de pensar e agir, social e politicamente, nas relaes entre a educao e a sociedade:

    A marginalidade , pois, um fenmeno acidental que afeta individualmen-te um nmero maior ou menor de seus membros, o que, no entanto, consti-tui um desvio, uma distoro que no s pode como deve ser corrigida. A educao emerge a como um instrumento de correo dessas distores (SAVIANI, 2008, p. 4).

    Analisemos, pois, que esse papel de redentora da sociedade, de instrumento de equa-lizao, de correo das distores que, eventualmente, encontramos na sociedade moder-na. Nesse sentido, a educao escolarizada tem o papel social de garantir a construo de sociedades igualitrias, de corrigir essas distores eventuais. As perguntas aqui so: 1. A educao e, particularmente, a escola, como instituio social, define, por si, a superao da desigualdade social? 2. A desigualdade social no uma das mais importantes carac-tersticas definidora, fundante da sociedade capitalista moderna? No se trata aqui de concluir que essa tarefa de superao das desigualdades impossvel para a escola pela sua magnitude, mas de compreender que a instituio escolar uma instituio que emerge desta sociedade, que est a servio dos interesses contraditrios que definem a constituio da sociedade capitalista moderna como sociedade desigual.

    Por outro lado, a educao, em particular a escolarizada, como instituio social prin-cipal responsvel pela formao dos sujeitos sociais na modernidade tem assumido, segundo as anlises sociolgicas dedicadas ao seu estudo, a funo de reproduzir a desigualdade social que caracteriza esta sociedade. Isso significa dizer que a educao, como instituio social organicamente ligada a esta sociedade, contribui, no que diz respeito formao dos sujeitos sociais, para reproduzir a contradio de classes inerente sociedade capitalista moderna. Esse tema foi particularmente estudado pela sociologia de Pierre Bordieu, Jean-Claude Passeron (Frana), Louis Althusser (Frana), Samuel Bowles, Herbert Gintis (USA), Christian Baudelot, Roger Establet (Frana).

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    A maior contribuio destes socilogos da educao foi denunciar o papel legitima-dor da desigualdade social que assume a escola em nossa sociedade. Ou seja, necessrio compreender que a escola no tem apenas o papel de formao dos sujeitos sociais, uma formao descomprometida com as formas organizativas da sociedade, mas um papel com-prometido com a dinmica social dominante. Dessa forma, a escola, em sua tarefa de formar os sujeitos sociais, no neutra, mas exerce um papel poltico nesta formao, no sentido de seu comprometimento do ponto de vista da reproduo ideolgica na formao dos sujeitos. Bourdieu , ainda, a principal referncia nestes estudos:

    Contrariando a ideia da escola enquanto espao social democrtico e eman-cipador, a Sociologia bourdieusiana buscava mostrar que essa instituio legitimava as prticas sociais das classes dominantes. Longe de equiparar os escolares, fornecendo instrumentos que de forma marcante e de acordo com a necessidade, pudessem garantir o sucesso escolar, e assim, uma mu-dana em sua situao social, a escola reforaria a desigualdade, uma vez que no dava possibilidades reais para que o aluno transpusesse os diver-sos obstculos de ordem social e cultural (BRANDO, 2009, p. 101).

    Essa anlise sobre a escola, baseada em volumosas e importantes pesquisas com levan-tamento de dados empricos sobre a realidade escolar, criou novos referenciais tericos para a compreenso da educao escolar na sociedade capitalista dos anos sessenta do sculo XX. At hoje, ela se constitui como um dos principais paradigmas para os estudos sociolgicos da educao:

    A grande contribuio da Sociologia da Educao de Pierre Bourdieu foi, sem dvida, a de ter fornecido as bases para um rompimento frontal com a ideologia do dom e com a noo moralmente carregada de mrito pessoal. A partir de Bourdieu, tornou-se praticamente impossvel analisar as desi-gualdades escolares, simplesmente, como frutos das diferenas naturais entre os indivduos (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p.15-35).

