a constitucionalizaÇÃo do direito privado - eugÊnio facchini neto

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  • Ano 1 (2012), n 1, 185-243 / http://www.idb-fdul.com/

    A CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO

    PRIVADO

    Eugnio Facchini Neto

    Sumrio: 1. Introduo. 2. As grandes divises dicotmicas e

    seus reflexos no direito. Oscilaes histricas. 3. O primado do

    privado sobre o pblico. 4. O primado do pblico sobre o

    privado. 5. Direito Pblico e Direito Privado. Convergncias.

    6. A constitucionalizao do direito privado. 7. Continuao. O

    sentido antigo da constitucionalizao do direito privado. 8.

    Continuao. O sentido moderno da constitucionalizao do

    direito privado. 9. Dos limites publicizao do direito

    privado. 10. A constitucionalizao do direito privado e a

    proteo dos direitos fundamentais. 11. Concluso. 12.

    Referncias bibliogrficas.

    1. INTRODUO.

    Constitui objeto do presente estudo o fenmeno

    usualmente denominado de constitucionalizao do direito privado, especialmente em sua dimenso histrico-evolutiva. Esse tema, na verdade, tem imbricaes com o ocaso da viso

    dicotmica que dividia o mundo jurdico em direito pblico e

    direito privado, aflora as questes ligadas aos fenmenos da

    Desembargador no Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul/Brasil. Doutor em

    Direito Comparado (Florena/Itlia), Mestre em Direito Civil (Universidade de So

    Paulo). Professor dos Cursos de Graduao, Mestrado e Doutorado em Direito da

    PUC/RS. Professor e ex-diretor da Escola Superior da Magistratura/AJURIS.

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    publicizao do direito privado e da privatizao do direito

    pblico, e relaciona-se com o esforo para tornar no s

    juridicamente eficazes, mas principalmente socialmente

    efetivos os direitos fundamentais tambm no mbito das

    relaes particulares.

    Com essa perspectiva, analisaremos, num primeiro

    momento, o surgimento da dicotomia pblico/privado e sua

    repercusso no mundo jurdico (direito pblico v. direito

    privado) (captulo 2), percorreremos a evoluo histrica de tal

    distino, realando os momentos em que houve o primado do

    privado sobre o pblico (captulo 3), sucedido pelo primado do

    pblico sobre o privado (captulo 4), destacando os

    pressupostos ideolgicos de tal oscilao.

    Em continuao, procuraremos analisar a tendencial

    convergncia do direito pblico e do direito privado, no sentido

    de uma publicizao do direito privado e uma privatizao do

    direito pblico (captulo 5).

    A partir desse ponto, iniciaremos a discusso de uma das

    possveis manifestaes do fenmeno da publicizao do

    direito privado, qual seja, a constitucionalizao do direito civil

    (captulo 6), analisando o sentido antigo de tal fenmeno

    (captulo 7) e o seu sentido moderno (captulo 8).

    Vinculado a este fenmeno se encontra a discusso sobre

    a necessidade de se colocar limites publicizao do direito

    privado (captulo 9), preservando-lhe seu espao de incidncia,

    em virtude do princpio da exclusividade, que pode ser tido

    como caracterizador do direito privado contemporneo.

    O estudo conclui com uma discusso sobre a necessidade

    de proteo dos direitos fundamentais, inclusive quando em

    discusso temas tpicos do direito privado (captulo 10).

    2. AS GRANDES DIVISES DICOTMICAS E SEUS

    REFLEXOS NO DIREITO. OSCILAES HISTRICAS.

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 187

    O fenmeno da constitucionalizao do direito privado

    representa, de certa forma, a superao da perspectiva que via o

    universo jurdico dividido em dois mundos radicalmente

    diversos o direito pblico de um lado, e o direito privado de outro. Impe-se, assim, repercorrer as razes que originaram

    tal distino, sua evoluo, com a anlise dos motivos que

    levaram contempornea relativizao de tal diferenciao.

    A celebrrima distino entre direito pblico e direito

    privado, destinada a se tornar uma das grandes dicotomias do

    pensamento jurdico de todos os tempos, exige que nos

    detenhamos, inicialmente, sobre o significado da expresso

    dicotomia. Segundo Bobbio1, fala-se em dicotomia quando nos

    deparamos com uma distino da qual se pode demonstrar a

    capacidade de dividir um universo em duas esferas,

    conjuntamente exaustivas, no sentido de que todos os entes

    daquele universo nelas tenham lugar, sem nenhuma excluso, e

    reciprocamente exclusivas, no sentido de que um ente

    compreendido na primeira no pode estar simultaneamente

    compreendido na segunda. Alm disso, os dois termos de uma

    dicotomia condicionam-se reciprocamente, mutuamente se

    delimitam e excluem alternativas (tertium non datur). Como

    conseqncia de uma tal viso, a esfera do pblico chega at

    onde comea a esfera do privado e vice-versa.

    Esta distino fez seu ingresso na histria do pensamento

    poltico e social do ocidente atravs de duas passagens do

    Corpus Juris Civilis [Institutiones, I, I, 42; Digesto, I, 1, 1, 2],

    1 BOBBIO, Norberto. A grande dicotomia: pblico/privado. In: Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da poltica [Stato, governo, societ. Per una

    teoria generale della politica]. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990 [1987], 3. ed., p.

    13 e 14. 2 Institutiones, I, I, 4: Huius studii duae sunt positiones, publicum et privatum. Publicum ius est quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum

    utilitatem pertinet. Dicendum est igitur de iure privato, quod est tripertium:

    collectum est enim ex naturalibus praeceptis aut gentium aut civilibus (extra esse fragmento das Instituies de Justiniano, do Breviarium Iuris Romani, organizado

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    onde se refere ao pblico como quod ad statum rei romanae

    spectat, e ao privado como quod ad singulorum utilitatem3.

    Em outras passagens do Digesto, a distino reaparece,

    acompanhada pela afirmao da supremacia do direito pblico

    sobre o privado: ius publicum privatorum pactis mutari non

    potest (Digesto, 38, 2, 14) e privatorum conventio iuri publico

    non derogat (Digesto, 45, 50, 17). A vem salientado que a

    vontade das partes tem fora para modificar as normas de

    direito privado, mas no pode derrogar normas de direito

    pblico.

    sabido, tambm, que a prpria colocao do problema

    costuma vir acompanhada pela afirmao da supremacia do

    direito pblico sobre o direito privado. Ou seja, a uma viso

    supostamente descritiva da natureza das coisas, passa-se

    imperceptivelmente a uma viso prescritiva, carregada de valor

    ideolgico.

    A distino entre direito privado e direito pblico

    costuma ser feita pelos juristas a partir de critrios variados,

    sempre controvertidos. Bobbio os reduz a dois principais,

    conforme o critrio diferencial seja buscado na forma ou na

    matria da relao jurdica.

    Com base na forma da relao jurdica, distinguem-se relaes de coordenao entre

    sujeitos de nvel igual, e relaes de subordinao

    entre sujeitos de nvel diferente, dos quais um

    superior e outro inferior: as relaes de direito

    por V. Arangio-Ruiz e Antonio Guarino, Milano: Dott. A. Giuffr Ed., 1989, settima

    edizione, p. 212). 3 O inteiro teor do preceito o seguinte: D.I.1.1.2. So dois os temas deste estudo: o pblico e o privado. Direito pblico o que se volta ao estado da res Romana,

    privado o que se volta utilidade de cada um dos indivduos, enquanto tais. Pois

    alguns so teis publicamente, outros particularmente. O direito pblico se constitui

    nos sacra, sacerdotes e magistrados. O direito privado tripartido: foi, pois,

    selecionado ou de preceitos naturais, ou civis, ou das gentes (na traduo de Hlcio Maciel Frana Madeira, Digesto de Justiniano, livro 1. So Paulo: Editora Revista

    dos Tribunais; Osasco, SP: Centro Universitrio FIEO UNIFEO, 2000, p. 16/17.

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    privado seriam caracterizadas pela igualdade dos

    sujeitos, e seriam portanto relaes de

    coordenao4; as relaes de direito pblico seriam

    caracterizadas pela desigualdade dos sujeitos, e

    seriam portanto relaes de subordinao5. Com

    base na matria, porm, que constitui o objeto da

    relao, distinguem-se os interesses individuais,

    que se referem a uma nica pessoa, dos interesses

    coletivos, que se referem totalidade das pessoas,

    coletividade. Levando em conta esta distino, o

    direito privado seria caracterizado pela proteo

    que oferece aos interesses privados e o direito

    pblico pela proteo oferecida aos interesses

    coletivos.6

    J para Kant, como sabido, a distino entre direito

    privado e pblico deve ser fundamentada racionalmente, e no

    empiricamente. Para tanto, teramos que indagar sobre a fonte

    da qual se originam os diversos direitos: derivando do poder

    estatal, tratar-se-ia de direito pblico. Ora, como o direito

    legislado abarca tambm institutos do direito privado,

    4 O problema que, atualmente, cada vez mais tornam-se visveis relaes jurdicas entre privados, nas quais fatalmente as partes no se encontram em posio de

    igualdade, o que levou o direito a criar novos microssistemas, ou subsistemas, no

    sentido de proteger a parte hipossuficiente, v.g., o campo dos direitos do

    consumidor. Cfr. SILVEIRA, Michele Costa da. As grandes metforas da bipolaridade. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.), A reconstruo do direito privado: reflexos dos princpios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais

    no direito privado. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 31. 5 Tambm aqui, porm, percebe-se cada vez mais que o Estado nem sempre se

    relaciona com os sujeitos privados sob a forma de subordinao, pois, percebendo

    sua incapacidade para atuar diretamente em todas as reas em que modernamente

    passa a intervir, transfere cada vez mais iniciativa privada, mediante concesses,

    autorizaes, delegaes, algumas das suas funes. As relaes que surgem entre

    os entes envolvidos so presididas mais por um de coordenao que por um de

    subordinao. 6 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant (Diritto e

    Stato nel Pensiero di Emanuele Kant). Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 1984,

    c1969, p. 83.

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    igualmente esse seria, na verdade, um direito pblico. Segundo

    o pensamento jusnaturalista kantiano, o nico direito existente

    fora do direito estatal seria o direito natural, entendido em seu

    sentido restrito, como aquele que disciplina as relaes entre os

    homens no estado de natureza. Desta forma, o problema da

    distino entre direito privado e o direito pblico em Kant

    muda para a distino entre direito natural e direito positivo.

