a constitucionalizaÇÃo do direito privado - eugÊnio facchini neto
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Ano 1 (2012), n 1, 185-243 / http://www.idb-fdul.com/
A CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO
PRIVADO
Eugnio Facchini Neto
Sumrio: 1. Introduo. 2. As grandes divises dicotmicas e
seus reflexos no direito. Oscilaes histricas. 3. O primado do
privado sobre o pblico. 4. O primado do pblico sobre o
privado. 5. Direito Pblico e Direito Privado. Convergncias.
6. A constitucionalizao do direito privado. 7. Continuao. O
sentido antigo da constitucionalizao do direito privado. 8.
Continuao. O sentido moderno da constitucionalizao do
direito privado. 9. Dos limites publicizao do direito
privado. 10. A constitucionalizao do direito privado e a
proteo dos direitos fundamentais. 11. Concluso. 12.
Referncias bibliogrficas.
1. INTRODUO.
Constitui objeto do presente estudo o fenmeno
usualmente denominado de constitucionalizao do direito privado, especialmente em sua dimenso histrico-evolutiva. Esse tema, na verdade, tem imbricaes com o ocaso da viso
dicotmica que dividia o mundo jurdico em direito pblico e
direito privado, aflora as questes ligadas aos fenmenos da
Desembargador no Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul/Brasil. Doutor em
Direito Comparado (Florena/Itlia), Mestre em Direito Civil (Universidade de So
Paulo). Professor dos Cursos de Graduao, Mestrado e Doutorado em Direito da
PUC/RS. Professor e ex-diretor da Escola Superior da Magistratura/AJURIS.
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publicizao do direito privado e da privatizao do direito
pblico, e relaciona-se com o esforo para tornar no s
juridicamente eficazes, mas principalmente socialmente
efetivos os direitos fundamentais tambm no mbito das
relaes particulares.
Com essa perspectiva, analisaremos, num primeiro
momento, o surgimento da dicotomia pblico/privado e sua
repercusso no mundo jurdico (direito pblico v. direito
privado) (captulo 2), percorreremos a evoluo histrica de tal
distino, realando os momentos em que houve o primado do
privado sobre o pblico (captulo 3), sucedido pelo primado do
pblico sobre o privado (captulo 4), destacando os
pressupostos ideolgicos de tal oscilao.
Em continuao, procuraremos analisar a tendencial
convergncia do direito pblico e do direito privado, no sentido
de uma publicizao do direito privado e uma privatizao do
direito pblico (captulo 5).
A partir desse ponto, iniciaremos a discusso de uma das
possveis manifestaes do fenmeno da publicizao do
direito privado, qual seja, a constitucionalizao do direito civil
(captulo 6), analisando o sentido antigo de tal fenmeno
(captulo 7) e o seu sentido moderno (captulo 8).
Vinculado a este fenmeno se encontra a discusso sobre
a necessidade de se colocar limites publicizao do direito
privado (captulo 9), preservando-lhe seu espao de incidncia,
em virtude do princpio da exclusividade, que pode ser tido
como caracterizador do direito privado contemporneo.
O estudo conclui com uma discusso sobre a necessidade
de proteo dos direitos fundamentais, inclusive quando em
discusso temas tpicos do direito privado (captulo 10).
2. AS GRANDES DIVISES DICOTMICAS E SEUS
REFLEXOS NO DIREITO. OSCILAES HISTRICAS.
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O fenmeno da constitucionalizao do direito privado
representa, de certa forma, a superao da perspectiva que via o
universo jurdico dividido em dois mundos radicalmente
diversos o direito pblico de um lado, e o direito privado de outro. Impe-se, assim, repercorrer as razes que originaram
tal distino, sua evoluo, com a anlise dos motivos que
levaram contempornea relativizao de tal diferenciao.
A celebrrima distino entre direito pblico e direito
privado, destinada a se tornar uma das grandes dicotomias do
pensamento jurdico de todos os tempos, exige que nos
detenhamos, inicialmente, sobre o significado da expresso
dicotomia. Segundo Bobbio1, fala-se em dicotomia quando nos
deparamos com uma distino da qual se pode demonstrar a
capacidade de dividir um universo em duas esferas,
conjuntamente exaustivas, no sentido de que todos os entes
daquele universo nelas tenham lugar, sem nenhuma excluso, e
reciprocamente exclusivas, no sentido de que um ente
compreendido na primeira no pode estar simultaneamente
compreendido na segunda. Alm disso, os dois termos de uma
dicotomia condicionam-se reciprocamente, mutuamente se
delimitam e excluem alternativas (tertium non datur). Como
conseqncia de uma tal viso, a esfera do pblico chega at
onde comea a esfera do privado e vice-versa.
Esta distino fez seu ingresso na histria do pensamento
poltico e social do ocidente atravs de duas passagens do
Corpus Juris Civilis [Institutiones, I, I, 42; Digesto, I, 1, 1, 2],
1 BOBBIO, Norberto. A grande dicotomia: pblico/privado. In: Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da poltica [Stato, governo, societ. Per una
teoria generale della politica]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990 [1987], 3. ed., p.
13 e 14. 2 Institutiones, I, I, 4: Huius studii duae sunt positiones, publicum et privatum. Publicum ius est quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum
utilitatem pertinet. Dicendum est igitur de iure privato, quod est tripertium:
collectum est enim ex naturalibus praeceptis aut gentium aut civilibus (extra esse fragmento das Instituies de Justiniano, do Breviarium Iuris Romani, organizado
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onde se refere ao pblico como quod ad statum rei romanae
spectat, e ao privado como quod ad singulorum utilitatem3.
Em outras passagens do Digesto, a distino reaparece,
acompanhada pela afirmao da supremacia do direito pblico
sobre o privado: ius publicum privatorum pactis mutari non
potest (Digesto, 38, 2, 14) e privatorum conventio iuri publico
non derogat (Digesto, 45, 50, 17). A vem salientado que a
vontade das partes tem fora para modificar as normas de
direito privado, mas no pode derrogar normas de direito
pblico.
sabido, tambm, que a prpria colocao do problema
costuma vir acompanhada pela afirmao da supremacia do
direito pblico sobre o direito privado. Ou seja, a uma viso
supostamente descritiva da natureza das coisas, passa-se
imperceptivelmente a uma viso prescritiva, carregada de valor
ideolgico.
A distino entre direito privado e direito pblico
costuma ser feita pelos juristas a partir de critrios variados,
sempre controvertidos. Bobbio os reduz a dois principais,
conforme o critrio diferencial seja buscado na forma ou na
matria da relao jurdica.
Com base na forma da relao jurdica, distinguem-se relaes de coordenao entre
sujeitos de nvel igual, e relaes de subordinao
entre sujeitos de nvel diferente, dos quais um
superior e outro inferior: as relaes de direito
por V. Arangio-Ruiz e Antonio Guarino, Milano: Dott. A. Giuffr Ed., 1989, settima
edizione, p. 212). 3 O inteiro teor do preceito o seguinte: D.I.1.1.2. So dois os temas deste estudo: o pblico e o privado. Direito pblico o que se volta ao estado da res Romana,
privado o que se volta utilidade de cada um dos indivduos, enquanto tais. Pois
alguns so teis publicamente, outros particularmente. O direito pblico se constitui
nos sacra, sacerdotes e magistrados. O direito privado tripartido: foi, pois,
selecionado ou de preceitos naturais, ou civis, ou das gentes (na traduo de Hlcio Maciel Frana Madeira, Digesto de Justiniano, livro 1. So Paulo: Editora Revista
dos Tribunais; Osasco, SP: Centro Universitrio FIEO UNIFEO, 2000, p. 16/17.
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privado seriam caracterizadas pela igualdade dos
sujeitos, e seriam portanto relaes de
coordenao4; as relaes de direito pblico seriam
caracterizadas pela desigualdade dos sujeitos, e
seriam portanto relaes de subordinao5. Com
base na matria, porm, que constitui o objeto da
relao, distinguem-se os interesses individuais,
que se referem a uma nica pessoa, dos interesses
coletivos, que se referem totalidade das pessoas,
coletividade. Levando em conta esta distino, o
direito privado seria caracterizado pela proteo
que oferece aos interesses privados e o direito
pblico pela proteo oferecida aos interesses
coletivos.6
J para Kant, como sabido, a distino entre direito
privado e pblico deve ser fundamentada racionalmente, e no
empiricamente. Para tanto, teramos que indagar sobre a fonte
da qual se originam os diversos direitos: derivando do poder
estatal, tratar-se-ia de direito pblico. Ora, como o direito
legislado abarca tambm institutos do direito privado,
4 O problema que, atualmente, cada vez mais tornam-se visveis relaes jurdicas entre privados, nas quais fatalmente as partes no se encontram em posio de
igualdade, o que levou o direito a criar novos microssistemas, ou subsistemas, no
sentido de proteger a parte hipossuficiente, v.g., o campo dos direitos do
consumidor. Cfr. SILVEIRA, Michele Costa da. As grandes metforas da bipolaridade. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.), A reconstruo do direito privado: reflexos dos princpios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais
no direito privado. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 31. 5 Tambm aqui, porm, percebe-se cada vez mais que o Estado nem sempre se
relaciona com os sujeitos privados sob a forma de subordinao, pois, percebendo
sua incapacidade para atuar diretamente em todas as reas em que modernamente
passa a intervir, transfere cada vez mais iniciativa privada, mediante concesses,
autorizaes, delegaes, algumas das suas funes. As relaes que surgem entre
os entes envolvidos so presididas mais por um de coordenao que por um de
subordinao. 6 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant (Diritto e
Stato nel Pensiero di Emanuele Kant). Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 1984,
c1969, p. 83.
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igualmente esse seria, na verdade, um direito pblico. Segundo
o pensamento jusnaturalista kantiano, o nico direito existente
fora do direito estatal seria o direito natural, entendido em seu
sentido restrito, como aquele que disciplina as relaes entre os
homens no estado de natureza. Desta forma, o problema da
distino entre direito privado e o direito pblico em Kant
muda para a distino entre direito natural e direito positivo.