    Se essa Sociologia denunciou o papel de legitimador das desigualdades sociais, traze-mos tambm para anlise a proposta transformadora da escola. Mais do que uma realidade existente como a analisada e denunciada pela sociologia reprodutivista a educao trans-formadora consiste em uma proposta que parte do desafio de construir uma escola que este-ja, no a servio dos grupos dominantes da sociedade no que diz respeito preservao dos privilgios, mas comprometida com a construo de uma sociedade mais justa e igualitria.

    O ponto de partida da educao transformadora, que tem carter fortemente crtico, a constatao de que a escola no transforma diretamente a sociedade, mas instrumentaliza os sujeitos que, na prtica social, realizam o movimento de transformao. Isto , a escola tem a especificidade de, do ponto de vista da formao humana, garantir a apropriao de elementos da cultura que se transformem, na prtica social, em instrumentos de luta no en-frentamento da desigualdade social.

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    Em uma perspectiva crtica, que concebe a educao como um processo de instru-mentalizao dos sujeitos para a prtica social transformadora, Saviani define a funo da escola como sendo a de [...] uma instituio cujo papel consiste na socializao do saber sis-tematizado (SAVIANI, 2005). Isso significa afirmar que a educao escolar tem como prin-cipal funo promover a conscincia dos educandos para a compreenso e transformao da realidade. Ento, o que prprio da escola a garantia da transmisso no mecnica, mas ativa, compreendida como apropriao do saber elaborado pela cultura.

    Neste sentido, essa proposta difere frontalmente daquelas que consideram conjunto de conhecimentos clssicos e cientficos como desnecessrios (porque comprometidos com os grupos dominantes) para a formao de sujeitos. Essa proposta pressupe que a escola, para exercer sua funo transformadora no sentido de contribuir para a democratizao da sociedade, no pode abrir mo de sua responsabilidade especfica que a de garantir que os sujeitos sociais se apropriem de forma crtica e reflexiva do saber elaborado pela cultura a qual pertencem. Nesse sentido, importante que o educador compreenda a complexidade da realidade social na qual ele atua. No basta para isso conhecer a realidade, preciso pensar sobre ela, tendo as diferentes teorias educacionais como referncia.

    escola pblica e desigualdade social A escola pblica a maior expresso da escola com instituio social, aquela que tem

    sua origem na modernidade, exigncia do modo de produo capitalista moderno industrial. No Brasil, podemos considerar como marco histrico do surgimento da escola pblica o Ma-nifesto dos Pioneiros Pela Educao Nova por seu contedo escolanovista. Esse Manifesto foi mais um documento de poltica educacional do que um documento didtico-metodolgico, como encontramos muitas vezes na literatura pedaggica. Sua proposta estava plenamente integrada ao contexto social, poltico e econmico da consolidao do capitalismo industrial no Brasil, cujo papel da escola estava voltado para a formao dos sujeitos sociais para esse desenvolvimento. Isso explica porque o Manifesto trouxe a pblico da forma mais veemente na histria da educao brasileira a defesa da escola para todos, um dos mais importantes princpios da educao burguesa.

    A escola para todos - pblica - defendida no Manifesto em contraponto escola da Reforma Francisco Campos, era a escola nica (significando igualdade de oportunidades), laica (livre de doutrinas), gratuita (sob a total responsabilidade do Estado), obrigatria (at 18 anos) e para ambos os sexos. Para os Pioneiros, a funo social da escola (campo especfico da educao) explicitava-se pela sua organizao como instituio social limitada na sua ao educativa pela pluralidade e diversidade das foras que concorrem ao movimento das sociedades, considerando que, entre todos os deveres do Estado, a educao o maior.

    Saviani (2007) faz uma cuidadosa anlise do Manifesto considerando-o heterogneo e contraditrio, pois expressa princpios elitistas e, ao mesmo tempo, princpios igualitaristas. Como documento doutrinrio da Escola Nova, o Manifesto traz uma proposta de poltica educacional em defesa da escola pblica e de um sistema nacional de educao pblica. No

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    entanto, podemos encontrar nele a marca da dualidade: a escola teria funo homogeneiza-dora dos indivduos nos nveis primrios e secundrios de ensino e funo diferenciadora no nvel superior (universitrio).