    Aquele no reconhece outra fonte a no ser a natureza mesma

    das relaes entre pessoa e pessoa, enquanto este deriva, ao

    contrrio, da vontade do legislador. O primeiro um direito

    permanente, racional e ideal; o segundo um direito voluntrio

    e determinado historicamente.

    Certamente esta a base sobre a qual os juristas

    posteriores passaram a distinguir o direito privado do pblico.

    De fato, no estado de natureza as relaes jurdicas podem ser

    somente relaes de coordenao, j que os indivduos esto

    todos em plano de igualdade. Com a passagem sociedade

    civil e a constituio da autoridade do Estado, instauram-se

    situaes de desigualdade entre aqueles que comandam e

    aqueles que obedecem. Desta situao de desigualdade surgem

    relaes de subordinao.

    3. O PRIMADO DO PRIVADO SOBRE O PBLICO.

    Assentadas tais premissas, h que se reconhecer que a

    preponderncia de um aspecto (pblico/privado) sobre o outro

    conheceu alternncias ao longo da histria. No houve uma

    evoluo linear, percebendo-se, ao contrrio, um movimento

    em certo modo cclico ou pendular.

    De fato, na clssica Grcia havia uma espcie de

    interpenetrao do pblico e do privado, no sentido de que os

    cidados, reunidos na gora, participavam intensamente das

    grandes decises envolvendo interesses da comunidade, quer

    votando leis (nomoi), quer julgando seus semelhantes em

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    processos pblicos de maior importncia.

    J em Roma ocorre uma separao mais ntida entre as

    duas esferas, havendo pouca participao direta dos cidados,

    enquanto tais, na esfera pblica.

    No perodo mais intenso da era medieval, embora sob

    outros pressupostos, houve uma espcie de absoro do pblico

    pelo privado, derivado, de certo modo, da primazia da

    propriedade territorial sobre os demais institutos econmico-

    poltico-jurdicos. Isto porque os senhores feudais exerciam

    verdadeira funo pblica sobre todos os habitantes de seus

    feudos (vassalos e servos da gleba), uma vez que estabeleciam

    regras obrigatrias, impunham e arrecadavam tributos,

    julgavam seus servos e executavam as decises. Ou seja, pode-

    se quase dizer que do direito de propriedade derivava o poder

    poltico e o prestgio social.

    A partir do final da idade mdia, com a formao do

    Estado moderno, h uma nova interpenetrao entre o pblico e

    o privado, com uma funcionalizao do pblico ao privado

    (pois interessava burguesia emergente o fortalecimento da

    monarquia nacional, j que um governo centralizado e nico

    tenderia a favorecer o desenvolvimento do comrcio, reduzindo

    as barreiras alfandegrias, as mltiplas moedas, etc.), mas

    tambm com uma funcionalizao do privado ao pblico (j

    que igualmente interessava ao monarca o fortalecimento da

    burguesia, de quem se cobravam tributos cada vez maiores, e

    de quem aquele obtinha emprstimos para financiar suas

    campanhas militares e outros empreendimentos rgios)7.

    7 Emblemtico dessa convergncia de interesses o dilogo entre o Prncipe e o

    mercadores, imaginado por Kant, em que o monarca indagava o que podia fazer por estes, e os mercadores respondiam: Sir, fornea-nos boa moeda e a segurana das estradas e o resto deixe por nossa conta apud Michele Giorgianni, Il diritto privato ed i suoi attuali confini, publicado originariamente na Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, em 1961 (h uma traduo publicada na Revista dos

    Tribunais, vol. 747 [1998], p. 35-55). Igualmente emblemtico e ainda mais famoso

    teria sido o dilogo entre o Ministro das Finanas do Rei francs e os grandes

    comerciantes do reino, na segunda metade do sc. XVII, em que aquele referia que o

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    Por volta do sculo XVIII, passa-se a realar a

    diferenciao entre a esfera das relaes econmicas e a esfera

    das relaes polticas, entre sociedade civil e Estado. Nesse

    contexto, a dicotomia pblico v. privado volta a se apresentar

    sob a forma de distino entre a sociedade poltica (o reino da

    desigualdade) e sociedade econmica (o imprio da

    igualdade)8. Cada uma dessas sociedades caracterizada pela

    presena de sujeitos diversos: o citoyen da sociedade poltica,

    que titulariza interesses pblicos, e o bourgeois da sociedade

    econmica, que cuida dos seus prprios interesses privados.

    nesse contexto histrico que se revela mais intensa a

    diviso dicotmica entre pblico e privado e suas derivaes a separao entre Estado e Sociedade, Poltica e Economia,

    Direito e Moral. Essa viso dicotmica de mundo repercute no

    mundo jurdico, com a acentuao da diferena entre Direito

    Pblico e Direito Privado. O Direito Pblico passa a ser visto

    como o ramo do direito que disciplina o Estado, sua

    estruturao e funcionamento, ao passo que o Direito Privado

    compreendido como o ramo do direito que disciplina a

    Sociedade civil, as relaes intersubjetivas, e o mundo

    econmico (sob o signo da liberdade). As relaes privadas so

    estruturadas a partir de uma concepo de propriedade absoluta

    e de uma plena liberdade contratual (reinos esses que o Direito

    Pblico no podia atingir) em todos os Cdigos civis que

    Rei mandara perguntar o que podia fazer em prol dos comerciantes, ao que estes

    teriam respondido: laissez-faire, laissez-passer, que le monde v de lui-mme. 8 Deve ser lembrado, porm, que at o incio do sculo XX, a Inglaterra no

    conhecia a dicotomia direito pblico X direito privado. Defendia-se a idia de que a

    common law tradicional constitua um corpo nico e indivisvel de regras, no sentido

    de the same body of rules applied to the government and its agents as well as to private citizens R. C. van Caenegen, An Historical Introduction to Western Constitutional Law. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 3. Por outro

    lado, ao menos na fase mais revolucionria da implantao da sociedade sovitica,

    que pretendeu criar um sistema de direito socialista, pretendeu-se que todo o direito

    teria se tornado direito pblico, na medida em que o direito passou a ser visto como

    um simples instrumento da poltica, a qual buscava a criao de uma sociedade

    inicialmente socialista, preparatria do advento da sociedade comunista.

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    surgem nesse primeiro ciclo das codificaes.

    A novidade que ocorre no direito privado, nesse perodo

    histrico, que o direito se torna estatal e burgus. Estatal,

    porque pela primeira vez na histria do direito o legislador se

    ocupa de forma sistemtica e abrangente do direito privado, j

    que nos perodos histricos precedentes os governantes sempre

    se preocuparam em disciplinar apenas relaes jurdicas que

    hoje seriam enquadradas no direito pblico (como a tributao,

    o direito penal, a organizao administrativa), e quando

    estabeleciam regras sobre direito privado, o faziam de forma

    pontual e no sistemtica9. O direito privado sempre fora o

    reino da no interveno estatal, um setor deixado aos

    costumes (direito consuetudinrio), ao direito cannico

    (casamento, famlia, filiao, sucesses), ou desenvolvido a

    partir dos pareceres e escritos doutrinrios, desde os

    jurisconsultos romanos (que eram cidados particulares,

    dedicados profissionalmente ao estudo do direito), passando

    pelos glosadores e comentadores medievais (que eram

    professores universitrios perodo do denominado mos italicus), pelos juristas humanistas (os juristas da chamada

    jurisprudncia elegante ou culta perodo do mos gallicus), e pelos jusnaturalistas e jusracionalistas da era moderna (era do

    mos germanicus).

    Por outro lado, a partir da ruptura simbolizada pela

    Revoluo francesa, que marca o ingresso na era

    contempornea, o direito privado torna-se tambm burgus, no

    sentido de que o direito privado passa a espelhar a ideologia, os

    anseios e as necessidades da classe socioeconmica que havia

    conquistado o poder em praticamente todos os Estados

    ocidentais. Como os cdigos nascem com pretenses de regular

    todo o espao jurdico de uma nao, abandonando-se o intenso

    pluralismo jurdico que vigorava nos perodos histricos

    9 Sirvam de exemplo as Ordonnances francesas do sc. XVIII sobre doaes e

    testamentos.

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    anteriores (em que a legislao rgia convivia com o direito

    cannico, com o direito costumeiro, com a lex mercatria, com

    o direito das corporaes de artes e ofcios, com o direito

    romano, com os direitos municipais), passa-se a regular toda a

    sociedade a partir das necessidades e ideologias de uma frao

    dessa sociedade, qual seja, a classe burguesa. Ou seja, toda a

    nao passa a ser convocada a espelhar-se na tbua de valores e

    anseios da burguesia (representados substancialmente pelo

    liberalismo econmico, tendo a propriedade territorial como

    valor principal e a liberdade contratual como instituto auxiliar

    para facilitar as transferncias e a criao de riqueza).

    nesse contexto que o individualismo visto como valor

    a ser prestigiado, como reao ao perodo estamental que

    caracterizou a era medieval, em que o valor do indivduo

    estava ligado no s suas caractersticas e mritos pessoais,

    mas ao estamento social no qual se encontrava integrado.

    Assim contextualizado, entende-se a enftica defesa que Alexis

    de Tocqueville faz desse novo valor: Individualismo uma nova expresso, para a qual nasceu uma idia nova. Nossos

    pais conheciam apenas o egosmo. O egosmo um apaixonado

    e exagerado amor de si prprio (). O individualismo um sentimento calmo e maduro, que leva cada membro da

    comunidade a distinguir-se da massa de seus pares e se manter

    parte com sua famlia e seus amigos10. Refletindo essa verdadeira ruptura epistemolgica,

    lembre-se que Benjamin Constant, em famoso discurso

    proferido em 1819, no Ateneu de Paris, comparou a liberdade

    dos antigos liberdade dos modernos11

    , dizendo que, naquela 10 Alexis de Tocqueville. LAncien Rgime et la Rvolution, apud Maria Celina Bodin de Moraes, Constituio e Direito Civil: tendncias, in: Revista dos Tribunais, vol. 779 (set. de 2000), p. 46-63, p. 53. 11 Interessante comparao entre a noo de liberdade dos modernos comparada dos psteros encontramos em N. Bobbio, Teoria Geral da Poltica (Rio de Janeiro: Campus, 2000), captulo 5, p. 269s.

