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Sistema Acusatório A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais

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Sistema Acusatório A Conformidade Constitucional

das Leis Processuais Penais

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EDITORA LUMEN JURIS

EDITORES

João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

CONSELHO EDITORIAL Alexandre Freitas Câmara Antonio Becker Augusto Zimmermann Eugênio Rosa Firly Nascimento Filho Geraldo L. M. Prado J. M. Leoni Lopes de Oliveira Letácio Jansen Manoel Messias Peixinho Marcello Ciotola Marcos Juruena Villela Souto Paulo de Bessa Antunes

CONSELHO CONSULTIVO Álvaro Mayrink da Costa Aurélio Wander Bastos Cinthia Robert Elida Séguin Gisele Cittadino Humberto Dalla Bernardina de Pinho José dos Santos Carvalho Filho José Fernando C. Farias José Maria Pinheiro Madeira José Ribas Vieira Marcellus Polastri Lima Omar Gama Ben Kauss Sergio Demoro Hamilton

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GERALDO PRADO

Sistema Acusatório A Conformidade Constitucional

das Leis Processuais Penais

3a Edição

EDITORA LUMEN JURIS Rio de Janeiro

2005

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Copyright © 2005 Geraldo Prado

SUPERVISÃO EDITORIAL Antonio Becker

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Maanaim Informática Ltda.

Telefone: (21) 2242-4017

CAPA Márcia Campos

A EDITORA LUMEN JURIS

não aprova ou reprova as opiniões emitidas nesta obra, as quais são de responsabilidade exclusiva do seu Autor.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características

gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei no

6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei no 9.610/98).

ISBN 85-7387-029-X

Todos os direitos reservados à

Editora Lumen Juris Ltda. www.lumenjuris.com.br

Rua da Assembléia, 10 grupo 2.023 Telefone (21) 2531-2199

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Impresso no Brasil Printed in Brazil

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―O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso‖.

Para Giselle, com amor.

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Sumário

APRESENTAÇÃO .......................................................................

PREFÁCIO..................................................................................

NOTA DO AUTOR À 1ª EDIÇÃO ................................................

NOTA DO AUTOR À 2ª EDIÇÃO ...............................................

NOTA DO AUTOR À 3ª EDIÇÃO ...............................................

1. INTRODUÇÃO ........................................................................ 2. -O DIREITO PROCESSUAL PENAL E A CONFORMIDADE CONSTITUCIONAL .................................................................... 2.1. Introdução .......................................................................... 2.2. Fontes e Antecedentes dos Direitos Fundamentais ........ 2.3. Direito, Processo e Democracia ........................................ 2.4. Constituição e Processo Penal .......................................... 2.5. Sistema e Princípios: Uma Aproximação Tipológica ...... 3. SISTEMAS PROCESSUAIS ..................................................... 3.1. Histórico: método aplicado ao objeto. Um acerto semântico

3.1.1. Situação na Antigüidade ............................................ 3.1.2. Direito Medieval e da Época Moderna ..................... 3.1.3. O Common Law ........................................................ 3.1.4. O Direito da Época Contemporânea ........................

3.2. Características do Sistema Acusatório ............................. 3.2.1. Princípio e Sistema Acusatório: Diferenciação........ 3.2.2. Características do Princípio Acusatório ..................

3.2.2.1. Da Perspectiva Estática do Processo: Poderes, Deveres, Direitos, Ônus e Faculdades dos Sujeitos Processuais............................................. I. Do Juiz ..................................................................... II. Da Acusação ........................................................... III. Da Defesa ..............................................................

3.2.2.2. Da Perspectiva Dinâmica do Processo: Da Atuação dos Sujeitos Processuais ........................ I. O Estatuto da Defesa em Movimento: O

Conflito entre os Interesses do Defensor

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e do Acusado e o Limite às Soluções de Consenso .................................................................

II. O Estatuto da Acusação em Movimento: A Oportunidade Regulada na Ação Pública e a Vedação Ordinária à Investigação Direta .............

A. A Oportunidade Regulada na Ação Pública .. B. A Vedação Ordinária à Investigação Direta ..

III. O Estatuto do Juiz em Movimento: Livre Convencimento e os Poderes de Investigação do Juiz — A Mutatio Libelli ...................................

A. Livre Convencimento e os Poderes de Investigação do Juiz ........................................

A.1. Do livre convencimento e a confissão do acusado — soluções consensuais ...............................................

A.2. Das Provas Legais Negativas ............... B. Alteração dos Fatos ........................................

3.2.3. Características do Sistema Acusatório ..................... 3.2.3.1. Da Oralidade ...................................................... 3.2.3.2. Da Publicidade ...................................................

I. Da Publicidade Tradicional .................................... II. Dos Juízos Paralelos da Imprensa ........................

3.2.4. A Título de Conclusão ............................................... 4. A ELEIÇÃO CONSTITUCIONAL DO SISTEMA ACUSATÓRIO 4.1. Breve Histórico do Processo Penal Brasileiro .................. 4.2. Características do Sistema Processual Brasileiro ............ 5. -O SISTEMA ACUSATÓRIO E A LEGISLAÇÃO PROCESSUAL POSTERIOR À CONSTITUIÇÃO ................................................. 5.1. A Lei de Controle do Crime Organizado e a Lei das

Interceptações Telefônicas ................................................. 5.2. A Lei dos Juizados Especiais ............................................

5.2.1. Da Transação Penal .................................................... 5.2.2. Da Suspensão Condicional do Processo ...................

5.2.2.1. Da Natureza Jurídica (Primeira Parte) ............. 5.2.2.2. Da Natureza Jurídica (Segunda Parte)............. 5.2.2.3. Da Natureza Jurídica (Terceira Parte) .............

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6. A EXECUÇÃO PENAL E O SISTEMA ACUSATÓRIO ........... 7. CONCLUSÃO ......................................................................... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................. ANEXO: Da Lei de Controle do Crime Organizado: crítica às

técnicas de infiltração e escuta ambiental.................

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Apresentação

Há boas razões para festejar o lançamento deste livro.

Em primeiro lugar, ele se inscreve afirmativamente na militante produção teórica através da qual os juristas brasileiros efetivamente comprometidos com o estado de direito democrático, vencendo a perplexidade pela crítica, resistem à desafortunada conjuntura político-criminal que a implantação do projeto neoliberal estabelece entre nós.

Em segundo lugar, ele se incorpora a um renascimento dos estudos processuais penais no Rio de Janeiro. Com efeito, e sem embargo de valiosas contribuições individuais que mantiveram aceso o fogo votivo, o processo penal — a gata borralheira que Carnelutti entreviu humilhada entre suas irmãs, o direito penal e o processo civil — não atraiu em terras cariocas, logo após a Constituição, o interesse imediato dos jovens juristas, com o entusiasmo e a intensidade que, por exemplo, observou-se em São Paulo. Hoje, constata-se que a gata borralheira vem sendo aqui perfilhada por inúmeras e capacitadas vocações acadêmicas.

Em terceiro lugar, o livro merece ser festejado por seu próprio conteúdo e método; ia escrever caráter. Sim, é de caráter que se fala quando a investigação define claramente seu marco teórico, e a ele guarda fidelidade em todos os seus passos. Sob a generosa influência do pensamento ferrajoliano, Geraldo Prado se filia ao garantismo, e a partir daí pode questionar tanto a legitimidade do decisionismo judicial, este fâmulo de chapa-branca do eficientismo penal, quanto a lenda da verdade real, cuja overdose costuma despertar o inquisidor que ainda dormita sob a toga de tantos magistrados.

Não opera o Autor, contudo, com um garantismo de fachada, conceitualmente reconstruído a partir da sonolência dogmática. Nas fundações constitucionais do processo penal, descarta os pilares puramente ideológicos de ―uma

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democracia qualquer, fulcrada na mera declaração formal de respeito aos direitos fundamentais‖, e busca a referência de uma ―real democracia participativa, integradora e solidária‖; interessa-lhe, portanto, a prática e o discurso dos operadores político-jurídicos que, na (des)proteção daqueles direitos fundamentais, se comprazem com ―sua positivação‖, atuando ―precisamente sem implementá-los (às vezes mesmo negando-os)‖. Não por acaso, a história dos sistemas processuais ocupa um precioso capítulo.

No eixo da investigação está o princípio acusatório, com todas as suas múltiplas consequências, que vão das provas até a sentença, resultante final das equilibradas e sincrônicas contribuições do autor da ação penal, do réu e do juiz. Num escrito admirável, no qual preconiza o retorno a uma concepção substancialmente jurisdicional — e não meramente instrumental — do processo penal, Gaetano Foschini recusava ―a tradição que restringe o ofício judiciário apenas ao juiz ou, pior ainda, ao juiz e ao ministério público, numa autoritária contraposição ao réu e a seu defensor‖. Este é o tema central que Geraldo Prado, com argúcia e probidade intelectual, retoma e estuda a partir do quadro normativo e das práticas judiciais brasileiras.

Apesar de clara opção constitucional, ainda estamos distantes de uma acusatoriedade máxima, assinala lisamente o Autor. Não só no campo do processo penal, vivemos a contradição entre um texto constitucional democrático formal e procedimentos reais que respiram a cultura discriminatória, racista e exterminadora da característica de nossa formação social. O projeto neoliberal requer um sistema penal capilarmente repressivo, para o controle dos contingentes humanos que ele mesmo massivamente marginaliza. A legitimação dessa repressividade tem nos métodos investigatórios arbitrários e invasivos um ingrediente estratégico, como se pode ver nos meios de comunicação ou na indústria cultural do crime. A pesquisa do ―ponto diabólico‖, continua seduzindo a alma ocidental, e um bom inquisidor — seja este Kenneth Star das manchetes obscenas, seja aquele juiz-verdugo do

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seriado Justiça Final — alcança em segundos a fama que Nicolau Eymerich angariou em séculos.

Na eleição de seu objeto, todo pesquisador se revela de corpo e alma e, portanto, cabe, por fim, festejar que Geraldo Prado ofereça ao juristas brasileiros a oportunidade de refletir, nesses tempos difíceis, sobre o princípio acusatório e as múltiplas opressões que, no espaço processual, decorrem de sua violação.

Nilo Batista

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Prefácio

Em boa hora, o amigo Geraldo Prado publica sua

excelente dissertação de mestrado, onde estuda profundamente a estrutura acusatória do processo penal. Talvez em razão da ―inflação legislativa‖ dos últimos anos, muitos importantes autores de Direito Penal e Processual Penal têm se limitado à produção de obras de cunho meramente exegético, procurando, já num primeiro momento, dizer qual a melhor interpretação para este ou aquele novo dispositivo legal.

Na verdade, esta década não tem sido muito fértil para a doutrina penal e processual penal no Brasil, fazendo-nos lembrar a ultrapassada época do procedimentalismo. Principalmente no processo penal, sentimos falta de novas obras de cunho mais sistemático, doutrinário e, especialmente, crítico. Parece que o livro de Geraldo Prado rompe com este ciclo e nos apresenta trabalho acadêmico do mais alto valor científico.

Consoante o leitor comprovará, cuida-se de uma monografia que, praticamente, esgota o tema pesquisado. Restou demonstrada a excelência do sistema acusatório moderno, que consegue criar condições que preservam a imparcialidade do juiz sem prejuízo do caráter publicístico do processo penal, como instrumento da atividade jurisdicional do Estado. As características deste processo e os princípios que o fundamentam são estudados de forma densa e moderna, buscando-se sempre uma interpretação que incorpore os valores que se possa extrair do nosso sistema constitucional. O chamado Juizado de Instrução não tem guarida em nosso sistema constitucional.

Desta forma, Geraldo Prado critica vários diplomas recentes que se apresentam em descompasso com as premissas teóricas que são estabelecidas durante o desenvolvimento do trabalho. Faz uma verdadeira ―filtragem constitucional‖ das novas leis que regulam matéria

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processual penal. Já na leitura dos originais dos primeiros capítulos desta excelente dissertação de mestrado, percebi que seria produzida uma obra importante para a compreensão de nosso sistema processual penal. Sua leitura se apresenta útil não só para os estudantes, mas também para os especialistas da matéria. Muito lucrei em lê-la, por isso ouso recomendá-la.

Por derradeiro, quero dizer que fiquei honrado com o convite de Geraldo Prado para ser o prefaciador de mais um de seus livros. Cuida-se hoje de magistrado criminal que, novo ainda, já ingressava no Ministério Público, sempre através de disputados concursos públicos. Professor já experiente, Geraldo Prado tem se salientado como conferencista admirado. Assim, esta minha tarefa somente se justifica em razão de ter começado primeiro, já que possuidor de mais idade. Temos muitos pontos em comum, inclusive na forma de pensar o Direito e a sociedade em geral. Invocando o direito de resposta para que o leitor possa, desde logo, perceber quem é Geraldo Prado, quero publicamente rebater ―ofensa‖ que recentemente ele me fez, chamando-me afetivamente de ―conservador‖, após painel de que participamos na Escola da Magistratura do RJ. Em verdade, Geraldo e eu desenvolvemos uma visão crítica em face do ―sistema penal‖, apenas me afasto um pouco de seu pensamento mais liberal na medida em que, ideologicamente socialista, caminho na direção do chamado ―uso alternativo do Direito‖. Sem me afastar da perspectiva ―garantista‖, percebo a dimensão política do ―sistema penal‖ e quero usá-lo também politicamente na busca do socialmente justo. Julgo, entretanto, que os nossos caminhos chegam ao mesmo lugar, vale dizer, a busca de uma sociedade e, por consegüinte, de um Direito radicalmente democrático.

E isto está retratado no livro que o afortunado leitor ora começa a ler.

Rio de Janeiro, outubro de 1998

Afrânio Silva Jardim

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Nota do Autor à 1ª Edição A primeira reação dos operadores jurídicos, logo em

seguida à edição de uma lei processual penal, consiste em examinar-lhe a conformidade constitucional, investigando as concordâncias e harmonias entre seus sentidos e formas e os princípios e normas que constituem o ponto mais alto do ordenamento jurídico.

Concluída a tarefa de exame da constitucionalidade do novo diploma, passam os operadores à pesquisa da concordância com o sistema. Diz-se de uma lei processual penal que ela pode estar de acordo ou divorciada do sistema processual no qual, inserida, está destinada a atuar.

Articular a conformidade constitucional com a simetria do sistema processual penal, em face do fundo cultural sobre o qual se erguem ambos os valores, é a pretensão deste trabalho. A hipótese sobre a qual se baseia a obra pressupõe a tensão real entre normatividade e facticidade do sistema jurídico processual penal, em virtude da qual são perceptíveis dimensões reais e contraditórias de atuação de atores e funcionamento de instituições, cujo fim consiste na adjudicação de soluções tanto quanto possível legítimas aos conflitos de interesses travados no ambiente do direito penal.

O perímetro traçado, porém, não exaure todas as possíveis faces da aproximação constituição—sistema, mas se inclina, tão-somente, ao exame dos laços entre a Constituição e o Processo Penal, naquilo que resume a sua vocação comum, isto é, o equilíbrio no exercício do Poder e a tutela de direitos e garantias indispensáveis à consideração da dignidade do ser humano. Alinha estas duas grandes vertentes — direitos fundamentais e princípio da separação dos poderes — à vista da conformação de um processo penal inspirado no princípio democrático, fundado na soberania popular e na legitimidade não só das instituições como dos

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procedimentos eleitos, em virtude do que, no seu aspecto mais doloroso, qual seja, o do processo penal condenatório, sustenta-se como única estrutura condizente àquela pertinente ao sistema acusatório.

A afirmação da eleição constitucional do sistema acusatório, contudo, não é suficiente, haja vista a polissemia que envolve a expressão e os limites mais ou menos estreitos que se verificam na prática, determinados pela herança histórica romano-canônica.

Por essa razão, o trabalho evoluiu em direção ao estudo do encadear histórico dos sistemas processuais, a validade constitucional deles a partir de considerações de um sistema geral de garantias, e à definição dos seus elementos essenciais, concluindo, no tocante ao sistema acusatório, que a sua base está fincada sobre um princípio do qual recebe a designação e que representa o mínimo redutor, na linha perspectivada na obra, passível de engendrar a ligação entre o modelo normativo de processo penal e o modelo democrático de Estado e sociedade. As expectativas de uma confluência ideal entre o sistema processual preconizado e aquele efetivamente adotado, pelo primado do direito, ou, em outras palavras, pela crença no primado do Estado de Direito — Estado Constitucional Democrático — está em que, como salienta Habermas, o direito extrai a sua força muito mais da aliança que a positividade do direito estabelece com a pretensão à legitimidade,1 mas pode muito bem, havemos de recear, conferir aparência de legitimidade ao poder ilegítimo.

Portanto, compreender a peculiar realidade do processo penal brasileiro, que, a par das influências externas, diz muito do jeito de um povo ser e estar no mundo e de projetar valores e expectativas, como afirmam os portugueses, é o resultado natural do desenvolvimento do estudo, sem perder de vista, todavia, a noção exata das relações que vão se estabelecendo entre a promessa de democracia, inclusive no

1 Habermas, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Rio

de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 60.

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processo, elaborada pelos constituintes de 1988 e a visão da persecução penal entranhada na alma da maioria dos operadores jurídicos. Essa é a razão de compararmos as conclusões que nos pareceram naturais, sobre o modo como se expressa a fidelidade ao princípio e ao sistema acusatórios e a forma pela qual, principalmente, os dois mais expressivos tribunais do país, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, e o Superior Tribunal de Justiça, enfrentam a questão, ainda que de maneira discreta se comparados a tribunais de outros lugares, como é o caso dos espanhóis, norte-americanos e alemães.

De tudo restava, por derradeiro, afastarmo-nos do leito do processo penal ordinário e, com o instrumental técnico deduzido ao longo da obra, a consciência da relevância das inclinações culturais e a crença nas promessas constitucionais, comparar recentes disposições especiais do Processo Penal, nascidas para cuidar de manifestações diferentes da criminalidade, com o princípio e o sistema acusatórios.

O resultado, a nosso juízo, exprime o reconhecimento de que há grandes espaços a percorrer, muita disposição cultural estranha à Constituição a ser enfrentada e um aparente sistema acusatório operando, aguardando o esforço da doutrina e da jurisprudência para vencer esta etapa e transformar-se em um sistema acusatório real, capaz de articular segurança e direitos fundamentais, controle social e dignidade humana.

Quero expressamente agradecer a Afrânio Silva Jardim pela oportunidade de desfrutar de sua amável e profícua companhia intelectual na composição da dissertação de mestrado que deu origem ao livro. Dos eventuais acertos o crédito, por justiça, pertence ao excepcional processualista e amigo. Agradeço também, expressamente, aos juristas Luiz Flávio Gomes e Alberto Silva Franco pelas oportunas indicações bibliográficas; a Weber Martins Batista, este por haver despertado em mim, com suas aulas inesquecíveis, a paixão pelo estudo do Processo Penal; e ao corpo docente do curso de mestrado em Direito da Universidade Gama Filho.

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Dedico o trabalho aos estagiários da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro — EMERJ, onde certamente aprendo mais do que ensino, aos estudantes dos cursos de graduação em Direito das Universidades Gama Filho e Veiga de Almeida, aos queridos advogados Marcia Dinis, Carlos Roberto Barbosa Moreira, Ilídio Moura, Luiz Guilherme Martins Vieira e José Miranda de Siqueira, a meus filhos, Gabriela e Felipe, e meus pais, todos cotidianos habitantes do meu coração. Por fim, mas não por último, agradeço à paciente Emília, da Universidade Gama Filho, às funcionárias da biblioteca do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e aos companheiros do Instituto Carioca de Criminologia e do Fórum de Execuções Penais da EMERJ.

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Nota do Autor à 2ª Edição Certamente distante de ter conseguido realizar o

propósito anunciado na primeira edição, de submeter ao teste de conformidade ao sistema acusatório parte da legislação processual penal brasileira, apresento esta segunda edição.

Os leitores logo perceberão que se trata de trabalho modificado e acrescido, com ênfase especial às questões que atormentam o profissional do direito em seu cotidiano. Os acréscimos não afetam seu conteúdo original — e as idéias que sigo defendendo — ou perturbam sua forma acadêmica. Pelo contrário, marcam a aliança que reputo indispensável entre teoria e prática, a fim de demonstrar que o mito, fraco em todos os sentidos, de que há um abismo entre a academia e o foro, nada mais é do que posição ideologicamente orientada no campo do processo penal a fomentar a descrença na validade das garantias fundamentais conquistadas e mantidas a duras penas por nossos antepassados.

Insisto em reafirmar os postulados do Garantismo, muito embora reconheça, em trabalhos mais recentes, a necessidade de pensar uma teoria do processo penal voltada à realidade brasileira e latino-americana. As linhas mestras dos princípios liberais dos séculos XVIII e XIX, na Europa Ocidental, não devem ser abandonadas. Porém, a articulação das garantias aos projetos de emancipação das sociedades periféricas certamente não poderá ter lugar sem adaptações e sem o reconhecimento das peculiaridades das nossas sociedades no tabuleiro pós-moderno imposto no jogo (jugo?) da globalização.

O Garantismo não é uma religião e seus defensores não são profetas ou pregadores utópicos. Trata-se de um sistema incompleto e nem sempre harmônico, mas sua principal virtude consiste em reivindicar uma renovada racionalidade,

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baseada em procedimentos que têm em vista o objetivo de conter os abusos do poder e criar condições para que este mesmo poder possa integrar as pessoas, eliminando dentro do possível todas as formas de discriminação.

Na era pós-moderna, o processo penal vai cada vez mais assumindo posturas pré-modernas e, por essa razão, a análise crítica das categorias processuais é indispensável. Este continua sendo o meu objetivo.

Em vista disso, aceitei o desafio de tratar da oralidade e da publicidade, enfrentando os problemas derivados da forte interferência dos meios de comunicação de massas nas questões relativas ao crime e à punição de seu autor. Sobre o tema havia muito mais a dizer, no entanto preferi restringir a abordagem aos pontos de conexão com o sistema acusatório.

Acrescentei um capítulo, dedicado ao processo de execução, zona sombria onde o que acontece parece não interessar à comunidade. A medida da nossa civilização será futuramente apreciada pelo modo como, no presente, cuidamos do controle social punitivo.

Pesei longamente as críticas e, salvo pela intransigente defesa da imparcialidade do juiz como premissa de que a ele compete julgar as causas e não tomar a si a aplicação do direito penal, procurei aperfeiçoar o texto e corrigir eventuais equívocos.

Não seria sincero se dissesse que não estou feliz com o resultado. Muitas vezes nos colocamos um desafio superior às nossas forças justamente para tentarmos nos superar e oferecer aquilo que há de melhor em nós. Penso que, no meu caso, a profissão de fé que me anima e me faz juiz e professor consiste em acreditar que, por meio do meu trabalho, presto contribuição para tentar melhorar a vida das pessoas.

Devo muito ao Curso de Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá — UNESA, pois as pesquisas que desenvolvi no projeto Defesa Penal, incentivado pela referida Instituição, foram incorporadas ao texto desta segunda edição, lançando luz sobre aspectos fundamentais do trabalho.

Por fim, anoto uma correção necessária e uma enorme

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frustração. Ao dedicar a primeira edição deste livro à mulher que amo, aconteceu de serem omitidas as aspas à poesia de Fernando Pessoa. Muitos imaginaram em mim uma veia poética que, lamentavelmente, não possuo. Eduardo Galeano, frustrado por não saber pintar, registrou um dia que lhe deram o dom de escrever para que pudesse pintar em forma de prosa. Gostaria de ser músico mas me faltam as qualidades para isso. Escrevo inspirado em harmonias ideais e ritmos imaginários, intuições que só conhece quem verdadeiramente ama. E isso eu devo a Giselle.

Nota do Autor à 3ª Edição

O leitor tem em mãos a terceira edição do Sistema Acusatório.

Trata-se de uma obra concebida originalmente em circunstância precisa: a defesa de uma dissertação de

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mestrado, ao fim dos anos 90, dez anos depois da promulgação da Constituição da República de 1988.

Toda a estrutura do livro foi pensada no contexto criado pela tensão entre uma Constituição rica em garantias no processo penal e a realidade de uma sociedade ainda não acostumada com os ares da liberdade conquistada com o fim do regime militar.

A experiência acadêmica e a prática cotidiana, como juiz criminal no Rio de Janeiro, foram decisivas na fixação das fronteiras do trabalho. A certeza de que só muito timidamente a doutrina do Processo Penal no Brasil conseguia empreender vôos teóricos audazes, enquanto em outros lugares a reconquista da liberdade política vinha associada a mudanças estruturais do processo penal, principalmente através do abandono dos modelos inquisitórios, motivou a escolha do tema e a eleição do orientador, Afrânio Silva Jardim, a quem até hoje sou grato por tudo.

Sistema Acusatório, portanto, tinha tudo para ser um livro datado. E em alguma medida ainda tem. Há capítulos que investigam o Direito estrangeiro e também algumas leis penais especiais brasileiras. Não ficaram ―congelados‖ nesta terceira edição. Por óbvio que no tocante ao direito de fora há um limite de atualização, estabelecido por diversas razões. E neste particular sou grato a Aury Lopes Jr., que me sugeriu investiir em uma última e moderada atualização, advertindo o leitor interessado neste aspecto da matéria para que sempre confira o estado do tema em fontes atualizadas do País escolhido.

Sobre as leis especiais brasileiras o que posso dizer é que de tal modo a pesquisa empreendida para apreender-lhes o conteúdo foi estimulante que, posteriormente, no doutorado e em outras atividades da vida acadêmica, terminei produzindo obras centradas com exclusividade nelas. Estas obras são citadas no livro, todavia mesmo neste tópico o Sistema Acusatório mantém interesse, pois permite a quem se inicia em processo penal ter visão panorâmica da matéria, abragente de algo maior que o Código de Processo

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Penal brasileiro, hoje de aplicação quase residual. Estes pontos foram profundamente modificados, assim

como tudo o que compreende os cinco primeiros capítulos, em suma, o cerne da obra.

Não se trata de um livro novo, muito embora quem o tenha escrito seja hoje alguém bastante diferente do autor da edição original. O importante é que a linha mestra, a espinha dorsal, consistente na compreensão do sistema processual penal eleito em 1988, pelos constituintes, tenha sido mantida.

O aprofundamento da abordagem tem vários motivos. A começar pelo sucesso da obra, que é motivo de

orgulho para mim. Adotado em cursos de pós-graduação stricto sensu, o livro abriu espaço para diálogo entre escolas brasileiras de processo penal que coexistiam, porém não conviviam.

E foi um diálogo rico, retratado, por exemplo, no debate acerca da existência de um terceiro gênero: o sistema adversarial, defendido por aqueles doutrinadores que reconhecem a existência de poderes supletivos de investigação judicial (o juiz estaria autorizado a produzir provas de ofício e isso não afetaria a natureza do sistema acusatório). O sistema adversarial seria uma espécie (remanescente) de sistema acusatório puro, em que o juiz permanece inerte, isto é, não produz provas. O leitor terá a oportunidade de acompanhar esse debate, que é central quando se pensa na reformulação completa ou mesmo na substituição do quase-morto Código de Processo Penal de 1941.

Além do(s) diálogo(s) flagrado(s) nas páginas dessa nova edição, sempre com respeito pelos pontos de vista contrários aos que se defende aqui, houve também alguma mudança de conceitos.

A constituição nos últimos anos de uma espécie de Escola Crítica de Processo Penal brasileiro, integrada por juristas de várias partes do país, sem lideranças intelectuais verticalizadas, mostrou como é possível avançar em temas difíceis e tentar descomplicá-los, recorrendo a outras

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disciplinas. Nesta Escola Crítica é possível identificar muitos pontos de partida diferentes e perceber a convergência do destino: melhorar o processo penal do Brasil para que ele não seja instrumento de perpetuação da desigualdade e da injustiça.

E vários conceitos foram aperfeiçoados graças a essa extraordinária (para mim) convivência. Ao jurista Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, do Paraná, eu devo a apresentação a Franco Cordero (falha grave em minha bibliografia original, que assumo integralmente, porque Afrânio já chamara atenção para a singularidade da ótica de Cordero).

Pelo menos uma conseqüência deriva disso: quando passei a trabalhar também com Michele Taruffo e Alberto Binder pude divisar diferenças funcionais entre o processo penal fundado na apuração do fato (e solução do caso) e o processo penal, dirigido pela idéia de composição de conflitos, que permeia o modelo de justiça penal consensual. As conclusões são minhas, com os riscos de erro e acerto inerentes. A matriz teórica sofreu, todavia, influência desses autores e, por certo, Cordero foi um dos mais importantes.

Garantindo desde logo aos não versados em filosofia que isso não impede a leitura e o aproveitamento da obra, quero ressaltar ainda a importância dessa invasão (limitada, infelizmente) da história e, principalmente, da filosofia.

Com efeito, no prólogo da edição argentina do trabalho extraordinário de James Goldschimidt, denominado Problemas Gerais do Direito, obra publicada postumamente, Eduardo Couture chama atenção para o estado de angústia que atinge o jurista, quando percebe as limitações de uma ciência construída sobre bases estritamentes dogmáticas. São palavras de Couture, traduzidas livremente: ―É que na vida de todo jurista há um momento em que a intensidade do esforço em torno aos textos legais conduz a um estado particular de insatisfação. O direito positivo se vai despojando de detalhes e fica reduzido a uma ciência de grandes planos. Por sua vez, estes grandes planos reclamam um sustento que a própria ciência não lhes pode dispensar. O

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jurista adverte então, como se a terra lhe faltasse aos pés e clama pela ajuda da filosofia. A maior das desditas que pode ocorrer ao jurista é a de não haver sentido nunca sua disciplina em um estado de ansiedade filosófica.‖

O encontro com a interdisciplinaridade facilitou a minha forma de lidar com o processo penal. Creio que será igualmente útil ao leitor.

No plano da simplificação devo ao prof. Décio Alonso Gomes e a pesquisadora Laila Guimarães Ferreira talvez a mais importante contribuição desta terceira edição. Ambos mostraram a penetração do livro junto ao público de estudantes de graduação e identificaram trechos em que a linguagem pesada das teses dificultava a compreensão. Aliás, Giselle já me havia advertido para isso e nesta terrceira edição eu me dediquei a aliviar o peso da escrita mais hermética, na tentativa de fazer chegar aos alunos da graduação as razões do meu entusiasmo, quanto vezes identificado por eles em palestras e conferências.

Espero ter atingido o objetivo, até porque as maiores alegrias que o magistério me proporcionou eu devo aos alunos da graduação. Nestes últimos anos são os da Faculdade Nacional de Direito e da Universidade Estácio de Sá. Em outras épocas foram os da UNIG, Universidade Gama Filho, Veiga de Almeida e Cândido Mendes, sem contar os do CEPAD. E pelo Brasil afora há os de Campos dos Goytacazes, Recife, Curitiba, Porto Alegre...

Laila Guimarães Ferreira e Aline de Souza Siqueira, ambas da Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cooperaram, ainda, na atualização da pesquisa de jurisprudência e doutrina. Sou muito grato a ambas.

Entre me decidir por reeditar o Sistema Acusatório e trazê-lo de volta às livrarias quase dois anos se passaram. Muitas histórias também. Desde a história da namorada, que não é da área do direito, mas extraiu de mim o último exemplar da segunda edição para presentear o namorado paranaense, estudante de graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (essas coisas de coração

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sempre produzem efeito, espero que o presente tenha agradado!), até a dos dias que eu, Giselle, Gabriela, Felipe e Luis Fernando (o Lula, de nove anos, primo do Felipe) passamos em Búzios, no ínicio de 2005, hospedados pelo estimado Fábio Andrade, quando pude (quase) concluir essa terceira edição de frente para o mar e em paz com Deus.

O que posso dizer é que fiquei muito feliz com o resltado e espero que você também fique.

Geraldo Prado [email protected] www.direitosfundamentais.com.br

1. Introdução No julgamento do Habeas Corpus no 73.338-7, no

Supremo Tribunal Federal, em decisão publicada no Diário da Justiça de 19 de dezembro de 1996, assinalou-se, enfaticamente, que a persecução penal rege-se, enquanto

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atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado.1 Assim é que, contemporaneamente, não mais se concebe a atuação do Estado em busca da imposição da sanção penal aos autores das infrações penais, fora dos marcos processuais estabelecidos pelas leis e, principalmente, pela Constituição. Nulla poena sine judicio.

Trata-se, pois, de assegurar que o exercício legítimo do poder punitivo, reservado com exclusividade ao Estado, seja implementado de acordo com princípios éticos adotados expressa ou implicitamente na Carta Constitucional2. Dessa maneira, o que se pretende é fazer valer em concreto os direitos e garantias proclamados pelo legislador constituinte e evitar, justamente no exercício daquela expressão de poder mais danosa ao conjunto das mínimas condições de dignidade da pessoa humana, que se opere indevida e desproporcional limitação aos denominados direitos fundamentais. O princípio mencionado — nulla poena sine judicio — não se exaure assim na mera legalidade dos procedimentos penais, como será visto adiante, fundamentando-se, para além da simples legalidade formal dos modos de proceder, em uma perspectiva ética que vai cimentar-se na legitimidade constitucional da atuação dos principais personagens envolvidos com a persecução penal e na estrutura e funcionamento das instituições próprias desta atividade.

Tal ordem de coisas não é, certamente, nova, pois pelo menos desde a Magna Charta, de 1215, que inspirou o

1 Habeas Corpus nº 73.338-7, impetrado em favor de José Carlos Martins

Filho em face do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Relator: Celso de Mello. Acórdão da 1ª Turma, publicado no Ementário nº 1.855-02, do Supremo Tribunal Federal.

2 Ada Pellegrini Grinover salienta, em O Processo Em Evolução (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996, p. 9), que os processualistas da última geração estão hoje envolvidos na crítica sociopolítica do sistema, que transforma o processo, de instrumento meramente técnico, em instrumento ético e político de atuação da justiça substancial e garantia das liberdades.

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princípio do due process of law, ou, antes, o julgamento conforme às leis da terra, segmentos significativos da comunidade, do ponto de vista político, econômico ou cultural, têm se preocupado com a limitação ao arbítrio dos governantes e a proteção e preservação da dignidade da pessoa humana.

A questão que se impõe investigar, neste trabalho, diz respeito aos aspectos normativos da estrutura sobre a qual se estabelece e desenvolve a atividade persecutória, conforme a Constituição e a realidade do processo penal. Exame dessa natureza considera em que medida a própria Constituição é confrontada com a legislação ordinária e com a ação concreta de juízes, membros do Ministério Público, advogados e acusados, e integrantes das forças públicas de perseguição penal. Salienta Ferrajoli, a propósito da ingente tarefa que culminou com a constituição teórica de um Sistema Garantista, que o exame do sistema penal (no caso o italiano) há de considerar uma tríplice diferenciação interna, que corresponde a uma tríplice divergência entre princípios garantistas codificados e constitucionalizados e seu modelo teórico e normativo, além do modo efetivo como se apresenta em consideração às realidades legislativa e jurisdicional.3

Também aqui será perspectivada essa tríplice diferenciação, em relação ao Sistema Penal e, em particular, ao sistema processual vigente, porque importa ressaltar o confronto entre idéias e práticas funcionalistas voltadas à cultura da eficiência punitiva, como propósito da atuação dos agentes do Estado, e a doutrina e as práticas garantistas, herança do Iluminismo, que relevam os vínculos estabelecidos para tutelar as pessoas frente ao arbítrio punitivo.

Logo na introdução é importante destacar que as ferramentas teóricas a serem empregadas combinam a metodologia da análise funcional e, em parte, da teoria dos

3 Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal, Madrid:

Trotta, 1997, p. 25.

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sistemas com categorias e conceitos desenvolvidos pela dogmática do processo penal e pelas diversas correntes da criminologia crítica.

É curial colocar em relevo os métodos e instrumentos da pesquisa. No estudo cotidiano do Direito, no Brasil, não é comum encontrar indicações de método nos manuais adotados nas Faculdades e usados pelos profissionais. Pode parecer questão menor, cujo conhecimento é perfeitamente dispensável.

Não é assim! O estudioso das questões penais deve saber, desde o início, que não há neutralidade em termos de Direito e Processo Penal. Estas matérias são atravessadas pela política e quando os procedimentos tomam corpo nas Delegacias de Polícia e nos fóruns a teoria ―neutra‖ da maioria dos Manuais não reflete os conflitos apreciáveis a olho nu.

Conhecer, portanto, o processo penal implica conhecer as razões de fundo, políticas, que orientam escolhas tais como não termos Juizados de Instrução, preferindo atribuir ao Ministério Público a tarefa de acusar. Isso é aspecto manifesto de um sistema que traz latente, fora do campo de visão da simples prática forense, outras tantas escolhas – acertadas ou não -, como, por exemplo, facultar-se ao juiz produzir provas de ofício.

Para o estudioso responsável, que almeja exercer com competência qualquer profissão na área penal, afigura-se obrigatório estar dotado de conhecimento teórico que o torne apto a entender o funcionamento do aparato repressivo do Estado.

Este é um livro de processo penal. Trata-se de obra elaborada a partir da dogmática jurídica. Da dogmática crítica, é certo, pois sem os intrumentos da crítica a iniciação ao processo penal levaria o estudioso a ficar perdido em um mundo de teorias desencontradas da prática. Porém, é a dogmática jurídica que possibilita a investigação do sistema de justiça penal e esta dogmática jurídica é bastante diferente do conjunto de conceitos e categorias que os autores brasileiros se acostumaram a produzir nas décadas

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de 70 e 80 do século XX. O que, afinal, o leitor pode esperar? Caso seja estudante de direito, acostumado a ―aprender‖ pela leitura e ―interpretação‖ do Código de Processo Penal, este estudante

irá se deparar com uma forma completamente distinta de compreensão do Direito Processual Penal.

O leitor verá que somente o contexto histórico permite entender porque o processo penal de cada país tem as características que tem e, ainda, porque a Constituição e as leis dizem uma coisa e a prática mostra outra.

Saberá, também, que há modelos diferentes de Processo Penal, que o próprio modelo em vigor no Brasil balança entre exigências normativas garantistas e práticas autoritárias e que leis editadas basicamente na mesma época, depois da Constituição de 88, reproduzem esta contradição.

Para tanto este leitor exigente entenderá que há nova dogmática jurídica, isto é, que o conjunto de conceitos e categorias empregados pelo jurista não é mais o mesmo das décadas precedentes.

Esta dogmática crítica que na atualidade, vale repetir, deve ser conhecida pelo profissional competente, é fruto da combinação, do diálogo, entre diversas disciplinas.

A malograda separação entre disciplinas, que relegava a sociologia e a filosofia, sem falar na criminologia, a postos secundários na estrutura do aprendizado do Direito, pois que, supostamente, no futuro não serviriam ao profissional dessa área, ruiu. A análise jurídica dos fenômenos só obtém status de apreciação científica quando considera a relação inevitável entre o que se quer conhecer – o funcionamento do Sistema de Justiça Penal – e quem quer conhecer. Não existe conhecimento ―objetivo‖ e asséptico dos fenômenos da vida em sociedade.

A escolha do Sistema Acusatório é clara! Introduzir o estudo do processo penal por meio da investigação do funcionamento concreto dos sistemas. A isso a doutrina chama análise funcional.

Para os que estão mais avançados no estudo jurídico é preciso ter cuidado com os preconceitos. No Brasil, durante

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os anos 90 e mesmo no início deste século XXI, um determinado tipo de funcionalismo esteve em voga.

Mais precisamente no âmbito do Direito Penal importaram-se conceitos funcionalistas herdados, porém nem sempre fiéis, ao pensamento de Niklas Luhmann. Não que a fidelidade às posições originais de Luhmann represente qualquer garantia de ―acerto teórico‖. Não é isso. O que se deseja sublinhar é a existência de interpretações funcionalistas de variada espécie, centradas em uma ideologia: a ideologia funcionalista.

Em síntese, nesta introdução, é necessário frisar que por ―ideologia funcionalista‖ entende-se ―uma ‗filosofia social‘ ou uma ‗teoria global da sociedade‘, que tende a formular explicações ontológicas, aprioríticas e até metafísicas, no que diz respeito às funções desenvolvidas num sistema social por seus elementos‖4. Esta ideologia como outra qualquer, tomada a palavra ideologia em sentido negativo (encobrimento da realidade), impõe: a) certo grau de adesão acrítica aos conceitos e valores ―revelados‖ pela ideologia; b) o convencimento (muitas vezes a fé mesmo) de que somente obedecendo com fidelidade aos paradigmas da ideologia o sistema social funcionará adequadamente.

A conseqüência prática disso é colocar o sistema acima das pessoas, na realidade acima do interesse da maioria das pessoas. E esta maioria é formada por pessoas que não se beneficiam da manutenção do status quo. A ideologia funcionalista é a ideologia da manutenção das coisas como estão, ou, de acordo com Zaffaroni e Nilo Batista, é a ideologia da estabilidade5.

Para o leitor eventualmente satisfeito com o estado atual das coisas, trata-se da ideologia ―ideal‖. Para aquele leitor, porém, convicto de que a ordem constitucional brasileira está orientada a melhorar a condição de vida da

4 ARNAUD, André-Jean e DULCE, María José Farinas, in Introdução à análise

sociológica dos sistemas jurídicos, Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 141-2. 5 BATISTA, Nilo, ZAFFARONI, Eugenio Raúl, ALAGIA, Alejandro e SLOKAR,

Alejandro in Direito Penal Brasileiro – I, Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 622.

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maior parte das pessoas, parece óbvio que há de se rechaçar esta ideologia.

Esta última é a posição adotada no Sistema Acusatório. Em nenhum momento o livro toma partido da ideologia funcionalista. Sistema Acusatório serve-se, tão-só, da análise funcional para entender o Sistema de Justiça Penal.

É preciso, pois, distinguir análise funcional de ideologia funcionalista.

Recorrendo outra vez a Arnaud, entende-se por análise funcional: ―uma forma ou método de conhecimento científico que, concretamente – e para o que aqui nos interessa -, analisa e explica o direito – assim como outros fenômenos normativos -, estudando as ‗funções‘ ou as tarefas que o direito realiza para a sociedade, as que ele deveria realizar, e como ele as realiza ou deveria realizá-las‖6.

Assim, nem toda análise funcional é devedora da ideologia funcionalista. Pelo contrário, é possível trabalhar com esta ferramenta para negar a validade da ideologia funcionalista e revelar como, porque e para quem funciona o Sistema de Justiça Criminal. Novamente Nilo Batista e Zaffaroni irão nos lembrar que até certos textos marxistas podem corresponder a este tipo de análise. Assinalam os mencionados autores que ―disso resulta que, embora toda concepção orgânica de sociedade tenda a ser antidemocrática e reacionária, não é possível dizer a mesma coisa das análises funcionais, que representam apenas um método paralelo às explicações causais e intencionais nas ciências sociais‖7.

Nesse sentido, eleita a realidade dos fatos como o pano de fundo da investigação normativa, a força desta investigação deve residir na disposição de elaborá-la criticamente, ou seja, livre dos conceitos que, difundidos doutrinariamente, denunciam posições apriorísticas nem sempre compatíveis com o modelo real da base de sustentação institucional do processo penal vigente. A

6 Op. cit., p. 141.

7 BATISTA, ZAFFARONI et alli. Op. cit., p. 622.

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incoerência de determinadas explicações acerca do Direito Processual Penal, no Brasil, decorre da tentativa de conciliar o inconciliável, de conferir às práticas processuais penais, ao menos no âmbito do discurso, foro de legitimidade constitucional quando algumas não o têm, escondendo-se desse modo a verdadeira tensão estabelecida em razão da discrepância entre o preceito jurídico e a sua implementação.

Com efeito, cumpre fazer da crítica o predominante método deste trabalho, assim entendida a expressão, na concepção de Michel Miaille, como sendo a possibilidade de fazer aparecer o ―invisível‖.8

Significa dizer não apenas que o objeto do nosso estudo, tal seja, o sistema acusatório, conforme posto pela Constituição9 e a estrutura processual estabelecida nas principais leis que se seguiram à promulgação da Carta, deve ser visto na perspectiva do seu dever ser mas,

8 Miaille, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2ª ed. Lisboa: Estampa,

1989, p. 21. 9 Em um dos seus últimos artigos, o eminente professor José Frederico

Marques assinalou que a nova ordem constitucional optou pelo sistema acusatório, salientando que a estrutura processual fundada em um contexto de relações jurídicas entre pelo menos três sujeitos — autor, réu e juiz — prestigia o ―fundo político democrático-liberal de suas origens‖, de sorte a constituir a essência do processo penal atual, na linha de pensamento coerente com aquela modelar, paradigmada nas lições de Giuseppe Bettiol (Marques, José Frederico. ―O Processo Penal na Atualidade‖, in Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 17). Assim também entende o culto professor e Promotor de Justiça Afrânio Silva Jardim, como se vislumbra da seguinte passagem da sua conhecida obra Direito Processual Penal (6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 197), comentando acórdão da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: Destarte, podemos asseverar que, pelo sistema processual acusatório, adotado pelo vigente Código de Processo Penal e depurado pela nova Constituição, descabe ao Poder Judiciário determinar ao Ministério Público quando e como deve ser proposta a ação penal pública. E. Magalhães Noronha (Curso de Direito Processual Penal, 25ª ed., atualizada por Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 307), José Lisboa da Gama Malcher (Manual de Processo Penal Brasileiro, vol. I, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980, p. 68), Julio Fabbrini Mirabete (Processo Penal, São Paulo: Atlas, 1993, p. 42) e, naturalmente, Fernando da Costa Tourinho Filho (Processo Penal, vol. I, 18ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p. 90) sustentam que o sistema processual em vigor no Brasil é o acusatório.

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principalmente, na ótica do seu ser real, verdadeiro. Por isso, não se abrirá mão da incursão histórica e seu componente ideológico que, no Brasil de 1988, fundaram o pensamento dos que produziram a Constituição,10 ultimando a transição em direção à democracia.

É curial assinalar de início que a estrutura processual penal está inserida não só em um contexto normativo, cujas linhas mestras são ditadas pela Constituição da República, como também se encontra situada em um plano político integrado a todo o sistema penal.

Por sistema penal entendemos, como Sandoval Huertas, al conjunto de instituciones estatales y a sus actividades, que intervienen en la creación y aplicación de normas penales, concebidas estas en su sentido más extenso, valga decir, tanto disposiciones sustantivas como procedimentales.11 Saliente-se por oportuno que este entendimento de sistema penal não é concebido exclusivamente à luz das pretensões normativas e das regras programáticas que o ordenamento jurídico consagra. Antes, pelo contrário, como é perseguida a visão crítica, é preciso ter os pés na terra e a vista posta nas ações institucionais dos organismos de repressão penal para, deste modo, atestarmos quanto à implementação verdadeira das balizas legais e constitucionais e não ficarmos presos a estéreis e infundadas suposições.

Por isso Nilo Batista e Zaffaroni falam em agências penais. Os gestores da criminalização, os entes encarregados de levar ao termo a ―seleção penalizante‖, funcionam de uma

10 Salienta Miaille que o método crítico está alicerçado no pensamento

dialético, tal seja, parte-se da experiência de que o mundo é complexo: o real não mantém as condições da sua existência senão numa luta, quer ela seja consciente quer inconsciente. Destaca o pensador portanto que um pensamento dialético é precisamente um pensamento que ―compreende‖ esta existência contraditória e conclui dizendo que o pensamento crítico ou dialético é dinâmico, apreendendo a realidade não só no seu estado actual, mas na totalidade da sua existência, quer dizer, tanto naquilo que o produziu como no seu futuro. (Miaille, ob. cit., pp. 21-22).

11 Huertas, Sandoval Emiro. Sistema Penal y Criminología Crítica, Bogotá: Temis, 1994, p. 6.

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determinada maneira, com independência de como os professores e doutrinadores de Processo Penal imaginam a ―atuação do processo penal‖ à luz da Constituição e das leis12.

Zaffaroni,13 a propósito, aduz que o sistema penal deve ser entendido como controle social punitivo institucionalizado, atribuindo-se à expressão ―institucionalizado‖, como ressalta Nilo Batista, ―a acepção de concernente a procedimentos estabelecidos, ainda que não legais‖.14

Portanto, não bastará ao estudo definir em que consiste um sistema acusatório e depois sublinhar que a nossa Constituição o adotou se, confrontada a Constituição com a estrutura processual ordinária, resultante das novas e velhas leis, concluirmos que na prática muitas vezes não se observam os elementos essenciais do sistema acusatório.

Não custa lembrar a advertência de Ferrajoli, para quem, considerando a diferenciação dos vários níveis de normas agregadas no ordenamento jurídico (leis, regulamentos, resoluções etc.), é comum observar no nível normativo superior (a Constituição da República) um estado de coisas refutado por disposições de níveis normativos inferiores (leis e até regulamentos) e da prática judicial, ensejando a tendência de não efetividade do primeiro e ilegitimidade dos segundos.15

É evidente que da problemática proposta algumas questões antecedentes e conseqüentes deverão ser necessariamente extraídas, enfrentadas e vencidas, isto é, se há realmente uma estrutura normativa acusatória no processo penal brasileiro, como frisamos, e, em caso afirmativo, se essa estrutura revela um princípio de natureza constitucional e/ou um sistema.

Mauricio Antonio Ribeiro Lopes, em obra versando

12

Idem, p. 43. 13 Eugenio Raul Zaffaroni, apud Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito

Penal Brasileiro, Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 25. 14 Idem. 15 Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón: Teoria del Garantismo Penal, p. 104.

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sobre Direito Penal, Estado e Constituição,16 assinala com razão que a estipulação das categorias jurídicas submetidas ao trabalho de classificação do jurista não deve desvincular-se por completo dos parâmetros normativos instituídos especialmente pela Constituição. Assim é que, salienta o doutrinador, se reconhecemos que não há consenso classificatório na doutrina e precisão terminológica dentro da própria Constituição, também é verdade que pelo menos cinco categorias jurídicas básicas são identificáveis à luz do texto maior: direitos, garantias, normas, princípios e remédios.17

É necessário debater a questão delicada da afirmação da existência de uma outra categoria,18 isto é, daquela definida como sistema, com todas as conseqüências derivadas desta positivação, sem olvidar que em diversas hipóteses é possível enquadrar o mesmo instituto jurídico em modelos diferentes.

Além disso, releva destacar a premissa de uma eleição constitucional de valores, pesquisando-se os aspectos que resultam predominantes ou devem predominar no contraste entre a Constituição jurídica e a Constituição real,19 uma vez

16 Lopes, Mauricio Antonio Ribeiro. Direito Penal, Estado e Constituição, São

Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 3, 1997. 17 Lopes, Mauricio Antonio Ribeiro. Ob. cit., p. 73. 18 Aproprio-me, aqui, da definição de categoria jurídica utilizada por Lopes

(ob. cit., p. 71), tal seja, conhecimento não hermético. Vale frisar que a expressão será empregada com objetivo descritivo, conforme opera a Sociologia do Direito, e não visando alguma identificação ontológica, típica da filosofia jurídica, embora não haja como distinguir por completo os dois campos e não se olvide que o conjunto de significados idealizados pelos vocábulos característicos de uma época serve igualmente ao propósito cognitivo e aos de ordenação e orientação da realidade. Acresça-se a isso que também a expressão estrutura, já diversas vezes mencionada, tem seu sentido científico fortemente determinado. Para Verdú, a cujo pensamento nesse tópico vamos aderir, compreende-se por estrutura o conjunto de elementos interdependentes que configuram, organizam e produzem, com relativa permanência, os diferentes procedimentos (Verdú, Pablo Lucas. Princípios de Ciencia PolíticaI, tomo II, Madrid: Tecnos, 1979, pp. 24 e 21).

19 Constituição real aqui mencionada à vista da definição que lhe atribui Konrad Hesse, in A Força Normativa da Constituição, traduzida por Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

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que, como se sabe, a realidade da persecução penal pode distanciar-se concretamente da promessa constitucional. Isso acontece, por exemplo, não só quando a tortura é empregada como método de investigação, na busca da tão propalada (profanada) verdade real, como ainda quando os tribunais admitem a aplicação de institutos jurídicos incompatíveis com o paradigma constitucional da estrutura processual.

Para ilustrar, resgatando nossa história recente, vale dizer que, em pesquisa que resultou na publicação do livro Brasil: Nunca Mais,20 constatou-se, apesar dos imperativos da ordem constitucional então vigente no regime autoritário — 1964 a 1988 —, que em vários julgamentos dos tribunais superiores, princípios como o da imparcialidade do juiz, da presunção da inocência (versus in dubio pro condenação), do contraditório (versus decisão calcada exclusivamente em elementos de convicção colhidos no inquérito policial) e motivação das decisões de natureza jurisdicional21 foram repudiados, pura e simplesmente.

Fica portanto a interrogação: é correto afirmar que há um princípio acusatório a inspirar a ordem constitucional? E, em caso afirmativo, é também correto dizer que do confronto entre a estrutura processual desejada pela Constituição da República e aquela disposta nas leis ordinárias que serão examinadas, o princípio ou sistema acusatório está realmente assegurado?

Finalmente, convém ainda explicitar em que circunstâncias históricas, determinados valores estruturantes do processo penal constituíram objeto da atenção e da regulação constitucional, em contraposição ao fundo cultural que posteriormente veio alicerçar a maior parte das leis processuais, densificando-se interpretações doutrinárias aparentemente distintas dos caminhos apontados pela Lei Maior. A análise crítica conecta ao estudo jurídico das diversas categorias processuais o exame das

20 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985. 21 Idem, pp. 176-199.

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condições historicamente verificadas por ocasião da edição das normas. Fora do contexto histórico não se explicam eleições de instituições, que se expressam sempre por meio de uma estrutura, institutos e valores, em detrimento de outros da mesma natureza ou não, porém de conteúdo diferenciado ou até mesmo oposto.22

Este é, pois, nosso plano de trabalho, voltado ao final à aspiração de que o momento constitucional de 1988 não pode nem deve ser esquecido ou amesquinhado por uma interpretação da Constituição Jurídica conforme modelos criminais dela divorciados mas aparentemente consagrados na Constituição real.

22 O direito, enquanto fenômeno cultural, é de certa forma vassalo da história e não pode ser ‗compreendido‘ como algo (a)histórico. Novamente, cumpre

realçar a lição de Miaille (ob. cit., p. 55), na refutação à prática de redução da importância da História para o Direito: Assim, apesar de algumas tentativas para ―situar‖ as questões de direito historicamente, raramente os juristas falam uma linguagem histórica. Ainda acrescenta o pensador que, no fundo, a história não interessa realmente o jurista, porque uma óptica idealista-universalista é precisamente oposta a uma tal reflexão.

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2. -O Direito Processual Penal e a Conformidade Constitucional 2.1. Introdução

Afirma Luhmann que toda convivência humana é direta ou indiretamente cunhada pelo direito.1 As implicações do direito na sociedade, particularmente desde o século XVIII, serão observadas mais à frente, porém, sem dúvida, é possível dizer que dos primórdios da socialização do ser humano, com seu agrupamento em comunidades rudimentares, até os dias de hoje, nos quais não se concebe a vida isolada, havendo o homem se envolvido em tramas de diversa natureza, especialmente determinadas pela divisão do trabalho social, o direito marca a nossa existência, regulando a variedade de relações sociais, econômicas, políticas, familiares, patrimoniais e educacionais.

Não se contesta a importância do direito enquanto fenômeno, muito embora a realidade do mundo globalizado haja relativizado o seu papel como ―conjunto de técnicas para reduzir os antagonismos sociais, para permitir uma vida tão pacífica quanto possível entre homens propensos às paixões‖2. Isso decorre da superação progressiva das características inerentes ao Estado-nação de base territorial, praticamente ultrapassado pelo conceito quase universal da predominância do sistema econômico, na sua essência capitalista transnacional, subordinado à lex mercatoria, como assinala com precisão José Eduardo Faria.3

1 Luhmann, Niklas. Sociologia do Direito, vols. I e II. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1983. 2 Miaille, ob. cit., p. 25. 3 Faria, José Eduardo. ―Direitos Humanos e Globalização Econômica: Notas para uma Discussão‖, in Revista do Ministério Público, Lisboa, nº 71, jul-

set/1997, pp. 33-46. A superação do tradicional conceito de Estado de base territorial, sustentáculo da representação constitucional do Estado-Nação, não desfigura a própria representação das constituições como ponto de legitimação, legitimidade e consenso autocentradas numa comunidade

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Ainda assim, por igual, não se controverte sobre haver sido o direito — como de resto continua sendo — instrumento simbólico de limitação do Poder,4 estabilizando as expectativas dos integrantes da sociedade. No passado, a dimensão religiosa conferida ao Poder subordinava a sociedade à autoridade de um direito sagrado e, dessa forma, considerando os restritos papéis sociais disponíveis, era possível ao direito garantir sua força rigidamente integradora e de regulação. Eliminado, porém, o respaldo religioso, com o advento da era contemporânea partiu-se de premissas deduzidas mais enfaticamente pelos jusnaturalistas, baseadas na idéia de um conjunto de direitos inerentes ao homem, inalienáveis e oponíveis até mesmo aos detentores do poder secular, para erigir-se o moderno conceito de constitucionalismo, em virtude do qual, tomando por pilar a idéia do pacto social, construiu-se um novo

estadualmente organizada (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra: Almedina, 1992, p. 18), embora acresça ao sistema jurídico uma rede cooperativa de metanormas e normas oriundas de outros centros transnacionais e infranacionais.