    Todos estes embates ocorreram no incio dos anos trinta do sculo XX, e durante o Estado Novo (de 1937 a 1945) acirraram-se ainda mais, pois a Reforma Capanema regula-mentou um sistema de ensino centralista, burocratizado, dualista (diferenciando fortemente o ensino secundrio do profissional) e corporativista (criando no ensino profissional o ensino industrial, agrcola e comercial, alm do curso normal para formao de professores). O pacto com a Igreja, que a Reforma Capanema manteve, tinha uma abordagem de renovao conservadora, isto , nos aspectos pedaggicos defendia novos mtodos inspirados na Escola Nova , mas nos sociopolticos era extremamente conservador. Com o fim do Estado Novo em 1945, as discusses em torno da Constituio de 1946 trouxeram de volta os Pio-neiros e, com eles, as foras hegemnicas na comisso para elaborao da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional em 1961.

    O principal conflito vivido entre Pioneiros e Catlicos no processo de elaborao da LDBEN foi entre a escola pblica e a escola privada. Centrada na figura de Ansio Teixeira, a defesa da escola pblica, universal e gratuita foi fortemente atacada pelos catlicos que, identificando-a com a proposta comunista de organizao da educao, contrapunham a hierarquia da Famlia, Igreja e Estado na responsabilidade educacional. Em defesa da escola pblica estavam trs principais correntes do pensamento pedaggico brasileiro segundo Sa-viani (2007): liberal-idealista, liberal-pragmatista e socialista. Por outro lado, esse conflito no ficou restrito aos educadores empolgando a opinio pblica: a imprensa catlica e a im-prensa leiga fomentaram as discusses para o conjunto da populao.

    A Lei n 4024/61 LDBEN definiu a construo do Plano Nacional de educao em 1962. O investimento financeiro na educao subiu para 12% dos recursos da Unio, a poltica educacional a esse investimento articulada pretendeu enfrentar o grave problema do analfabetismo, da evaso escolar e do afunilamento do sistema de ensino. A estrutura criada foi a do ensino primrio, ensino mdio (ginasial e colegial) e ensino superior. Propunha tam-bm a valorizao da formao de professores, a implantao do tempo integral nas 5a e 6a sries (artes industriais). Essas medidas legais, que consolidaram o ensino pblico, tomaram ainda mais importncia no incio dos anos sessenta, desde 1945, vinha vivendo um perodo de redemocratizao, acompanhado pelo crescimento econmico do capitalismo industrial.

    Os movimentos sociais populares do incio dos anos sessenta trouxeram importantes discusses acerca da organizao do ensino e dos processos educativos. As defesas da cultura popular e a da educao popular foram compreendidas como formas de garantir o processo de conscientizao necessrio para a organizao igualitria da sociedade brasileira. Nesse momento, as discusses sobre a escola pblica deram lugar a propostas de educao popular vinculadas aos grupos sociais populares. Esses movimentos tiveram tambm a participao de um novo setor da Igreja Catlica, articulado em torno da Teologia da Libertao. Um dos mais importantes representantes desse movimento de educao popular no incio dos anos sessenta Paulo Freire com a pedagogia libertadora. Tendo como referencia a escola nova e a

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    teologia da libertao, principalmente no que diz respeito nfase da atividade sobre os con-tedos na Pedagogia do Oprimido vemos a valorizao da atividade para a conscientizao poltica transformadora , esses movimentos tiveram fim no golpe militar de 1964.