    Igualmente interessante a anlise da (ento) nova viso de liberdade, vislumbrada

    pelo Presidente F. D. Roosevelt, em sua famosa mensagem ao Congresso norte-

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 195

    (seu pensamento voltava-se mais para a plis grega), o cidado

    era livre porque podia participar do processo de deciso

    poltica, tomando parte das assemblias populares que

    decidiam os assuntos mais importantes para a coletividade12

    ,

    substancialmente elaborando normas gerais e decidindo casos

    concretos (em termos modernos, atividades legislativa e

    jurisdicional). J a liberdade dos modernos, para ele, consistia

    na possibilidade do indivduo decidir livremente, sem qualquer

    interveno estatal, todos os assuntos que lhe dizem respeito,

    ou seja, de tomar soberanamente todas as decises

    concernentes sua vida privada. Em outras palavras, enquanto

    a liberdade dos antigos permitia que o cidado interviesse no

    espao pblico, a liberdade dos modernos significa a livre

    movimentao no espao [econmico] privado13

    . Da o

    americano, de 6 de janeiro de 1941, onde anunciava as Quatro Liberdades que todos

    povos, pases e governos deveriam respeitar, na nova sociedade mundial, quais sejam, a liberdade de palavra e de pensamento, a liberdade religiosa, a libertao

    das necessidades (idia de direitos econmicos e sociais), e a libertao do medo

    (compreendendo a necessidade de se reduzir internacionalmente os armamentos,

    como forma de diminuir os riscos de agresses armadas). Essa famosa mensagem,

    como se sabe, foi um dos fatores propulsivos que levou, posteriormente,

    elaborao da Declarao Universal dos Direitos do Homem, da ONU, em 1948 -

    uma sucinta anlise de tal mensagem presidencial encontra-se em Sabino Cassese, I

    diritti umani nel mondo contemporaneo. Roma-Bari: Laterza, 1998, 3. ed., p. 27 e

    seguintes. 12 Segundo suas palavras: le but des anciens tait le partage du pouvoir social entre tous les citoyens dune mme patrie. Ctait ce quils nommaient libert De la libert des anciens compare celle des modernes, in: Cours de politique

    constitutionnelle, vol. II, p. 548 apud Antonio Zanfarino, La libert dei moderni nel costituzionalismo di Benjamin Constant. Milano: Dott. A. Giuffr, 1961, p. 114. 13 Deve ser lembrado, porm, que uma ntida separao entre espaos pblico e

    privado, sem pontos de interferncia, jamais existiu, sendo este um modelo

    meramente ideal. Mesmo nos perodos de mais acentuado liberalismo econmico, o

    Estado sempre continuou a manter certa ingerncia nas relaes entre privados,

    fixando tarifas, orientando o mercado atravs da imposio fiscal, com barreiras

    alfandegrias. Continuou, tambm, a imiscuir-se na disciplina das relaes jurdicas

    familiares (em concorrncia com o direito cannico), manteve um certo controle das

    clusulas contratuais, atravs de noes vagas como ordem pblica e bons costumes.

    Alm disso, desde cedo, mesmo em certos ambientes de economia liberal, o Estado

    disciplinou o mercado, ao preocupar-se em garantir a livre concorrncia, suprimir

  • 196 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    endeusamento da autonomia da vontade e do seu consectrio,

    no campo negocial, a liberdade contratual14

    .

    Dito de outra forma, como se o esprit de commerce que

    canaliza as energias do homem burgus passasse a substituir o

    esprit de conqute que sempre caracterizou os detentores do

    monoplios, dificultar cartis o caso da legislao anti-trust norte-americana, editada j no final do sc. XIX. Sobre alguns destes aspectos, consulte-se Guido

    Alpa, Introduzione allo studio critico del diritto privato. Torino: G. Giappichelli

    Editore, 1994, p. 7s. 14 Devemos contextualizar historicamente a viso ideolgica de B. Constant, ao

    comparar a liberdade dos antigos com a dos modernos. O famoso poltico e

    publicista francs escrevia quando j havia passado o fermento revolucionrio,

    estando as necessidades da burguesia j contempladas na legislao napolenica.

    Vivia-se o perodo da restaurao dinstica, mas esse acontecimento poltico no

    mais tinha foras para controlar o mundo econmico, onde os interesses da

    burguesia eram hegemnicos. Calha, a propsito, reproduzir as palavras de Fbio K.

    Comparato: A Revoluo, ao suprimir a dominao social fundada na propriedade da terra, ao destruir os estamentos e abolir as corporaes, acabou por reduzir a

    sociedade civil a uma coleo de indivduos abstratos, perfeitamente isolados em seu

    egosmo. Em lugar do solidarismo desigual e forado dos estamentos e das

    corporaes de ofcios, criou-se a liberdade individual fundada na vontade, da

    mesma forma que a filosofia moderna substitura a tirania da tradio pela liberdade

    da razo. O regime da autonomia individual, prprio da civilizao burguesa, tem

    seus limites fixados pela lei (...). Os direitos do cidado passaram, ento, a servir de meios de proteo aos direitos do homem, e a vida poltica tornou-se mero instrumento de conservao da sociedade civil, sob a dominao da classe burguesa - A afirmao histrica dos direitos humanos. So Paulo: Saraiva, 1999, p. 128.

    Como a civilizao e tambm o direito, que uma cincia cultural no evolui linearmente, mas de forma oscilante e pendular, com a progressiva extenso da

    titularidade de direitos percebe-se, de certa forma, um retorno idia de ser humano

    enquanto vinculado a uma classe ou agrupamento de pessoas. De fato, como

    sintetiza Flvia Piovesan, h o alargamento do prprio conceito de sujeito de direito, que passou a abranger, alm do indivduo, as entidades de classe, as

    organizaes sindicais, os grupos vulnerveis e a prpria humanidade. Esse processo

    implicou ainda a especificao do sujeito de direito, tendo em vista que, ao lado do

    sujeito genrico e abstrato, delineia-se o sujeito de direito concreto, visto em sua

    especificidade e na concreticidade de suas diversas relaes. Isto , do ente abstrato,

    genrico, destitudo de cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critrios, emerge

    o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e

    particularidades. Da apontar-se no mais ao indivduo genrica e abstratamente

    considerado, mas ao indivduo especificado, considerando-se as categorizaes relativas ao gnero, idade, etnia, raa, etc. - Flvia Piovesan, Temas de Direitos Humanos. So Paulo: Max Limonad, 1998, p. 130.

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 197

    poder poltico. O mercado e os interesses comerciais passaram

    a ser decisivos como bssola no s para as aes individuais,

    como tambm para as decises polticas15

    .

    A tica que predomina nesse perodo a da liberdade

    formal. No mbito poltico, temos o Estado liberal e pouco

    intervencionista. A economia vive o perodo do liberalismo

    econmico, com pouca regulamentao estatal. No mundo

    jurdico, tudo isso desemboca na tica do individualismo, com

    o aprimoramento, pela pandectstica, das figuras do sujeito de

    direito (enquanto sujeito abstrato) e do direito subjetivo. Os

    cdigos civis deste perodo caracterizam-se por estarem

    centrados na propriedade, com nfase na propriedade

    imobiliria, com carter absoluto e individualista, no

    voluntarismo jurdico16

    , na liberdade e autonomia contratual,

    na igualdade meramente formal. No mbito do direito de

    famlia, percebe-se a supremacia do pai-marido a esposa, reduzida condio de relativamente incapaz, subordina-se

    chefia do marido; os filhos so vistos mais como objeto de

    preocupao jurdica do que como sujeitos de direito.

    As normas estatais protetoras do indivduo buscavam

    assegurar to somente seu espao de liberdade econmica,

    15 A bem da verdade, no s nesse perodo histrico que o Mercado passa a ditar as

    regras. Em obra recente, Jos Luis Monereo Prez afirma que la crisis actual es en gran medida, la consecuencia de la subordinacin de la Sociedad al Mercado, esto

    es, a su lgica de racionalidad puramente instrumental. Por contraposicin a este

    enfoque, deben utilizarse los instrumentos del constitucionalismo social, siendo

    necessrio recuperar las polticas propias del constitucionalismo social tanto a nvel

    europeo como nacional, que evite que los costes de la crisis recaigan sobre los

    grupos ms desfavorecidos y que permita proyectar sobre el futuro um gobierno

    democrtico de la economia y otorgar una eficcia real a conjunto de los derechos

    fundamentales PREZ, Jos Luis Monereo. La proteccin de los derechos fundamentales. El modelo europeo. Albacete (Espanha): Editorial Bomarzo, 2009, p.

    252/253. 16 Alis, a pandectstica alem sabidamente construiu seus instrumentos dogmticos

    a partir da tica do voluntarismo: o direito subjetivo, na conhecida acepo de

    Windscheid, visto como emanao do poder da vontade, a propriedade vista

    como senhoria da vontade sobre as coisas, e o negcio jurdico visto como uma

    declarao de vontade com poder de criar situaes jurdicas.

  • 198 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    protegendo o cidado contra o prprio Estado. As limitaes

    aos direitos subjetivos, quando existentes, eram apenas aquelas

    necessrias para permitir a convivncia social. Ntida, aqui, a

    inspirao kantiana: minha liberdade irrestrita s encontra

    limitaes na idntica liberdade de meu semelhante.

    Mas o mais importante a ideologia jurdica que

    predomina, que podemos denominar de a ideologia dos 3 cs: pretende-se que a legislao civil (leia-se, os cdigos) seja

    completa, clara e coerente. A ideologia da completude significa

    que a legislao (supostamente) completa, no possuindo

    lacunas; a idia de legislao caracterizada pela sua clareza

    significa que as regras jurdicas so facilmente interpretveis,

    no contendo significados ambguos ou polissmicos. E a

    ideologia da coerncia afasta a possibilidade de antinomias.

    Tudo isso deriva do mito do legislador iluminista, inteligente,

    onisciente, previdente, capaz de tudo regular detalhadamente,

    antecipadamente, de forma clara e sem contradies.

