a construÇÃo de sentido no gÊnero quadrinhos:...
TRANSCRIPT
A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO GÊNERO QUADRINHOS: UMA ANÁLISE DO
FENÔMENO DA MESCLAGEM
Ada Lima Ferreira de Sousa (UFRN)
RESUMO: o objetivo deste trabalho é evidenciar o fenômeno da mesclagem como processo de construção dos
sentidos no gênero quadrinhos. Esta discussão ancora-se nos pressupostos da Linguística Cognitiva segundo os
quais construímos sentidos ao ativarmos categorias linguísticas e elementos não-linguísticos, socialmente
construídos e culturalmente compartilhados, cuja mobilização permite elaborar o que chamamos de realidade.
Os dados apresentados foram obtidos a partir da análise das obras V de Vingança, de Alan Moore e Davyd
Lloyd, e Palestina, de Joe Sacco, à luz das teorias cognitivas sobre linguagem e compreensão. Esta pesquisa
permitiu-nos a identificação de ocorrências da mesclagem, culminando em construções metafóricas, durante a
leitura das histórias em quadrinhos. Propomos o conceito de mesclagem semiológica para designar o fenômeno
que resulta nas metáforas próprias dos gêneros compostos por códigos verbais e não verbais. Pretendemos,
através da exposição desses dados, mostrar que a junção de imagens e palavras, comumente compreendida
como elemento facilitador da leitura, pode, na verdade, resultar em jogos complexos, cujas pistas nem sempre
são recuperadas em um primeiro contato.
Palavras-chave: Quadrinhos, Mesclagem, Metáfora.
Introdução
O objetivo deste artigo é evidenciar ocorrências da mesclagem como processo de
construção de sentidos no gênero quadrinhos. A análise do corpus – as obras Palestina: na
Faixa de Gaza (SACCO, 2003), Palestina: uma nação ocupada (Id., 2005) e V de Vingança
(MOORE; LLOYD, 2006) – é ancorada na Teoria dos Espaços Mentais (FAUCONNIER;
TURNER, 2002) e na Teoria da Metáfora (LAKOFF; JOHNSON, 1980, 1999), desenvolvidas no
âmbito da Linguística Cognitiva. Com base nesse aparato teórico, e entendendo os quadrinhos
como um gênero em que a união dos textos verbal e não verbal fornece pistas para a
construção do sentido, pretendemos mostrar que a junção desses mecanismos de naturezas
diversas, comumente compreendida como elemento facilitador da leitura, pode, na verdade,
resultar em jogos complexos, cujas pistas nem sempre são recuperadas no primeiro contato do
leitor com a obra.
Metodologia
Elegemos, como ponto de partida para a análise do corpus, a metodologia da
introspecção, definida por Talmy (2005, p. 12) como “a atenção consciente direcionada por
um usuário da linguagem a aspectos linguísticos particulares, como se manifestam em sua
própria cognição”. Logo, a análise de dados apresentada neste artigo é fundamentada na nossa
compreensão acerca das obras lidas. Considerando nosso interesse específico nos mecanismos
cognitivos acionados durante esse processo, acreditamos que, nesse primeiro momento da
pesquisa, a introspecção é um instrumento válido; afinal, sejam quais forem as compreensões
dos leitores, as estruturas acionadas são basicamente as mesmas. No entanto, temos ciência de que o auxílio de outras metodologias possibilitará uma
apreciação mais ampla. Dados obtidos junto a outros compreendedores poderão indicar
aspectos não observados a partir da introspecção. Assim, pretendemos, posteriormente,
realizar experimentos com um grupo de leitores, de modo a registrar os sentidos construídos
por esses compreendedores durante a leitura das obras que compõem o corpus da nossa
pesquisa. Mas, a princípio, a introspecção fornece as pistas necessárias à análise preliminar
dos dados.
O gênero quadrinhos
A estrutura dos quadrinhos é comumente caracterizada pela utilização de códigos
verbais e não verbais, embora seja possível criar uma história inteira apenas com imagens.
McCloud (2005), inclusive, aponta a existência de manifestações de arte sequencial1
totalmente compostas por figuras em pinturas egípcias datadas dos anos 1.300 a.C. e em
manuscritos em imagem pré-colombianos encontrados por Cortés em torno do ano de 1519.