    Marcado pela contradio entre ideologia e economia, o perodo anterior ao golpe mi-litar organizava-se sob a ideologia do nacionalismo desenvolvimentista e desnacionalizao da economia. Essa contradio no conturbado governo Jango foi resolvida pelo governo militar que marcou uma ruptura poltica com continuidade socioeconmica, fundamentan-do-se na doutrina da interdependncia. O reflexo direto disso, na educao, se expressa pelas reformas implantadas, em busca da educao que nos convm: a aprovao da Lei 5540-69 da Reforma Universitria e da Lei 5692-71 que organizou o ensino bsico em 1 e 2 graus. O pano de fundo das reformas foi a teoria do capital humano com seus princpios da racionalidade, eficincia e produtividade, isto , o mximo de resultados com o mnimo de esforos na formao humana (investimento) que interessava ao regime poltico e ao modelo econmico. Essas reformas, portanto, inspiraram-se na pedagogia tecnicista, articulando a organizao racional (taylorista) do sistema de ensino brasileiro com o controle de compor-tamento nos processos de aprendizagem (behaviorismo).

    No entanto, durante a Ditadura Militar, a escola pblica expandiu-se. Essa aparente contradio, por um lado, refere-se ao modelo econmico em desenvolvimento que exigia escolarizao da populao, e por outro, exigia o controle da escolarizao, em especial no que diz respeito ao ingresso ao ensino superior, maior foco de resistncia ao regime no interior da sociedade brasileira. O governo autoritrio, ento, equacionou essa aparente contradio pela expanso controlada, isto , expandiu a rede pblica de ensino, criando um mecanismo interno de controle. Segundo Romanelli (2009), esse controle recaiu sobre a progresso no sistema e a qualidade da educao. A dualidade, ento, cujos reflexos vivemos ainda hoje, expressou-se pela oposio quantidade-qualidade, ou seja, enquanto se expandia o atendimento educao escolarizada pblica pelo estado autoritrio (quantidade), privati-va-se, gradualmente, a qualidade.

    A dcada de oitenta, com o fim da Ditadura Militar, foi um perodo muito fecundo nas discusses sobre a educao e a organizao do ensino, em especial, sobre a escola pblica na perspectiva crtica e transformadora. No entanto, essas posies crticas representavam um setor que, embora tivesse muita penetrao entre os educadores, no se consolidou como hegemnico, conferindo uma linha poltico-pedaggica crtica e transformadora na organi-zao do sistema de ensino. Podemos afirmar que a poltica oficial centrava-se na expanso do ensino e as foras contra-hegemnicas apontavam duas correntes distintas: a renovao dos processos de ensino propostos pela educao libertadora, principalmente no que diz res-peito ao processo de conscientizao dos sujeitos educandos e, de outro lado, a valorizao da educao escolar das tendncias marxistas em defesa da escola pblica. No entanto, as foras hegemnicas neoliberais avanavam no campo das polticas pbicas da educao.

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    Essa situao se expressa de forma muito clara no processo de elaborao da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional LDB que, iniciado em 1988 com a promulga-o da Constituio Federal, consolidou-se na promulgao da Lei no 9394-96. A Constitui-o Federal, elaborada por um Congresso Constituinte apoiado pela populao entusiasmada com o fim da Ditadura e o incio da redemocratizao da sociedade, organizou o sistema de ensino no Captulo da Educao, expressando algumas vitrias e muitas derrotas nas teses defendidas pela mobilizao em defesa da escola pblica. O Frum em Defesa da Escola P-blica na Constituinte atuou vigorosamente na elaborao deste captulo da educao e seguiu mobilizado na difcil elaborao da LDB. O clima de entusiasmo pela redemocratizao arrefeceu frente ao avano da reforma do Estado inspirado na doutrina neoliberal.

    A nova LDB, instrumento poltico da organizao da educao no Brasil, traz a marca do neoprodutivismo (SAVIANI, 2007), ou seja, a renovao neoliberal da teoria do capital humano. Essa abordagem fez com que a LDB aprovada (cuja organizao popular sofreu um grande golpe no final de sua elaborao) se tornasse um instrumento para a poltica educa-cional marcada pela incluso-excludente. Os avanos quantitativos necessrios na incluso da populao em idade escolar na escola pblica, no foram equivalentes qualidade neces-sria. Temos que, pelo aprofundamento da crise de qualidade na escola pblica, uma enorme parte da populao excluda do processo de apropriao da cultura como instrumento transformador na prtica social.