    Partindo de tais premissas, chegava-se fcil concluso

    de que somente o legislador teria legitimidade para editar

    normas jurdicas, j que ungido pela escolha popular. Aos

    juzes, reservar-se-ia o papel de bouche de la loi, na viso de

    Montesquieu, ou seja, seres inanimados que no podem moderar nem a sua [da lei] fora nem o seu rigor. O juiz nada criaria, apenas aplicaria o direito (j previamente elaborado

    pelo legislador) ao caso concreto. O catlogo de todas as

    solues possveis j preexistiria ao caso litigioso. Ao juiz nada

    mais se pediria do que confrontar o fato com tal catlogo, at

    localizar a regra legal que resolveria o problema. Sua atividade

    mental seria apenas silogstica17

    .

    17 Para uma anlise crtica dessa viso redutiva de funo jurisdicional, seja-me

    permitido enviar o leitor interessado a ensaio de minha autoria E o Juiz no s de Direito ... (ou A Funo Jurisdicional e a Subjetividade) - inserto na obra coletiva denominada Aspectos Psicolgicos na Prtica Jurdica, organizada por

    David Zimerman e Antnio Carlos Mathias Coltro, Campinas: Millennium Editora,

    2002, p. 396-413.

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 199

    Percebe-se, assim, que tal ideologia buscou transformar o

    jurista em simples tcnico, operador de atividade meramente

    cognitiva (e no prtico-valorativa), usando mtodos lgico-

    formais e sem nenhuma responsabilidade poltica. Alis, em tal

    sistema, ningum tem responsabilidades diante de leis injustas

    - e todos podem olimpicamente lavar as mos18

    .

    Em termos de tcnica legislativa, utiliza-se, sobretudo, a

    forma da regra jurdica, contendo fattispecie completa (preceito

    e conseqncia jurdica). So raros os princpios expressos,

    quase ausentes as clusulas gerais e parcimoniosos os conceitos

    indeterminados.

    4. O PRIMADO DO PBLICO SOBRE O PRIVADO.

    Se o chamado mundo da segurana que caracterizou a

    era das codificaes e das constituies liberais representou, de

    certa forma, o primado do direito privado sobre o direito

    pblico, esta relao se inverte com o advento do

    constitucionalismo social e do conseqente maior

    intervencionismo estatal, fruto das concepes do Welfare

    State. De certo modo o primado do pblico significa o aumento da interveno estatal na regulao coativa dos

    18 Trata-se de uma verdadeira armadilha ideolgica, em que o legislador pode afastar

    sua responsabilidade alegando que no elabora regras voltadas a casos particulares.

    As normas que elabora so genricas, abstratas, e voltadas ao futuro. Ele no

    pretende prejudicar ou favorecer quem quer que seja, pois legisla para sujeitos

    abstratos e desconhecidos. O juiz, por sua vez, tambm pode afastar sua

    responsabilidade diante da deciso por ele dada ao caso concreto, pois tal soluo

    no seria fruto de sua vontade, j que ele simplesmente estaria aplicando a soluo

    pr-estabelecida pelo ordenamento jurdico. O ordenamento jurdico, assim,

    funcionaria de forma supostamente neutra e assptica, no buscando atingir ningum

    em particular. Da porque se podia dizer, ironicamente, na Frana oitocentista, que

    as leis francesas proibiam ricos e pobres, de forma majestosamente igual, de

    dormirem sob as pontes de Paris Ao que os ingleses, no mesmo esprito, retrucavam que tambm na Inglaterra vivia-se sob o reino da igualdade, pois

    qualquer pessoa, fosse rica ou fosse pobre, podia hospedar-se nos melhores hotis de

    Londres, bastando para tanto apenas pagar a diria cobrada

  • 200 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    comportamentos dos indivduos e dos grupos infra-estatais, ou

    seja, o caminho inverso ao da emancipao da sociedade civil

    em relao ao Estado, emancipao essa que fora o resultado da ascenso da classe burguesa. Com o declnio dos limites

    ao do Estado, foi ele aos poucos se reapropriando do espao

    conquistado pela sociedade civil burguesa at absorv-lo

    completamente na experincia extrema do Estado total (total no

    sentido de que no deixa espao algum fora de si)19. O perodo do constitucionalismo social dos pases

    ocidentais que sucede ao segundo ps-guerra, procura

    enderear o Estado no sentido da promoo da igualdade

    substancial, mesmo que por vezes isso implique redues ao

    espao da liberdade econmica, embora sem sacrific-la de um

    todo. No espao pblico, procura-se limitar no s o Executivo

    atravs do princpio da legalidade que j vinha do perodo anterior mas o prprio Legislativo atravs do controle de constitucionalidade. Visto que na trgica experincia europia

    do perodo entre-guerras o Legislativo mostrara-se presa fcil

    de um Executivo forte, tendo docilmente fornecido a base

    legal aos governos nazi-fascistas, percebeu-se a necessidade de se sujeitar tambm o Legislativo legalidade constitucional.

    Essa nova concepo tem um preciso sentido, qual seja, a da

    sujeio ao ordenamento jurdico de todos os poderes, pblicos

    e privados20

    , e na sua limitao e funcionalizao tutela dos

    direitos fundamentais. O Judicirio, que tambm est sujeito a 19 BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da

    poltica [Stato, governo, societ. Per una teoria generale della politica]. Rio de

    Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 25. 20 Como refere Ricardo Luis Lorenzetti, na sociedade moderna, a noo de poder se expande, incluindo, no s o conflito Estado-cidado, mas tambm aos gerados entre grupos econmicos e indivduos, entre maiorias e minorias, e indivduos entre si. Da porque necessrio que os instrumentos do Direito Privado, pensados

    para neutralizar os avanos do Estado, se redimensionem para atender a essas novas

    necessidades. A tendncia que se percebe no mundo contemporneo, segundo o

    referido autor, a construo de um piso mnimo de direitos fundamentais, de que titular todo o indivduo in: Fundamentos do Direito Privado. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 126.

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 201

    esta concepo de legalidade, passa a ter o dever de controlar

    tambm a legitimidade constitucional da legislao ordinria.

    Assim, a notvel contribuio da Suprema Corte norte-

    americana, atravs da pena de John Marshall, em 1803, ao

    afirmar ser natural atribuio do Judicirio a de invalidar

    legislao ordinria que fosse incompatvel com a

    Constituio, chega tambm Europa, embora aqui se prefira

    adotar o modelo concentrado de controle de

    constitucionalidade, de inspirao kelseniana, ao contrrio do

    controle difuso praticado nos Estados Unidos.

    No mbito do direito privado, esse novo perodo

    caracterizado pelo fato de que tambm o poder da vontade dos

    particulares encontra-se limitado. Essa limitao, ao contrrio

    do perodo anterior, no se d apenas em virtude da aplicao

    de normas imperativas editadas em proveito de outros

    particulares, como o caso das regras do direito de vizinhana.

    Essa nova limitao se d principalmente a partir da

    concretizao dos princpios constitucionais da solidariedade

    social e da dignidade da pessoa humana. Ou seja, abandona-se

    a tica do individualismo pela tica da solidariedade; relativiza-

    se a tutela da autonomia da vontade e se acentua a proteo da

    dignidade da pessoa humana.

    Diferentemente do perodo anterior, em que os Cdigos

    representavam o eixo central de todo o ordenamento jurdico

    privado, pretendendo disciplinar a totalidade das relaes

    jurdicas do sujeito abstrato sob a gide da autonomia da

    vontade, esse novo perodo v parte do direito privado migrar

    dos cdigos totalizantes em direo legislao dita

    extravagante. Na medida em que as novas constituies rgidas continham verdadeiros programas voltados para o

    futuro - pois se pretendia transformar a sociedade e no s

    espelh-la, como buscavam fazer os cdigos civis do perodo

    anterior impunha-se o desenvolvimento legislativo e o detalhamento normativo de tais programas. Essa nova

  • 202 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    legislao possui um carter promocional21

    , utiliza-se

    freqentemente de uma linguagem setorial, fixa objetivos a

    alcanar e, numa s lei (exemplificativamente, a Lei de

    locaes, o Estatuto da Criana e do Adolescente, o Cdigo de

    Defesa do Consumidor), disciplinam-se aspectos de direito

    material privado, de direito penal, de direito processual, de

    direito administrativo. Trata-se do deslocamento do

    monossistema simbolizado pelos cdigos totalizantes, em

    direo ao polissistema legislativo, adotando-se microssistemas

    que gravitam ao lado do Cdigo Civil. o advento da chamada

    era dos estatutos.

    5. DIREITO PBLICO E DIREITO PRIVADO.

    CONVERGNCIAS.

    Contemporaneamente, percebe-se claramente que

    pblico e privado tendem a convergir. Tal convergncia, alis,

    opera nas duas direes, ou seja, cada vez mais o Estado se

    utiliza de institutos jurdicos do direito privado, estabelecendo

    relaes negociais com os particulares e conseqentemente

    abrindo mo de instrumentos mais autoritrios e impositivos22

    (trata-se do fenmeno conhecido como privatizao do direito

    pblico).

    Por outro lado, tambm o direito privado se desloca em

    direo ao pblico, como se percebe na elaborao da categoria 21 Segundo N. Bobbio, diante das exigncias do Estado assistencial contemporneo,

    o direito no mais se limita a tutelar os atos conformes s suas normas, ou a reprimir

    os atos que lhe so contrrios. Sua funo, portanto, no se resume apenas a proteger

    ou a reprimir, tornando-se tambm promocional. Adotam-se tcnicas de estimulao

    e de encorajamento, visando a promoo de atos considerados socialmente teis, ao

    invs de simplesmente se reprimir os atos considerados socialmente nocivos La funzione promozionale del diritto, in: Dalla struttura alla funzione. Nuovi studi di teoria del diritto. Milano: Edizione di Comunit, 1977, p. 13-32. 22 Sobre esse tema, consulte-se com proveito a tese de doutoramento de Maria Joo

    Estorninho, intitulada emblematicamente de A fuga para o direito privado Contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administrao

    Pblica (Coimbra: Livraria Almedina, 1999).