4 Certamente, a reorganização da sociedade e do Estado contemporâneos, possível a partir da predominância do sistema econômico capitalista e do papel não só econômico mas social e político do mercado, consoante assinalado por Faria, no artigo mencionado, afetou conceitos tradicionais da democracia política. É exemplo o do controle da regra de maioria, disposto à evitação da tirania da maioria, quer através da delimitação do espaço inquebrantável dos direitos fundamentais, quer pretendendo impedir a concentração de poderes políticos e econômicos, malgrado a reserva dos setores políticos, o que tem demonstrado o valor deste complexo sistema de vínculos e de equilíbrios que é o direito e, mais precisamente, a Constituição, reconhecendo-se a sua importância funcional como garante não só das formas como dos conteúdos da democracia política, social e cultural. Essa situação será vista adiante, primorosamente ressaltada por Ferrajoli (―O Estado Constitucional de Direito Hoje: O Modelo e a sua Discrepância com a Realidade‖, in Revista do Ministério Público, Lisboa, nº 67, jul-set/1996, pp. 39-56). É evidente, como destacou Canotilho, referindo-se a G. Teubner (Direito Constitucional, p. 13), que o direito só regula a sociedade, organizando-se a si mesmo, o que o dispõe, modernamente (ou pós-modernamente), como direito reflexivo ou de mediação, auto-limitado ao estabelecimento de processos de informação e de mecanismos redutores de interferências entre vários sistemas autônomos da sociedade (jurídico, econômico, social e cultural), segundo o próprio Canotilho (ob. cit., p. 13).

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direito, direito moderno, absorvendo o pensamento democrático e valores da cultura jurídica que prestigiavam o nexo entre legalidade e liberdade, a separação entre direito e moral, a tolerância religiosa, a liberdade de expressão e igualdade entre as pessoas.5

Cumpre dizer, todavia, que, por mais paradoxal que possa parecer, o constitucionalismo moderno, nascido das revoluções americana e francesa do século XVIII, representa o momento único e ímpar da convergência entre o pensamento jusnaturalista e a necessidade de positivação do direito, pressupondo um rol de interesses indisponíveis para a vida digna do ser humano, os quais, como o espírito em busca de um corpo, vagaram pela História até encontrarem os documentos escritos originados nos marcos revolucionários.

Na segunda metade do século XIX, no entanto, consolidado na Europa o Estado liberal, desenvolveram-se práticas institucionais tecnicistas e baseadas na eficiência do controle social pela coerção inerente ao direito penal positivado, com orientações expressa ou tacitamente autoritárias, que romperam a união entre o direito penal, e por igual o direito processual penal, e a filosofia política reformadora.

Para entender isso é preciso compreender como se desenvolveu o fenômeno da positivação do Direito. Luhmann destaca, com razão, a respeito deste fenômeno, vindo à luz exatamente quando as sociedades simples começaram a ser sucedidas por outras, complexas, qualificadas pela divisão do trabalho social, que em concreto não havia outra alternativa. Com efeito, em uma abordagem sistêmica acentua-se que sociedades simples, integradas em um sistema da mesma natureza, têm necessidades estruturais diferentes daquelas mais complexas.

Por isso, o direito das sociedades simples pode ser concebido em termos relativamente concretos, fundado na tradição e na religião, com o que concorda Habermas, 5 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 24.

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enquanto a diversidade derivada de uma complexidade mais elevada, fruto da multiplicidade de funções sociais, exige um direito que tem de abstrair-se crescentemente, tem, nas palavras de Luhmann, que adquirir uma elasticidade conceitual-interpretativa para abranger situações heterogêneas, e que deve ser modificável por meio de decisões, em suma, tem que tornar-se direito positivo.6

A partir da perspectiva histórica, Manoel Gonçalves Ferreira Filho7 vincula o surgimento do Estado contemporâneo — embasado no desejo de evitação do arbítrio dos governantes — ao estabelecimento de um governo de leis e não de homens (como consta assinalado na Constituição de Massachussets), afirmando o primado da Constituição sobre as leis por ser aquela a expressão do Justo, fruto da própria natureza das coisas, consoante declarava Montesquieu, inspirado no jusnaturalismo.8

É certo que a consolidação do direito positivado, em substituição ao modelo anterior, personalista, porquanto alicerçado na pessoa do déspota, foi governada na Europa pela crença racional na autonomia da pessoa humana e na sua responsabilidade, pela qualidade de cidadão de que passou a desfrutar, por influir na determinação do conjunto de regras pelo qual aceitará a supressão de parte da sua liberdade pessoal em favor da regulação das relações de todo o grupo social.

A racionalidade do direito, que desempenhará a nosso juízo papel fundamental na escolha do sistema acusatório, toma o lugar das concepções tradicionalistas e religiosas na chamada baixa modernidade, quando a estabilidade social ditada exclusivamente pela força cede à estabilidade pela razão, sem embargo da articulação de um pacto jurídico cujos pressupostos de coesão são a ameaça das sanções

6 Luhmann, vol. I, p. 15. Habermas, ob. cit., pp. 45 e 59. 7 Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São

Paulo: Saraiva, 1995. 8 Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, Barão de. Do Espírito das Leis.

Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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externas, liberadas pelo Direito, e a suposição de um acordo racionalmente motivado.

Por outro lado, convém remarcar que o processo de modificação do eixo do Poder, que postulou a positivação do Direito em virtude da sua racionalização e da possibilidade de fixar as expectativas das pessoas, tornou-se possível em conseqüência do grau maior de legitimação que passou a revestir o próprio Direito.

Nestas circunstâncias o Direito tornou-se carecedor da democracia, pois, nas condições da época, o pensamento democrático representava, na sua expressão legislativa e de governo, a força socialmente integradora da vontade unida e coincidente de todos os cidadãos livres e iguais.9 Habermas chama atenção para o fato de a positivação do Direito vir acompanhada da expectativa de que o processo democrático de edição das normas jurídicas ―fundamente a suposição da aceitabilidade racional das normas estatuídas‖,10 razão por que, acrescentaria Hannah Arendt, ―sob condições de um governo representativo, supõe-se que o povo domina aqueles que governam‖11 e as instituições políticas petrificam-se e decaem tão logo o poder do povo deixa de sustentá-las.

É possível enxergar na transformação produzida na origem do constitucionalismo uma mudança do paradigma jurídico-político, que passará, na via da racionalidade, do humanismo e das projeções inerentes ao prestígio assumido pelas liberdades públicas, a constituir o designado paradigma da modernidade.

Salientar esse ponto é importante, na medida em que o novo paradigma substituiu o anterior porque este estava em crise, sendo de supor, para alguns, que a eventual crise do próprio paradigma da modernidade conduza à sua superação por outro modelo, que se convencionou chamar paradigma

9 Habermas, ob. cit., p. 53. 10 Idem, p. 54. 11 Arendt, Hannah. Sobre a Violência, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994,

p. 35.

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da pós-modernidade.12 Para nós o que importa, no entanto, é que a crise de um paradigma não se expressa pela quebra da continuidade do conhecimento absorvido até então pelo grupo social, mas antes leva à apropriação deste conhecimento de forma nova, de acordo com os valores que emergem da transformação.

Darcy Ribeiro acentua exatamente que, ao contrário da natureza, que evolui por mutação genética, a cultura — em cujo campo está inserido o Direito — segue evoluindo por adições de corpos de significado e de normas de ação, difundidos por meio da aprendizagem, de sorte a redefinir-se permanentemente, compondo configurações cada vez mais inclusivas e uniformes.13

O desenvolvimento do paradigma da modernidade radicou-se no ideal democrático, de modo que nada é mais natural que o relevo dado à Constituição entre as demais leis, decorrente do convencimento de que aquela assegura a divisão dos poderes do Estado, mediante sistema de freios e contrapesos, bem como tutela os direitos fundamentais,14 conformando toda ordem jurídica. 12 A mudança do paradigma da modernidade para o da pós-modernidade

(expressão cunhada por Jean François Lyotard, em 1979, in A Condição Pós-Moderna, Lisboa: Gradiva, 1989) é discutível, sendo razoável sustentar que a modernidade está longe de ter cumprido, no universo da sociedade humana, integral-mente o que dela se espera. Antes, o universalismo característico da própria racionalidade da modernidade, pelo que de subversivo e emancipatório têm os direitos fundamentais, exige a permanente disposição para implementá-la completamente.

13 Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatório — Etapas da Evolução Sociocultural, São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 45.

14 Eusebio Fernandez (Teoria de La Justicia y Derechos Humanos, Madrid: Debates, 1991, p. 77) alude com clareza à existência de inúmeras denominações para essa categoria jurídica, direitos fundamentais, tais como direitos naturais, inatos, individuais, do cidadão, do trabalhador, públicos, subjetivos, liberdades públicas, nem sempre afetados ao mesmo fenômeno, concluindo que a mais adequada consiste em denominar-se direitos fundamentais do homem, com isso manifestando-se o fato de que toda pessoa possui alguns direitos morais pelo fato de ser pessoa e que isto deve ser assegurado pelo Estado e pela sociedade. Mesmo a nossa Constituição não uniformiza o tratamento designativo da categoria, ora mencionando direitos e garantias fundamentais (Título II), ora direitos e deveres individuais e coletivos (Capítulo I do mesmo título).

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Tal é a importância da Constituição nessa ótica, porque fixa com clareza as regras do jogo político e de circulação do poder e assinala, indelevelmente, o pacto que é a representação da soberania popular, e portanto de cada um dos cidadãos. Sabemos todos, mesmo diante de pactos de direitos fundamentais aos quais significativo número de Estados vêm aderindo paulatinamente, que até hoje o direito interno propugna sempre a sua sufragação, ultrapassando em larga medida a tensão existente no passado, que concebia distintamente, do ponto de vista político e conceitual, as declarações de direitos e ―la Constitución propriamente dicha, de forma a estabelecer um vínculo entre la enunciación de grandes principios de derecho natural, evidentes a la razón, y la concreta organización del poder‖.15

A título de ilustração, valem as lições das políticas brasileira e espanhola, da última extraindo-se, da doutrina de Retortillo e Otto y Pardo, que o significado do intento de construção do regime constitucional e do regime jurídico do Estado, no tocante aos direitos fundamentais, depende basicamente de como tais direitos tenham sido assumidos, uma vez que por mais prestígio que tenham determinadas Declarações, por forte que seja o impulso internacionalizador que dimana da necessidade de reconhecimento internacional dos governos, é preciso não esquecer que o ponto de partida é a realidade própria e original do direito interno.16

Nem mesmo o paradoxo determinado em virtude de as limitações decorrentes dos direitos fundamentais terem por destinatário principal o próprio Estado ou de ser o Estado o

15 Bergalli, Roberto. ―Los Derechos Humanos en el Estado Democratico de Derecho‖, in Justiça e Democracia, vol. II, São Paulo: RT, 1996, p. 81.

Canotilho (ob. cit., p. 19) acentua que a idéia dos direitos fundamentais constitui a raiz antropológica essencial da legitimidade da Constituição e do poder político, ainda quando não se possa falar em universalidade absoluta de alguns valores, muito embora o processo comunicativo intersubjetivo radique dimensões de princípio que implicam ordinariamente ―comensuração universal‖.

16 Retortillo, Lorenzo Martín e Otto Y Pardo, Ignacio. Derechos Fundamentales y Constitución. Madri: Cuadernos Civitas, 1988.

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devedor das providências inerentes à implementação dos direitos fundamentais de cunho social, afeta a imprescindibilidade de a ordem interna sufragar tal categoria jurídica, em nível normativo superior, na Constituição, sob pena de cancelar sua validade pela perda da dimensão prática de efetividade.

A assunção da Constituição como o locus de onde são vislumbrados os direitos fundamentais compartilha, portanto, a tese, desenvolvida entre outros por Ferrajoli, da existência de um nexo indissolúvel entre garantia dos direitos fundamentais, divisão dos poderes e democracia, de sorte a influir na formulação das linhas gerais da política criminal de determinado Estado.17

Veremos, no tópico pertinente a Direito, Processo e Democracia, como se articulam e interpenetram estas diferentes instituições, bastando, por enquanto, lembrar que o espaço comum democrático é construído pela afirmação do respeito à dignidade humana e pela primazia do Direito como instrumento das políticas sociais,18 inclusive a Política Criminal.

Nosso estudo inicial está centrado na tradicional divisão de cunho exclusivamente metodológico19 dos direitos fundamentais em três categorias: as liberdades públicas; os direitos sociais; e os direitos de solidariedade, cujo desenvolvimento será apreciado no próximo tópico. Reitera-se aqui o aludido a princípio, tal seja, que a persecução penal

17 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 10. 18 Binder, Alberto M. Política Criminal: de la formulación a la praxis,

Buenos Aires: Ad-Hoc, 1997, p. 53. 19 Antonio Augusto Cançado Trindade relembra o fato de os direitos

fundamentais fazerem parte de uma grande categoria comum, de características universal e integral, de maneira que estão interligados e são interdependentes, condicionando o sucesso concreto da Constituição à condição de ser humano digno à sua implementação conjunta. Por isso, devem dar lugar a uma interpretação funcional interdependente e somente do ponto de vista metodológico os direitos fundamentais devem ser apreciados em grupos de gerações separados (Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, vol. I, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997).

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se expressa através do conjunto de atividades estatais juridicamente vinculadas, limitando-se o poder do Estado em prol da garantia dos direitos fundamentais, assim referenciados a todas as pessoas, inclusive aos acusados da prática de infrações penais.

Antecipando, em homenagem à necessária clareza, é valioso perceber como a doutrina de um modo geral relaciona os direitos fundamentais.

José Alfredo de Oliveira Baracho indica um rol de direitos fundamentais, que enumera, explicitando os direitos de locomoção, manifestação do pensamento, reunião, associação, culto, direitos à atividade profissional e econômica e ao matrimônio,20 enquanto José Eduardo Faria, em síntese iluminada, sublinha que ao longo dos dois últimos séculos consolidaram-se justamente três gerações de direitos humanos, denominação que prefere, assim dispondo sobre eles:21

―Os relativos à cidadania civil e política, concebidos, reconhecidos e protegidos para um homem abstrato, destacando-se pelo direito às liberdades de locomoção, de pensamento, de religião, de voto, de iniciativa, de propriedade e de disposição da vontade; os relativos à cidadania social e econômica, baseados não mais numa concepção de homem visto como ente genérico, mas encarado na especificidade de sua inserção nas estruturas produtivas, e que se expressam pelos direitos à educação, à saúde, à segurança social e ao bem-estar tanto individual quanto coletivo concedidos a classes trabalhadoras; e, por fim, os relativos à cidadania ‗pós-material‘, que se caracterizam pelo direito à qualidade de vida, a um

20 Baracho, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Cidadania: A Plenitude

da Cidadania e as Garantias Constitucionais e Processuais, São Paulo: Saraiva, 1995, p. 7.

21 Faria, ob. cit., p. 42.

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meio ambiente saudável, à tutela dos interesses difusos e ao reconhecimento da diferença, da singularidade e da subjetividade.‖

Norberto Bobbio cita ainda os direitos de quarta

geração,22 determináveis em vista de carecimentos e interesses específicos, tais como as reivindicações referentes ao tratamento da pesquisa biológica. Esta última categoria, no entanto, necessita de uma maior investigação científica para fixar claramente as fronteiras com os denominados direitos fundamentais de terceira geração.

Finalmente, convém explicitar que os limites do trabalho que se desenvolve não incluem a determinação da natureza jurídica dos direitos fundamentais. Pretende-se tão-só definir no continente da obra um conteúdo mais modesto, contudo importante, que é a medida do princípio ou sistema que realiza a estrutura do processo penal em confronto com as principais leis processuais penais editadas principalmente depois de 1988, época da promulgação da vigente Constituição da República.

Porém, não se deve descuidar do estudo da natureza e fundamento destes direitos, uma vez que se projetam nas vias da persecução penal, impondo pelo menos sublinhar que a doutrina constitucional lhes dedica intenso labor, oscilando entre baseá-los, de acordo com Böckenförde,23 numa tentativa de estabelecimento de uma teoria geral, talvez incompleta mas bastante aproximativa, a partir das perspectivas liberal ou do Estado de Direito burguês, institucional,24 valorativa, funcional-democrática e social,

22 Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 6. 23 Böckenförde, apud Gavara de Cara, Juan Carlos. Derechos Fundamentales

y Desarrollo Legislativo: La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1994, pp. 75-79.

24 Vale dizer, precisando termos, especialmente quando utilizados de forma polissêmica, como ressalta Gavara de Cara (ob. cit., p. 89), que a expressão instituição tem para o nosso estudo o significado que lhe atribui Miaille (ob. cit., p. 98), qual seja, de conjunto coerente de normas jurídicas

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nem sempre necessariamente excludentes. Por razões que mais adiante serão expostas, nos

interessará de perto a abordagem funcional-democrática, que certamente se conjugará com a valorativa e a institucional. Antes releva visualizar a histórica conformação dos direitos fundamentais, cuja inegável ligação com o tema proposto mais adiante poderá ser observada.

2.2. Fontes e Antecedentes dos Direitos Fundamentais

As subseqüentes mutações operadas na concepção e conteúdo dos direitos fundamentais demandam sua apreensão no contexto histórico, ao qual com freqüência nos referiremos, de sorte a viabilizar a observação e inserção em seu adequado ambiente dos paradigmas estabelecidos e fixar as circunstâncias determinantes das suas alterações. Percorrer este caminho é necessário, na medida em que o sistema processual vigente há de, além de receber os fluídos da legitimação da própria ordem jurídica, predicar-se como opção legítima, por si só, para adjudicar soluções imperativas, com força de coisa julgada, aos conflitos de interesses de natureza penal ou a resolver os casos penais.

Por isso, permitimo-nos, a princípio, a apropriação do esquema histórico de Manoel Gonçalves para desenvolver resumidamente o tema da evolução dos direitos fundamentais.

Com efeito, a doutrina dos direitos fundamentais desponta já na Antigüidade, fundada, como é certo, na consciência de um Direito Superior, não estabelecido pelos homens. Manoel Gonçalves a tal propósito aponta a peça Antígona, de Sófocles, e chama ainda a atenção para as lições de Cícero, que soube, em Da República, bem sintetizar a idéia da predominância da lei sobre a vontade do

relativas a um mesmo objeto, abrangendo uma série de relações sociais unificadas pela mesma função.

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soberano.25 É certo que a cultura escravista helênica não pode

fundamentar um preceito absoluto de igualdade, inerente ao conceito de direitos fundamentais, pois que relativo a todos os homens, sem qualquer distinção, mas não se deve negar que a partir da Grécia são envidados os primeiros empreendimentos filosóficos cujo objetivo consistiu em lidar com esta situação de princípios ideais.

Em Roma, salienta Pedro Pablo Camargo,26 com o florescimento da filosofia estóica é que se forja una idea universal de la humanidad, es decir, de la igualdad esencial de todos los hombres en cuanto a la dignidad que corresponde a cada uno.27

Foi o cristianismo, contudo, que, sem dúvida, iniciou a era da promoção dos direitos fundamentais, evidentemente não liberado das contradições históricas determinadas pelo modo de produção cujo embrião já se encontrava na sociedade feudal. Disso decorre que a doutrina sofreu forte impacto em face da projeção das declarações de licitude condicional da escravidão, principalmente de índios e negros, e da inflição de tormentas. O pensamento básico da igualdade de todas as pessoas perante Deus enseja, todavia, a era del resguardo a los derechos fundamentales del hombre con base en la dignidad de la persona humana y su destino trascendente,28 de tal sorte que Tomás de Aquino29 e sua

25 Cícero, Marco Túlio. Da República. Trad. Amador Cisneiros. Rio de

Janeiro: Ediouro. Sendo a lei o laço de toda sociedade civil, e proclamando seu princípio à comum igualdade, sobre que base assenta uma associação de cidadãos cujos direitos não são os mesmos para todos?, perguntava-se o filósofo.

26 Camargo, Pedro Pablo. La Proteccion Juridica de Los Derechos Humanos y de La Democracia en America, México: Excelsior, 1960, p. 6.

27 Idem. 28 Idem. 29 A importância de Tomás de Aquino é salientada por Antonio Truyol y Serra

(Los Derechos Humanos, Madrid: Tecnos, 1994, p. 12), que destaca a sensível inclinação filosófica no sentido do reconhecimento de que todo homem correspondia à imagem e semelhança de Deus, como recurso à proclamação de que mesmo os infiéis possuíam um direito natural que os punha em tese a salvo do suposto direito de conquista dos cristãos.

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escola retomam o pensamento doutrinal. A partir da segunda metade da Idade Média,

difundiram-se documentos de incipiente reconhecimento dos direitos fundamentais — forais e cartas de franquia —, merecendo especial destaque a Magna Charta Libertatum, outorgada por João sem Terra aos barões, na Inglaterra, em 1215, cujo caráter estamental não impediu, depois, a ampliação das suas disposições a favor de outras categorias de súditos. No mesmo ano, o Papa Inocêncio III proibia, no Concílio de Latrão, as ordálias, reduzindo-se, embora ainda insuficientemente para os padrões atuais, o sofrimento causado pelo modo de persecução e expiação das infrações penais.30

Também na Baixa Idade Média, nas comunas e burgos livres da Europa Ocidental, difundiu-se a consciência de direitos básicos, relacionados à liberdade do indivíduo e à condição não estamental em que se viam inseridos, na prática, nesses lugares, em oposição radical à fragmentação social e às servidões feudais. Conforme Fábio Konder Comparato, as cidades medievais eram verdadeiros centros de libertação: a condição servil perdia-se, com a estada ininterrupta do servo no interior do burgo durante ano e dia.31

Convém sublinhar que a forte ligação entre a Igreja e o Estado, observada durante boa parte da Idade Média como fator de certo modo condicionante da estabilidade dos grupos sociais, acabou sendo solapada pelos movimentos de tolerância religiosa, decorrentes da pluralidade que naturalmente se seguiu à Reforma, sendo, pois, a liberdade religiosa, fruto da quebra do vínculo entre Estado e Igreja, o 30 Grau, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio,

Barcelona: Bosch, 1994, p. 28. Saliente-se, todavia, que coube também a Inocêncio III a iniciativa de introduzir de modo oficial na Igreja o procedimento penal de forma inquisitória, procedimento mais tarde regulado em alguns decretos de Bonifácio VIII (Pietro Fredas, na introdução à 3ª edição de De las Pruebas Penales, de Eugenio Florian, Bogotá: Temis, 1990, p. 7).

31 Comparato, Fábio Konder. Para Viver a Democracia, São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 40.

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primeiro grande passo dado na direção do reconhecimento dos demais direitos fundamentais da primeira geração, assinalados no Petition of Right (1628), no Habeas Corpus Act (1679), nas declarações de independência dos Estados Unidos da América e de Direitos de Virgínia (1776), além da declaração francesa (1789).

Do Direito inglês, na vanguarda, e dos iluministas, cumpre frisar, vieram as principais inspirações das revoluções americana e francesa, no tocante ao estatuto das liberdades que ousaram exprimir à época. Salienta Manoel Gonçalves o papel que os ingleses e, depois deles, os norte-americanos desempenharam na história do desenvolvimento da doutrina dos direitos humanos, e que, por força das disposições das Declarações, que ensaiaram o novo modelo constitucionalista, afinal seguramente presente nos séculos seguintes, este papel influenciou a Constituição de Cádiz (1812) e a declaração de independência da Bélgica (1831):32

―‗Common law‘, ―rule of law‖, ―due process of law‖, ―equal protection of the laws‖, essas expressões e as idéias que exprimem passaram com os ingleses para a América do Norte. Essa herança não foi esquecida, ao contrário. Os tribunais americanos, e em primeiro lugar a Suprema Corte, souberam usar dessas fórmulas que flexibilizam as decisões, dando uma importante contribuição para o desenvolvimento da doutrina dos direitos fundamentais, nos séculos XIX e XX.33‖

É bem verdade que os predicados históricos de uma

época única, quando burguesia e proletariado se uniram para retirar do poder a classe aristocrática dominante, acabaram

32 Truyol y Serra, ob. cit., p. 17. Ada Grinover (―Direitos e Garantias Individuais‖, in Constituição e Constituinte, Faoro, Raymundo (coord.).

São Paulo: RT, 1987, p. 123) relembra que foi a Constituição Brasileira do Império — 1824 que pela primeira vez no mundo ofereceu um rol de direitos e garantias individuais, assim concretizadas.

33 Ferreira Filho, Manoel Gonçalves, ob. cit., p. 13.

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por fortalecer a idéia dos direitos fundamentais, essenciais à dignidade da pessoa, com marcantes características individualistas, configurando, nessa atmosfera, a primeira geração de direitos humanos. Os direitos fundamentais sofreram neste momento de inicial positivação a influência da ideologia peculiar ao direito privado, cuja consistência estava determinada pela idéia de direito subjetivo.

O padrão de direito subjetivo está ditado por uma compreensão funcional, em virtude da qual se aceita que este direito estabeleça os limites em cujo interior um sujeito está justificado a empregar livremente a sua vontade.34

Não se discute que a fixação do direito subjetivo, para assegurar um grau mínimo de aceitação social, indispensável a qualquer tempo e mais ainda em épocas politicamente conturbadas, suponha um processo legislativo democrático, capaz de atender às expectativas dos membros da sociedade a respeito do entendimento possível — consenso — das pessoas sobre as regras de convivência.

A moldura política na qual seriam gerados os direitos fundamentais nessa primeira etapa, apesar do predominante pensamento democrático, cuja virtude para o âmbito do nosso estudo está em determinar a ―legitimidade‖ como pressuposto para o exercício do poder, em quaisquer das suas manifestações (aí incluindo o exercido pelo Judiciário), concebia o indivíduo como cidadão, ou o cidadão como o indivíduo visado pela ordem jurídica, por meio de uma percepção nitidamente ideológica.

Ocorre que, mesmo na Europa, havia clara distinção entre o grupo de pessoas juridicamente autorizadas a participar do processo político e o grupo maior, formado por todos os demais integrantes da sociedade, excluídos do jogo democrático de várias maneiras (as mulheres e os analfabetos, por exemplo, não participavam de nenhuma 34 Habermas, ob. cit., p. 113. Vale destacar que, apesar da propalada idéia

pertinente ao conceito e alcance do direito subjetivo, visto antes, trata-se de dogma da tradição liberal a crença dos direitos de primeira geração ser exercitados contra o Estado, como muito bem salientou Comparato (ob. cit., p. 47).

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forma dos pleitos eleitorais). Assim, o direito positivo que resultava da ação da

instância legislativa, referido ao direito privado, não podia satisfazer as exigências das sociedades complexas e sequer atendia satisfatoriamente ao suposto da legitimidade, incapaz que era de integrar socialmente as grandes massas que acorreram às cidades, como conseqüência do processo de industrialização.

Haveria de acontecer alguma reação, até porque, reconhece Habermas, ―a fonte de toda legitimidade está no processo democrático da legiferação; e esta apela, por seu turno, para a soberania do povo‖,35 muito mais presente nos discursos do que na realidade.

Os séculos XIX e XX, portanto, por força da ascendência social e econômica da burguesia e o incremento tantas vezes desumano das condições de trabalho da massa operária, classe social conseqüente às mudanças derivadas da Revolução Industrial e do modo capitalista de produção e divisão dos bens, testemunhou conflitos intestinais que colocaram frente a frente a burguesia e o proletariado, dando origem a conquistas que se refletiram em uma nova ordem de direitos fundamentais, a partir da universalização, ainda que lenta, do sufrágio político e da liberdade de associação, precursora dos sindicalismos.36

35 Habermas, ob. cit., p. 122. Comparato novamente sublinha o conteúdo

difuso do povo, entidade compreendida abstratamente como algo monolítico e uniforme, dotado das mesmas aspirações e vivendo em semelhantes condições na sociedade (ob. cit., pp. 61-82). Como se observa no desenvolvimento do tópico, na realidade as classes sociais acabam por ocupar concretamente, no processo de reconhecimento formal dos direitos fundamentais de segunda e terceira gerações, o lugar do povo e, na medida em que lhes pertence a soberania, quer na perspectiva do exercício direto do poder, quer vislumbrando-se, em virtude de conhecido desvio semântico, como exercício em seu nome e em seu prol, é necessário recordar que igualmente o esquema relativo aos poderes inerentes ao sistema penal não lhes devem ser opressivos mas sim tutelares.

36 Norberto Bobbio anota, destacadamente, que: A partir do momento em que o voto foi estendido aos analfabetos tornou-se inevitável que estes pedissem ao Estado a instituição de escolas gratuitas... Quando o direito de voto foi estendido também aos não-proprietários, aos que nada

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Trata-se, pois, dos direitos fundamentais de segunda geração, referidos anteriormente, e que, malgrado períodos de intensa repressão política nos principais Estados europeus (França de Napoleão III e Alemanha de Bismarck),37 impuseram-se indelevelmente. Colaborou para isso a consideração em virtude de que ―os direitos fundamentais não são a expressão nem o resultado de uma elaboração sistemática, de caráter racional e abstrato‖ mas sim, como alude Denninger, ―respostas normativas histórico-concretas às experiências mais insuportáveis de limitação e risco para as liberdades‖.38

A transformação acontecida no seio do próprio paradigma da modernidade, gerado a partir das liberdades públicas cujo beneficiário, de uma maneira geral, era exclusivamente o cidadão (identificado como homem proprietário), demonstrou a erosão da matriz ideológica individualista e assinalou a substituição, no Continente Europeu, do Estado Liberal de Direito pelo Estado Social de Direito.39

Aqui cabem parênteses para salientar que, do mesmo modo que se prestigiou o papel da Igreja Católica na eliminação das ordálias, não se pode furtar de registrar a importância das Igrejas na disseminação das idéias da nova categoria de direitos fundamentais, principalmente em consideração às encíclicas Rerum novarum (Leão XIII, 1891) e Quadragesimo anno (Pio XI, 1931), sem prejuízo das importantes manifestações de Kolping, von Ketteler e da União Internacional de Estudos Sociais, fundada em 1920.40

tinham... a conseqüência foi que se começou a exigir do Estado a proteção contra o desemprego (O Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras do Jogo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra Política, 1992, p. 35).

37 Truyol y Serra, ob. cit., pp. 20-21. 38 Denninger, Erhard, apud Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos

Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio: Derechos Humanos y Constitucionalismo en la Actualidad, Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 40.

39 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio..., ob. cit., p. 15.

40 Truyol y Serra, ob. cit.

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A evolução dos direitos humanos naturalmente refletiu, no intervalo entre as duas grandes guerras do século XX, as tensões e expectativas geradas de forma exacerbada pelo autoritarismo político, pelo totalitarismo e domínio colonialista eurocentrado, fatores extremamente reforçados pela expansão capitalista e a reação do regime socialista implantado na antiga União Soviética.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e as explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki, dias depois da aprovação da Carta da Organização das Nações Unidas (respectivamente 26 de junho e 6 de agosto de 1945), expandiu-se a consciência, inspirada pelos movimentos de libertação, de que entre os direitos fundamentais encontrava-se o de autodeterminação dos povos, assim enunciado nas várias Declarações, fundando, por sua vez, a era das emancipações políticas que levaram as ex-colônias (conjunto a partir de então conhecido como Terceiro Mundo) a se circunscreverem, na sua maioria, ao âmbito sociopolítico da denominada Civilização Ocidental, com a promessa de reconhecimento dos direitos fundamentais da primeira geração.

De se notar que os novos Estados careceram da adoção, implementação ou desenvolvimento dos direitos fundamentais da segunda geração, prestacionais, normalmente vinculados a um tipo de Estado de bem-estar social, de sorte que as suas populações passaram a desfrutar no ambiente internacional da condição de ―proletariado exterior‖,41 salvo, é claro, aquela minoria beneficiada da situação colonial, cuja posição internamente veio a suceder.

Particularmente no Brasil a sucessão de regimes autoritários, com a conseqüente supressão sistemática dos direitos fundamentais, desmoraliza a tese de que a mera

41 Truyol y Serra, ob. cit., p. 26. As declarações de direitos fundamentais, na

América Latina, pela tradição autoritária dos governos, são muito mais peças retóricas que instrumentos de transformação social. Comparato assinala, com razão, que os direitos fundamentais nunca fizeram parte do nosso patrimônio cultural, mas sempre existiram como um elemento estranho, senão estrangeiro na vida de nossas instituições sociais (p. 38).

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enunciação destes direitos, em Declarações a que o Estado brasileiro adere ou no seio da própria Constituição, embora necessária, seja suficiente para alargar a sua efetiva imposição para além do círculo populacional no meio do qual já são efetivos, tal seja, entre as classes possuidoras e as pessoas de raça branca.42

Sem a pretensão de estabelecer uma explicação definitiva, vale destacar que a democracia não marcou a sua presença de modo sólido nos novos Estados, o que se argumenta para demonstrar mais uma vez o vínculo entre democracia e direitos fundamentais.43

É preciso que se saliente que a cultura democrática, como fator preponderante para a disseminação da importância política e jurídica dos direitos humanos, padeceu mesmo onde, como no Brasil, foi implantada a República. Se uma educação para os direitos fundamentais, substrato da cultura democrática, não é implementada, como podem sê-lo os mencionados direitos, individuais ou sociais? A contaminação das liberdades não logra êxito se depender apenas da ação do Estado, que visa limitar ou orientar de modo imperativo, sendo o caso de fazer coro com Mead para sublinhar que ―aos poderes públicos compete uma importante função na defesa das liberdades, porém para que sua afirmação e tutela não sejam ilusórias ou precárias é necessário que o programa emancipatório dos direitos humanos se traduza em vigências coletivas majoritariamente compartilhadas‖.44

As organizações internacionais e entidades não governamentais de proteção aos direitos fundamentais de todas as categorias (por exemplo, a Organização

42 Comparato, ob. cit., p. 51. 43 A reversão desse clima social francamente desfavorável à vivência dos

direitos humanos, na América Latina, só pode iniciar-se, a meu ver, com o estabeleci-mento de um processo — necessariamente lento e não isento de percalços — de instituições adequadas de democracia direta ou participativa. Comparato, ob. cit., p. 43.

44 George Hebert Mead, apud Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio, p. 44.

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Internacional do Trabalho — OIT) exerceram, a partir de meados deste século, com base na traumática experiência das guerras e do período intercalado, a função de difundir a implementação e fiscalização dos mencionados direitos, conjunto ao qual a sociedade tecnológica foi aos poucos incorporando aqueles relacionados com a qualidade de vida, direitos fundamentais da terceira geração.

Da relevância das entidades internacionais pode-se dizer que as grandes guerras deste século desnudaram a insuficiência dos meios internos de resguardo dos direitos fundamentais e, simultaneamente, romperam a crença na efetividade dos precários controles internacionais existentes. Apesar disso, e muito por conta dos genocídios que as novas tecnologias de informação noticiam vivamente, desenvolveu-se a lógica básica do reconhecimento planetário do valor único da pessoa45 e a consciência de que a neutralidade política e ideológica do direito internacional pode acabar por permitir todas as formas de autoritarismo no interior dos Estados.

Daí decorre, como afirma Pureza, que da transnacionalização da opressão deve advir a transnacionalização da resistência,46 quer pela exigência da legitimidade democrática, em todos os seus aspectos — incluindo aí a Justiça — para o reconhecimento internacional dos Estados e de seus governos, quer porque a cidadania não se resume mais apenas na titularidade de direitos cuja fonte seja o próprio Estado, mas passa a alcançar aqueles gerados nos pactos internacionais.

Assim, ao menos no aspecto da fiscalização, com repercussão inevitável em toda sorte de relações internacionais, os tribunais e cortes internacionais ganham destaque, reafirmando a concepção dos direitos

45 Pureza, José Manuel. Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el

Tercer Milenio: Derecho Cosmopolita o Uniformador, Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 125.

46 Pureza, José Manuel. Ob. cit., p. 123.

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fundamentais como tema global,47 limite à subjetividade discricionária das soberanias, conforme Celso Lafer.48

Ademais, concebendo-se a democracia como palco adequado para os direitos fundamentais, como se antecipa do próximo tópico, e incorporando-se a consciência de que uma sociedade livre e democrática não pode ser pensada como um sistema fechado, mas sim aberto à aparição de novas necessidades, dependentes tantas vezes da ineficácia da difusão do progresso tecnológico ou da ausência de compromisso ético, é preciso admitirmos a possibilidade de aparição de novas categorias reivindicativas, prenormativas e axiológicas aspirantes à condição de direitos fundamentais.49

É certo, atualmente, que o liberalismo e o neoliberalismo,50 enquanto filosofias econômicas predominantes, assumiram de forma clara e solene a doutrina dos direitos fundamentais da primeira geração, até porque, se nesta faceta representam a garantia das liberdades públicas, acabam também por construir o suporte normativo da liberdade econômica inspiradora das referidas

47 Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional

Internacional, São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 249. 48 Celso Lafer, apud Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito

Constitucional Internacional, p. 250. 49 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo

ante el Tercer Milenio, p. 15. 50 É possível distingüir-se o neoliberalismo do liberalismo basicamente pelo

fenômeno da globalização dos mercados, peculiar ao primeiro, que, superando os modelos do capitalismo mercantilista e concorrencial da fase de transição do feudalismo, ao tempo em que minimiza a intervenção estatal, salvo a punitiva, de controle dos sindicatos e da política monetária, reduz a importância do Estado-nação, consoante anteriormente mencionamos. Convém, a propósito, ler El Neoliberalismo en el Imaginario Juridico (Correas, Oscar. Curitiba: EDIBEJ, 1996, pp. 1-15). Saliente-se que o neoliberalismo descende do pensamento do austríaco Friedrich Hayek, inicialmente divulgado na obra O Caminho da Servidão, em 1944, na qual se faz vigorosa crítica ao Estado de bem-estar social. Depois, Hayek fundou um grupo, do qual participaram, entre outros, Milton Friedman e Karl Popper, cujo propósito consistiu em combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes depois da II Grande Guerra, objetivo alcançado em parte logo em seguida à crise do mundo capitalista avançado, em 1973 (Anderson, Perry. ―Balanço do Neoliberalismo‖, in Pós-neoliberalismo. Emir Sader (Coord). São Paulo: Paz e Terra, 1995, p. 23).

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doutrinas,51 cumprindo, pois, à sociedade humana perseguir por igual, incessantemente, como faz desde os primórdios, a felicidade, conforme a máxima de inspiração iluminista cunhada na Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

Talvez caibam parênteses: a partir do episódio conhecido como 11 de setembro, atentado terrorista a Nova York (EUA), mesmo os direitos fundamentais de primeira geração estão sendo colocados em questão pelos poderosos grupos liderados pelo unilateralismo militar norte-americano. Até o momento de conclusão dessas linhas vigorava o mais completo desrespeito aos direitos fundamentais de pessoas presas no Afeganistão, Iraque e até nos próprios Estados Unidos, suspeitas da prática de terrorismo.

Não é fácil a tarefa. Como de início advertimos, aceita a teoria dos paradigmas, há quem postule, atualmente, para os direitos fundamentais, novos rumos derivados da mudança do paradigma da modernidade para o da pós-modernidade.

Desse modo, à condição essencial dos citados direitos, que alicerça sua vocação de eternidade quando incorporados à ordem jurídica, opõe-se a concepção funcionalista, pelo que predomina a consideração institucional, definida como conjunto de fins objetivamente estabelecidos e interpretados de acordo com as condições histórico-sociais que informam o processo aplicativo da norma constitucional;52 além disso, e talvez conseqüentemente, a deformalização tem sido exigida pelos que reclamam uma hermenêutica constitucional que confira maior fluidez e flexibilidade aos instrumentos jurídicos dispostos na Constituição; finalmente, de tudo

51 É bem verdade que o gozo pleno dos direitos fundamentais pressupõe um

regime político compatível. No caso, diria Cícero, a democracia, que, se não é perfeita, é o menos imperfeito dos regimes. Todavia, Bobbio (Liberalismo e Democracia, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 92) giza que a relação entre liberalismo e democracia foi sempre uma relação difícil: ―nec cum te nec sine te‖.

52 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio..., ob. cit., p. 17.

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decorre a pretensão do sistema constitucional como autoreferente, autopoiético, que se constitui, reproduz e explica por suas próprias pautas internas, caracterizando-se por pretender-se estável.

A seu tempo, cada um dos novos rumos será analisado, em conformidade com o tema eleito, tal seja, o sistema processual acusatório. Porém, não custa reforçar que a defesa dos direitos fundamentais como um todo representa hoje, como assevera Eusebio Fernandez,53 ―auténtico reto moral de nuestro tiempo, la piedra de toque de la justicia del Derecho y de la legitimidad del Poder‖, acrescentando que se trata do ―procedimiento garantizador de la dignidad de los seres humanos contra todo tipo de alienación y manipulación‖,54 na via da instituição de uma ética antropológica da solidariedade.

Tal é assim a importância das Constituições, situadas como regras supremas de poder, de modo que pela Constituição são conectados indissoluvelmente os postulados da cidadania, entendida como capacidade de plenamente gozar os direitos fundamentais (cidadania política e social), aos princípios constitucionais do processo, assegurando-se a prevalência da liberdade e da democracia,55 pelas quais, sustenta vigorosa corrente de pensamento, os direitos fundamentais poderão se vivificar.56 Isso é salientado por Baracho, no plano jurídico e no político. 2.3. Direito, Processo e Democracia

A idéia dos direitos humanos e a da soberania do povo

determinam até hoje a autocompreensão normativa de

53 Fernandez, ob. cit., p. 81. 54 Idem. 55 Baracho, ob. cit., p. 9. 56 Renove-se o magistério de Pedro Pablo Camargo (La Proteccion Juridica,

ob. cit.): Se ha dicho que la lucha por el reconocimiento de los derechos fundamentales es la reacción contra la persecución, la intolerancia y el fanatismo periódicos, que en mayor o menor grado han caracterizado la vida de todos los pueblos.

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Estados de direito democráticos. Assim inicia Habermas sua extensa exposição do princípio democrático e suas implicações para o direito,57 ao que podemos acrescentar que, em relação ao Sistema Penal, mais do que para qualquer outra área afetada pelas emanações da ordem jurídica, a existência de uma ligação entre direitos fundamentais e poder legítimo, expressão da soberania popular, está radicada na vigência da democracia constitucional.

A identificação clara do vínculo direito—processo—democracia terá pertinência no estudo por possibilitar a concreta determinação dos critérios de fixação de validade das normas jurídicas pelas quais estrutura-se e funciona o sistema processual. Afinal, sob que condições é possível afirmar que determinada regra, extraída do Código de Processo Penal, é válida? A questão que se coloca aqui é como formular esta indagação para cada caso concreto e também em termos de validade social.

Assim, colaboram para esta compreensão normativa tanto a perspectiva de Habermas, de verificação das condições de integração em um ordenamento jurídico, quer a visão da validade como cumprimento social do direito, quer ainda a idéia de pertencerem as normas sistêmicas ao conjunto que assegurará a legitimidade da intervenção judicial, na única forma admissível, que é a de declaração judicial do direito conforme o próprio direito posto em nível normativo superior (da Constituição).

Paralelamente, é possível acentuar que as instituições que compõem o sistema penal, de modo harmônico ou não, produzem uma política criminal, tanto quanto as forças estatais e sociais são responsáveis por outras políticas básicas (de educação, saúde etc.).

Nós veremos de passagem como a operação de um sistema processual ao arrepio da Constituição faz parte de uma política criminal precisa, baseada em motivações de eficiência repressiva, mas agora é importante salientar que também a edificação de qualquer política criminal em um 57 Habermas, ob. cit., p. 128.

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estado democrático está condenada à incoerência normativa se for desenvolvida à margem do nível jurídico superior e não considerar que o respeito à dignidade humana é o princípio e fundamento do sistema político democrático, único espaço comum para qualquer pacto democrático.58

Por isso, cabe assinalar que na medida em que o processo penal concretamente instrumentaliza o direito penal, visando conceder-lhe a efetividade possível dentro das pautas éticas priorizadas pelos direitos fundamentais,59 e considerando que entre os fundamentos propostos a respeito dos mencionados direitos vige também a noção de que vários deles estão intimamente relacionados com a democracia,60 é necessário definir um espaço de consenso doutrinário sobre este tema peculiar.

Sobre o assunto nunca é demais recordar a lição de Cândido Rangel Dinamarco, em relevo:61

―O processualista moderno adquiriu a consciência de que, como instrumento a serviço da ordem constitucional, o processo precisa refletir as bases do regime democrático, nela proclamadas; ele é, por assim dizer, o microcosmo democrático do Estado de direito, com as conotações da liberdade, igualdade e participação (contraditório), em clima de legalidade e responsabilidade.‖

Por essa razão, é válido e imperioso afirmar que no

momento em que o direito se transforma num sistema de distribuição de recursos escassos, vigora uma espécie de tutela legal, geradora de um modelo de justiça social,62 tarefa

58 Binder, Política Criminal: de la formulación a la praxis, p. 50. 59 Grinover, Ada Pellegrini. Liberdades Públicas e Processo Penal: As

Interceptações Telefônicas, 2ª ed. São Paulo: RT, 1982, p. 20. 60 Gavara de Cara, ob. cit., p. 78. 61 Dinamarco, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, 3ª ed. São

Paulo: Malheiros, 1993, p. 27. 62 Campilongo, Celso Fernandes. Direito e Democracia, São Paulo: Max

Limonad, 1997, p. 23.

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que é, acrescenta Celso Campilongo, insofismavelmente política.63

Daí que igualmente as demandas inerentes ao sistema penal, derivado do sistema jurídico, acabam por sofrer influência ou pressão dos grupos sociais, por meio dos mecanismos de operação do sistema político, pressões cujo resultado pode ser socialmente diferenciado consoante o paradigma político-jurídico adotado, refletindo diretamente sobre as aspirações de democratização do processo enquanto instrumento. Em regime autoritário nem todas as demandas são expostas e o critério de atendimento não é uniforme e impessoal. Por óbvio, o sistema penal é chamado a ―calar‖ os dissidentes e toda classe de pessoas que se insurgem contra a arbitrária distribuição de bens e valores.

Antes de procurarmos definir o que é democracia, intuindo que a sua funcionalidade depende muito da vigência da regra da maioria, é conveniente explicitar que tal regra não significa uma tirania da maioria e assim não se sobrepõe à validade universal e permanente dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais são reconhecidos, é certo, em um contexto espaço-temporal definido, porém, atualmente, com vocação de eternidade,64 como frisamos em um instante anterior. A regra da maioria consiste em:

―uma técnica rápida de tomada de decisões coletivas que maximiza a liberdade individual e assegura a ampla e igual participação política dos cidadãos, aproximando governantes e governados por meio de uma prática social de legitimação eventual, finita no espaço e no tempo, que sujeita as decisões à

63 Idem. 64 Campilongo (ob. cit., p. 53) adverte que é ridículo submeter os direitos

fundamentais ao escrutínio do maior número. A regra da maioria tem um limite claro: não é legítima — nem ela nem nenhuma outra —, para condicionar, suprimir ou reduzir os direitos essenciais da pessoa humana. A autêntica democracia realiza-se com a atribuição do poder soberano à maioria, por meio do respeito aos direitos essenciais da pessoa humana (Comparato, ob. cit., p. 79).

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contínua revisão e mantém a sociedade unida‖65. Alertar para isso é não perder de vista e não alienar a

importância de definir a democracia usando bitolas largas, potencializada que está a alienação em razão das opções políticas do Estado contemporâneo.

Em tempo de globalização, vale dizer que o encaminhamento das demandas democráticas vicejadas no plano dos direitos fundamentais de segunda e terceira gerações, especialmente nos países denominados periféricos ou do Terceiro Mundo, deixa aos poucos as pautas políticas, diminuindo conseqüentemente o intervencionismo e dirigismo estatal — retorna-se à era do Estado mínimo —, de sorte a reduzir o direito público praticamente ao direito penal, com o restabelecimento inevitável de um tipo de Estado semelhante ao conhecido estado gendarme.

Sem, por enquanto, vincular diretamente os novos tempos e a cultura que os inspira à estrutura processual penal em concreto, vale insistir em sublinhar a tendência política da sociedade atual, porque a adoção de uma cultura de Estado mínimo, de Estado penal ou simplesmente punitivo, tendo como sua única responsabilidade o monopólio legítimo do emprego da força, produz um tipo específico de política criminal, ilumina um movimento penal e acaba incidindo sobre o modelo de sistema processual acatado e interpretado, ainda que à luz de uma constituição democrática.

Salienta Bobbio que a idéia de que o único dever do Estado consiste em impedir que os indivíduos provoquem danos uns aos outros, deriva de uma arbitrária redução de todo direito público a direito penal.66

A noção de democracia que orienta este trabalho parte da premissa de que se trata de sistema político convencionado institucionalmente, cujo propósito está em promover decisões políticas, legislativas e administrativas,

65 Campilongo, ob. cit., p. 38. Ver igualmente Kelsen, A Democracia, São

Paulo: Martins Fontes, 1993, pp. 30-31. 66 Bobbio, O Futuro da Democracia, p. 112.

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considerando a participação popular. Em realidade, as decisões geradas no âmago da democracia, em virtude de que a própria democracia irá conferir legitimidade ao direito, reivindicam a compatibilidade com princípios da justiça e da solidariedade universal, bem como com princípios éticos de uma conduta de vida auto-responsável, projetada de forma consciente, tanto de indivíduos como de coletividades.67

Portanto, a democracia vive em um governo do povo e não exclusivamente para o povo, sendo válido o magistério de Kelsen, que via na ―participação no governo, ou seja, na criação e aplicação das normas gerais e individuais da ordem social que constitui a comunidade‖,68 a característica essencial da democracia, resgatando dessa maneira o significado original do termo, cunhado na Grécia Antiga: demos = povo, kraiten = governo.

Mas não apenas isso. A expressão kelseniana limita a idéia de democracia à conhecida democracia política, cujo fundamento é a liberdade, não concedendo às democracias social, econômica e cultural o mesmo peso. Sabe-se que o contexto da democracia política, como salienta José Álvaro Moisés, supõe pelo menos os seguintes caracteres:69

• Direito de participação de todos os membros adultos da comunidade política no processo de formação de governos em todos os níveis... • Prevalência da vontade da maioria, verificada através de mecanismos de eleições periódicas e previsíveis... • Garantia de acesso de quaisquer indivíduos, grupos, tendências ou organizações coletivas aos diferentes mecanismos que envolvem decisões relevantes para a comunidade política. • Garantia de que a minoria não será perseguida e poderá transformar-se em maioria...

67 Habermas, ob. cit., p. 133. 68 Kelsen, ob. cit., p. 142. Ver nota 35. 69 Moisés, José Álvaro. Os Brasileiros e a Democracia, São Paulo: Ática,

1995, pp. 37-38.

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• Reconhecimento de que conflitos de interesse ou identidade em torno de questões econômicas, sociais, políticas e religiosas... são legítimos e autorizam o direito de associação e/ou organização para a sua defesa. • Princípio de separação entre os poderes, garantindo que a ação dos governantes em suas distintas esferas e níveis de competência se submete a mecanismos públicos de controle.

A Constituição da República denuncia, nos capítulos

dos direitos sociais e políticos, a disposição de adotar um conceito de democracia amplo, condizente com as promessas não apenas de liberdade, de raiz anglo-saxã, mas principalmente de igualdade, no rastro da versão igualitária da Revolução Francesa, denominada por alguns, como descreve Moisés, como extensão da cidadania civil e política para o terreno social.70

Não se cuida de limitar a própria noção de democracia somente à possibilidade de influência na gestão pública, advinda das situações institucionais de respeito às liberdades de expressão, associação, informação alternativa, competição dos líderes políticos e eleições livres em sufrágio universal, mas de criar condições de alteração cultural profunda, pela educação e difusão de reais oportunidades de ascensão econômica e política, de sorte a permitir a verdadeira integração de todos, pois capazes de discernir sobre as opções apresentadas para o governo da coletividade em um sentido aberto.

Assim, a democracia consiste e se desenvolve, na medida do seu próprio dinamismo, obra aberta e inacabada,71 não só com a garantia dos direitos individuais

70 Moisés, ob. cit., p. 39. 71 Ver Bobbio, O Futuro da Democracia, p. 9, referindo que, para um regime

democrático, o estar em transformação é seu estado natural: a democracia é dinâmica, o despotismo é estático e sempre igual a si mesmo.

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mas também com a dos direitos sociais,72 atenuando-se a marginalização e tornando possível a participação pública responsável, em seus dois sentidos,73 na gestão de todas as atividades concernentes ao governo e à sociedade, inclusive na produção legítima do direito regulador das relações sociais e no exercício do controle externo legítimo da atividade processual.

A vinculação entre democracia e direito, há muito percebida na ciência política, não escapou certamente aos juristas, e menos ainda àqueles processualistas que vêem o processo como a expressão do microcosmo democrático, como realçou Dinamarco.

Pelo contrário, a tensão dialética natural da democracia projeta-se no âmbito da solução institucionalizada dos conflitos de interesses como sendo a melhor, senão a única forma de adjudicação de soluções a estes conflitos, modulando o instrumento conforme o paradigma político e deferindo ao juiz, como veremos mais à frente, a

72 Ver, a respeito, Weffort, Francisco. Qual Democracia?, São Paulo: Cia. das

Letras, 1996. 73 Renato Janine Ribeiro, a propósito da política, antecipa considerações

sobre o sentido de público, aplicáveis sem dúvida ao âmbito da estrutura processual e relevantes, no que concerne à vinculação entre direito e democracia, ou, mais propriamente, entre direito e processo, na medida em que ambos os sentidos pressupõem um nível de educação que favorece, se presente, a otimização instrumental da democracia. Assim, público se opõe a privado, ressalta o autor, e se faz sinônimo de bem comum, algo que não pode ser alvo de apreciação egoísta ou particular. Trasladando-se o conceito para o processo penal, teremos que a instrumentalidade do mencionado meio não comporta visões particularistas do direito que pretende efetivar e não admite o próprio direito penal como um fim em si mesmo, porém apenas como mecanismo de tutela adequada e razoável para determinados tipos de conflitos. Por outro lado, público se opõe a palco e revela não mais o dado da participação ativa, mas da passiva assistência, cujo único sentido positivo consiste na possibilidade de controlar a ação dos atores políticos, inclusive do juiz. Nestes derradeiros termos, os princípios da publicidade e do duplo grau de jurisdição aparecem como naturais consectários da idéia de participação democrática no processo, prevendo a um só tempo a idéia de que todo poder deve ter algum tipo de controle, visível socialmente (―A Política como Espetáculo‖, in Anos 90: Política e Sociedade no Brasil, Evelina Dagnino [org.]. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 31-40).

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legitimidade necessária à enunciação das decisões. Piero Calamandrei, em obra clássica, acentuava, na

década de 1950, a relação científica e política entre processo e democracia, assinalando, em uma postura enfática a respeito da natureza jurídica do primeiro, que, por processo, em um Estado democrático, há de se entender o conjunto de relações jurídicas entre pelo menos três sujeitos — processus est actum trium personarum — sem subordinação entre eles, mas sim com vinculações recíprocas em termos de direitos e deveres.

Além disso, naquilo que diretamente se vincula ao objeto do nosso trabalho, por processo se deve aceitar apenas o processo de partes contrapostas, dialético,74 asseverando o mestre peninsular:

―Nel processo moderno, quello che risponde ai principi costituzionali degli ordinamenti democratici moderni, le due parti sono sempre indispensabili. Il principio fondamentale del processo, la sua forza motrice, la sua garanzia suprema, è il ―principio del contraddittorio‖.‖75

A consideração da participação, independentemente do

aspecto de publicidade que deve revestir a ação pública na esfera democrática,76 é cercada de maior significado, no plano da estruturação da base sobre a qual se desenvolverá o processo, justamente por levar em conta, como disse Calamandrei, não uma relação de poder, envolvendo súditos, mas de equilíbrio entre sujeitos, cada qual com suas responsabilidades, voltados todos, no entanto, à realização

74 Sobre o conceito de modelo dialético no processo, ver, por todos, Ada

Pellegrini Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 8.

75 Calamandrei, Piero. Opere Giuridiche: Processo e Democrazia, Napoli: Morano, 1965, p. 678.

76 Bobbio advertia que é sempre uma diferença entre a democracia e a autocracia a questão de o segredo ser uma exceção e não uma regra (O Futuro da Democracia, p. 101).

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da solução justa. O processo assim, em um Estado democrático e,

principalmente, em uma sociedade também democrática, revela-se produto da contribuição dialética de muitos e não da ação isolada de um só, ainda que este um — mesmo sendo o juiz — atue informado pela disposição de encontrar a solução mais justa, ou, dito com outras palavras, apropriando-se da expressão kelseniana, ainda que este um atue para o povo. Calamandrei, bem situando a questão, remarcou que as partes são pessoas, isto é, sujeitos de deveres e de direitos, que estão perante o juiz não na condição de súditos, objetos de uma supremacia que os obriga a uma obediência passiva, mas como cidadãos livres e ativos.77

É forçoso reconhecer que a idéia de democracia atravessa o ambiente estrutural do processo, contaminando-o de diversos modos com a ideologia que busca torná-la hegemônica. Isso não espanta, na medida em que conceitos e categorias processuais são estéreis fora do solo das ideologias, como a respeito do Direito em sua totalidade havia admitido Miaille.