Aquele no reconhece outra fonte a no ser a natureza mesma
das relaes entre pessoa e pessoa, enquanto este deriva, ao
contrrio, da vontade do legislador. O primeiro um direito
permanente, racional e ideal; o segundo um direito voluntrio
e determinado historicamente.
Certamente esta a base sobre a qual os juristas
posteriores passaram a distinguir o direito privado do pblico.
De fato, no estado de natureza as relaes jurdicas podem ser
somente relaes de coordenao, j que os indivduos esto
todos em plano de igualdade. Com a passagem sociedade
civil e a constituio da autoridade do Estado, instauram-se
situaes de desigualdade entre aqueles que comandam e
aqueles que obedecem. Desta situao de desigualdade surgem
relaes de subordinao.
3. O PRIMADO DO PRIVADO SOBRE O PBLICO.
Assentadas tais premissas, h que se reconhecer que a
preponderncia de um aspecto (pblico/privado) sobre o outro
conheceu alternncias ao longo da histria. No houve uma
evoluo linear, percebendo-se, ao contrrio, um movimento
em certo modo cclico ou pendular.
De fato, na clssica Grcia havia uma espcie de
interpenetrao do pblico e do privado, no sentido de que os
cidados, reunidos na gora, participavam intensamente das
grandes decises envolvendo interesses da comunidade, quer
votando leis (nomoi), quer julgando seus semelhantes em
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processos pblicos de maior importncia.
J em Roma ocorre uma separao mais ntida entre as
duas esferas, havendo pouca participao direta dos cidados,
enquanto tais, na esfera pblica.
No perodo mais intenso da era medieval, embora sob
outros pressupostos, houve uma espcie de absoro do pblico
pelo privado, derivado, de certo modo, da primazia da
propriedade territorial sobre os demais institutos econmico-
poltico-jurdicos. Isto porque os senhores feudais exerciam
verdadeira funo pblica sobre todos os habitantes de seus
feudos (vassalos e servos da gleba), uma vez que estabeleciam
regras obrigatrias, impunham e arrecadavam tributos,
julgavam seus servos e executavam as decises. Ou seja, pode-
se quase dizer que do direito de propriedade derivava o poder
poltico e o prestgio social.
A partir do final da idade mdia, com a formao do
Estado moderno, h uma nova interpenetrao entre o pblico e
o privado, com uma funcionalizao do pblico ao privado
(pois interessava burguesia emergente o fortalecimento da
monarquia nacional, j que um governo centralizado e nico
tenderia a favorecer o desenvolvimento do comrcio, reduzindo
as barreiras alfandegrias, as mltiplas moedas, etc.), mas
tambm com uma funcionalizao do privado ao pblico (j
que igualmente interessava ao monarca o fortalecimento da
burguesia, de quem se cobravam tributos cada vez maiores, e
de quem aquele obtinha emprstimos para financiar suas
campanhas militares e outros empreendimentos rgios)7.
7 Emblemtico dessa convergncia de interesses o dilogo entre o Prncipe e o
mercadores, imaginado por Kant, em que o monarca indagava o que podia fazer por estes, e os mercadores respondiam: Sir, fornea-nos boa moeda e a segurana das estradas e o resto deixe por nossa conta apud Michele Giorgianni, Il diritto privato ed i suoi attuali confini, publicado originariamente na Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, em 1961 (h uma traduo publicada na Revista dos
Tribunais, vol. 747 [1998], p. 35-55). Igualmente emblemtico e ainda mais famoso
teria sido o dilogo entre o Ministro das Finanas do Rei francs e os grandes
comerciantes do reino, na segunda metade do sc. XVII, em que aquele referia que o
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Por volta do sculo XVIII, passa-se a realar a
diferenciao entre a esfera das relaes econmicas e a esfera
das relaes polticas, entre sociedade civil e Estado. Nesse
contexto, a dicotomia pblico v. privado volta a se apresentar
sob a forma de distino entre a sociedade poltica (o reino da
desigualdade) e sociedade econmica (o imprio da
igualdade)8. Cada uma dessas sociedades caracterizada pela
presena de sujeitos diversos: o citoyen da sociedade poltica,
que titulariza interesses pblicos, e o bourgeois da sociedade
econmica, que cuida dos seus prprios interesses privados.
nesse contexto histrico que se revela mais intensa a
diviso dicotmica entre pblico e privado e suas derivaes a separao entre Estado e Sociedade, Poltica e Economia,
Direito e Moral. Essa viso dicotmica de mundo repercute no
mundo jurdico, com a acentuao da diferena entre Direito
Pblico e Direito Privado. O Direito Pblico passa a ser visto
como o ramo do direito que disciplina o Estado, sua
estruturao e funcionamento, ao passo que o Direito Privado
compreendido como o ramo do direito que disciplina a
Sociedade civil, as relaes intersubjetivas, e o mundo
econmico (sob o signo da liberdade). As relaes privadas so
estruturadas a partir de uma concepo de propriedade absoluta
e de uma plena liberdade contratual (reinos esses que o Direito
Pblico no podia atingir) em todos os Cdigos civis que
Rei mandara perguntar o que podia fazer em prol dos comerciantes, ao que estes
teriam respondido: laissez-faire, laissez-passer, que le monde v de lui-mme. 8 Deve ser lembrado, porm, que at o incio do sculo XX, a Inglaterra no
conhecia a dicotomia direito pblico X direito privado. Defendia-se a idia de que a
common law tradicional constitua um corpo nico e indivisvel de regras, no sentido
de the same body of rules applied to the government and its agents as well as to private citizens R. C. van Caenegen, An Historical Introduction to Western Constitutional Law. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 3. Por outro
lado, ao menos na fase mais revolucionria da implantao da sociedade sovitica,
que pretendeu criar um sistema de direito socialista, pretendeu-se que todo o direito
teria se tornado direito pblico, na medida em que o direito passou a ser visto como
um simples instrumento da poltica, a qual buscava a criao de uma sociedade
inicialmente socialista, preparatria do advento da sociedade comunista.
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surgem nesse primeiro ciclo das codificaes.
A novidade que ocorre no direito privado, nesse perodo
histrico, que o direito se torna estatal e burgus. Estatal,
porque pela primeira vez na histria do direito o legislador se
ocupa de forma sistemtica e abrangente do direito privado, j
que nos perodos histricos precedentes os governantes sempre
se preocuparam em disciplinar apenas relaes jurdicas que
hoje seriam enquadradas no direito pblico (como a tributao,
o direito penal, a organizao administrativa), e quando
estabeleciam regras sobre direito privado, o faziam de forma
pontual e no sistemtica9. O direito privado sempre fora o
reino da no interveno estatal, um setor deixado aos
costumes (direito consuetudinrio), ao direito cannico
(casamento, famlia, filiao, sucesses), ou desenvolvido a
partir dos pareceres e escritos doutrinrios, desde os
jurisconsultos romanos (que eram cidados particulares,
dedicados profissionalmente ao estudo do direito), passando
pelos glosadores e comentadores medievais (que eram
professores universitrios perodo do denominado mos italicus), pelos juristas humanistas (os juristas da chamada
jurisprudncia elegante ou culta perodo do mos gallicus), e pelos jusnaturalistas e jusracionalistas da era moderna (era do
mos germanicus).
Por outro lado, a partir da ruptura simbolizada pela
Revoluo francesa, que marca o ingresso na era
contempornea, o direito privado torna-se tambm burgus, no
sentido de que o direito privado passa a espelhar a ideologia, os
anseios e as necessidades da classe socioeconmica que havia
conquistado o poder em praticamente todos os Estados
ocidentais. Como os cdigos nascem com pretenses de regular
todo o espao jurdico de uma nao, abandonando-se o intenso
pluralismo jurdico que vigorava nos perodos histricos
9 Sirvam de exemplo as Ordonnances francesas do sc. XVIII sobre doaes e
testamentos.
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anteriores (em que a legislao rgia convivia com o direito
cannico, com o direito costumeiro, com a lex mercatria, com
o direito das corporaes de artes e ofcios, com o direito
romano, com os direitos municipais), passa-se a regular toda a
sociedade a partir das necessidades e ideologias de uma frao
dessa sociedade, qual seja, a classe burguesa. Ou seja, toda a
nao passa a ser convocada a espelhar-se na tbua de valores e
anseios da burguesia (representados substancialmente pelo
liberalismo econmico, tendo a propriedade territorial como
valor principal e a liberdade contratual como instituto auxiliar
para facilitar as transferncias e a criao de riqueza).
nesse contexto que o individualismo visto como valor
a ser prestigiado, como reao ao perodo estamental que
caracterizou a era medieval, em que o valor do indivduo
estava ligado no s suas caractersticas e mritos pessoais,
mas ao estamento social no qual se encontrava integrado.
Assim contextualizado, entende-se a enftica defesa que Alexis
de Tocqueville faz desse novo valor: Individualismo uma nova expresso, para a qual nasceu uma idia nova. Nossos
pais conheciam apenas o egosmo. O egosmo um apaixonado
e exagerado amor de si prprio (). O individualismo um sentimento calmo e maduro, que leva cada membro da
comunidade a distinguir-se da massa de seus pares e se manter
parte com sua famlia e seus amigos10. Refletindo essa verdadeira ruptura epistemolgica,
lembre-se que Benjamin Constant, em famoso discurso
proferido em 1819, no Ateneu de Paris, comparou a liberdade
dos antigos liberdade dos modernos11
, dizendo que, naquela 10 Alexis de Tocqueville. LAncien Rgime et la Rvolution, apud Maria Celina Bodin de Moraes, Constituio e Direito Civil: tendncias, in: Revista dos Tribunais, vol. 779 (set. de 2000), p. 46-63, p. 53. 11 Interessante comparao entre a noo de liberdade dos modernos comparada dos psteros encontramos em N. Bobbio, Teoria Geral da Poltica (Rio de Janeiro: Campus, 2000), captulo 5, p. 269s.