    A educao escolarizada a educao na escola , tanto conceitualmente quanto na prtica social, reflete o carter contraditrio que encontramos na sociedade capitalista mo-derna. Se por um lado, implica na preparao dos sujeitos sociais para esse modo de produ-o que tem dimenso social, poltica, econmica e cultural, caracterizando o que a Socio-logia identificou como um papel reprodutor das desigualdades sociais, por outro, a educao escolar pode ser considerada como um processo que oferece aos sujeitos em formao um dos mais fundamentais instrumentos para o enfrentamento dessas desigualdades. Esse en-frentamento ocorre quando a escola se organiza de modo a sistematizar a transmisso crtica e reflexiva do saber elaborado historicamente pela humanidade. Isso significa dizer que a escola, como instituio social, tem o papel de garantir aos sujeitos com oportunidades con-traditoriamente desiguais a apropriao de conhecimentos, a formao de valores sociais e culturais, a preparao para o mundo do trabalho e para o desenvolvimento da prtica social. Esse o sentido pblico da escola pblica: servir aos interesses pblicos, aos interesses da maioria da populao, embora essa seja uma tarefa contraditria.

    Superando o senso comum em relao escola pblica e ao poder estatal, considere-mos o importante papel que o Estado tem na formulao e realizao da escola pblica. Esse papel se refere ao de assegurar escolas que facultem o acesso a todas as crianas, jovens e adultos, bem como sua permanncia em igualdade de circunstncias, independentemente das suas condies histricas, econmicas, polticas e sociais.

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    Embora seja fundamental reconhecer a importncia poltica e social do avano quan-titativo do ensino pblico alguns dados indicam que, de 98% das crianas brasileiras em idade prpria para o ensino fundamental, mais de 90% delas esto nas escolas pblicas , as escolhas neoliberais que no Brasil definem as polticas pblicas de sade, educao, moradia e transporte alm de outros bens comuns , desde a ultima dcada do sculo XX, tm definido uma escola pblica menos pblica. Isso significa uma escola menos democrtica, menos inclusiva, pois voltada principalmente para a certificao e o registro estatstico do sucesso quantitativo, em detrimento da socializao do saber sistematizado. Nesse sentido, a escola pblica no Brasil, orientada pelas polticas neoliberais, est voltada mais para respon-der aos interesses dos grandes grupos polticos e economicamente hegemnicos do que aos interesses de formao plena do conjunto da populao. visvel o progressivo desinves-timento na Educao, nem tanto diretamente pela aplicao de percentuais oramentrios obrigatrios, mas por uma srie de outros mecanismos que Romanelli (2009) chamou de mecanismos internos de controle. O processo de privatizao do ensino, que afirma sua dualidade, to sutil quanto eficiente e se expressa pelos mais diferentes indicadores: baixa qualidade; baixa valorizao social da escola; baixos salrios dos professores; polticas ine-ficientes de formao inicial e permanente dos professores; burocratizao do processo de planejamento pedaggico com tendncias a transformar os professores em meros reproduto-res de contedos estabelecidos pelos tcnicos burocratas do ensino etc.

    Os indicadores referentes consolidao do ingresso da populao na escola, enco-brem os ndices de abandono e fracasso. Embora estes ndices, nas ltimas dcadas, tenham baixado significativamente, sendo dignos de comemorao pelo conjunto da sociedade, eles tm sido manipulados politicamente pelos Governos. Essa manipulao advm do objeti-vo de realizar uma avaliao essencialmente estatstica. Com essa avaliao, posterga-se a urgente necessidade de alcanar nveis de aprendizagem e formao mais consistentes que garantam aos estudantes os instrumentos indispensveis ao exerccio de uma cidadania ati-va. Dessa forma, o investimento de recursos pblicos na educao, cujos gestores insistem em se desobrigar do cuidado com a qualidade ao assumir como poltica pblica o ingresso e a permanncia das crianas na escola de ensino fundamental (na medida em que o ensino mdio no Brasil ainda quantitativamente insuficiente para atender os jovens e adultos), significa, na prtica, uma perda irreparvel de dinheiro e uma oportunidade social mal apro-veitada no sentido da formao dos sujeitos.