Embora a invenção da imprensa não tenha impedido artistas de investirem no uso
exclusivo de figuras em suas produções2, a possibilidade de unir o texto verbal ao não verbal
iniciou um novo capítulo para a arte sequencial. Atualmente, grande parte das histórias em
quadrinhos é composta por palavras e por figuras. Apesar de haver obras que enfatizam um
desses dois mecanismos, o fato é que os leitores de quadrinhos são brindados com a
possibilidade de construir o sentido a partir de elementos de naturezas distintas. McCloud
(Ibid, p.156) observa:
em quadrinhos, as palavras e imagens são como parceiros de dança e cada
um assume sua vez conduzindo. Quando os dois tentam conduzir, a
concorrência pode subverter as metas globais, embora uma pequena
concorrência, às vezes, possa produzir resultados apreciáveis.
Além do texto verbal e das representações gráficas de personagens e de cenários,
elementos típicos dos quadrinhos, como as sarjetas3, os requadros
4, os espaçamentos entre os
quadros, os formatos dos balões, entre outros, podem funcionar como pistas para que o leitor,
a partir delas, construa sua compreensão acerca da história. O enquadramento de certos
detalhes da ação, por exemplo, “não só define seu perímetro, como estabelece a posição do
leitor em relação à cena e indica a duração do evento” (EISNER, 2001, p.25). A noção de
tempo é construída a partir da quantidade de quadros, que é aumentada ou diminuída, de
modo a tornar a ação mais ou menos segmentada (Id., ibid., p.30). As sarjetas, os requadros e
o formato dos quadros podem ser explorados em função da noção de espaço (MCCLOUD,
2005, p.101). Diversas tipologias podem ser utilizadas nos textos escritos nos interiores dos
balões e dos quadros, dependendo da intenção do autor quanto à representação do tom e do
volume de voz dos personagens, de modo que o leitor possa “ouvir com os olhos” (Id., 2008,
p.146), e assim por diante.
Os autores de quadrinhos contam, ainda, com recursos que, embora nem sempre
perceptíveis à primeira vista, são muito eficientes no que diz respeito ao acionamento das
capacidades cognitivas do leitor. Eisner (2001, 2008) e McCloud (2005, 2008) abordam, entre
outros aspectos, a importância da caracterização dos personagens – através de gestos, posturas
e traços corporais e faciais – de modo a evocar as experiências e invocar as emoções do leitor.
Não se trata, apenas, de, com base num vasto repertório gestual constituído culturalmente,
reconhecer e aceitar a intenção expressa pelo autor; trata-se, também, da identificação com
certos aspectos da obra. McCloud (2005), por exemplo, cita a empatia com o cartum5 para
mostrar como somos centrados em nossa imagem, a ponto de, a partir das nossas
1 Termo popularizado por Eisner (2001) em referência à sequencialidade de imagens, característica do gênero
quadrinhos. 2 McCloud (Ibid.) cita como exemplos de “sofisticação da história com imagens”, entre outros, O progresso de
uma prostituta, sequência de ilustrações de William Hogarth publicada em 1731, e A week of kindness, romance
de Max Ernst, datado de 1934 e composto por 182 gravuras. 3 Linhas que separam os quadros.
4 Linhas que demarcam os limites dos quadros.
5 Representação simplificada do rosto humano, em que comumente a face é desenhada como um círculo, os
olhos como pontos e a boca como uma linha.
características, preenchermos formas icônicas e atribuirmos identidades e emoções a objetos
inanimados. Isso explicaria porque há uma maior identificação dos leitores com personagens
cujos traços são mais simplificados. Por outro lado, técnicas de desenho mais realistas
encaixam-se muito bem em cenários, e a utilização desta técnica, concomitantemente aos
traços cartunizados dos personagens, possibilita o que o autor chama de efeito-máscara:
Como ninguém espera que as pessoas se identifiquem com paredes ou
paisagens, os cenários tendem a ser mais realistas. Em alguns quadrinhos,
essa separação é bem mais pronunciada. O estilo Tintin6 de linhas simples
combina personagens muito icônicos com cenários extraordinariamente
realistas. Essa combinação permite que os leitores se disfarcem num
personagem e entrem num mundo sensorialmente estimulante. Um conjunto
de linhas pra ver, outro conjunto pra ser. (MCCLOUD, 2005, p. 42-43).