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 203

    dos interesses e direitos coletivos e difusos (metaindividuais ou

    supraindividuais), mas igualmente na funcionalizao de

    inmeros institutos tpicos do direito privado, como o caso do

    reconhecimento da funo social da propriedade (do que se

    encontram traos j na Constituio de 34, e, de forma clara, a

    partir da Constituio de 46, embora a expresso funo social da propriedade somente aparea na Carta de 1967), funo social do contrato (incorporado expressamente ao novo cdigo

    civil art. 421 e art. 2.035, pargrafo nico), na funo social da empresa (Lei n 6.404/76 Lei das S.A. -, art. 116, pargrafo nico, e art. 154), na funo social da famlia (que

    passa a ser disciplinada no mais como simples instituio a menor clula da sociedade mas como espao em que cada um de seus componentes, vistos como sujeitos de direitos, deve

    ter condies para desenvolver livremente a sua personalidade

    e todas as suas potencialidades; a famlia vista como ninho e no como simples n, na evocativa imagem da historiadora francesa Michelle Perrot

    23), na percepo da existncia de uma

    funo social at na responsabilidade civil (quanto mais dbeis

    e pouco protetoras forem as instituies previdencirias de um

    Estado, mais importantes tendem a ser os mecanismos da

    responsabilidade civil para a proteo dos interesses dos

    indivduos atingidos por danos pessoais).

    Perceptvel, tambm, outra indicao desse movimento

    de interveno pblica na esfera privada, reduzindo o campo da 23 Michelle Perrot, Revista Veja: Reflexes para o futuro 1993: No a famlia em si que nossos contemporneos recusam, mas o modelo excessivamente rgido e

    normativo que assumiu no sculo XIX. Eles rejeitam o n, no o ninho. A casa ,

    cada vez mais, o centro da existncia. O lar oferece, num mundo duro, um abrigo,

    uma proteo, um pouco de calor humano. O que eles desejam conciliar as

    vantagens da solidariedade familiar e as da liberdade individual. Tateando, esboam

    novos modelos de famlias, mais igualitrias nas relaes de sexos e de idades, mais

    flexveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas s regras e

    mais ao desejo. O que se gostaria de conservar da famlia, no terceiro milnio, so

    seus aspectos positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mtua, os laos de

    afeto e o amor. Belo sonho.

  • 204 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    autonomia privada, na determinao imperativa do contedo de

    negcios jurdicos e na obrigao legal de contratar (hiptese,

    por exemplo, do art. 39, inc. IX, do Cdigo de Defesa do

    Consumidor, do direito renovao do contrato de locao

    comercial, do direito de preferncia para aquisio do imvel

    urbano locado ou do imvel rural arrendado). Relativamente a

    todos esses fenmenos, costuma-se denomin-los de

    publicizao do direito privado.

    Isso decorre do fato de que no Estado Social as

    autoridades pblicas no se preocupam apenas com a defesa

    das fronteiras, segurana externa e ordem interna, mas passam

    a intervir de forma penetrante no processo econmico, quer de

    forma direta, assumindo a gesto de determinados servios

    sociais (transportes, servios mdicos, assistncia social,

    educao, etc.), quer de forma indireta, atravs da disciplina de

    relaes privadas relacionadas ao comrcio (v.g., disciplina dos

    preos, do crdito, do setor de seguros, das atividades

    bancrias, etc.), alm de outras relaes intersubjetivas que

    uma vez eram deixadas autonomia privada (como a disciplina

    dos aluguis, seus reajustes, renovao dos contratos, relaes

    de consumo, etc.).

    Trata-se, em outras palavras, de estabelecer

    novos parmetros para a definio de ordem pblica, relendo o direito civil luz da

    Constituio, de maneira a privilegiar, insista-se

    ainda uma vez, os valores no-patrimoniais e, em

    particular, a dignidade da pessoa humana, o

    desenvolvimento da sua personalidade, os direitos

    sociais e a justia distributiva, para cujo

    atendimento deve se voltar a iniciativa econmica

    privada e as situaes jurdicas patrimoniais24.

    24 Gustavo Tepedino, Premissas Metodolgicas para a Constitucionalizao do Direito Civil, ensaio inserido em obra do mesmo autor, denominada Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 22.

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 205

    Sob outro enfoque, poder-se-ia dizer que depois do

    suposto movimento do status ao contrato, com que H. Sumner Maine

    25 tentou resumir toda a evoluo da sociedade, a

    parbola se inverte, percorrendo-se o caminho inverso - do contrato ao status -, no porque a condio social originria da pessoa passe a dominar toda sua vida e o seu destino, mas

    no sentido de que o retorno ao status passa a ser concebido no

    sentido de que os contratos recebem uma regulamentao

    jurdica particularizada, buscando espelhar a posio

    socioeconmica das partes envolvidas numa concreta relao

    jurdica (relao de locao, relao de consumo,

    arrendamentos e parcerias rurais, etc.). O sujeito abstrato das

    codificaes oitocentistas cede espao ao sujeito visto em sua

    concretude, como locatrio, consumidor, arrendatrio,

    empregado, percebendo-se que as peculiaridades de cada uma

    dessas situaes devem acarretar um tratamento jurdico 25 Ancient Law (1861), trad. it. Diritto Antico, Milano: Giuffr, 1998. Segundo

    Maine, como se sabe, a humanidade teria evoludo do status ao contrato no sentido

    de que antigamente os direitos e os deveres de uma pessoa estavam diretamente

    vinculados classe social ao qual ela pertencia. Assim, por exemplo, na antigidade,

    patrcios ou plebeus, homens livres ou escravos, romanos ou estrangeiros, possuam

    certos direitos e deveres em razo da sua condio social, direitos e deveres esses

    que eram distintos conforme a classe social em que estava inserido. O mesmo ocorre

    nas demais pocas histricas, como no perodo medieval, em que a condio de

    senhor feudal ou de servo da gleba, ou de clrigo, significava possuir certo estatuto

    jurdico distinto dos membros das demais classes. Esse estatuto jurdico que se

    adquiria por nascimento, por outro lado, era praticamente imutvel durante a vida do

    indivduo. De acordo com Maine, esse estado de coisas muda com a modernidade,

    pois diante do princpio da autonomia da vontade e de seu reflexo, a liberdade

    contratual, o destino dos indivduos dependia deles prprios, da sua maior ou menor

    capacidade negocial, no sendo algo inexorvel e ligado apenas classe de origem.

    Assim, mediante a liberdade contratual, os homens podiam criar riquezas,

    enriquecer, melhorar suas condies de vida, em suma, conduzir seus prprios

    destinos, independentemente da classe social na qual nasceram. O que Maine no

    percebeu que os condicionamentos que hoje subsistem so de ordem econmica,

    pois quem nasce na condio de membro de segmentos sociais excludos, s

    excepcionalmente consegue superar as barreiras sociais e econmicas que lhe

    impedem de ter acesso e gozar plenamente todos os direitos que so concedidos

    naturalmente a quem tem a sorte de vir luz no seio de uma famlia abastada e cujo lugar ao sol est praticamente garantido.

  • 206 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    prprio, de forma a compensar juridicamente o desequilbrio

    econmico que se percebe existente em tais relaes. Deste

    modo, identifica-se no contrato um instrumento no qual se

    exprime a poltica econmica do Estado.

    Destarte, onde mais agudamente se percebe a

    necessidade de se estabelecer relaes sociais justas, o

    legislador intervm mais incisivamente, limitando a liberdade

    contratual e impondo uma orientao relativamente rgida ao

    programa contratual das partes. Assim, no sistema econmico do capitalismo mais maduro, a plenitude da liberdade

    contratual funciona apenas numa rea bastante reduzida, no

    vrtice, onde se encontram pessoas e grupos dotados de grande

    poder econmico26. A razo da relativizao do valor da autonomia privada

    nos dada por Konrad Hesse, nos seguintes termos:

    La autonomia privada y su manifestacin ms importante, la libertad contractual, encuentran

    su fundamento y sus lmites en la idea de la

    configuracin bajo propria responsabilidad de la

    vida y de la personalidad. Presuponen una situacin

    jurdica y fctica aproximadamente igual de los

    interesados. Donde falta tal presupuesto, y la

    autonomia privada de uno conduce a la falta de

    libertad del otro, desaparece todo fundamento y se

    traspasa todo lmite; el indispensable equilibrio

    debe entonces ser encontrado por otra va, la de la

    regulacin estatal, cuya eficacia frecuentemente

    requiere una conexin de preceptos de Derecho

    Pblico y Privado. Aqu radica la diferencia

    esencial entre el significado actual de la autonomia

    privada y el del siglo XIX: aqul ofreca una

    libertad slo formal, que slo parcialmente se

    26 Guido Alpa, Libert contrattuale e tutela costituzionale, in: Rivista Critica del Diritto Privato, 1995, p. 35-54, p. 46/47.

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 207

    corresponda con la realidad social; en

    consecuencia, poda conducir a la falta de libertad

    efectiva. Una libertad real general nunca puede ser

    producida por la sola autonoma privada. Dado el

    presupuesto de una situacin jurdica y fctica

    aproximadamente igual de los interesados, sta es,

    sin embargo, elemento esencial de la libertad real, y

    como tal no puede ser sustituida por planificacin o

    regulacin estatal alguna por cuidada que sea27. Como refere Maria Celina Bodin de Moraes

    28, defronte de tantas alteraes, direito privado e direito pblico tiveram

    modificados seus significados originrios: o direito privado

    deixou de ser o mbito da vontade individual e o direito

    pblico no mais se inspira na subordinao do cidado. o fim das dicotomias. Subsistem diferenas, porm elas so

    meramente quantitativas, pois h institutos onde prevalecem os interesses individuais, embora tambm estejam presentes

    interesses da coletividade, e outros institutos onde predominam

    os interesses da sociedade, embora funcionalizados realizao

    dos interesses existenciais dos cidados.

    6. A CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO PRIVADO.

    Como vimos no tpico anterior, no h dvidas de que a

    interveno estatal na atividade econmica e na vida social, a

    partir da implantao do modelo do Welfare State, deixou

    marcas tambm no mundo jurdico, afetando inclusive o direito

    civil. Isso perceptvel em todos os pases que

    experimentaram, em graus de intensidade e em momentos

    histricos diversos, formas de intervencionismo estatal,

    inclusive o Brasil. 27 Konrad Hesse, Derecho Constitucional y Derecho Privado. Madrid: Ed. Civitas,

    1995, p. 78/79. 28 Maria Celina Bodin de Moraes, A caminho de um direito civil constitucional. In: Revista de Direito Civil, n. 65 (1993), p. 26.