    Ao burocratizar o exerccio da profisso docente, a formao e ao educativa dos professores pouco tm a contribuir para a melhoria da qualidade do ensino pblico. Essa burocratizao provm do investimento em processos de formao e ao educativa com tendncias a transformar os professores e educadores em profissionais acrticos e simples executores de tarefas pr-estabelecidas. Esses profissionais perdem sua capacidade crtica e criativa ao trabalharem em condies de crescente precariedade, desapropriados de direitos trabalhistas conquistados no difcil processo de democratizao da sociedade brasileira.

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    De impacto muito negativo para a qualidade da escola pblica , tambm, o ataque neoliberal em curso contra os profissionais da Educao, docentes e no docentes, com a supresso de aspectos fundamentais das suas carreiras. Esse ataque consolida a instabilida-de profissional, articulada a uma campanha pblica de desvalorizao social da sua imagem (para isso colaboram, por exemplo, as campanhas de substituio direta e indireta da ao docente na escola). Essa situao colabora tambm para o aumento da indisciplina e da violncia nas escola.

    Ento, se a escola pblica no Brasil tem uma trajetria histrica marcada pela tardia implantao de um sistema nacional de ensino caracterizado, nos diferentes momentos hist-ricos, como excludente e dual, que lies essa histria nos traz? Lembremos que Lombar-di, Saviani e Nascimento (2005) identificou na trajetria histrica da consolidao da escola pblica no Brasil trs projetos de desenvolvimento da sociedade brasileira em disputa nos dias atuais: o projeto liberal (ou neoliberal), o projeto do desenvolvimentismo conservador, e o projeto do desenvolvimento econmico nacional e popular. O projeto liberal em sua verso mais contempornea, o neoliberalismo atravessou praticamente todo o sculo XX como hegemnico, com poucos perodos de interrupo, derrubando e assimilando teses do projeto mais conservador. O projeto do desenvolvimento popular cresceu no final da ditadura e consolidou-se no incio dos anos 1980.

    A alternativa ao projeto neoliberal o projeto de desenvolvimento econmico nacio-nal e popular , ao chegar ao poder pela expressiva votao do atual Presidente Lula, agiu de forma radicalmente diferente daquilo que vinha buscando. Isso significa que aprofun-dou ainda mais o ajuste neoliberal da economia globalizada, consolidando uma perspectiva flexibilizadora da responsabilidade do Estado em relao s polticas pblicas, mesmo se considerarmos as contradies cada vez menores que existem nos espaos de gesto das polticas pblicas deste governo.

    As polticas pblicas da educao, no modelo de modelo de desenvolvimento econ-mico e social que o Governo Lula deu continuidade, tm sido, portanto, marcadas pela fle-xibilizao dos direitos e da responsabilidade do poder pblico com sua garantia, sofrendo uma tendncia privatizante. Flexibilizao significa, neste texto, uma tendncia a minimizar direitos e responsabilidades. Se no incio da organizao do sistema nacional de ensino no Brasil, o grande embate era entre a escola pblica e a privada no que diz respeito respon-sabilidade da Igreja e do Estado, a anlise do funcionamento do sistema nacional de ensino, hoje, est centrada na qualidade da escola pblica e da privada, e na responsabilidade da sociedade em sua garantia.

    Do lado da elaborao oficial das polticas pblicas para a educao, a desregulamen-tao dos direitos sociais, no que diz respeito responsabilidade do Estado em garanti-los, atinge diretamente a escola pblica. Se a excluso e a dualidade, histricas na organizao do ensino, tiveram na discusso entre a escola pblica e a privada sua expresso em alguns momentos da trajetria histrica da educao brasileira, hoje, temos a excluso e a dualidade expressas ainda pela oposio escola pblica e privada, mas na forma da qualidade do ensino.