Igualmente interessante a anlise da (ento) nova viso de liberdade, vislumbrada
pelo Presidente F. D. Roosevelt, em sua famosa mensagem ao Congresso norte-
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(seu pensamento voltava-se mais para a plis grega), o cidado
era livre porque podia participar do processo de deciso
poltica, tomando parte das assemblias populares que
decidiam os assuntos mais importantes para a coletividade12
,
substancialmente elaborando normas gerais e decidindo casos
concretos (em termos modernos, atividades legislativa e
jurisdicional). J a liberdade dos modernos, para ele, consistia
na possibilidade do indivduo decidir livremente, sem qualquer
interveno estatal, todos os assuntos que lhe dizem respeito,
ou seja, de tomar soberanamente todas as decises
concernentes sua vida privada. Em outras palavras, enquanto
a liberdade dos antigos permitia que o cidado interviesse no
espao pblico, a liberdade dos modernos significa a livre
movimentao no espao [econmico] privado13
. Da o
americano, de 6 de janeiro de 1941, onde anunciava as Quatro Liberdades que todos
povos, pases e governos deveriam respeitar, na nova sociedade mundial, quais sejam, a liberdade de palavra e de pensamento, a liberdade religiosa, a libertao
das necessidades (idia de direitos econmicos e sociais), e a libertao do medo
(compreendendo a necessidade de se reduzir internacionalmente os armamentos,
como forma de diminuir os riscos de agresses armadas). Essa famosa mensagem,
como se sabe, foi um dos fatores propulsivos que levou, posteriormente,
elaborao da Declarao Universal dos Direitos do Homem, da ONU, em 1948 -
uma sucinta anlise de tal mensagem presidencial encontra-se em Sabino Cassese, I
diritti umani nel mondo contemporaneo. Roma-Bari: Laterza, 1998, 3. ed., p. 27 e
seguintes. 12 Segundo suas palavras: le but des anciens tait le partage du pouvoir social entre tous les citoyens dune mme patrie. Ctait ce quils nommaient libert De la libert des anciens compare celle des modernes, in: Cours de politique
constitutionnelle, vol. II, p. 548 apud Antonio Zanfarino, La libert dei moderni nel costituzionalismo di Benjamin Constant. Milano: Dott. A. Giuffr, 1961, p. 114. 13 Deve ser lembrado, porm, que uma ntida separao entre espaos pblico e
privado, sem pontos de interferncia, jamais existiu, sendo este um modelo
meramente ideal. Mesmo nos perodos de mais acentuado liberalismo econmico, o
Estado sempre continuou a manter certa ingerncia nas relaes entre privados,
fixando tarifas, orientando o mercado atravs da imposio fiscal, com barreiras
alfandegrias. Continuou, tambm, a imiscuir-se na disciplina das relaes jurdicas
familiares (em concorrncia com o direito cannico), manteve um certo controle das
clusulas contratuais, atravs de noes vagas como ordem pblica e bons costumes.
Alm disso, desde cedo, mesmo em certos ambientes de economia liberal, o Estado
disciplinou o mercado, ao preocupar-se em garantir a livre concorrncia, suprimir
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endeusamento da autonomia da vontade e do seu consectrio,
no campo negocial, a liberdade contratual14
.
Dito de outra forma, como se o esprit de commerce que
canaliza as energias do homem burgus passasse a substituir o
esprit de conqute que sempre caracterizou os detentores do
monoplios, dificultar cartis o caso da legislao anti-trust norte-americana, editada j no final do sc. XIX. Sobre alguns destes aspectos, consulte-se Guido
Alpa, Introduzione allo studio critico del diritto privato. Torino: G. Giappichelli
Editore, 1994, p. 7s. 14 Devemos contextualizar historicamente a viso ideolgica de B. Constant, ao
comparar a liberdade dos antigos com a dos modernos. O famoso poltico e
publicista francs escrevia quando j havia passado o fermento revolucionrio,
estando as necessidades da burguesia j contempladas na legislao napolenica.
Vivia-se o perodo da restaurao dinstica, mas esse acontecimento poltico no
mais tinha foras para controlar o mundo econmico, onde os interesses da
burguesia eram hegemnicos. Calha, a propsito, reproduzir as palavras de Fbio K.
Comparato: A Revoluo, ao suprimir a dominao social fundada na propriedade da terra, ao destruir os estamentos e abolir as corporaes, acabou por reduzir a
sociedade civil a uma coleo de indivduos abstratos, perfeitamente isolados em seu
egosmo. Em lugar do solidarismo desigual e forado dos estamentos e das
corporaes de ofcios, criou-se a liberdade individual fundada na vontade, da
mesma forma que a filosofia moderna substitura a tirania da tradio pela liberdade
da razo. O regime da autonomia individual, prprio da civilizao burguesa, tem
seus limites fixados pela lei (...). Os direitos do cidado passaram, ento, a servir de meios de proteo aos direitos do homem, e a vida poltica tornou-se mero instrumento de conservao da sociedade civil, sob a dominao da classe burguesa - A afirmao histrica dos direitos humanos. So Paulo: Saraiva, 1999, p. 128.
Como a civilizao e tambm o direito, que uma cincia cultural no evolui linearmente, mas de forma oscilante e pendular, com a progressiva extenso da
titularidade de direitos percebe-se, de certa forma, um retorno idia de ser humano
enquanto vinculado a uma classe ou agrupamento de pessoas. De fato, como
sintetiza Flvia Piovesan, h o alargamento do prprio conceito de sujeito de direito, que passou a abranger, alm do indivduo, as entidades de classe, as
organizaes sindicais, os grupos vulnerveis e a prpria humanidade. Esse processo
implicou ainda a especificao do sujeito de direito, tendo em vista que, ao lado do
sujeito genrico e abstrato, delineia-se o sujeito de direito concreto, visto em sua
especificidade e na concreticidade de suas diversas relaes. Isto , do ente abstrato,
genrico, destitudo de cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critrios, emerge
o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e
particularidades. Da apontar-se no mais ao indivduo genrica e abstratamente
considerado, mas ao indivduo especificado, considerando-se as categorizaes relativas ao gnero, idade, etnia, raa, etc. - Flvia Piovesan, Temas de Direitos Humanos. So Paulo: Max Limonad, 1998, p. 130.
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poder poltico. O mercado e os interesses comerciais passaram
a ser decisivos como bssola no s para as aes individuais,
como tambm para as decises polticas15
.
A tica que predomina nesse perodo a da liberdade
formal. No mbito poltico, temos o Estado liberal e pouco
intervencionista. A economia vive o perodo do liberalismo
econmico, com pouca regulamentao estatal. No mundo
jurdico, tudo isso desemboca na tica do individualismo, com
o aprimoramento, pela pandectstica, das figuras do sujeito de
direito (enquanto sujeito abstrato) e do direito subjetivo. Os
cdigos civis deste perodo caracterizam-se por estarem
centrados na propriedade, com nfase na propriedade
imobiliria, com carter absoluto e individualista, no
voluntarismo jurdico16
, na liberdade e autonomia contratual,
na igualdade meramente formal. No mbito do direito de
famlia, percebe-se a supremacia do pai-marido a esposa, reduzida condio de relativamente incapaz, subordina-se
chefia do marido; os filhos so vistos mais como objeto de
preocupao jurdica do que como sujeitos de direito.
As normas estatais protetoras do indivduo buscavam
assegurar to somente seu espao de liberdade econmica,
15 A bem da verdade, no s nesse perodo histrico que o Mercado passa a ditar as
regras. Em obra recente, Jos Luis Monereo Prez afirma que la crisis actual es en gran medida, la consecuencia de la subordinacin de la Sociedad al Mercado, esto
es, a su lgica de racionalidad puramente instrumental. Por contraposicin a este
enfoque, deben utilizarse los instrumentos del constitucionalismo social, siendo
necessrio recuperar las polticas propias del constitucionalismo social tanto a nvel
europeo como nacional, que evite que los costes de la crisis recaigan sobre los
grupos ms desfavorecidos y que permita proyectar sobre el futuro um gobierno
democrtico de la economia y otorgar una eficcia real a conjunto de los derechos
fundamentales PREZ, Jos Luis Monereo. La proteccin de los derechos fundamentales. El modelo europeo. Albacete (Espanha): Editorial Bomarzo, 2009, p.
252/253. 16 Alis, a pandectstica alem sabidamente construiu seus instrumentos dogmticos
a partir da tica do voluntarismo: o direito subjetivo, na conhecida acepo de
Windscheid, visto como emanao do poder da vontade, a propriedade vista
como senhoria da vontade sobre as coisas, e o negcio jurdico visto como uma
declarao de vontade com poder de criar situaes jurdicas.
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protegendo o cidado contra o prprio Estado. As limitaes
aos direitos subjetivos, quando existentes, eram apenas aquelas
necessrias para permitir a convivncia social. Ntida, aqui, a
inspirao kantiana: minha liberdade irrestrita s encontra
limitaes na idntica liberdade de meu semelhante.
Mas o mais importante a ideologia jurdica que
predomina, que podemos denominar de a ideologia dos 3 cs: pretende-se que a legislao civil (leia-se, os cdigos) seja
completa, clara e coerente. A ideologia da completude significa
que a legislao (supostamente) completa, no possuindo
lacunas; a idia de legislao caracterizada pela sua clareza
significa que as regras jurdicas so facilmente interpretveis,
no contendo significados ambguos ou polissmicos. E a
ideologia da coerncia afasta a possibilidade de antinomias.
Tudo isso deriva do mito do legislador iluminista, inteligente,
onisciente, previdente, capaz de tudo regular detalhadamente,
antecipadamente, de forma clara e sem contradies.