Mirreile Delmas-Marty salienta sobre a política criminal operacionalizada no sistema penal, no espaço jurídico do processo, que qualquer política, e aí também a criminal, é comandada por uma ideologia,78 concebida a expressão principalmente no sentido pugnado pela filosofia alemã, de Marx a Habermas, tal seja, instrumento de construção da verdade e não de mera observação.79

Deve-se, pois, à concepção ideológica de um processo

77 Calamandrei, ob. cit., pp. 678-679. 78 Delmas-Marty, Mirreile. Modelos e Movimentos de Política Criminal, Rio

de Janeiro: Revan, 1992, p. 32. 79 MCLellan, David. A Ideologia, Lisboa: Estampa, 1987, p. 25. Ver, também, nosso ―Breves Considerações sobre o Direito Processual Penal‖ (Geraldo

Prado, in Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, ano 2, nº 3, Rio de Janeiro: Revan, 1997, pp. 41-47) e ―Ideologia, Estado e Direito‖ (Wolkmer, Antonio Carlos. São Paulo, RT, 1995, pp. 93-95), sendo certo que este último, apurando as divergências doutrinárias incidentes sobre a definição de ideologia, distingue o sentido positivo do negativo do termo.

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penal democrático, a assertiva comum de que a sua estrutura há de respeitar, sempre, o modelo dialético, reservando ao juiz a função de julgar, mas com a colaboração das partes, despindo-se, contudo, da iniciativa da persecução penal. A estrutura sincrônica dialética do processo penal democrático considera, pois, metaforicamente, o conceito de relação angular ou triangular e nunca de relação linear, sacramentando as linhas mestras do sistema acusatório.

Ada Grinover percucientemente aduziu que no Estado de direito não há outro processo senão o acusatório, escorado na distribuição das principais funções processuais entre três sujeitos, de modo a dispensar o juiz da iniciativa da perseguição penal e garantir a sua imparcialidade.80

Acrescenta a ilustre professora, demarcando os planos e limites ideológicos da eleição da estrutura democrática sobre a qual deve se basear a relação processual:

―Ainda que isso não resulte em construir o sistema acusatório mecanicamente, segundo o processo civil, a imposição do processo penal como processo de partes se nos afigura como uma tomada de posição inabalável, como uma confissão de princípios, como uma batalha sem concessões: pois, se ainda se lamenta que sejamos vítimas do ―mito do triângulo‖; se considerar o contraditório como condição para qualquer ato de formação da prova ainda suscita perplexidade e reações... não se pode senão proceder a uma escolha ideológica.‖81

Acreditamos sinceramente que a eleição ideológica do

sistema acusatório é uma natural conseqüência das influências do princípio democrático em relação ao direito, uma vez que a separação dos poderes, projetando-se como mecanismo de viabilização da soberania popular, identifica nas atuações legislativa e judicial esferas distintas quanto à

80 Grinover, Liberdades Públicas e Processo Penal, p. 56. 81 Idem.

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origem das respectivas investiduras, de sorte a conceber também modos diferentes de captação e orientação epistemológica e normativa das ações desenvolvidas em ambos os campos.

Com efeito, a definição dos crimes e cominação das penas demanda a edição de lei prévia — nullum crimen sine lege — em razão do que se supõe preenchido o requisito de legitimação da determinação das situações que autorizam a compressão substantiva de direitos fundamentais.

É verdade que o legislador não tem carta branca para arbitrar ilimitadamente as condutas que crê nocivas à convivência social.

À característica brutal do direito penal corresponde a sua idéia geral como ultima ratio, em virtude da qual, abdicando-se da concepção salvacionista da incriminação e punição totais, salientam-se os aspectos fragmentários da intervenção penal na vida social, com a eleição daquelas situações excepcionais cuja gravidade justifique cogitar da adoção de uma resposta socialmente organizada de igual seriedade.

Para isso, ao lado do preceito formal de legitimação, consistente na exigência de lei prévia, é imperativo que se definam os conteúdos, portanto, que a lei penal seja necessária, que a necessidade decorra de uma lesão real ao bem jurídico, que a lesão tenha sido produzida por uma conduta exterior do indivíduo (omissiva ou comissiva mas sempre externamente apreciável) e que a conduta seja culpável, tanto no sentido de estar inspirada por dolo ou culpa como por ser reprovável pessoalmente a seu autor.82

Somente se esses requisitos estiverem presentes estará completo o círculo em cujo interior repousará a legitimidade da incriminação de comportamentos considerados censuráveis pela maioria das pessoas, através de seus representantes escolhidos pelo livre sufrágio universal.

Acontece que, se é possível perceber uma ligação imediata entre a soberania popular e o processo de edição 82 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 93 — ―Modelos de Direito Penal‖.

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das leis, o mesmo não ocorre quando se trata de avaliar a atuação judicial, pois tanto a investidura dos juízes como a sua permanência no cargo normalmente não obedecem a um processo eletivo.

Como de forma satisfatória reconhece Ferrajoli, o que vai caracterizar a legitimação da atividade jurisdicional, um dos pilares do tríptico dos poderes do Estado, é a atuação dos juízes em razão da busca do caráter representativo, nas suas sentenças, da verdade substancial, conforme sua independente atuação e sujeição somente à lei válida, porquanto constitucional.83

Uma atividade decisionista do juiz, baseada na sua credibilidade social mas intangível pelas partes, na medida em que se apresenta como exercício da sua potestade, máxima representação da sua vontade pessoal, não é legítima, mesmo quando parece mais eficiente porque atende às pautas de repressão penal. Assim, não é legítima a decisão do juiz que condena o acusado porque a maioria das pessoas quer esta condenação. A legitimidade da condenação e a validade jurídica da sentença dependem da correspondência entre aquilo que afirma o juiz e as provas lícitas produzidas no curso do processo.

É importante que se ressalve que o nexo entre legitimidade e verdade que assegura o esquema epistemológico e normativo e define a natureza específica da jurisdição no moderno Estado de direito, nas palavras de Ferrajoli, não está centrado em uma concepção eficientista, meramente instrumental ou utilitária, ainda que haja um consenso comunitário em torno deste conceito de jurisdição.

Não há verdade real, pelo menos se a aceitarmos como expressão absoluta dos fatos que devem ser demonstrados no processo. Trata-se de um ideal não alcançável, que cede espaço a uma verdade não definitiva mas contingente, não absoluta mas relativa ao estado dos conhecimentos e experiências contemporâneos84 e que, ao certo, corresponde

83 Idem, p. 69. 84 Ferrajoli, ob. cit., p. 50.

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provavelmente ao que a parte quis demonstrar pelo poder de explicação das evidências ajuizadas.

A legitimidade da atividade jurisdicional está condicionada ao emprego de técnicas que imunizem o processo do decisionismo judicial (em outras palavras, da decisão arbitrária) e não iludam quanto à conquista de uma verdade real, o que só ocorrerá na medida em que sejam assegurados os direitos e garantias fundamentais, permitindo que acusação e defesa demonstrem a correspondência entre as teses esposadas e as provas produzidas, com a redução do subjetivismo inerente a todo julgamento.

Desta forma, será legítima a atividade jurisdicional penal, porque terá sido possível conferir à sentença a qualidade de haver apreendido o tipo de verdade que pode ser constatada de modo mais ou menos controlável por todos, mas isso só acontecerá se forem satisfeitas as garantias do juízo contraditório, oral e público, isto é, na vigência do sistema acusatório. A legitimidade do exercício do poder, cujo berço é a soberania popular, é a fonte da democracia.

Naturalmente por isso a perspectiva democrática do processo estabelece um tipo privilegiado de relação entre direito e democracia, mas não se pode olvidar das influências culturais determinantes, presentes na sociedade civil, a um tempo condicionadas e condicionantes da maneira pela qual a batalha sem concessões por um modelo de estrutura democrática do processo penal, compatível com a vontade igualmente democrática expressada na Constituição, ecoa concretamente no meio judiciário e social, portanto, no microcosmo e no cosmo sociais.

Os estudiosos da ciência política, preocupados com a análise dos diversos modelos de transições políticas, têm dedicado especial atenção ao papel da consolidação cultural dos valores que alicerçam o regime democrático.

Não se trata de aceitar simplesmente a prevalência da escolha constitucional e, portanto, jurídica, da democracia, como fator suficiente para a estabilização democrática. É

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preciso que a democracia se faça presente como um valor decisivo na vida das pessoas, pragmaticamente imprescindível para alcançarem a vida digna. Moisés assinala que a cultura política é condição sine qua non para a orientação de comportamentos e ações envolvendo a generalização de um conjunto de valores elementares ao processo de democratização,85 esclarecendo que a desconsideração da dimensão político-cultural afeta gravemente o suporte democrático da sociedade. Não basta um Estado democrático, é necessário que a sociedade também o seja.

Eis, por isso, a razão pela qual Enrique Peruzzotti destacou que a consolidação institucional da democracia está sujeita também ao importante papel jogado pelas variáveis culturais,86 que não podem ser desprezadas.

A institucionalização da democracia não depende exclusivamente de processos de engenharia institucional elaborados de cima para baixo, na perspectiva das elites, mas ainda de ―práticas e identidades políticas da sociedade civil e sua relação histórica com a democracia e o constitucionalismo‖.87 Do mesmo modo, a estruturação democrática do processo penal não se impõe simplesmente de cima para baixo, ainda que se parta da Constituição, pelo menos não sem que se vençam fortes adversários culturais, credores inabaláveis da fé na verdade real, absoluta, conquistável através de um procedimento penal de defesa social, como o inquisitório, que, embora esteja em crise, ainda se manifesta enquanto estrutura procedimental na maior parte da América Latina, conforme salientou Alberto M. Binder.88

85 Moisés, ob. cit., pp. 84-85. 86 Peruzzotti, Enrique. ―Sociedade Civil e Constitucionalismo na Argentina‖,

in Sociedade Civil e Democratização. Leonardo Avritzer (Coord.). Belo Horizonte, Del Rey, 1994, pp. 215-234.

87 Peruzzotti, ob. cit., p. 216. 88 Alberto Binder, ao falar da reforma da justiça penal no III Seminário

Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, em São Paulo, em 11 de setembro de 1997.

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No Brasil, é importante frisar, a dificuldade de consolidação de uma cultura democrática e, naturalmente, também de direitos fundamentais, pode estar relacionada ao modo pelo qual lentamente foi promovida a transição para a democracia.

A transição democrática, como fenômeno político, pode ser definida como ―processo de passagem de um sistema político autocrático para outro democrático‖,89 em virtude do que pelo menos duas dimensões são seguramente observadas: promove-se a liberalização política do regime (aumento do pluralismo político, da tolerância frente à oposição e do respeito às liberdades públicas) e a sua democratização (maior participação popular, direta ou indireta, na tomada de decisões coletivas).90

Com efeito, se as lutas sociais, correntes universais de opinião que confluíram e lideranças e formas político-organizativas que se impuseram foram importantes para a democratização,91 não é menos certo que práticas autoritárias sustentadas pelos grupos de poder obrigaram a um intenso relacionamento dialético entre os governos autoritários e os grupos oposicionistas, revelando a densidade peculiar da adesão de setores da sociedade às políticas antidemocráticas.

No Brasil não houve uma ruptura com o passado autoritário. Antes, a transição proporcionou a acomodação entre os setores governamentais, que representavam parte da elite, e algumas das principais forças oposicionistas, de modo tal que estruturas e mesmo pessoas do antigo regime se incorporaram ao novo.92

89 Rico, José María. Justicia Penal y Transición Democrática en América

Latina, Madrid: Siglo Veintiuno, 1997, p. 38. 90 Idem. 91 Cardoso, Fernando Henrique. ―Desenvolvimento Associado — Dependente

e Teoria Democrática‖, in Democratizando o Brasil. Alfred Stepan (org.). São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 480.

92 Sintomático, aí, que no Estado do Rio de Janeiro, no período de 1996-1998, as forças policiais tenham sido comandadas por general do Exército, figura expressiva do regime anterior, encarregada da repressão aos que aderiram à luta armada.

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A ordem e a paz dos governos ditatoriais — a ordem dos garrotes e a paz dos cemitérios93 — ficaram parcialmente impregnadas na memória dos brasileiros e por isso, sob a intensa influência das pautas da mídia que adotou o movimento de lei e ordem, a cultura do medo ganha terreno da cultura democrática mesmo depois de 1988.94

Calamandrei atentava para o fato de que o juiz é um homem político, que vive na sociedade e que participa da dinâmica de aspirações econômicas e morais dessa mesma sociedade, exprimindo na sentença o seu sentimento, inafastável da sua condição de homem político e social.95

Assim, por maior que seja seu carinho pela Constituição, não é improvável que uma cultura subjacente, de forte conotação de defesa social, incrementada pela ação persistente dos meios de comunicação, reclamando menos impunidade e maior rigor penal, derivada, por sua vez, de uma cultura geral política autoritária, como a herdada nos países latino-americanos, faça do juiz alguém submetido à idéia de um processo menos dialético e participativo e muito mais hierárquico e subordinativo, subordinação hierárquica que resulta na dependência real do sistema de justiça ao poder político e aos grupos de pressão externos ou internos, estes encastelados na organização judiciária.

Binder, antes mencionado, destacou na ocasião que o sistema inquisitivo não é só uma forma de processo, senão um modelo completo de organização judicial, uma figura

93 Weffort, Francisco. ―Por quê democracia?‖ in Democratizando o Brasil.

Alfred Stepan (org.). São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 511. 94 É valioso destacar que a cultura do medo sugere, como reação ao fenômeno

da criminalidade, a potencialização de uma guerra contra o crime, reintroduzindo conceitos bélicos na política criminal e ratificando o processo de militarização que marca a convergência das funções policial e militar peculiares ao Brasil e à América Latina (Rico, ob. cit., p. 26). O resultado prático do desvio das atividades de investigação e controle das infrações penais, levando em consideração o aparato castrense de repressão, a nosso juízo está em minimizar a importância do próprio processo penal como instrumento de mediação dos conflitos sociais desta natureza.

95 Calamandrei, ob. cit., p. 642.

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específica de juiz e, principalmente, uma cultura também de contornos bem precisos.96 Este juiz e esta cultura ligam-se naturalmente, mesmo quando a base normativa dispõe em sentido contrário, pelo sentimento de insegurança, tantas vezes explorado como demanda de violência pela mídia, mas que corresponde, salientou com razão Binder, a uma demanda de segurança verdadeira e justa no contexto de uma sociedade democrática que se pretende desenvolver sem abusos de poder, entre os quais estão aqueles que têm origem na atuação criminosa.97

96 Ferrajoli soma a isso o fato de o direito e o processo penal inquisitórios

configurarem, ainda, uma epistemologia penal específica, caracterizada conforme a (in)definição normativa das condutas delituosas e o decisionismo predominante da atividade de comprovação judicial — auctoritas — non veritas facit iudicium. Ferrajoli, in Derecho y Razón, p. 41.

97 A justa e cabível demanda por segurança importa, naturalmente, na concepção de um interesse público não apenas expressado nas ações de prevenção e repressão criminal, mas por igual na judicialização do conflito de interesses de natureza penal, publicizado também porque se concebe a infração penal como algo que agride um valor social relevante, como salientou Afrânio Silva Jardim (Ação Penal Pública: Princípio da Obrigatoriedade, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 13). Nestes termos, cumpre ao Estado, conforme uma visão garantística, da qual pormenorizadamente serão expostos os aspectos mais salientes adiante, no item Constituição e Processo Penal, intervir em favor da maior parte da população, de forma a assegurar a qualidade de vida e impedir a submissão do cidadão não-criminoso ao criminoso, em áreas dominadas pela criminalidade (Miglino, Arnaldo. ―Breves Reflexões sobre o Significado do Garantismo [em vista dos acontecimentos italianos dos anos 1988-1994]‖, in Lições Alternativas de Direito Processual. Horácio Wanderlei Rodrigues (org.), São Paulo: Acadêmica, 1995, p. 47). A solução justa, todavia, apesar da publicização do conflito, há de ser investigada sem diminuir o valor sempre destacado da atenção ao ofendido. Neste ponto o autor mudou de opinião entre a 1ª e 3ª edição. A tutela do ofendido é tarefa do direito penal, que ameaça com a sanção penal o agente que agride bens jurídicos. É, também, tarefa do Estado Providência, que deve viabilizar a atenção às vítimas de crimes, buscando meios de socorrê-la. O processo penal de consenso, que estimula acordo entre vítima e agressor, todavia não alcança qualquer resultado satisfatório em termos globais, pois enfraquece as garantias do acusado e coloca a vítima frente a frente com ele, sem ter como assegurar condições de igualdade, salvo com abuso do Poder de coerção. Isso está explicitado em Elementos para uma Análise Crítica da Transação Penal, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003.

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Convém assinalar, todavia, que no processo de transição para a democracia está implícita a reforma do sistema penal, na medida em que se prestigiam os direitos fundamentais antes solene ou escamoteadamente desprezados e, conseqüentemente, legitimam-se os remédios e garantias postos pelo legislador com o objetivo de dar efetividade às posições jurídicas de vantagem decisivamente reconhecidas. Uma cultura que expressa, ainda que sutilmente, sua preferência por uma estrutura processual estranha aos modelos garantistas, se por um lado pode incentivar a produção de leis e decisões incompatíveis com a direção constitucional, reservando a esta incômoda posição de mera promessa, por outro não está imobilizada, petrificada e, portanto, imune aos resultados sociais decorrentes da implementação da opção democrática no âmbito do processo penal.

Se a confiança do cidadão no sistema de justiça penal é condicionante decisiva da sua segurança,98 é preciso, pois, desmistificar o papel que este mesmo sistema penal desempenha no controle da criminalidade e na equação importante derivada da tutela de interesses que representam valores hoje universalmente ponderados.99

Esse processo de desmistificação, pelas dificuldades que pode apresentar, certamente não será tão doloroso como foi

98 Neste sentido entende Antonio Bernardo Colaço (―A Confiança do Cidadão

no Sistema de Justiça Criminal como Condicionante Decisiva da sua Segurança‖, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 5, 3º e 4º, jul-dez/1995. Lisboa: Aequitas Editorial Notícias, 1995, pp. 361-372).

99 José Eduardo Faria alerta para o fato de que como sua própria história revela, nas sociedades divididas em classes e num mundo dividido em nações pobres e países ricos, os direitos humanos quase sempre consistem numa ameaça à ordem estabelecida, pois hão de ser encarados numa perspectiva essencialmente política, ou seja, como promessa emancipatória ou como palavra de ordem libertária (Direito e Globalização Econômica: Implicações e Perspectivas, São Paulo: Malheiros, 1996, p. 151), sendo esta a motivação muitas vezes latente nas ações voltadas à desmoralização do conceito de direitos fundamentais, além da disposição de não se promover uma educação fundada neles, inequívoco alicerce para o conhecimento das reais causas da criminalidade e da verdadeira finalidade e potencialidade de todo e qualquer sistema penal.

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o de descoberta da sociedade civil brasileira, fruto de profundas rupturas nas tradições ideológicas do país.100 E com certeza o complementará.

Ademais, não se deve estimar com reservas a evidência denunciada pela escola histórica de que o direito também é uma produção cultural, uma criação do homem, apto a influir sobre o próprio homem em uma relação de interação. Está certo J. J. Calmon de Passos ao assinalar que:

―O direito não é, portanto, um fenômeno natural, algo posto à disposição do homem pela natureza e sujeito a leis necessitantes. Ele se situa no mundo da cultura, é uma criação do homem, uma das muitas formas pelas quais tenta compreender o existente para sobre ele interagir, conformando-o e direcionando-o no sentido do atendimento de suas necessidades e realização de suas expectativas‖.101

O direito, como construção humana, pode e deve

elaborar as condições e critérios de justificação das decisões por ele admitidas como válidas, de sorte a que somente as que se enquadrem neste modelo estejam providas da legitimidade democrática inerente à soberania popular e supremacia dos direitos fundamentais.

O princípio democrático fundamenta o caráter instrumental do próprio direito e, como acentua Ferrajoli, precisamente porque o direito é um universo lingüístico artificial, pode permitir, pelo emprego de técnicas apropriadas de formulação e aplicação das leis, a fundamentação dos juízos decisórios sobre a verdade subtraída em nível extremo ao erro e ao arbítrio.102

100 Weffort, Francisco. ―Por quê democracia?‖, in Democratizando o Brasil.

Alfred Stepan (org.). São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 515. 101 Passos, J. J. Calmon. ―Processo e Democracia‖, in Participação e Processo.

Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Kazuo Watanabe (Coord.). São Paulo: RT, 1988, p. 86.

102 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 70.

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Neste contexto, assoma a relevância da privilegiada relação do direito com a democracia, como frisamos anteriormente, mas não com uma democracia qualquer, fulcrada na mera declaração formal de respeito aos direitos fundamentais e numa vinculação passiva entre governados e governantes e sim na real democracia participativa, integradora e solidária, com inegável repercussão no plano do processo penal, de sorte que a cultura democrática aos poucos poderá ser desenvolvida pela conscientização da forma democrática da sociedade conviver.

Recorrendo novamente a Calmon de Passos, releva salientar que, se estamos alcançando um estágio novo no processo de transformação da democracia moderna, não é suficiente que se democratize o Estado. Impõe também democratizar-se a sociedade.103

Nessa linha de pensamento, o processo penal não é apenas o instrumento de composição do litígio penal ou de resolução das causas penais, mas, sobretudo, um instrumento político de participação, com maior ou menor intensidade, conforme evolua o nível de democratização da sociedade.

Para tanto, afigura-se imprescindível a coordenação entre direito, processo e democracia, o que ocorre pelo desejável caminho da Constituição, porquanto, institucionalizando a proteção dos mencionados direitos, reconhece-se que somente pela via democrática atingirão sua plena efetividade.104

Esse é o motivo pelo qual convém igualmente dedicar algumas palavras ao tema Constituição e Processo Penal. 2.4. Constituição e Processo Penal

Com efeito, a relação entre a Constituição e o Processo

Penal, antes de ser ditada pelo fato de pertencerem ambos os

103 Passos, ob. cit., p. 92. 104 Assim também pensa Hans Peter Schneider (Democracia y Constitucion,

Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, pp. 18-19).

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ramos jurídicos ao campo do Direito Público,105 e sem desconsiderar a primazia constitucional na superposição das normas jurídicas106 influindo decisivamente na demarcação do âmbito de legitimidade, validade e eficácia das leis, decorre da constatação de que, na essência, Constituição e Processo Penal lidam com algumas importantes questões comuns: a proteção aos direitos fundamentais e a separação dos poderes.

Giuseppe Bettiol sublinhava que a Constituição, ligada a valores e ideais da democracia, deve preocupar-se em fixar claramente algumas normas processuais penais vinculadas à identidade democrática, pois que ambos os ramos jurídicos tutelam a liberdade individual, como se destinatários fossem de uma vocação comum.107 105 Sobre a inserção do Processo Penal no tronco do Direito Público, aludiu

Miguel Fenech, não só motivando historicamente a classificação, como chamando a atenção para as inolvidáveis conseqüências disso decorrentes, tais como a carência de conceitos de valor universal amadurecidos, à semelhança do que ocorre com o Direito Privado (muito embora, atualmente, a situação não esteja no mesmo ponto), relatividade de conceitos em função da relatividade do Estado, em certo país e num preciso momento, e a superveniência de normas processuais ditadas sob o império de uma concepção estatal que pode estar superada, malgrado as normas processuais permaneçam em vigor, dado da realidade que de perto interessa ao nosso estudo (Derecho Procesal Penal, vol. I, Barcelona: Labor, 1952, pp. 49-51).

106 Não é nossa pretensão renovar o debate sobre as classificações das Constituições e, portanto, das normas constitucionais (malgrado adiante, por força da necessária clareza que o trabalho deve ter, algumas considerações sejam tecidas) nem esse é o objeto do estudo que se desenvolve. Assim, naturalmente além da diferenciação levada a efeito na introdução (Constituição real versus Constituição jurídica), pertinente à abordagem crítica, e ainda embora se conheçam outras categorizações (Constituição material, formal, instrumental, normativa etc.) cingimo-nos a reter o conceito normativo identificado por Kelsen, que salienta na Constituição o pressuposto de consistir no nível normativo mais elevado do Direito Nacional (Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 129-140), definindo-se como uma ordenação sistemática e racional da comunidade política, plasmada num documento escrito, mediante o qual se garantem os direitos fundamentais e se organiza, de acordo com o princípio da divisão dos poderes, o poder político (Canotilho, ob. cit., pp. 12 e 63).

107 Bettiol, Giuseppe. Instituciones de Derecho Penal y Procesal, Barcelona: Bosch, 1977, p. 222. Henkel, por sua vez, afirma que o conteúdo normativo

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Salientava o mestre italiano, antevendo pelo prisma da Constituição a conexão indelével entre Processo e Democracia, que um ―Código Processual que não encontre seu fundamento racional, político e jurídico, no articulado de uma Constituição que ‗reconheça e garanta os direitos invioláveis do homem‘ se encontra exposto a todas as possibilidades de reformas vinculadas a maiorias político-parlamentares ocasionais, com grave prejuízo das liberdades públicas e privadas‖.108

Basicamente, todos sabem a verdade contida na proclamação de Bettiol, na medida em que constatamos que os apelos excessivos da mídia e a influência do debate sobre violência e criminalidade nos processos eleitorais regionais e nacionais volta e meia conduzem os políticos ao discurso de reforma ordinária do processo penal, fundado em uma cultura autoritária, que ensaia movimentos de lei e ordem,109 com o desmesurado e inconseqüente endurecimento das situações típicas do procedimento, tais como aquelas relativas à prisão e liberdade, sem amparo na Constituição da República.

Mesmo o princípio constitucional da presunção da inocência é colocado de lado na elaboração e aplicação das leis, malgrado não se proceda a qualquer alteração no panorama da Constituição, alteração esta impossível, como notado ao dedicarmos atenção às limitações ao princípio da

do processo penal está tão profundamente conformado pelo do Direito Constitucional, que faz sentido asseverar que o Processo Penal é o verdadeiro Direito Constitucional aplicado (apud Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra, 1974, p. 74).

108 Idem. 109 Sobre os movimentos de lei e ordem, ver, por todos, Alberto Silva Franco,

Crimes Hediondos, 3ª ed. São Paulo: RT, 1994, pp. 30-40. Convém frisar desde logo, porém, que na maioria das vezes as modificações legislativas não decorrem do convencimento empiricamente determinado dos legisladores, sobre a eficácia do tratamento penal e processual mais rigoroso que postulam, e sim da necessidade política de produzir confiança no sistema jurídico-político, ressaltando a importância social da ação dos protagonistas deste sistema, implementando a providência simbólica que Marcelo Neves definiu como sendo ―Legislação-Álibi‖ (Neves, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica, São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 37).

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maioria, pois os direitos fundamentais inscrevem-se na ordem constitucional brasileira como cláusulas pétreas (artigo 60, § 4o, inciso IV da Constituição da República de 1988).110

Assim, a análise do Processo Penal responde pela ótica constitucional a uma exigência não só metodológica e jurídica, mas também político-institucional, como acentuava Georg Jellinek, ao mencionar os liames que repercutem na unidade científica de direito constitucional e política.111

Marcelo Neves, por seu turno, ao estudar a constitucionalidade simbólica, destaca atentamente a vinculação entre política e direito, ou, de forma mais definida, entre política e Constituição, acentuando que ―a Constituição em sentido especificamente moderno apresenta-se como uma via de prestações recíprocas e, sobretudo, como mecanismo de interpenetração (ou mesmo de interferência) entre dois sistemas sociais autônomos, a Política e o Direito‖.112

Ada Grinover alertou para o fato de que Mendes Júnior, no final do século XIX, já focalizava o processo como garantia dos direitos individuais, antecipando-se, como bem disse a ilustre doutrinadora, na compreensão dos aspectos constitucionais do direito processual.113 Embora se refira, depois de Mendes Júnior, a Kelsen, Calamandrei, Cappelletti, Liebman, Couture, Buzaid e Frederico Marques, entre outros, a própria Ada Grinover insere-se também, indiscutivelmente, ao lado de Cândido Rangel Dinamarco e Kazuo Watanabe, no rol dos processualistas que enfatizaram o estudo do direito processual constitucional, assim

110 Vale salientar, com Eugenio Florian (Elementos de Derecho Procesal

Penal, Barcelona: Bosch, 1933, pp. 15 e 152-153), que há situações nas quais vige, na realidade, um processo penal extraordinário, referido a momentos autoritários, de limitação ou supressão do exercício dos direitos fundamentais, em prol da chamada Defesa Social.

111 Jellinek, Georg. Reforma y Mutacion de la Constitucion, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.

112 Neves, Marcelo. Ob. cit., p. 62. 113 Grinover, Ada Pellegrini. As Garantias Constitucionais do Direito de Ação,

São Paulo: RT, 1973.

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compreendido, na vigorosa lição de Dinamarco, como condensação metodológica e sistemática dos princípios constitucionais do processo.114

A certeza científica da influência dos sistemas políticos sobre as bases processuais mediada pela Constituição, encaminhou os estudos do processo civil e penal, certeza alicerçada pela convicção de que a constituição é, pois, o fundamento de validade de todas as leis115 e a garantia, dada a rigidez dos seus processos de transformação, emenda ou mesmo substituição,116 da proteção jurídica e social de ideais da administração da justiça que funcionam como métodos de legitimação da função de composição dos conflitos e anteparos contra situações autoritárias, algumas das quais dramaticamente vividas na Europa, na primeira parte deste século.

Apesar de a doutrina processual ter ultrapassado com cautela o tempo da consolidação técnico-científica do processo, vencendo, em seguida, sua fase de crítica, reveladora da etapa instrumentalista, para alcançar hoje as discussões sociopolíticas,117 na verdade o método derivado dos estudos constitucionais, extremamente útil no exame crítico, segundo instante de desenvolvimento dos estudos do processo como ramo autônomo do direito material, serve ainda a análises de categorias processuais importantes e pouco exploradas, como é o caso do sistema acusatório.

Vale dizer, apenas para ilustrar, que além da obra

114 Dinamarco, A Instrumentalidade, p. 24, e Cintra, Grinover e Dinamarco,

Teoria Geral do Processo, 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994. 115 Grinover. As Garantias Constitucionais, p. 9. 116 A afirmação da solidez da Constituição, desejada conforme o

constitucionalismo, porquanto deva ser boa e duradoura, a ponto de levar Ferdinand Lassale a revelar que ao tempo em que o país não protesta pela reforma ordinária das suas leis, protesta e grita ―Deixem a Constituição‖ quando se trata de pensar em alterá-la (Lassale, Ferdinand. A Essência da Constituição, 2ª ed. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1988, pp. 8 e 41), está sofrendo os influxos da denominada ingovernabilidade, atribuída à previsão dos direitos fundamentais prestacionais, geradores de déficit público, expandindo-se ainda sobre os da primeira geração, pelo que dificultariam, nessa visão, a operação de defesa social.

117 Grinover. O Processo em Evolução, pp. 3-19.

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clássica de Ada Grinover — As Garantias Constitucionais do Direito de Ação —, que envolve atenciosa avaliação dos direitos de ação e de defesa, conforme a Constituição, outras tantas, significativas, igualmente vieram à lume, como por exemplo As Garantias Constitucionais na Investigação Criminal, de Fauzi Hassan Choukr, Primeiras Linhas sobre o Processo Penal em Face da Nova Constituição, de Paulo Cláudio Tovo e João Batista Tovo, e Processo Penal e (em Face da) Constituição, de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho,118 cumprindo, no entanto, preencher-se a lacuna gerada pela ausência de um trabalho que diretamente trate do sistema acusatório à luz da Constituição, embora muitas obras incidentalmente o hajam abordado, como é o caso da dissertação de Choukr e da excelente tese de Afrânio Jardim sobre Ação Penal Pública, também mencionada.

É curial acentuar que a premissa da atividade que estamos desenvolvendo vincula-se ao pensamento fundamental, mais à frente explicitado, de que a Constituição da República escolheu a estrutura democrática sobre a qual há, portanto, de existir e se desenvolver a relação processual penal, forçando-se, assim, a adaptação do modelo vigente antes de 1988.

Tal estado de coisas reflete a perspectiva da base processual especialmente como garantia constitucional, instrumentalizada de modo ordenado, conforme os princípios constitucionais, de maneira a permitir a adequada fruição dos direitos de ação e de defesa, na busca da justa solução119 do conflito de interesses penal ou do caso penal.

118 Choukr, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação

Criminal, 2ª edição, Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2001; Carvalho, Luis Gustavo Grandinetti Castanho. Processo Penal e (em Face da) Constituição, 3ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004; Tovo, Paulo Cláudio e Tovo, João Batista. Primeiras Linhas sobre o Processo Penal em Face da Nova Constituição, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989.

119 Releva notar, visto que em várias oportunidades citamos a busca da justiça como um dos fins perseguidos pelo processo, que há, entre muitas outras, uma obra capital sobre a transição do Estado de Direito ao Estado de Justiça: El Proceso Justo (Morello, Augusto M. Buenos Aires: Platense -

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Nessa linha de raciocínio é necessário distinguir o sentido jurídico de direitos e garantias, ambos preservados constitucionalmente, para compreendermos o alcance da tutela constitucional de determinado tipo de estrutura processual.

Hector Enrique Quiroga Cubillos120 entende que as garantias são instrumentais, constituindo-se nos meios processuais pelos quais se logra a proteção efetiva dos direitos. Por sua vez, Ada Grinover destaca que se compreende por direito um fenômeno de índole declaratória, ou seja, contido em norma que exige determinado comportamento,121 enquanto as garantias configuram o instrumento assecuratório do direito.

Evidentemente, o processo como instrumento da jurisdição representa uma primeira garantia, em razão de que outras hão de operar, especialmente a imparcialidade e independência do juiz, o contraditório e a ampla defesa e a iniciativa da parte para a ação (ne procedat judex ex officio), sacramentando-se, na medida do possível, a igualdade das partes.

Aceitando-se a epistemologia peculiar ao garantismo penal, os preceitos da presunção da inocência, da reserva de jurisdição (nulla culpa sine iudicium) e do habeas corpus constituem a base das garantias pelas quais historicamente ao menos se assegura o primado de uma jurisdicionalidade em sentido lato, enquanto o contraditório, a distribuição do ônus da prova, a iniciativa da parte para a ação e a defesa concreta do acusado conformam a jurisdicionalidade em

Abledo-Perrot, 1994). A solução justa para nós está escorada na aceitação da atividade jurisdicional penal como cognoscitiva, isto é, empenhada na determinação da verdade judicial conforme as garantias orgânicas e procedimentais que devem cercar o processo penal.

120 Cubillos, Hector Enrique Quiroga. Derechos y Garantias Constitucionales en el Proceso, Bogotá: Ediciones Libreria del Profesional, 1987.

121 Grinover, Ada Pellegrini. O Processo em sua Unidade - II, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 56. Vale ressaltar que, complementarmente, a mesma autora designou por direito público subjetivo, portanto, espécie do gênero direito, posições jurídicas ativas, com relação à autoridade estatal (Liberdades Públicas, p. 5).

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sentido estrito.122 Não é, porém, qualquer processo que reúne as

condições de instrumento de garantia dos direitos — o que no âmbito penal, como tantas vezes salientamos ao longo do trabalho, é indispensável, na medida da gravidade e repercussão sociais do caso penal — mas somente aquele que preencha a cláusula constitucional do devido processo legal, formal e também substancial123. Somente este modelo complexo respeita efetivamente os direitos de ação e de defesa e pretende, com isso, preservar também a sociedade através do deslocamento dos conflitos de interesses para o plano jurídico-institucional, no qual, a princípio, não predomina a razão do mais forte ou até da maioria, e sim a regra fixada pela lei e, antes de tudo, pela própria Constituição, mesmo contra a razão do mais forte ou da maioria.124

Assim, pode-se assinalar que compete à Constituição da República tutelar o processo para que não se enuncie cláusula vazia e não se faça ouvidos de mercador à Declaração Universal de Direitos do Homem, que prescreve, em seu artigo 8o, que toda pessoa tem direito a um recurso efetivo ante os tribunais nacionais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais, reconhecidos pela constituição ou pela lei, assegurando-se a um só tempo a garantia constitucional do processo e o processo como garantia constitucional dos direitos.125

122 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 539. 123 Sobre o devido processo legal, ver, por todos, Silveira, Paulo Fernando.

Devido Processo Legal: Due Process of Law, Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

124 É novamente Ferrajoli quem adverte que, se a legitimidade da função jurisdicional está implicada com o fato da atividade de composição dos conflitos de interesses penais ser cognoscitiva e não constitutiva, o juiz não cria o ilícito mas descobre a verdade nos limites reais que a reconstituição pelas provas possibilita, motivo por que a autoridade democrática da decisão judicial não decorrerá da vontade concreta da maioria mas estará submetida exclusivamente aos imperativos inerentes à investigação da verdade. Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 544.

125 Neste sentido, ver, por outros, Couture, Eduardo J. Fundamentos del Derecho Procesal Civil, Buenos Aires: Depalma, 1977.

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Certo é, o que será objeto de algum detalhamento no item dedicado à tipologia, que, ao se falar em garantia, dada a polissemia inerente à expressão, pode-se ter em vista tanto a norma-garantia, caracterizadora de uma posição jurídica de vantagem, reconhecida pelo direito positivo, de natureza instrumental, ou o princípio-garantia, mandamento nuclear do sistema jurídico-político, de caráter precipuamente axiológico, ou ainda a função-garantia, que emerge, nos tempos atuais, repleta de importância jurídica e significado político, porque objetiva resgatar o valor da razão jurídica, não somente no plano do ser, como fundamento do direito aplicado e vivido cotidianamente, mas principalmente naquele do dever ser, pelo que estabelece em termos de significado simbólico, orientador tanto da ação do legislador como da atuação do juiz.

Marcelo Neves assinala o papel simbólico da constitucionalização para o fim de confirmação de valores sociais, asseverando que, se em algumas situações a constitucionalização simbólica tem um sentido negativo, como no caso da legislação-álibi, pode muito bem servir também positivamente, quando se trata de prestigiar valores pertinentes à dignidade da pessoa humana, no confronto com outros que preservam um âmbito de liberdade despido ou despreocupado dessa dignidade.

Com efeito, assinala Marcelo Neves que do legislador se exige com freqüência uma posição a respeito de conflitos sociais em torno de valores. Os grupos envolvidos nos debates pela prevalência de determinados valores, sublinha Marcelo Neves, vêem a vitória legislativa como forma de reconhecimento da superioridade social de sua concepção, sendo-lhes secundária a eficácia normativa da respectiva lei.126

No capítulo dos direitos fundamentais, no entanto, se for assegurada a superioridade destes valores, mesmo que a cultura subjacente na sociedade os veja em determinados momentos como mecanismos de proteção dos criminosos e 126 Neves, Marcelo. Ob. cit., p. 34.

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os protagonistas dos sistemas político-jurídico prefiram, sem embargo da sua positivação, atuar precisamente sem implementá-los (às vezes até mesmo negando-os), a realidade é que a função-garantia importará justamente em sujeitar, como assinala Ferrajoli, a produção do direito conforme o próprio direito, influindo não só nos níveis da existência e vigência mas também no da validade, com o respeito indiscutível aos comandos que programam os conteúdos democráticos, elaborados a partir dos princípios constitucionais tutelares dos direitos fundamentais.127

Neste sentido particular, entende-se por garantias ―as técnicas criadas pelo ordenamento para reduzir a divergência estrutural entre normatividade e efectividade, e portanto para realizar a máxima efectividade dos direitos fundamentais em coerência com a sua estatuição constitucional‖.128

É bom que se diga que vigência e existência das normas para nós filiados ao pensamento que impera no seio do garantismo penal, estão relacionadas à simples legalidade das formas e fontes das normas jurídicas, enquanto a validade depende da estrita taxatividade de seus conteúdos, como resultado da conformação delas às garantias.129

Na medida em que a Constituição da República opta pela tutela dos direitos fundamentais, a estrutura processual penal daí derivada há de ser imposta com estrita observância do modo pelo qual é possível harmonizarem-se todos estes direitos e, naturalmente, não só os de defesa mas ainda, por exemplo, os de ação e à segurança.130

Ao se definir a base processual, acatando-se um sistema e um princípio expressivos dos direitos fundamentais, conforme veremos mais à frente, a Constituição fez a sua escolha, cumprindo aos aplicadores das leis ordinárias

127 Ferrajoli, Luigi. Ob. cit., p. 48. 128 Ferrajoli, Luigi. ―O direito como Sistema de Garantias‖, in Revista do

Ministério Público, Lisboa, nº 61, jan-mar/1995, p. 40. 129 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 95. 130 Convém examinar, sobre o tema, a obra de Mario Chiavario, Processo e

Garanzie Della Persona, Milano: Giuffrè, 1984.

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efetivar a Constituição, sempre conforme ela própria. Por isso, Ferrajoli tem inteira razão quando afirma que:131

―A sujeição do juiz à lei não é de facto, como no velho paradigma juspositivista, sujeição à letra da lei qualquer que seja o seu significado, mas sim sujeição à lei somente enquanto válida, ou seja, coerente com a constituição‖.

Conclui-se, dessa forma, que o sistema processual que

há de ser prestigiado por conta da função-garantia do direito e, naturalmente, da própria estrutura processual como realidade normativa, será aquele que venha a preservar a tripartição das principais atividades processuais — acusar, defender e julgar — sincronizadas, consoante o lembrado magistério de Calamandrei, de sorte a validar os direitos fundamentais.

Concretamente, incumbe ao juiz proceder à adaptação das leis do processo, conforme este sistema ou, se for o caso, não aplicar, por inválidas, aquelas que contrastam com a Constituição, paradigmada a interpretação judicial, na visão de Gomes Canotilho, na conjunção dos princípios da prevalência da Constituição, da conservação de suas normas e na exclusão da interpretação conforme a Constituição, porém contra legem.132

Opera-se assim tal procedimento de seletividade em conseqüência das possibilidades inerentes à tarefa de interpretação conforme a Constituição, interpretação esta que deve ter, não há dúvida, atuação evolutiva, consoante a

131 Ferrajoli, Luigi. ―O direito como Sistema de Garantias‖, p. 41. Otto Bachof

acentuava que no exercício da função judicial de vigilância da constitucionalidade das leis, o juiz só deve admitir uma lei como válida e vinculante quando esta não só tenha sido formalmente promulgada de acordo com a Constituição mas também se o seu conteúdo estiver de acordo com os preceitos constitucionais (Jueces y Constitución, Madrid: Civitas, 1987, p. 32).

132 Canotilho, pp. 235-236.

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sempre citada doutrina alemã (verfassungswandlungen).133 A relevância do processo hermenêutico para a

imposição predominante dos direitos fundamentais na esfera penal é tão significativa, que vale recordar que o intérprete, este mediador, principalmente se for o juiz penal,134 sempre contribuirá decisivamente na escolha dos valores que o guiarão, por meio da assunção de significados concernentes a uma determinada concepção de Direito. Interpretar deriva de interpres, isto é, mediador, intermediário, de sorte a estabelecer-se no processo de interpretação a mediação entre o texto e a realidade para, de acordo com Baracho,135 desenvolver-se o processo intelectivo através do qual, partindo da forma lingüística contida no ato normativo, chegar-se ao seu conteúdo ou significado.

Caso contrário, o juiz estaria reduzido a mero instrumento de aplicação mecânica de um texto legal, suscetível de ser substituído com muitas vantagens por um

133 Ver, sobre o assunto, Ada Grinover (As Garantias Constitucionais, p. 15).

Por oportuno é conveniente destacar que tal fenômeno é denominado, na Espanha e em Portugal, mutação constitucional, entendendo-se, tal como na Alemanha (Tribunal Alemão de Karlsruhe), tratar-se de uma mudança de conteúdo das normas que, conservando a mesma redação, adquirem um significado diferente (Vadillo, Enrique Ruiz. El Principio Acusatorio y su Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y Tribunal Supremo, Madrid: Actualidad Editorial, 1994, p. 19), ou, nas palavras de Canotilho (ob. cit. pp. 236-239), operam a transição do sentido sem mudar o texto, o que a difere da alteração constitucional, consistente na reforma formal do compromisso político, acompanhada da alteração do próprio texto da Constituição.

134 Não se despreza, por oportuno, a tese de que a hermenêutica constitucional é campo aberto a todos que, no processo democrático de convivência social, observam o direito, atuando conforme o significado que pessoalmente atribuem à conformidade constitucional. A interpretação constitucional é, pois, neste sentido, obra aberta, do ponto de vista dos sujeitos aptos a realizá-la, consoante salientou Peter Häberle (Hermenêutica Constitucional — A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e ‗Procedimental‘ da Constituição, tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997). No entanto, a vinculatividade da atuação interpretativa do juiz é que, neste aspecto particular do problema, colocado no trabalho, deve ser priorizada.

135 Baracho, ob. cit., p. 49.

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computador.136 Eis a razão de Couture ter dito que:137 ―Interpretar é, ainda que inconscientemente, tomar partido por uma concepção do Direito, o que significa dizer, por uma concepção do mundo e da vida. Interpretar é dar vida a uma norma. Esta é uma simples proposição hipotética de uma conduta futura. Assim sendo, é um objeto ideal, invisível... e suscetível de ser percebido pelo raciocínio e pela intuição. O raciocínio e a intuição, todavia, pertencem a um determinado homem e, por isso, estão prenhes de subjetivismo.‖

Todo intérprete, salienta Couture, é, embora não o

queira, um filósofo e um político da lei e a concepção de mundo e de direito que concebe, reafirme-se, deve estar ancorada na Constituição, independentemente da postura filosófico-jurídica ou política dele, intérprete e, até mesmo, da existência prévia de uma decisão do tribunal constitucional, no nosso caso, do Supremo Tribunal Federal, sobre a matéria, evidentemente desde que sem força vinculativa erga omnes.

Novamente, a lição de Baracho é valiosa, salientando a difusa competência para aplicação das leis, pelos juízes, conforme a Constituição, em virtude do que não devem aplicar as normas que considerem inconstitucionais.138

Na atual etapa do constitucionalismo, na virada do milênio para a civilização ocidental, a tarefa de interpretação e aplicação dos textos legais de acordo com a Constituição assume uma grandeza toda especial em virtude do processo de corrosão das bases rígidas instituídas no nível normativo

136 Assim, com razão, leciona Zaffaroni, para quem, en rigor, en el actual

estado del saber jurídico, es casi imposible que, sea por vía explícita o bien implícitamente, el juez no lleve a cabo un control constitucional de las leyes, siempre que, naturalmente, opere conforme a esas pautas de saber jurídico (Estructuras Judiciales, Buenos Aires: Ediar, 1994, p. 60).

137 Couture, Eduardo J. Interpretação das Leis Processuais, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 11.

138 Baracho, ob. cit., p. 53.

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superior, em consideração às supostas demandas de estabilidade governamental.

Assim, a recusa à chancela de constitucionalidade pode ocorrer dentro da própria Constituição, se os movimentos derivados de alteração da sua ordem não respeitarem os pilares intangíveis dos direitos fundamentais e da soberania popular, com a legitimidade e separação dos poderes.

Movimentos de transformação da ordem constitucional são freqüentes e se desenrolam fundados em demandas de maior fluidez e flexibilidade dos instrumentos de soluções dos conflitos sociais.

A redução de complexidade do direito processual pela deformalização aparece na nossa Constituição, para ilustrar, na disciplina do procedimento dos juizados especiais criminais, que na sua regulação por lei ordinária não se limitou a obedecer ao perímetro traçado no plano constitucional — procedimento oral e sumaríssimo, com a possibilidade de transação — para incorporar a informalidade, celeridade e economia processual (Lei no 9.099/95, artigo 62).

A filosofia da deformalização dos procedimentos, antes de ser uma rebelião ao formalismo exagerado e imotivado, em busca dessa maior fluidez e flexibilidade na hermenêutica constitucional, pode ensejar a redução da eficácia das garantias que dependem, justamente, da observação de procedimentos.

Comparato sublinha, acertadamente, que todo direito é formal, isto é, ―que ele nada mais deve ser que a realização formal da justiça, a sua realização segundo certos meios e regras conhecidos da comunidade‖ e acrescenta que ―a regularidade formal é sempre uma garantia diante do poder, uma limitação do arbítrio‖.139 É interessante observar que, na década de 90, o sucessor aparente do movimento do direito alternativo dos anos 70 é o modelo

139 Comparato, ob. cit., p. 36.

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procedimental,140 que, na tutela do status activus processualis, não abdica do juízo contraditório, das provas adquiridas de forma lícita, da imparcialidade judicial e da sentença justa como produto final de uma atividade jurisdicional ética e democrática.

O status processual se concebe pelo reconhecimento de que, na democracia, o indivíduo tem o direito de participar ativamente e assumir a sua própria responsabilidade nos procedimentos que lhe afetam, assim como nas estruturas de organização,141 o que importa, quanto aos direitos fundamentais, na adoção de formas de participação dinâmicas e ativas.

Nessa perspectiva é que concluímos que não pode ser debilitada a certeza do vínculo entre Processo e Constituição, estipulada em uma medida exclusivamente formal, mas como consciente tomada de posição, pelos chamados profissionais (operadores) do direito, sobre a importância de aplicar e impor as regras processuais tendo em vista o fio condutor dos direitos fundamentais.142

Valioso, assim, encerrar o tópico com as palavras de Ferrajoli, em reafirmação ao seu pensamento sobre o dever do juiz de aplicar somente a lei válida. Diz o mestre:143

―A validade já não é, no modelo constitucional-garantista, um dogma ligado à mera existência formal da lei, mas uma sua qualidade contingente ligada à coerência — mais ou menos opinável e

140 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos humanos y Constitucionalismo

ante el Tercer Milenio: p. 19. 141 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos humanos y Constitucionalismo

ante el Tercer Milenio: p. 20. 142 Note-se que em Portugal a eleição constitucional do sistema acusatório, no

plano dos direitos fundamentais, conforme será examinado no próximo capítulo, levou Jorge de Figueiredo Dias, a propósito da revisão constitucional, a assinalar que se levantou um veto terminante a qualquer veleidade de regresso a ideias típicas do processo inquisitório (A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, Lisboa: Horizonte, 1981, pp. 46 e 50), haja vista a vocação de eternidade dos direitos fundamentais.

143 Ferrajoli, Luigi. O Direito como Sistema de Garantias, p. 41.

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sempre submetida à valoração do juiz — dos seus significados com a Constituição. Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos. Era isto, e não outra coisa — diga-se de passagem — o que entendíamos há vinte anos com a expressão ―jurisprudência alternativa‖, em torno da qual tantos equívocos surgiram: interpretação da lei conforme à constituição e, quando a contradição é insanável, dever do juiz de declarar a invalidade constitucional; portanto, já não é uma sujeição à lei de tipo acrítico e incondicional, mas sim sujeição, antes de mais, à Constituição, que impõe ao juiz a crítica das leis inválidas, por meio da sua reinterpretação em sentido constitucional ou a sua denúncia por inconstitucionalidade.‖

2.5. Sistema e Princípios: Uma Aproximação Tipológica

Aceitando-se como premissa da abordagem pretendida

que a estrutura processual penal sobre a qual devem atuar as garantias constitucionais subordina-se necessariamente à Constituição, cumpre agora determinar-lhe a natureza jurídica, enfrentando, ainda que sem pretensões de exaurimento das alternativas, as questões que se colocam sobre tratar-se de um sistema, e neste caso definir de que sistema se trata (se acusatório, inquisitório ou misto, conforme a eleição constitucional a ser examinada em capítulo próprio), ou de um princípio.

Sem embargo não se deve esquecer da advertência de

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Maurício Lopes, mencionada na introdução deste trabalho, a respeito da possibilidade da realidade normativa preencher o modelo de mais de uma categoria jurídica, simultaneamente, desde que não se cuide de categorias excludentes.

É importante também destacar que a estrutura processual conforme o devido processo legal formal e substancial, ela própria, estrutura, configura verdadeira garantia de implementação dos direitos fundamentais, e, portanto, dela se alimenta de nutrientes normativos que viabilizam a sua existência e validade.

Convém alertar para o fato de a estrutura processual — que será observada detalhadamente em outra oportunidade, repita-se — não corresponder, é claro, a um modelo puro, como, aliás, sublinham Fauzi Choukr e Afrânio Jardim. Choukr salienta que a elaboração de um modelo, referindo-se ao modelo acusatório, supõe a elaboração de um esquema tão próximo quanto possível da realidade144 e Afrânio Jardim remata que a estrutura processual penal de hoje, no Brasil, é um produto inacabado.145 Podemos inferir que ambos se referem, ainda que indiretamente, à categoria sociológica do tipo, explorada por Max Weber.

Para melhor compreender a problemática, entendendo as diferenças entre diversos ordenamentos jurídicos que optaram por estruturas processuais similares mas não necessariamente idênticas, recorremos, assim, a Weber, assinalando que ele, conferindo estatuto científico às ciências da realidade (sociais), produziu aquela que talvez seja, senão a sua mais importante, pelo menos a mais famosa contribuição, consistente na criação do ―tipo ideal‖.

Trata-se, na formulação de Medina y Echavarría, de um método que possibilita enfrentar ―a necessidade de captar, no possível, a irracionalidade da vida através do racional‖.146

144 Choukr, ob. cit.. 145 Jardim, Ação Penal Pública, p. 24. 146 Medina y Echavarría, José apud Neto, A. L. Machado. Sociologia Jurídica,

São Paulo: Saraiva, 1987, p. 36.

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Não é preciso sublinhar que os tipos ideais de Weber não correspondem às formas reais das ações individuais, sociais ou mesmo relações sociais que tencionam representar, da mesma forma que não corresponderiam às relações jurídicas. Pelo contrário, não há uma vinculação automática entre os tipos e as realidades que lhes são subjacentes, na medida em que os primeiros são construídos pela separação daquelas características que mais os enfatizam, muito embora, logicamente, os fatos sociais e jurídicos venham impregnados de caracteres impostos pelas circunstâncias singulares da sua origem, perpassadas pelas mais diversas relações sociais.147

Assim, parece claro, não encontraremos, quer onde prevalece a estrutura acusatória, quer onde predomina a inquisitória, bases absolutamente idênticas a ponto de serem justapostas e não se observarem notas discrepantes.148

Isto não significa que os conceitos dos diversos sistemas são inúteis ou inadequados, como quer fazer crer Montero Aroca. Para o respeitado jurista espanhol, os chamados sistemas processuais são ―conceitos do passado, que hoje não têm valor algum, servindo unicamente para confundir ou turbar a clareza conceitual‖.149

A capacidade de racionalizar o modo como as questões

147 Pode-se até mesmo discutir o valor histórico do tipo ideal,

considerando a neutralidade que lhe pretendia impor Weber — para quem, ao que parece, não havia um sentido finalístico ou teleológico no curso histórico. Não se lhe pode negar, contudo, a qualidade de vincular pesquisa sociológica e pesquisa histórica, do modo como pôs em relevo Machado Neto (Sociologia Jurídica, São Paulo: Saraiva, 1987, p. 37). Ver também, do próprio Weber, ―A ‗Objetividade‘ do Conhecimento nas Ciências Sociais‖, in Weber, Cohn, Gabriel (org.). São Paulo: Ática, 1991, pp. 79-127, especialmente 112-114.

148 A título de exemplo, basta confrontarmos os modelos alemão e italiano atuais com os similares brasileiro e espanhol e veremos que no primeiro caso a iniciativa para o processo penal será de regra oficial e, no segundo, admite-se diferentemente, ainda que em caráter excepcional, a iniciativa do ofendido com ampla liberdade no exercício da denommnada ação penal privada, tratando-se, de toda sorte, de sistemas acusatórios.

149 MONTERO AROCA, Juan. El Derecho Procesal em el Siglo XX, Valencia: Tirant Lo Blanch, 2000, p. 107.

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em torno da punição de agentes foram resolvidas, ao longo do tempo, permite identificar pontos de contato entre as várias formas e relacionar estes pontos a modelos específicos de organização política.

A função da identificação dos sistemas será aprofundada mais adiante.

A primeira abordagem a ser realizada, porém, relaciona-se com a designação de sistema, pois, como acentua Geraldo Ataliba,150 ―o estudo de qualquer realidade — seja natural, seja cultural — quer em nível científico, quer didático, será mais proveitoso e seguro, se o agente é capaz de perceber e definir o sistema formado pelo objeto e aquele maior, no qual este se insere‖.

Bobbio igualmente destaca o uso corrente do termo sistema na linguagem jurídica, ele próprio admitindo que emprega a expressão várias vezes no lugar de ―ordenamento jurídico‖, e, reconhecendo que a palavra tem inúmeros sentidos, assevera que a determinação de um sistema confere estatuto científico às tarefas de interpretação levadas ao cabo pelos juristas.151

Com efeito, salienta Cármem Lúcia Antunes Rocha, a Constituição é um sistema, porque as normas e princípios que a compõem não estão soltos e desvinculados mas, sim, presos a uma acomodação harmônica, determinada por uma precisa gradação das denominadas normas fundamentais.152 Acrescenta a citada autora que, para ser um sistema, a Constituição deve ser concebida como:153

―Épuras, quero dizer, como elementos normativos concertados e coerentes, que enfeixam normas jurídicas acomodadas numa justaposição e

150 Ataliba, Geraldo apud Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito

Administrativo, 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 51. 151 Bobbio, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, Brasília: Polis, 1989,

p. 75. 152 Rocha, Cármem Lúcia Antunes. O Princípio Constitucional da Igualdade,

Belo Horizonte: Lê, 1990. 153 Idem.