  • 208 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    Algumas dessas conseqncias j foram destacadas: uma

    perceptvel publicizao do direito privado, no sentido de que o

    Estado passa a intervir, de forma imperativa, em extensas reas

    que antes eram deixadas ao livre jogo das vontades privadas.

    Parte dessa regulamentao passou a ter tamanha

    importncia que foi elevada dignidade constitucional. Temos,

    ento, o fenmeno da constitucionalizao de certos princpios

    e institutos fundamentais do direito privado, como o caso da

    famlia, da propriedade, da atividade econmica ou seja, passam a estar disciplinados na constituio os princpios

    fundantes dos trs institutos bsicos do direito privado, na

    conhecida concepo dos trs pilares de Jean Carbonnier29

    famlia, propriedade e contrato.

    Uma terceira conseqncia seria a inevitvel

    fragmentao do direito privado, que ser abordado mais

    adiante. De um sistema monoltico, representado pelos cdigos

    totalizantes do sc. XIX (cuja idia, porm, continua viosa

    durante boa parte do sc. XX), passou-se a um polissistema ou

    plurissistema. Ou seja, a matria privada que antes estava

    concentrada nos cdigos civis e comerciais, passaram a ser

    tratadas em leis especiais, naquele fenmeno que foi chamado

    de a era dos estatutos.

    Tambm importante a lio de Pietro Perlingieri,

    segundo o qual o Direito contemporneo, atravs de normas de

    cunho promocional, torna possvel, com os seus instrumentos, a transformao social30. o mesmo mestre italiano quem salienta a obrigao no mais livre escolha imposta aos juristas de levar em considerao a prioridade hierrquica das

    normas constitucionais, sempre que se deva resolver um

    29 Jean Carbonnier, Flexible droit. Pour une sociologie du droit sans rigueur. Trad.

    it.: Flessibile diritto. Per una sociologia del diritto senza rigore. Milano: Dott. A.

    Giuffr, 1997, p. 195 e s. 30 Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil Introduo ao Direito Civil Constitucional [Profili del Diritto Civile], trad. de Maria Cristina De Cicco. Rio de

    Janeiro: Renovar, 1999, p. 3.

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 209

    problema concreto. Alm disso, da concepo unitria de ordenamento jurdico decorre que a soluo de cada controvrsia no mais pode ser encontrada levando em conta

    simplesmente o artigo de lei que parece cont-la e resolv-la,

    mas, antes, luz do inteiro ordenamento jurdico, e, em

    particular, de seus princpios fundamentais, considerados como

    opes de base que o caracterizam31. Alm disso, de notvel valor hermenutico a constatao

    de que a migrao de institutos e princpios do direito privado

    para o texto constitucional acarreta uma mudana de

    perspectiva, pois de modo contrrio ao Cdigo Civil, que conserva os valores da sociedade liberal do Sculo XIX, a

    Constituio projeta e estimula a fundao de uma nova

    sociedade com suas normas programticas32. Isso significa que o valor da segurana, ligada estabilidade das relaes

    jurdicas, que caracterizava as codificaes liberais, deve saber

    transigir com o valor da esperana, ligada transformao do

    existente, em prol de uma nao comprometida com o

    horizonte traado na Carta Maior a criao de uma sociedade, mais justa, livre e solidria, com vida digna para todos, em

    ambiente caracterizado por intenso pluralismo33

    .

    31 Perlingieri, op. cit., p. 5. 32 Francisco Amaral, Racionalidade e sistema no direito civil brasileiro, in Revista de Direito Civil, So Paulo: Ed. Rev. dos Tribunais, 1993, vol. 63, p. 52. 33 Constantemente se acentua que o papel de uma constituio moderna no aquela

    de simplesmente retratar a vontade comum de um povo, expressa pela maioria de

    seus membros, mas principalmente a de garantir os direitos de todos inclusive contra

    a vontade popular. No se trata, assim, de simplesmente expressar uma determinada

    homogeneidade cultural, uma identidade coletiva da nao, ou certa coeso social.

    Trata-se, isso sim, de garantir, por meio dos direitos fundamentais, a convivncia

    pacfica entre sujeitos e interesses diversos e virtualmente em conflito. O

    fundamento de legitimidade de uma constituio, diversamente de quanto ocorre

    com a legislao ordinria ou com as escolhas governamentais, no reside no

    consenso da maioria, repousando, ao contrrio, em um valor superior e mais

    importante: a igualdade de todos nas liberdades fundamentais e nos direitos sociais, ou seja, em direitos vitais conferidos a todos, como limites e vnculos precisamente

    contra leis e atos de governo expressos por maiorias contingentes nesse sentido, por exemplo, Luigi Ferrajoli, Lo Stato di diritto fra passato e futuro, na obra

  • 210 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    coletiva organizada por P. Costa e Danilo Zolo: Lo Stato di diritto Storia, teoria, critica. Milano: G. Feltrinelli Editore, 2002, p. 349-386, p. 375/376. Tambm E.

    Garca de Enterra insiste nesse ponto, ao afirmar que no slo se trata de hacer imposible el retorno a una dictadura que se aproprie del poder de hacer normas y que

    pretenda desde esa apropriacin legitimar su pretensin de obediencia, sino tambin

    de cerrar el paso a una concepcin jacobina, o decisionista-totalitaria, de la

    democracia, que haga de la decisin mayoritaria la suprema y todopoderosa

    instancia del Estado, absoluta y sin limites Reflexiones sobre la Ley y los principios generales del Derecho. Madrid: Ed. Civitas, 1986, p. 104.

    Da mesma forma G. Zagrebelsky aponta para o valor da pluralidade e diversidade,

    ao afirmar que o escopo geral de uma constituio pluralstica a de preservar

    intactas as possibilidades de competio poltica e social, isto , impedir que uma

    maioria eventual venha a impor modelos poltico-culturais com pretenses

    totalizantes, que excluam todos os outros, de forma definitiva. A interpretao

    constitucional, portanto, deve mirar organizao de uma sociedade aberta ao

    conflito, garantindo-se o acesso s partes sem discriminaes ou privilgios -

    Gustavo Zagrebelsky, La giustizia costituzionale. Bologna: Il Mulino, 1988, p. 53.

    Isso no significa, porm, que a constituio no contenha, inelutavelmente,

    consensos mnimos, de forma a expressar certa unidade, pois, como salienta

    Canotilho, historicidade, processo, consenso e compromisso, unidade, abertura e ordem so os topoi com que hoje lida a teoria da constituio, embora a acentuao

    e interdependncia entre eles seja diversamente formulada nas vrias teorias da

    constituio in Constituio Dirigente e Vinculao do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, Limitada, 1994, reimpresso, p. 478.

    Em obra mais recente, Canotilho acentua o valor do pluralismo e da diversidade,

    como sendo os valores tpicos da ps-modernidade. Refere ele que a idia de Drittwirking ou de eficcia direta dos direitos fundamentais na ordem jurdica

    privada continua, de certo modo, o projecto da modernidade: modelar a sociedade

    civil segundo os valores da razo, justia, progresso do Iluminismo. Esse cdigo de

    leitura pergunta-se no estar irremediavelmente comprometido pelas concepes mltiplas e dbeis da ps-modernidade? Mais adiante, torna ele a indagar por que a imperatividade da equal protection clause em vez da singularidade e das diferenas nas relaes humanas, justificativas do triunfo da

    negociao, da flexibilidade, da adaptabilidade e da permissividade? bem de ver

    que estas interrogaes pressupem j um outro mundo: o da absolutizao das

    diferenas e da singularidade, o da complexidade, da indeterminao e do

    relativismo! Numa palavra: o mundo da ps-modernidade Jos J. Gomes Canotilho, Civilizao do direito constitucional ou constitucionalizao do direito civil? A eficcia dos direitos fundamentais na ordem jurdico-civil no contexto do direito ps-moderno, in Eros R. Grau e Willis S. Guerra Filho (org.), Direito Constitucional Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. So Paulo: Malheiros Ed., 2001, p. 108- 115, p. 114.

    Alis, a nfase nas diferenciaes em substituio ao paradigma da igualdade (embora sem negar seu valor) tambm comparece em interessante ensaio do prof. Erik Jayme (Vises para uma teoria ps-moderna do direito comparado, Revista

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 211

    Da constitucionalizao do direito civil decorre a

    migrao, para o mbito privado, de valores34

    constitucionais,

    dentre os quais, como verdadeiro primus inter paris, o

    princpio da dignidade da pessoa humana35

    . Disso deriva, dos Tribunais, v. 759, jan. 1999, p. 24-40) sobre o moderno direito comparado, no

    qual o renomado professor de Heidelberg afirma que enquanto o direito comparado

    tradicional perseguia o objetivo de determinar, de encontrar o que era comum, igual (embora no possamos concordar com essa sua viso demasiadamente estreita e redutiva dos objetivos do direito comparado, viso essa que era compatvel apenas

    com as primeiras fases do direito comparado, do incio do sculo XX ao trmino da

    Segunda Guerra Mundial), o direito comparado ps-moderno , ao contrrio, procura

    o que divide (das Trennende), as diferenas (die Unterschiede) (p. 25), voltando-se para o passageiro. Isto porque a ps-modernidade vive de outros pensamentos. O comum, o igual no ser negado, mas aparece como subsidirio, como menor. A

    identidade cultural do indivduo, como a dos povos, que necessita de ateno. A

    pluralidade reaparece como um valor jurdico; as diferenas entre ordens jurdicas

    passam a ser interessantes (p. 27/28). Tambm no espao jurdico italiano h consenso sobre a nfase na diversidade, no

    pluralismo (e conseqentemente no relativismo), como caractersticas tpicas da ps-

    modernidade, como exemplificativamente se v do ensaio do Prof. Alessio Zaccaria,

    Il diritto privato europeo nellepoca del postmoderno, publicado na Rivista di Diritto Civile, 1997, fasc. 3 (maggio-giugno), p. 367-383, esp. p. 379 s. 34 Sobre a diferena entre princpio e valor, aceitamos o ponto de vista de R. Alexy,

    quando ele os diferencia pelo carter deontolgico do primeiro e axiolgico do

    segundo. Assim, o modelo dos valores reside naquilo que melhor; o modelo dos

    princpios reside naquilo que devido sem esquecer, porm, da possibilidade de se passar de um modelo ao outro, segundo o mesmo Alexy Teora de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, 2001, p.