Esses aspectos indicam que as operações de construção de sentido a partir de códigos
distintos envolvem diversos mecanismos cognitivos. Antes de proceder à análise, na qual
serão evidenciados esses processos, faz-se mister esclarecer alguns conceitos aos quais
recorrerei.
Esquemas
Esquemas são estruturas procedentes das experiências sensoriomotoras que
proporcionam ao ser humano as noções de orientação, forma, equilíbrio, entre outras. Tratam-
se, portanto, do aparato que compõe a memória pessoal, construída a partir do que o corpo
permite experienciar na interação física com o ambiente em que o ser humano está situado. Os
esquemas mais frequentes, conforme Duque e Costa (no prelo), são representados a seguir7.
Figura 1: Esquema origem/caminho/meta
O esquema origem/caminho/meta resulta da compreensão de que os movimentos do
corpo pressupõem deslocamentos ao longo de uma trajetória, que tem, necessariamente, um
ponto de partida e um ponto de chegada.
Figura 2: Esquema contêiner
6 Protagonista de As Aventuras de Tintim, série de histórias em quadrinhos criada em 1929 pelo belga Georges
Prosper Remi, conhecido como Hergé. 7 As figuras 1, 2, 3, 4, 5 e 6 foram retiradas de Duque e Costa (no prelo).
Nosso corpo pode ser experimentado como um contêiner, cujo conteúdo são os
órgãos, e também como conteúdo de um outro contêiner, quando estamos num espaço
qualquer. Esse esquema é evidenciado quando dizemos que estamos dentro da casa, ou que a
casa fica dentro de um condomínio.
Figura 3: Esquema escalas
As escalas correspondem à relação entre quantidade e acúmulo. Com base nas nossas
experiências, compreendemos, por exemplo, que é possível agrupar elementos, e que, ao
adicionarmos substâncias a um contêiner, o nível do seu conteúdo aumenta.
Figura 4: Esquema parte-todo
O corpo humano é um todo constituído por partes (órgãos, membros etc). Essa
percepção do esquema todo-parte é estendida ao que nossos sensores identificam como sendo
estruturas inteiras compostas por peças, como as pernas da cadeira, os braços do sofá etc.
Figura 5: Esquema ligação
O esquema ligação indica conexão entre duas entidades, como a indumentária de um
indivíduo e uma situação em que essa roupa, costumeiramente, é usada. Em termos de
experiência corpórea, a ligação primordial do ser humano se dá pelo cordão umbilical, que o
liga ao corpo da sua mãe e, tão logo é cortado, deixa o umbigo como o indicador dessa
separação.
Figura 6: Esquema centro-periferia
Nosso corpo tem um centro – o tronco – e membros periféricos; acessamos esse
esquema, também, ao identificarmos as partes principais dos objetos e ressaltá-las, quando
nos referimos a eles.
Frames
De acordo com Minsky (1975), frames são estruturas de dados correspondentes a
estereótipos de situações. Compreendemos, a partir de nossa experiência no meio em que
vivemos, guiados por convenções sociais e culturais, que há cenários, roteiros e papéis
específicos para determinadas situações. Um indivíduo que vai a uma celebração religiosa,
por exemplo, tem uma expectativa sobre o ritual de que participará e sobre o comportamento
que seus pares esperam dele, e é em função dessa expectativa que ele se comportará de um
determinado modo. Essa memória social é remodelada à medida que novas informações são
agregadas ao conhecimento prévio, de modo que o indivíduo seja capaz de adaptar-se a
situações ainda não vivenciadas. Portanto, os frames são fundamentais aos processos de
interação.
A mesclagem conceptual
Fauconnier e Turner (2002) postulam que as construções de sentidos ocorrem pelo
blending8, um processo cognitivo que opera sobre dois espaços mentais
9 de modo que, a partir
dessa integração, um terceiro espaço mental – o espaço-mescla – é criado. Essa operação
envolve a projeção tanto de informações relativamente estabilizadas – tais como as que
compõem os frames e os esquemas – como de novas informações. É desse modo que criamos,
online, novas categorias e significados que emergem quando usamos a linguagem.