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que se associam e permitem o movimento harmônico permanente do regramento pela interpretação e na aplicação de suas disposições.‖

Isto posto, a primeira anotação pertinente, que se extrai

da preciosa lição de Cármem Rocha, fundamentalmente jurídica mas nem por isso não antropológica, refere-se ao fato de que um sistema não é um conjunto solto e desarticulado de normas e instituições, o que foi ressaltado, mas sim uma realidade medida exatamente em virtude da coerência interna destas mesmas normas e instituições — acrescentaria princípios e sujeitos, que agem no interior do sistema de determinada maneira —, muito embora, hoje se saiba, que os sistemas não têm pretensão de absoluta harmonia e completude, o que explica eventuais antinomias e lacunas.154

A inferência de tal realidade serve a inúmeros propósitos, entre os quais se destaca o descritivo, em virtude do que se potencializa a avaliação sistêmica a partir dos comandos redutíveis aos emanados da norma fundamental ou Constituição, base do sistema jurídico, e, ainda, o de se prestar, metodologicamente, à compreensão da inter-relação de elementos distintos.

No Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, define-se sistema como:155

―Conjunto de coisas que ordenadamente entrelaçadas contribuem para determinado fim; trata-se portanto de um todo coerente cujos diferentes elementos são interdependentes e constituem uma unidade completa.‖

A evidência de um sistema constitucional, realçada por

Marcelo Neves como, em realidade, manifestação de um

154 Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, pp. 78-86. 155 Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas. Benedicto

Silva (coord.), 1986, p. 1127.

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subsistema derivado do sistema jurídico-político,156 revela-se de significativa importância quando se trata da classificação da estrutura processual, uma vez que, se quisermos de fato definir essa estrutura como sistema (acusatório, inquisitório ou misto), e aí melhor será denominá-lo subsistema, tal consideração há de decorrer da integração ao primeiro (sistema constitucional), manifestando-se como complexo de procedimentos entrosados inerentes ao sistema judiciário, ao qual se acoplará em vista das estruturas peculiares deste último, com o objetivo de satisfazer uma necessidade específica, isto é, viabilizar a solução dos conflitos de interesses consoante mecanismos que imponham concretamente o respeito aos direitos fundamentais.

Na verdade, o sistema processual está contido no sistema judiciário, por sua vez espécie do sistema constitucional, derivado do sistema político, implementando-se deste modo um complexo de relações sistêmicas que metaforicamente pode ser desenhado como de círculos concêntricos, em que aquele de maior diâmetro envolve o menor, assim sucessivamente, contaminando-o e dirigindo-o com os princípios adotados na Lei Maior.

A idéia dos subsistemas decorre do reconhecimento da filiação deles a um dos vários sistemas observáveis na vida social, fundamentando-se a construção no pensamento similar de Luhmann, sobre sistemas sociais, diferentemente do desenho clássico desenvolvido por Bertalanffy, pois que de início pensamos os sistemas como autoreferentes, ou seja, definidos precisamente por sua diferença com respeito ao seu entorno, de tal modo que só podem entender-se como tais a partir dessa diferença.

A auto-referência que os caracteriza, assinala Ignacio Izuzquiza, pode ser vista, enquanto fenômeno, como

156 Marcelo Neves, p. 63: É possível concebê-la (a Constituição), sob o ponto

de vista político-sociológico, como um instituto específico do próprio sistema político. Mas, para os fins a que nos propomos, a análise do significado da constitucionalização simbólica, apresenta-se estrategicamente oportuno o conceito de Constituição como subsistema do sistema jurídico.

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derivada do fato de que cada um dos sistemas se diferencia dos demais pelo seu próprio tipo de operação autopoiética (estruturada).157

Cada um desses sistemas possui suas próprias leis e ainda se diferencia do seu entorno. Como acentua Izizquiza, o conceito de sistema auto-referente é dinâmico e exige por isso um grande dinamismo conceitual de quem o emprega, apesar do que deve enriquecer-se com os conceitos essenciais da observação e da diferença.158

Porém, no plano dos subsistemas releva notar, por oportuno, que o âmbito de comunicação deles entre si se especializa, na medida em que desenvolvem sua própria linguagem, relacionando-se com os demais subsistemas, que operam como entorno daquele auto-referente e fechado.159

Isso fica mais claro quando observamos que, no caso peculiar do sistema processual, dada a sua relação com o sistema judiciário, prevalece a lógica funcional que inspira este último, obviamente vinculado à função judiciária

157 Campilongo (ob. cit., p. 74), a propósito do termo autopoiesis, salienta que

o neologismo, tão esotérico quanto as idéias de Luhmann, traslada para os sistemas sociais o conceito desenvolvido por Maturana e Varela, para exame dos sistemas biológicos. De se salientar, por isso e por outras evidências captadas na extensa obra de Luhmann, que tanto a generalidade como a interdisciplinariedade se impõem no seu pensamento, a partir do reconhecimento da complexidade social e da constatação de que toda teoria deve ser uma arma para reduzi-la. A complexidade da sociedade contemporânea se estabelece, para o sociólogo, em razão do aumento da diferenciação de uma dada sociedade. O paradoxo da teoria do mestre fundamenta-se no sentido de que somente com o incremento da complexidade é possível reduzir-se a própria complexidade do dado ou relação social em estudo, cumprindo a teoria este papel, que lhe defere o pensador. Sendo assim, alcança Luhmann o projeto de concepção de uma teoria sistêmica, como forma de compreensão da sociedade complexa, de tal sorte que sua obra pode ser qualificada como ―sociologia sistêmica‖.

158 Izuzquiza, Ignacio. Sociedad y Sistema: La Ambición de la Teoria. Buenos Aires, Barcelona e México: Ediciones Paidos, 1990, p. 19.

159 Fechado naturalmente do ponto de vista normativo, pois que somente o direito pode mudar o direito, mas aberto cognitivamente, porque requer trocas de informações entre os sistemas e seus ambientes, como ressaltou Campilongo (ob. cit., p. 75).

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básica,160 sem embargo do direito processual penal perfilar-se como um sistema normativo próprio, auto-referente.161

Além dos fins de descrição e de compreensão da inter-relação de seus elementos, a categoria sistema processual reveste-se ainda de especial magnitude por possibilitar a delimitação do espaço jurídico-processual destes elementos, em razão da função do sistema, vinculada à necessidade vital que procura satisfazer.162

Dir-se-á que o elemento avaliado isoladamente, pertence ao sistema processual na razão direta da sua funcionalidade, que não poderá, todavia, desprezar para a sua caracterização o que mais atrás se registrou como tendência de uma funcionalidade de matiz garantista e não meramente utilitarista.

Uma lei que proponha a iniciativa do juiz para o processo penal de cunho condenatório não pode pertencer ao sistema processual acusatório, embasado em uma Constituição que o consagre e, portanto, tal lei não será válida, ainda que funcional no sentido utilitarista, de mera adjudicação de uma solução ao conflito de interesses penal.

A possibilidade de uma avaliação desse nível denuncia a viabilidade e mesmo necessidade da categoria proposta, sem embargo da concreta observação de que a função primordial da estrutura processual há de ser aquela de garantia,

160 É conveniente, para o fim de esclarecimento, a apropriação da definição de

sistema judiciário, empregada por Bobbio, Matteucci e Pasquino (Bobbio, Norberto, Matteucci, Nicola e Pasquino, Gianfranco, Dicionário de Política, vol. II, 4ª ed. Brasília: UNB, 1992, pp. 1157-1163): um complexo de estruturas, de procedimentos e de funções mediante o qual o sistema político (do qual o Sistema judiciário é na realidade um subsistema) satisfaz uma das necessidades essenciais para a sua sobrevivência: a adjudicação das controvérsias pela aplicação concreta das normas reconhecidas pela sociedade - p. 1157.

161 Andrade, Manoel da Costa. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 27.

162 Frise-se, nesta perspectiva, que um sistema é, pois, sempre instrumental, existindo na medida em que é necessário à satisfação de uma necessidade de relevo social. Por isso, a sua presença no meio social está condicionada ao sentimento de necessidade captado pela comunidade e a sua conformação também obedecerá à compreensão social dessa necessidade.

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mencionada no item Constituição e Processo Penal, e da efetiva potencialização dos elementos que isoladamente a constituem como membros de uma categoria de fundo axiológico, tal seja, a de princípio, o que veremos adiante.

Advirta-se antes para o fato da funcionalidade, nessa ótica de garantias, estar ditada pelo reconhecimento prévio do valor essencial dos direitos fundamentais, ou, de outra maneira, da aceitação de um conteúdo essencial como núcleo intrínseco de cada direito, permitindo com isso que a tarefa descritiva não esvazie a percepção sistemática, confundindo-a com mero funcionalismo que cede aos influxos de conjunturas e circunstâncias.163

Os termos princípio ou princípios, como tantas outras categorias examinadas nesta obra, têm diferentes significados, dos quais apenas um verdadeiramente nos interessa.

Com efeito, José Carlos Barbosa Moreira esclarece que a doutrina alemã do início do século XIX preocupou-se em compendiar em ―princípios‖ ou ―máximas‖ as diretrizes político-jurídicas que se podem acolher na ordenação do processo,164 buscando-se pelo reconhecimento dessas diretrizes, segundo supomos, obter uma atuação harmônica e eficaz deste mesmo processo enquanto instrumento da jurisdição.

Apesar da validade da utilização dos princípios como nortes ou regras abstratamente considerados, dispostos à interpretação e aplicação dos institutos processuais, a expressão tem, para os objetivos do trabalho, o significado peculiar mais relevante de categoria de natureza especialmente constitucional, dotada de multifuncionalidade apta a possibilitar que a Constituição não se extinga em limites exclusivamente positivados, incapazes de apreender a

163 Perez Luño, Antonio-Enrique. Derechos humanos y Constitucionalismo

ante el Tercer Milenio: p. 17. 164 Moreira, José Carlos Barbosa. ―O Problema da Divisão do Trabalho entre Juiz e Partes: Aspectos Terminológicos‖, in Temas de Direito Processual -

Quarta Série, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 36. Neste sentido é possível falar, por exemplo, em princípios da ação penal.

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inesgotável riqueza de situações do porvir, inerentes ao desenvolvimento da sociedade e do Estado e a conformação das suas instituições.

Através dos princípios e da sua multifuncionalidade, abrem-se os horizontes da Constituição e emergem as potencialidades de disciplina jurídica de um sem número de fatos novos, inexistentes ao tempo da promulgação da Carta, ou, mais ainda, impensáveis naquela ocasião, enquanto conformam-se as instituições existentes e os indivíduos que integram o grupo social de acordo com o programa de valores que o compromisso político sufragou.

Uma Constituição não vive exclusivamente de regras, impondo-se em termos de constitucionalismo adequado que a estrutura sistêmica construa-se pela conjugação de regras e também de princípios, estes caracterizados pelo alto grau de abstração, pela exigibilidade de mediação do legislador ou do juiz, e pela fundamentalidade no sistema, condicionando-se reciprocamente. A este respeito, assim se pronunciou Gomes Canotilho:165

―A existência de regras e princípios, tal como se acaba de expor, permite a decodificação, em termos de um ―constitucionalismo adequado‖... da estrutura sistêmica, isto é, possibilita a compreensão da constituição como sistema aberto de regras e princípios.

Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa — legalismo — do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas.‖

Não custa salientar que, não tendo o presente trabalho a

pretensão de ser uma dissertação sobre normas 165 Canotilho, ob. cit., pp. 174-175.

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constitucionais, para o que remetemos o leitor às duas obras clássicas, de José Afonso da Silva e Luís Roberto Barroso,166 não se projeta uma classificação das mencionadas normas, sem embargo a que fique registrado que por normas constitucionais, em sentido material, entendem-se aquelas que versam sobre a estrutura do Estado, funcionamento de seus órgãos, direitos e deveres dos cidadãos. As normas constitucionais formais derivam das prescrições que o poder constituinte inseriu numa Constituição rígida, independentemente de seu conteúdo e da incidência eventual de uma sanção, como conseqüência jurídica da sua inobservância167. É igualmente preciosa a resenha classificatória desenvolvida por Barroso,168 resumindo-se, todavia, nosso estudo ao apanhado pertinente à tipologia de princípios.

Por sua vez, define-se princípio como ―mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, assim se proclamando exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido humano‖.169

O princípio confere ao texto constitucional vida, relação com a realidade plasmada na eleição dos valores considerados primordiais para a manutenção de um estado de compromisso social, expondo-se como dimensão determinante, apta a fornecer diretrizes materiais de interpretação das normas constitucionais.

Desse modo, assimilando-se a idéia de que a

166 Silva, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 2ª ed. São

Paulo: RT, 1982. Barroso, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.

167 Silva, José Afonso. Ob. cit., pp. 35 e 40. 168 Barroso, Luís Roberto. Ob. cit., pp. 89-118. 169 Mello, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo,

São Paulo: RT, 1980, pp. 230-231.

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Constituição preocupou-se com a estruturação do processo penal, o que é natural, na medida mesma em que dispôs inúmeros direitos e garantias fundamentais referidos à persecução penal, cabe indagar de que modo se tratou na Carta desses princípios estruturantes. Afinal, Direito Constitucional e o Direito Processual Penal são legatários de uma vocação comum, como salientou Bettiol,

A verdade é que na tipologia dos princípios constitucionais, conforme estudada por Canotilho,170 eleita como a que preenche mais fielmente os objetivos deste trabalho, destacam-se aqueles denominados fundamentais, ―historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica‖, os princípios políticos constitucionalmente conformadores, dado que ―explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte‖, os constitucionais impositivos, derivados de uma Constituição dirigente, que ―impõe aos órgãos do Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a execução de tarefas‖, e, finalmente, os princípios-garantia, traduzindo-se em garantias diretas para todas as pessoas.

Parece evidente que, se é possível encontrar na Constituição da República as diretrizes da estrutura processual, tais diretrizes concebem-se certamente como decorrentes dos princípios fundamentais do Estado de Direito e da Democracia, com a divisão e controle de poderes, ao lado da publicidade, e dos princípios-garantia, vinculados à exigência de juiz imparcial, do exercício privativo da ação penal pública pelo Ministério Público, da garantia da ampla defesa (autodefesa e defesa profissional ou técnica) e da prescrição da atividade de polícia judiciária a determinados órgãos, consistindo estas diretrizes em subprincípio derivado daqueles estruturantes, relacionados aos dois citados, como, indiscutivelmente, o princípio da separação de poderes.

Canotilho, em sua obra tantas vezes mencionada, denuncia este fenômeno como a densificação dos princípios 170 Canotilho, ob. cit., pp. 176-180 e 186-189.

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gerais fundamentais pela concretização de princípios constitucionais especiais,171 de sorte tal a que os subprincípios sejam tão importantes para a coerência sistêmica da Constituição quanto os próprios princípios o são, em um concerto harmônico indispensável.

Assumir, portanto, a imparcialidade do juiz — objetiva e subjetiva, diria Teresa Armenta Deu172 — a iniciativa do Ministério Público para a deflagração do processo, por meio do exercício da ação penal pública e, excepcionalmente, a iniciativa do lesado, exercitando a denominada ação penal privada,173 a imprescindibilidade de defesa — técnica e também pessoalmente, pelo imputado — e a evidência de uma atividade de polícia judiciária, a cargo de órgãos distintos daqueles que propõem a ação e julgam o pedido (dessa forma clarificando a indispensabilidade da justa causa para a ação penal, como exigência em nível constitucional),174 revela-se como compreensão da estrutura processual a partir de um princípio constitucional fundamental e de garantia, no caso, o princípio acusatório, que será estudado no próximo capítulo,175 criando o ambiente normativo adeqado para a determinação do modus operandi concreto do processo penal.

O sistema constitucional, por isso, averbe-se, subordina pela via das normas constitucionais uma estrutura processual específica, cuja natureza, inequivocamente, pode-se acentuar, é a de sistema ou subsistema, como conjunto

171 Idem, p. 187. 172 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, Zaragoza:

Bosch, 1995, p. 48. 173 Ação penal de iniciativa privativa do ofendido (artigos 5º, inciso LIX, da

CR, e 100 do Código Penal). 174 Respectivamente, artigos 5º, inciso LIII; 129, inciso I; 5º, incisos LIX e LV;

e 144, § 4º, todos da Constituição da República Federativa do Brasil. 175 A doutrina não se pacificou sobre que elementos compõem o princípio

acusatório, às vezes inserindo características do princípio dispositivo, às vezes causando confusão com os princípios do contraditório e da igualdade de armas. No geral, porém, e para os limites da posição que se adota, duas são as características do princípio acusatório: iniciativa para o processo levada a efeito por sujeito distinto do juiz; divisão clara entre as funções de acusar, defender e julgar.

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harmônico de normas e princípios constitucionais aplicáveis ao processo, e também de princípio,176 voltada tal estrutura para a concretização da persecução penal conforme os valores indiscutíveis dos direitos fundamentais.

Estes valores foram e são referendados em uma sociedade e em um Estado democráticos, importando, assim, interpretarem-se as instituições processuais conforme tais sistema e princípio evolutivamente, porquanto somente dessa maneira se respeita o compromisso político haurido da Carta Constitucional.177

176 Assim também a definiu, em relação ao modelo espanhol Vadillo, na obra

citada anteriormente, p. 140. Devemos frisar que o princípio acusatório, como será tratado posteriormente, constitui o núcleo básico do sistema acusatório mas não o esgota, na medida em que este último reclama, para sua conformação, outros princípios e normas (oralidade, publicidade).

177 Karl Joseph Anton Mittermaier (Tratado de la Prueba en Materia Criminal, tradução por Gonzáles del Alba, Buenos Aires: Hammurabi, 1993) destacou que o estudo das duas formas básicas de estruturas processuais remete à conclusão de que dondequiera que reina la democracia domina el procedimiento de acusación (p. 54). A tese central deste trabalho concorda plenamente com a proposição do Mestre, porém será deduzida no próximo capítulo.

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3. Sistemas Processuais A compreensão do fenômeno jurídico que envolve

aquele campo do Direito que lida com a limitação das liberdades do indivíduo, por meio da efetivação das mais graves medidas de coação previstas no ordenamento jurídico — nas leis e na Constituição — com emprego de mandatos e proibições, projetando-se na esfera do exercício do poder político, em um primeiro momento há de demandar exame conforme o contexto espaço-temporal em que se encontra inserido.

Os olhos devem estar voltados para a história, apesar de sabermos que os elementos característicos predominantes dos sistemas processuais variam não só do ponto de vista histórico como também na perspectiva teórica.

Assinala, precisamente, Julio B. J. Maier,1 que se o Direito, como matéria de estudo, é um objeto cultural, criado pelo homem na medida em que estabelece formas de convivência comunitária, sedimentadas no especial modo de viver em um instante específico dessa vida politicamente organizada, as suas regras são, portanto, contingentes.

Cuida-se de conseqüência da própria contingência da organização social sujeita a transformações decorrentes das condições demográficas e de exercício do poder, além das experiências positivas e negativas vividas, de sorte que o conhecimento do Direito seria impossível sem o conhecimento do lugar que ocupa no estudo da evolução jurídica.

Todos os povos, como se sabe, estão em contínua transformação2 e a ciência e tomada de consciência da sua História, da nossa História, representam a libertação de preconceitos, pela capacitação do indivíduo para perceber o

1 Derecho Procesal Penal Argentino, Buenos Aires: Hammurabi, 1989. 2 Costa, Álvaro Mayrink. Direito Penal - Parte Geral, 3ª ed. Rio de Janeiro:

Forense, 1991.

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que de latente se encontra no conjunto das relações sociais, objetivando a orientação do seu comportamento, assim como o prisioneiro da caverna, de Platão, preso e subjugado pelo ilusionismo de um teatro de sombras, que lhe parecia realidade única, pode capacitar-se, orientar-se e libertar-se após converter o seu olhar e se dar conta de que o que via se tratava de sombras, geradas pela fonte de luz artificial às suas costas, que num momento inicial não havia podido enxergar.

De outra forma, releva notar, estamos condenados a repetir nossos erros, na crença de que inovamos ao voltarmos aos métodos que um dia repudiamos, sendo, pois, a História, a disciplina que nos garante, ou tenta garantir, o aprendizado de dolorosas lições e evitar a constatação da negação do axioma de Decartes, de que nem o próprio Deus pode fazer com o que aconteceu deixe de ser um acontecimento.3

Por isso, e mais especificamente para o objeto do nosso estudo, o ―sistema acusatório‖, é de todo imprescindível que sejam dedicadas algumas considerações à evolução histórica das formas por meio das quais foi estruturado o modelo

3 Decartes, apud Adauto Novaes, ―Sobre Tempo e História‖, in Tempo e

História, Org. Adauto Novaes, São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 9. José Henrique Pierangelli menciona, em sua obra de leitura obrigatória a respeito da evolução histórica do processo penal no Brasil, passagem de Ruy Rebello Pinho, sobre a importância do estudo histórico, que merece ser transcrita. Com efeito, assinalou o ilustre escritor: O passado pode ser estudado com frieza, com indiferença, de um modo estático e tolo, semelhante ao do turista inculto que ‗coleciona‘ visitas a museus e entradas de cinemas estrangeiros. Mas pode, também, ser analisado de um modo vivo, dinâmico, útil. Mostrou-o, certa vez, de maneira elegante, num concurso para a Faculdade Nacional de Direito, Alceu Amoroso Lima. Censuravam-no por buscar na antiguidade um tema de economia política, quando o mundo de hoje é prenhe de graves problemas econômicos a resolver. E ele respondeu que agia como aquele escritor, se não me engano Afrânio Peixoto, o qual, cansado de procurar acima do solo as causas do definhamento de linda árvore de seu jardim, mergulhara as mãos na terra e descobrira uma pedra enorme impedindo o desenvolvimento subterrâneo das raízes do vegetal que fenecia (Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, Bauru: Jalovi, 1983, p. 11).

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político-jurídico de resolução dos conflitos de interesses ou de casos na esfera penal.

Advirta-se que isso será feito ainda sem adiantar a polêmica sobre que elementos de fato caracterizam o sistema acusatório e o distinguem do inquisitório.

A divergência doutrinária acerca dos elementos que caracterizam os dois sistemas será melhor compreendida depois da vista histórica. Afinal, os fatos não são os únicos objetos da história. A também uma história das idéias, dos conceitos, que são concebidos para dar conta de determinadas demandas. A nosso juízo isso acontece com o conceito Sistema Acusatório.

Um estudo voltado à história, mesmo que dominado pelo propósito de apenas lançar algumas luzes para viabilizar o entendimento do modelo processual em vigor (ou, pelo menos, do modelo que a Constituição brasileira promete implementar), ressalvados os riscos e dificuldades dos quais nos adverte Ada Grinover, quando se trata de descrever um sistema jurídico estrangeiro, vigente em qualquer época,4 pode desenvolver-se normalmente de duas maneiras: escolhem-se, pela ordem, as estruturas processuais, considerando-se o grau de sofisticação ou complexidade das

4 Salienta a ilustre professora que é sempre arriscado e difícil para o

estudioso descrever um sistema jurídico estrangeiro, em virtude das diferenças endógenas existentes entre os diversos ordenamentos e dos naturais obstáculos para captar com fidelidade o sentido e alcance de normas jurídicas que espelham outra cultura e promanam de valores sociais, econômicos e políticos distintos (Grinover, Ada Pellegrini. ―O Crime Organizado no Sistema Italiano‖, in O Crime Organizado (Itália e Brasil): A Modernização da Lei Penal. Penteado, Jaques de Camargo (coord.). São Paulo: RT, 1995, p. 13). Ocorre, porém, e não é ocioso relembrar, que o estudo comparativo do direito equipara-se atualmente aos demais critérios clássicos da hermenêutica — gramatical, lógico, histórico e sistemático — aos quais se soma para auxiliar o intérprete na compreensão do seu próprio ordenamento. Peter Häberle alude, assim, ao postulado de Goethe, em virtude do qual quem não conhece nenhum idioma estrangeiro, tampouco conhece o seu, para ressaltar que é plenamente aplicável ao jurista quanto ao conhecimento do ordenamento jurídico nacional — Pérez Luño, Antonio-Enrique. Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio: Derechos Humanos y Constitucionalismo en la Actualidad, Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 24.

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sociedades ou civilizações, independentemente do tempo em que se apresentaram, partindo-se das mais rudimentares para as mais ―desenvolvidas‖,5 assim entendidas estas últimas como as sociedades que alcançaram maior domínio sobre a natureza, pelo uso das tecnologias disponíveis e, simultaneamente, diversificaram de maneira significativa as funções atribuídas aos seus membros; ou estudam-se tais estruturas levando em conta o surgimento histórico dos denominados sistemas, critério, de um modo geral, preferido pela maioria dos autores,6 haja vista a facilidade de compreensão das instituições derivada da ordenação cronológica, motivo pelo qual será eleito, com ênfase para as matrizes dos sistemas processuais que vieram a ser adotados no Brasil. Lembramos que a partir da 3ª edição do ―Sistema Acusatório‖ abdicamos de atualizar dados relativos às transformações ocorridas em diversos Estados.

Na América Latina, por exemplo, o Centro de Estudios de Justicia de Las Américas – CEJA – promoveu ou estimulou pesquisas e trabalhos conjuntos responsáveis pela transformação quase total dos Códigos de Processo Penal (de leis esparças, das regras de Administração e Funcionamento da Justiça Penal e de pontos específicos das Constituições também).

Estes estudos foram fundamentais para que certos sistemas legais mudassem por completo, como é o caso do modelo adotado no Chile.

A experiência com nota de radicalidade acusatória, criando-se o Ministério Público onde não havia, destacando-o do tribunal para lhe conferir autonomia (nestes Estados é

5 Critério utilizado por Julio Maier, na obra acima mencionada. 6 Ver Riquelme (Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, Santiago:

Editorial Jurídica de Chile, 1978), Manzini (Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, e Istituzioni di Diritto Processuale Penale, 11ª ed. Padova: Cedam, 1954), Niceto Alcala-Zamora y Castillo e Ricardo Levene (Derecho Procesal Penal, tomo II, Buenos Aires: Guillermo Kraft) e João Mendes (O Processo Criminal Brasileiro, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959).

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impensável ver o Ministério Público sentado ao lado do juiz na sala de sessões), reconfigurando a etapa de investigação preliminar, em que o juiz só tem funções de garantia, perdendo o poder de dirigir as mencionadas investigações, e implementando a oralidade, produziu câmbio significativo.

Estas reformas são compatíveis com a transição para a Democracia, mudam a face do processo penal e embora realizadas a partir do início dos anos 90, não foram ainda concluídas.

Tais mudanças, todavia, enfrentam alguns obstáculos: a) a mentalidade inquisitória, ainda forte, só compreende alterações na estrutura do processo penal quando enxerga o aperfeiçoamento do sistema punitivo. Assim, há a tendência a associar-se o surgimento de um novo Código de Processo Penal, conforme o modelo acusatório, ao aumento do número de casos julgados e réus condenados. Esta ―conseqüência‖ não é automática e as transformações não são produzidas tendo em vista este objetivo, mas tão-só tornar operacionais as garantias declaradas nas várias Constituições e nas Convenções Internacionais de Direitos Humanos (com destaque para o Pacto de São José da Costa Rica).

Nos Seminários e Congressos promovidos pelo CEJA são quase unânimes os relatórios regionais denunciando a oposição dos meios de comunicação ao novo ―estado de coisas‖, por conta de uma suposta tolerância dos sistemas acusatórios com a criminalidade.

Não custa lembrar que exercício de direitos fundamentais não implica estímulo à criminalidade. Na área técnica e de pesquisa isso é evidente. O discurso dos media, todavia, é engrossado por uma lista de ―especialistas‖ que estimulam a resistência ao modelo democrático de processo penal, reivindicando uma ―volta ao passado autoritário‖ em que a tolerância à tortura, por exemplo, é praticamente admitida e defendida; b) a existência de recursos orçamentários necessários para a implantação do novo sistema. Transitar do sistema inquisitório para o acusatório significa mudar lugares, adaptá-los às funções que deverão

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cumprir. Importa, também, criar Ministérios Públicos onde antes não havia e equipar Defensorias Pùblicas. Ainda há de se pensar em termos de treinamento e capacitação de pessoas, desde os funcionários encarregados de atender ao público e processar os expedientes até juízes, promotores de justiça e defensores, habituados ao processo escrito, lento e sigiloso, substituído por um mecanismo oral, ágil e público. Isto custa dinheiro e em época de contenção do déficit público são espinhosas as negociações voltadas à autonomia administrativa e financeira das citadas instituições (Poderes Judiciários, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas); c) a predominância de um estilo de ensino jurídico distanciado da realidade, carente de contato interdisciplinar e além de tudo modulado para preparar o futuro profissional do direito para atender a demandas ultrapassadas por novas formas de sociabilidade e conflito. O chamado ―mundo do direito‖ ainda aparece nos cursos de formação universitária retratado à semelhança do estilo positivista que domina os cursos jurídicos desde o século XVIII. A chave do ―sistema acusatório‖, no entanto, é constituída por elementos de análise da realidade que percebem o sistema penal como sistema de Poder. A natureza política do direito e do processo penal é responsável pelo tipo de técnica empregada nos tribunais. Sem entender isso, tal seja, sem compreender que as técnicas em direito são informadas por critérios ideológicos, corre-se o risco de se persistir acreditando em uma neutralidade axiológica dos instrumentos do poder punitivo, esvaziando o conteúdo das funções a serem exercidas pelos profissionais. Daí que não bastam os novos prédios, as novas carreiras jurídicas (ou novas formas de trabalhar as conhecidas carreiras) e os novos procedimentos legais se as pessoas continuam agindo e pensando como se ainda vivessem sob auspício de métodos inquisitivos.

Essa digressão tem por finalidade registrar que os sistemas processuais dos Estados do Ocidente, incluindo, por óbvio, os da América Latina, mudaram e/ou estão em pleno processo de mudança.

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Com isso, fica mais claro o caráter datado deste capítulo sobre história, que é válido pelo que a investigação percebeu até 1998. O pesquisador preocupado em saber como hoje andam as coisas deverá ir além do que está no livro (que salvo por raríssimas anotações, com interesse em razão de inovações que podem consignar, não terá atualizado o item 3.1). Para manter-se em dia com as transformações sugere-se, entre outros, a leitura da Revista Sistemas Judiciales, publicação semestral do CEJA (www.cejamericas.org).

Feita a advertência, passemos ao olhar histórico definindo antes o modo e a direção deste olhar.

3.1. Histórico: método aplicável ao objeto. Um acerto semântico.

O primeiro registro sobre sistemas processuais coloca

em relevo uma indagação e as variadas respostas que a civilização ocidental apresentou para ela: afinal, para que serviram e servem os sistemas processuais?

A exata percepção do que as diversas comunidades pretenderam com seu modo de resolver as questões penais ajudará a traçar o perímetro dos sistemas processuais e a compreender a opção não só por modelos antagônicos de resolução de casos penais, como ocorre com a oposição sistema acusatório versus inquisitório, mas também auxiliará a entender que há formas de composição de conflitos (que existem há séculos) que não são marcadas pela atribuição de responsabilidade (pessoal ou coletiva).

O exame do modo como os diversos povos lidaram com as questões que na atualidade definimos como problemas penais é também exame de métodos que estes povos consideravam mais importantes: ora a resolução do conflito gerado pela prática do fato lesivo a interesses individuais ou coletivos (a composição através de acordo entre vítima e agente, por exemplo); ora a solução daquilo que denominaremos ―caso penal‖, seguindo na esteira do

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pensamento de Franco Cordero7, defendido no Brasil por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho8. Nesta última hipótese, a atribuição de responsabilidade invariavelmente estava ligada à imposição de castigos (punição – hoje sanção penal).

É indispensável deixar claro que a diversidade dos objetivos (ou funções) conduz a métodos necessariamente diferentes. Uma coisa é pretender (ou ―desejar‖) que a vítima ou seus familiares e o agente conciliem ou cheguem a um acordo acerca do assunto que os colocou em rota de colisão, independentemente da gravidade do ato (poderá ser um homicídio consumado ou tentado); outra é assinalar conseqüências que afligirão aquele a que vier a ser atribuída a responsabilidade pelo fato, com independência ou não da vontade da vítima e/ou de seus familiares.

Ao longo da história da civilização ocidental os mecanismos empregados oscilaram entre estes dois objetivos ou estas duas funções que serão denominadas de resolução de conflito e acertamento de caso.

Do ponto de vista da dogmática do processo penal não é correto confundir as funções e designar sistemas com indiferença quanto ao papel desempenhado pelos métodos nas comunidades.

Assim, quando Michel Foucault fala em práticas judiciárias, isto é, ―a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades‖9 e distingue modos de construção de subjetividades na relação instituída entre o homem e a verdade (não necessariamente com o sentido de ciência ou conhecimento), o mencionado pensador está se referindo a práticas que tanto consideravam o acertamento do caso como abriam mão disso, abriam mão

7 CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, Colômbia: Temis, 2000.

8 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A Lide e o Conteúdo do Processo Penal, Curitiba, Juruá, 1989 e O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, in: Crítica à Teoria Geral do Processo Penal, Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 9 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, Rio de Janeiro: Nau, 1999, p. 11.

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de saber se alguém praticara determinado fato, desde que o conflito inaugurado pela notícia do fato viesse a ser resolvido de forma satisfatória de acordo com a concepção do grupo social.

O que para a doutrina tradicional exalava cheiro de irracionalidade hoje deve merecer outra consideração de nossa parte. Quer se trate das ordálias, quer surja aos nossos olhos como mitos fundantes de uma determinada maneira de viver e de ver as coisas, como na passagem da Ilíada, capturada por Foucault10, tais práticas tinham um ponto em comum: eram dirigidas à resolução de um conflito. Somente dessa maneira é possível entender a ―racionalidade‖ que definia a ação dos povos germânicos primitivos, quando estes se deparavam com conflitos episódicos.

Nilo Batista nos lembra da dificuldade de recomposição de uma época caracterizada pela tradição oral e pelos desafios naturais cuja capacidade de compreensão fugia àquelas comunidades11. Apesar disso, hoje estamos em condições de saber que aqueles povos, tanto quanto os antigos gregos, ―lutavam‖ incessantemente para alcançar a paz na tribo. Isso importava considerar a integração do sujeito ao grupo (à tribo) como condição para a sobrevivência material e psíquica, como ainda implicava no fortalecimento do grupo a partir da convergência de fatores internos (práticas dos indivíduos) e externos (condições climáticas, vitalidade dos rebanhos etc.), que poderiam ser afetados de diversas maneiras. Era a quebra da paz a que se fará referência nos próximos subitens.

10

FOUCAULT, op. cit., p. 31. A história reproduzida pelo mestre francês fala da contestação entre Antíloco e Menelau durante jogos realizados na ocasião da morte de Pátroclo. Houve uma corrida de carros em um circuito de ida e volta e Menelau contesta o resultado, afirmando que Antíloco não fizera a volta no ponto apropriado. Embora houvesse um ―fiscal‖ neste trecho do circuito, a testemunha não é chamada a contar o que viu. Há um desafio, em forma de juramento, diante do qual Antíloco recua, resolvendo a controvérsia em favor de Menelau. 11 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p.30.

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Agora, para o que nos interessa convém frisar que as formas compositivas, que podem ter sido o juramento (referido por Foucault em sua leitura da Ilíada) ou o pagamento de algum bem (prática dos antigos povos germânicos), não visavam determinar se o agente A ou B havia praticado o fato. Cuidava-se, apenas, de encontrar mecanismos de pacificação da sociedade, perturbada com a ―perda da paz‖. Tratava-se de composição de conflitos.

Este mecanismo persistiu entre nós. Formalmente, nos crimes de exclusiva ação privada12, ao se permitir que a vítima deixe de acionar o réu ou desista da ação proposta caso encontre outra solução, que melhor lhe convenha. Informalmente, mesmo nos crimes de ação pública incondicionada, pois quando há vítimas as investigações raramente são instauradas ou chegam a bom termo sem a colaboração delas.

Na atualidade, mais que em passado recente estas formas estão prestigiadas. Com efeito, os diversos ordenamentos jurídicos valorizam o acordo entre agentes e vítimas e até entre suspeitos e Ministério Público para por fim ao processo (ou ao procedimento), Trata-se de uma outra maneira de buscar a ―paz social‖, sem que se faça aqui, neste momento, qualquer juízo de valor.

A tese que advogamos a partir da 3ª edição do ―Sistema Acusatório‖ (e da edição do livro ―Elementos para uma Análise Crítica da Transação Penal‖, já referido) consiste em reconhecer a impossibilidade de, pura e simplesmente, adotar as categorias dos sistemas processuais (quaiquer deles) aos mecanismos de composição de conflitos na esfera

12 No Brasil, nos crimes de exclusiva ação privada o exercício da ação penal depende da atuação do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo. Cabe ao ofendido estar em juízo, o que fará oferecendo petição inicial denominada queixa-crime. Dessa forma o processo começará, sem interferência inicial do Ministério Público. Este é um mecanismo secundário ou excepcional. Via de regra, os crimes são de ação penal pública e o início do processo fica a cargo do Ministério Público, que se dirige ao juízo e oferece denúncia. Nos crimes de ação pública incondicionada o Ministério Público poderá agir com total independência da vontade da vítima.

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penal baseados no consenso ou na conciliação ou em qualquer outra forma que não seja a apuração do fato.

Não se trata de dizer que procedimentos que dispensam a produção da prova são inquisitoriais. Nem sempre. Na maioria das vezes poderão ser arbitrários. Outras vezes irão satisfazer tanto o interesse dos envolvidos (agente e vítima) como do grupo (mediante compensação).

O que se afirma aqui é que em semelhantes casos não há lugar para a busca da confirmação dos fatos, através de provas, o debate contraditório, a presunção de inocência e a motivação das decisões. Portanto, o papel do juiz (árbitro) poderá ser de mero atestador da regularidade do procedimento ou de incentivador do acordo, conciliação ou compensação. O espaço para a imparcialidade fica reduzido.

Como os elementos que determinam a existência dos sistemas processuais estão vinculados aos sujeitos processuais e ao modo como atuam, além da relação que se estabelece entre o juiz e a busca de informações sobre o fato, estas categorias não se prestam ao fim de definir o modelo fundado no consenso. Para este modelo está posto o desafio da sua compreensão, que significará desenhar com clareza o estatuto do juiz e das partes.

É indiscutível que a essência destes estatutos está na Constituição e nos Tratados sobre direitos humanos. Será preciso extrair desses comandos normativos as bases de configuração de tais estatutos.

Alberto Binder, em obra sobre a forma dos atos processuais e as conseqüências de seu descumprimento, chama atenção para isso:

―Por isso esse sistema de garantias tem vínculos muito profundos com a idéia de indagação (em termos atuais processo cognitivo) e o papel da verdade dentro do processo penal. Todo o sistema de garantias, tal como hoje o concebemos, foi pensado para que funcione dentro do marco do processo de cognição e deve ser compreendido e desenvolvido dentro dessa forma

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concreta de processo. Ainda não foi desenvolvido um sistema de garantias particular, para as outras funções do processo penal (o processo como composição), entre outras coisas porque tampouco está totalmente claro como funcionam os princípios processuais no marco de um processo cuja função principal seja conciliar e pacificar as partes, ou achar um ponto de equilíbrio entre interesses contrapostos‖.13 Diferentemente, no entanto, de Binder, pensamos que a

pesquisa em torno dessa (antiga) forma de resolução de conflitos, restaurada a partir das experiências do direito anglo-saxão, deve começar demitindo-se da tarefa de encontrar nos procedimentos de investigação dos ―crimes‖, conforme padrões acusatórios ou inquisitórios, pistas e permanências.

A nosso juízo, os duelos, jogos e ordálias não antecipam formas dialéticas de disputas, pautadas pela adversariedade. Quando os antigos duelavam ou aceitavam compensações, ponderadas pela intensidade do sofrimento causado pelo ―crime‖, buscavam tão-só controlar as forças da natureza e assegurar a sobrevivência do grupo, de outro modo condenado a desintegrar-se. Hoje, quando a conciliação e a mediação são propostas em casos de violência doméstica é a mesma lógica que preside o instituto, voltado à preservação do núcleo familiar.

Michele Taruffo alerta para isso no processo civil14. Em ―Transação Penal‖ mostramos como essa aproximação com o processo civil tornou-se possível no fim do século XX e que conseqüências são produzidas no processo penal, ao nosso juízo, por tal ordem de coisas. A crítica ao processo penal consensual não exonerará os pesquisadores da tarefa de tentar encontrar o sistema deste modelo. Agora, partindo-se

13

BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44. 14

TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos, Madrid: Trotta, 2002, p. 37.

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do paradigma do Garantismo e sublinhando que um poder que se expressa por meio de castigos deve ser controlado e deve deixar claro porque em determinados casos pune, a investigação teórica orienta-se pela idéia de processo que pretende estabelecer se determinados fatos foram praticados ou não, fixando-se o modo como se chega a esta conclusão. Este é, pois, o específico olhar (viés) histórico que será desenvolvido.

Portanto, para os limites do presente trabalho duas idéias vigoram: a) na atualidade, por conta de uma série de fatores, e em consideração a princípios republicanos que reclamam a fundamentação do exercício do poder de punir, a manifestação desse poder deve ser precedida da apuração do caso, através de provas que o juiz imparcialmente apreciará; b) o olhar lançado ao passado estará dirigido por esse viés, tal seja, estará condicionado para enxergar nas práticas precedentes as pistas sobre como os fatos eram apurados e que papel, afinal, exerciam o juiz e as partes neste ―processo‖. Neste contexto serão investigados historicamente os sistemas processuais.

3.1.1. SITUAÇÃO NA ANTIGÜIDADE

Iniciamos pela afirmação de que os primeiros grupos humanos, as primeiras tribos, desconheciam métodos mais sistematizados de solução dos conflitos de interesses penais, isto porque, como sociedades simples, rudes e incipientes, tendiam à concretização do seu direito, conforme ressaltou Luhmann, e a compreensão de uma forte relação entre o Direito, a Moral e, principalmente, a Religião.

Trata-se, sem dúvida, do período remoto daquilo que hoje conhecemos como direito processual, cuja concreção da atuação dos atores sociais, sempre que comportamentos censuráveis eram praticados, operava a confusão entre ele próprio, direito processual, enquanto rede rudimentar de procedimentos, e o direito substantivo penal.

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Salienta Luiz Flávio Gomes15 que nessa época o Direito era constituído de um emaranhado de regras não escritas e desconexas, oriundas da moral, dos costumes, hábitos, crenças e magias, expressando-se a reação punitiva diferentemente conforme o comportamento agressivo derivasse de um integrante do grupo ou de alguém pertencente a outro clã ou tribo.

Cuidando-se de infração cometida por integrante do grupo social, se não provocasse um dano irreparável ou se não colocasse em perigo as condições existenciais da sociedade, cumpria ao agente restabelecer o status quo ante. Tal providência, veremos, aparecerá também nas tribos germânicas, em uma fase posterior, voltada à composição do litígio, primeiramente entre os envolvidos — autor do fato e vítima ou seus parentes — e depois com a participação/mediação da sociedade através de um tribunal formado pelos homens aptos a guerrear, porém sempre com a intenção de conciliar os sujeitos em conflito.16

Todavia, se o membro da tribo ou clã realizasse uma ação hostil considerada capaz de afetar a paz do grupo social, acreditada como dádiva assegurada pela vontade dos deuses, cabia punir o agente vingando-se, pois de outro modo, imaginava-se, a sociedade jamais voltaria a gozar de tranqüilidade.17

15 Gomes, Luiz Flávio. ―Responsabilidade Penal Objetiva e Culpabilidade nos Crimes Contra a Ordem Tributária‖, in Direito Penal Empresarial (coord.

Valdir de Oliveira Rocha), São Paulo: Dialética, 1995, pp. 77-80. 16 Welzel, Hans. Derecho Penal Aleman, 4ª ed. Santiago: Editorial Jurídica

de Chile, 1993, pp. 10-11. 17 Junito de Souza Brandão destaca, examinando a mitologia grega, que a

noção de falta, vista objetivamente (não se julgavam intenções mas fatos), implicava, conforme a origem do infrator — se membro de um mesmo génos ou não — na religiosa e obrigatória vingança, distribuindo-se no grupo social o dever de vingar. Salienta o autor que até a reforma jurídica de Drácon ou Sólon, famílias inteiras se exterminavam na Grécia, fato semelhante ao verificado entre os povos hindu e judeu. No Rig Veda, de 2000 a 1500 AC, por exemplo, alerta Junito, consta a súplica: Afasta de nós a falta paterna e apaga também aquela que nós próprios cometemos. Enquanto isso, no Antigo Testamento (Êxodo, 20,5) assinala-se: Eu sou o Senhor, Teu Deus, um Deus zeloso, que vingo a iniqüidade dos pais nos

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No tocante ao ato de hostilidade praticado pelo integrante de outro clã, a agressão era reputada como violência à própria tribo, havendo de ser indistintamente reprimida por uma espécie de vingança coletiva, que de ordinário implantava um estado de guerra.18

Averbe-se que o aperfeiçoamento da organização social, acrescido da consciência da necessidade de encontrar uma plataforma sobre a qual pudessem ser erguidos os procedimentos de resolução de conflitos, de forma a preservar tanto quanto possível a sociedade, foram as principais causas da sistematização contínua dos métodos de implementação do Direito Penal. Naturalmente que a princípio o que hoje chamamos de Direito Penal estava indistintamente emaranhado ao que definimos como sendo Direito Civil, pois não se diferenciavam os ilícitos criminal e civil, ambos fundados no primitivo conceito de dano.19

Entre as primeiras sociedades politicamente mais organizadas, temos o Egito, onde, na Antigüidade, o exercício do Poder Judiciário estava concentrado nas mãos dos sacerdotes, sendo que Mênfis, Tebas e Heliópolis eram as cidades que forneciam os juízes para o tribunal supremo, encarregado de julgar os crimes graves.

Nas províncias, por seu turno, havia um juiz, espécie de prefeito, ao qual era delegado o processo e julgamento dos crimes leves, dispondo também o mencionado juiz de delegados, incumbidos da repressão penal, até mesmo com o emprego de violência, se se tratasse de infrações de menores conseqüências. Ada Grinover assinala que, se quisermos classificar o modelo egípcio consoante estruturas conhecidas, a verdade é que nele se pode encontrar o embrião do

filhos, nos netos e bisnetos daqueles que me odeiam. Nessa ordem de coisas é correto afirmar, portanto, que a idéia do direito do génos está indissoluvelmente ligada a crença na maldição familiar, a saber: qualquer hamartía (falta) cometida por um membro do génos recai sobre o génos inteiro, isto é, sobre todos os parentes e seus descendentes ―em sagrado‖ ou ―em profano‖ (Mitologia Grega, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 77).

18 Gomes, Luiz Flávio. Responsabilidade Penal, p. 78. 19 Fontecilla Riquelme, Rafael. Ob. cit., p. 28.

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procedimento inquisitório, uma vez que a iniciativa oficial para a persecução penal correspondia a uma forma de governo absoluta, de domínio e inspiração sacerdotal.20 As principais características dessa época são:

a) a acusação como dever cívico das testemunhas do fato criminoso;

b) polícia repressiva e auxiliar da instrução, a cargo das testemunhas;

c) instrução pública e escrita; d) julgamento secreto e decisão simbólica.21 Na Palestina, havia três espécies de tribunais,

consistindo em três graus de jurisdição: os tribunais dos Três, dos Vinte e Três e o Sinédrio.

Os tribunais dos Três (Deuteronômio, XVI 18) se compunham de três juízes (schophetim) e eram competentes para julgamento de alguns delitos e de todas as causas de interesse pecuniário. As suas decisões eram apeláveis para o tribunal dos Vinte e Três. Este, por sua vez, era instituído em todas as vilas cuja população superasse cento e vinte famílias e, além de julgar as apelações das decisões dos tribunais dos Três, cumpria-lhe conhecer originariamente os processos criminais puníveis com a pena de morte.

Finalmente, o mais alto grau da magistratura era a assembléia, conhecida como Sinédrio ou Tribunal dos Setenta, porque composta por setenta juízes. Era uma instituição política e judiciária, competindo-lhe a interpretação das leis e o julgamento dos senadores, profetas, chefes militares, além das cidades e tribos rebeldes.

Muito embora habitualmente a crença na origem sagrada ou soberana das decisões orientasse os povos antigos no sentido da sua irrecorribilidade, cumpre destacar que entre hebreus o recurso era considerado direito sagrado, assim como prevalecia um princípio fundamental, pelo qual

20 Grinover, Ada P. Liberdades Públicas, p. 28. 21 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 16-

18.

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uma só testemunha jamais valerá contra alguém; qualquer decisão deverá apoiar-se sobre o dito de duas ou três testemunhas,22 cabendo a dedução da acusação, em processo contraditório e público, ao ofendido. Outra interessante previsão do direito hebreu, em uma fase mais avançada, em julgamentos perante o alto tribunal, consistiu em reproduzir a votação eventualmente condenatória, no dia seguinte ao da primeira, visando confirmar o veredicto desfavorável ao acusado mediante serena reflexão dos julgadores. Estavam, porém, impedidos de alterar sua decisão aqueles que no dia anterior houvessem votado pela absolvição, de sorte que se tratava, basicamente, de um duplo grau de jurisdição a favor do réu. Cabe salientar que a decisão majoritariamente favorável ao acusado não demandava este tipo de confirmação, proclamando-se de imediato a absolvição.

A legislação mosaica fulcrou-se, portanto, nos seguintes princípios:23

1. não havia prisão preventiva; fora do caso de flagrante delito, o acusado hebreu não era preso senão depois de conduzido ao tribunal para defender-se e ser julgado;

2. não era o acusado submetido a interrogatórios ocultos: segundo os rabinos, ninguém podia ser condenado somente pela confissão;

3. ninguém podia ser preso e muito menos condenado pelo dito de uma só testemunha nem por conjecturas;

4. a instrução e os debates eram públicos e os julgamentos conferidos e acordados em segredo;

5. o recurso era um direito individual e sagrado.24 Da Grécia antiga, a ilustração clássica pode ser

observada pela forma de expressão da justiça ateniense. Com efeito, havia em Atenas quatro jurisdições criminais: a

22 Almeida Junior, João Mendes de. Ob. cit., p. 19. 23 Idem, pp. 19-21. 24 Almeida Junior, João Mendes de. Ob. cit., pp. 19-21.

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Assembléia do povo, o Areópago, os Efetas e os Heliastas. O Tribunal dos Heliastas, ou Hélion, assim conhecido

porque se reunia em praça pública e sob o Sol, era composto de cidadãos, cujas decisões eram consideradas proferidas pelo povo, e sobressaiu-se entre os demais principalmente por força de sua ampla competência (a rigor, de início, não julgava os homicídios involuntários ou não premeditados, da competência dos Efetas, e todos os crimes sancionados com pena de morte e os homicídios premeditados e incêndios, da competência do Areópago), pela publicidade da sua atuação e porque composto por cidadãos honrados, maiores de trinta anos, eleitos anualmente por sorteio (de quinhentos a seis mil).25

Como salientou João Mendes Junior,26 a legislação ateniense reconhecia duas classes de delitos, impropriamente designados como púbicos e privados, cuja nota distintiva residia no interesse público (ordem, tranqüilidade e paz públicas), ou privado na repressão da infração, permitindo-se, no último caso, a desistência e transação durante o processo.

Averbe-se, porém, que o prestígio do modelo ateniense de persecução penal derivou exatamente do sistema de acusação popular, em relação aos crimes públicos, faculdade deferida a qualquer cidadão, de um modo geral, pela Assembléia do Povo, para, em nome do próprio povo, sustentar a acusação.27 Assim, o ofendido ou qualquer cidadão apresentava e sustentava a acusação perante o Arconte e este, conforme se cuidasse de delito público, convocava o Tribunal, cabendo ao acusado defender-se por si mesmo (em algumas ocasiões era auxiliado por certas pessoas). Cada parte apresentava as suas provas e formulava suas alegações, não incumbindo ao tribunal a pesquisa ou aquisição de elementos de convicção. Ao final, a sentença era

25 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 30. 26 Almeida Junior, João Mendes de. Ob. cit., p. 23. 27 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 31. Almeida

Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 23.

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ditada na presença do povo.28 Muito embora variáveis os procedimentos, conforme o

tribunal competente, algumas características podem ser anotadas:29 • tribunal popular, conforme o princípio da soberania

do povo; • acusação popular, por uma faculdade deferida a qualquer cidadão para apresentar demanda contra quem se supunha autor ou partícipe de um delito público; • igualdade entre acusador e acusado, que, de ordinário, permanecia em liberdade durante o julgamento, liberdade muitas vezes condicionada à caução; • publicidade e oralidade do juízo, que se resumia a um debate contraditório entre acusador e acusado, frente ao tribunal e na presença do povo; • admissão da tortura e dos juízos de Deus como meios de realização probatória; • valoração da prova segundo a íntima convicção de cada juiz; • restrição do direito popular de acusação em certos crimes que mais lesavam o interesse particular do indivíduo do que o da sociedade; • decisão judicial irrecorrível.

Em Roma, o mais antigo dos sistemas procedimentais

penais conhecidos dessa civilização surgiu com a denominação de cognitio, baseado na inquisitio,30 tratando-se de procedimento de natureza pública,31 porquanto

28 Sanchez, Guillermo Colin. Derecho Mexicano de Procedimientos Penales,

México: Porrúa, 1979, p. 17. 29 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 33. Almeida

Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 26. 30 Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano, São

Paulo: Bushatsky, 1976, p. 31. Manzini, Vincenzo. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, p. 8.

31 Manzini sublinha que, em relação ao processo penal privado, o órgão do Estado (juiz magistrado ou popular) se punha como árbitro entre as partes e julgava atendendo ao exposto por elas. De um modo geral, o Direito Penal

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realizado em nome e pela intervenção do Estado romano, e porque deixava ao magistrado, como representante do rei, amplos poderes de iniciativa, instrução e deliberação, sem maiores formalidades que se saiba e mesmo sem partes, conforme as concebemos atualmente.32 Manzini salienta que a faculdade de apelação do acusado ao povo (provocatio),33 com efeito suspensivo, contra a sentença proferida pelo magistrado, determinava um ulterior procedimento, de segundo grau, designado anquisitio.34 Este período foi denominado comicial, pois proporcionava o julgamento da provocatio ad popolum em comícios, Assembléias do Povo, revelando-se, entretanto, já na República, insuficiente para a

Privado, acentuar-se-á mais adiante, regulava as infrações (fatos injustos) cometidas sem violência e não previstas especificamente pela lei. Salienta, todavia, o mestre peninsular que, por efeito da tendência do Direito Penal romano de tornar pública a ação penal em todos os casos, resultou no progressivo abandono do processo penal privado, restando a persecução deste tipo reservada à injúria e outros poucos crimes (Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, pp. 3-4).

32 É valioso ressaltar que o Direito Penal que se procurava efetivar pela via procedimental, em Roma, a partir dos momentos finais da República, conheceu maior consistência e dividiu-se ordinariamente em três ramos: Direito Penal Privado, que se reportava à lei das XII Tábuas e às leis mais antigas; Direito Penal Público legítimo, fundado nas leis especiais, principalmente Corneliae e Iuliae, regulador das quaestiones, principalmente durante a crise da República e na origem do Principado, pelo qual eram infligidas penas públicas; e Direito Penal Público extraordinário, baseado no ordenamento geral augustinianeo, assim como, depois, em senatusconsultos, constituições imperiais e, até, na praxe judicial (Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano, pp. 54-55).

33 Piero Fiorelli atribui à Lei Valéria de provocationen, editada provavelmente em 300 AC, a instituição da provocatio ad popolum (―Accusa e Sistema Accusatorio: Diritto Romano e Intermedio‖, in Enciclopedia del Diritto, I, Milano: Giuffrè, 1958, pp. 330-331).

34 Tucci, por sua vez, assinalou diferentemente que a anquisitio coexistiu consuetudinariamente, nos primeiros tempos, e relativamente aos crimes de lesa-pátria e lesa-majestade, com a cognitio, carente, todavia, da participação da assembléia do populus (ob. cit., p. 32). Havia, também, alguns magistrados, designados quaestores, aos quais cumpria conhecer de determinados crimes e especificar as respectivas sanções. Com o passar do tempo, o poder de império próprio da inquisitio foi sendo limitado às decisões absolutórias, na medida em que das condenatórias se recorria, transformando-se a inquisitio em mero procedimento instrutório.

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necessidade social de repressão da criminalidade.35 Em seguida à cognitio surgiu a accusatio, também

designada judicium publicum ou quaestio,36 voltada à apuração de algumas infrações penais atinentes à ordem pública, como, por exemplo, aquelas cometidas pelos magistrados no exercício de suas funções (quaestiones37). O procedimento, que carecia da figura do acusador particular, ora na condição de ofendido, ora representando o interesse público da sociedade, surgia como manifestação da adaptação do antigo processo penal às novas exigências sociais, sendo em muitos aspectos semelhante à forma grega. A accusatio pode ser conceituada como a ―prerrogativa concedida a qualquer cidadão e, especialmente ao ofendido, de, munido de provas, deduzir, perante o povo, a imputação, à margem, ou não, da inquisitio, e assim, mover a ação penal‖,38 e tinha, pois, por pressuposto, a exigência de que ninguém podia ser levado a juízo sem uma acusação: nemo in iudicium tradetur sine accusatione.