Partindo de tais premissas, chegava-se fcil concluso
de que somente o legislador teria legitimidade para editar
normas jurdicas, j que ungido pela escolha popular. Aos
juzes, reservar-se-ia o papel de bouche de la loi, na viso de
Montesquieu, ou seja, seres inanimados que no podem moderar nem a sua [da lei] fora nem o seu rigor. O juiz nada criaria, apenas aplicaria o direito (j previamente elaborado
pelo legislador) ao caso concreto. O catlogo de todas as
solues possveis j preexistiria ao caso litigioso. Ao juiz nada
mais se pediria do que confrontar o fato com tal catlogo, at
localizar a regra legal que resolveria o problema. Sua atividade
mental seria apenas silogstica17
.
17 Para uma anlise crtica dessa viso redutiva de funo jurisdicional, seja-me
permitido enviar o leitor interessado a ensaio de minha autoria E o Juiz no s de Direito ... (ou A Funo Jurisdicional e a Subjetividade) - inserto na obra coletiva denominada Aspectos Psicolgicos na Prtica Jurdica, organizada por
David Zimerman e Antnio Carlos Mathias Coltro, Campinas: Millennium Editora,
2002, p. 396-413.
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Percebe-se, assim, que tal ideologia buscou transformar o
jurista em simples tcnico, operador de atividade meramente
cognitiva (e no prtico-valorativa), usando mtodos lgico-
formais e sem nenhuma responsabilidade poltica. Alis, em tal
sistema, ningum tem responsabilidades diante de leis injustas
- e todos podem olimpicamente lavar as mos18
.
Em termos de tcnica legislativa, utiliza-se, sobretudo, a
forma da regra jurdica, contendo fattispecie completa (preceito
e conseqncia jurdica). So raros os princpios expressos,
quase ausentes as clusulas gerais e parcimoniosos os conceitos
indeterminados.
4. O PRIMADO DO PBLICO SOBRE O PRIVADO.
Se o chamado mundo da segurana que caracterizou a
era das codificaes e das constituies liberais representou, de
certa forma, o primado do direito privado sobre o direito
pblico, esta relao se inverte com o advento do
constitucionalismo social e do conseqente maior
intervencionismo estatal, fruto das concepes do Welfare
State. De certo modo o primado do pblico significa o aumento da interveno estatal na regulao coativa dos
18 Trata-se de uma verdadeira armadilha ideolgica, em que o legislador pode afastar
sua responsabilidade alegando que no elabora regras voltadas a casos particulares.
As normas que elabora so genricas, abstratas, e voltadas ao futuro. Ele no
pretende prejudicar ou favorecer quem quer que seja, pois legisla para sujeitos
abstratos e desconhecidos. O juiz, por sua vez, tambm pode afastar sua
responsabilidade diante da deciso por ele dada ao caso concreto, pois tal soluo
no seria fruto de sua vontade, j que ele simplesmente estaria aplicando a soluo
pr-estabelecida pelo ordenamento jurdico. O ordenamento jurdico, assim,
funcionaria de forma supostamente neutra e assptica, no buscando atingir ningum
em particular. Da porque se podia dizer, ironicamente, na Frana oitocentista, que
as leis francesas proibiam ricos e pobres, de forma majestosamente igual, de
dormirem sob as pontes de Paris Ao que os ingleses, no mesmo esprito, retrucavam que tambm na Inglaterra vivia-se sob o reino da igualdade, pois
qualquer pessoa, fosse rica ou fosse pobre, podia hospedar-se nos melhores hotis de
Londres, bastando para tanto apenas pagar a diria cobrada
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200 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1
comportamentos dos indivduos e dos grupos infra-estatais, ou
seja, o caminho inverso ao da emancipao da sociedade civil
em relao ao Estado, emancipao essa que fora o resultado da ascenso da classe burguesa. Com o declnio dos limites
ao do Estado, foi ele aos poucos se reapropriando do espao
conquistado pela sociedade civil burguesa at absorv-lo
completamente na experincia extrema do Estado total (total no
sentido de que no deixa espao algum fora de si)19. O perodo do constitucionalismo social dos pases
ocidentais que sucede ao segundo ps-guerra, procura
enderear o Estado no sentido da promoo da igualdade
substancial, mesmo que por vezes isso implique redues ao
espao da liberdade econmica, embora sem sacrific-la de um
todo. No espao pblico, procura-se limitar no s o Executivo
atravs do princpio da legalidade que j vinha do perodo anterior mas o prprio Legislativo atravs do controle de constitucionalidade. Visto que na trgica experincia europia
do perodo entre-guerras o Legislativo mostrara-se presa fcil
de um Executivo forte, tendo docilmente fornecido a base
legal aos governos nazi-fascistas, percebeu-se a necessidade de se sujeitar tambm o Legislativo legalidade constitucional.
Essa nova concepo tem um preciso sentido, qual seja, a da
sujeio ao ordenamento jurdico de todos os poderes, pblicos
e privados20
, e na sua limitao e funcionalizao tutela dos
direitos fundamentais. O Judicirio, que tambm est sujeito a 19 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da
poltica [Stato, governo, societ. Per una teoria generale della politica]. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 25. 20 Como refere Ricardo Luis Lorenzetti, na sociedade moderna, a noo de poder se expande, incluindo, no s o conflito Estado-cidado, mas tambm aos gerados entre grupos econmicos e indivduos, entre maiorias e minorias, e indivduos entre si. Da porque necessrio que os instrumentos do Direito Privado, pensados
para neutralizar os avanos do Estado, se redimensionem para atender a essas novas
necessidades. A tendncia que se percebe no mundo contemporneo, segundo o
referido autor, a construo de um piso mnimo de direitos fundamentais, de que titular todo o indivduo in: Fundamentos do Direito Privado. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 126.
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esta concepo de legalidade, passa a ter o dever de controlar
tambm a legitimidade constitucional da legislao ordinria.
Assim, a notvel contribuio da Suprema Corte norte-
americana, atravs da pena de John Marshall, em 1803, ao
afirmar ser natural atribuio do Judicirio a de invalidar
legislao ordinria que fosse incompatvel com a
Constituio, chega tambm Europa, embora aqui se prefira
adotar o modelo concentrado de controle de
constitucionalidade, de inspirao kelseniana, ao contrrio do
controle difuso praticado nos Estados Unidos.
No mbito do direito privado, esse novo perodo
caracterizado pelo fato de que tambm o poder da vontade dos
particulares encontra-se limitado. Essa limitao, ao contrrio
do perodo anterior, no se d apenas em virtude da aplicao
de normas imperativas editadas em proveito de outros
particulares, como o caso das regras do direito de vizinhana.
Essa nova limitao se d principalmente a partir da
concretizao dos princpios constitucionais da solidariedade
social e da dignidade da pessoa humana. Ou seja, abandona-se
a tica do individualismo pela tica da solidariedade; relativiza-
se a tutela da autonomia da vontade e se acentua a proteo da
dignidade da pessoa humana.
Diferentemente do perodo anterior, em que os Cdigos
representavam o eixo central de todo o ordenamento jurdico
privado, pretendendo disciplinar a totalidade das relaes
jurdicas do sujeito abstrato sob a gide da autonomia da
vontade, esse novo perodo v parte do direito privado migrar
dos cdigos totalizantes em direo legislao dita
extravagante. Na medida em que as novas constituies rgidas continham verdadeiros programas voltados para o
futuro - pois se pretendia transformar a sociedade e no s
espelh-la, como buscavam fazer os cdigos civis do perodo
anterior impunha-se o desenvolvimento legislativo e o detalhamento normativo de tais programas. Essa nova
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legislao possui um carter promocional21
, utiliza-se
freqentemente de uma linguagem setorial, fixa objetivos a
alcanar e, numa s lei (exemplificativamente, a Lei de
locaes, o Estatuto da Criana e do Adolescente, o Cdigo de
Defesa do Consumidor), disciplinam-se aspectos de direito
material privado, de direito penal, de direito processual, de
direito administrativo. Trata-se do deslocamento do
monossistema simbolizado pelos cdigos totalizantes, em
direo ao polissistema legislativo, adotando-se microssistemas
que gravitam ao lado do Cdigo Civil. o advento da chamada
era dos estatutos.
5. DIREITO PBLICO E DIREITO PRIVADO.
CONVERGNCIAS.
Contemporaneamente, percebe-se claramente que
pblico e privado tendem a convergir. Tal convergncia, alis,
opera nas duas direes, ou seja, cada vez mais o Estado se
utiliza de institutos jurdicos do direito privado, estabelecendo
relaes negociais com os particulares e conseqentemente
abrindo mo de instrumentos mais autoritrios e impositivos22
(trata-se do fenmeno conhecido como privatizao do direito
pblico).
Por outro lado, tambm o direito privado se desloca em
direo ao pblico, como se percebe na elaborao da categoria 21 Segundo N. Bobbio, diante das exigncias do Estado assistencial contemporneo,
o direito no mais se limita a tutelar os atos conformes s suas normas, ou a reprimir
os atos que lhe so contrrios. Sua funo, portanto, no se resume apenas a proteger
ou a reprimir, tornando-se tambm promocional. Adotam-se tcnicas de estimulao
e de encorajamento, visando a promoo de atos considerados socialmente teis, ao
invs de simplesmente se reprimir os atos considerados socialmente nocivos La funzione promozionale del diritto, in: Dalla struttura alla funzione. Nuovi studi di teoria del diritto. Milano: Edizione di Comunit, 1977, p. 13-32. 22 Sobre esse tema, consulte-se com proveito a tese de doutoramento de Maria Joo
Estorninho, intitulada emblematicamente de A fuga para o direito privado Contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administrao
Pblica (Coimbra: Livraria Almedina, 1999).