A arquitetura básica da mesclagem é graficamente representada por Fauconnier e
Turner conforme o gráfico a seguir:
Figura 7: Rede de integração conceptual (adaptada de Fauconnier & Turner, 2002, p.46)10
8 Blending foi traduzido no Brasil como mesclagem, por Margarida Salomão.
9 Os espaços mentais são operadores cognitivos dinâmicos, que organizam-se enquanto pensamos e falamos.
10 O diagrama da rede de integração conceptual é reproduzido a título de ilustração e de apresentação da Teoria
da Mesclagem Conceptual. Dada a natureza preliminar da análise dos dados, esta não é formalmente
representada neste trabalho.
A metáfora
Desde Lakoff e Johnson (1980), a metáfora não é mais vista como mero recurso
estilístico ou desvio de linguagem. Ela é, na verdade, uma das estratégias mais comumente
empregadas para categorizarmos o mundo. A metáfora permite-nos compreender um aspecto
de um conceito em termos de outro. As construções que resultam dessas projeções entre
domínios distintos permitem compreender a metáfora como produto das intrincadas relações
biológicas, sociais, históricas e culturais nas quais se enreda o homem.
No que diz respeito ao papel da estrutura biológica humana, Lakoff e Johnson (1999,
p.18-19) compreendem que
as propriedades do corpo humano [...] contribuem para as peculiaridades do
sistema conceptual. Nós temos olhos e orelhas, pernas e braços que
trabalham de certas maneiras e não de outras. Temos um sistema visual, com
mapas topográficos e células sensíveis à orientação, que estruturam nossa
habilidade de conceptualizar relações espaciais. Nossas habilidades de
movimento e de percepção do movimento das outras coisas dão ao
movimento um papel fundamental em nosso sistema conceptual. O fato de
termos músculos e usá-los para aplicar força de certas formas leva à
estrutura de nosso sistema de conceitos causais. O que é importante,
portanto, não é apenas o fato de termos corpos e de que o pensamento é de
certa forma corporificado. O que importa de fato é que a natureza peculiar de
nosso corpo molda nossas possibilidades de conceptualização e
categorização11
[tradução nossa].
Ou seja, nossa experiência com o mundo, através do corpo, é fundamental para os
processos de construção dos sentidos. Dessa experiência, resulta uma categoria de metáfora.
Tomemos como exemplo a configuração da nossa face: a localização dos nossos olhos, da
boca e do nariz nos leva a concluir que somos feitos para andar para a frente. Assim,
pensamos nas situações que ainda vamos vivenciar como situadas diante de nós, e nas
situações já vividas como algo que está atrás de nós, de maneira que elaboramos enunciados
do tipo “temos um semestre inteiro pela frente” e “deixei para trás as terríveis experiências
vividas naquela casa” (MARTELOTTA; PALOMANES, 2008). Essas metáforas evidenciam
o fato de que as atividades cognitivas surgem a partir das nossas experiências com o ambiente
à nossa volta. Dessa forma, podemos concluir que a dicotomia mente/corpo não faz sentido na
atual agenda de estudos linguísticos, visto que ação e pensamento estão ligados, e isso é
evidenciado pelo fato de as experiências afetarem nosso aparato cognitivo. Paredes (2003,
p.203) observa que
um ser vivo não assimila passivamente informações provenientes de um
mundo externo independente de suas operações cognitivas, mas vive
experiências cujas características surgem das possibilidades operacionais
constituídas pela própria estrutura corporal. Em outras palavras, não se trata
de perceber um mundo, mas de constituir, historicamente, experiências
cognitivas.
11
(...) the properties of the human body (…) contribute to the peculiarities of our conceptual system. We have
eyes and ears, arms and legs that work in certain very definitive ways and not in others. We have a visual
system, with topographic maps and orientation-sensitive cells, that provides structure for our ability to
conceptualize spatial relations. Our abilities to move in the ways we do and to track the motion of other things
give motion a major role in our conceptual system. The fact that we have muscles and use them do apply force in
certain ways lead to the structure of our system of causal concepts. What is important is not just that we have
bodies and that thought is somehow embodied. What is important is that the peculiar nature of our bodies shapes
our very possibilities for conceptualization and categorization.