    147. 35 Em sua tese de doutoramento, Flvia Piovesan refere a tendencial elevao da dignidade humana a pressuposto ineliminvel de todos os constitucionalismos, como um sintoma da emergncia de um Direito Internacional dos Direitos Humanos

    Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4. ed. So Paulo: Max Limonad, 2000, p. 75.

    Densificando um pouco mais tal noo, lembra Ingo Sarlet que se tem como certo

    que uma existncia digna abrange mais do que a mera sobrevivncia fsica, situando-se alm do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, neste sentido, que se

    uma vida sem alternativas no corresponde s exigncias da dignidade humana, a

    vida humana no pode ser reduzida mera existncia Ingo W. Sarlet, A eficcia dos Direitos Fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2003, p. 311.

    Recolhendo o esclio de H. Scholler, esclarece o Prof. Ingo que a dignidade da

    pessoa apenas estar assegurada quando for possvel uma existncia que permita a plena fruio dos direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possvel o

    pleno desenvolvimento da personalidade (op. loc. cit.)

  • 212 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    necessariamente, a chamada repersonalizao do direito civil,

    ou visto de outro modo, a despatrimonializao do direito

    civil. Ou seja, recoloca-se no centro do direito civil o ser

    humano e suas emanaes. O patrimnio deixa de estar no

    centro das preocupaes privatistas (recorde-se que o modelo

    dos cdigos civis modernos, o Code Napoleon, dedica mais de

    80% de seus artigos disciplina jurdica da propriedade e suas

    relaes), sendo substitudo pela considerao com a pessoa

    humana. Da a valorizao, por exemplo, dos direitos de

    personalidade36

    , que o novo Cdigo Civil brasileiro

    emblematicamente regulamenta j nos seus primeiros artigos,

    como a simbolizar uma chave de leitura para todo o restante do

    estatuto civil. Discorrendo sobre o tema, Perlingieri ressalta

    que a transformao despatrimonializadora no Direito Civil se

    produz fundamentalmente como conseqncia do maior relevo

    dado pessoa. Da porque entende ele ser possvel afirmar que

    Em outra obra, tratando especificamente sobre o tema, refere o mestre gacho que

    a dignidade da pessoa humana simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condio

    dplice esta que tambm aponta para uma simultnea dimenso defensiva e

    prestacional da dignidade Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituio Federal de 1988. Porto Alegre: Liv. do Advogado,

    2001, p. 46.

    Tambm Genaro R. Carri, ex-membro da Comisso Interamericana de Direitos

    Humanos e ex-Presidente da Suprema Corte de Justicia de la Nacin Argentina,

    aponta para o dever do Estado de propiciar as condies necessrias para uma vida

    digna, ao referir que la eficaz tutela de los derechos de ese tipo est estrechamente ligada con la posibilidad efectiva de que las comunidades estatales tienen de llevar a

    cabo una accin positiva que ponga a disposicin de cada uno de sus membros

    herramientas de desenvolvimiento individual, material y psquico, que hagan de

    ellos hombres que puedan vivir su vida en plenitud Los derechos humanos y su proteccin. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, s/d, p. 64. 36 Sobre os direitos da personalidade, salienta Franois Rigaux que, diferentemente do direito de propriedade, matriz do conceito de direito subjetivo, ou do direito de

    crdito, diferentemente at mesmo dos direitos intelectuais, que conferem ao seu

    titular prerrogativas precisas, aquilo que chamamos de direito da personalidade ou

    direito ao respeito da vida privada protege um interesse de contornos indistintos,

    variveis segundo as circunstncias La libert de la vie prive, in: Revue Internationale de Droit Compar, 3-1991, p. 539-563, p. 560.

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 213

    interesses e direitos de natureza essencialmente pessoal antepem-se a interesses e direitos patrimoniais, o que supe

    que na hierarquia de valores a pessoa humana prevalece sobre

    o interesse econmico37.

    7. CONTINUAO. O SENTIDO ANTIGO DA

    CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO PRIVADO.

    O fenmeno conhecido como constitucionalizao do

    direito privado pode ser descrito de vrias formas. Sob o ponto

    de vista da cronologia histrica, a poca do liberalismo clssico

    (e com essa expresso pretendemos abranger todas as

    concepes que derivam das ideologias do constitucionalismo

    liberal, do liberalismo poltico e econmico, dos direitos

    humanos de primeira dimenso) coincide substancialmente

    com a poca das grandes codificaes do direito privado do

    sculo XIX. Sob o ponto de vista ideolgico, nesse perodo

    concebiam-se as constituies liberais como verdadeiros

    cdigos do direito pblico (ou seja, diplomas jurdicos que

    buscavam disciplinar a organizao do Estado, a estrutura dos

    poderes, a competncia de seus rgos, bem como algumas

    relaes entre o Estado e seus sditos), ao passo que os cdigos

    privados eram encarados como verdadeiras constituies do

    direito privado (isto , estatutos que disciplinavam as relaes

    jurdicas entre os cidados, com excluso de qualquer

    interveno estatal, especialmente na rea econmica, regida

    que era pela autonomia da vontade e pela concepo

    individualista de propriedade privada)38

    .

    37 Pietro Perlingieri, no Editoriale do primeiro nmero da revista por ele dirigida,

    Rassegna di Diritto Civile, 1983, n. 1, p. 2. 38 Havia, porm, um denominador comum a essas duas regulamentaes jurdicas tratava-se da concepo legalista e escritural do Direito, segundo a perspicaz observao de Nelson Saldanha in Conceituaes do Direito: tendncia privatizante e tendncia publicizante, Revista de Direito Pblico, vol. 81 (jan.-maro de 1987), p. 78 - So Paulo: Revista dos Tribunais.

  • 214 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    Em suma, os cdigos eram vistos como uma espcie de

    barreira ao Estado, concebidos como sendo a disciplina jurdica

    das relaes intersubjetivas privadas, imunes interveno do

    Estado. As normas constitucionais daquele perodo ocupavam-

    se das relaes privadas apenas para tutelar a autonomia

    privada relativamente a possveis interferncias estatais,

    proclamando, por exemplo, a inviolabilidade da propriedade

    (art. 17 da Declarao francesa dos direitos do homem e do

    cidado, de 1789; art. 1, n. 2, art.2 e art. 16 da Constituio

    francesa do ano I [1793] ; art. 29 do Statuto Albertino39), ou garantindo o direito de propriedade em toda a sua plenitude

    (como proclamado nas duas primeiras constituies brasileiras:

    a imperial, de 1824, art. 179, n. 22, e a republicana, de 1891,

    art. 72, 17).

    Nesse perodo, o direito civil e o direito constitucional

    seguiam caminhos separados, cada um com seu prprio mbito

    de incidncia.

    Afora garantir genericamente o direito de propriedade, as

    constituies desse perodo substancialmente no forneciam

    princpios para a disciplina das relaes jurdicas privadas. Tais

    constituies, por no serem rgidas, podiam ser alteradas com

    certa facilidade. Alguns pases, como a Frana, tiveram

    incontveis constituies ao longo de sua histria40

    . Da a razo

    39 Statuto Albertino era o nome com que era conhecida a constituio flexvel do

    Reino do Piemonte, de 1848, que se tornou a primeira constituio italiana aps a

    unificao da Itlia, em 1861, tendo vigorado at o advento da constituio

    republicana de 1947. 40 Somente no seu primeiro ciclo revolucionrio, de 1789 a 1814, os franceses

    tiveram seis constituies: em 1791, em 1793, em 1795, em 1799, em 1802 e 1804.

    Nos ciclos posteriores prossegue a valsa das constituies, na expresso de Maurice Duverger (Les constitutions de la France, trad. it. Le constizioni della

    Francia, Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1984, p. 45 s.), com as constituies

    de 1814, 1830, 1848, 1852, 1870. Um perodo estvel se obtm somente com a

    Terceira Repblica, inaugurada em 1870, que fornece ao pas a constituio de 1875.

    Embora permanea em vigor at 1946, ela sofre alteraes informais, introduzidas

    por novos costumes constitucionais (interessante, a esse respeito, o tpico de

    Duverger sobre as transformaes consuetudinrias da constituio de 1875 op.

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 215

    pela qual o Code Civil sempre foi tido como um monumento de

    estabilidade (e longevidade, pois vigora ininterruptamente h

    mais de duzentos anos!), como a simbolizar a firme

    permanncia da sociedade civil e das relaes intersubjetivas,

    diante da inconstncia das relaes polticas. tambm bvio

    que, no caso francs, a ausncia de um verdadeiro controle de

    constitucionalidade41

    contribuiu enormemente para o histrico

    isolamento do direito constitucional francs, que assim deixou

    de irradiar sua eficcia conformadora sobre os demais ramos

    do direito, inclusive o privado.

    Como as constituies liberais, flexveis, no possuam

    eficcia vinculante frente ao legislador ordinrio, no somente

    no tinham elas fora para provocar ou programar

    modificaes futuras no mbito do direito privado, como

    tambm no eram capazes de desempenhar uma funo

    protetiva do direito privado existente. Em outras palavras, eram

    documentos de acentuada natureza poltica, sem fora jurdica

    para garantir a conservao do existente nem para impulsionar

    cit., p. 102s.). A constituio da Quarta Repblica, de 1946, vigora somente at

    1958, com a supervenincia da Quinta Repblica e a constituio gaullista de 1958,

    ainda em vigor, embora emendada vrias vezes. 41 Lembre-se que o controle de constitucionalidade francs peculiar e nico,

    possuindo natureza mais poltica do que jurdica. De fato, segundo a originria

    concepo e regulamentao legislativa, o Conseil Constitutionnel, que no integra a

    estrutura do Poder Judicirio, somente poderia ser ativado por provocao dos

    rgos de cpula dos outros dois poderes, durante o perodo compreendido entre a

    aprovao do projeto de lei pelo Parlamento e a sua promulgao pelo Executivo.

    Entendendo o Conselho Constitucional no estar a lei (ainda no promulgada) em

    conformidade com a Constituio, o projeto de lei retorna ao Parlamento para que

    sejam feitas as alteraes necessrias para evitar a mcula de inconstitucionalidade.

    Porm, aps a promulgao da lei pelo Presidente da Repblica (quer por ter

    passado pelo crivo do Conselho Constitucional, quer por no ter sido submetido a

    ele como ocorre na esmagadora maioria dos casos) ningum mais poderia argir a inconstitucionalidade da lei ou deixar de aplic-la sob tal pretexto.