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dos interesses e direitos coletivos e difusos (metaindividuais ou
supraindividuais), mas igualmente na funcionalizao de
inmeros institutos tpicos do direito privado, como o caso do
reconhecimento da funo social da propriedade (do que se
encontram traos j na Constituio de 34, e, de forma clara, a
partir da Constituio de 46, embora a expresso funo social da propriedade somente aparea na Carta de 1967), funo social do contrato (incorporado expressamente ao novo cdigo
civil art. 421 e art. 2.035, pargrafo nico), na funo social da empresa (Lei n 6.404/76 Lei das S.A. -, art. 116, pargrafo nico, e art. 154), na funo social da famlia (que
passa a ser disciplinada no mais como simples instituio a menor clula da sociedade mas como espao em que cada um de seus componentes, vistos como sujeitos de direitos, deve
ter condies para desenvolver livremente a sua personalidade
e todas as suas potencialidades; a famlia vista como ninho e no como simples n, na evocativa imagem da historiadora francesa Michelle Perrot
23), na percepo da existncia de uma
funo social at na responsabilidade civil (quanto mais dbeis
e pouco protetoras forem as instituies previdencirias de um
Estado, mais importantes tendem a ser os mecanismos da
responsabilidade civil para a proteo dos interesses dos
indivduos atingidos por danos pessoais).
Perceptvel, tambm, outra indicao desse movimento
de interveno pblica na esfera privada, reduzindo o campo da 23 Michelle Perrot, Revista Veja: Reflexes para o futuro 1993: No a famlia em si que nossos contemporneos recusam, mas o modelo excessivamente rgido e
normativo que assumiu no sculo XIX. Eles rejeitam o n, no o ninho. A casa ,
cada vez mais, o centro da existncia. O lar oferece, num mundo duro, um abrigo,
uma proteo, um pouco de calor humano. O que eles desejam conciliar as
vantagens da solidariedade familiar e as da liberdade individual. Tateando, esboam
novos modelos de famlias, mais igualitrias nas relaes de sexos e de idades, mais
flexveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas s regras e
mais ao desejo. O que se gostaria de conservar da famlia, no terceiro milnio, so
seus aspectos positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mtua, os laos de
afeto e o amor. Belo sonho.
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autonomia privada, na determinao imperativa do contedo de
negcios jurdicos e na obrigao legal de contratar (hiptese,
por exemplo, do art. 39, inc. IX, do Cdigo de Defesa do
Consumidor, do direito renovao do contrato de locao
comercial, do direito de preferncia para aquisio do imvel
urbano locado ou do imvel rural arrendado). Relativamente a
todos esses fenmenos, costuma-se denomin-los de
publicizao do direito privado.
Isso decorre do fato de que no Estado Social as
autoridades pblicas no se preocupam apenas com a defesa
das fronteiras, segurana externa e ordem interna, mas passam
a intervir de forma penetrante no processo econmico, quer de
forma direta, assumindo a gesto de determinados servios
sociais (transportes, servios mdicos, assistncia social,
educao, etc.), quer de forma indireta, atravs da disciplina de
relaes privadas relacionadas ao comrcio (v.g., disciplina dos
preos, do crdito, do setor de seguros, das atividades
bancrias, etc.), alm de outras relaes intersubjetivas que
uma vez eram deixadas autonomia privada (como a disciplina
dos aluguis, seus reajustes, renovao dos contratos, relaes
de consumo, etc.).
Trata-se, em outras palavras, de estabelecer
novos parmetros para a definio de ordem pblica, relendo o direito civil luz da
Constituio, de maneira a privilegiar, insista-se
ainda uma vez, os valores no-patrimoniais e, em
particular, a dignidade da pessoa humana, o
desenvolvimento da sua personalidade, os direitos
sociais e a justia distributiva, para cujo
atendimento deve se voltar a iniciativa econmica
privada e as situaes jurdicas patrimoniais24.
24 Gustavo Tepedino, Premissas Metodolgicas para a Constitucionalizao do Direito Civil, ensaio inserido em obra do mesmo autor, denominada Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 22.
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Sob outro enfoque, poder-se-ia dizer que depois do
suposto movimento do status ao contrato, com que H. Sumner Maine
25 tentou resumir toda a evoluo da sociedade, a
parbola se inverte, percorrendo-se o caminho inverso - do contrato ao status -, no porque a condio social originria da pessoa passe a dominar toda sua vida e o seu destino, mas
no sentido de que o retorno ao status passa a ser concebido no
sentido de que os contratos recebem uma regulamentao
jurdica particularizada, buscando espelhar a posio
socioeconmica das partes envolvidas numa concreta relao
jurdica (relao de locao, relao de consumo,
arrendamentos e parcerias rurais, etc.). O sujeito abstrato das
codificaes oitocentistas cede espao ao sujeito visto em sua
concretude, como locatrio, consumidor, arrendatrio,
empregado, percebendo-se que as peculiaridades de cada uma
dessas situaes devem acarretar um tratamento jurdico 25 Ancient Law (1861), trad. it. Diritto Antico, Milano: Giuffr, 1998. Segundo
Maine, como se sabe, a humanidade teria evoludo do status ao contrato no sentido
de que antigamente os direitos e os deveres de uma pessoa estavam diretamente
vinculados classe social ao qual ela pertencia. Assim, por exemplo, na antigidade,
patrcios ou plebeus, homens livres ou escravos, romanos ou estrangeiros, possuam
certos direitos e deveres em razo da sua condio social, direitos e deveres esses
que eram distintos conforme a classe social em que estava inserido. O mesmo ocorre
nas demais pocas histricas, como no perodo medieval, em que a condio de
senhor feudal ou de servo da gleba, ou de clrigo, significava possuir certo estatuto
jurdico distinto dos membros das demais classes. Esse estatuto jurdico que se
adquiria por nascimento, por outro lado, era praticamente imutvel durante a vida do
indivduo. De acordo com Maine, esse estado de coisas muda com a modernidade,
pois diante do princpio da autonomia da vontade e de seu reflexo, a liberdade
contratual, o destino dos indivduos dependia deles prprios, da sua maior ou menor
capacidade negocial, no sendo algo inexorvel e ligado apenas classe de origem.
Assim, mediante a liberdade contratual, os homens podiam criar riquezas,
enriquecer, melhorar suas condies de vida, em suma, conduzir seus prprios
destinos, independentemente da classe social na qual nasceram. O que Maine no
percebeu que os condicionamentos que hoje subsistem so de ordem econmica,
pois quem nasce na condio de membro de segmentos sociais excludos, s
excepcionalmente consegue superar as barreiras sociais e econmicas que lhe
impedem de ter acesso e gozar plenamente todos os direitos que so concedidos
naturalmente a quem tem a sorte de vir luz no seio de uma famlia abastada e cujo lugar ao sol est praticamente garantido.
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prprio, de forma a compensar juridicamente o desequilbrio
econmico que se percebe existente em tais relaes. Deste
modo, identifica-se no contrato um instrumento no qual se
exprime a poltica econmica do Estado.
Destarte, onde mais agudamente se percebe a
necessidade de se estabelecer relaes sociais justas, o
legislador intervm mais incisivamente, limitando a liberdade
contratual e impondo uma orientao relativamente rgida ao
programa contratual das partes. Assim, no sistema econmico do capitalismo mais maduro, a plenitude da liberdade
contratual funciona apenas numa rea bastante reduzida, no
vrtice, onde se encontram pessoas e grupos dotados de grande
poder econmico26. A razo da relativizao do valor da autonomia privada
nos dada por Konrad Hesse, nos seguintes termos:
La autonomia privada y su manifestacin ms importante, la libertad contractual, encuentran
su fundamento y sus lmites en la idea de la
configuracin bajo propria responsabilidad de la
vida y de la personalidad. Presuponen una situacin
jurdica y fctica aproximadamente igual de los
interesados. Donde falta tal presupuesto, y la
autonomia privada de uno conduce a la falta de
libertad del otro, desaparece todo fundamento y se
traspasa todo lmite; el indispensable equilibrio
debe entonces ser encontrado por otra va, la de la
regulacin estatal, cuya eficacia frecuentemente
requiere una conexin de preceptos de Derecho
Pblico y Privado. Aqu radica la diferencia
esencial entre el significado actual de la autonomia
privada y el del siglo XIX: aqul ofreca una
libertad slo formal, que slo parcialmente se
26 Guido Alpa, Libert contrattuale e tutela costituzionale, in: Rivista Critica del Diritto Privato, 1995, p. 35-54, p. 46/47.
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corresponda con la realidad social; en
consecuencia, poda conducir a la falta de libertad
efectiva. Una libertad real general nunca puede ser
producida por la sola autonoma privada. Dado el
presupuesto de una situacin jurdica y fctica
aproximadamente igual de los interesados, sta es,
sin embargo, elemento esencial de la libertad real, y
como tal no puede ser sustituida por planificacin o
regulacin estatal alguna por cuidada que sea27. Como refere Maria Celina Bodin de Moraes
28, defronte de tantas alteraes, direito privado e direito pblico tiveram
modificados seus significados originrios: o direito privado
deixou de ser o mbito da vontade individual e o direito
pblico no mais se inspira na subordinao do cidado. o fim das dicotomias. Subsistem diferenas, porm elas so
meramente quantitativas, pois h institutos onde prevalecem os interesses individuais, embora tambm estejam presentes
interesses da coletividade, e outros institutos onde predominam
os interesses da sociedade, embora funcionalizados realizao
dos interesses existenciais dos cidados.
6. A CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO PRIVADO.
Como vimos no tpico anterior, no h dvidas de que a
interveno estatal na atividade econmica e na vida social, a
partir da implantao do modelo do Welfare State, deixou
marcas tambm no mundo jurdico, afetando inclusive o direito
civil. Isso perceptvel em todos os pases que
experimentaram, em graus de intensidade e em momentos
histricos diversos, formas de intervencionismo estatal,
inclusive o Brasil. 27 Konrad Hesse, Derecho Constitucional y Derecho Privado. Madrid: Ed. Civitas,
1995, p. 78/79. 28 Maria Celina Bodin de Moraes, A caminho de um direito civil constitucional. In: Revista de Direito Civil, n. 65 (1993), p. 26.