Existem, ainda, metáforas que resultam de mesclagens recorrentes, possíveis graças à
projeção de domínios construídos a partir de nossas experiências, na interação com o meio,
com os demais sujeitos e com todo o aparato social, histórico e cultural que nos cerca. Somos
capazes de mesclar esquemas de naturezas diversas, de modo a construir metáforas que, de
tão utilizadas, acabam se estabilizando sociocognitivamente. Lakoff e Johnson (1980, p.8)
citam, por exemplo, a metáfora TEMPO É DINHEIRO, evidenciada em construções como
“preciso ganhar tempo”; “estou perdendo tempo com você”; “cada minuto será precioso para
nós”, entre outras. Segundo os autores, fazemos essas projeções porque vivemos em uma
cultura na qual o trabalho é associado ao tempo que ele toma, e costumamos quantificar esse
tempo em horas, semanas ou dias a serem pagos em troca do serviço prestado. Com base
nessas práticas típicas nas sociedades industrializadas, pensamos no tempo como um “recurso
limitado que usamos para cumprir nossas metas” e como uma “mercadoria valiosa” que pode
ser usada, gasta, bem ou mal investida, entre outras aplicações comuns ao domínio dinheiro.
Podemos pensar em outras inúmeras construções semelhantes: o amor como um jogo, a vida
como um palco, as situações positivas como “para cima”, as situações negativas como “para
baixo”, entre outras metáforas que revelam como conceptualizamos domínios mais abstratos a
partir de experiências de caráter mais concreto. Através dessas construções metafóricas
sociocognitivamente estabilizadas, resultantes de mesclagens recorrentes, conseguimos
elaborar e mostrar a visão que construímos do mundo a partir da nossa ação nele.
Além das metáforas estabilizadas, existem, ainda, construções não recorrentes,
evidenciadas por mesclagens não convencionais, que acabam por elaborar novas perspectivas
de mundo. Esse processo acontece frequentemente nos textos literários. Sendo os quadrinhos,
também, um gênero cujas características possibilitam a construção de novos sentidos para o
que chamamos de “realidade”, evidenciaremos, ao longo da discussão sobre os dados
analisados, a existência de metáforas não recorrentes, ancoradas nos textos verbal e não
verbal.
Análise dos dados
Com base no cruzamento dos dados com o referencial teórico estudado, propomos o
conceito de mesclagem semiológica para classificar o fenômeno que evidencia as construções
– metafóricas ou não – próprias do gênero quadrinhos. Baseamo-nos em Salomão (1999,
p.62), que cita o conceito de semiologização do contexto e diz ser necessário
assinalar a concorrência da semiose lingüística clássica (expressão
gramatical e lexical) com as outras semioses que a ela se agregam [...]
Como tratar, por exemplo, o discurso irônico enunciado oralmente, feita a
abstração da voz e do gesto? Como tratar, de outra parte, o discurso escrito,
desconsiderando convenções genéricas, molduras comunicativas,
informações contextualmente relevantes? Em qualquer caso, a pista léxico-
sintática precisaria ser enriquecida para a eficaz construção do sentido
[grifos do original].
O contexto, nesse caso, não é o mero conjunto de variáveis não linguísticas a serem
tomadas como respaldo à interpretação das variáveis linguísticas. Contexto, na perspectiva
cognitivista, é o que está disponível cognitivamente e nos permite ler a exterioridade. De
acordo com Duque e Costa (no prelo),
sistemas de representação, construídos discursivamente, regulam as
estruturas mentais e perceptivas dos sujeitos e, ao mesmo tempo, são
regulados por elas, organizando espaços sociais e articulando significados
coletivos. O fenômeno linguístico, portanto, é absolutamente imbricado com
o contexto sociocultural em que ocorre e, simultaneamente, o contexto em
que uma ação discursiva se realiza não é independente da memória
conversacional dos sujeitos, de suas experiências corpóreas e das estruturas
conceptuais disponibilizadas no presente, constituídas, inclusive, por suas
emoções.
Portanto, não se pode considerar a linguagem e o contexto como variáveis separadas
e estanques. Consoante as tendências mais recentes na agenda de investigações sobre a
linguagem, há uma
continuidade essencial entre linguagem, conhecimento e realidade que não
as reduz entre si, mas as redefine em sua fragmentária identidade (como
realidade, ou como conhecimento, ou como linguagem), segundo as
necessidades locais da interação humana [grifos do original] (SALOMÃO,
1999, p.71).