    Em 1 de maro de 2010, porm, entraram em vigor alteraes legislativas

    (constitucionais e ordinrias) que permitiram que os Tribunais Superiores (Cour de

    Cassassion, na sistema de justia ordinria, e Conseil dEtat, no mbito da justia administrativa) possam igualmente provocar o Conseil Constitutionnel para que se

    manifeste sobre dvidas de constitucionalidade de alguma norma legal.

  • 216 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    a conformao do futuro, no mbito das relaes privadas.

    Quanto funo de garantia, no era ela necessria, j que os

    princpios bsicos do direito privado no corriam nenhum

    perigo. Na verdade, como j salientado, eram os prprios

    cdigos civis que exerciam a funo de verdadeiras

    constituies no mbito das relaes jurdicas privadas.

    Protegendo o direito de propriedade e a autonomia privada

    como verdadeiros direitos fundamentais, em forma quase que

    absoluta, o direito civil garantia o existente e a estabilidade das

    relaes sociais. O direito civil, nascido margem do Estado,

    apresentava-se como o verdadeiro baluarte da liberdade

    burguesa, uma liberdade apoltica, que permitia aos

    particulares dispor de um espao prprio, sem intromisses do

    Estado. Da a funo constitutiva do direito privado, diante do

    qual o direito constitucional possua uma importncia

    secundria.

    8. CONTINUAO. O SENTIDO MODERNO DA

    CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO PRIVADO.

    Em sentido mais moderno, pode-se encarar o fenmeno

    da constitucionalizao do direito privado sob dois enfoques.

    No primeiro deles, trata-se da descrio do fato de que vrios

    institutos que tipicamente eram tratados apenas nos cdigos

    privados (famlia, propriedade, etc.) passaram a serem

    disciplinados tambm nas constituies contemporneas42

    ,

    42 Nessa primeira acepo encontramos estudos j na dcada de trinta do sculo XX,

    como por exemplo os ensaios dos grandes civilistas espanhis Castn Tobeas e

    Federico de Castro, os quais em 1933 e 1935, respectivamente, publicaram trabalhos

    a respeito (denominados, respectivamente, Nota bibliogrfica a la obra de Battl y Vzquez, M.: Repercusiones de la Constitucin en el Derecho privado, e El Derecho civil y la Constitucin) na Revista de Derecho Privado, n. 237 (1933), p. 189 s., e n. 257 (1935), p. 3 s. Entre ns, tambm em 1935 Clvis Bevilaqua

    publicou um ensaio denominado A Constituio e o Cdigo Civil, inserido na Revista dos Tribunais, v. 97, n. 34, p. 31-38 (set. 1935), onde analisa (embora sem

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 217

    alm de outros institutos que costumavam ser confinados a

    diplomas penais ou processuais. o fenmeno chamado por

    alguns doutrinadores de relevncia constitucional das relaes

    privadas43

    . E aqui os exemplos so mltiplos nas constituies

    sociais modernas, como tambm na nossa carta constitucional.

    Sem pretender ser exaustivo, pode-se destacar, sob a tica

    enfocada, a proclamao, pelo constituinte, da liberdade de

    constituir associaes e cooperativas (art. 5, inc. XVII a XX),

    da legitimidade representativa das entidades associativas (art.

    5, inc. XXI), da liberdade de associao profissional ou

    sindical (art. 8), da impenhorabilidade da pequena

    propriedade rural (art. 5, inc. XXVI), dos direitos autorais

    (art. 5, inc. XXVII e XXVIII), da propriedade industrial (art.

    5, inc. XXIX), do direito herana (art. 5, inc. XXX), da

    necessidade de defesa do consumidor (art. 5, inc. XXXII, art.

    170, V, art. 48 do ADCT), da limitao da responsabilidade

    civil ex delicto dos sucessores (art. 5, inc. XLV), a garantia do

    devido processo legal (art. 5, inc. LIV e LV), da vedao de

    provas ilcitas (art. 5, inc. LVI), da admisso de ao penal

    privada, subsidiria da ao penal pblica (art. 5, inc. LIX),

    da indenizabilidade por erro judicirio (art. 5, inc. LXXV), da

    gratuidade de registro de nascimento e bito (art. 5, inc.

    LXXVI), dos direitos dos trabalhadores (art. 7 e seus incisos),

    da dignidade da pessoa humana e do valor da justia social

    como princpios informadores de toda a ordem econmica, o

    que abrange tambm toda a atividade negocial privada (art.

    170, caput), da necessidade de proteo das microempresas e

    empresas de pequeno porte (art. 170, inc. IX e art. 179), da

    funo social da propriedade urbana (art. 182, 2), da

    usucapio urbana (art. 183), da usucapio rural (art. 191), do

    pluralismo da noo de famlia (art. 226, 3 e 4), do livre maior aprofundamento) os institutos de direito civil que foram inseridos na Carta

    Magna de 1934. 43 Nesse sentido, Guido Alpa, Introduzione allo studio critico del diritto privato.

    Torino: G. Giappichelli Editore, 1994, p. 8.

  • 218 | RIDB, Ano 1 (2012), n 1

    planejamento familiar, fundado nos princpios da dignidade da

    pessoa humana e da paternidade responsvel (art. 226, 7),

    da proteo absolutamente prioritria devida criana e ao

    adolescente, em todas as suas dimenses existenciais (art. 227),

    da absoluta igualdade entre filhos de qualquer natureza,

    vedando-se peremptoriamente qualquer discriminao a

    respeito (art. 227, 6), da necessidade de proteo aos idosos

    (arts. 229 e 230).

    Numa segunda acepo, que costuma ser indicada com a

    expresso constitucionalizao do direito civil, o fenmeno

    vem sendo objeto de pesquisa e discusso apenas em tempos

    mais recentes, estando ligado s aquisies culturais da

    hermenutica contempornea, tais como a fora normativa dos

    princpios, distino entre princpios e regras, interpretao

    conforme a constituio, etc.

    Esse segundo aspecto mais amplo do que o primeiro,

    pois implica analisar as conseqncias, no mbito do direito

    privado, de determinados princpios constitucionais,

    especialmente na rea dos direitos fundamentais44

    , individuais

    e sociais. Assim, o fenmeno pode ser compreendido sob

    determinada tica hermenutica, aquela da interpretao

    conforme a constituio45

    . 44 Como afirma R. Alexy, os direitos fundamentais so substancialmente direitos do homem transformados em direito positivo. Tais direitos exigem a sua

    institucionalizao. Se existem direitos do homem, no h somente um direito

    vida, mas tambm um direito do homem a um Estado que realize este direito. E a

    institucionalizao inclui necessariamente a sua acionalibilidade (ou, como ultimamente se tem denominado, sob a influncia da nomemclatura norte-americana,

    sua justiciabilidade) Robert Alexy, Kollision und Abwgung als Grundprobleme der Grundrechtsdogmatik (Coliso e balanceamento como problema de base da dogmtica dos direitos fundamentais), in: Massimo La Torre e Antonino Spadaro (org.): La ragionevolezza nel diritto. Torino, G. giappichelli Editore, 2002, p. 27-

    44, p. 35/36. 45 A interpretao conforme a constituio (Verfassungskonforme Auslegung)

    diferencia-se da interpretao tradicional, pelo fato de que esta, nas suas vrias

    formas - gramatical, histrica , lgica, sistemtica, teleolgica -, define o contedo

    da lei a partir dela prpria, ao passo que na interpretao conforme, a lei deve ser

    interpretada conformemente constituio, por meio de um procedimento

  • RIDB, Ano 1 (2012), n 1 | 219

    Lus Roberto Barroso refere que a idia de hermenutico escalonado hierarquicamente. Tal percepo insere-se na viso

    kelseniana de estrutura gradualista e piramidal da ordem jurdica, uma de cujas

    conseqncias justamente aquela que uma norma de nvel inferior no pode ser

    interpretada de modo que contrarie a norma de nvel superior, j que a norma

    inferior, embora crie novo direito, desenvolvendo os germens j contidos na norma

    superior, necessariamente tambm uma aplicao da norma hierarquicamente

    superior.

    O princpio hermenutico da interpretao conforme a Constituio, originado e

    desenvolvido na Alemanha, significa, na formulao do Bundesverfassungsgericht,

    que uma lei no deve ser declarada nula, sempre que puder ser interpretada de

    maneira congruente com a constituio BverfGE 2, 266 (282) apud Wilson Antnio Steinmetz, Coliso de Direitos Fundamentais e princpio da

    proporcionalidade. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2001, p. 99.

    Na viso de E. Garca de Enterra, a supremacia da constituio sobre todas as

    normas e o seu carter central na construo e na validade do ordenamento jurdico

    em seu conjunto, obrigam o intrprete a levar isso em considerao em qualquer

    momento da sua aplicao seja pelos operadores pblicos ou privados, seja da parte dos tribunais ou dos rgos legislativos ou administrativos quer quando haja provises especficas sobre a matria de que se trata, quer quando o resultado

    hermenutico possa ser buscado apenas com base em disposies principiolgicas.

    Isso seria uma conseqncia derivada do carter normativo da constituio e do seu

    nvel supremo. Da porque nos Estados Unidos se diz que todas as leis e todos os atos da administrao pblica devam ser interpretados em harmony with the

    Constitution, ao passo que na Alemanha o mesmo postulado impe die

    Verfassungskonforme Auslegung von Gesetzen, interpretao das leis

    conformemente constituio. Em ambos os casos, como praticamente em todos os

    pases dotados de uma justia constitucional, o princpio de formulao

    jurisprudencial Eduardo Garca de Enterra, La costituzione come norma giuridica, in: E. Garca de Enterra e Alberto Predieri (org.), La Costituzione Spagnola del 1978. Milano: Giuffr, 1982, p. 71-131, pp. 116/117.

    A discusso hoje mais interessante a respeito da Verfassungskonforme Auslegung

    diz respeito aos seus limites, considerando aquilo que os norte-americanos

    denominam de counter-majoritarian dilemma, no mbito da discusso sobre o

    suposto dficit democrtico do Judicirio para a construo do direito. De fato, se a

    interpretao conforme a constituio busca salvar a norma (funo de conservao), evitando o reconheci