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Algumas dessas conseqncias j foram destacadas: uma
perceptvel publicizao do direito privado, no sentido de que o
Estado passa a intervir, de forma imperativa, em extensas reas
que antes eram deixadas ao livre jogo das vontades privadas.
Parte dessa regulamentao passou a ter tamanha
importncia que foi elevada dignidade constitucional. Temos,
ento, o fenmeno da constitucionalizao de certos princpios
e institutos fundamentais do direito privado, como o caso da
famlia, da propriedade, da atividade econmica ou seja, passam a estar disciplinados na constituio os princpios
fundantes dos trs institutos bsicos do direito privado, na
conhecida concepo dos trs pilares de Jean Carbonnier29
famlia, propriedade e contrato.
Uma terceira conseqncia seria a inevitvel
fragmentao do direito privado, que ser abordado mais
adiante. De um sistema monoltico, representado pelos cdigos
totalizantes do sc. XIX (cuja idia, porm, continua viosa
durante boa parte do sc. XX), passou-se a um polissistema ou
plurissistema. Ou seja, a matria privada que antes estava
concentrada nos cdigos civis e comerciais, passaram a ser
tratadas em leis especiais, naquele fenmeno que foi chamado
de a era dos estatutos.
Tambm importante a lio de Pietro Perlingieri,
segundo o qual o Direito contemporneo, atravs de normas de
cunho promocional, torna possvel, com os seus instrumentos, a transformao social30. o mesmo mestre italiano quem salienta a obrigao no mais livre escolha imposta aos juristas de levar em considerao a prioridade hierrquica das
normas constitucionais, sempre que se deva resolver um
29 Jean Carbonnier, Flexible droit. Pour une sociologie du droit sans rigueur. Trad.
it.: Flessibile diritto. Per una sociologia del diritto senza rigore. Milano: Dott. A.
Giuffr, 1997, p. 195 e s. 30 Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil Introduo ao Direito Civil Constitucional [Profili del Diritto Civile], trad. de Maria Cristina De Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 1999, p. 3.
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problema concreto. Alm disso, da concepo unitria de ordenamento jurdico decorre que a soluo de cada controvrsia no mais pode ser encontrada levando em conta
simplesmente o artigo de lei que parece cont-la e resolv-la,
mas, antes, luz do inteiro ordenamento jurdico, e, em
particular, de seus princpios fundamentais, considerados como
opes de base que o caracterizam31. Alm disso, de notvel valor hermenutico a constatao
de que a migrao de institutos e princpios do direito privado
para o texto constitucional acarreta uma mudana de
perspectiva, pois de modo contrrio ao Cdigo Civil, que conserva os valores da sociedade liberal do Sculo XIX, a
Constituio projeta e estimula a fundao de uma nova
sociedade com suas normas programticas32. Isso significa que o valor da segurana, ligada estabilidade das relaes
jurdicas, que caracterizava as codificaes liberais, deve saber
transigir com o valor da esperana, ligada transformao do
existente, em prol de uma nao comprometida com o
horizonte traado na Carta Maior a criao de uma sociedade, mais justa, livre e solidria, com vida digna para todos, em
ambiente caracterizado por intenso pluralismo33
.
31 Perlingieri, op. cit., p. 5. 32 Francisco Amaral, Racionalidade e sistema no direito civil brasileiro, in Revista de Direito Civil, So Paulo: Ed. Rev. dos Tribunais, 1993, vol. 63, p. 52. 33 Constantemente se acentua que o papel de uma constituio moderna no aquela
de simplesmente retratar a vontade comum de um povo, expressa pela maioria de
seus membros, mas principalmente a de garantir os direitos de todos inclusive contra
a vontade popular. No se trata, assim, de simplesmente expressar uma determinada
homogeneidade cultural, uma identidade coletiva da nao, ou certa coeso social.
Trata-se, isso sim, de garantir, por meio dos direitos fundamentais, a convivncia
pacfica entre sujeitos e interesses diversos e virtualmente em conflito. O
fundamento de legitimidade de uma constituio, diversamente de quanto ocorre
com a legislao ordinria ou com as escolhas governamentais, no reside no
consenso da maioria, repousando, ao contrrio, em um valor superior e mais
importante: a igualdade de todos nas liberdades fundamentais e nos direitos sociais, ou seja, em direitos vitais conferidos a todos, como limites e vnculos precisamente
contra leis e atos de governo expressos por maiorias contingentes nesse sentido, por exemplo, Luigi Ferrajoli, Lo Stato di diritto fra passato e futuro, na obra
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coletiva organizada por P. Costa e Danilo Zolo: Lo Stato di diritto Storia, teoria, critica. Milano: G. Feltrinelli Editore, 2002, p. 349-386, p. 375/376. Tambm E.
Garca de Enterra insiste nesse ponto, ao afirmar que no slo se trata de hacer imposible el retorno a una dictadura que se aproprie del poder de hacer normas y que
pretenda desde esa apropriacin legitimar su pretensin de obediencia, sino tambin
de cerrar el paso a una concepcin jacobina, o decisionista-totalitaria, de la
democracia, que haga de la decisin mayoritaria la suprema y todopoderosa
instancia del Estado, absoluta y sin limites Reflexiones sobre la Ley y los principios generales del Derecho. Madrid: Ed. Civitas, 1986, p. 104.
Da mesma forma G. Zagrebelsky aponta para o valor da pluralidade e diversidade,
ao afirmar que o escopo geral de uma constituio pluralstica a de preservar
intactas as possibilidades de competio poltica e social, isto , impedir que uma
maioria eventual venha a impor modelos poltico-culturais com pretenses
totalizantes, que excluam todos os outros, de forma definitiva. A interpretao
constitucional, portanto, deve mirar organizao de uma sociedade aberta ao
conflito, garantindo-se o acesso s partes sem discriminaes ou privilgios -
Gustavo Zagrebelsky, La giustizia costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1988, p. 53.
Isso no significa, porm, que a constituio no contenha, inelutavelmente,
consensos mnimos, de forma a expressar certa unidade, pois, como salienta
Canotilho, historicidade, processo, consenso e compromisso, unidade, abertura e ordem so os topoi com que hoje lida a teoria da constituio, embora a acentuao
e interdependncia entre eles seja diversamente formulada nas vrias teorias da
constituio in Constituio Dirigente e Vinculao do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, Limitada, 1994, reimpresso, p. 478.
Em obra mais recente, Canotilho acentua o valor do pluralismo e da diversidade,
como sendo os valores tpicos da ps-modernidade. Refere ele que a idia de Drittwirking ou de eficcia direta dos direitos fundamentais na ordem jurdica
privada continua, de certo modo, o projecto da modernidade: modelar a sociedade
civil segundo os valores da razo, justia, progresso do Iluminismo. Esse cdigo de
leitura pergunta-se no estar irremediavelmente comprometido pelas concepes mltiplas e dbeis da ps-modernidade? Mais adiante, torna ele a indagar por que a imperatividade da equal protection clause em vez da singularidade e das diferenas nas relaes humanas, justificativas do triunfo da
negociao, da flexibilidade, da adaptabilidade e da permissividade? bem de ver
que estas interrogaes pressupem j um outro mundo: o da absolutizao das
diferenas e da singularidade, o da complexidade, da indeterminao e do
relativismo! Numa palavra: o mundo da ps-modernidade Jos J. Gomes Canotilho, Civilizao do direito constitucional ou constitucionalizao do direito civil? A eficcia dos direitos fundamentais na ordem jurdico-civil no contexto do direito ps-moderno, in Eros R. Grau e Willis S. Guerra Filho (org.), Direito Constitucional Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. So Paulo: Malheiros Ed., 2001, p. 108- 115, p. 114.
Alis, a nfase nas diferenciaes em substituio ao paradigma da igualdade (embora sem negar seu valor) tambm comparece em interessante ensaio do prof. Erik Jayme (Vises para uma teoria ps-moderna do direito comparado, Revista
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Da constitucionalizao do direito civil decorre a
migrao, para o mbito privado, de valores34
constitucionais,
dentre os quais, como verdadeiro primus inter paris, o
princpio da dignidade da pessoa humana35
. Disso deriva, dos Tribunais, v. 759, jan. 1999, p. 24-40) sobre o moderno direito comparado, no
qual o renomado professor de Heidelberg afirma que enquanto o direito comparado
tradicional perseguia o objetivo de determinar, de encontrar o que era comum, igual (embora no possamos concordar com essa sua viso demasiadamente estreita e redutiva dos objetivos do direito comparado, viso essa que era compatvel apenas
com as primeiras fases do direito comparado, do incio do sculo XX ao trmino da
Segunda Guerra Mundial), o direito comparado ps-moderno , ao contrrio, procura
o que divide (das Trennende), as diferenas (die Unterschiede) (p. 25), voltando-se para o passageiro. Isto porque a ps-modernidade vive de outros pensamentos. O comum, o igual no ser negado, mas aparece como subsidirio, como menor. A
identidade cultural do indivduo, como a dos povos, que necessita de ateno. A
pluralidade reaparece como um valor jurdico; as diferenas entre ordens jurdicas
passam a ser interessantes (p. 27/28). Tambm no espao jurdico italiano h consenso sobre a nfase na diversidade, no
pluralismo (e conseqentemente no relativismo), como caractersticas tpicas da ps-
modernidade, como exemplificativamente se v do ensaio do Prof. Alessio Zaccaria,
Il diritto privato europeo nellepoca del postmoderno, publicado na Rivista di Diritto Civile, 1997, fasc. 3 (maggio-giugno), p. 367-383, esp. p. 379 s. 34 Sobre a diferena entre princpio e valor, aceitamos o ponto de vista de R. Alexy,
quando ele os diferencia pelo carter deontolgico do primeiro e axiolgico do
segundo. Assim, o modelo dos valores reside naquilo que melhor; o modelo dos
princpios reside naquilo que devido sem esquecer, porm, da possibilidade de se passar de um modelo ao outro, segundo o mesmo Alexy Teora de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, 2001, p.