Destarte, na perspectiva cognitivista, a construção do sentido se dá num ambiente
constituído por indivíduos que, ao experienciarem o meio em que vivem e a interação com
seus pares, esses sujeitos não só se conhecem, se apresentam e se ajustam às mais diversas
situações, como também constroem sentidos e (re)definem a “realidade”. Como destaca
Salomão (Ibid., p.72) ao falar desse reenquadramento constante, “ao postularmos a
continuidade essencial das semioses, reconhecemos que igualmente se misturam, como
representações, a conceptualização do mundo e a comunicação do mundo [grifo do
original]”.
Esse reenquadramento constante é perceptível em nossa linguagem, nas diversas
construções discursivas, da conversa entre amigos até o texto literário. No caso dos
quadrinhos, é possível detectar ocorrências típicas do gênero, relacionadas, especificamente, à
mesclagem entre os mecanismos verbais e os não verbais.
Figura 8: Reprodução de quadro de V de Vingança, página 12.
No início do primeiro capítulo de V de vingança, o leitor depara-se com quadros nos
quais são retratados, alternadamente, trechos das ruas de Londres e a personagem Evey
Hammond arrumando-se e maquiando-se em um quarto enquanto ouve um programa de rádio.
Os balões sobrepostos aos quadros contêm a fala do locutor, que fornece um panorama da
cidade, com informações que vão da previsão meteorológica a detalhes do discurso do
ministro da Guerra. Ao final da transmissão, o locutor diz: “este é o rosto de Londres esta
noite”. O balão com essa sentença compõe um quadro no qual é focalizada a fisionomia
assustada de Evey. Esse artifício dá ao leitor a possibilidade de concluir que O ROSTO DE
EVEY É O ROSTO DE LONDRES, ou seja, a moça e a capital inglesa, nesse momento,
aproximam-se conceptualmente. A construção desse sentido é reforçada à medida que, no
decorrer da história, são reveladas várias semelhanças entre Evey e Londres, ambas vítimas de
um regime totalitário.
As metáforas não são as únicas construções evidenciadas pelas mesclagens
conceptuais: estas se imbricam a outros fenômenos relacionados à combinação dos textos
verbal e não verbal. O exemplo a seguir, também retirado de V de Vingança, evidencia a
construção de um sentido de ironia, que só é possível se houver a combinação das imagens e
das palavras.
Figura 9: Reprodução de quadro de V de Vingança, página 12.
O balão com o texto verbal “Sua Majestade vestia roupas de seda, desenhadas
especialmente para a ocasião pelo estilista real” é sobreposto à figura pobremente vestida de
Evey. É possível, a partir desse quadro, não só imaginar a discrepância entre as roupas da
rainha e as de Evey, como também inferir que a família real vive em condições opostas às
experimentadas pelos demais ingleses. Esse é um exemplo de como a mesclagem do verbal e
do não verbal, em um só quadrinho, fornece pistas para a compreensão de toda a história.
Casos semelhantes foram encontrados em Palestina: na Faixa de Gaza e Palestina: uma
nação ocupada, como pode ser visto nos casos expostos a seguir.
Figura 10: Reprodução de Palestina: uma nação ocupada, página 1.12
Uma estratégia recorrente em Palestina é a disposição caótica dos elementos que
compõem as páginas, especialmente durante os relatos de situações marcadas por desordem e
confusão. Na página que abre o capítulo 1 da obra, por exemplo, Joe Sacco narra seu percurso
na cidade do Cairo, das ruas tumultuadas e barulhentas até o hotel onde se hospeda e inicia
uma relação amistosa com dois recepcionistas. Recursos como requadros e sarjetas,
12
Texto verbal: “Trânsito? Estou engolindo fumaça e meu catarro está preto. Barulho? Os egípcios preferem
buzinas a home theaters! Que cidade! Uma loucura! 15 milhões de cabeças com as galinhas cortadas! E entre
pirâmides e meninos faraós, estou tonto! Estou girando! Táxi! Tire-me daqui! Puxo uma cadeira. Tiro o peso dos
meus pés. Estou de papo com os recepcionistas do hotel. Está bem mais calmo agora, e a conversa está ficando
filosófica. “Existem muçulmanos e muçulmanos”. Violinos, por favor! Uma mulher de Praga! Um encontro de
dois dias! Luz de velas e cruzeiros pelo Nilo! Subindo a Torre do Cairo sabe-se lá por que preço! Em dois dias
ele torrou 500 libras egípcias! E o melhor: eles nem transaram! Taha está se divertindo com a matemática!