A forma acusatória adotada na época, prescindindo de uma investigação anterior,39 era dominada integralmente pelo contraditório, cumprindo às partes pesquisarem e produzirem as provas das suas alegações. Tratava-se de um

35 Manzini, Vincenzo. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, p. 8. Tucci

(Lineamentos do Processo Penal Romano, ob. cit., p. 142) agrega à observação de Manzini a de Kunkel, que se referiu ao fato de, subseqüentemente à segunda guerra púnica, haver perdido a Assembléia do Povo o prestígio que antes gozava, deixando de ser integrada por ―prudentes trabalhadores‖.

36 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 45. 37 Quaestiones nada mais eram, segundo Hélio Tornaghi, que comissões dos

comícios, tribunais semelhantes ao júri, presididos por um Pretor ou por um quaestor e composto de juízes que prestavam juramento (Instituições de Processo Penal, vol. II, São Paulo: Saraiva, 1977, p. 68). Designavam, também, as ações de responsabilização dos juízes, numa espécie de tomada de contas do desempenho do mandato.

38 Joaquim Canuto Mendes de Almeida apud Rogério Lauria Tucci, Persecução Penal, Prisão e Liberdade, São Paulo: Saraiva, 1980, p. 63.

39 Tornaghi salienta que nessa situação a inquisitio era posterior à accusatio, uma vez que somente depois de deduzida a acusação realizava o acusador, na presença do acusado, se este quisesse, a investigação do fato (Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 4).

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modelo de processo público e oral, cujos debates formavam o eixo central, dos quais derivava o fundamento da decisão. Neste paradigma processual as partes tinham, via de regra, a disponibilidade do conteúdo do processo,40 competindo ao Estado tão-só o conhecimento e julgamento da ação criminosa, em se tratando de delicta publica. Julio Maier destaca como mérito histórico desse sistema o fato de ter substituído o sentido subjetivo, mítico da prova, pelo conhecimento objetivo, histórico, encarando-se a prova como forma de reconstrução histórica de um acontecimento pelos vestígios que havia deixado no mundo.41

É bem verdade, como frisou Tucci,42 que, se com as quaestiones, o Direito Penal Romano começou a ostentar consistência e certa autonomia, acrescentaríamos também aí o Direito Processual Penal, a ponto de assinalar-se a existência de um sistema homogêneo de normas processuais e meramente procedimentais, derivadas das leis de César referentes aos judicia publica e judicia privata, com o passar do tempo não se mostrou mais suficiente para as exigências de repressão da delinqüência. Isso ocorre ao mesmo tempo em que se desloca a fonte da soberania da cidadania para o Imperador,43 ocasionando graves inconvenientes e predispondo acusadores e acusados a litigarem entre si permanentemente e intentarem a vingança,44 valendo-se até mesmo da falsa acusação, além de, não raramente, assegurar a impunidade do criminoso, em face da ausência de quem se dispusesse a acusá-lo.

Assim, sob o Império, que veio em seguida à República,

40 Manzini salienta que em algumas situações, uma vez exercida a ação penal,

o magistrado ficava investido dela (de poderes em relação a ela), ao ponto de não poder despojar-se sem um motivo jurídico. Assim, mesmo que o acusador abandonasse o processo, descreve Manzini, nem por isso caía a acusação, devendo seguir-se as investigações públicas (Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, pp. 6-7).

41 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 46. 42 Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano, p. 159. 43 Fato percucientemente notado por Julio Maier. Derecho Procesal Penal

Argentino, p. 47. 44 Manzini, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, p. 7.

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em tese vigorava um modelo procedimental que carecia do acusador privado, mas, na prática, alguns agentes públicos (curiosi, nunciatores etc) passaram a desenvolver verdadeira atividade de polícia judiciária, transmitindo aos juízes os resultados das suas pesquisas, a princípio sempre que alguém deixava de apresentar a accusatio.

Por sua vez, os magistrados foram ampliando cada vez mais a sua esfera de atribuições, alcançando aquelas antes reservadas aos particulares, até chegar-se ao extremo, como salientou Manzini, de se reunirem em um mesmo órgão do Estado as funções que atualmente competem ao Ministério Público e ao juiz,45 com a máxima disposição dos magistrados de descobrirem a verdade, não deixar ao desamparo os fracos e evitar o non liquet, tal seja, o pronunciamento da não-decisão, a impossibilidade de um veredicto decisivamente solucionador do concreto conflito de interesses. Hélio Tornaghi advertiu para o fato de que o sistema acusatório na Antigüidade, principalmente tal como se desenvolveu na fase republicana de Roma, ter oferecido graves inconvenientes, anotando, com especial destaque, os seguintes:46 • a impunidade do criminoso; • a facilitação da acusação falsa; • o desamparo dos fracos; • a deturpação da verdade; • a impossibilidade de julgamento, em muitos casos; • a inexeqüibilidade da sentença, em outros.

O modelo processual, então baseado na iniciativa de

qualquer cidadão, conviveu com o procedimento penal de ofício, reinstituído, alicerçado na denominada cognitio extra ordinem, até que, ao tempo de Diocleciano, a última estrutura passou a prevalecer de jure, alastrando-se das províncias na direção de Roma

A nova cognitio, diferentemente da primeira, conferia

45 Idem. 46 Tornaghi, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 5.

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amplos poderes ao magistrado, não somente para investigar as infrações penais, recolhendo provas, como, ainda, para julgar a causa,47 podendo valer-se mesmo da tortura.48

De se destacar que, ao contrário do que viria a ocorrer posteriormente, na Idade Média, sob a égide do inquisitorialismo, se em Roma ainda predominava a forma pública e oral, mesmo no procedimento extra ordinem, como momento culminante dessa estrutura processual, em realidade a instrução escrita e secreta, derivada do poderoso aparato estatal, aos poucos foi sucedendo a anterior, até constituir-se em sua parte ou forma principal, surgindo, pois, como semente da Inquisição que mais tarde dominaria a Europa Continental.49

Sobre essa passagem histórica vale registrar a seguinte observação de Julio Maier:50

―La denominación misma, cognitio extra ordinem, revela precisamente las dos características fundamentales de este procedimiento: el renacimiento de la cognitio como método de enjuiciamiento penal que presuponia la omnipotencia procesal al reunir, en una única mano, por lo menos, dos de las funciones principales del procedimiento, la requirente y la decisoria; y su regulación como sistema de excepción destinado a suplir la inactividad y complejidad del antiguo régimem acusatorio, ya corrompido, y a otorgar mayor poder a las crecientes necesidades de la nueva organización política‖.

3.1.2. DIREITO MEDIEVAL E DA ÉPOCA MODERNA

47 Tucci, Rogério Lauria. Lineamentos do Processo Penal Romano, p. 169. 48 Manzini, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal, tomo I, p. 8. 49 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 51. 50 Idem.

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A invasão bárbara marcou nova era de transição, quer

porque introduziu a estrutura modelar adotada pela maioria dos povos germânicos, quer pela força do Direito de algumas cidades italianas, com suas legislações municipais, e, ainda, em virtude do extraordinário desenvolvimento do Direito Canônico, amadurecendo naturalmente um novo equilíbrio,51 com recíprocas influências de modo a afetar tanto dominadores como dominados.

Evidentemente, enlaçados o Direito Processual Romano extraordinário e o Direito Germânico, em virtude da invasão bárbara, cumpre identificar as principais características do segundo, possibilitando, destarte, a compreensão dos processos de convivência lado a lado, absorção e adaptação recíprocas dos mencionados ordenamentos.

Com efeito, particulariza-se o Direito Processual Germânico da Antigüidade, de um modo geral consuetudinário,52 salvo em alguns lugares, como, por exemplo, na França, por conta da disciplina subjetiva das provas e da iniciativa privativa da vítima ou de seus familiares, em busca da reparação do dano causado pelo ofensor, ficando nas mãos dela, vítima, a persecução penal (Sippe).53 É de se salientar que o antigo direito germânico não distinguia entre ilícitos civil e penal, operando-se o que Fiorelli designou como assimilação das causas criminais pelos crimes que ofendiam diretamente os particulares às

51 Ver, sobretudo, Piero Fiorelli (ob. cit., p. 332), que remarcou o fato das

municipalidades italianas terem estatuído, a princípio, nessa época, um processo do tipo acusatório. Porém, a consolidação dos organismos comunitários ensejou a atribuição aos magistrados de funções mais amplas, aproximando-se até transformar-se normalmente em um modelo inquisitório.

52 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal - Parte General, 4ª edição, Granada: Comares, 1993, p. 80.

53 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana: Su Comentario y Comparación com los Sistemas de Enjuiciamiento Argentinos, Buenos Aires: Depalma, 1978, p. 24. Sippe, segundo Nilo Batista, é a designação do clã a que a pessoa pertencia (BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas..., p. 32).

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causas cíveis.54 Ocorre, todavia, que em uma fase posterior toda

infração passou a ser considerada como rompimento da paz (Friedensbruch), autorizando, conseqüentemente, a guerra e a vingança familiar (Blutrache e Fehde ou Faida), de tal sorte que perdia o ofensor e sua família a proteção comunitária.

Tal sistema progrediu até que fosse permitido o pagamento do preço da paz à comunidade (Friedensgeld), por meio de convênios reparatórios, e uma indenização ao ofendido ou sua família (Busse), o que era possível em se tratando de infrações menores.55 Nilo Batista ressalta a existência da capitular de Carlos Magno, de 802, que recomendava às famílias evitar acrescentar uma inimizade ao mal já feito, destacando, porém, que durante extenso período ―a anuência a uma composição ultrajava o sentimento coletivo da honra familiar e só mais tarde o ressarcimento assumiria um papel central na superação de tais litígios‖.56

A partir de um determinado momento o entendimento privado constitui-se no método predominante de solução dos conflitos de interesses de natureza penal, o que não impedia o ofendido de se socorrer dos Conselhos (Placita), assembléias populares que ministravam justiça, começando aí o verdadeiro processo judicial de corte acusatório.57

Tal processo peculiarizou-se pelo direito privado de iniciativa da persecução (nemo iudex sine actore), começando diante do fracasso da composição entre as partes sobre a emenda ou indenização ou por reclamação unilateral do ofendido ou sua família ao tribunal (Hundertschaft), composto por pessoas capazes para guerra (Thing). As

54 Fiorelli, Piero, ob. cit, p. 332. 55 Excluiam-se, por exemplo, a traição na guerra, deserção, covardia diante do

inimigo e delitos contra o culto (Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 80).

56 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas..., p. 34.

57 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 24, e Tornaghi, Hélio, Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 66.

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sessões eram públicas, orais e contraditórias, presididas por um juiz, o qual dirigia o debate e propunha a sentença, mas não decidia.58

Como ficou registrado, os povos germânicos não só influenciaram o direito do restante do continente europeu, inclusive e principalmente a área antes dominada pelo Império Romano,59 chegando a Portugal e Espanha,60 como sofreram a influência da cultura e do Direito romanos, de sorte que, do seu sistema predominantemente acusatório, passaram, lenta mas vigorosamente, à recepção e assimilação do Direito Romano-Canônico e à introdução da Inquisição.

Nessa via começou-se por admitir a indicação do juiz presidente do tribunal, que ainda era popular, pelo rei, com a participação de outros funcionários por ele também indicados, cuja função consistia em propor a sentença, chegando, em alguns casos extremos, à persecução oficial (Rügeverfahren).61 Claro está que o caminhar nessa direção pressupôs o nascimento e fortalecimento de um poder estatal, personificado pelo rei e fundado no surgimento de fontes jurídicas escritas, no denominado período Franco (482 a 843 da nossa era).62

Até o momento anteriormente indicado, contudo, na primeira parte da Idade Média, em decorrência da formação de pequenas comunidades — feudos — comandadas autoritariamente e, sem dúvida, de fato dispostas de forma

58 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 26. 59 Tornaghi, Hélio, Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 66. 60 João Mendes de Almeida Junior assinala que em Portugal, sob dominação

do Império Romano e, portanto, regido pelas leis de processo penal romanas, invadiram no século V os povos germânicos designados alanos, vândalos e suevos, depois derrotados pelos godos, que dominaram toda a península, sob o nome de Visigodos (O Processo Criminal Brasileiro, p. 51), de sorte que paulatinamente o procedimento da cognitio extra ordinem, predominante na fase final do Império Romano, cedeu lugar ao processo acusatório germânico, muito embora os visigodos, mais do que os outros bárbaros, se tenham deixado influenciar pela autoridade dos bispos da Igreja Romana.

61 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 27. 62 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 81.

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autônoma frente aos reinos, reduziu-se sobremaneira o papel da justiça, conforme a conheceram os antigos, desmembrando-se o aparato judicial germânico, de modo que, tempos depois, a jurisdição eclesiástica veio a sobressair, acomodada em um poder centralizado e eficientemente distribuído nos mais diversos territórios, ao contrário do poder real.

Com efeito, a Igreja passa a enxergar no crime não só uma questão de interesse privado mas, principalmente, um problema de salvação da alma, requisitando-se o magistério punitivo como forma de expiação das culpas. O arrependimento não é mais suficiente. É necessária a penitência, motivo por que cumpre à Igreja investigar um significativo número de infrações, ratificando-se assim, politicamente, a sua autoridade.

Michel Foucault irá anotar aí o dado marcante que está como na base ou essência dos procedimentos inquisitoriais: a ―busca da verdade‖ que substituirá os desafios ou provas a que se submetiam as pessoas, nos reinos bárbaros, para o que nos interessa configurou o início da ―história política do conhecimento‖, ou, de acordo com nosso ponto de vista, o emprego político do conhecimento que é fabricado e servirá para definir relações de luta e poder.63

É evidente, ainda, que a indisciplina de parte do clero e a corrupção de outra parte confrontam o poder central do Papa, criando, por isso, as condições básicas necessárias para a implementação, por Inocêncio III, em 1215, no IV Concílio de Latrão, do chamado procedimento Inquisitório,64 complementado, em suas linhas gerais, por Bonifácio VIII,65 Clemente V e João XXII.66

Franco Cordero salienta que a revolução inquisitorial

63

FOUCAULT, Michel. A Verdade e as..., p. 23. 64 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 28, e Fiorelli,

Piero, ob. cit., p. 333. 65 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal

Penal, p. 218. 66 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 80-

81.

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satisfará exigências comuns aos dois mundos: o eclesiástico, assombrado por heresias, e o civil, que via na expansão econômica a origem da criminalidade exasperada em face do paradigma anterior. Fixa o autor italiano que os interesses que têm de ser protegidos exigem o automatismo repressivo incompatível com as acusações privadas, enquanto a cultura romana, sofisticada para os padrões bárbaros, estava a exigir decisões ―técnicas‖.67

Muito embora os séculos XIII e XIV marquem o início da predominância do modelo inquisitorial, transplantado para a justiça laica com o fortalecimento das monarquias e, conseqüentemente, com a formação do conhecido Estado-Nação e a centralização do poder secular, ainda nas cidades italianas conviviam formas inquisitórias com formas acusatórias. Isso é vislumbrado em registros de Bolonha e Florença, sendo a inquisição, subsidiária do modelo acusatório, implementada apenas quando uma acusação não era exercitada.68

A remanescente estrutura acusatória, no entanto, começa a render-se a aspectos quase sempre identificados no procedimento inquisitório, tais como a forma escrita da dedução da acusação e o segredo que envolvia a produção da prova testemunhal, chegando, pois, ao emprego da tortura, a culminância das presunções e da confissão.

Será Foucault novamente a nos lembrar que a técnica de ―reunir pessoas que podem, sob juramento, garantir que viram, que sabem, que estão a par‖, como mecanismo de prorrogação da atualidade do delito, sugere a maior racionalidade do procedimento da inquisição em oposição à aparente brutalidade e ao caráter arbitrário dos duelos, jogos e desafios (provas) dos povos bárbaros. O mestre francês, no entanto, lança luz sobre o passado. Destaca que os objetivos das ―provas‖ e juízos de Deus era um: superação do conflito instaurado pela notícia ou prática do delito; enquanto o fim perseguido pelo sistema da inquisição era outro: colocar um

67

CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 16. 68 Fiorelli, Piero. Ob. cit., p. 333.

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eficaz instrumento de gestão à disposição da nova estrutura de poder que se formara na Europa Continental. ―O inquérito na Europa Medieval é sobretudo um processo de governo, uma técnica de administração, uma modalidade de gestão; em outras palavras, o inquérito é uma determinada maneira do poder se exercer‖.69

Por fim, o equilíbrio entre os dois modelos se rompe e o sistema inquisitório vive seu apogeu no continente europeu, até ser descartado, ao menos na Europa Ocidental (Continental), no século XIX.

Pode-se afirmar que a herança da cultura hegemônica e estilizada do Direito Romano, cultivada nas prestigiosas universidades italianas pelos glosadores (1100 a 1250) e pós-glosadores (de 1250 a 1450), superou o Direito Germânico, de tradição popular. A Igreja, indiscutivelmente, contribuiu para o sucesso da difusão do modelo de inspiração romanística, cujo último paradigma havia sido, como visto, a cognitio extra ordinem, difundindo universalmente o modelo inquisitorial à base de uma universalidade cristã, tendente a se impor a todos os povos.

Maier giza que o Direito Romano, ao contrário do Império dentro do qual nasceu, não sucumbiu à invasão bárbara e não tardou a impor suas idéias, mais desenvolvidas e elaboradas.70

Embora hoje a Inquisição seja vista com todas as reservas, cumpre remarcar que na sua época o discurso dominante a apresentava como produto da racionalidade, confrontada com a suposta irracionalidade das ordálias ou juízos de Deus, que substituiu, enquanto sistema de perseguição da verdade, pela busca da reconstituição histórica, procurando, tanto quanto possível, reduzir os privilégios que frutificavam na justiça feudal, fundada quase exclusivamente na força e no poder de opressão dos senhores

69

FOUCAULT, Michel. A Verdade e as..., p. 72 e 73. 70 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 54.

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feudais sobre os demais,71 pessoas que a rigor estavam sujeitas a medidas punitivas discricionárias, impostas pelos mencionados senhores feudais.

Vale deixar consignado que a Inquisição começa propriamente quando se admite a denúncia72, inclusive anônima, como forma de principiar uma investigação, prescindindo-se dela, mais tarde, ao se permitir o início do processo de ofício, bastando para tanto o rumor público, revelador da ocorrência de uma infração. Franco Cordero relembra que nessa hora o juiz passa da posição de expectador impassível para converter-se em protagonista do sistema.73

A jurisdição eclesiástica a princípio destinava-se ao julgamento de membros da Igreja, porém conforme o poder temporal desta última foi se expandindo, resvalou para a sua competência uma enorme gama de infrações penais consideradas contrárias, mesmo que distantemente, aos interesses da Igreja.74

Principalmente a partir do momento em que as autoridades judiciárias eclesiásticas passaram a ser exercitadas por monges designados pelo Papa, as características marcantes da Inquisição foram a forma

71 Sobre a inquisição, convém examinar a obra de João Bernardino Gonzaga,

A Inquisição em seu Mundo (8ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994), da qual se extrai este valioso e elucidativo trecho: As censuras apresentadas contra a Inquisição giram, invariável e incansavelmente, em torno das idéias de intolerância, prepotência, crueldade; mas, ao assim descrevê-la, os críticos abstraem, ou referem muito de leve, o ambiente em que ela viveu. Forçam por tratá-la quase como um acontecimento isolado e, medida pelos padrões da atualidade, se torna incompreensível e repulsiva para o espectador de hoje. Sucede porém que esse fenômeno foi produto da sua época, inserido num clima religioso e em certas condições de vida, submetido à força dos costumes e de toda uma formação cultural e mental, fatores que forçosamente tiveram de moldar o seu comportamento (p. 21).

72 Aqui a palavra ―denúncia‖ não deve ser confundida com a petição inicial de

um processo condenatório, como no caso do Brasil de hoje, mas como notícia crime que obrigava à investigação. 73

CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 19. 74 Idem, p. 56.

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escrita, em contraposição à oralidade, o segredo, confrontando a publicidade e a iniciativa do juiz para o procedimento.

Naturalmente, altera-se o eixo do procedimento e o acusado que no sistema acusatório era sujeito de direitos, deveres, ônus e faculdades, passa a objeto da investigação. Da busca da ―verdade real" renascem os tormentos pelas torturas, dispostas a ―racionalmente‖ extraírem dos acusados a sua versão dos fatos e, na medida do possível, a confissão, fim do procedimento, preço da vitória e sanção representativa da penitência.75

Distintamente das ordálias, dos povos germânicos, que presumiam uma manifestação das divindades por intermédio de um sinal físico facilmente observável, a iluminar o caminho a seguir para se fazer justiça, a tortura impunha-se como procedimento de investigação baseado no conhecimento, meio, portanto, considerado à época mais evoluído.

A prisão durante o processo torna-se a regra, firme na tese de que todo acusado obstaculiza a investigação da verdade.

A jurisdição secular, com o fortalecimento das monarquias, a estruturação de uma justiça profissional e a determinação, como critério definidor da competência, do lugar do fato — forum delicti commissi —, a partir do século XV supera os tribunais locais e paulatinamente diminui a influência e competência da jurisdição da Igreja, até assinalar a absoluta supremacia da jurisdição do monarca.

Sublinhe-se que se considerava que o poder de julgar pertencia ao rei, que, por sua vez, o delegava a funcionários que atuavam em seu nome, razão pela qual se admitia o recurso ao soberano, como reafirmação do poder central e modo de controle do poder delegado,76 malgrado dissimulado como garantia do réu. Saliente-se que o duplo grau operacionalizava-se até mesmo porque, com a franca

75 Idem, p. 57. 76 João Bernardino Gonzaga, ob. cit., p. 60.

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predominância da forma escrita, derivada da necessidade de documentação do que era apurado em segredo, cumpria garantir-se a regularidade dos procedimentos.

O controle do poder político, inerente ao processo judicial por crimes, assegura no período áureo do inquisitorialismo a delegação a determinadas categorias de funcionários, os procuradores do rei, da atribuição de oficialmente investigar as infrações penais, ainda que delas só haja rumores. Faustin Hélie vê na instituição a semente do Ministério Público.77

É bem verdade que, mesmo como meros delegados, os juízes tinham de ser controlados na medida em que eles dispunham do poder de iniciar uma investigação independentemente de qualquer denúncia, e menos também de acusação. A acusação até poderia existir. O juiz além do mais estava habilitado a infligir ao acusado tormentos, disso ao final não se escusando nem mesmo os nobres. O controle do poder dos juízes era exercido não somente pela possibilidade de se recorrer da decisão, cujo êxito estava condicionado a fatores de ordem material, mas ainda por meio da disciplina legal rigorosa de avaliação e crítica do material probatório.

Assim é que o sistema introduziu um mecanismo de valoração legal da prova, que estabelecia, em abstrato, as exigências ou condições para o juiz decidir sobre a persecução. Acentuou Maier o seguinte:78

―El juzgador no fundaba su fallo en su convicción, apelando al valor de verdad que la prueba recibida transmitía en el caso concreto, sino que verificaba o no verificaba las condiciones que la ley le exigía para decidir de una u outra manera. Claro es que las condiciones impuestas por la ley estaban referidas a la verdad histórica,

77 Faudtin Hélie, apud Julio B. J. Maier, Derecho Procesal Penal Argentino,

p. 61. 78 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 64.

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de manera que representaban condiciones que, normalmente, por experiencia, fundaban una convicción racional, pero, en realidad, el acierto del juicio no dependía de su coincidencia com la verdad, sino de la observancia de las reglas jurídicas previstas, por lo que su control en apelación se asemeja más a un examen jurídico, a un control sobre el recto ejercicio del poder delegado al juzgador.‖

Na Espanha, o processo inquisitorial chega com a

revogação formal da legislação visigótica (Fuero Juzgo), mediante a outorga da Lei das Sete Partidas, de Alfonso X, no século XIII, expandindo-se por meio do Ordenamento de Alcalá (1348), até que, sob o reinado dos Reis Católicos, adquire inolvidável vigor.

De se notar que na Espanha católica instaurou-se, ao lado da justiça comum, o tribunal religioso denominado Santo Ofício, tido indiscutivelmente como o mais cruel e violento da época da Inquisição, com a qual muitas vezes é confundido como se fosse seu exemplo mais perfeito e difundido.79 O Santo Ofício alcançou a América Espanhola e só foi abolido definitivamente, enquanto tribunal de inquisição, em 1834.80

Na Alemanha, por sua vez, sob a jurisdição do Império Romano-Germânico, depois da recepção do Direito Romano, conforme anteriormente sublinhado, após a instalação do Tribunal de Câmara Imperial (1495) e em virtude do reconhecimento do desejo de criação de um direito imperial unificado, foram editadas a Constitutio Criminalis 79 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 66. 80 João Bernardino Gonzaga assevera que a extinção da Inquisição, em

Portugal, ocorreu em 1821, sucedendo, na Espanha, em 1834, com a alteração da competência e efeitos da jurisdição eclesiástica. Acrescenta o autor que, em 1908, reorganizou-se a instituição sob a denominação de Sagrada Congregação do Santo Ofício, passando a chamar-se, a partir de 1965, de Congregação para a Doutrina da Fé, naturalmente com novos procedimentos e competência limitada a assuntos religiosos (ob. cit., p. 238).

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Bambergensis (1507) e a Constitutio Criminalis Carolina (1532), esta alcançando praticamente todos os domínios do Império.

Trata-se do ingresso legal indiscutível da Inquisição na Alemanha e demais áreas de influência, sem embargo de remotos princípios do antigo sistema germânico, de índole acusatória, mediante uma regulação que se pretendia uniforme, inclusive no tocante à disciplina da tortura.81

A França, da mesma forma, suportou o sistema inquisitório, especialmente a partir da Ordenação de 1254, de Luis IX, editada sob a influência do Direito Romano-Canônico, com a disposição da apuração das infrações penais de ofício e a imposição da jurisdição real em todo território. Maier82 salienta, todavia, que foi a Ordenação Prévia, de 1535, o diploma que definitivamente incorporou a Inquisição, fazendo sucumbir o modelo acusatório, enquanto Franco Cordero aduz que é com a Ordenação de 1670 que a Inquisição chega ao seu apogeu na França.83

Pietro Fredas destaca, por sua vez, que a ordenação criminal de Luis XIV, de agosto de 1670, ordenou o procedimento criminal na França e apresentou-se como a codificação completa e última do procedimento inquisitório,84 pretendendo por fim ao caos então vigente na administração da justiça.

Releva notar que, diferentemente da jurisdição civil, em relação à qual os senhores feudais ainda dispunham de algum poder, inclusive o de julgar recursos contra as decisões dos seus juízes delegados, na jurisdição criminal sempre, qualquer que fosse o tribunal do qual proviesse a decisão, os recursos eram julgados por juízes indicados pelo rei, assegurando-se, pelo controle dos assuntos criminais, a preponderância do poder real sobre o senhorial, verdadeira e

81 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 84. 82 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, p. 78. 83

CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 21. 84 Pietro Fredas, na introdução à 3ª edição da obra de Florian, Las Pruebas

Penales, vol. I, já mencionada (p. 7).

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incontestável ratio das providências inseridas na Ordenação. A recíproca determinação entre o direito processual dos

povos germânicos e o Direito Romano-Canônico foi já sublinhada, sendo marcante também na região de Portugal, muito embora desde logo os Visigodos, que suplantaram suevos, vândalos e silingos na ocupação territorial daquela parte da Península Ibérica, hajam aplicado o direito de inspiração romana e abandonado, malgrado não por inteiro, como veremos, a herança que seu espírito aventureiro havia levado para a Península Ibérica.

Gize-se, por oportuno, que Portugal nasce da obstinação de resistência aos árabes que, em 714, invadem a península, desmembrando-se, em 1139, do Reino de Lião. Apesar disso, sente-se nessa fase incipiente do processo penal português a influência germânica e moura, como neste caso constata-se, para ilustrar, pela designação atribuída a alguns funcionários da justiça, tais como os vereadores (alvazis),85 juízes municipais, e na hipótese da influência germânica, pela instituição da acusação do ofendido ou de qualquer do povo, por clamor ou sem ele, com a dedução da acusação perante um tribunal formado por homens de bem, assegurando-se a plenitude da defesa.86 Tratava-se, é certo, de processo público e oral, substituído aos poucos pela forma escrita.

Como em outros lugares, ao fim da Idade Média, em Portugal também se percebeu o papel jogado pela justiça criminal na consolidação do poder político, de sorte que as justiças municipais passaram a sofrer a disciplina geral, determinada pela realeza, impondo-se a competência ratione loci, que reduzia a influência das justiças locais de caráter feudal, a iniciativa oficial, independentemente de delação ou

85 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 61. 86 Idem, pp. 66-71. Convém frisar que os visigodos dispuseram de legislação

própria, aplicável exclusivamente ao seu povo (Código de Eurico e, posteriormente, Código de Leovigildo), enquanto os hispano-romanos submetiam-se a outro regime (Breviário de Alarico), até que, em 654, promulgou-se um novo código, unificando a legislação (Código Visigótico, Liber Judiciorum ou Fuero Juzgo), conforme remarca Pierangelli (Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, p. 28).

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reclamação do ofendido, embora esta pudesse existir, e o recurso de apelação, inclusive ex-officio, por parte do comendador real, sem embargo da criação de tribunal inquisitorial eclesiástico, com sua competência peculiar, em prolongada concorrência com as jurisdições feudal e monárquica, portanto conforme o modelo comum em toda a Europa continental.87

A América Espanhola regeu-se, pela força da dominação dos imigrantes europeus e da exterminação quase total dos povos e culturas indígenas, pelo procedimento vigente na Espanha, tal seja, principalmente a Lei das Sete Partidas, como consigna Maier,88 com a prevalência do modelo inquisitório, baseado na persecução penal de ofício, convertendo-se em pesquisa oficial e secreta, com a admissão da tortura. Enquanto isso, no Brasil, o discurso oficial sugeria a aplicação, sucessivamente, das Ordenações

87 Vale, por oportuno, destacar que, no reinado de D. Afonso IV, os mouros

foram definitivamente banidos do território lusitano. Isso produziu sensível alteração na ordem jurídica, no plano do processo penal, principalmente com a edição, em 2 de dezembro de 1325, da lei sobre as inquirições devassas. No reinado de D. Afonso V, sob a regência do Infante D. Pedro, em 1446, foram editadas as Ordenações Afonsinas, obra dos romanistas João Mendes (possivelmente o Livro I) e Ruy Fernandes (os demais Livros). Na mencionada codificação, mais especificamente em seu Livro V, Título IV, tratava-se do processo criminal, aludindo-se não só à acusação do Direito Romano como também, novamente, às inquirições secretas (devassas) do Direito Canônico. Depois vieram leis esparsas e as Ordenações Manoelinas, em 1521, acentuando a forma escrita do procedimento e ratificando a jurisdição da realeza, com a previsão do Promotor de Justiça, até que, finalmente, as Ordenações Filipinas foram editadas, em 1603, e passaram a ser aplicadas em Portugal após a morte do Rei Cardeal D. Henrique e sua sucessão pelo Rei espanhol, Filipe II de Castela (Filipe I em Portugal), que pouco alterou a anterior (Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, pp. 112, 123 e 127, e Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, pp. 45-61). Mesmo depois da libertação de Portugal do jugo espanhol, continuaram em vigor as Ordenações Filipinas, por feito de D. João IV, que as revalidou em 29 de janeiro de 1643 (Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, Campinas: Bookseller, 1997, p. 95).

88 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, pp. 102-103.

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Manoelinas89 e Filipinas, com as devassas gerais e especiais, cabendo, pois, aos juízes, nos seus territórios, formar corpo de delito e abrir inquirição-devassa logo que tivessem notícias da prática de infrações penais.90

Ao lado do arbítrio e das práticas de extermínio, a inquisitorialidade era a regra geral, fundada na iniciativa ex officio, no emprego da tortura, no sistema de avaliação legal das provas e na forma escrita predominante, inclusive da sentença, com uma fase processual anterior ao julgamento, sem contraditório, que findava com a pronúncia,91 sem embargo, nos primeiros tempos de colonização, de ficar o processo à discrição dos doze donatários das quatorze capitanias hereditárias em que se dividiu o território brasileiro, com ampla jurisdição.92

Em linhas gerais, pode-se assinalar, com Julio Maier, que o Sistema Inquisitório correspondeu a uma concepção absolutista de Estado, em teoria política, e a progressiva publicidade do direito penal, em termos de teoria jurídica, ―concibiendo al delito como un ataque al orden social y el juzgamiento penal se transforman de cuestión popular en tarea autoritaria (cuestión de Estado)‖, com as inolvidáveis conseqüências culturais e jurídicas que tal concepção veio a proporcionar, a ponto de até hoje sentirem-se os seus efeitos.

Pode-se mesmo assinalar que, sob a égide de tal sistema, fica claramente à mostra a vinculatividade da atuação estatal na resolução dos conflitos de interesses e solução de casos na esfera penal, às diretrizes políticas que

89 Jorge Alberto Romeiro assinala que no Brasil-Colônia não vigoraram as

Ordenações Afonsinas... É que, apesar de descoberta a Terra de Santa Cruz em 1500, somente no reinado de D. João III (1521-1557) lhe veio de Portugal a primeira expedição colonizadora, que chegou às costas de Pernambuco em 30 de janeiro de 1531, capitaneada por Martim Afonso de Souza (Romeiro, Jorge Alberto. Da Ação Penal, Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 71).

90 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, p. 95.

91 Idem, pp. 96-97. 92 Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes

Legislativas, p. 71.

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modelam a estrutura do Estado e definem seus fins. A maior parte da doutrina refere como características

do Sistema Inquisitório a concentração das três funções do processo penal — de acusar, defender e julgar — em um só sujeito, o que conduz, nas palavras de Alcala-Zamora e Levene, a um processo unilateral de um juiz com atividade multiforme,93 relegando ao acusador privado uma posição secundária e proporcionando o princípio do processo (rectius, da persecução penal) independentemente da manifestação de pessoa distinta da do juiz (procedat iudex ex officio); procedimento extremamente secreto e destituído do contraditório, quase sempre marcado pela prisão provisória e disparidade de poderes entre juiz-acusador e acusado; forma escrita e exclusão de juízes populares, historicamente preocupado com o descobrimento da verdade real, via de regra a partir da confissão do imputado, muito embora tenha havido intensa liberdade de o juiz pesquisar e introduzir outros meios de prova.94 Não custa colocar em relevo a observação de Franco Cordero, sobre este período e acerca do emprego da tortura. Nota o jurista italiano que provido de instrumentos virtualmente irresistíveis, o inquisidor tortura os pacientes como quer: dentro do seu marco cultural pessimista o animal humano nasce culpado.95

3.1.3. O COMMON LAW

O sistema jurídico conhecido como Common Law

merece especial realce. Elaborado na Inglaterra a partir do século XII da nossa era e fundamentado na jurisdição real das decisões, expandiu-se para introduzir-se, em maior ou menor grau, nos Estados que foram colonizados pelos ingleses. 93 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal

Penal, tomo II, p. 219. 94 Leone, Giovanni. Manuale di Diritto Processuale Penale, Napoli: Jovene,

1983, p. 9. Conso, Giovanni. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, Milano: Giuffrè, 1969, p. 7.

95 CORDERO, Franco. Procedimiento..., vol. 1, p. 22, tradução livre.

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Com efeito, a Inglaterra integrou o Império Romano do século I ao V, porém o processo de aculturação foi pouco intenso, principalmente no tocante à assimilação do direito e das instituições jurídicas.

Do século VI em diante, conseqüentemente às invasões dos anglos, dos saxões e dos dinamarqueses, têm lugar reinos germânicos que, tal como no continente, em que pesem a incontestável força e o prestígio dos costumes, adotam também leis bárbaras, geralmente redigidas em língua germânica.

Já no século XII, a partir da conquista normanda, os costumes parecem ser a única ou mais importante fonte do direito, dividindo-se em costumes locais anglo-saxônicos, costumes das novas cidades e costumes dos mercadores, denominados, de um modo geral, lex mercatoria. Neste século, portanto mais cedo que na Europa Continental, os reis da Inglaterra conseguem impor sua autoridade sobre o conjunto do território, desenvolvendo a competência da sua própria jurisdição em prejuízo das jurisdições senhoriais e locais, que perdem progressivamente, ao longo dos séculos XII e XIII, a maior parte das suas atribuições.

Para isso, especialmente em matéria criminal, os reis se serviram de juízes que percorriam todo o território, reuniam as cortes locais e julgavam os casos em pauta, conferindo unidade ao Common Law.96

A forma de atuação dos mecanismos de resolução dos conflitos de interesses adotados na Inglaterra, como consectário lógico da técnica usada para requerer as jurisdições reais,97 afastou o direito inglês do modelo romano-canônico imperante no resto da Europa e possibilitou aos juízes profissionais, com formação prática, a introdução de um mecanismo de recurso a precedentes

96 Tornaghi, Hélio. Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 70. 97 Requeria-se jurisdição por meio de pedidos endereçados ao Chanceler que,

se os reputasse fundamentados, exarava um writ, uma ordem, a um agente real local, para que determinasse ao réu que desse satisfação ao queixoso (Gilissen, John. Introdução Histórica ao Direito, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1979).

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(cases) a rigor condensados nos Years Books, escritos em francês (Law French).

No século XV, no entanto, a técnica dos precedentes judiciais começou a não atender à evolução das relações econômicas e sociais, de sorte que surgiram as designadas jurisdições de eqüidade (equity), que desprezavam o common law e aplicavam um processo escrito inspirado pelo do Direito Canônico e conforme ao desenvolvimento do poder real, em direção ao absolutismo.

É bem verdade que mais tarde a equity se integrou ao common law, depois de um período de conflito entre realeza e parlamento, no século XVII,98 especialmente porque se admitiu uma dualidade jurisdicional, fundida apenas posteriormente, na Idade Contemporânea, em 1873 e 1875.

No campo específico do processo penal, desde o século XII assoma em importância o júri, que substitui os juízos de Deus, proscritos por Inocêncio III. O Júri inicialmente foi disposto não só para julgar a causa mas, antes, para denunciar os crimes mais graves (Grand Jury), não se entregando a acusação pública, em matéria criminal, a um específico funcionário, juiz ou membro do Ministério Público, como no continente.

Cabia ao Grand Jury, composto por vinte e três jurados de cada condado, denunciar os crimes mais graves aos juízes (júri de acusação), enquanto o Petty Jury, composto geralmente por doze jurados, ocupava-se com as provas,99 de que cada jurado podia ter ciência própria, isso se o réu desde logo não confessasse (guilty plea), situação que gerava a

98 Sobre a reforma do sistema judiciário, que constituiu um dos objetivos dos

que lutaram na guerra civil inglesa, cumpre consignar a reivindicação de Oliver Cromwell (1650) de que procedimentos e textos legais fossem redigidos em inglês, não em latim ou law french e que houvesse tribunais de justiça locais, constituídos por simples cidadãos, que os juízes de paz fossem eleitos, a lei codificada, os advogados e seus honorários abolidos (Cerqueira, Marcello. A Constituição na História: Origem & Reforma, Rio de Janeiro: Revan, 1993, p. 31).

99 Ver, sobre o sistema judiciário do Common Law, por todos, John Gilissen, Introdução Histórica ao Direito.

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isenção de julgamento.100 É imperioso ressaltar, na história dos sistemas

processuais penais, que nos séculos XV e XVI o petty jury reforma-se para tornar-se exclusivamente uma instituição de julgamento,101 confiando-se a acusação a qualquer habitante do reino, pois que, por ficção, admite-se que toda conduta criminal atinge a figura do rei, o que perdura até os dias de hoje.

Destarte, a instituição dessa exclusiva ação penal popular, e a postura de imparcialidade e eqüidistância do júri (passividade), comungam para que se aceite que o processo anglo-saxão tenha conservado um sistema tipicamente acusatório.102

3.1.4. O DIREITO DA ÉPOCA CONTEMPORÂNEA

Pode-se afirmar seguramente que a herança espiritual

da Idade Média, no âmbito da repressão penal, não desapareceu definitivamente, até que, a partir dos séculos XVII e XVIII, sob inspiração do Iluminismo, iniciou-se o período moderno de administração da justiça, reduzindo-se e amenizando-se as características inquisitoriais dos procedimentos penais.

Com efeito, se a Revolução Francesa de 1789 foi o marco político inquestionável, as condições ideológicas e filosóficas que viabilizaram a eclosão da Revolução devem muito ao

100 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 21. 101 Gilissen, John. Introdução Histórica ao Direito, p. 214. 102 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 21. Jorge Alberto Romeiro,

a propósito do sistema inglês, alude ao fato de, na Inglaterra, ter imperado sempre um modelo processual penal baseado na ação penal popular, muito embora, em tempos recentes, conhecer-se a figura do público acusador (director of public prosecution), sob a vigilância do procurador-geral (attorney general). Fauzi Hassan Choukr pondera, entretanto, que a figura do attorney general que lá existe tem funções de auxiliar do governo, e sua origem nada apresenta de comum com aquela do Promotor Público (Romeiro, Jorge Alberto. Da Ação Penal, p. 65, e Choukr, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal, 1ª ed., p. 50). De toda sorte, dúvida não há sobre a natureza da estrutura processual penal inglesa.

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triunfo das idéias humanistas de Beccaria (Dei delitti e delle pene, 1764), Thomasio (De origine processus inquisitorii), Montesquieu (Esprit des Lois, 1748), Voltaire (Prix de la justice et de l‘humanité, 1777), Bentham (Introduction to the principles of morals and legislation, 1780), Pufendorf e Wolf, além, naturalmente, de Rosseau (Contrat Social, 1764), quer no tocante à secularização do direito penal, ousando separar o Direito da Religião, quer quanto aos fins da pena, quer, ainda, pela sistematização da idéia da separação dos poderes.103

É relevante ressaltar que a crítica tenaz ao modelo de processo penal, e porque não dizer, principalmente, ao modelo de direito penal então vigente, ressabia a contestação ao sistema político do Ancien Régime, do qual os mecanismos punitivos nada mais eram do que instrumentos de manutenção da ordem classista e desigual, em vigor, cabendo ao judiciário daquele momento, de uma forma geral, o triste papel de garantidor de um status quo de injustiças.104

Maier assinala com precisão que os filósofos iluministas, partindo do reconhecimento da necessidade de substituir o sistema absolutista monárquico pela república, postularam um novo modelo que, a rigor, recolocaria a oralidade e a publicidade no lugar da escrituração e do segredo, assegurando-se a defesa e a liberdade de julgamento pelos jurados,105 com a proscrição do sistema de provas legais.

A transição política e cultural da monarquia para a República teve repercussão no campo do processo penal, por meio da abolição da tortura e da adoção de um sistema processual penal inspirado nos aplicados pela Roma Republicana e pela Inglaterra. Como diz Roxin, ―Oralidad, publicidad, participación de los legos en la administración

103 Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal, p. 85. 104 Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, Barão de. Cartas Persas,

tradução de Renato Janine Ribeiro, São Paulo: Paulicéia, 1991. 105 Maier, Julio B. J. Derecho Procesal Penal Argentino, pp. 106-107.

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de justicia y la introducción del ministerio público — ésas fueron, en el ámbito del proceso penal, las exigencias reformistas decisivas del siglo XIX en oposición a la justicia de gabinete y a la manipulación arbitraria del poder penal‖.106

Sem dúvida, o movimento de radical mudança social, política e jurídica não se limitou ao ambiente intelectual, alcançando a consciência pública, de modo a ser reivindicado até mesmo por magistrados franceses do Antigo Regime, juízes que hoje poderíamos designar como de vanguarda.

O novo sistema, que principiou sua atuação na França, em seguida à Revolução, para com as guerras napoleônicas chegar a outros países, disciplinava o processo penal em duas fases. Na primeira delas, denominada instrução, procedia-se secretamente, sob o comando de um juiz, designado juiz-instrutor, tendo por objetivo pesquisar a perpetração das infrações penais, com todas as circunstâncias que influem na sua qualificação jurídica, além dos aspectos atinentes à culpabilidade dos autores, de maneira a preparar o caminho para o exercício da ação penal; na segunda fase, chamada de juízo, todas as atuações realizavam-se publicamente, perante um tribunal colegiado ou o júri, com a controvérsia e o debate entre as partes, no maior nível possível de igualdade.

Salientou Pietro Fredas107 que esta estrutura foi consagrada no Código de Instrução Criminal de 1808, difundindo-se rapidamente pelos códigos modernos, com a proclamação da necessidade de uma investigação secreta e dirigida pelo juiz, e com tímida atuação da defesa nesta etapa, razão por que se consagra como sistema de tipo misto.108

106 Roxin, Claus. El Ministerio Público En El Proceso Penal, Buenos Aires: Ad-

Hoc, 1993, p. 39. 107 Fredas, Pietro, na introdução à 3ª edição de De las Pruebas Penales, de

Eugenio Florian, p. 10. 108 Vale acentuar que, transplantado da Inglaterra para o continente europeu

pela Revolução Francesa, exceto para Holanda e Dinamarca, o júri não se adaptou aos costumes dos povos continentais, sendo abolido ou tendo sua

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Cumpre explicitar que a instituição do júri, no continente europeu, obedeceu à lógica da identidade entre o direito e a lei, pela qual a verdade política por esta expressada, de forma genérica e abstrata, haveria de ser meramente proclamada pelo juiz profissional a quem não se permitia interpretar a lei com maior liberdade, no seu processo de aplicação.

Tratava-se, portanto, de mais uma reação ao Antigo Regime, desenvolvendo os jurados — juízes leigos — o papel de guardiões dessa presumida verdade política da lei, em um clima de abstrata homogeneidade de uma sociedade, marcada, naturalmente, por uma nova categoria de conflitos que, ao longo dos séculos XIX e XX, poriam a nu o dogma da universalidade dos interesses burgueses.

Conforme Alcala-Zamora e Ricardo Levene, na própria França, e antes na Áustria e na Espanha (respectivamente, 1897, 1873 e 1882), acentuou-se a tendência acusatória do processo penal, sem prejuízo da manutenção das características basicamente inquisitórias da sua primeira etapa (o segredo, a escrituração e a iniciativa judicial), combinando, de acordo com os renomados autores, as vantagens de ambos os sistemas de que derivou,109 de sorte que passa a ser conhecido, também, como sistema acusatório formal.110

competência paulatinamente reduzida, como na Alemanha, em 1924, na Itália, em 1935 e 1951/1952, e na própria França, em 1941, onde foi substituído pelos escabinados (Marques, Frederico. A Instituição do Júri, Campinas: Bookseller, 1997, pp. 20-21).

109 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Derecho Procesal Penal, p. 222. Ver também Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 32.

110 Vale examinar a obra de Antonio María Lorca Navarrete, intitulada significativamente El Proceso Penal de La Ley de Enjuiciamiento Criminal: Una propuesta para preterir el modelo inquisitivo d la Ley de Enjuiciamiento Criminal (Madrid: Dykinson, 1997, p. 30), da qual se extrai esse importante trecho: La prevalente práctica del sistema inquisitivo justificó históricamente la urgente necesidad de neutralizar sus consecuencias perversas, evidenciadas a partir de la labor de los revolucionarios franceses. Surge así la ‗tercera vía‘ que, sin ser inquisitiva ni acusatoria, es, en cambio, los dos modelos a la vez. Se trata del modelo

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Pode-se dizer que a ação penal, no sistema misto, exercitada pelo Ministério Público, pelo ofendido ou por qualquer pessoa (dividindo-se assim, conforme a peculiaridade dos ordenamentos jurídicos, em pública, de iniciativa privada e popular), caracteriza-se por ser indisponível, exercida pelo seu respectivo titular de acordo com os ditames do juízo de acusação ao qual chegam os integrantes da câmara ou tribunal de acusação, depois de apresentado, pelo juiz-instrutor, o resultado das suas investigações.

A etapa preliminar, ou de instrução, atende ao propósito declarado de otimizar os meios de apreensão dos elementos que constituirão o núcleo do trabalho a ser desenvolvido na fase seguinte, e ao objetivo implícito, de realização pública e obrigatória do direito penal, ou, como prefere Maier, de indisponibilidade na atuação do preceito e da sanção penais, nem bem verificada a infração penal,111 fazendo operar ―de ofício‖ o direito penal, conforme as reservas de direitos fundamentais, motivo pelo qual, nesta perspectiva, pode ser compreendido como sistema inquisitorial garantista.

Atualmente, a situação é a que será a seguir exposta, com a ressalva de que o século XX foi marcado, na Europa, em um determinado momento, pelo império de regimes totalitários, que abraçaram a discricionariedade na repressão penal, mais aproximada do modelo inquisitório extremado, e provocaram, como reação, conseqüentemente ao seu desaparecimento, o desejo mais ou menos comum de uma nova introdução do sistema acusatório, movimento ainda não completamente ultimado no último decênio.

Vale asseverar, seguindo o trajeto histórico dos sistemas processuais das duas principais famílias jurídicas que nos

mixto o acusatorio formal, que se caracteriza porque recoge, como no podía ser menos, elementos técnicos del inquisitivo e del acusatorio com indudable prevalencia hacia este último en la fase más importante de esse modelo: el juicio.

111 Maier, Julio B. J. La Investigación Penal Preparatoria del Ministerio Publico, Buenos Aires: Lerner, p. 14.

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interessam — as do direito europeu continental e do Common Law —, que, na França, o processo penal evoluiu desde 1808, época da edição do Code d‘instruction Criminelle, no sentido de se reforçar a estrutura de tipo misto, mantendo-se no atual Code de Procédure Pénale, que entrou em vigor em 1959, uma etapa de instrução escrita e secreta (artigo 11), dirigida por um juiz-instrutor responsável pela aquisição das provas, com maior liberdade e independência, distinta da etapa de julgamento.

Prevalece a tendência de se excluir a defesa da fase de investigação preliminar (l‘enquête), muito embora participe efetivamente da fase de juízo. A ação penal é deflagrada pelo Ministério Público, sendo indisponível e irretratável, muito embora, quanto à iniciativa, sujeita a alguma discricionariedade do órgão do parquet, e, quanto ao seu objeto, sujeita à obediência ao deliberado pela câmara de instrução, no fim desta fase (artigos 202, 204 e 205 do CPP).

Novella Galantini, estudando o Processo Penal Francês, observou, na década de 1980, a tendência de aproximação ao modelo acusatório, principalmente por meio do controle dos poderes atribuídos ao juiz de instrução, situação revertida posteriormente, conforme as Leis 93-2, de janeiro de 1993, e 93-1013, de agosto do mesmo ano, que se inclinaram em direção ao retorno ao processo de tipo misto, que atualmente predomina, progredindo a persecução a partir da investigação inicial, levada ao cabo pela polícia, sob a coordenação do Ministério Público, passando pelo exercício da ação penal e instauração da fase de instrução, até chegar ao juízo propriamente dito, este último oral, público e contraditório.112

Na Espanha, segundo Emilio Gomez Orbaneja e Vicente Herce Quemada,113 o sistema da Ley de Enjuiciamiento Criminal corresponde à estrutura acusatória formal, ou

112 Galantini, Novella. Profili della Giustizia Penale Francese, Torino: G.

Giappichelli, 1995. 113 Orbaneja, Emilio Gomez e Quemada, Vicente Herce. Derecho Procesal

Penal, 6ª ed. Madrid, 1968, p. 91.

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mista, porquanto, ao lado de uma primeira fase, de investigação, denominada sumário, escrita e secreta, conduzida pelo juiz da instrução, com reduzida intervenção da defesa,114 há o juízo propriamente dito, ao qual se chega ultrapassando-se a etapa intermediária de aceitação da acusação, sujeito à parêmia nemo iudex sine actore, pelo que se prestigiam a oralidade, a publicidade e o contraditório (artigos 744 e 680 da LEC).

A ação penal poderá ser pública, a cargo do Ministério Público, popular, caso em que funciona o órgão oficial como litisconsorte, ou de iniciativa do ofendido, desenvolvendo-se na sua plenitude depois de ultrapassada a fase sumarial, responsável pelo acertamento da qualificação jurídica do fato.

Navarrete, examinando a forma como na Espanha desenvolve-se o processo penal, acentua a impossibilidade de se conciliar duas fases tecnicamente antagônicas, porque inspiradas por princípios opostos, tais sejam, o inquisitivo e o acusatório. Reclama por isso, o mencionado autor, uma urgente redefinição do modelo, com preponderância da acusatoriedade, salvo se pretender a lei espanhola render loas à teoria da aparência acusatória, pela qual o sistema acusatório é só mediático, estruturalmente condicionado em seus resultados pela atividade inquisitória anterior.

A prevalência dos aspectos acusatórios, conforme Navarrete, apresenta-se hoje, pois, como mistificação, que não resiste sequer à constatação de que a forma sumária, preparatória e inquisitorial, é regulada por quase quatro centenas de artigos (artigos 259 a 648 da LEC), contra cem do juízo oral e um número ainda menor para o juízo abreviado, instituído pela Ley Orgánica 7/1988, de 28 de

114 Desde 4 de dezembro de 1978, por força da Lei nº 53/1978, que modificou

o artigo 302 da LEC, os sujeitos pessoalmente envolvidos com as investigações sumariais podem tomar conhecimento das diligências e intervir em todas elas, sendo, portanto, consoante interpretação do tribunal constitucional espanhol, uma exceção para as partes (Lorca Navarrete, Antonio María. El Proceso Penal de La Ley de Enjuiciamiento Criminal, p. 87).

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dezembro de 1988.115 Como sintoma da incongruência da estrutura acusatória

formal ou mista em vigor, ressalta Navarrete a possibilidade de funcionarem, lado a lado, o juiz inquisidor, o Ministério Público e o ofendido, alcançando-se, pelas dificuldades de salvaguarda de um processo garantista, algo como a quadratura do círculo.

A Alemanha, por sua vez, recepcionou novamente a experiência jurídica estrangeira, por conta da expansão napoleônica, introduzindo entre os povos germânicos a declaração de direitos fundamentais do povo alemão, em 1848, pela qual se optava, decisivamente, pela publicidade e oralidade do processo penal, pela inclusão do elemento popular na tarefa de julgar, condicionando-se a atuação da jurisdição a uma provocação de parte, com a conseqüente descentralização das funções principais do processo: acusar, defender e julgar.116

Em realidade, muito embora haja, entre os estudiosos do processo penal alemão, quem lhe recuse a qualificação de deduzido conforme o sistema acusatório, justamente porque não seria um processo de partes, substancialmente falando,117 o certo é que o princípio acusatório, caracterizado pela divisão de funções — acusar, defender e julgar — está efetivamente preservado.118

A persecução penal, de um modo geral, começa com o procedimento preparatório, previsto no § 160 e seguintes do StPO, dirigido pelo Ministério Público, sendo essencialmente

115 Idem, pp. 31 e 57. 116 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana, p. 35. 117 Colomber assevera que, na medida em que é o próprio Estado quem inicia

a persecução penal em juízo, por intermédio do Ministério Público, e a soluciona, por meio da sentença proferida pelo juiz, dependendo a relação jurídica processual, via de regra, da oficialidade da ação penal, tal estado de coisas é inerente ao reconhecimento da prevalência do interesse público na tutela penal dos bens jurídicos, com a usurpação, pelo Estado, do papel de protagonista que a vítima desempenha nos sistemas acusatórios puros ou genuínos (Gomes Colomer, Juan-Luis. El Proceso Penal Aleman: Introduccion y Normas Basicas, Barcelona: Bosch, 1985, p. 46).

118 Idem, p. 47.

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secreto. Nele, há limitada autorização para a participação do investigado ou de seu defensor, embora haja cuidados com os direitos fundamentais do primeiro. Terminada esta fase, é possível o arquivamento ou o exercício da ação penal, consoante o seu resultado e levando em consideração, ainda, em algumas situações, questões de conveniência.

Formulada a acusação, passa-se a uma fase intermediária, destinada ao controle desta mesma acusação, no tocante à existência de base fática para a demanda — §§ 199 a 211 do StPO. Aceita a acusação pelo tribunal, inicia-se o procedimento principal, regulado no Livro II da StPO, cujas principais notas são, como antes acentuado, a divisão das funções principais entre acusador, réu e seu defensor e juiz, a oralidade e a publicidade, estando, todavia, o tribunal livre para adquirir os meios de prova que considerar necessários ao descobrimento da verdade, não havendo nenhuma tarifação legal dos meios de convencimento introduzidos.119

Convém explicitar, nos limites do nosso trabalho, que não pode o tribunal proceder de ofício, quer quando decide o Ministério Público arquivar os autos do procedimento preparatório (para o que só há recurso do ofendido), ou ainda se pretender o tribunal ampliar o objeto ou incluir sujeitos na relação instaurada, devendo, neste último caso, ser cumprido o percurso previsto no § 266 do diploma processual, como adiante transcrevemos, conforme a tradução espanhola:120

―Si extendiera el Fiscal en la vista principal la acusación a ulteriores hechos punibles del acusado, podrá incluirlos el Tribunal, por medio de auto, en el proceso, cuando fuera competente para ello y lo consintiera el acusado.‖

119 Idem, p. 130. Ver, igualmente, Introducción al Derecho Penal y Al Derecho

Penal Procesal, por Claus Roxin, Gunther Arzt e Klaus Tiedemann, Barcelona: Ariel, 1989.

120 Gomes Colomer, Juan-Luis. El Proceso Penal Aleman, p. 367.

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A Itália, em 1988, substituiu o Código Rocco, de 1930, incorporando na nova legislação fundamentais alterações, que apartam o mais recente modelo daqueles de inspiração francesa.