147. 35 Em sua tese de doutoramento, Flvia Piovesan refere a tendencial elevao da dignidade humana a pressuposto ineliminvel de todos os constitucionalismos, como um sintoma da emergncia de um Direito Internacional dos Direitos Humanos
Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4. ed. So Paulo: Max Limonad, 2000, p. 75.
Densificando um pouco mais tal noo, lembra Ingo Sarlet que se tem como certo
que uma existncia digna abrange mais do que a mera sobrevivncia fsica, situando-se alm do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, neste sentido, que se
uma vida sem alternativas no corresponde s exigncias da dignidade humana, a
vida humana no pode ser reduzida mera existncia Ingo W. Sarlet, A eficcia dos Direitos Fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2003, p. 311.
Recolhendo o esclio de H. Scholler, esclarece o Prof. Ingo que a dignidade da
pessoa apenas estar assegurada quando for possvel uma existncia que permita a plena fruio dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possvel o
pleno desenvolvimento da personalidade (op. loc. cit.)
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necessariamente, a chamada repersonalizao do direito civil,
ou visto de outro modo, a despatrimonializao do direito
civil. Ou seja, recoloca-se no centro do direito civil o ser
humano e suas emanaes. O patrimnio deixa de estar no
centro das preocupaes privatistas (recorde-se que o modelo
dos cdigos civis modernos, o Code Napoleon, dedica mais de
80% de seus artigos disciplina jurdica da propriedade e suas
relaes), sendo substitudo pela considerao com a pessoa
humana. Da a valorizao, por exemplo, dos direitos de
personalidade36
, que o novo Cdigo Civil brasileiro
emblematicamente regulamenta j nos seus primeiros artigos,
como a simbolizar uma chave de leitura para todo o restante do
estatuto civil. Discorrendo sobre o tema, Perlingieri ressalta
que a transformao despatrimonializadora no Direito Civil se
produz fundamentalmente como conseqncia do maior relevo
dado pessoa. Da porque entende ele ser possvel afirmar que
Em outra obra, tratando especificamente sobre o tema, refere o mestre gacho que
a dignidade da pessoa humana simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condio
dplice esta que tambm aponta para uma simultnea dimenso defensiva e
prestacional da dignidade Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituio Federal de 1988. Porto Alegre: Liv. do Advogado,
2001, p. 46.
Tambm Genaro R. Carri, ex-membro da Comisso Interamericana de Direitos
Humanos e ex-Presidente da Suprema Corte de Justicia de la Nacin Argentina,
aponta para o dever do Estado de propiciar as condies necessrias para uma vida
digna, ao referir que la eficaz tutela de los derechos de ese tipo est estrechamente ligada con la posibilidad efectiva de que las comunidades estatales tienen de llevar a
cabo una accin positiva que ponga a disposicin de cada uno de sus membros
herramientas de desenvolvimiento individual, material y psquico, que hagan de
ellos hombres que puedan vivir su vida en plenitud Los derechos humanos y su proteccin. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, s/d, p. 64. 36 Sobre os direitos da personalidade, salienta Franois Rigaux que, diferentemente do direito de propriedade, matriz do conceito de direito subjetivo, ou do direito de
crdito, diferentemente at mesmo dos direitos intelectuais, que conferem ao seu
titular prerrogativas precisas, aquilo que chamamos de direito da personalidade ou
direito ao respeito da vida privada protege um interesse de contornos indistintos,
variveis segundo as circunstncias La libert de la vie prive, in: Revue Internationale de Droit Compar, 3-1991, p. 539-563, p. 560.
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interesses e direitos de natureza essencialmente pessoal antepem-se a interesses e direitos patrimoniais, o que supe
que na hierarquia de valores a pessoa humana prevalece sobre
o interesse econmico37.
7. CONTINUAO. O SENTIDO ANTIGO DA
CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO PRIVADO.
O fenmeno conhecido como constitucionalizao do
direito privado pode ser descrito de vrias formas. Sob o ponto
de vista da cronologia histrica, a poca do liberalismo clssico
(e com essa expresso pretendemos abranger todas as
concepes que derivam das ideologias do constitucionalismo
liberal, do liberalismo poltico e econmico, dos direitos
humanos de primeira dimenso) coincide substancialmente
com a poca das grandes codificaes do direito privado do
sculo XIX. Sob o ponto de vista ideolgico, nesse perodo
concebiam-se as constituies liberais como verdadeiros
cdigos do direito pblico (ou seja, diplomas jurdicos que
buscavam disciplinar a organizao do Estado, a estrutura dos
poderes, a competncia de seus rgos, bem como algumas
relaes entre o Estado e seus sditos), ao passo que os cdigos
privados eram encarados como verdadeiras constituies do
direito privado (isto , estatutos que disciplinavam as relaes
jurdicas entre os cidados, com excluso de qualquer
interveno estatal, especialmente na rea econmica, regida
que era pela autonomia da vontade e pela concepo
individualista de propriedade privada)38
.
37 Pietro Perlingieri, no Editoriale do primeiro nmero da revista por ele dirigida,
Rassegna di Diritto Civile, 1983, n. 1, p. 2. 38 Havia, porm, um denominador comum a essas duas regulamentaes jurdicas tratava-se da concepo legalista e escritural do Direito, segundo a perspicaz observao de Nelson Saldanha in Conceituaes do Direito: tendncia privatizante e tendncia publicizante, Revista de Direito Pblico, vol. 81 (jan.-maro de 1987), p. 78 - So Paulo: Revista dos Tribunais.
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Em suma, os cdigos eram vistos como uma espcie de
barreira ao Estado, concebidos como sendo a disciplina jurdica
das relaes intersubjetivas privadas, imunes interveno do
Estado. As normas constitucionais daquele perodo ocupavam-
se das relaes privadas apenas para tutelar a autonomia
privada relativamente a possveis interferncias estatais,
proclamando, por exemplo, a inviolabilidade da propriedade
(art. 17 da Declarao francesa dos direitos do homem e do
cidado, de 1789; art. 1, n. 2, art.2 e art. 16 da Constituio
francesa do ano I [1793] ; art. 29 do Statuto Albertino39), ou garantindo o direito de propriedade em toda a sua plenitude
(como proclamado nas duas primeiras constituies brasileiras:
a imperial, de 1824, art. 179, n. 22, e a republicana, de 1891,
art. 72, 17).
Nesse perodo, o direito civil e o direito constitucional
seguiam caminhos separados, cada um com seu prprio mbito
de incidncia.
Afora garantir genericamente o direito de propriedade, as
constituies desse perodo substancialmente no forneciam
princpios para a disciplina das relaes jurdicas privadas. Tais
constituies, por no serem rgidas, podiam ser alteradas com
certa facilidade. Alguns pases, como a Frana, tiveram
incontveis constituies ao longo de sua histria40
. Da a razo
39 Statuto Albertino era o nome com que era conhecida a constituio flexvel do
Reino do Piemonte, de 1848, que se tornou a primeira constituio italiana aps a
unificao da Itlia, em 1861, tendo vigorado at o advento da constituio
republicana de 1947. 40 Somente no seu primeiro ciclo revolucionrio, de 1789 a 1814, os franceses
tiveram seis constituies: em 1791, em 1793, em 1795, em 1799, em 1802 e 1804.
Nos ciclos posteriores prossegue a valsa das constituies, na expresso de Maurice Duverger (Les constitutions de la France, trad. it. Le constizioni della
Francia, Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1984, p. 45 s.), com as constituies
de 1814, 1830, 1848, 1852, 1870. Um perodo estvel se obtm somente com a
Terceira Repblica, inaugurada em 1870, que fornece ao pas a constituio de 1875.
Embora permanea em vigor at 1946, ela sofre alteraes informais, introduzidas
por novos costumes constitucionais (interessante, a esse respeito, o tpico de
Duverger sobre as transformaes consuetudinrias da constituio de 1875 op.
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pela qual o Code Civil sempre foi tido como um monumento de
estabilidade (e longevidade, pois vigora ininterruptamente h
mais de duzentos anos!), como a simbolizar a firme
permanncia da sociedade civil e das relaes intersubjetivas,
diante da inconstncia das relaes polticas. tambm bvio
que, no caso francs, a ausncia de um verdadeiro controle de
constitucionalidade41
contribuiu enormemente para o histrico
isolamento do direito constitucional francs, que assim deixou
de irradiar sua eficcia conformadora sobre os demais ramos
do direito, inclusive o privado.
Como as constituies liberais, flexveis, no possuam
eficcia vinculante frente ao legislador ordinrio, no somente
no tinham elas fora para provocar ou programar
modificaes futuras no mbito do direito privado, como
tambm no eram capazes de desempenhar uma funo
protetiva do direito privado existente. Em outras palavras, eram
documentos de acentuada natureza poltica, sem fora jurdica
para garantir a conservao do existente nem para impulsionar
cit., p. 102s.). A constituio da Quarta Repblica, de 1946, vigora somente at
1958, com a supervenincia da Quinta Repblica e a constituio gaullista de 1958,
ainda em vigor, embora emendada vrias vezes. 41 Lembre-se que o controle de constitucionalidade francs peculiar e nico,
possuindo natureza mais poltica do que jurdica. De fato, segundo a originria
concepo e regulamentao legislativa, o Conseil Constitutionnel, que no integra a
estrutura do Poder Judicirio, somente poderia ser ativado por provocao dos
rgos de cpula dos outros dois poderes, durante o perodo compreendido entre a
aprovao do projeto de lei pelo Parlamento e a sua promulgao pelo Executivo.
Entendendo o Conselho Constitucional no estar a lei (ainda no promulgada) em
conformidade com a Constituio, o projeto de lei retorna ao Parlamento para que
sejam feitas as alteraes necessrias para evitar a mcula de inconstitucionalidade.