‘600% do seu salário! O pagamento de um semestre em dois dias!’ ‘Eu a amo!’ ‘Você está bebendo para
esquecer! Ela disse que deixará o marido por mim! Os filhos!’ ‘Agora ela diz que o ama! 500 libras!’”.
comumente utilizados para delimitar os quadros e, desse modo, conferir organização à
narrativa, são dispensados. A página assemelha-se a um único grande quadro, no qual se
misturam os balões – que contém a narração de Sacco e as falas dos recepcionistas do hotel –,
o título do capítulo e as imagens, agrupadas de modo a comporem os diferentes momentos da
trajetória: na parte superior da página, pessoas, veículos e edifícios são graficamente
representados de maneira desordenada; na parte inferior, a imagem corresponde à recepção do
hotel, onde os personagens bebem e dialogam. Esses dois momentos são delimitados pelos
balões, dispostos como se seguissem uma trajetória não linear, que também é sugerida no
texto verbal. Através dessas pistas verbais e não verbais, o compreendedor aciona o esquema
origem/caminho/meta.
Figura 11: Reprodução de Palestina, uma nação ocupada, páginas 106, 111 e 113.
No capítulo em que é narrada a história de Ghassan, um homem preso sob acusação
de integrar uma organização ilegal, as sarjetas ganham destaque: negras, simétricas e retas,
elas se cruzam de tal modo que o compreendedor pode acionar o frame prisão, e associar a
disposição das sarjetas a uma cela de cárcere. Além disso, à medida que a narrativa se
desenrola, a distância entre as sarjetas diminui paulatinamente, o que torna os quadrinhos
muito estreitos e pequenos. Essa configuração é alterada na última página do capítulo, quando
o homem é libertado por falta de provas; nesse ínterim, um único grande quadro, que toma
quase metade da página, encerra a história da prisão de Ghassan. A formatação dos quadros,
mais estreitos e escuros no momento da narrativa correspondente à prisão, e mais amplos à
medida que se aproxima o momento da libertação do personagem, é uma pista que permite ao
leitor o acionamento do esquema contêiner.
Figura 12: Reprodução de quadro de Palestina, uma nação ocupada, página 137.13
Diante do quadro acima (cf. figura 12), ao mesclar os mecanismos verbais e os não
verbais, o compreendedor pode acionar o esquema parte/todo. A fala “essa roupa é um nada,
eu praticamente anulo todas as mulheres que a usam” é sobreposta à representação gráfica de
mulheres com seus rostos cobertos, de modo que é possível associar os rostos das mulheres às
suas identidades.
Vejamos mais dois casos.
Figura 13: Reprodução de quadro de Palestina, na Faixa de Gaza, página 1814
.
13
“Tudo bem, é ótimo falar com feministas, todo mundo fez faculdade, estamos todos do mesmo lado, às vezes
poderíamos completas as frases uns dos outros... São as mulheres que vejo na rua que eu não entendo, as
mulheres muçulmanas que usam o hijab, o “véu” que esconde seus cabelos e as roupas que cobrem tudo menos o
rosto e as mãos... Vamos encarar, sou do Ocidente, já vi muitas pernas, cabelo laranja também, e outros
adereços... Mas essa roupa é um nada, eu praticamente anulo todas as mulheres que a usam, elas são apenas
sombras para mim, formas abstratas, como pombos andando pela calçada...” (Tradução retirada de Sacco, 2005). 14
“O que os americanos acham do que Israel fez? O que os americanos acham das leis internacionais? Pelo
menos eles sabem que isso existe? E as resoluções da ONU que mandam Israel se retirar? 242? 338? Ou as
resoluções da ONU só valem para o Iraque?” (Tradução retirada de Sacco, 2003).
Figura 14: Reprodução de quadro de Palestina, na Faixa de Gaza, página 30.15
Os dois quadros reproduzidos logo acima são exemplo de pistas que permitem ao
compreendedor acionar o esquema de escala. No primeiro quadrinho (cf. figura 13), os balões
são dispostos de modo a cercar e isolar a representação gráfica do personagem no momento
em que ele é duramente interpelado por seus interlocutores. No quadro seguinte (cf. figura
14), o personagem esboça alguma reação às questões que lhe são destinadas, mas seus balões
de fala quase somem, se comparados ao tamanho dos balões em que são apresentados os
temas da discussão em que Sacco está envolvido. A partir dessas pistas e do acionamento do
esquema de escalas, o leitor pode construir a compreensão de que as opiniões e as falas –
inclusive em termos de volume da voz – dos demais personagens sobrepõem-se às de Joe
Sacco.