Com efeito, depois de longa jornada, permeada por instantes de extrema dificuldade, provocados, entre vários fatores, pela ação terrorista, produziu-se uma nova ordem jurídica, no plano do processo penal, em busca da expressão consciente de dois distintos projetos: a preservação das garantias fundamentais, bastante afetadas por um sistema de tipo misto, preponderantemente inquisitório;121 e a necessidade de eficiência da justiça penal e de defesa da coletividade.122

No novo sistema, modificou-se a fase preparatória, que se transformou em verdadeiro inquérito, conduzido, coordenadamente, pelo Ministério Público e pela Polícia, iniciando-se a ação penal, sempre pública, depois de encerrada esta etapa123. Com isso, repudiou-se a face antiga do sistema, pela qual o juiz de instrução, responsável, juntamente com o Ministério Público e a polícia, pela aquisição das provas e acertamento dos fatos fundantes da acusação, depois disso participava ativamente do julgamento.

Ao mesmo tempo, a inspiração acusatória retirou das investigações preliminares (indagini preliminari) a condição de, por si só, autorizarem a formação de um juízo condenatório, imperando, portanto, o contraditório, como mecanismo de validação da relação processual, cujas fases consistem, via de regra, na audiência preliminar e no

121 Ennio Amodio salienta que, não obstante as inserções e retoques

inspirados em uma visão garantidora, o antigo processo penal, volvido na sua criação à codificação de 1930, mantinha intacta a sua conotação inquisitória herdada do Code d‘instruction criminalle francês de 1808.

122 Sobre o movimento que resultou na edição do novo código, ver, por todos, Procedura Penale: un codice tra ―storia‖ e cronaca, de Mario Chiavario, Torino: Giappichelli, 1994.

123 PEPINO, Livio. Reflexões sobre o sistema processual penal italiano, in:

Revista do Ministério Público , 97, ano 25, jan-mar 2004, Lisboa, p. 75.

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julgamento. Ao lado do denominado ―processo tipo‖ vigoram pelo menos cinco modalidades de procedimentos alternativos, que objetivam evitar o estrangulamento do sistema e possibilitar a adoção célere de decisões que, normalmente por acordo, prescindam do contraditório em audiência de instrução.

A admissão das provas emerge, normalmente, da atividade das partes e, em caráter excepcional, da iniciativa do tribunal, vedada esta, porém, no estágio anterior ao da audiência preliminar, mesmo quando evidente o periculum in mora (artigo 392 do CPP). A esse respeito, ressalta Amodio, relativamente ao estágio de julgamento, ―o juiz não é colocado no papel de um passivo espectador da disputa que se desenvolve em audiência entre a acusação e a defesa. O juiz pode, depois de terminado o ‗esame diretto‘ e o ‗controesame‘ conduzidos pelas partes, indicar às mesmas termos de prova novos‖.

Pode ainda o juiz, é certo, reperguntar às testemunhas, aos peritos e às partes privadas, desde que preserve o direito das partes colocarem ulteriores perguntas (artigos 506, 498 e 503 do CPP), de tal sorte que o princípio da busca da verdade real é significativamente abrandado, sem, todavia, reservar ao juiz um papel de completa passividade.124

Importa consignar que, com poucos anos de vigência, o novo código sofreu parciais reformulações e algumas interpretações polêmicas, que alteraram certos aspectos, principalmente no que concerne à produção da prova, durante o julgamento, sem a adequada efetivação do contraditório e preservação da oralidade e publicidade, critérios cruciais do novel diploma, a ponto de assinalar 124 Assinala, sobre a nova postura dos juízes, Paolo Ferrua, que ciò non

significa che il giudice debba restare costantemente passivo, immerso sino alla decisione in uno stato di indifferenza, quasi di ozio. Acrescenta o citado autor que, ao contrário, se l‘imparzialità è sicuramente compromessa dall‘esercizio di funzioni investigative, non lo è né dall‘esercizio di poteri direttivi che non implicano alcuna preminenza se non quella, essenzialmente pratica, di regolare gli interventi delle parti nel corso del processo (Studi sul Processo Penale, Torino: Giappichelli, 1990, p. 17).

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parcela da doutrina que hoje se vive a estranha situação de se ter passado de um GARANTISMO INQUISITÓRIO, criado a partir das decisões da corte constitucional, adaptando o velho código Rocco, ao accusatorio non garantito.125

Vale dizer que em virtude da reação de diversos setores da sociedade foi editada a lei n. 479, de 16 de dezembro de 1999, que modificou bastante o procedimento abreviado. A própria Constituição da República Italiana sofreu alteração. Em 23 de novembro de 1999 foi promulgada a lei n. 2, que modificou o artigo 111 (que trata do ―devido processo legal‖), expressamente referindo-se aos meios de prova para excluir a possibilidade de condenação de alguém com base em declarações prestadas por quem, por decisão livre, se subtraiu voluntariamente ao interrogatório por parte do réu e de seu defensor.

Em Portugal, após a Revolução dos Cravos e estabelecimento da democracia, editou-se, em 2 de abril de 1976, uma nova Constituição, cinco vezes revista, inclusive em 12 de dezembro de 2001, porém sem modificação sensível no tratamento dispensado à estrutura processual.

Com efeito, dispõe o no 5, do artigo 32o, da mencionada Carta, que o processo criminal terá estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

Assim é, portanto, que, especialmente a partir da entrada em vigor do novo Código de Processo Penal português (Lei no 43/86, de 26 de setembro de 1986 e Decreto-lei 78/87), instituiu-se nesse país um modelo

125 Conveniente é, certamente, a leitura de Percorsi di Procedura Penale: Dal

garantismo inquisitorio a un accusatorio non garantito, coordenado por Vincenzo Perchinunno (Milano: Giuffrè, 1996). Paolo Ferrua atribui, principalmente, ao Decreto-lei nº 306, de 8 de junho de 1992, convertido, com algumas modificações, na Lei nº 356, de 7 de agosto do mesmo ano, a responsabilidade por, de um processo baseado na eqüidistância do juiz e assunção da prova no debate contraditório, ter preservado apenas o primeiro elemento (Studi sul Processo Penale II Anamorfosi del Processo Accusatorio, Torino: Giappichelli, 1992, p. 174). Também PEPINO, Livio, Reflexões..., op. cit., p. 73-85.

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processual alicerçado na assimilação da acusação, como condição processual para alguém submeter-se a julgamento, na parificação do posicionamento jurídico entre acusação e defesa, em todos os atos do processo, na garantia da ampla defesa, do contraditório, da publicidade e da oralidade, e na correlação entre a imputação contida na ação penal — a rigor pública, promovida pelo Ministério Público, mas, excepcionalmente, de iniciativa privativa do ofendido — e a sentença proferida (artigos 309o e 379o do CPP),126 cuja execução está condicionada, também, à iniciativa do Ministério Público.

Pondo de lado um sistema de instrução semelhante ao francês, por causa da profissão de fé acusatória, o novo paradigma processual lusitano inseriu um estágio similar ao inquérito policial, dominado pelo Ministério Público, e voltado à reunião dos elementos que serão deduzidos na fase de instrução (artigos 262o e seguintes do CPP), surgindo esta, por sua vez, quando exigida por lei, como preparatória para o exercício da ação penal (artigos 286o e seguintes do CPP). Na prática a intervenção do Ministério Público no inquérito continua reduzida e é objeto de crítica com alguma freqüência, pois que as investigações continuam nas mãos da polícia submetida a parcos controles.127

De se observar, não obstante a inquisitoriedade dessa etapa, que há restrições à utilização posterior dos meios de prova, com ressalva para os introduzidos no debate instrutório (artigos 298o e 301o, no 2).

Cumpre assinalar que o tribunal, no sistema português, é livre para adquirir os meios de prova que entender necessários à descoberta da verdade, observando-se, naturalmente, os limites impostos pelas leis e pela Constituição. Como a maioria da doutrina portuguesa explica, adota-se aí um processo acusatório mitigado ou

126 Silva, Germano Marques da. Curso de Processo Penal, vol. I, Lisboa: Verbo,

1996, pp. 54-83. 127 PEREIRA, Rui. A crise do Processo Penal in: Revista do Ministério Público , 97, ano 25, jan-mar 2004, Lisboa, p. 21-22.

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temperado pelo princípio da investigação.128 Mais tarde, a Lei 59/98 foi editada visando superar

aspectos de estrangulamento que subsistiam, sendo, porém, alvo de críticas. A principal reserva foi oposta ao chamado ―processo de ausentes‖, que supostamente esvaziou esta etapa do indispensável caráter contraditório que deve sublinhar o processo penal.129

Finalmente, entre 1999 (com a lei de proteção de testemunhas) e 2004 (com a lei de prevenção e repressão do branqueamento) Portugal oscila, inclinando-se ora em direção à cultura inquisitorial do passado, ora na linha da estrutura acusatória que a Constituição da República consagra.

Ainda na família do direito de origem européia continental, é valioso mencionar a situação argentina, naquilo que nos é dado conhecer, desde logo esclarecendo, por oportuno, que as Províncias, equivalentes aos nossos Estados da Federação, dispõem de legislação própria, distinta daquela aplicada em se tratando de delito da competência federal, definido por exceção.

Inspirado, a partir da libertação da Espanha, em 1810, por um movimento de identificação com o sistema francês, de onde vinham as idéias que predominaram entre os revolucionários, o processo penal argentino vive cruciante contradição, na medida em que, atualmente, o Código Procesal Penal de la Nación vigora, instituído pela Lei no 23.984, em vigor desde setembro de 1992, cujas bases ainda são aquelas próprias do sistema de tipo misto, conforme o antigo modelo italiano, com forte presença do juiz de instrução, sem embargo de haver reforçado o papel do Ministério Público. Releva notar que durante a realização do Seminário Interamericano sobre Reformas Processuais Penais na América Latina, realizado em Buenos Aires entre

128 PEREIRA, Rui. A crise..., p. 19 e ANDRADE, Manuel da Costa, no prefácio ao livro A ilicitude da prova: teoria do testemunho de ouvir dizer, de Oswaldo Trigueiro do VALLE FILHO, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 14. 129SANTOS, Gil Moreira. O Direito Processual Penal, Porto: ASA, 2002.

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14 e 16 de abril de 2004 e promovido pelo INECIP (Instituto de Estudios Comparados em Ciencias Penales y Sociales), foi oficialmente apresentado o anteprojeto de Código de Processo Penal Federal, elaborado em conformidade com a estrutura acusatória.

De outro ponto, há algum tempo já está sendo implementado em Córdoba e outras províncias um sistema jurídico aproximado ao modelo acusatório. Isso, em Córdoba, por exemplo, decorre da coordenação entre a Constituição Provincial, a Lei Orgânica do Poder Judiciário e o novo Código de Processo Penal, sancionado como Lei no 8.123. No ano de 1999 é sancionada a lei n. 8.802, que cria o Conselho da Magistratura Provincial.

Com efeito, na lei de Córdoba a instrução judicial ou formal é substituída pela investigação do Ministério Público, nos crimes de ação pública, sem prejuízo do exercício da defesa em todas as etapas da persecução, enquanto no diploma federal permanece o juízo de instrução, escrita e reservada, com limitada intervenção das partes. A organização da justiça penal prevê tribunais de controle de garantias.

Em ambos os casos a fase seguinte carece da iniciativa do acusador, de um modo geral o Ministério Público, desenvolve-se a audiência de debate, contraditória e pública, cabendo à parte, na estrutura provincial, o empreendimento dos interrogatórios de quem haja arrolado para depor, ao tempo em que, no Código da Nação, são os três juízes que compõem o tribunal que começam a inquirição, que conduzem de tal modo, a ponto da doutrina enxergar na providência um desestimado ato de natureza inquisitorial.130

Em Córdoba funcionam três tipos de tribunais, que variam entre o modelo unipessoal e o composto por três juízes.

Por derradeiro vale consignar que o Chile iniciou a mais profunda transformação entre os Estados Latino-

130 Sobre o modelo argentino, recomenda-se Derecho Procesal Penal, tomo I,

de Jorge E. Vazquez Rossi (Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1995).

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Americanos. Mauricio Duce e Cristián Riego recordam que, sem

embargo de a doutrina tradicional do Chile afirmar que desde 1906 o modelo chileno era de tipo misto, influenciado pelo paradigma francês, o processo penal chileno na prática era inquisitorial. Várias reformas parciais foram empreendidas, em 1927, 1942 e 1989 todavia sem pretensão de transformar o processo em seu eixo, mas apenas ―modernizá-lo‖ e torná-lo mais célere.131

Por fim, em 12 de outubro de 2000 é publicado o novo Código de Processo Penal chileno, cuja aplicação integra um amplo projeto de mudanças, que está sendo desenvolvido de forma gradual.

Assim, são criados Ministério Público e Defensorias. O novo sistema entra em vigor paulatinamente, nas regiões em que se divide o Chile, ―testado‖ inicialmente na 4ª Região.

De acordo com relatório apresentado (Revista Sistemas Judiciales, año 2, nº 3, 2002, publicação do CEJA): ―A reforma chilena responde, em geral, às mesmas

características dos demais sistemas abarcados neste estudo. Sua principal expressão legislativa é o novo Código de Processo Penal, que estabelece a introdução de um juízo oral ante um painel de três juízes, como forma de julgamento, suprime a figura do juiz de instrução e entrega a tarefa de preparação do juízo ao Ministério Público, supervisionado por um juiz especialmente criado para cumprir esta tarefa, o juiz de garantias. Ao mesmo tempo o novo Código entregou ao Ministério Público diversas faculdades destinadas a lhe permitir usar procedimentos alternativos ao tradicional, com o fim de dar lugar a soluções negociadas e para descongestionar o sistema judicial do excessivo número de casos que habitualmente se apresentam.‖132 Anteriormente foi examinada a família jurídica do

131

DUCE, Maurício e RIEGO, Cristián. Introducción al nuevo sistema procesal penal, Chile: Universidad Diego Portales, 2002. 132

Tradução livre, p. 18.

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Common Law, no que se relaciona ao seu desenvolvimento até o século XVIII, convindo, pois, deduzir derradeiras considerações, na medida em que se concebem modelos estruturalmente diferentes, nos Estados Unidos da América e na Inglaterra.

Sobre a Inglaterra, pátria do Commom Law, averbe-se que até hoje predomina o sistema de acusação privada, deflagrada por qualquer cidadão, e julgada, a rigor, pelo Júri, imparcial e inerte. Embora não conheça um mecanismo absolutamente profissional de acusação, desde o século XIX propugna-se por uma instituição que desenvolva a persecução oficial, culminando, em 1879, com a criação do Escritório do Diretor de Persecução Penal Pública (Office of Director of Public Prosecution).

Diferentemente do conhecido Ministério Público tanto dos países da órbita de influência européia continental, como dos Estados Unidos da América, tal funcionário encarrega-se da responsabilidade de deduzir ação penal em um número bastante limitado de casos, sem exclusividade, circunstância que expressa a vontade legislativa de deixar ao Estado a persecução penal apenas daqueles crimes de considerável gravidade.

Apesar de algumas agências atuarem na persecução penal, em casos de seu interesse, na maioria das vezes, é a polícia quem deflagra a ação penal, atuando aí, cada policial, na condição particular de súdito. De um modo geral, os policiais são assistidos por advogados (prosecuting solicitors) e têm amplos poderes dispositivos que, em restritas hipóteses, podem ser legalmente limitados. No sistema inglês alcança-se, certamente, o maior nível de acusatoriedade, pela implementação de um processo de partes, com preocupação de parificá-las, assegurando-se ampla defesa, contraditório, publicidade, oralidade e absoluta imparcialidade do juiz, sem desprezar os aspectos

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atinentes à disponibilidade da ação penal.133 Nos Estados Unidos da América, que respeitam uma

forma federalista, o processo penal é essencialmente acusatório,134 com o Promotor de Justiça assumindo o papel principal,135 que exercita de modo equilibrado com a reserva de direitos fundamentais atribuída à defesa pela Constituição Federal. A prova, em processo oral e público, é produzida exclusivamente pelas partes, quer perante o júri, onde existe, funciona ou o réu o aceita, quer perante o magistrado singular, havendo, ainda, ampla disponibilidade sobre o conteúdo da pretensão deduzida.

A respeito do sistema processual penal vigente no Brasil, empreenderemos a abordagem, por questão de ordem metodológica, no último item deste capítulo.

3.2. Características do Sistema Acusatório

Cumprindo a trajetória que demarcamos, é nosso dever

tentar aclarar certos conceitos e estabelecer algumas mínimas definições, para, assim, examinarmos as algumas leis especiais e observarmos, em que medida e de que forma, confrontam o modelo de estrutura processual penal constitucionalmente eleito.

133 Bovino, Alberto. ―La Persecución Penal Pública en el Derecho Anglosajón‖,

in Pena y Estado, ano 2, nº 2: O Ministério Público, Buenos Aires: Del Puerto, 1997, pp. 35-79.

134 Farnsworth, E. Allan. Introdução ao Sistema Jurídico dos Estados Unidos, Rio de Janeiro: Forense, 1963.

135 Até o final do século XVII, início do século XVIII, por influência do direito dos colonizadores, nos Estados Unidos a vítima demandava privadamente. Acredita-se que a imigração holandesa haja levado consigo a figura do persecutor público, porém sem alterar, na essência, o modelo processual penal, que ficou imune às demais experiências do sistema romano-canônico. Os Promotores de Justiça, como órgãos públicos responsáveis pela persecução penal, são acreditados como representantes da sociedade, no desempenho de uma tarefa política, motivo por que, em 46 dos 50 Estados da Federação, são eleitos, enquanto no plano federal são indicados pelo Presidente da República e estão subordinados formalmente ao Procurador Geral (U.S. Attorney General), segundo Alberto Bovino (La Persecución Penal Pública en el Derecho Anglosajón, ob. cit., p. 54).

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3.2.1. PRINCÍPIO E SISTEMA ACUSATÓRIO: DIFERENCIAÇÃO

Com efeito, a primeira abordagem resulta da exigência

de extremarmos as definições de sistema e princípio acusatórios. Para isso, vamos nos valer das singularidades ordinariamente referidas às duas categorias.

Giovanni Leone136 apresenta, como características do sistema acusatório, o poder de decisão da causa entregue a um órgão estatal, por sua vez distinto daquele que dispõe do poder exclusivo de iniciativa do processo. Acrescenta que, deduzida a acusação, o magistrado se libera da vinculação às iniciativas do autor, impulsionando oficialmente a persecução penal, que se desenvolverá conforme os princípios do contraditório, com paridade de armas, oralidade e publicidade.

Por seu turno, Riquelme137 alinha também a legitimidade popular do juiz, que será o próprio povo ou se constituirá de significativa parte dele, despido, por isso, do dever de fundamentar sua decisão, haja vista sua soberania, ao que, conseqüentemente, soma-se a irrecorribilidade das decisões que profere, em processo que se desenvolve na forma de um duelo público, oral e contraditório, entre acusador e acusado, perante um juiz inativo e imparcial.

Mittermaier138 igualmente alude ao princípio do juiz popular, como da essência do sistema acusatório, salientando, justamente, que sólo puede ser Juez el pueblo o delegados escogidos de su seno, celosos y vigilantes defensores de las libertades, enquanto Alcala-Zamora e Levene139 mencionam também a acusação popular e a liberdade de apreciação judicial das provas, cabendo a Julio

136 Leone, Giovanni. Ob. cit., p. 8. 137 Fontecilla Riquelme, Rafael. Ob. cit., pp. 36-37. 138 Mittermaier, Karl Joseph Anton. Ob. cit., p. 56. 139 Alcala-Zamora y Castillo, Niceto e Levene, Ricardo, Hijo. Ob. cit., pp. 217-

218.

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Maier140 a observação, segundo nos parece, da existência de poderes de conveniência, oportunidade e disponibilidade, referentes ao exercício da ação penal, em contraposição, naturalmente, ao dever inevitável de perseguição penal, característico do sistema inquisitivo.

Ortega diferencia princípio acusatório do sistema que lhe empresta o nome. Este autor sublinha que, ao lado do princípio propriamente dito, encontramos a publicidade e a oralidade como traços constitutivos do sistema acusatório.141

Conso,142 autor das obras que mais se aprofundaram no exame da matéria, registra, ao lado do que já foi consignado (necessidade de acusação ofertada por órgão distinto do julgador, publicidade e oralidade do procedimento, paridade de armas entre as partes e exclusão da iniciativa judicial no recolhimento das provas), ser característica a liberdade pessoal do acusado, ao menos até a sentença condenatória definitiva. Cordero acentua a semelhança (―remota ascendência‖) entre o processo acusatório e os duelos. ―As técnicas acusatórias são juízos de Deus intelectualmente elaborados‖.143 Segundo o professor italiano, a ação decisória se converte em um trabalho mental sobre dados positivos, porém cabe aos contendores aduzir e discutir os dados em uma típica ―batalha intelectual‖. O valor do processo acusatório está na observação das regras, insensível à sobrecarga ideológica derivada da observação inquisitorial144. Finaliza advertindo que a ação penal obrigatória e irretratável, os poderes instrutórios de ofício e pedidos que nunca são vinculantes distinguem o modelo italiano do anglosaxão.

140 Maier, Julio B. J. La Ordenanza Procesal Penal Alemana: Su Comentario

y Comparación com los Sistemas de Enjuiciamiento Argentinos, p. 43. 141 López Ortega, Juan J. ―La Dimensión Constitucional del Principio de la Publicidad de la Justicia‖, in Revista Del Poder Judicial, Madrid: Consejo

General del Poder Judicial, nov/1999, p. 52. 142 Conso, Giovanni. Istituzioni di Diritto Processuale Penale, p. 8. 143

Cordero, Franco. Op. cit., p. 87 (tradução livre). 144

Idem, p. 86.

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É certo, conforme ao nosso juízo, que, se pretendemos a definição de um sistema acusatório como categoria jurídica composta por normas e princípios, não há como, pura e simplesmente, justapô-lo com exclusivadade a um preciso princípio acusatório, pois a identidade entre um e outro resultaria, por exigência lógica, na exclusão de uma das duas categorias, pela impossibilidade de um princípio ser, ao mesmo tempo, um conjunto de princípios e normas do qual ele faça parte, numa relação de continente a conteúdo.

Fica mais clara a incompatibilidade da justaposição, quando, pela simples resenha classificatória, notamos a significativa disparidade de elementos invocados como da própria essência de uma das categorias, no caso, do sistema.

Assim, sustenta-se neste trabalho a premissa de que, por sistema acusatório compreendem-se normas e princípios fundamentais, ordenadamente dispostos e orientados a partir do principal princípio, tal seja, aquele do qual herda o nome: acusatório.

Em que consiste então, nesta perspectiva, o princípio acusatório?

3.2.2. CARACTERÍSTICAS DO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO

I - A resposta deve ser construída por exclusão,

afastando o que não integra o princípio. Assim, a compreensão daqueles elementos que vão aos

poucos, historicamente, integrar o sistema acusatório é o resultado da eliminação de outros elementos que não afetam o núcleo básico de um tipo característico do processo, isto é, aquele alicerçado na idéia da divisão, entre três diferentes sujeitos, das tarefas de acusar, defender e julgar.

Com efeito, como assinala Cordero – e também James Goldschmidt – ―as regras do jogo‖ distinguem o processo acusatório do inquisitório.145 Este último se satisfaz com o resultado obtido de qualquer modo, pois nele prevalece o

145

Cordero, Franco. Op. cit., p. 88.

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objetivo de realizar o direito penal material, enquanto no processo acusatório é a defesa dos direitos fundamentais do acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir que define o horizonte do mencionado processo. Assim, como as ―regras do jogo‖ não se concretizam sem a interferência dos sujeitos que participam do processo, não há dúvida de que são os atos que estes sujeitos praticam que hão de diferenciar os vários modelos processuais.

É preciso ter em mente que a análise puramente objetiva, que visualiza os atos sem entender quem são os sujeitos que os praticam, descarna o processo. Gestão da prova e acusação são atividades que não dizem nada se não olharmos quem – que sujeitos (históricos) – realiza estes atos. Até porque com a identificação dos sujeitos será possível compreender os porquês das coisas.

Quando focalizamos estes atos – que expressam a obediência dos sujeitos às regras do jogo -, temos de classificá-los, identificando o que há de comum, por exemplo, entre os diversos atos que o juiz pratica ao longo do processo. O ponto de convergência destes atos é aqui denominado ―tarefa‖, porque defendemos que os atos processuais atendem a funções, não são desinteressados, ainda que muitas vezes estas funções não sejam percebidas com clareza ou imediatamente.

Como nas linhas antecedentes ficou registrado, a função predominante do processo inquisitório consiste na realização do direito penal material. O poder de punir do Estado (ou de quem exerça o poder concretamente) é o dado central, o objetivo primordial.

No sistema inquisitório, portanto, os atos atribuídos ao juiz devem ser compatíveis com o citado objetivo. Em linguagem contemporânea equivale a dizer que o juiz cumpre função de segurança pública no exercício do magistério penal.

Essa linha de raciocínio permite abarcar todos os atos judiciais inquisitórios em um só plano. Exercer a ação penal no lugar de terceiro, quer originalmente como previa o artigo 531 do Código de Processo Penal brasileiro, quer de modo

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superveniente, interferindo na delimitação do objeto do processo (como ocorre com a mutatio libelli), significa prestigiar a idéia de que a punição não pode depender de um autor de ação penal independente e livre para apreciar se deve ou não acusar e o que deve (ou não) incluir na acusação.

Da mesma maneira, atribuir ao juiz o poder de produzir provas de ofício deforma o ―duelo intelectual‖ a que se refere Cordero. Supor que a atividade probatória está desvinculada do exercício dos ―direitos processuais― (James Goldschmidt) e imaginar, por outro lado, que juiz exerce ―direitos‖ no processo importa controlar o material da decisão para reduzir as brechas da impunidade.

É também o que acontece com o denominado recurso de ofício. O juiz que ―recorre‖ da própria sentença para submetê-la obrigatoriamente a exame por tribunal de segundo grau, em hipóteses em que a decisão originária é favorável ao réu, suspeito ou investigado, concorre para a política de segurança pública de que se torna protagonista.

O elemento comum entre o exercício da ação penal pelo juiz, a produção de provas de ofício e o recurso igualmente de ofício está na consecução de tarefas que a moderna doutrina do processo assevera que compõem o chamado direito de ação (e o co-respectivo direito de defesa).146 Como todas estas tarefas apontam para a prevalência do interesse em punir sobre o de tutelar os direitos fundamentais do réu, elas podem ser reunidas sob a rubrica de tarefas de acusação. A acusação consiste na imputação a alguém da prática de um crime com ―pedido‖ de condenação.

A construção teórica do princípio acusatório há de consumar-se mediante oposição ao princípio inquisitivo. São antagônicas as funções que os sujeitos exercem nos dois modelos de processo. É desse antagonismo, portanto, que as 146

Historicamente, o discurso inquisitório atribui o acúmulo de funções em mãos do juiz ao generoso propósito de evitar a punição de inocentes. Não é preciso recorrer às inquisições eclesiásticas para compreender a falsidade do argumento. Basta ver que é este modelo, fundado na busca da verdade real, que mesmo nos subterrâneos da persecução penal contemporânea facilita a aceitação da tortura.

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diferenças devem ser extraídas. Assim, se na estrutura inquisitória o juiz ―acusa‖, na acusatória a existência de parte autônoma, encarregada da tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o centro do processo, cuidando de preservar a nota de imparcialidade que deve marcar a sua atuação.

Nisso consiste a base teórica em cima da qual procederemos à análise do princípio acusatório.

Ao aludirmos ao princípio acusatório falamos, pois, de um processo de partes, visto, quer do ponto de vista estático, por intermédio da análise das funções significativamente designadas aos três principais sujeitos, quer do ponto de vista dinâmico, ou seja, pela observação do modo como se relacionam juridicamente autor, réu, e seu defensor, e juiz, no exercício das mencionadas funções.

II - Nem sempre foi, ou ainda é, predominantemente

oral e público o processo acusatório, nem, necessariamente, só será acusatório pelo fato do próprio povo, ou segmentos numericamente significativos dele, julgar.147

Até mesmo o dever de fundamentar a decisão não reduz ou amplia a acusatoriedade da base processual, como provam o júri e o juiz ou colegiado profissional. Por sua vez,

147 Na medida em que o princípio acusatório decorre do princípio

democrático, o valor de legitimidade do exercício do poder há de ser objeto de alguma consideração. Atualmente, é possível afirmar, com Frederico Marques, que, vindo os juízes togados do seio do próprio povo de que emana conceitualmente a sua autoridade, somente em nome do povo, ao menos nos governos democráticos, podem distribuir justiça (A Instituição do Júri, p. 22). A tal consideração convém aditarmos que o exercício da função jurisdicional corresponde à atividade de um ramo de governo — do Poder Judiciário — de sorte que não se pode falar ou mesmo mentalizar um ramo de governo que não seja político (significando, aí, o exercício de um poder público, estatal, em nome e para a polis) em relação ao qual não caiba as responsabilidades, deveres e poderes inerentes à soberania derivada do povo (Zaffaroni, Eugenio Raúl. Estructuras Judiciales, p. 112). Estas são, possivelmente, as motivações do reconhecimento, na Lei Fundamental de Bonn (artigo 20, nº 2) e na Constituição Espanhola (artigo 117, nº 1), de que a Justiça emana do povo, não subsistindo, modernamente, a objeção oposta por Mittermaier.

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não acontece tal redução ou dilatação (de acusatoriedade) à vista da possibilidade de o acusado responder preso ao processo.

Desta forma, pode-se começar assinalando, com Conso,148 que a idéia de acusação só tem sentido, como elemento essencial de um princípio dentro do processo, contraposta à idéia de defesa, ainda que, sobre esta última possa haver alguma imprecisão quanto aos seus contornos.

Jorge de Figueiredo Dias, com sua incontestável autoridade, ressalta que, por direito de defesa, compreende-se uma categoria aberta, à qual devem ser imputados todos os concretos direitos, de que o arguido dispõe, de co-determinar ou conformar a decisão final do processo,149 o que coloca o acusado, e, dadas as especificidades técnicas relativas ao mecanismo de co-determinação e conformação da decisão judicial, também seu defensor,150 na condição de sujeitos de direitos, deveres, ônus e faculdades.

Ora, um princípio fundado na oposição entre acusação e defesa, ambas com direitos, deveres, ônus e faculdades, só se desenvolve regularmente em um processo de partes, centrado nas relações recíprocas que se estabelecem.

Como se fosse uma fotografia, veremos inicialmente como estão consolidados os estatutos jurídicos dos sujeitos do processo, de acordo com o princípio acusatório.

Depois, passaremos ao exame da dinâmica processual, isto é, como reagem os diversos sujeitos à ação dos demais. Equivale à tentativa de captar a atuação dos sujeitos como em um filme.

A opção por este modo de análise tem vantagens e desvantagens de que se deve advertir o leitor.

148 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali,

Capacità Processualle Penale, Milano: Giuffrè, 1961. 149 Dias, Jorge de Figueiredo. ―Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal‖, in Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra:

Almedina, 1992, p. 28. 150 Figueiredo Dias assinala para o defensor o estatuto jurídico próprio de um

órgão de administração da justiça, atuando exclusivamente em favor do acusado (idem, p. 11).

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A principal vantagem – razão da eleição do método – está em permitir comparar aquilo que a ordem constitucional e as leis atribuem aos principais sujeitos do processo penal (visão ―estática‖ do que fazem o juiz, o Ministério Público, o querelante, o acusado e seu Defensor) e o que de fato estes sujeitos praticam a partir da cultura consolidada e com amparo na jurisprudência (perspectiva dinâmica). A desvantagem repousa na aparente ―repetição‖ de temas. Assim, por exemplo, o leitor observará que sobre a mutatio libelli (alteração da acusação) há uma apreciação de acordo com os poderes do juiz, do ponto de vista estático, e outra, complementar, quando se visualiza ―o processo em movimento‖.

Atento a isso o leitor deverá cuidar de ―enquadrar‖ o exame das categorias do processo levando em conta a dupla perspectiva.

3.2.2.1. Da Perspectiva Estática do Processo: Poderes,

Deveres, Direitos, Ônus e Faculdades dos Sujeitos Processuais

I. DO JUIZ

Carnelutti151 sublinha exatamente, na perspectiva

estática do processo, que este pode ser visto como uma categoria que simultaneamente envolve, enlaça, uma série de relações jurídicas, ou seja, de poderes e deveres do juiz, das partes e de terceiros, visualizando-se sua dinâmica a partir do procedimento adotado, ou, dito de outra forma, da maneira como os atos processuais, em realidade, ordenadamente se sucedem.

Sendo assim, a natureza verdadeiramente acusatória de um princípio processual constitucional demanda, para verificar-se, não só a existência de uma acusação (mesmo os

151 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, México: Editorial

Pedagógica Iberoamericana, 1994.

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procedimentos inquisitoriais podem conviver com uma acusação), mas tanto, e, principalmente, que esta acusação revele uma alternativa de solução do conflito de interesses ou caso penal oposta à alternativa deduzida no exercício do direito de defesa, ambas, entretanto, dispostas a conformar o juízo ou solução da causa penal.

Em outras palavras, ambas, acusação e defesa, surgem como propostas excludentes de sentença.

Tal conformação só admitirá a influência das atividades realizadas pela defesa, se o juiz, qualquer que seja ele, não estiver desde logo psicologicamente envolvido com uma das versões em jogo.

Por isso, a acusatoriedade real depende da imparcialidade do julgador, que não se apresenta meramente por se lhe negar, sem qualquer razão, a possibilidade de também acusar, mas, principalmente, por admitir que a sua tarefa mais importante, decidir a causa, é fruto de uma consciente e meditada opção entre duas alternativas, em relação às quais se manteve, durante todo o tempo, eqüidistante.

Carnelutti assevera, pois, que justamente da contraposição entre acusação e defesa, perante um juiz imparcial, surgem as condições indispensáveis à eleição da melhor solução. Convém, nestes termos, reproduzir a preciosa lição do mestre italiano:152

La verdad es que si el desdoblamiento, del

cual se há hablado, entre el juez y el ministerio público, o sea entre jurisdicción y acción, es necesario para la garantía de la imparcialidad y, com ésta, para la justicia del castigo, no es, sin embargo, suficiente. Al final, el juez debe tomar una decisión; y decidir quiere decir elegir... Es claro que tanto mejor está el juez en situación de elegir más claramente se le presentan delante las dos soluciones posibles. El peligro es que la duda

152 Carnelutti, Francesco. Derecho Procesal Civil y Penal, p. 302.

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no se le presente, no que él sea atormentado por ella. Ahora, bien, el medio para proponerle la duda es el contradictorio; ayuda aquí la raíz común (duo) de dubium y duellum. Per eso, la separación del ministerio público respecto del juez, es decir, de la acusación respecto del juicio, no basta para garantizar la justicia de este último. El ministerio público, si está solo junto al juez, es insuficiente. La acusación debe ser contrapesada y por eso integrada por la defensa.

A posição equilibrada que o juiz deve ocupar, durante o

processo, sustenta-se na idéia reitora do princípio do juiz natural — garantia das partes e condição de eficácia plena da jurisdição — que consiste na combinação de exigência da prévia determinação das regras do jogo (reserva legal peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do juiz, tomada a expressão no sentido estrito de estarem seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a priori a uma das alternativas de explicação que autor e réu reciprocamente contrapõe durante o processo.

Com efeito, o juiz que antecipadamente está em condições de ajuizar a solução para o caso penal (que em algumas hipóteses sequer foi objeto de pretensão do interessado), na prática torna dispensável o processo, pois tem definida a questão independentemente das atividades probatórias das partes, comportamentos processuais que devem ser realizados publicamente e em contraditório.

Ocorre que o devido processo legal só constitui, de fato, mecanismo civilizado de resolução de causas se o resultado não puder ser determinado antecipadamente, isto é, só há processo penal real se no início do procedimento ambas as teses — de acusação e de resistência — puderem ser apresentadas em condições de convencer o juiz (Otto Kirchheimer153).

153 Kirchheimer, Otto. Justicia Política, México: Unión Tipográfica Editorial

Hispano Americana, 1968.

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É claro que, nestes termos, o juiz não estará em condições de julgar e, portanto, deverá ser excluído e substituído, se não oferecer às partes suficiente credibilidade quanto à sua imparcialidade.

A rigor, a imparcialidade do juiz é vista a partir de dois parâmetros: há os casos de impedimento, pelos quais se objetiva excluir o juiz que possa ter interesse no resultado da causa; e existem as hipóteses de suspeição, normalmente voltadas a permitir a substituição do juiz interessado nas partes. De modo geral, as questões que envolvem o primeiro conjunto — causas de impedimento — são impessoais, mas guardam certo vínculo direto com a pessoa do magistrado, enquanto as causas de suspeição são dotadas de caráter predominantemente pessoal (ex. da primeira: ter o juiz funcionado anteriormente, no mesmo processo, como perito; da segunda: ser o juiz amigo pessoal da vítima).

No processo penal brasileiro a existência do inquérito judicial para apurar crimes falimentares – artigos 103 e seguintes do Decreto-lei n. 7.661/45 – instituía investigação criminal preliminar, preparatória para o exercício da ação penal condenatória, em tese dirigida pelo juiz154. Embora na prática o juiz pouco participasse do inquérito judicial, parece evidente que não ostentaria a qualidade exigida para exercer jurisdição, tal seja, a imparcialidade mencionada linhas

154

Na tentativa de salvar a ―constitucionalidade‖ do inquérito judicial da falência autores chegaram a defender a existência de contraditório neste inquérito. Sustentou-se que o artigo 106 da antiga Lei de Falências previa a resposta do falido, em cinco dias, e que isso equivalia ao contraditório. Parece evidente que a noção de contraditório aí é bastante lmitada, comparável à idéia de contraditório no inquérito policial, no artigo 14 do Código de Processo Penal, que estabelece a possibilidade de o Delegado de Polícia realizar diligências requeridas pelo investigado. Em verdade, o procedimento do inquérito judicial era inquisitorial, conduzido pelo síndico da falência e pelo perito, com apoio do Ministério Público e na prática sob as ordens dos funcionários do cartório onde era processada a falência. Tudo, praticamente, sem intervenção do falido. Recomenda-se a leitura de Lei de Falências Comentada, 2ª ed., de Manoel Justino Bezerra Filho, São Paulo, RT, 2003, p. 346-7.

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atrás.155 A Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que passou a

regular a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária estabelece o inquérito policial como método de investigação, a ser instaurado por ordem do Ministério Público, nos termos do artigo 187, e fixa a competência do juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial para processar e julgar o caso.

Com isso, a Nova Lei de Falências aproxima-se do modelo constitucional, pois que de forma intencional cria as condições necessárias ao julgamento do caso com imparcialidade.156

Voltando à regra fundamental é preciso destacar, no entanto, que nas hipóteses de impedimento e suspeição a filosofia que orienta a preservação da imparcialidade deve cuidar de restringir os casos de recusa do juiz, desde que não prevaleça o pensamento autoritário que dedica ao magistrado função punitiva, em substituição àquela que as constituições lhe impõem juridicamente, tal seja, a de apreciar e resolver de forma isenta a questão levada a juízo.

A questão da imparcialidade do juiz, conforme o princípio acusatório, contudo, não fica limitada aos termos postos anteriormente. O exercício da jurisdição, em um Estado Constitucional Democrático, está, tanto quanto o exercício de qualquer outro poder no âmbito deste Estado, condicionado a regras de impessoalidade.

Não basta somente assegurar a aparência de isenção dos juízes que julgam as causas penais. Mais do que isso, é

155

Pelo artigo 109 do citado decreto, o juiz da falência era competente para receber ou rejeitar a denúncia. Somente depois de proferir essa decisão é que deveria transferir o processo para o juiz criminal (§2º). 156

Objeções acerca do conhecimento técnico de que deve estar dotado o juiz criminal, nestes casos, devem ser superadas pela idéia de que nos dias atuais os magistrados deverão estar continuamente se aprimorando e se preparando para as sofisticadas causas criminais com que se deparam. Isso, é evidente, sem prejuízo da prova técnica que caracteriza a maioria destes processos.

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necessário garantir que, independentemente da integridade pessoal e intelectual do magistrado, sua apreciação não esteja em concreto comprometida em virtude de algum juízo apriorístico.

Trata-se aqui, talvez, de uma compreensão invertida da máxima pela qual não basta à mulher de César ser honesta. No caso, ao juiz não é suficiente parecer honesto; terá de sê-lo verdadeiramente, inclusive do ponto de vista intelectual.

Exemplo claro de causa de impedimento, derivada desta ordem de coisas, reside na impossibilidade de o juiz que tenha requisitado a instauração de inquérito policial vir a processar e julgar acusado em processo penal iniciado em razão desta investigação.

Observe-se que nesta hipótese o juiz poderá se sentir habilitado a apreciar com isenção as teses que a Defesa venha a apresentar. Todavia, o réu não poderá confiar em um juiz que, independentemente de qualquer causa penal, já se manifestou a princípio pela existência de uma infração penal, ainda que ao nível de um juízo sumário, provisório e superficial.

De fato, nestas circunstâncias, poderá haver inversão do ônus da prova, com o réu se sentindo impelido a demonstrar que o juiz inicialmente não tinha razão. A confiabilidade das partes na isenção do juiz emerge como condição de validade jurídica dos atos jurisdicionais. Ausente tal requisito estaremos diante de atos absolutamente nulos.157

Também por esse motivo o antigo inquérito judicial da falência, citado neste tópico, violava o princípio acusatório e era inconstitucional.

II. DA ACUSAÇÃO

Por igual, não se deve controverter a respeito do

157 Esta foi a conclusão do e. Superior Tribunal de Justiça no julgamento do

RHC nº 4.769-PR, 6ª Turma (j. 7/11/1995 – RT 733/530), rel. Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, malgrado o e. Supremo Tribunal Federal não tenha se sensibilizado totalmente com a tese (Habeas Corpus nº 68.784, 1ª Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJU 26/3/1993, p. 5.003).

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significado e alcance daquilo que se entende por acusação. Não se trata, a nosso juízo, somente de oferecer uma petição inicial, em processo penal pelo qual se pretenda a condenação de alguém.

Não se resume a isso, a só um ato, de acordo com Conso,158 mas, sem dúvida, acusar implica em referir-se a uma função e ainda a um órgão, a um conjunto de atos e a um determinado sujeito.

Conso, todavia, assevera que acusação e ação penal condenatória não se confundem, uma vez que haveria, em algumas situações excepcionais, acusação sem exercício da ação penal.159.

É necessário ter em mente que a acusação cuida da atribuição de uma infração penal, em vista da possibilidade de condenação de uma pessoa tida provavelmente como culpável, enquanto a ação penal consiste em ato da parte autora, concretado por sua dedução formal em juízo.

Conso refere-se, indiscutivelmente, ao processo penal de ofício, muito semelhante ao procedimento penal brasileiro previsto para as contravenções e crimes de homicídio e lesões corporais culposos, a partir do artigo 531 do Código de Processo Penal, e da Lei no 4.611/65, não recepcionados pela Constituição da República em vigor.160

Cremos, no entanto, que, se acusação e ação penal

158 Conso, Giovanni. Accusa e Sistema Accusatorio: Atti Processualli Penali,

Capacità Processualle Penale, p. 7. 159 Idem, pp. 13-14. 160

O desaparecimento dos processos condenatórios instaurados de ofício, pelo juiz, por auto de prisão em flagrante ou portaria, e ainda iniciados da mesma forma pela autoridade policial (artigo 531 do Código de Processo Penal), não fez desaparecer o procedimento sumário. No caso, caberá ao titular da ação penal iniciar o processo mediante oferecimento de denúncia (artigo 129, I, da Constituição da República) ou queixa (ação penal privada) e depois disso o procedimento seguirá com o recebimento da inicial, citação e interrogatório do acusado, audiência das testemunhas arroladas pela acusação e audiência de instrução e julgamento, com a inquirição das testemunhas arroladas pela Defesa e a apresentação de alegações finais orais. Este procedimento está expressamente indicado na Nova Lei de Falências (artigo 185 da Lei n. 11.101/05) e será aplicado exceto no caso de infração penal de menor potencial ofensivo contemplado na citada lei.

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podem não se confundir, haja vista o fenômeno da jurisdição sem ação, acima mencionado, o certo é que o princípio acusatório funde acusação e ação penal, justamente por não admitir a existência de processo condenatório sem iniciativa da parte autora (nemo iudex sine actore), e, em vista dele, somente se a ação penal for proposta e desenvolvida ao longo do processo haverá, após a contraposição da atividade de defesa, autorização jurídica para a prolação de decreto condenatório.

Aqui não é lugar (ou hora) para a crítica sobre o conceito de ação transplantado do processo civil para o penal. Ainda assim, é conveniente que sejam feitos alguns esclarecimentos.

O leitor perceberá que as ações condenatórias que se entrega ao Ministério Público, no Brasil, são obrigatórias (desde que haja indícios de autoria e da existência da infração penal). Como o conceito de ação elaborado pelo processo civil, em fins do século XIX, estava historicamente vinculado ao de direito subjetivo, para atender a exigências políticas concretas fundadas na ideologia liberal da época, as marcas dessa categoria (ação civil) foram igualmente transmitidas à ação penal.

O simples fato de colocar o Ministério Público no lugar da vítima simboliza a impropriedade de pensar a ação penal nos moldes liberais de defesa de direitos disponíveis (origem da noção do direito de ação civil).

Até mesmo nos sistemas jurídicos que adotam o princípio da oportunidade da ação penal pública (o Ministério Público tem margem de decisão sobre acusar ou não), a ―liberdade‖ do Ministério Público é inconfundível com a ―faculdade‖ do autor civil. A liberdade do Ministério Público estará sempre dirigida pelo princípio da legalidade, protegendo a comunidade das decisões pessoais de cada integrante da referida instituição, enquanto as motivações estritamente pessoais podem estar na base da decisão de não se promover a ação civil clássica.

No entanto, a decisão de instaurar um processo penal condenatório será de um sujeito distinto do juiz.

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A nosso juízo, o princípio acusatório, avaliado estaticamente, consiste na distribuição do direito de ação, do direito de defesa e do poder jurisdicional, entre autor, réu (e seu defensor) e juiz. Tal consideração conduz ao esclarecimento, pelo menos sucinto, do que se considera direito de ação penal condenatória.

Vale a pena tornar a sublinhar que para a maioria dos doutrinadores o direito de ação é concebido como direito público subjetivo, instrumentalmente conexo à pretensão de exigir do Estado a prestação jurisdicional, em determinado caso concreto, isso ao menos desde a evolução iniciada em meados do século XIX, com o desdobramento das posições ardorosamente defendidas por Windscheid (La acción del derecho civil romano desde el punto de vista del derecho actual) e Muther (Zur Lehre von der Römischen Actio),161 passando por Adolf Wach, até chegar aos dias de hoje.

Não se esgota, porém, na simples provocação do Estado, primeiro ato do exercício do citado direito.162

Assim compreendido o direito de ação - e naturalmente o direito de defesa – aquele foi percebido por Ada Grinover como não limitado ao poder de impulso, e, no caso da defesa, ao recurso às exceções, englobando o conjunto de garantias que, no arco de todo o procedimento, asseguram às partes a possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de produzirem suas provas, de aduzirem suas razões, de recorrerem das decisões, de agirem, enfim, em juízo para a tutela de seus direitos e interesses.163

Visto dessa forma, pode-se acrescentar, relativamente à ação penal condenatória, que, ao atribui-la a sujeitos distintos daquele que julgará o pedido formulado — seu principal elemento e junto com a ―causa de pedir‖ 161 Chiovenda, Giuseppe. La Acción en el Sistema de los Derechos, Bogotá:

Temis, 1986. Muther, Theodor e Windscheid, Bernhard. Polemica Sobre La ―Actio‖, Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974. 162 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, pp.

282-291; Afrânio Silva Jardim, Ação Penal Pública: Princípio da Obrigatoriedade, p. 33; e Grinover, As Garantias Constitucionais, ob. cit.

163 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, p. 11.

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corporificação da acusação —, obedece-se também a uma lógica de distribuição de funções que respeita a divisão entre os poderes do Estado, bem ao estilo proclamado por Montesquieu, como observa, percucientemente, Karl-Heinz Gössel.164

Assim compreendida a ação penal, o princípio acusatório postulado demandará, para sua real fixação, na via do autor, a determinação de algumas premissas: • o direito de ação, tanto como o de defesa, está voltado

à conformação da decisão jurisdicional, em um caso penal concreto; • é exercitado por pessoa ou órgão distinto daquele constitucionalmente incumbido de julgar; • não se limita a iniciar o processo, pois o autor pretende ver a pretensão que deduz reconhecida, embora o não-reconhecimento não implique em afirmar-se a inexistência do direito de ação; • inclui, por certo, o direito de provar os fatos que consubstanciam a acusação deduzida e de debater as questões de direito que surgirem; • a acusação integra o direito de ação e, na medida em que dela se defenderá o acusado, delimita o objeto da contenda, tal seja o objeto pretensamente litigioso do processo; • e, por fim, legitima o autor a preparar-se adequadamente para propô-la, na medida em que, afetando gravemente o status dignitatis do acusado, não deve decorrer de um ânimo beligerante temerário ou leviano, mas fundar-se em uma justa causa (indícios de autoria e da existência da infração penal).

Com efeito, visto pela perspectiva do direito de ação o

princípio acusatório inclui entre seus elementos o princípio

164 Gössel, Karl-Heinz. ―Ministerio Fiscal y Policia Criminal en el Procedimiento Penal del Estado de Derecho‖, in Cuadernos de Política

Criminal, nº 60, Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1996, pp. 614-616.

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da demanda, que não se confunde com o princípio dispositivo, corrente no processo civil, bem como não lhe é contraposto, em que pese a opinião de alguns autorizados doutrinadores165. Da mesma maneira, enquanto princípio de iniciativa do processo, não está prejudicado pela obrigatoriedade da ação penal, no caso brasileiro, da pública.

Para efeito de distinguir o princípio acusatório do dispositivo é precioso assinalar quais são os elementos habitualmente invocados como componentes do segundo, como o faz Barbosa Moreira,166 sublinhando os pontos sensíveis da problemática, que envolvem, quase sempre, os seguintes aspectos: iniciativa da instauração do processo; delimitação do objeto do litígio e do julgamento; impulso processual; aquisição do material de fato e de direito a ser utilizado na motivação da sentença; extinção do processo por ato dispositivo.

Conforme aduz o ilustre processualista, a doutrina alemã caminhou em direção à tendência de distinguir duas classes de situações, uma relacionada com a liberdade do titular do direito de utilizar ou não o instrumento do processo para a respectiva vindicação, outra com o modo de funcionar do mecanismo processual no tocante aos fatos e à prova destes,167 prevalecendo, atualmente, a concepção em relação à qual por princípio dispositivo compreende-se o poder de decidir sobre a instauração do processo, respectiva subsistência, e delimitação do litígio, enquanto um princípio de debate se caracterizaria pelos poderes de aquisição e introdução das provas no processo. Badaró irar usar as expressões princípio dispositivo material e princípio dispositivo processual para distinguir as mesmas

165 Chiavario, Mario. Processo e Garanzie Della Persona, p. 5. É valioso

investigar a conceituação aceita por Gustavo Badaró acerca do princípio dispositivo. Ônus da Prova no Processo Penal, São Paulo, RT, 2003, p. 96 - 100.

166 Moreira, José Carlos Barbosa. O Problema da Divisão do Trabalho entre Juiz e Partes, p. 35.

167 Moreira, José Carlos Barbosa. Ob. cit., pp. 39-40.

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situações.168 Finalmente, há, na referida resenha de Barbosa

Moreira, menção ao princípio da demanda, sob a designação de parteibetrieb, integrado pelo poder de instauração do processo, diferente do princípio dispositivo stricto sensu, visto como poder de dispor sobre o objeto do processo já pendente.

Pensamos que, por princípio dispositivo, há de se entender aquele que permita dispor sobre o objeto do processo em tramitação, não sendo caracteristicamente acusatório ou inquisitório. Em processo por crime de ação penal privada, conforme o Direito brasileiro, ocorrerá a perempção, por exemplo, sempre que o autor abandonar o processo (artigo 60 do Código de Processo Penal), implicando em verdadeira disposição sobre o conteúdo deste.

De outra maneira, não é impensável um procedimento inquisitorial, iniciado para apurar o cometimento, por alguém, de uma infração penal, que não se conclua por deliberação exclusiva do juiz-inquisidor, motivado por questões de política criminal.

É bem verdade que principalmente no direito estrangeiro há quem vincule o princípio dispositivo ao princípio acusatório, em virtude da possibilidade de retirada da acusação ou pedido de absolvição influindo na determinação da concreta providência a que o tribunal estaria conectado.169

A nosso juízo, porém, a questão corretamente enfocada envolve a natureza do direito material em disputa e a consideração que se faça, em um determinado contexto histórico e político, a respeito do titular deste direito.

Como atualmente predomina a concepção da natureza

168

Badaró, ob. cit., p. 97-98. 169 Asencio Mellado, José Maria. Principio Acusatorio y derecho de defensa en

el proceso penal, Madrid: Trivium, 1991, p. 22. É a posição de Paulo Rangel, em Direito Processual Penal, 8ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, p. 63-65.

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pública do conflito de interesses penal, que se transforma em caso penal, sendo a sanção penal170 pública e portanto resultante de uma atribuição estatal, a vedação cada vez menos rigorosa à disponibilidade do conteúdo do processo penal está guiada pela assunção do interesse público subjacente.

Diferente seria se inseríssemos a ação penal condenatória em um contexto meramente formal, em virtude do qual pudéssemos confundi-la exclusivamente com o poder de iniciativa, quando então todos os demais atos, dos quais os de instrução são talvez o principal exemplo, ficassem à mercê dos poderes de investigação do juiz. Não haveria aí disponibilidade do conteúdo do processo não porque a natureza jurídica do direito material levado à pugna a interditasse, mas por força de ser o juiz e não o dominus litis, isto é, o Ministério Público, a personificação do Estado como titular do direito material em questão.

E a rigor quem não é o titular do direito dele não pode abdicar. Também seria diferente se admitíssemos a retirada da própria acusação e, apesar disso, a emissão de sentença de mérito pelo juiz. Neste outro caso, teríamos de concordar com Mellado e assinalar que a decisão judicial importaria em verdadeiro exercício de acusação de ofício, pelo tribunal.171

Mas como o critério de disponibilidade deve ser ditado pelo direito positivo, levando em conta a natureza do direito de punir (aspecto material e não processual), vinculando obrigatoriamente o Ministério Público naqueles casos reputados de prevalecente interesse público pelo legislador, o princípio dispositivo em si, relacionado com a disposição sobre o objeto do processo, não integra ou se opõe ao princípio acusatório, sendo importante, porém acidental. A prevalência do interesse público tem a ver com a inibição da iniciativa particular a remarcar o caráter não vingativo mas de composição do processo penal.

170

A sanção penal é tomada como conseqüência jurídica da infração penal perseguida pela atividade processual do autor da ação penal. 171 Asencio Mellado, José Maria. Ob. cit., p. 23.

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Isso não significa dizer que o juiz está autorizado a condenar naqueles processos em que o Ministério Público haja requerido a absolvição do réu, como pretende o artigo 385 do Código de Processo Penal brasileiro172.

Pelo contrário. Como o contraditório é imperativo para a validade da sentença que o juiz venha a proferir, ou, dito de outra maneira, como o juiz não pode fundamentar sua decisão condenatória em provas ou argumentos que não tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença condenatória proferida quando a acusação opina pela absolvição.173

O fundamento da nulidade é a violação do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República). Como destaca Badaró, ―a regra da correlação entre acusação e sentença é uma decorrência do princípio do contraditório‖.174 Avançando sobre o tema, o culto professor paulista sublinha que, na atualidade, não é correto limitar a idéia – e o alcance – do contraditório apenas ao debate sobre questões de fato.175 Também as questões de direito estão afetas ao contraditório, pois que podem estar marcadas pela controvérsia a ser esclarecida mediante escolha entre duas ou mais teses pertinentes ao mesmo tema.176

172

O texto no corpo do livro, seguinte à nota, foi incluído na terceira edição para sanar qualquer dúvida acerca da posição do autor sobre o tema. 173

Não é este o entendimento do Supremo Tribunal Federal. No acórdão proferido em HC 82.844/RJ, 2ª Turma, Relator Min. Nelson Jobim, publicado em 28/05/04, fixou-se que é significativo o fato de o Ministério Público ter sugerido a absolvição do réu, sugestão acatada pelo juiz de primeiro grau, para determinar a absolvção. No caso o Assistente do Ministério Público recorreu da sentença absolutória e obteve a condenação em segundo grau. Esta condenação foi atacada por Habeas Corpus. 174

BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy. Correlação entre acusação e sentença, São Paulo, RT, 2000, p. 27. 175

Idem, p. 32. 176

Exemplo disso é a questão sobre a insignificância de determinada ação não negada pelo réu. O único debate no processo pode ser acerca da qualificação de comportanto insignificante – e atípico – ou não. Negar o contraditório sobre este ponto é esvaziar o princípio constitucional e retornar ao tempo do

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Assim, quando em alegações finais o Ministério Público opina pela absolvição do acusado o que ocorre em concreto, no processo, é que o acusador subtrai do debate contraditório a matéria referente à análise das provas que foram produzidas na etapa anterior e que possam ser consideradas desfavoráveis ao réu. Como a defesa poderá reagir a argumentos que não lhe foram apresentados? Esta é, em resumo, a posição de Santiago Martínez, ao avaliar a posição dos tribunais argentinos sobre o assunto.177

É interessante notar certa peculiariade do processo penal brasileiro: a figura do Assistente de Acusação. Com previsão no artigo 268 do Código de Processo Penal, o Assistente poderá habilitar-se ao processo e participar dos atos processuais. Em alegações finais o Assistente se pronunciará antes da Defesa.