Porm, aps a promulgao da lei pelo Presidente da Repblica (quer por ter
passado pelo crivo do Conselho Constitucional, quer por no ter sido submetido a
ele como ocorre na esmagadora maioria dos casos) ningum mais poderia argir a inconstitucionalidade da lei ou deixar de aplic-la sob tal pretexto.
Em 1 de maro de 2010, porm, entraram em vigor alteraes legislativas
(constitucionais e ordinrias) que permitiram que os Tribunais Superiores (Cour de
Cassassion, na sistema de justia ordinria, e Conseil dEtat, no mbito da justia administrativa) possam igualmente provocar o Conseil Constitutionnel para que se
manifeste sobre dvidas de constitucionalidade de alguma norma legal.
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a conformao do futuro, no mbito das relaes privadas.
Quanto funo de garantia, no era ela necessria, j que os
princpios bsicos do direito privado no corriam nenhum
perigo. Na verdade, como j salientado, eram os prprios
cdigos civis que exerciam a funo de verdadeiras
constituies no mbito das relaes jurdicas privadas.
Protegendo o direito de propriedade e a autonomia privada
como verdadeiros direitos fundamentais, em forma quase que
absoluta, o direito civil garantia o existente e a estabilidade das
relaes sociais. O direito civil, nascido margem do Estado,
apresentava-se como o verdadeiro baluarte da liberdade
burguesa, uma liberdade apoltica, que permitia aos
particulares dispor de um espao prprio, sem intromisses do
Estado. Da a funo constitutiva do direito privado, diante do
qual o direito constitucional possua uma importncia
secundria.
8. CONTINUAO. O SENTIDO MODERNO DA
CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO PRIVADO.
Em sentido mais moderno, pode-se encarar o fenmeno
da constitucionalizao do direito privado sob dois enfoques.
No primeiro deles, trata-se da descrio do fato de que vrios
institutos que tipicamente eram tratados apenas nos cdigos
privados (famlia, propriedade, etc.) passaram a serem
disciplinados tambm nas constituies contemporneas42
,
42 Nessa primeira acepo encontramos estudos j na dcada de trinta do sculo XX,
como por exemplo os ensaios dos grandes civilistas espanhis Castn Tobeas e
Federico de Castro, os quais em 1933 e 1935, respectivamente, publicaram trabalhos
a respeito (denominados, respectivamente, Nota bibliogrfica a la obra de Battl y Vzquez, M.: Repercusiones de la Constitucin en el Derecho privado, e El Derecho civil y la Constitucin) na Revista de Derecho Privado, n. 237 (1933), p. 189 s., e n. 257 (1935), p. 3 s. Entre ns, tambm em 1935 Clvis Bevilaqua
publicou um ensaio denominado A Constituio e o Cdigo Civil, inserido na Revista dos Tribunais, v. 97, n. 34, p. 31-38 (set. 1935), onde analisa (embora sem
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alm de outros institutos que costumavam ser confinados a
diplomas penais ou processuais. o fenmeno chamado por
alguns doutrinadores de relevncia constitucional das relaes
privadas43
. E aqui os exemplos so mltiplos nas constituies
sociais modernas, como tambm na nossa carta constitucional.
Sem pretender ser exaustivo, pode-se destacar, sob a tica
enfocada, a proclamao, pelo constituinte, da liberdade de
constituir associaes e cooperativas (art. 5, inc. XVII a XX),
da legitimidade representativa das entidades associativas (art.
5, inc. XXI), da liberdade de associao profissional ou
sindical (art. 8), da impenhorabilidade da pequena
propriedade rural (art. 5, inc. XXVI), dos direitos autorais
(art. 5, inc. XXVII e XXVIII), da propriedade industrial (art.
5, inc. XXIX), do direito herana (art. 5, inc. XXX), da
necessidade de defesa do consumidor (art. 5, inc. XXXII, art.
170, V, art. 48 do ADCT), da limitao da responsabilidade
civil ex delicto dos sucessores (art. 5, inc. XLV), a garantia do
devido processo legal (art. 5, inc. LIV e LV), da vedao de
provas ilcitas (art. 5, inc. LVI), da admisso de ao penal
privada, subsidiria da ao penal pblica (art. 5, inc. LIX),
da indenizabilidade por erro judicirio (art. 5, inc. LXXV), da
gratuidade de registro de nascimento e bito (art. 5, inc.
LXXVI), dos direitos dos trabalhadores (art. 7 e seus incisos),
da dignidade da pessoa humana e do valor da justia social
como princpios informadores de toda a ordem econmica, o
que abrange tambm toda a atividade negocial privada (art.
170, caput), da necessidade de proteo das microempresas e
empresas de pequeno porte (art. 170, inc. IX e art. 179), da
funo social da propriedade urbana (art. 182, 2), da
usucapio urbana (art. 183), da usucapio rural (art. 191), do
pluralismo da noo de famlia (art. 226, 3 e 4), do livre maior aprofundamento) os institutos de direito civil que foram inseridos na Carta
Magna de 1934. 43 Nesse sentido, Guido Alpa, Introduzione allo studio critico del diritto privato.
Torino: G. Giappichelli Editore, 1994, p. 8.
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planejamento familiar, fundado nos princpios da dignidade da
pessoa humana e da paternidade responsvel (art. 226, 7),
da proteo absolutamente prioritria devida criana e ao
adolescente, em todas as suas dimenses existenciais (art. 227),
da absoluta igualdade entre filhos de qualquer natureza,
vedando-se peremptoriamente qualquer discriminao a
respeito (art. 227, 6), da necessidade de proteo aos idosos
(arts. 229 e 230).
Numa segunda acepo, que costuma ser indicada com a
expresso constitucionalizao do direito civil, o fenmeno
vem sendo objeto de pesquisa e discusso apenas em tempos
mais recentes, estando ligado s aquisies culturais da
hermenutica contempornea, tais como a fora normativa dos
princpios, distino entre princpios e regras, interpretao
conforme a constituio, etc.
Esse segundo aspecto mais amplo do que o primeiro,
pois implica analisar as conseqncias, no mbito do direito
privado, de determinados princpios constitucionais,
especialmente na rea dos direitos fundamentais44
, individuais
e sociais. Assim, o fenmeno pode ser compreendido sob
determinada tica hermenutica, aquela da interpretao
conforme a constituio45
. 44 Como afirma R. Alexy, os direitos fundamentais so substancialmente direitos do homem transformados em direito positivo. Tais direitos exigem a sua
institucionalizao. Se existem direitos do homem, no h somente um direito
vida, mas tambm um direito do homem a um Estado que realize este direito. E a
institucionalizao inclui necessariamente a sua acionalibilidade (ou, como ultimamente se tem denominado, sob a influncia da nomemclatura norte-americana,
sua justiciabilidade) Robert Alexy, Kollision und Abwgung als Grundprobleme der Grundrechtsdogmatik (Coliso e balanceamento como problema de base da dogmtica dos direitos fundamentais), in: Massimo La Torre e Antonino Spadaro (org.): La ragionevolezza nel diritto. Torino, G. giappichelli Editore, 2002, p. 27-
44, p. 35/36. 45 A interpretao conforme a constituio (Verfassungskonforme Auslegung)
diferencia-se da interpretao tradicional, pelo fato de que esta, nas suas vrias
formas - gramatical, histrica , lgica, sistemtica, teleolgica -, define o contedo
da lei a partir dela prpria, ao passo que na interpretao conforme, a lei deve ser
interpretada conformemente constituio, por meio de um procedimento
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Lus Roberto Barroso refere que a idia de hermenutico escalonado hierarquicamente. Tal percepo insere-se na viso
kelseniana de estrutura gradualista e piramidal da ordem jurdica, uma de cujas
conseqncias justamente aquela que uma norma de nvel inferior no pode ser
interpretada de modo que contrarie a norma de nvel superior, j que a norma
inferior, embora crie novo direito, desenvolvendo os germens j contidos na norma
superior, necessariamente tambm uma aplicao da norma hierarquicamente
superior.
O princpio hermenutico da interpretao conforme a Constituio, originado e
desenvolvido na Alemanha, significa, na formulao do Bundesverfassungsgericht,
que uma lei no deve ser declarada nula, sempre que puder ser interpretada de
maneira congruente com a constituio BverfGE 2, 266 (282) apud Wilson Antnio Steinmetz, Coliso de Direitos Fundamentais e princpio da
proporcionalidade. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2001, p. 99.
Na viso de E. Garca de Enterra, a supremacia da constituio sobre todas as
normas e o seu carter central na construo e na validade do ordenamento jurdico
em seu conjunto, obrigam o intrprete a levar isso em considerao em qualquer
momento da sua aplicao seja pelos operadores pblicos ou privados, seja da parte dos tribunais ou dos rgos legislativos ou administrativos quer quando haja provises especficas sobre a matria de que se trata, quer quando o resultado
hermenutico possa ser buscado apenas com base em disposies principiolgicas.
Isso seria uma conseqncia derivada do carter normativo da constituio e do seu
nvel supremo. Da porque nos Estados Unidos se diz que todas as leis e todos os atos da administrao pblica devam ser interpretados em harmony with the
Constitution, ao passo que na Alemanha o mesmo postulado impe die
Verfassungskonforme Auslegung von Gesetzen, interpretao das leis
conformemente constituio. Em ambos os casos, como praticamente em todos os
pases dotados de uma justia constitucional, o princpio de formulao
jurisprudencial Eduardo Garca de Enterra, La costituzione come norma giuridica, in: E. Garca de Enterra e Alberto Predieri (org.), La Costituzione Spagnola del 1978. Milano: Giuffr, 1982, p. 71-131, pp. 116/117.
A discusso hoje mais interessante a respeito da Verfassungskonforme Auslegung
diz respeito aos seus limites, considerando aquilo que os norte-americanos
denominam de counter-majoritarian dilemma, no mbito da discusso sobre o
suposto dficit democrtico do Judicirio para a construo do direito. De fato, se a
interpretao conforme a constituio busca salvar a norma (funo de conservao), evitando o reconheci