Considerações finais
Através da exposição da análise preliminar dos dados colhidos em V de vingança e
em Palestina, pretendemos mostrar que a junção de imagens e palavras, típica do gênero
quadrinhos, pode resultar em refinados processos de construção de sentido. Os exemplos
escolhidos corroboram a ideia de que os significados, mais do que objetos mentais, são
operações de integração de espaços conceptuais que resultam do acionamento de frames e de
esquemas.
Infelizmente, a utilização de textos de naturezas distintas ainda é comumente
compreendida como um elemento facilitador para leitores inexperientes ou preguiçosos,
pouco dados a um esforço de compreensão. No entanto, os dados apresentados neste artigo
indicam que as semioses características dos quadrinhos podem resultar em complexos jogos
semânticos. Assim, o alcance das obras, em termos de significação, corresponde à
competência do leitor como sujeito capaz de recuperar as pistas linguísticas deixadas pelos
autores e de, com base nesses sinais e no conhecimento prévio que construímos a partir de
nossas experiências, compreendermos o discurso em sua amplitude.
Ressaltamos, também, a contribuição desta pesquisa com a fortuna acadêmica sobre
quadrinhos, ainda escassa na área da Linguística. Esperamos, inclusive, proporcionar uma
mudança na percepção sobre os quadrinhos, recorrentemente tratados como um gênero menor.
15
“Agora querem a minha opinião... O que acho do Hanan Ashrawi? Assad da Síria? Saddam Hussein? George
Habash? Arafat? Abu Jihad? O que os americanos acham? Da 242? 338? As outras resoluções da ON? ‘Bem...
Realmente... Como eu disse... E digo mais...” (Tradução retirada de Sacco, 2003).
Referências
DUQUE, Paulo Henrique; COSTA, Marcos Antonio. Linguística Cognitiva: em busca de uma
arquitetura de linguagem compatível com modelos de armazenamento e categorização de
experiências. No prelo.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
_____. Narrativas gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos. São Paulo: Devir,
2.ed., 2008.
FAUCONNIER, Gilles; TURNER, Mark. The way we think: conceptual blending and the
mind’s hidden complexities. New York: Basic Books, 2002.
_____. Mental Spaces. Disponível em: < http://terpconnect.umd.edu/~israel/Fauconnier-
MentalSpaces.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2011.
_____. Conceptual integration. Disponível em: <
citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.90.8028.pdf. Acesso em: 11 jun.
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago
Press, 1980/2003.
_____. Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge to western thought. New
York: Basic Books, 1999.
MARTELOTTA, Mário Eduardo; PALOMANES, Roza. A lingüística cognitiva. In:
MARTELOTTA, Mário Eduardo (org.). Manual de lingüística. São Paulo: Contexto, 2008,
p.177-192.
MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil, 2005.
_____. Desenhando quadrinhos. São Paulo: M. Books do Brasil, 2008.
MINSKY, Marvin . A framework for representing knowledge. In: The Psychology of
Computer Vision. Ed. P. Winston, 1975. Disponível em: <
http://web.media.mit.edu/~minsky/papers/Frames/frames.html>. Acesso em: 11 jun. 2011.
MOORE, Alan; LLOYD, David. V de Vingança. São Paulo: Panini, 2006.
PAREDES, Vitor. Corporalidade: um caminho no diálogo entre estudos linguísticos e
filosofia. In: Veredas: revista de estudos lingüísticos. Juiz de Fora, v.7, n. 1 e n.2, jan./dez.
2003, p. 199-215.
SACCO, Joe. Palestina: na Faixa de Gaza. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2003.
_____. Palestina: uma nação ocupada. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 3. ed., 2005.
SALOMÃO, Maria Margarida Martins. A questão da construção do sentido e a revisão da
agenda dos estudos da linguagem. Veredas: revista de estudos lingüísticos. Juiz de Fora, v.3,
n. 1, 1999, p. 61-79.
TALMY, Leonard. Prefácio a GONZALEZ-MARQUEZ, M.; MITTELBERG, I.,
COULSON, S.; SPIVEY, M (eds.). Methods in cognitive linguistics. Amsterdam: John
Benjamins, 2005.