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    De direito social de todos, a educao compreendida pela ideologia dominante im-pregnada pela doutrina econmica neoliberal e construda pela lgica do neoprodutivismo na educao como um servio a ser prestado e adquirido no mercado (LOMBARDI; SAVIA-NI; NASCIMENTO, 2005; SAVIANI, 2007). Vejamos algumas das consequncias disso para a educao bsica.

    Para uma pequena, mas poderosa do ponto de vista econmico e poltico, parcela da populao h uma escola privada de melhor qualidade e, para a grande maioria, uma escola pblica de menor qualidade. Lembremos que, segundo os dados do Censo Escolar de 2008, publicados em janeiro de 2009, a rede privada de ensino no Brasil responsvel por 13,3% das matrculas da educao bsica, enquanto a rede pblica recebe 86,7% dessas matrculas. Ento, pensar em polticas pblicas de educao escolarizada no nvel bsico no Brasil significa refle-tir sobre a estrutura e o funcionamento da escola pblica como instituio social responsvel pela formao humana que interessa ao projeto de sociedade que queremos ou no queremos construir. Essa situao enfrentada pela sociedade em geral e pelo poder pblico em parti-cular de forma a consolidar a dualidade histrica da organizao da educao brasileira.

    Compreendida a educao bsica e o ensino no como direito social, mas como mercadoria a ser adquirida no mercado, a qualidade de ensino um valor agregado escola privada, tornando-a mais atrativa para aqueles que podem comprar seu produto. Isso no significa que, na escola privada, haja garantia de qualidade na educao como formao humana que pretendemos, antes a qualidade que lhe conferem est diretamente relacionada aos interesses imediatos, aos valores ticos e polticos das elites dirigentes: individualismo, competio, consumismo etc.

    No que diz respeito escola pblica, vejamos como os professores, de mediadores no processo de apropriao de conhecimentos sistematizados da cultura elaborada, assumem, na lgica hegemnica da organizao da sociedade, o papel de prestadores de servio. Nesse sentido, sua formao plena para dirigir sofisticados processos de ensino e aprendizagem que garantam a apropriao crtica e reflexiva da cultura elaborada na perspectiva de formao para prticas sociais mais conscientes e consequentes, transforma-se em uma formao li-geira e superficial.

    Chau (2004) faz importante anlise do sentido neoliberal e neoprodutivista da pro-clamada educao continuada desses professores. A poltica de contratao de professores substitutos, a existncia ainda significativa de professores leigos inclusive em sua mais nova verso, os professores eventuais e a valorizao dos programas com educadores vo-luntrios na escola so reflexos dessas referncias na organizao da escola pblica. Essa pseudoparticipao dos grupos sociais privilegiados na forma do voluntariado em busca de qualidade na escola pblica pode ser compreendida, por exemplo, quando buscamos identi-ficar os protagonistas dos to conhecidos programas como adote uma escola; amigos da escola, padrinho da escola etc. Identificados os protagonistas, reconhecemos sua insero de classes e os interesses econmicos, polticos e sociais que os move.

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    Outra dimenso importante da flexibilizao da educao como direito de todos, iden-tificada por Lombardi, Saviani e Nascimento (2005), diz respeito privatizao do pensa-mento pedaggico. Saviani (2007) analisou essa privatizao do pensamento pedaggico, identificando quatro categorias (provisrias). O neoprodutivismo, fundamentado na teoria do capital humano, busca organizar o ensino a partir da necessidade de formao humana para as novas formas de produo, tambm flexibilizadas. Isso significa que a formao escolar pretendida refere-se s capacidades e competncias presentes e expressas nos documentos que traam parmetros e diretrizes curriculares para a educao bsica.