Nestes termos, se o Assistente do Ministério Público, devidamente habilitado, se pronunciar em alegações finais pela condenação, opondo argumentos que poderão ser respondidos pela Defesa, a exigência do contraditório terá sido atendida.

No caso do direito brasileiro o ofendido fiscaliza a obrigatoriedade do exercício da ação penal pública (artigo 5º, inciso LIX, da Constituição da República). Essa fiscalização é realizada, via de regra, por meio da ação penal privada subsidiária da pública (artigo 29 do Código de Processo Penal). Todavia, se a ação pública foi oportunamente proposta, fica para o ofendido apenas a possibilidade de acompanhar o processo, habilitando-se como assistente178. Caso não o faça, creio que estará

paleopositivismo, abandonado pela ideologia de princípios da Constituição da República de 1988, no Brasil. 177

MARTÍNEZ, Santiago. La acusacion como presupuesto procesal y alegato absolutorio del Ministerio Publico Fiscal,: observaciones sobre una cuestión recurrente, Buenos Aires, Fabian J. Di Placido, 2003. 178

Por coerência sistêmica não se pode esquecer que o direito de ação é exercido pelo Ministério Público ao longo do processo, não se esgota com a apresentação da denúncia. Assim, além da inércia inicial, superável pelo oferecimento de queixa substitutiva da denúncia (artigo 29 do Código de

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impedido de recorrer da sentença absolutória, apesar dos termos do artigo 598 do Código de Processo Penal, pois a condenação em segundo grau violará, ela própria, o contraditório e a correta função do segundo grau, definida no Pacto de São José da Costa Rica, que prevê recurso exclusivo da Defesa.

Voltando ao ponto inicial: nos processos inquisitórios nada obsta a que o juiz/acusador desista do processo e o encerre mediante arquivamento. Isso não transformará o processo inquisitório em acusatório.

No processo acusatório, porém, o juiz não poderá condenar o réu diante de um requerimento/alegação final do acusador (Ministério Público ou querelante) pela absolvição, sob pena de ofender o contraditório.

Ultrapassada esta fase, as demais questões são, a nosso juízo, próprias do princípio acusatório, uma vez que se referem ao poder de iniciativa (demanda, com exclusão, portanto, da atuação inquisitorial do juiz), delimitação do objeto (por meio da acusação, elemento da própria ação penal) e demonstração da verdade dos fatos e argumentos (direito à prova).179

Por sua vez, a oficialidade do processo penal condenatório e a obrigatoriedade da ação penal pública,

Processo Penal), há também a possibilidade de inércia superveniente, a ser combatida pela atuação do Assistente. 179 Em excelente trabalho, intitulado Direito à Prova no Processo Penal, Antonio Magalhães Gomes Filho traça o perfil do que conceitua como direito à prova, lembrando que a inserção da figura do juiz, como protagonista da tarefa de aquisição das provas, representou uma postura metodológica fundada no escopo específico do processo, subordinado ao ideal de defesa social contra a delinqüência, e inspirado num conceito de Estado que pretendia organizar a vida dos indivíduos e conduzir a sociedade. Por sua vez, a aceitação da prova como direito das partes, conseqüente aos direitos de ação e de defesa, pressupunha uma organização estatal preocupada apenas em manter o equilíbrio social, preservando a autodeterminação dos indivíduos. Acatando-se uma visão não interventiva do Estado, no campo processual, chega-se, conforme Gomes Filho, a uma concepção de prova como argumentum, que não pode prescindir do momento de persuasão, sendo a verdade por ela perseguida própria das coisas humanas, que sem a pretensão de ser absoluta, não exclui uma probabilidade contrária, mas é escolhida por razões de caráter ético (O Direito à Prova no Processo Penal, São Paulo: RT, 1997, p. 39).

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malgrado reflitam uma postura de preocupação com o valor segurança e, por igual, intransigência referente à apuração e repressão das infrações penais, não desnaturam a acusatoriedade do processo, na medida em que a ação penal não é deduzida por quem haverá de julgá-la, não implicando sempre, ou necessariamente, em que o réu se veja diminuído em suas condições de resistência.

Neste sentido, Navarrete tem completa razão ao frisar que, frente a tendências doutrinárias amparadas principalmente no modelo alemão, alguns doutrinadores opõem-se, sem razão, ao reconhecimento de um processo de partes, salientando unicamente a existência de partes formais.180

Tal concepção, sob a ótica de Navarrete, não reproduz a verdade dos fatos, porquanto o órgão acusador funciona substancialmente como parte, interessado no proveito de direito material perseguido, em virtude do qual atuará durante o processo.181

Esta é, também, a razão por que há de ser prestigiada a autonomia do acusador (Ministério Público ou ofendido), até mesmo no que respeita à convicção da ausência do suporte mínimo probatório ou da presença de algum fator

180 Lorca Navarrete, Antonio María. El Proceso Penal de La Ley de Enjuiciamiento Criminal, p. 52. 181 Em realidade, se Carnelutti está certo, quando assevera que a atitude de advocatus diaboli, adotada pelo Ministério Público, ao início e durante o processo penal, é imprescindível à conformação dialética do processo de partes (e à operação do princípio acusatório, acrescentamos), motivo por que deve resultar de uma autêntica convicção do órgão de acusação sobre a procedência do seu pedido. É inegável, também, a correção da tese contida na observação de Jorge de Figueiredo Dias, no sentido de que, ao Ministério Público interessa incondicionalmente o descobrimento da verdade e aplicação da justiça, atendendo a critérios de estrita legalidade e objetividade. Em vista disso, compreende-se possa o Promotor de Justiça pedir a absolvição do acusado se, ao final do processo, estiver convencido da inocência dele, ou recorrer a favor do condenado. Nestas duas hipóteses, não há prejuízo à máxima acusatoriedade possível, isto porque, ao longo do processo de conhecimento, funcionou plenamente a estrutura dialética, ensejando a produção, em síntese, de um convencimento oposto ao da pretensão deduzida mas conforme os princípios de justiça, a que o Ministério Público rende vassalagem (Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal, p. 25).

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juridicamente inibidor da propositura da ação penal. Assim, o juiz fica excluído, por imperativo lógico, da tarefa de controlar o princípio processual da obrigatoriedade, quando exigível, nos casos de não-exercício da ação penal182.

Acrescente-se, por oportuno, ao ensejo de se conceber um princípio de obrigatoriedade, que não exclui a acusatoriedade nem com ela se confunde, mas se contrapõe tão-somente aos princípios de conveniência e oportunidade183, que tal obrigatoriedade impelirá o órgão de acusação a se interessar pelo desenvolvimento das investigações criminais necessárias à colheita de material que sirva ao propósito de demonstrar a viabilidade da pretensão que se deseja deduzir.

Sendo assim, ainda na fase pré-processual é possível vislumbrar o princípio da acusatoriedade, o qual aparecerá sempre que, de algum modo, o titular da ação penal atuar com vista à aquisição de elementos de formação da convicção judicial, mesmo que superficial, voltada ao recebimento da denúncia ou queixa.

É imperioso ressaltar, sobre este tópico, que também o princípio acusatório, refletindo o duelo entre acusação e defesa, obstará o reconhecimento da validade dos meios de prova adquiridos e conservados nesta fase pré-processual, salvo no tocante ao objetivo de conferir suporte mínimo probatório à pretensão ou se a defesa intervier, plenamente, corroborando para a sua aquisição, em atividade antecipatória da aquisição e preservação de provas para o futuro, sob o signo do contraditório, conforme o modelo das providências cautelares.

III. DA DEFESA

182 É a posição de Marcellus Polastri Lima, avançada em Curso de Processo Penal, vol. 1, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 147-150, neste passo simétrica a de Paulo Rangel (Direito Processual Penal, op. cit., p. 182). 183

Princípios que, de acordo com determinados modelos, conformam o chamado espaço de consenso.

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Por sua vez, sobre a Defesa é válido relembrar a lição de Jorge de Figueiredo Dias, referida anteriormente: compreende-se como categoria aberta, à qual devem ser imputados todos os concretos direitos, de que o arguido dispõe, de co-determinar ou conformar a decisão final do processo.184 Isso coloca o acusado, e, dadas as especificidades técnicas relativas ao mecanismo de co-determinação e conformação da decisão judicial, também seu defensor, na condição de sujeitos de direitos, deveres, ônus e faculdades.

É preciso pontuar a tendência acentuada, revelada nos últimos anos, de comprimir o espaço do direito de defesa no processo penal. Ora o direito de defesa é substituído por comportamentos processuais do acusado, aos quais se atribui eficácia jurídica no plano da resolução da questão principal — assim são as chamadas soluções de consenso —, ora pura e simplesmente este espaço é reduzido, a pretexto de controlar as formas graves de criminalidade que estão se manifestando nos dias atuais.

Como ao nosso juízo o princípio acusatório se distinguirá do inquisitivo não somente em virtude da diferenciação forçada entre acusação e julgamento, portanto, entre acusador e juiz, tarefas a cargo de sujeitos que não se confundem, entrará em cena aí a problemática derivada das novas maneiras de o imputado participar do processo.

Com efeito, desde o início salientamos que a legitimidade democrática do processo penal - e da solução que ele adjudica - depende do valor de verdade consubstanciado na sentença.

A verdade é aí concebida como relação possível ou adequada entre a imagem que o juiz constrói acerca do fato e a forma real como este fato supostamente ocorreu. É claro, tivemos a oportunidade de ressaltar, que a verdade que se pode alcançar no processo e que oporá esta forma de solução, baseada no saber, a outras, fundamentadas em convicções de variada natureza, é contingente e histórica e 184 Ver nota nº 122.

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dependerá de o Estado atuar ele próprio conforme o Direito. Daí, no entanto, é impossível conceber soluções de

natureza penal que não levem em conta tal verdade, contentando-se com comportamentos processuais do imputado, pois quando isso ocorre termina anulada a atuação da Defesa em busca da efetivação da contraposição dialética no processo.

A marca característica da Defesa no processo penal está exatamente em participar do procedimento, perseguindo a tutela de um interesse que necessita ser o oposto daquele a princípio consignado à acusação, sob pena de o processo converter-se em instrumento de manipulação política de pessoas e situações.

O espaço de consenso deve ser medido cuidadosamente, para evitar prejuízo ao princípio acusatório, observando ao menos:

a) que a publicidade interna do procedimento no interior do qual se pretende desenvolver a solução consensual não seja restringida. Restrição dessa ordem equivale a recusar ao imputado acesso a informações vitais para balisar sua conduta processual e isso independe da formalização da condição de acusado;

b) que o imputado tenha à sua disposição todas as informações necessárias a respeito do significado da adoção dos comportamentos processuais possíveis, com esclarecimentos acerca das conseqüências de adotar tal ou qual caminho;

c) que o imputado possa até mesmo agregar informações relevantes para que se decida sobre a conveniência da aplicação das medidas consensuais, exercitando contraditório compatível com a espécie de procedimento simplificado, que de um modo geral identifica as espécies de solução de consenso;

d) finalmente, que não haja redução ou eliminação da presunção de inocência, com inaceitável inversão do ônus da prova mediante pressão sobre o imputado para que aceite soluções consensuais, muitas vezes

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orientadas pragmaticamente ao fim de desafogar os serviços judiciários, com independência da justiça das composições185.

O princípio acusatório pode igualmente aparecer

prejudicado de forma séria, no plano da Defesa, quando estivermos diante das modalidades de procedimento cujo objeto se caracteriza por ser infrações penais consideradas graves.

Com efeito, a limitação da publicidade interna do procedimento afeta primordialmente o contraditório e deste modo atinge as posições defensivas, impedindo o imputado-acusado e seu Defensor de terem acesso a informações importantes, de poderem contrariá-las e, destarte, de contribuírem para a formação da convicção do juiz. As estratégias de combate à criminalidade organizada, por meio da infiltração de agentes policiais, do estímulo à cooperação de arrependidos e, principalmente, por conta das restrições que impõem à publicidade interna do processo, negando ao imputado participação nos procedimentos preliminares, mesmo quando se trata de medidas de natureza cautelar, correspondem a métodos pré-modernos de atuação da justiça penal cujo propósito é tornar efetivo o direito penal a qualquer preço.186

Note-se que há significativa diferença entre a necessária

185

A violação da presunção neste caso ocorre quando o juiz ou o Ministério Público advertem o autor do fato (artigo 76 da Lei n. 9.099/95) para os riscos de recusar a proposta de aplicação direta de pena e partir para o processo tradicional. Essa ―advertência‖ embute consideração prévia da ―culpa‖ do investigado, pessoa que segundo a Constituição da República deve ser tratada como inocente (artigo 5º, inciso LVII). 186 De algum modo, todas estas formas eram conhecidas ao tempo em que predominava, na Europa Ocidental, o processo inquisitorial de influência eclesiástica. O e. Supremo Tribunal Federal tem enfrentado com freqüência a questão e decidido pela inoponibilidade do sigilo do inquérito policial ao advogado do indiciado. HC 82354 / PR – PARANÁ HC - Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. 1ª Turma. Julgamento em 10 de agosto de 2004. Publicação: DJ DATA-24-09-2004 PP-00042 EMENT VOL-02165-01 PP-00029.

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busca de suporte probatório, pelo acusador, para posteriormente deduzir sua acusação, e as atuações durante a fase preliminar, voltadas à limitação ao exercício de direitos fundamentais do imputado.

Há atos de investigação que precisam permanecer sob sigilo, durante algum tempo, sob pena de fracassarem os fins da própria investigação. Entre eles não se inclui, certamente, a produção antecipada de provas, que somente estará justificada diante do risco de perda da prova em virtude da natural demora do processo, e as ações que visam restringir o exercício de direitos fundamentais do imputado — tais como a prisão processual e a interceptação das comunicações telefônicas —, que só poderão ter validade jurídica se submetidas ao contraditório pelos menos diferido, isto é, realizado em um momento posterior ao da adoção da providência187.

Com isso, a compatibilidade com o princípio acusatório dependerá de a Defesa concretamente estar em condições de participar em contraditório do processo com as características acima mencionadas.

Os atos de natureza cautelar que são levados a cabo sem audiência prévia da parte contrária - inaudita altera pars -, dependerão do contraditório a posteriori para estarem revestidos de validade jurídica.

De todo modo, quando as condições de participação da Defesa são canceladas, os atos eventualmente realizados podem estar entre dois extremos: são simplesmente informativos, e o juiz não poderá considerá-los no processo. Quando muito os levará em conta para ajuizar a presença de justa causa para a ação penal; ou não valerão de modo algum. Nesta categoria será possível inscrevermos a

187

O procedimento das interceptações é autuado em apartado, nos termos da Lei n. 9.296/96. Permanece em sigilo durante o período de captação das conversas telefônicas (prazo de quinze dias, prorrogável por mais quinze) e depois deve ser objeto de controle dos interessados. Ver do autor o livro Limites às Interceptações Telefônicas e a Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005.

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denominada delação premiada188, isoladamente insuscetível de ser alcançada pelo contraditório, pois contrapõe com exclusividade versões apresentadas por interessados, sendo meramente uma questão de fé o convencimento dela derivado.

Também neste âmbito se enquadra a infiltração, medida que consiste, do ponto de vista filosófico, no fato de o Estado permitir aos seus agentes que participem pelo menos do crime de formação de quadrilha a pretexto de controlar e combater a criminalidade. A par da grave concessão de ordem ética, haverá sempre a possibilidade de se atribuir a priori valor superior às informações adquiridas desta maneira em oposição aos demais elementos de convicção introduzidos no processo pelas partes, reconduzindo o sistema das provas tarifadas ao ambiente processual, dissimuladamente189

Por fim, ressalte-se que a atuação do imputado e de seu Defensor deverá se projetar no processo de execução penal, porque nele o comando contido na sentença poderá tornar-se realidade.

Da participação efetiva da Defesa na execução penal dependerá a natureza processual, ou apenas administrativa, desta modalidade de procedimento.

188

Há vários dispositivos legais que cuidam da delação premiada. O mais abrangente está definido no artigo 14 da Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, pelo qual é possível reduzir a pena em até dois terços, desde que o acusado haja colaborado voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal, visando a identificação de co-autores e partícipes, a localização da vítima com vida e a recuperação total ou parcial do produto do crime. O artigo 13 da citada Lei chega a prever o perdão judicial para o agente colaborador, desde que a personalidade do beneficiado, a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso indiquem a conveniência da medida. 189

O texto Da Lei de Controle do Crime Organizado: Crítica às Técnicas de Infiltração e Escuta Ambiental, publicado originalmente no Livro Escritos de Direito e Processo Penal em Homenagem ao prof. Paulo Cláudio Tovo (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002), sob coordenação de Alexandre Wunderlich, está ao fim, como Anexo I. Trata da matéria e o autor acredita que será útil complemento ao que está sendo examinado neste trabalo.

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3.2.2.2. Da Perspectiva Dinâmica do Processo: Da Atuação

dos Sujeitos Processuais Na linha do que se refere ao autor, ao acusado e ao juiz,

considerados estaticamente, são essas a nosso juízo as principais observações. Como foi sublinhado antes, é hora de passarmos ao exame da dinâmica processual e ver como reagem os diversos sujeitos à ação dos demais. Equivale à tentativa de captar a atuação dos sujeitos como em um filme.

É válido, no entanto, acrescentar, pelo que há de comum a acusado e acusador, que a modalidade de configuração dos respectivos estatutos jurídicos, erguida em bases de liberdade com responsabilidade, caracteriza a moderna concepção das partes como sujeitos do processo penal.

Começaremos pelo estatuto da Defesa em movimento, porque este é, em nossa opinião, o que mais diretamente sofre com as ―novas‖ interpretações que de um lado resgatam a inquisitorialidade e do outro vestem com figurino acusatório o que necessariamente não é. Como parece que o fenômeno decorre da prevalência da ideologia de lei e ordem, para restringir os direitos da Defesa no processo, como afirmamos na última parte do item 3.2.2 III, é oportuno examiná-lo em primeiro lugar.

I. -O Estatuto da Defesa em Movimento: O Conflito entre os Interesses do Defensor e do Acusado e o Limite às Soluções de Consenso

Com efeito, sobre o acusado deve-se sublinhar, com reservas, que não corresponde ao anseio de justiça qualquer proposta fundada na idéia de que não possa dispor da capacidade de autodeterminação, que não é um direito, mas uma característica inerente à sua condição de ser humano.

Pode, pois, em uma lógica não-paternalista, mas responsável desde que consciente da situação gerada pelo processo e dos cenários hipotéticos que a eleição de algumas alternativas de comportamentos poderá implicar, escolher

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mesmo soluções que resultem na disposição sobre o conteúdo do processo acusatório.

É claro que em um Estado Democrático, que aspira a consecução da máxima justiça social, tais eleições inspiram-se no propósito de resolução justa dos conflitos de interesses penais, razão pela qual a lógica da produtividade, verificada em ordenamentos jurídicos coincidentemente acusatórios, não é válida. Não se trata de viabilizar acordos penais para aumentar o número de pessoas condenadas.

Ponderando-se, porém, os bens e interesses em jogo com a disciplina da autodeterminação de um ser, que compreende em seu particular estatuto essa característica como essencial, é válido considerar a importância e o relevo que tem a vontade do acusado para o desfecho de um processo penal de natureza acusatória. O limite das possibilidades da autodeterminação no campo jurídico-penal se põe principalmente quando outra característica inerente à condição de ser humano puder ser suprimida, tal como, por exemplo, a liberdade pessoal.

Entre as edições anteriores do Sistema Acusatório e a atual (3ª) há o hiato no qual foi pesquisado e produzido o livro Elementos para uma Análise Crítica da Transação Penal, fruto de tese de doutorado.

As conclusões da pesquisa, para a qual remeto o leitor, recomendam cuidado na interpretação e reconhecimento do espaço de decisão de que o acusado pode dispor acerca de uma série de direitos e garantias processuais que lhe são assegurados pela Constituição da República e pelos tratados internacionais de direitos humanos.

Assim, o afastamento do paternalismo no tratamento dispensado ao acusado não pode levar a supor que as condições concretas de funcionamento do Sistema Penal proporcionem igualdades de toda natureza, a ponto de ser sempre considerada válida a decisão pessoal de não se defender!

As desigualdades materiais não desaparecem por decreto, como a história não chega ao fim simplesmente porque um cientista social decreta o ―fim da história‖!

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E a criminologia crítica irá demonstrar que as desigualdades sociais no mínimo são responsáveis pela definição da criminalidade de determinados setores da sociedade. O emprego do poder de selecionar condutas delituosas está na base do princípio da reserva legal, mas na realidade os Parlamentos contemporâneos ainda o põem a funcionar para conter grandes massas sociais190.

Desse modo, não é razoável admitir igualdades materiais onde elas não existem e hipoteticamente transferi-las para o processo penal, que muito pouca contribuição pode oferecer para superar essas desigualdades.

O chamado processo penal consensual se esforça para realizar essa tarefa inatingível. Baseado no princípio da autodeterminação do acusado, que não se coloca em cheque, sustenta a possibilidade de o réu decidir não se defender e aceitar, diretamente, uma pena ou medida criminal (é o que ocorre com a transação penal e a suspensão condicional do processo, ambas previstas nos artigos 76 e 89 da Lei dos Juizados Especiais Criminais).

O problema está em que o réu tem chances reduzidas de não ser punido, desde o processo de criminalização primária, que seleciona condutas em que na maioria das vezes ele está previamente enquadrado por pertencer a certo grupo social, até a hora em que a pressão do tempo191 e o ambiente, ambos desfavoráveis, termina pesando para que aceite as soluções penais aparentemente mais generosas, sob pena de ter que encarar o rigoroso processo tradicional! Em suma, o acusado é ameaçado com a presunção de culpa!

As chamadas soluções consensuais não estão no círculo temático do Sistema Acusatório (como foi sublinhado antes), pois visam resolver conflitos extra-processuais e, portanto,

190

WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 2001. 191

A abordagem de Aury Lopes Jr. sobre o papel do tempo no processo, levada a termo no livro Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Garantista), (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004), é sugestiva.

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não objtivam apurar fatos para com base nisso arbitrar responsabilidades.

Há de se pensar uma dogmática apropriada para elas, tarefa-desafio segundo Alberto Binder192.

As decisões pessoais do acusado são relevantes no processo penal acusatório (confessar ou não, recorrer ou não, falar por si mesmo em audiência, não apenas no ato formal de interrogatório, indicar provas), mas não devem ser confundidas com aquelas outras, do processo consensual, que podem ser oportunas e talvez funcionem como estratégia de abrandamento do rigor punitivo, todavia sistematizadas e difundidas levam paulatinamente ao retorno do modelo inquisitorial que mira a pessoa, o corpo do acusado, como alvo da ação estatal.

Em que pesem as oposições existentes,193 o estatuto do defensor no processo penal, por sua vez, coaduna-se com propósitos de resolução justa do caso penal, observada a adequada tutela jurídica dos direitos e interesses do acusado.

Assim, é lícito acentuar que o advogado ou defensor exerce um munus público (contribuindo em grande parte para a resolução da causa conforme o direito) equilibrado por tudo quanto, no exercício da sua atividade, imponha a atuação ou omissão, ambas necessárias à preservação ou conquista de posições jurídicas de vantagem para o acusado, conforme o direito.

Essa é a razão pela qual se concebe, em um processo acusatório, a positivação de poderes do advogado do acusado para se opor à vontade deste último, sempre que divise, nas conseqüências da manifestação dela, a operação de grave prejuízo jurídico. Daí porque se constata uma dualidade de estatutos — defensor/acusado —, apta a ensejar a juridicidade do recurso da defesa contra a vontade do réu. 192

BINDER, Alberto. O descumprimento das formas processuais: elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44, citado anteriormente. 193 Referidas e analisadas por José Narciso da Cunha Rodrigues (―Sobre o Princípio da Igualdade de Armas‖, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 1, nº 1, Lisboa: Aequitas, jan-mar/1991, pp. 77-103).

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II. -O ESTATUTO DA ACUSAÇÃO EM MOVIMENTO: A OPORTUNIDADE REGULADA NA AÇÃO PÚBLICA E A VEDAÇÃO ORDINÁRIA À INVESTIGAÇÃO DIRETA

Sobre o estatuto do acusador, em decorrência do

princípio de liberdade responsável, também são devidas algumas considerações. A. A Oportunidade Regulada na Ação Pública

A primeira delas reside na seguinte premissa, segundo

nosso pensamento, fundamental: a oficialidade do exercício da ação penal e, conseqüentemente, da tarefa de dedução da acusação, não modifica substancialmente o estatuto do acusador, a ponto de criar uma absoluta incompatibilidade entre decisões de conveniência ou oportunidade e de estrita obrigatoriedade.

Com efeito, não há exercício de função pública salvo por seres humanos e a liberdade de autodeterminação é, como assinalamos em lance anterior, da natureza humana.

É evidente que, no exercício da função pública, submete-se o agente ao império da legalidade, que, no campo penal, em consideração à máxima da isonomia, obedece a princípios de moralidade e impessoalidade. Apesar disso, sempre há um espaço no qual é possível eleger alternativas e se os critérios de escolha variam conforme seja o acusador particular ou oficial, para o último hão de levar em conta a moralidade, impessoalidade e, via de conseqüência, a objetiva isonomia, que não o impedirão de contribuir decisivamente para a implementação da política criminal mais justa.

Neste caso, a perspectiva histórica há de por acento no fato de o Ministério Público ter nascido, com a sua conformação próxima à atual, como fruto do processo de revisão crítica do exercício do poder, provocada pela

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Revolução Francesa,194 objetivando desempenhar decisivo papel na persecução penal, mas inserido em um projeto orgânico de vigência real do conjunto de garantias indispensáveis à dignidade da pessoa humana.

Em um modelo acusatório, que historicamente se funda no protagonismo das partes, há de se conceder espaço para uma atuação mais flexível do Ministério Público, porquanto a noção da persecução penal em todas as circunstâncias, referida a todas as infrações penais (ainda que consideremos somente as noticiadas), rende louvor ao fim de defesa social, perseguido no processo inquisitório, acima e além dos limites de humanidade necessários à harmônica convivência social.

Um estatuto jurídico do acusador que reprima completamente as suas potencialidades de conformação da política criminal, a pretexto de vincular a ação do Ministério Público à legalidade, esconde deliberadamente a possibilidade da legalidade surgir em ambientes de flexibilidade, de acordo com critérios de impessoalidade e moralidade e também de acordo com propostas de redução do caráter flagrantemente elitista da justiça penal, redistribuindo as forças de persecução conforme uma mais coerente e justa avaliação do que deve merecer o dispêndio de energia do Estado.

Na perfeita compreensão de Maximiliano Rusconi, sobre o estatuto jurídico do acusador público no âmbito do sistema acusatório e de acordo com o princípio acusatório, centrado na idéia do justo processo, alerta-se:195

El principio de oportunidad como elemento

para racionalizar el uso de poder de persecución criminal, evitar una selección ‗irregular y 194 Rusconi, Maximiliano A. ―Luces y Sombras en la Relación Política

Criminal — Ministerio Público‖, in Ministério Público, Revista Latinoamericana de Política Criminal, ano 2, nº 2, Buenos Aires: Editores del Puerto, 1997, p. 156.

195 Rusconi, Maximiliano A. ―Luces y Sombras en la Relación Política Criminal — Ministerio Público‖, ob. cit., pp. 158-159.

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deformante‘ y dirigir los recursos del Estado al control sobre el tipo de criminalidad que mayor costo social genera y más dificultades manifiesta en la investigación, representa sin duda una opción de limitación del poder penal del Estado...

Además de las razones expuestas, es preciso insistir en una de máxima importancia: que el Ministerio Público sea el operador de los criterios de desjudicialización a través de la aplicación concreta del principio de oportunidad, asegura que dicha aplicación no viole la garantía constitucional de ‗igualdad ante la ley‘ debido a que por su especial función de formulación de la política criminal del Estado y gracias a que ciertos principios aseguran que esa formulación sea coherente...

E, conclui, objetivamente, com a observação de que

princípios de unidade, hierarquização e verticalidade, configurando o Ministério Público, asseguram às pessoas que estarão sempre submetidas às mesmas regras e não a uma arbitrária disposição de vontade do acusador.

Nestes termos a realidade coloca o Ministério Público diante da possibilidade/necessidade de se organizar de modo eficiente e orientar a aplicação de seus recursos na direção de políticas criminais democráticas, definidas com transparência e em documentos discutidos internamente e com representantes da comunidade.

Cumprida esta etapa, em homenagem aos princípios constitucionais mencionados linhas atrás, cada Promotor de Justiça ou Procurador da República terá conhecimento dos parâmetros que nortearão escolhas entre acusar ou requerer o arquivamento das investigações criminais e até sobre recorrer ou não de sentenças.

A interpretação constitucionalmente adequada do artigo 129, inciso I, da Constituição da República, é esta. Não se trata, apenas, de assegurar ao Ministério Público o monopólio do exercício da ação penal pública, na forma da

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lei. Nos dias de hoje é concebível extrair da norma constitucional a autorização para definir critérios e casos de atuação, sempre tendo em mente os princípios da moralidade e impessoalidade.

Por último, não custa lembrar que a dogmática penal avançou o suficiente para engendrar critérios de definição de crimes, de tipicidade penal, bem mais exigentes que a mera subsunção da tipicidade objetiva tradicional.

A potencialidade de dano da conduta, a ofensividade a bens jurídicos, a própria dimensão do dano provocado e o desvalor da ação são elementos que o Direito Penal oferece ao Ministério Público para determinar as hipóteses de atuação ou não.

B. A Vedação Ordinária à Investigação Direta196

Em contrapartida à maior liberdade de ação, que deve inspirar a atuação do Ministério Público, em um processo penal democrático, temos que, além dos mencionados controles, funcionam outros, direcionados a impedir ou a coibir os excessos e a tentar garantir que o valor de verdade da sentença penal não venha a naufragar por conta de uma acentuada e irracional atividade probatória.

Por conta disso, convém dedicarmos alguma atenção à matéria prova penal e às atividades de investigação diretamente a cargo do Ministério Público.

Com efeito, o estudo sistemático da teoria jurídica relativamente à questão da prova está a demonstrar que não se trata simplesmente de problemas de método de aquisição, introdução e avaliação das provas no processo.

No campo da prova há também aspectos subjetivos, isto é, referidos à perspectiva de quem pode provar, além de outros objetivos, ambos importantes, que estão a merecer

196 Sobre o assunto, recomendo a leitura do livro Investigação Criminal

Direta pelo Ministério Público: Visão Crítica, 2ª ed. de Paulo Rangel, tema de sua dissertação de mestrado (Lumen Juris, 2005) e o Crime e Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público, 2ª ed., de Lenio Luiz Streck e Luciano Feldens, Rio de Janeiro, Forense, 2005.

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tutela jurídica por intermédio de procedimentos de garantia previstos nas Constituições.

No plano específico do princípio acusatório exige extraordinário cuidado o saber como articular estes procedimentos e a teoria jurídica.

Assim é que, ao se falar em proibição de prova no processo penal, está se afirmando que o juiz não poderá levar em consideração determinado elemento de convicção, no momento de proferir a decisão, se este elemento de convicção foi obtido indevidamente.197 Mas a proibição da prova vai muito além do mero dado procedimental.

Para entendermos o fenômeno que orienta a atividade probatória, é preciso compreender como a teoria do conhecimento cuida do assunto e perceber que provar é convencer, que a atividade probatória consiste em introduzir no processo elementos que servirão para formar a convicção do juiz.

Portanto, a atividade probatória é atividade de ministrar elementos de conhecimento. O juiz deverá conhecer determinado fato e este conhecimento se dará indiretamente,198 porque o juiz não presenciou o fato. Ao final, o convencimento do juiz representará a formulação de uma idéia acerca do fato. Da comparação desta idéia com a pretensão deduzida pela acusação e com a pretensão de resistência deduzida pela Defesa nascerá a decisão.

Diante das conseqüências advindas da consideração de que um fato está ou não provado no processo é necessário levar em conta que, em primeiro lugar, a atividade probatória é uma atividade de pesquisa.

É assim em qualquer ramo do conhecimento e não pode ser diferente quando o objeto do conhecimento é um fato ideal — a suposição a respeito da existência de uma infração penal.

197 A Constituição da República estabelece, em seu artigo 5º, inciso LVI, que

são inadimissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. 198 Evidentemente, se o juiz for testemunha da infração penal, não

poderá julgar. Artigo 252, inciso II, do Código de Processo Penal.

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Neste sentido convém recordar que os pesquisadores a princípio definem o que se pretende pesquisar. Em termos de Processo Penal, o objeto da pesquisa é um fato com coloração diferenciada, dada pelo Direito Penal.

A pesquisa só será possível se o pesquisador tiver em mente um fato da realidade, hipoteticamente ocorrido, a que terá de somar os elementos peculiares à adequação típica, pois apenas a infração penal lhe interessará.

Duas notas distintas passam a ser objeto da atividade mencionada: a existência de um fato, propriamente dito; e a presença das características que poderão atribuir a este fato relevância jurídico-penal. Em outras palavras e a título de exemplo, no processo penal interessa saber se houve morte de alguém e se esta morte pode ser derivada de conduta dolosa ou culposa prevista como crime. O processo penal não deve perseguir a prova de fatos atípicos!

Verifica-se, agora sim, que a atividade probatória não se limita a um debate no processo, com introdução de provas, a não ser que entendamos que a produção de provas é sempre produção de provas direcionada a determinação da existência e da vinculação subjetiva de um fato típico, ilícito e culpável, ou seja, de uma infração penal.

Mesmo quando, aparentemente, a lei é clara na definição da infração penal, sempre se exigirá um mínimo processo de interpretação que passa tanto pela reconstituição do fato no plano das idéias, o que dependerá, é certo, da qualidade dos elementos que serão oferecidos ao juiz, como pela compreensão do significado das palavras empregadas na Lei para indicar o crime ou contravenção. Saber se a interrupção voluntária da gravidez de feto anencéfalo configura aborto ou fato atípico é algo que impõe antes estabelecer consenso sobre o que significa a expressão ―provocar aborto‖, prevista no artigo 124 do Código Penal brasileiro.

Como não há verdade absoluta, verdade real, a maneira mais segura de se alcançar o melhor resultado certamente não justificará o desrespeito aos valores fundamentais da pessoa humana.

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Por essa razão, até mesmo de acordo com a lógica imperante em determinado modelo de funcionalismo, se a verdade é sempre contingente e histórica, o uso da tortura e o emprego de recursos que historicamente foram criados e ditados para produzir uma verdade real não têm peso algum. Neste caso, o resultado da atividade probatória objetivamente estará sujeito ao mesmo tipo de crítica cabível em todas as pesquisas e eticamente representará a opção por mecanismos tão censuráveis quanto a infração penal que se pretende apurar.

A restrição relativa aos meios de prova, no processo penal, tem a ver com o conjunto de valores sociais considerados conforme o estatuto ético da sociedade.

Do ponto de vista objetivo, a proibição de provas exprime as hipóteses de violação a este estatuto ético, previsto principalmente na Constituição. Desse modo, são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos conforme a idéia de que o meio utilizado para obtenção da prova viola valores éticos mínimos considerados essenciais para a existência de uma sociedade civilizada, ou, usando a expressão de Schmidt-Leichner,199 o Estado não pode se tornar receptador de material probatório.

Do ponto de vista objetivo há um limite, tradicionalmente investigado: a prova ilícita não pode ser introduzida no processo. Caso seja introduzida, não poderá ser avaliada pelo juiz porque o Estado não pode atuar criminosamente para investigar o crime.

Do ponto de vista subjetivo, ninguém, nem mesmo o juiz, pode ter a pretensão de dominar toda a realidade, de enunciar a verdade real. A atividade de busca da verdade processual deve se desenvolver de acordo com princípios republicanos e democráticos.

O processo penal não pode fugir, na essência, à estrutura do Estado e da sociedade onde está fadado a atuar. É necessário que seja assim, porque a consolidação da forma

199 Apud Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em

Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 44.

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jurídica do Estado, na Constituição, estabelece que os poderes emanam do povo e que no seu exercício concreto devem ser distribuídos entre diversos órgãos, e executados por diferentes agentes de modo a que possa haver controles recíprocos e eficazes.

A estrutura democrática se contrapõe à forma autoritária de Estado, de sorte que em um processo penal democrático as funções acabam distribuídas entre órgãos distintos obedecendo a esta mesma lógica.

Há uma conexão que vincula os três principais sujeitos do processo, de modo que a um deles se entregue a atividade de exercer a ação penal, a outro a atividade de defesa e a um terceiro, eqüidistante e imparcial, a atividade de julgar.

O sistema de controle das atividades processuais, que se desdobra em função dos meios e recursos colocados à disposição das partes, termina por alcançar também a atividade de polícia judiciária, na medida em que tal atividade representa, por si só, uma espécie de poder capaz de afetar gravemente o patrimônio de direitos da pessoa investigada.

A atividade de polícia judiciária, que consiste na apuração das infrações penais e sua autoria, amiúde invade a esfera de privacidade alheia e atenta, legalmente, contra a reputação pessoal da pessoa sob suspeita. É muitas vezes imprescindível que seja dessa maneira, pois a aquisição de informações demandará pesquisa a respeito da vida privada do investigado. As fronteiras entre o permitido e o proibido durante uma investigação criminal aparecem pois marcadas por balisas tênues e não raro, em busca de maior eficiência, o investigador cede à tentação de violar determinadas normas jurídicas de proteção da intimidade e da vida privada do investigado. Quanto mais grave a infração penal e mais convencido o investigador a respeito da procedência da sua suspeita, maiores são as chances de não ser rigoroso quanto à obediência aos direitos fundamentais do indiciado.

Por conta disso, os parâmetros de legalidade na investigação criminal são sempre bem definidos e em praticamente todos os ordenamentos jurídicos que seguem a

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linha do brasileiro há uma instituição, a rigor o Ministério Público, que fica encarregada de fiscalizar os atos de investigação.200

Em vista dessa opção legislativa, o Ministério Público não pode investigar diretamente, prescindindo da polícia, sem atentar contra o princípio republicano de controle.

Nicolas Becerra, Chefe do Ministério Público Federal da Argentina, salienta o seguinte:201

Como ponto de partida o Ministério Público

deve garantir que no exercício do Poder de Estado se respeitem OS PARADIGMAS DO MODELO REPUBLICANO. Como um dos operadores centrais do sistema penal, o Ministério Público deve ser consciente de quem tem em suas mãos uma ferramenta que lhe permite executar uma das formas mais violentas de exercício do poder do Estado. Este exercício por fim deve demarcar-se no programa constitucional, que não só institui o modo de relação institucional entre órgãos, senão que, ao estabelecer o sistema de divisão no exercício do poder por intermédio de freios e contra-pesos, exige também o controle externo.

E conclui com aquilo que é o ponto mais importante:202

Neste controle externo o Ministério Público deve colaborar com a consolidação de um sistema no qual, ninguém, ninguém deve ser NEM BOM, NEM MAU GUARDIÃO DE SEUS PRÓPRIOS ATOS, o que significa entre muitas outras coisas, que quem investiga não pode ao mesmo tempo controlar.

200 No Brasil, a Constituição da República prescreve, em seu artigo 129, inciso

VII, que é atribuição institucional do Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial.

201 Becerra, Nicolas. El Ministerio Público y los Nuevos Desafíos de la Justicia Democrática, Buenos Aires: AD-HOC, 1998, p. 12 – tradução livre.

202 Idem.

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Por que a polícia pode investigar, por exemplo, e o

Ministério Público não pode investigar? Que tipo de conseqüência jurídica, poderia advir de uma investigação realizada por quem não está incumbido de fazê-lo constitucionalmente?

À vista do exposto, as possibilidades de o Ministério Público investigar diretamente dependem da previsão legal de disposições regulando a investigação, de tal sorte que as lesões decorrentes do abuso na investigação possam ser objeto de reclamação perante o Judiciário — princípio da inafastabilidade da jurisdição — e que o sistema de freios e contra-pesos possa funcionar.

Além disso, é imprescindível assinalar a excepcionalidade desta atuação, que tão-só estará justificada naqueles casos em que o sucesso da pesquisa impõe extraordinária reserva em relação a quem está sendo investigado.

É o caso das investigações criminais acerca do envolvimento sistemático de policiais com ações de corrupção ou criminalidade acentuada no âmbito da própria polícia.

Caberia à lei fixar estes contornos de forma clara, pois também para a investigação criminal do Ministério Público prevalece a garantia constitucional do devido processo legal.

A excepcionalidade dos casos de investigação criminal do Ministério Público, de lege ferenda, há de ser compreendida, do ponto de vista do direito, como emanação do critério da proporcionalidade. Nos limites do devido processo legal, sacrifica-se o ideal de afastamento do Ministério Público da investigação criminal, pelo qual é viabilizado o controle constitucional da atividade de polícia judiciária, para permitir a investigação de crimes que de outra maneira não seriam investigados.

Ora, isso impõe limites à própria lei que porventura vier a ser editada. Esta não poderá atribuir ampla liberdade ao Ministério Público para escolher o que investigar. Não cabe, por exemplo, deixar em mãos do Ministério Público a

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pesquisa da ocorrência de crime de furto de que foi vítima um Governador de Estado, por mais chocante que o fato possa parecer à opinião pública. Por outro lado, o reconhecimento de que a polícia está limitada em certas circunstâncias, por ausência de autonomia, além de ser uma constatação servirá para permitir que polícia e Ministério Público atuem em conjunto, visando o melhor proveito da investigação, que de outro modo estaria condenada a chegar a lugar algum.

E isso nada tem a ver com uma função pós-moderna do Ministério Público ou com a natureza diferenciada dos chamados bens jurídicos penais transindividuais ou coletivos.

Agora, a investigação criminal na grande maioria dos casos não se enquadra no modelo excepcional citado acima e o aspecto subjetivo termina ganhando importância neste contexto, pois não se trata apenas de demonstrar alguma coisa, mas de saber quem deve demonstrar e a quem deve ser demonstrado.

Quando o padrão de legalidade na apuração dos fatos não é respeitado também em sua perspectiva subjetiva, a prova dele decorrente é igualmente ilícita.

Provar é atividade de sujeito. Prova-se um fato que tem determinada qualidade, mas se prova por intermédio da atividade de sujeitos e as Constituições hoje não podem ficar limitadas em sua interpretação, quando se cuida da proibição de provas no processo penal, aos casos de obtenção de provas por meios ilícitos. Também deverão dirigir a atenção à questão a respeito de quem foi o sujeito produtor daquela prova, quais são os limites subjetivos da produção da prova e o que ocorre quando um sujeito que não poderia realizar atividade probatória a realiza, fazendo valer o sistema de ineficácia dos atos jurídicos.

Por último, não custa destacar que os Sistemas Processuais são configurados historicamente. O que é atribuído a cada Ministério Público depende muito do papel que a instituição exerceu ao longo do tempo. O mesmo ocorre com a tarefa incumbida à autoridade policial.

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No Brasil, durante muito tempo a autoridade policial esteve encarregada de investigar e processar. Essa realidade do Império, retratada no Código de Processo Criminal de 1832 fica como ―permanência‖ até a promulgação da Constituição da República de 1988, que afastou de juízes e delegados de polícia o poder de iniciar processos por crimes de homicídio e lesão corporal culposa e por contravenções penais (Lei n. 4.611/65 e artigo 531 do Código de Processo Penal). Desde então, somente o Ministério Público está autorizado a promover a ação penal pública.

Acontece que a história da investigação criminal brasileira é também história de repressão e autoritarismo, com abusos em investigação e recurso freqüente à tortura. O distanciamento que a Constituição da República de 1988 impôs ao Ministério Público é coerente com a sua função de fiscal das atividades de polícia judiciária, criando estrutura confiável de controle dirigida à redução dos abusos.

Quando o Ministério Público abdica disso retorna ao passado, fundindo funções, pois a questão não está no nome da instituição que investiga, mas na função que as instituições exercem. Quem investiga exerce função de polícia judiciária. Pode ser o juiz, como no passado brasileiro; poderá vir a ser o Ministério Público, como alguns doutrinadores pretendem. Não importa, porque se houver investigação será necessário criar estruturas de controle dessa investigação e não fará sentido pensar em um outro Ministério Público do Ministério Público.

Porque as linhas deste estudo são traçadas pelo princípio acusatório não convém avançar mais, valendo notar, porém, que as fronteiras probatórias instituídas pelas leis e pela Constituição devem valer não somente em relação ao Ministério Público mas até mesmo quando se tratar de Comissão Parlamentar de Inquérito.

III. -O ESTATUTO DO JUIZ EM MOVIMENTO: LIVRE CONVENCIMENTO E OS PODERES DE INVESTIGAÇÃO DO JUIZ — A MUTATIO LIBELLI

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Agora cumpre dedicar ao órgão de resolução do caso penal algumas considerações, pertinentes ao seu enquadramento conforme o princípio acusatório e a relação que se estabelece entre ele, juiz (lato sensu considerado), acusador e acusado.

Com efeito, excluídas desde logo a iniciativa para o processo e a tarefa de aquisição das provas na fase precedente203, resulta que o princípio acusatório repercute no estatuto judicial, conferindo ao magistrado reserva da função jurisdicional.

Destaque-se que o juiz não produz provas na investigação criminal não só porque a preparação da ação penal, respeitada a máxima acusatoriedade, implica em afastamento do juiz da fase preparatória,204 mas também pelo fato de a presunção da inocência comportar, até o trânsito em julgado da condenação, uma postura de preservação pelo juiz de um papel de verdadeira imparcialidade,

A implicância prática da reserva em questão consiste, segundo pensamento dominante, na garantia da liberdade de avaliação das provas, convicção fundada sobre a qualificação jurídica da infração penal e arbitramento motivado da correspondente sanção.

A. Livre Convencimento e os Poderes de Investigação do Juiz

203

As objeções opostas ao extinto inquérito judicial, na falência (ver item I, em 3.2.2.1) são igualmente válidas quando se trata da investigação de magistrados. Com efeito, a Lei Complementar 35, de 14 de março de 1979, ainda em vigor até a edição do Estatuto da Magistratura, em seu artigo 33, parágrafo único, prevê que a investigação da prática de crime atribuído a magistrado deverá ser realizada pelo Tribunal ou Órgão Especial competente. Além do óbvio desrespeito ao princípio da igualdade de tratamento, que exigiria outro livro para ser explicado e contestado à luz da Constituição da República de 1988, há a questão prévia de se atribuir à autoridade encarregada do julgamento a atribuição para apurar o fato. 204 A intervenção do juiz, nesta fase, só se explica, conforme o princípio acusatório, quando necessária para, conforme a Constituição, preservar ou comprimir, legitimamente, o exercício de direitos fundamentais, porquanto o julgador não tem interesse jurídico na propositura da mencionada ação.

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Comecemos, portanto, pela análise da tarefa de

avaliação das provas. A primeira e mais importante observação deriva da necessária distinção entre as ações de introduzir e avaliar as provas no processo penal condenatório.

A propósito, salienta Gomes Filho que, em um modelo processual duelístico, como o adversary, existente na Inglaterra, por exemplo, a iniciativa da atividade probatória incumbe preponderantemente aos próprios litigantes, daí decorrendo o papel de mero moderador e mediador, desempenhado pelo juiz que preside o julgamento, o qual raramente intervém, como os jurados.205

Nessa direção, fundamenta-se uma estrutura processual preocupada em evitar injustificadas e errôneas privações de direitos e em garantir a participação e o diálogo dos interessados no processo de decisão.206

Por outro lado, convém assinalar que, no modelo inquisitório, o princípio é justamente o oposto, refletindo a proeminência da figura do juiz e a subalternidade das partes na tarefa de obtenção do material probatório, o dogma da verdade real, a preocupação com a economia processual e, sobretudo, uma concepção peculiar de livre convencimento, visto, consoante precisamente remarca Gomes Filho, como liberdade absoluta na própria condução do procedimento probatório, e não na sua real e histórica dimensão de valoração desvinculada de regras legais, mas incidente sobre um material constituído por provas admissíveis e regularmente incorporadas ao processo.207

Ora, se estamos convencidos, o que é certo, da vinculação entre direito de ação (e, naturalmente, também de defesa) e direito à prova, é razoável supor que haja mais do que uma simples relação jurídica, pela qual o segundo

205 Gomes Filho, Antonio Magalhães. O Direito à Prova no Processo Penal, pp. 59-60. 206 Idem, p. 60. 207 Idem, p. 63.

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seja considerado conseqüência do primeiro. A ordem das coisas colocadas no processo permite,

pragmaticamente, constatarmos que a ação voltada à introdução do material probatório é precedida da consideração psicológica pertinente aos rumos que o citado material possa determinar, se efetivamente incorporado ao processo.208

Ao tipo de prova que se pesquisa corresponde um prognóstico, mais ou menos seguro, da real existência do thema probandum, e, sem dúvida, também das conseqüências jurídicas que podem advir da positivação da questão fática.

Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador.

Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na direção da introdução de meios de prova que sequer foram considerados pelo órgão de acusação, ao qual, nestas circunstâncias, acaba por substituir. Mais do que isso, aqui igualmente se verificará o mesmo tipo de comprometimento psicológico objeto das reservas quanto ao poder do próprio juiz iniciar o processo, na medida em que o juiz se fundamentará, normalmente, nos elementos de prova que ele mesmo incorporou ao processo, por considerar importantes para o deslinde da questão. Isso acabará afastando o juiz da desejável posição de seguro distanciamento das partes e de seus interesses contrapostos, posição essa apta a permitir a melhor ponderação e conclusão.

Entre os poderes do juiz, por isso, segundo o princípio acusatório, não se deve encontrar aquele pertinente à investigação judicial, permitindo-se, quando muito, pela coordenação dos princípios constitucionais da justiça

208 Ver críticas à investigação direta pelo Ministério Público, texto

acrescentado a esta edição.

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material209 e presunção da inocência, que moderadamente intervenha, durante a instrução, para, na implementação de poderes de assistência ao acusado, pesquisar de maneira supletiva provas da inocência, conforme a(s) tese(s) esposada(s) pela defesa.

Neste caso, assimila-se a real natureza do princípio acusatório como garantia que comporta para a defesa do imputado conforme assinala Grau.210 O destinatário da posição jurídica favorável não pode ser prejudicado pela aplicação, contra si mesmo, daquele benefício instituído pela Constituição.

Ao mesmo tempo, incrementa-se, por meio desta excepcional e restrita iniciativa judicial, o princípio da paridade de armas de modo efetivo, tal seja, garantindo, pela intervenção mediadora do juiz, tratamento desigual aos desiguais, sobretudo em face da ausência de identidade entre as partes, agindo assim em busca do equilíbrio no processo, razoavelmente justificado à luz de critérios de reciprocidade e evitação de um dano irreparável.

Teresa Armenta Deu pensa, todavia, diferentemente, defendendo a tese da possibilidade da introdução de elementos de prova, pelo juiz, de forma limitada, mesmo na fase de debates, visando completar o panorama sobre o qual recairá o juízo211. Giza a referida autora que, nas circunstâncias, a importação de elementos de prova pelas mãos do juiz será controlada pelo sucessivo contraditório e

209 O princípio de justiça material, conforme o magistério de Canotilho, remete à Constituição um fundamento de ―reserva‖ e ―garantia‖ da justiça,

pelo que se assinala a intencionalidade do Direito Constitucional não esgotar a positividade das normas da Constituição na mera edição formal, mas sim na correspondente justiça deste direito. Portanto, a função de ―reserva de justiça‖, mencionada pelo mestre português, sugere a fundamentação dos princípios que se constituem em favor rei, desde o da presunção da inocência, justificando a compressão de outros princípios, como, por exemplo, o acusatório, em vista da referida reserva de justiça (Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, p. 3).

210 Grau, Joan Verger. La Defensa del Imputado y el Principio Acusatorio, p. 13.

211 Teresa Armenta Deu defende ponto de vista diverso em Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 27-28.

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pela impossibilidade de interdição da defesa. Em que pesem o respeito e admiração que merece a

doutrinadora, que profundamente estudou o princípio acusatório, não é possível concordar com ela porque o contraditório é medida de duelo, como categoria processual que reúne a ciência do ato praticado pela parte contrária à possibilidade de uma atitude em sentido contrário ou objetivando contrariar o prefalado ato. Difícil será, a nosso juízo, estabelecer-se um duelo entre o acusado e o juiz, pois este último detém o poder de decidir a causa, elegendo, como assinalou Carnelutti, a alternativa de solução que lhe pareça mais viável.

Há de se acrescentar, por oportuno, que, se o princípio da paridade de armas não integra o princípio acusatório, reduzido este à divisão tricotômica de funções, é, todavia, importante para a implementação da justa solução do caso penal, a ponto de ser considerado integrante de um sistema cuja base é a acusatoriedade (novamente aí a distinção entre sistema e princípio, entre continente e conteúdo).

Por isso, cabe destacar, com Chiavario212, que a parità fra le armi fornece um critério resoluto fundado não no sentido de simetria das situações das partes, porém justamente na dissimetria de posições, observável na prática, de tal sorte que não é razoável admitir um Ministério Público despreparado para o exercício dos direitos de ação e prova, enquanto, lamentavelmente, acontece de se encontrar defensores inaptos para a melhor forma de representação dos interesses do imputado.

Para ser assimilada pelo princípio acusatório, a estrutura de cooperação do processo jurisdicional penal moderno, de que nos fala Ada Grinover,213 há de ser filtrada pelo contraditório, que opõe de forma dialética as teses da acusação e da defesa, levando em consideração a desigualdade real entre as partes e a necessidade imperativa de equilíbrio técnico e de posições jurídicas visualizadas

212

Processo e Garanzie Della Persona, pp. 27-28. 213 Grinover, O Processo Constitucional em Marcha, pp. 8-9, 14-15 e 19-21.

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reciprocamente. A estrutura de cooperação busca o resultado prático da

conversão das garantias das partes em garantias da própria jurisdição.

Daí porque a doutrinadora, consolidando seu pensamento, assevera que existe um perfil objetivo de defesa a condicionar a validade do processo penal e legitimar a própria jurisdição, cumprindo ao juiz zelar para que a desigualdade real não desemboque em desigualdade processual comprometedora da verdade que deve alicerçar a sentença penal.

No fundamento desta desigualdade, cuja constatação nos dias de hoje dispensa comentários, é possível identificar na estrutura de cooperação citada certa semelhança com o processo trabalhista, no qual a inferioridade econômica do trabalhador, numa estrutura capitalista, cria novos hábitos assistenciais ao juiz.214

De toda sorte, a intervenção judicial na atividade probatória a favor do acusado há de ser moderada, como antes frisamos, enquanto estará interditada em relação à acusação, que nos dias de hoje dispõe de aparato suficientemente bem constituído para pelejar em juízo.

A supressão ou redução dos poderes de investigação judicial esbarra, contudo, na cultura desenvolvida secularmente com base nos ordenamentos jurídicos de inspiração européia continental, acostumados, pela experiência haurida na ordem jurídica romano-canônica, à busca da verdade real, de sorte que a máxima acusatoriedade postulada pelo princípio em questão, na equação juiz penal versus prova, quase sempre é bastante limitada.

E é com inspiração nestes modelos que configuram um processo acusatório mitigado ou temperado pelo princípio da investigação judicial, segundo Manuel da Costa Andrade, que vem tomando corpo no Direito Brasileiro a tese da distinção entre o sistema acusatório de estrutura adversarial e outro, 214 Idem, p. 19.

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acusatório contemporâneo, que atribui poderes probatórios ao juiz.

Gustavo Badaró, por exemplo, assinala que: ―...embora seja característica histórica do processo acusatório a inércia probatória do juiz, que tinha apenas uma função passiva em relação à atividade instrutória, tal aspecto não lhe é fundamental. A evolução de tal modelo, principalmente em decorrência da publicização do processso, fez surgir um processo em que há clara separação de funções entre acusação, defesa e julgador, a despeito de o juiz poder ser dotado de poderes instrutórios‖.215

Badaró remete para posição secundária a inércia do

juiz, salientando que há características secundárias que possibilitam a existência de um processo acusatório à semelhança do júri inglês, em que o juiz não tem poderes instrutórios, e um pretenso processo acusatório do tipo brasileiro ou português no qual o juiz pode determinar a produção de provas de ofício.

Marcos Alexandre Coelho Zilli é partidário da posição assumida por Badaró, em sua análise sobre o sistema adversarial216.

Não é necessário lembrar que o artigo 156 do Código de Processo Penal brasileiro, em sua parte final, que contempla o juiz com poderes probatórios, na linha do artigo 209 do mesmo código, é fruto do processo penal do Estado Novo, período autoritário em que a supressão das liberdades contava com apoio do Sistema de Justiça Penal, para fazer valer os interesses da ditadura Vargas.217

215

BADARÓ, Gustavo. Ônus da prova, op. cit., p. 137. 216

ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, São Paulo, RT, 2003, p. 44-45. 217

Artigo 156 do Código de Processo Penal: ―A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante‖ e artigo 209: ―O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes‖.