    Assim, os princpios da Escola Nova, tambm ressignificados, constituem-se no que ele definiu como neoescolanovismo, isto , o aprender a aprender que, agora tambm, for-mao permanente dos sujeitos educandos. Como terceira categoria, encontramos o neocons-trutivismo, expresso particularmente pela teoria do professor reflexivo: os saberes docentes centrados na experincia cotidiana. A reflexo aqui, cujos fundamentos esto na pedagogia das competncias, nos comportamentos flexveis e na responsabilidade individual, diz respeito compreenso pragmtica da experincia docente. Nesse sentido, ressignifica-se tambm o tecnicismo. Se na dcada de setenta, seus princpios eram de racionalidade, eficincia e pro-dutividade sob o controle direto do Estado, agora, ele aparece sob o controle do mercado, da responsabilidade da iniciativa privada e das organizaes no-governamentais, reduzindo os investimentos pblicos pelas parceiras pblico-privadas. Como fica, ento, o papel da escola e do profissional da educao diante deste quadro e das exigncias do mundo atual?

    A escola pblica uma conquista que tem suas origens na Revoluo Francesa, isto , na democratizao da sociedade aristocrtica e na origem da modernizao das sociedades como capitalistas e industriais. Esse um fato histrico de enorme importncia, pois confere escola pblica o carter democratizante e democratizador. No entanto, sua origem histrica no a exime de problemas tambm historicamente incorporados, problemas a serem resol-vidos e questes tericas e prticas a serem exploradas. Uma das crticas que esta escola enfrenta, concerne atualidade de seus contedos. Se por um lado, o avano neoliberal e seu componente mais estritamente econmico, a globalizao da economia trouxe novas exigncias, a escola inserida neste mundo tem o papel de preparar o aluno para conhec-lo e nele atuar de forma adaptadora. Isto , a escola prepara os sujeitos para atuar de forma a se adaptar s exigncias desta doutrina de organizao da sociedade e contribuir para seu aprimoramento, permitindo, principalmente, que o aluno tenha competncia em diversas tecnologias. As crticas a essa forma de organizao das relaes sociais veem na escola, em especial na escola pblica, o papel de problematizar esse mesmo mundo atual, seus conte-dos e valores constituintes, visando question-lo e transform-lo de forma a contribuir para a construo de uma sociedade mais justa, mais democrtica, mais igualitria.

    Aqui tambm cabe o raciocnio de que a escola pblica precisa evoluir enquanto ins-tituio social. Para isso, no significa uma formao instrumental, interessada na manu-teno do um modo de produo capitalista moderno que, por definio material e histrica, injusto e desigual. Faz-se necessrio que a escola pblica contribua na formao plena crtica dos sujeitos sociais. Para tanto, sua tarefa filosficopoltica a de assegurar

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    a cultura clssica, em cujo bojo se encontra o que h de mais universal e permanente das produes humanas e que, considerada as condies de desigualdade de nossas sociedades modernas, somente essa escola capaz de garantir para o conjunto da populao. Em sntese, a escola, articulando o novo com a tradio, ser efetivamente pblica se for capaz de trazer para seu interior a responsabilidade de formao plena dos sujeitos, o que significa garantir a apropriao crtica do conjunto da produo humana, ou seja:

    Trata-se aqui da produo de ideias, conceitos, valores, smbolos, hbitos, atitudes, habilidades. Numa palavra, trata-se da produo do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto , o conjunto da produo humana (SAVIANI, 2005, p. 12).

    Portanto, trata-se da necessidade da escola pblica de assumir sua tarefa, histrica e poltica, de equalizao da sociedade, de superao da desigualdade social, de realizao de seu carter pblico no sentido amplo e complexo de instituio pblica de educao.

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    Indicao de leitura: SAVIANI, D. Histria da escola pblica no Brasil: questes para pesquisa. In: LOMBARDI, J. C.; SAVIANI, D.; NASCIMENTO, M. I. M. A escola pblica no Brasil: histria e historiografia. Campinas: Autores Associados, 2005. p. 2-4.* Texto produzido especialmente para a disciplina Sociologia da Educao do Curso de Pedagogia oferecido pela UNESP atravs da

    UNIVESP-TV.

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    vdeo da TV Cultura

    texto em anexo

    Formao Geral Educao, Cultura e DesenvolvimentoBloco1 Mdulo 2 Disciplina 9

    Sociologia da Educao