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Supor generosidade, espírito científico ou público em regimes ditatoriais significa desconhecer a lógica que domina o manejo, a manipulação do Sistema de Justiça Penal em tais circunstâncias.

No caso brasileiro, a regra de produção de provas pelo juiz, de ofício, tão-só consolida aquilo que desde as Ordenações, passando pelo Código de Processo Criminal do Império, de 29 de novembro de 1832 e pelas Reformas Prcessuais de 3 de dezembro de 1841 e 20 de setembro de 1871, tornara-se regra em um ambiente em que a Intendência, espécie de Secretaria de Segurança Pública, fora desde o início entregue a um Desembargadior, juiz de corte superior.

Hoje, a volta a esse estado de coisas não pode ser compreendida como evolução. A artificial designação de sistema adversarial, para definir o acusatório em que a inércia probatória do juiz é regra, para distingui-lo de outro sistema acusatório em que o juiz tem poderes instrutórios, só atende ao propósito de tentar prolongar a vida do Código de Processo Penal de 1941, da era autoritária, naquilo que nele é central, tal seja, a filosofia de que se trata de instrumento da política de segurança pública do Estado e não de previsão das regras do devido processo legal, conforme a Constituição da República de 1988.

O alegado caráter público do caso penal, para justificar a ação probatória do juiz, conforme Badaró, merece reflexão histórica e técnica. Em termos de Justiça Penal a palavra ―público‖ será tomada no sentido de algo derivado do exercício do poder político. Não havia nada mais ―público‖, no sentido de expressão de poder político, que o processo penal da Inquisição.218 Tampouco havia algo mais sigiloso que este mesmo processo.

O público na citada acepção deve ser compreendido como em oposição ao privado. Para o processo da Inquisição os interesses privados eram secundários. Importava a

218

MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires, Editores del Puerto, 2002, p.151.

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repressão aos hereges e a manutenção da ordem. E essa repressão era feita em sigilo. Talvez seja possível encontrar neste sigilo a simetria com as motivações do juiz na determinação da prova de ofício, uma vez que a declaração dos reais motivos da produção da prova pode implicar pré-julgamento.

A simetria entre processo inquisitório e regimes autoritários não é gratuita e não se fixa exclusivamente nos regimes políticos, inscrevendo-se na cultura dos povos. Não por acaso o Brasil resiste como um dos poucos Estados da América do Sul a ter ultrapassado a fase de transição democrática sem ter editado um novo Código de Processo Penal em seguida à sua Constituição.

Por essa razão é importante insistir no ponto delicado da dogmática do processo. O estudo das formas de conhecimento dos fatos não é próprio à disciplina do Direito. O Direito se apropria ―politicamente‖ do discurso sobre a ―verdade real‖, mas o próprio Direito não está dotado de instrumentos científicos para investigar a possibilidade de ser estabelecida uma verdade real.

Johannes Hessen recordará que é a epistemologia que se dedica a investigar as possibilidades de conhecimento219 e Juan Antonio Nicolás e Maria José Frápolli resenharão as sete principais correntes de pensamento sobre a Verdade no Século XX, com seus desdobramentos, a enterrar definitivamente o conceito de verdade real e a retirar o sujeito do conhecimento da posição de aparente neutralidade que a filosofia positivista do século XIX entronizara.220

O juiz é o destinário da prova e, sem dúvida alguma, sujeito do conhecimento. Quando, porém, se dedica a produzir provas de ofício se coloca como ativo sujeito do conhecimento a empreender tarefa que não é neutra, pois sempre deduzirá a hipótese que pela prova pretenderá ver

219

HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento, São Paulo, Martins Fontes, 2000. 220

NICOLÁS, Juan Antonio e FRÁPOLLI, María José. Teorías de la verdad en el siglo XX, Madrid, Tecnos, 1997.

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confirmada. Como as hipóteses do processo penal são duas: há crime e o réu é responsável ou isso não é verdade, a prova produzida de ofício visará confirmar uma das duas hipóteses e colocará o juiz, antecipadamente, ligado à hipótese que pretende comprovar.

Assim, por exemplo, se uma testemunha X afirma sem muita convicção que viu o réu subtrair o carro da vítima e que estava ao lado de outra testemunha Z, não arrolada, a decisão do juiz, de ofício, de ouvir a mencionada testemunha Z só pode ser determinada pela convicção honesta de que a testemunha Z confirmará o fato. É evidente que se a testemunha Z negar o fato, o juiz tenderá a levar isso em consideração. Caso, porém, a testemunha confirme as declarações da outra, dificilmente o réu poderá acreditar que o juiz dará crédito a testemunhas que vier a arrolar para desmentirem as duas primeiras. Com isso estará quebrado o frágil equilíbrio em que se sustenta a imparcialidade do juiz no processo penal.

No exemplo anterior o juiz não pesquisou fontes de prova, ressalva feita por Badaró para tentar fixar algum limite à atividade probatório de ofício do juiz.221

De todo modo, aceita a tese da inércia judicial, prosseguimos no plano específico da avaliação do material probatório recolhido pelas partes, para averbarmos que a plena liberdade de avaliação cede hoje, fora do Sistema Acusatório, perante duas distintas situações: o valor de compromisso da confissão do acusado, como assunção de um princípio de autonomia da vontade, nos casos de justiça penal consensual para os quais a resposta penal implique em uma solução mais favorável ao réu; e a admissão de um conjunto mínimo de provas legais negativas.

221

De acordo com Gustavo Badaró (Ônus da prova..., p. 119) a busca da prova pelo juiz não fere a imparcialidade desde que tais poderes de instrução sejam exercitados dentro de determinados limites. Para Badaró o juiz não está autorizado a buscar ―fontes de prova‖, atividade propriamente investigativa, mas poderá agir diante da notícia de uma prova, ―como a informação de que certa pessoa presenciou os fatos‖.

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A.1. -Do Livre Convencimento e a Confissão do Acusado — Soluções Consensuais

Com efeito, uma nova concepção de retribuição,

arrimada no propósito de provocar recíprocas influências entre acusado, vítima e sociedade, aproximando-os, resgata o valor da confissão para o processo penal, dessa vez, diferentemente do passado inquisitório, voltada a uma solução de compromisso que restaure a paz social.

A idéia é evitar o processo de marginalização induzido pela pena de prisão, sacrificando, em uma mínima porção e nos limites que o próprio acusado e seu defensor entenderem razoáveis, o patrimônio jurídico do primeiro.

Para tanto, renove-se a advertência, há de se conceber o acusado como ser dotado de autodeterminação e responsabilidade, que não podem ser legítima e paternalmente tuteladas, reivindicando-se, nessa postura, uma reação do juiz limitada pelo definido espaço de consenso e não subordinada à busca da descoberta da verdade real a qualquer preço.222

Neste ponto, modificamos parcialmente o entendimento esposado até esta edição (3ª). Sustentamos no passado que não havia dúvida de que a implementação do princípio acusatório, na hipótese, consideraria não somente o conjunto de poderes, direitos e deveres dos sujeitos processuais, perspectivados estaticamente, mas ainda nas suas relações sucessivamente desenvolvidas.

Com base nisso, ao se analisar a posição do acusado e seu defensor em um regime inspirado no princípio acusatório, novamente em que pese à força dos argumentos de Teresa Armenta Deu,223 teríamos de reconhecer que o exercício concreto do direito de defesa pode ser renunciado, sublinhe-se, excepcionalmente, desde que admissível à luz da Constituição e conforme os interesses peculiares do

222 Dias, Jorge de Figueiredo. Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código

de Processo Penal, p. 29. 223 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 26-28.

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acusado, interditada a resposta penal tradicional, tal seja, a prisão ou outra qualquer, de significativa gravidade.224

Na realidade, o princípio acusatório oferece pouca contribuição na análise das soluções consensuais, especialmente fundadas na renúncia ao direito de defesa.

Com efeito, toda construção acusatória foi concebida para edificar o direito de defesa. A partir da experiência das práticas judiciais não-penais, que há séculos reconheciam a importância do direito de defesa, os autores iluministas e os primeiros penalistas do século XIX, Carrara à frente, sustentaram a importância de levar a Defesa ao processo penal.

A principal diferença prática entre os processos acusatório e inquisitório, além da distinção entre juiz e acusador, consiste na previsão de defesa.

Portanto, quando o processo abre mão das atividades defensivas clássicas – de resistência à pretensão de condenação -, caminha-se para trás, ressuscitando o modelo inquisitório.

É certo que os modelos de solução consensual da atualidade – como a transação penal e a suspensão condicional do processo – não podem ser comparados às práticas brutais da inquisição.

A configuração constitucional de várias garantias, como as que proíbem o juiz de considerar as provas obtidas por meios ilícitos, vedam a tortura e estabelecem a

224 Sobre a renúncia ao exercício de direitos fundamentais em consideração à

relação jurídica estabelecida entre o sujeito titular do direito e o Estado, devedor, convém examinar Novais, Jorge Reis, in Renúncia a Direitos Fundamentais: Perspectivas Constitucionais, vol. I, org. Jorge Miranda, Coimbra, 1996. Salienta textualmente o autor, forte nas lições de Dworkin, que, se a titularidade de um direito fundamental é uma posição jurídica de vantagem do indivíduo face ao Estado, é um ―trunfo‖ nas mãos do indivíduo... então da própria dignidade da pessoa humana e do princípio da autonomia e de autodeterminação individual... decorre o poder de o titular dispor dessa posição de vantagem, inclusivamente no sentido de a enfraquecer, quando desse enfraquecimento, e no quadro da livre conformação da sua vida, espera retirar benefícios que de outra forma não obteria (p. 287).

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inviolabilidade do domicílio, das comunicações telefônicas e de dados tutelam a dignidade da pessoa humana e acabam funcionando como barreira ao retorno automático e irreversível ao princípio inquisitório.

Os modelos consensuais da atualidade, portanto, estão em um meio caminho. Inspirados, por um lado, na ideologia da inquisitorialidade, organizam o procedimento de sorte a torná-lo mais célere, para tanto requisitando o consentimento do próprio suspeito ou acusado. Limitados, por outro lado, pelas garantias constitucionais acima referidas, só servem ao direito processual penal do Brasil para evitar a aplicação de pena de prisão e, assim, reduzem o nível de violência que normalmente marca o funcionamento dos Sistemas Penais da periferia.

Embora fora da matriz acusatória o consentimento do acusado em sofrer pena sem se defender pode, porém, beneficiar-se do Sistema Acusatório. Com efeito, como a defesa é da essência do citado sistema, as possibilidades de se abrir mão dela devem proporcionar a preservação da liberdade do imputado, no grau máximo de desvantagem a que estará sujeito o réu. Caso o acusado esteja sujeito a sofrer pena privativa de liberdade, risco que corre no processo tradicional, o procedimento automaticamente se transforma, convertendo-se naquele que garante ao réu o direito ao devido processo legal.

A condição de validade indispensável à produção de efeitos da dispensa de defesa está vinculada ao direito de o acusado ser cabalmente informado da acusação e das alternativas que lhe são postas, conhecimento inerente ao princípio do contraditório que, por sua vez, integrando aquele conjunto de direitos invocado por Figueiredo Dias, serve à conformação da convicção judicial e, portanto, também é condição de eficácia do princípio acusatório.225

Vale frisar que o comportamento processual do

225 No sentido do direito à informação integrar o princípio contraditório e este,

por seu turno, o princípio acusatório, ver, por todos, Joan Vergé Grau, La Defensa del Imputado, pp. 119-120, ao contrário de Teresa Armenta Deu.

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acusado, caracterizado por aceitar passivamente a inflição de pena sem defesa, é equiparado à confissão porque na perspectiva psicológica é assim que as pessoas sentem e reagem ao fenômeno.

O fato de as leis, como a brasileira, proibirem a consideração da transação penal como causa de reincidência e não extraírem conseqüências civis, vedando a produção de efeitos civis em favor do lesado, não muda a realidade. O réu é tratado como culpado, não incidindo aqui a presunção de inocência. Outros efeitos, civis e penais, que não se produzem são opções de política criminal para estimular a aceitação da proposta de pena sem defesa.

Ao juiz nestas hipóteses fica muito pouco a fazer. A sua atuação é residual. Deve comprovar a existência das condições para a formulação e aceitação das propostas de consenso e diante destas condições deverá homologar as soluções. Neste aspecto o convencimento do juiz fica restrito aos limites construídos consensualmente pelas partes.

A.2. Das Provas Legais Negativas

O segundo limite a considerar, relativamente ao estatuto jurídico do juiz, no processo penal condenatório, tem a ver com o reconhecimento de que as decisões judiciais não são emanações de um poder divino e que a divindade que podem em si mesmas carregar é aquela própria ao que de sublimemente divino é inerente a todo ser humano.

Assim, temos de aceitar o erro como algo típico da natureza humana e admitir que o juiz, por mais ponderado, sensível e preparado que seja, não está imune a errar.

Ocorre, todavia, que o erro em desfavor do acusado, no processo penal, quando é descoberto converte-se em um drama público que afeta a quase todas as pessoas e, quando permanece encoberto, corresponde à mais terrível das injustiças, porquanto o acusado não tem sequer meios de compartilhá-la.

Deste modo, a instituição de provas legais negativas tem inequívoco valor garantístico, assim compreendidas estas

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provas como postulações da limitação ao livre convencimento do juiz, para condenar.226 Isso acontece sempre que as provas legais negativas resultarem de uma medida de cautela do legislador, adotada ponderada e restritamente, em observância às regras retiradas da experiência ordinária.

A exigência do exame de corpo de delito, estatuída no artigo 158 do Código de Processo Penal, para reconhecimento do fato típico que deixa vestígios, serve de exemplo de prova legal negativa. Sem o exame de corpo de delito, em regra, o juiz não poderá reconhecer o fato típico e sequer poderá afirmar o vínculo de causalidade.227

O princípio acusatório é um princípio de garantia e, pois, não pode ser incompatível com uma regra também de garantia, extraída da incontestável comprovação da falibilidade humana.

Na projeção da divisão de poderes do Estado, no processo penal, típica do princípio democrático, conformador do acusatório, enquanto ao juiz cabe julgar, isto é, apresentar imperativamente a solução do caso penal, e ao executivo deduzir a pretensão condenatória ou encarregar-se da investigação criminal, ao legislador incumbe prover as regras de garantia que viabilizem o justo processo.

Neste equilíbrio que tantos vezes é precário, a previsão legal de determinado tipo de prova para a proclamação do veredicto condenatório é perfeitamente assimilável, assim como é aceitável a proibição, em tese, da aquisição e ingresso, no processo, de determinados meios de prova, em alusão a princípios éticos.

B. Da Alteração dos Fatos

226 Gomes Filho, Antonio Magalhães. O Direito à Prova no Processo Penal,

pp. 32-33. 227

O artigo 167 do Código de Processo Penal prevê, excepcionalmente, a possibilidade de suprir a ausência do exame por prova testemunhal, em virtude de haver desaparecido os vestígios. De toda maneira, em nenhuma hipótese será aceita a confissão do acusado para suprir a ausência do citado exame.

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Para finalizarmos a abordagem relativa ao estatuto do juiz, de conformidade com o princípio acusatório, é necessário ainda enfrentarmos dois pontos nevrálgicos: a convicção fundada sobre a qualificação jurídica da infração penal; e, conseqüentemente, o arbitramento motivado da correspondente sanção.

Trata-se, dito de outra maneira, do princípio da congruência ou da correlação entre acusação e sentença.228Pode o juiz, validamente, condenar o réu por fato distinto daquele que é imputado na denúncia ou queixa?

É básico o princípio jura novit curia, em vista do qual o juiz certamente pode resolver a questão de mérito de acordo com a qualificação jurídica que estime mais ajustada aos fatos provados.

Porém, em se tratando de processo penal condenatório, cabem alguns cuidados, em vista do fim de evitação de prejuízo ao exercício da defesa e, principalmente, com o objetivo de preservar a dinâmica dialética, pela qual às partes incumbe a apresentação de tese e antítese e ao juiz, como coroamento do processo, a produção da síntese ou a escolha da tese que reputa mais acertada.

Enrique Ruiz Vadillo assinala o seguinte:229

Es imprescindible que entre el objeto de la acusación y el qui sirve de soporte a la condena haya homogeneidad. La razón de la exigencia es la misma: la proscripción de toda indefensión. Son todas ellas manifestaciones del mismo principio. Si

228 Sobre o tema, além dos textos adiante referidos, cumpre examinar duas

obras de inequívoco valor: Contributo alla Teoria della Sentenza Istrutoria Penale, de Pietro Nuvolone, Padova: Cedam, 1969; e ―La Correlazione fra Accusa e Sentenza nel Processo Penale‖, de Giuseppe Bettiol, in Scritti Giuridici, tomo I, Padova: Cedam, 1966. No direito brasileiro há também os extraordinários trabalhos: A Sentença incongruente no processo penal, de Diogo Malan (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003) e Correlação entre acusação e sentença, de Gustavo Badaró (São Paulo, RT, 2000).

229 Vadillo, Enrique Ruiz. El Principio Acusatorio y su Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y Tribunal Supremo, p. 27.

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alguien es acusado de hurto y de este delito se defiende, si se encuentra, después, com una condena por coacciones, aunque la pena sea inferior y hasta le pueda producir satisfacción espiritual el cambio del título de imputación, por tener este último una menor carga de reproche social, no cabe duda de que há quedado indefenso porque frente a esse delito de coacciones no se há podido defender de una manera eficaz.

Como mencionamos, ao aludirmos ao estatuto jurídico

do autor, uma das suas facetas mais importantes está em determinar o objeto do processo, em relação ao qual serão deduzidas as provas e haverá de se circunscrever a sentença.

Trata-se de exercício da função de acusar, pois fundada em um juízo provisório da existência de determinada infração penal (a existência de justa causa), coloca-se ao réu a infração que se lhe imputa, no plano duelístico peculiar à relação processual.

É exatamente isso, ou, com outras palavras, cuida-se aqui do fenômeno da imputação, ao qual em um processo penal democrático há de corresponder a atividade de defesa, por força das garantias das convenções internacionais. Assim, quando por exemplo o Ministério Público atribui ao réu a prática de determinado furto, imputando-lhe esse furto, permite que o réu se defenda dessa imputação. O acusado pode confiar na eficiência da defesa, pois sabe que é o acusador que lhe imputa o delito e não o juiz.

Também Grau, na linha de pensamento aduzida por Vadillo, concorda que, com independência de suas mais ou menos amplas faculdades de modificar a qualificação jurídica do fato, não pode o Tribunal alterar o objeto do processo, nem, e isto é sumamente importante, condenar por fatos de que o acusado não tenha podido defender-se.230

Caso seja admitida a alteração substancial dos fatos, por iniciativa do tribunal, ainda quando seja dada oportunidade 230 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 43.

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ao contraditório, do ponto de vista psicológico sem dúvida estará sensivelmente diminuída a possibilidade de o acusado se defender de verdade. A partir do exemplo anterior, podemos imaginar como deve se sentir o acusado ao saber que é o juiz que lhe imputa o crime de furto.

A alteração da acusação equivale à alteração do pedido e da causa de pedir da ação penal, caso se queira trabalhar com categorias herdadas do processo civil, e a implementação da alteração da acusação representa modificação de elementos capitais da ação, direito do autor. Ao fazê-lo, isto é, ao se permitir que o juiz altere o teor da acusação, na verdade o que ocorre é que se admite que o juiz revolva a substância do direito da parte, que não lhe pertence. Voltando ao exemplo anterior, podemos imaginar a posição do acusado diante do quadro criado por uma acusação do Ministério Público por receptação, transformada em acusação de furto pelo juiz.

Um contraditório porventura instaurado nestes termos é irreal, pois não há reação possível se o ato de conformação da acusação não parte do adversário mas do julgador, ou, de outra maneira, se o julgador se transforma em adversário. De que adiantará ao réu receber os autos do processo por oito dias para falar e, se quiser, poduzir provas (artigo 384, caput, do Código de Processo Penal brasileiro) se está evidente que será condenado por furto?

Assinale-se com isso que não se trata de retornar ao tempo da teoria da individualização da causa de pedir, superada nesta quadra do desenvolvimento do processo penal pela teoria da substanciação.231 Em termos gerais, contudo, podemos aduzir que se a identificação da causa de pedir, base da pretensão, está determinada pelo suposto de fato, tal seja, pelo elemento fático invocado, a realidade é que tal elemento só tem relevância no processo penal na medida em que está abrigado em uma moldura normativa definida (tipo penal de crime) e vem descrito, com seus elementos e circunstâncias, no ato formal de acusação, como exige o 231 Mellado, ob. cit., p. 39.

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artigo 41 do Código de Processo Penal brasileiro. Conforme o caso, matar alguém é crime ou não e poderá caracterizar ação dolosa ou culposa. Não são irrelevantes as distinções (homicídio doloso, culposo, latrocínio, indiferente penal por culpa exclusiva da vítima etc.).

Ao juiz caberá, de acordo com o princípio tantas vezes aludido — jura novit curia —, a dicção do direito aplicável à espécie. Assim, ao reconhecer que o fato provado é diverso daquele imputado ao réu pelo acusador, o juiz não poderá proferir decisão condenatória. Não é possível tomar o lugar do juiz nesta tarefa de reconhecer o direito que regula a situação concreta.

O juiz não poderá, entretanto, levar em consideração suposto de fato, ainda que verdadeiro, diferente daquele posto em causa pela acusação, nem tampouco deverá propor qualificação jurídica distinta daquela apresentada pelo autor da ação penal se isso significar surpresa para a defesa em razão das peculiaridades do processo penal, como é o caso do concurso aparente de normas (de tipos penais coexistentes), para cuja solução nem sempre doutrina e jurisprudência estão pacificadas.232

Podemos acentuar que o princípio da substanciação no processo penal é mitigado, em face do princípio da ampla defesa.

Apenas critérios de obrigatoriedade da ação penal, de economia processual e da necessidade de reafirmação do poder do Estado frente à criminalidade, os dois últimos tipicamente decorrentes do princípio inquisitório, que

232

Pela atual redação o artigo 383 do Código de Processo Penal brasileiro permite que o juiz atribua nova qualificação jurídica ao fato imputado ao réu, para corrigir erro de qualificação, ainda que em razão disso venha a aplicar pena mais grave. É a denominada emendatio libelli, descrita nestes termos: Art. 383. O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. Com essa redação e a pretexto de corrigir erro de qualificação da denúncia, o juiz poderá, por exemplo, reconhecer o concurso material entre o crime de falso e o de estelionato, quando o Ministério Público imputou somente o de estelionato em virtude de entender que este crime absorveu o falso (crime fim absorvendo o crime meio). E tudo isso sem a audiência prévia do réu.

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repudiamos, conferirão suporte a atitudes do tipo que autoriza o juiz, de ofício, a proceder à modificação da causa de pedir.

Em percuciente análise acerca da correlação entre acusação e sentença, no direito brasileiro, Diogo Malan talvez seja hoje o único autor a chamar atenção para a permanência inquisitorial embutida no Código de Processo Penal de 1941, nesta área específica e para a política de segurança pública que ela expressa.

Assinala Malan: ―O golpe de Estado de 1937 foi justificado pela necessidade de se reforçar a autoridade governamental, garantindo-se a ordem pública, a legalidade e as instituições sociais – em meio a uma conjuntura de crise de autoridade, causada pelas tensões sociais: a autoridade nacional pressupõe uma ordem una e orgânica, e o princípio da autoridade é reforçado como um pilar em torno do qual se constrói a nacionalidade‖.233 Acrescenta Malan: ―As ferramentas que serviram a essa restauração da autoridade estatal foram o estado de guerra, o Tribunal de Segurança Nacional, a reforma da Lei de Segurança Nacional e o próprio Digesto Processual Penal: o terreno da lei surge, assim, como um espaço privilegiado para a racionalização da autoridade e para a ocultação do discurso da violência, uma vez que este utiliza a linguagem da ordem e da lei‖.234 Ora, quando ocorre de o processo penal assumir as

prerrogativas de Estatuto de Segurança Pública, no lugar de Código de implementação de garantias constitucionais, o processo se afasta, naturalmente, do leito seguro e democrático de um processo de partes, conforme o princípio

233

MALAN, Diogo Rudge. A Sentença..., op. cit., p. 4. 234

Idem.

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acusatório, pelo qual responsavelmente o autor avalia e ajuíza a sua pretensão, consoante a compreensão que detém da qualificação jurídica dos fatos provados.

Supor que o Ministério Público não saiba qualificar juridicamente os fatos apurados no inquérito policial é estar em rota de colisão com a realidade. Eventuais erros materiais podem ser corrigidos pelo juiz, ouvido o acusador e o réu. Pontos de vista diferentes sobre a qualificação jurídica, porém, não podem ser impostos ao acusador, sob pena de o juiz tomar o lugar dele.

É razoável que se possibilite ao acusador modificar, em face das provas surgidas durante a audiência, a qualificação jurídica do fato, quer reconhecendo outro mais grave, quer reconhecendo outro de igual ou menor gravidade que o original. Porém, admitir que o juiz o faça afronta o princípio acusatório, o que não é aceitável, mas se admite, quando muito, em uma medida de preservação das garantias do acusado, modificando-se a qualificação jurídica do fato para outra, que corresponda à infração de igual ou menor gravidade.

São, contudo, condições sine qua non de validade da alteração que o fato novo esteja descrito na acusação inicial (ou no chamado aditamento), portanto deve estar contido nela com todas as suas circunstâncias, e à defesa deve ser oferecida oportunidade de debater e, eventualmente, se entender o defensor necessário, produzir provas, para que somente então seja proferido decreto condenatório. A desclassificação de roubo para furto, por exemplo, será possível porque o fato furto está contido no roubo. Não será possível, porém, reconhecer uma qualificadora do furto não descrita de forma expressa na denúncia por roubo.

O ideal, conforme o princípio acusatório, é que apenas ao autor seja permitido alterar a qualificação jurídica do fato, em qualquer hipótese. Se o acusador persistir na posição original, com a qual o juiz não concorda, cabe a este absolver o acusado, o que não impediria o processo pelo fato realmente verificado, já que este não foi objeto de deliberação, com força de coisa julgada.

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Aqui, entretanto, mudamos nossa opinião em relação às duas edições antecedentes do Sistema Acusatório. No início defendíamos que não afetava a hipótese o princípio da proibição de bis in idem235 porque o fato julgado, independentemente da qualificação jurídica que as partes lhe atribuam, é diferente do fato real, revelado ao longo do processo.

Não é bem assim, A regra é que ninguém será processado duas vezes pelo mesmo fato. A exceção em termos de garantia em prol do acusado só pode favorecer o acusado. Assim, independentemente de o fato real ser reconduzido de alguma forma ao tipo de crime expressado na causa de pedir da ação penal deduzida no processo concluído, numa relação qualquer de continente a conteúdo (como no exemplo de furto e roubo, em que o furto está contido no roubo), o segundo processo está proibido.

A oportunidade de a acusação demonstrar o fato sobre o qual funda a sua pretensão é única. De acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto n. 678/92) ou o acusador demostra a correção da sua pretensão ou não poderá mais processar o réu.

Assim ocorre, segundo defendemos, como conseqüência das implicações políticas e jurídicas do princípio do favor rei, atuando como obstáculo aos abusos que inevitavelmente poderiam advir da divergência de juízos entre o acusador e o julgador.

Em conclusão, diga-se também que mesmo o simples ajustamento da qualificação jurídica da infração penal, em obediência ao princípio jura novit curia, ainda quando a petição inicial acusatória descreva minuciosamente o fato, haverá de ser promovido antes da emissão da sentença, assim como as partes têm de ser provocadas para se manifestarem sobre circunstâncias que agravam ou diminuem a pena, tornando a matéria alvo do debate contraditório, que é o núcleo fundamental da máxima

235 Ver artigo 8º, nº 4, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos -

Decreto nº 678/92.

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acusatoriedade.236 Na Espanha, decidiu o Tribunal Constitucional, sobre o

assunto, da seguinte forma: Correspondiendo, ante todo, al Tribunal la

calificación jurídica de tales hechos en virtud del principio iura novit curia, sin que pese a ello esa calificación sea aleja al debate contradictorio, el cual recae no sólo sobre los hechos, sino también sobre su calificación jurídica. (STC. 105/1993, de 23 de novembro de 1993)237

Em Portugal, onde há constitucional previsão da adoção

do sistema acusatório, a disciplina da alteração substancial dos fatos está condicionada à seguinte máxima: Para além da introdução do facto em juízo, à acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo, é ela que delimita o conjunto dos factos que se entenderem consubstanciarem um crime.238 Assim, há para

236

O artigo 385 do Código de Processo Penal brasileiro dispensa a audiência prévia da defesa e da acusação nos casos em que o juiz reconhece agravantes não alegadas pelo autor da ação penal. Isso também viola o princípio acusatório. 237 Grau, Joan Vergé. La Defensa del Imputado, p. 121. Enrique Ruiz Vadillo

também, por sua vez, traz à luz decisão do Tribunal Superior Espanhol, proferida em 28 de setembro de 1989, cujos termos são, literalmente, os seguintes: No se puede penar un delito más grave que el que haya sido objeto de acusación; No se puedem castigar infracciones que no hayan sido objeto de acusación; No se puede considerar un delito distinto del que fue objeto de acusación, aunque las penas sean iguales o incluso cuando la correspondiente al delito innovado sea inferior a la del delito objeto de acusación a menos que reine entre ellos una patente y acusada homogeneidad; No puedem apreciarse circunstancias agravantes o subtipos penales que no hayam sido invocados por la acusación... (El Principio Acusatorio y su Proyeccion en la Doctrina Jurisprudencial del Tribunal Constitucional y Tribunal Supremo, pp. 33-34). Acrescenta este último que o processo penal é um tríptico, sendo imprescindível que exista um acusador, um acusado e um juiz, o qual não pode ocupar outra posição que não seja a de julgar, porque, de outro modo, estará sendo, ao mesmo tempo, acusador e juiz.

238 Isasca, Frederico. Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Coimbra: Almedina, 1992, p. 54.

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o juiz limitação temática, traçando-se as fronteiras da pesquisa das provas. A ampliação da acusação, como registramos, demanda a iniciativa do acusador e, a partir de determinada etapa do processo, consentimento do próprio réu em se ver processado conforme a alteração, dando origem ao chamado caso julgado de consenso.239

O foco no poder de definição do crime imputado ao réu e o tratamento dispensado à matéria pelo Código de Processo Penal brasileiro de 1941, inspirado no Código Rocco, demonstram que a manipulação das funções processuais para atribuir ao juiz atividade de parte autora, com independência da gestão da prova, encarna a política criminal da inquisitorialidade.

A gestão das provas nas mãos do juiz também caracteriza a inquisitorialidade. E é assim porque deduzir provas e deduzir a acusação são comportamentos processuais das partes que se movem no processo motivadas por interesses distintos do interesse do juiz. Este é ditado pela imparcialidade e a presunção de inocência atua como princípio constitucional de controle dessa imparcialidade. Modificar o teor da acusação e produzir provas de ofício são atividades que, em suma, atentam contra a presunção de inocência.240

239 Isasca, Frederico. Ob. cit., p. 59. 240

Comissão instituída no âmbito do Miistério da Justiça, mediante Aviso n. 1.151, de 29 de outubro de 1999, presidida por Ada Pellegrini Grinover, apresentou diversos anteprojetos de reforma do Código de Processo Penal brasileiro. Entre eles está o que se transformou no Projeto de Lei n. 4.207/01, que cuida da emendatio libelli e da mutatio libelli, respectivamente previstas nos artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal. Para adequar os citados dispositivos legais ao princípio acusatório estes passaram a ter a seguinte redação: Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. § 1º. As partes, todavia, deverão ser intimadas da nova definição jurídica do fato antes de prolatada a sentença. §2º. A providência prevista no caput deste artigo poderá ser adotada pelo juiz no recebimento da denúncia ou queixa. §3º. Se, em conseqüência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. §4º. Tratando-se de infração da competência do Juizado Especial Criminal, a este

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De tudo quanto foi exposto, acredita-se tenhamos abordado os elementos que emolduram o princípio acusatório, quer avaliado na estática observação das funções primordiais no processo, quer em vista da dinâmica determinada pelas relações sucessivas e ordenadas entre os principais sujeitos: autor, réu e juiz.

Cabe, do que foi referido, mencionar que a presença, no ordenamento jurídico, do princípio acusatório, é fundamental para a constituição do sistema acusatório, mas não suficiente.

Os clássicos autores, citados na introdução deste item, tiveram, a nosso juízo, a lucidez de perceber que o princípio democrático projetado no processo penal não se esgota, tão-somente, no modo como os sujeitos processuais se portam, em relação à lide ou ao caso penal. É indispensável, também, estabelecer um estatuto do próprio processo, concernente à forma como aparece perante a sociedade, na qualidade de instrumento legítimo de solução deste caso.

Nesta hipótese, as normas e princípios sobre a forma processual estão reciprocamente vinculados ao modelo de processo penal democrático, apenas uma das variáveis possíveis, mas aquela escolhida politicamente para ser implementada. Aí entram em jogo a oralidade e a publicidade.

3.2.3. CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA ACUSATÓRIO

serão encaminhados os autos. Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público poderá aditar a denúncia ou queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento quando feito oralmente. §1º. Ouvido o defensor do acusado e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de qualquer das partes, designará dia e hora para a continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento. §2º. Aplicam-se ao previsto no caput deste artigo as disposições dos §§ 3º e 4º do art. 383. §3º. Havendo aditamento, cada parte poderá arrolar até três testemunhas, no prazo de três dias. §4º. Não recebido o aditamento, a audiência prosseguirá.

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Com efeito, Ferrajoli destaca que a oposição dicotômica

entre acusatório e inquisitório implica em designar uma dupla alternativa: de um lado, modelos opostos de organização judicial; de outro, métodos diferentes de averiguação judicial.

Do primeiro ponto defluem distintas concepções de juiz penal, enquanto do segundo dimanam dois tipos diversos de juízos.241 Na seqüência, adverte o doutrinador que se pode chamar acusatório a todo sistema processual que concebe o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o juízo como uma contenda entre iguais iniciada pela acusação, a quem compete o ônus da prova, enfrentada a defesa em um juízo contraditório, oral e público e resolvida pelo juiz segundo sua livre convicção.

A organização da Justiça Criminal, portanto, configura o ambiente em que o processo será instaurado e se desenvolverá. E as estruturas processuais terminam contaminadas pelas modernas burocracias em que se constituem os Poderes Judiciários atuais, de tal modo que a Justiça Criminal será mais ou menos acusatória, com independência da previsão legal do princípio da tripartição de funções, conforme forem mais ou menos favoráveis a isso as próprias burocracias estatais.

O princípio acusatório não sobrevive em modelos de Justiça Criminal dominados pela escrituração. Tampouco tem espaço em processos sigilosos.

É isso que será examinado nos itens subseqüentes.

3.2.3.1. Da Oralidade Na lição clássica de Francisco Morato,242 compreende-

se por oralidade a forma procedimental em virtude da qual estão reunidos os seguintes caracteres:

241 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 564. 242 Morato, Francisco. ―A Oralidade‖, in Processo Oral, Rio de Janeiro:

Forense, 1940, pp. 1-24.

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• a predominância da palavra falada; • a imediatidade da relação do juiz com as partes e com os meios de prova; • a identidade física do órgão judicante em todo decorrer do processo; • a concentração da causa no tempo.

Não se concebe procedimento penal no curso do qual

atos de instrução criminal, tal seja, de aquisição e conservação das provas e de debates sobre o material incorporado, para o fim de conformação da convicção judicial, desdobrem-se no tempo, distantes uns dos outros e praticados perante diferentes juízes.

Desde o interrogatório do acusado, nas hipóteses legais em que esteja previsto, até a audiência das razões finais das partes, a concentração dos atos processuais é imperativo de bom senso e de respeito ao direito ao julgamento justo, o que demanda, dadas as peculiaridades da expressão oral, fundamente o juiz sua decisão sobre aquilo com o que diretamente teve contato.

Deve ser salientado que não é necessário que a sentença seja proferida oralmente, desde que seus fundamentos tenham decorrido da força do contato imediato com as provas, que vão impregnar o raciocínio judicial. Nem tampouco se dispensa a documentação dos atos praticados. Porém, o que é virtualmente da natureza do sistema acusatório, como proposição de uma estrutura voltada à efetivação do justo processo, é que, consoante há mais de cinqüenta anos afirmava Chiovenda, a audiência seja utilizada para o trato da causa.243

Lúcio Bittencourt advertia com precisão que livre convencimento sem processo oral é pura ficção.244

243 Chiovenda, Giuseppe. ―A Oralidade e a Prova‖, in Processo Oral, Rio de

Janeiro: Forense, 1940, pp. 1-24 e 129-149. 244 Lúcio Bittencourt apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito

Processual Penal, vol. I, p. 73.

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Há que se considerar também, como faz Hassemer,245 que o caráter do processo penal reflete com grande clareza a racionalidade de uma cultura jurídica e a discussão política acerca das posições jurídicas na produção do caso e na preparação da sentença,246 postulado fundamental em nosso pensamento a respeito do sistema acusatório. O processo penal tem caráter histórico e político.

Este tipo de processo se orienta em direção a uma espécie de procedimento que assegure a máxima contraposição dialética, sem perder de vista a noção básica de que não há dialética sem possibilidade de diálogo (dia: reciprocidade; logos: razão). E o diálogo pressupõe a compreensão do caso e das posições que os sujeitos processuais legitimamente devem ocupar, assim como a existência de um espaço onde possa ser travado.

Explicando: a ênfase na oralidade como componente democrática do processo penal e elemento constitutivo do sistema acusatório tem a ver com o reconhecimento de que os métodos de aplicação do direito, ou melhor, de interpretação das regras jurídicas e de sua efetiva aplicação aos casos concretos, não abrangem toda a atividade intelectual do juiz quando sentencia.

Os que conhecem a atividade de decidir têm clara a idéia de que a valoração dos fatos pelo juiz não se expressa de forma completa na sentença. Novamente recorrendo a Hassemer, vale dizer que haverá sempre uma parte de dita valoração que permanece oculta, que fica no âmbito da CONVICÇÃO ÍNTIMA.247 Nem mesmo o dever de motivação das decisões tem o poder de fazer revelar todas as forças que combinaram para levar o julgador a adotar determinada tese.

Mais do que isso, na constituição da conclusão a propósito da existência da infração penal e da responsabilidade do imputado há a tendência de o juiz levar

245 Hassemer, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, Barcelona: Bosch,

1984. 246 Ob. cit., p. 172, tradução livre. 247 Hassemer, Winfried. Ob. cit., p. 145.

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em conta as impressões registradas por ele durante o processo, formando sua convicção com base nelas, mas explicitando-a por meio de referência a métodos de interpretação — gramatical, histórica, teleológica ou sistemática — que em verdade servem apenas para expor racionalmente a própria conclusão, definida com anterioridade.

Os que têm experiência forense sabem que não raramente as partes acreditam, em virtude do modo como o juiz dirige a audiência, que determinado tipo de prova está exercendo significativa influência na formação da convicção do julgador e acabam se surpreendendo quando leêm a sentença e descobrem que para o juiz a prova decisiva era outra, sobre a qual as partes não perceberam qualquer espécie de atenção diferenciada. Isso ocorre quando o mesmo juiz preside o processo do início ao fim e é ainda mais grave e perigoso quando são diferentes juízes, cada qual participando de uma etapa processual, os responsáveis pela aquisição e ingresso da prova no processo e por sua avaliação definitiva.

Daí Hassemer distinguir, a nosso juízo com razão, entre os métodos de produção e de apresentação do resultado do processo, relacionando as chamadas técnicas de interpretação ao último caso.248

Para que a análise dos casos penais não se perca em um círculo de interpretação de textos — dos textos que registram, nem sempre fielmente, os depoimentos das testemunhas, aos das razões das partes e da sentença — é indispensável que o diálogo processual tenha lugar em um ambiente apropriado, no qual as provas sejam produzidas, as partes possam debater livremente e o juiz decida compreendendo na maior e melhor dimensão possível o que provavelmente aconteceu.

A interpretação de textos será sempre atribuição de significados pelo intérprete; no entanto, como sublinha Lage,

248 Hassemer, Winfried. Ob cit., p. 148.

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todo texto implica versões ou teorias sobre os fatos,249 razão por que não existe texto descomprometido, o que em processo penal pode constituir veículo de injustiças e de perseguição política, social ou econômica.

A oralidade deixa de ser, exclusivamente, uma questão de predominância da palavra falada para se constituir em exigência de que uma causa não seja decidida por juiz que não haja tido contato direto com as provas e com os argumentos das partes, em um ambiente capaz de proporcionar condições ideais de diálogo.

Conseqüência do que está assinalado é que, além da natural identidade física do juiz, o julgamento dos recursos deve ficar restrito ao conhecimento de matéria exclusivamente jurídica, a não ser que seja permitido às partes desenvolver atividade probatória em segundo grau de jurisdição; ademais, o emprego das modernas tecnologias de comunicação terá de considerar a possibilidade de o juiz, destinatário das provas, ouvir, pessoalmente, as testemunhas mas não se deve aceitar que a inquirição delas, do réu ou mesmo que toda audiência tenha lugar em um ambiente hostil à liberdade de todos os envolvidos.

O Tribunal Constitucional Espanhol, na sentença 96/1987, decidiu que o vínculo entre o Estado de Direito e a exigência de imparcialidade do julgador impunha a declaração de nulidade de julgamento levado a cabo em prisão de segurança máxima, onde supostamente foram cometidas pelos funcionários as agressões contra os detidos.250

Não custa lembrar, com María Josefina Martinez, que a tensão entre forma escrita e oral do processo penal foi resolvida no século passado (Séc. XX), em favor da forma escrita, porque os autos do processo (registro escrito dos atos processuais) tornaram-se espécie de ―produto direto‖ da

249 Lage, Nilson. Controle da Opinião Pública, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 103. 250 López Ortega, ob. cit., p. 87.

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tradição burocrática do Estado moderno.251 A admissão de que a forma oral faz diferença – e não é

mero capricho da moderna doutrina do processo penal -, está ditada pela compreensão da ideologia que orientou a escrituração no início do Séc. XX.

Com efeito, como bem ressaltou Josefina Martinez, a forma escrita foi implementada como resultado do reconhecimento da superioridade da razão. A suprema capacidade humana de compreender a sua existência e perceber as leis da natureza que a regem refletia a postura científica positivista dominante no início do século passado. Quebrar as amarras com o divino (com suposta ordem natural emanada de Deus) e descobrir fórmulas racionais de regulação de todos os fenômenos passou a ser a obsessão daqueles tempos.

O governo dos homens também haveria de ser orientado pela racionalidade e as burocracias deveriam exprimir esse domínio da razão em todas as etapas da gestão pública dos conflitos.

Paradoxalmente, a realidade é que em termos de processo penal a burocracia da Inquisição fora a primeira a se instalar na Europa, muito antes do sucesso do positivismo e do direito natural fundado na razão. E a funcionalidade da burocracia do Sistema de Justiça Criminal da inquisição, com a previsão de seus recursos de ofício e a forma escrita dos atos processuais, revelara-se eficiente mecanismo de controle social.252

Assim, apesar de um primeiro momento de Reformas Processuais ter-se voltado à oralidade,253 o século XIX e o XX

251

JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, in: Sistemas Judiciales, Ano 4, n. 7, Buenos Aires, Centro de Estudios de Justicia de las Americas – CEJA, 2004, p. 4. 252

MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal. I. Fundamentos., Buenos Aires, Editores del Puerto, 2002, p.261. 253

Vale a pena acompanhar a resenha de Franco Cordero acerca do desaparecimento e da reencarnação da Ordenação Criminal francesa de 26 de agosto de 1670, eliminada entre 1790 e 1800 e ressurgida dos debates

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viram florescer os processos penais da matriz européia continental (de que o nosso Código de Processo Penal de 1941 é herdeiro direto) construídos em cima de estruturas burocráticas da inquisição.

Como foi dito, a forma escrita subtrai o contato do juiz com acusado e testemunhas. Incensada pelo culto à razão, faz supor que este contato é desnecessário: afinal, o que a visão direta da audiência pode ministrar que já não esteja nos autos?! O que não está nos autos não está no mundo!

O mesmo poder de dominação que a Justiça Eclesiástica exercia por meio da Inquisição, em um mundo de poucos letrados e multidões de analfabetos, passou a ser exercido pelos órgãos do Estado, que manejavam (manejam) a linguagem técnica do Direito (e ainda mais técnica dos autos) para impor o Poder do Estado ao ditar decisões penais.

Novo paradoxo: ninguém poderá escusar-se de cumprir a lei por alegar ignorância, desconhecimento da lei! Ainda que seja analfabeto. Todavia, as fórmulas escritas dos procedimentos penais estão acessíveis a poucos! Como controlar o conteúdo de justiça da sentença penal se não se compreende os termos da sentença fora do linguajar técnico-jurídico? E, também e mais importante, como participar do ―diálogo‖ processual se a maioria das intervenções no processo é escrita e, por isso, essas intervenções exigem habilidade especial de que só advogados, Ministério Público e juízes são dotados?

A oralidade converte-se em condição de participação efetiva no processo. Sem a mediação da forma escrita o acusado poderá se fazer ouvir, a vítima e as testemunhas também, e as decisões não terão como se ocultar em linguagens estranhas à vida cotidiana.

Neste ponto percebe-se que oralidade não é mera questão de forma. A matriz acusatória depende dela para definir os papéis concretos exercitados pelos sujeitos

legislativos, na forma do Código de Instrução Criminal de 1808. CORDERO, Franco. Procedimiento..., op. cit., p. 26-59.

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processuais. A defesa oral, na frente do réu, exige que o defensor demonstre conhecimento da causa e se empenhe em busca do resultado mais favorável ao acusado. Não bastam reiterações de manifestações escritas anteriores. Da mesma maneira a acusação deverá se posicionar sobre a prova. E o juiz exporá as razões de sua decisão. A troca de papéis (mutatio libelli) entre acusação e juiz é bastante dificultada.

É bem verdade que a cultura autoritária, legado da Inquisição, produz suas permanências. Assim, é válida a advertência de Josefina Martinez quanto à tendência de transformar os processos orais criados com as Reformas na América Latina em processos escritos, na prática, com a recolocação da escrituração no centro mediante recurso a apresentação de memoriais após as audiências.254 O cuidado está em não permitir que isso signifique a renovação da centralidade da escrituração, com todos os defeitos acima enunciados, preservando-se a identidade física do juiz e o pronunciamento fundamentado das partes.

Meios mecânicos ou eletrônicos de registro fiel das intervenções de partes e testemunhas contribuirão, por certo, para a adoção da filosofia da oralidade.

3.2.3.2. Da Publicidade

A publicidade também se insinua como característica do

sistema acusatório, na medida em que o segredo, como ficou assentado em outra passagem, é compatível, como regra geral, exclusivamente com regimes autoritários e processos penais inquisitórios.

I. DA PUBLICIDADE TRADICIONAL

Cumpre dizer, em abono ao acima mencionado, que a

publicidade tanto pode ser analisada como decorrência da

254

JOSEFINA MARTÍNEZ, María. Expedientes, op. cit., p. 6.

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necessidade de participação do público na gestão da coisa pública, inclusive, evidentemente, na gestão das decisões judiciais sobre os casos penais, como pode ser vista na condição de dar ao público, na qualidade de espectador, satisfação a respeito da maneira como os agentes do Estado exercem as suas funções.

Neste último caso, frisa com seguro fundamento Vicente Greco Filho, atende a publicidade à função de garantia das outras garantias, inclusive da reta aplicação da lei,255 por cujo meio podem os cidadãos controlar, de forma adequada, o cumprimento da exigência de respeito aos direitos básicos, além da moralidade e impessoalidade da ação estatal. Sem perigo inaceitável para o sistema, a publicidade fica limitada somente nas situações pertinentes à preservação de outros direitos fundamentais, por meio da coordenação do exercício de tais direitos, de acordo com o princípio da proporcionalidade.

Justamente em virtude das restrições designadas expressamente na Constituição da República de 1988, classifica-se em publicidade para as partes e em geral e, sob outro aspecto, em imediata e mediata, definindo-se a publicidade interna como orientada com exclusividade às partes.256

A eleição da publicidade como elemento comum e permanente do processo permite-nos chegar à conclusão de que, contemporaneamente, o próprio processo pode ser definido como procedimento público em contraditório. Reduzida a publicidade, fora dos casos expressamente previstos nas Constituições e nas leis (no Brasil, na Constituição da República), os atos processuais não estarão aptos a produzir efeitos jurídicos, sendo, por isso, inválidos.

De acordo com o magistério de López Ortega, a publicidade para as partes, ou interna, significa que todos os

255 Greco Filho, Vicente. Tutela Constitucional das Liberdades, São Paulo:

Saraiva, 1989, p. 113. 256 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. 1, p.

75.

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atos processuais das partes, do juiz e dos demais sujeitos deverão ser conhecidos na totalidade e tempestivamente pela parte adversa,257 razão por que defende que este modelo de publicidade está ligado ao princípio do contraditório.

É evidente que os atos de investigação criminal (inquérito policial e outros) dependerão, na maioria das vezes, da preservação do sigilo para que conduzam a resultados positivos. Pode-se dizer, então, que estes atos, embora procedimentais e sujeitos ao princípio da legalidade, não têm valor processual, não são atos processuais, e, independentemente de passarem pelo filtro do contraditório, nunca estarão dotados da aptidão para produzir efeitos jurídicos. Todavia, no curso da investigação preliminar, atos processuais de natureza cautelar poderão ser necessários e deverão ser praticados. Neste caso, a publicidade interna funciona como referimos anteriormente, ao tratarmos da Defesa, de forma diferida, muito embora não se possa recusar à Defesa acesso às informações porventura obtidas e aos procedimentos adotados por ordem judicial.

Em perspectiva parecida colocam-se as questões dos procedimentos híbridos, que não são exclusivamente investigação criminal (etapa de preparação para o exercício da ação penal) e também não são processos penais em sua inteireza, pois nem sempre estão munidos de eficácia jurídica para dar ensejo a soluções de mérito definitivas, capazes de submeter decisões à qualidade de coisa julgada material.

No Brasil, temos o termo circunstanciado, previsto no artigo 69 da Lei no 9.099/95, que substitui o inquérito policial em relação às chamadas infrações penais de menor potencial ofensivo. Trata-se, sem dúvida, de modalidade de investigação criminal cuja instauração define a priori quem é o investigado e quem é o suposto ofendido, de sorte a estabelecer posições processuais que serão importantes conforme o desenrolar do procedimento.

A rigor, como procedimento de investigação, o termo 257 López Ortega, ob. cit., p. 41.

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circunstanciado deveria estar protegido pelo sigilo peculiar a toda investigação criminal. No entanto, as regras dos artigos 74, 75 e 76 da Lei, prescrevendo a possibilidade de o investigado, do ofendido e do Ministério Público chegarem a acordo sobre a composição do conflito em torno de infração penal de menor potencial ofensivo, transação a ser homologada por sentença, gera a necessidade de dotar estes procedimentos do mesmo tipo de publicidade que acompanha os processos penais tradicionais.

De outra maneira, estaríamos subtraindo do público os mecanismos de solução destes conflitos de interesses, cuja solução, em que pese não importar em aplicação de pena privativa de liberdade, poderá representar frustração aos princípios de moralidade, legalidade e impessoalidade.

Convém ressaltar que no caso brasileiro a Emenda Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004, modificou a redação do artigo 93, inciso IX, da Constituição da República, no trecho em que trata do sigilo.

A redação original era a seguinte: Art. 93. [...] IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder

Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes.

Este dispositivo está em harmonia com o artigo 5º, inciso LX, da Constituição da República brasileira, que não foi alterado pela referida Emenda:

Art. 5º. [...] LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos

processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.

Pela nova redação, trazida pela Emenda 45, o artigo 93, inciso IX, da Constituição da República brasileira passa a ter a seguinte redação:

IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a

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presença, em determinados atos, às próprias partes e seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

Em nossa opinião, a mudança do dispositivo constitucional há de ser interpretada com todo cuidado. A regra permanece sendo a publicidade dos atos processuais. A exceção não pode prejudicar o direito de defesa a ponto de inviabilizá-lo. Portanto, a cláusula ―em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação‖ há de ser interpretada como exigência de ponderação dos interesses em jogo, com prevalência do interesse público à informação. Somente quando o predomínio deste interesse público transformar-se em causa de dano à honra, imagem ou qualquer outro direito protegido por estar inserido na esfera de intimidade da pessoa afetada (que, por exemplo, pode ser a vítima do processo), caberá ao juiz, fundamentadamente, restringir o sigilo.

Não será possível inverter a regra de tutela prevista na Constituição para restringir sempre a publicidade e limitar os casos de presença do acusado em sala de audiências, e somente em casos excepcionais autorizar a presença dele.

A publicidade externa será tratada no item subseqüente, tendo em vista as características dos atuais meios de comunicação.

II. DOS JUÍZOS PARALELOS DA IMPRENSA

É preciso salientar que nos dias atuais a nota de

democracia referida ao moderno processo penal há de propor nova reflexão no tocante à publicidade, por conta da modificação tanto da esfera pública, que não mais se restringe ao Estatal ou não se confunde com ele, como em virtude da verdadeira revolução proporcionada pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação e sua forma de penetração e influência na complexa sociedade de massas.

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Habermas recorda a trajetória liberal do princípio da publicidade, focalizando o fato de, nos tempos das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX, na Europa Ocidental, a publicidade procurar submeter a pessoa ou a questão ao julgamento público, tornando as decisões políticas sujeitas à revisão perante a opinião pública.258

Nos dias de hoje, porém, o controle empresarial dos meios de comunicação de massas, a lógica da competitividade e do mercado que orienta a atuação deles e a distorção da própria noção de publicidade, que, antes de incentivar a participação democrática da maioria das pessoas relativamente aos negócios da sua cidade e de seu país, anula essa participação, constroem uma nova realidade, paradoxalmente virtual ou espetacular.

No mesmo texto, Habermas provoca nossa observação, acentuando que:259

Na mudança de função do Parlamento, torna-

se evidente a natureza problemática da ‗PUBLICIDADE‘ enquanto princípio de organização da ordem estatal: de um princípio de crítica (exercida pelo público), a ‗PUBLICIDADE‘ teve redefinida a sua função, tornando-se princípio de uma integração forçada (por parte das instâncias demonstrativas — da administração e das associações, sobretudo dos partidos). Ao deslocamento plebiscitário da esfera pública parlamentar corresponde uma deformação no consumismo cultural da esfera pública jurídica. Com efeito, os processos penais que são suficientemente interessantes para serem documentados e badalados pelos meios de comunicação de massa, invertem, de modo análogo, o princípio crítico da ‗PUBLICIDADE‘, do

258 Habermas. Mudança Estrutural da Esfera Pública, Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1984, p. 235. 259 Habermas. Mudança Estrutural da Esfera Pública, ob. cit., pp. 241-242.

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tornar público; ao invés de controlar o exercício da justiça por meio dos cidadãos reunidos, serve cada vez mais para preparar processos trabalhados judicialmente para a cultura de massas dos consumidores arrebanhados.

Garapon igualmente adverte para o poder (contrapoder)

da mídia e a maneira como é empregado especialmente nos casos penais,260 ao tempo em que Pierre Bourdieu analisa com competência a influência da sociedade espetacular, da ansiedade midiática e da informação como mercadoria de consumo sobre os juízes, destacando que há aqueles que nem sempre são os mais respeitáveis do ponto de vista das normas internas do campo jurídico mas que podem servir-se da televisão para mudar as relações de força no interior de seu campo e provocar um curto-circuito nas hierarquias internas.261

Nos mesmos moldes, em 1995, chamávamos atenção para isso no artigo ―Opinião Pública e Processo Penal‖,262 preconizando nova postura diante do fenômeno da mídia e das suas relações com o processo penal.

A exploração das causas penais como casos jornalísticos, com intensa cobertura por todos os meios, leva à constatação de que, ao contrário do processo penal tradicional, no qual o réu e a Defesa poderão dispor de recursos para tentar resistir à pretensão de acusação em igualdade de posições e paridade de armas com o acusador formal, o processo paralelo difundido na mídia é superficial, emocional e muito raramente oferece a todos os envolvidos igualdade de oportunidade para expor seus pontos de vista.

A disparidade de tratamento que, em muitas ocasiões, é

260 Garapon, Antoine. Juez y Democracia, Espanha: Flor del Viento, 1997, pp.

90-110. 261 Bourdieu, Pierre. Sobre a Televisão, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.

81. 262 Prado, Geraldo. ―Opinião Pública e Processo Penal‖, in Ensaios Críticos

sobre Direito Penal e Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995.

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tratada como cobertura isenta e lisa do meio de comunicação, que procura acentuar sua liberdade em face dos investigados quando porventura estes integram ou são vistos como parte das elites políticas, econômicas ou intelectuais, na verdade está a descobrir um fato e produzir algumas danosas conseqüências: a presunção de inocência sofre drástica violação, pois a imagem do investigado é difundida como da pessoa responsável pela infração penal; e em vista disso, o desequilíbrio de posições que os sujeitos têm de suportar durante o período de exposição do caso pela mídia transfigura os procedimentos seculares de apuração e punição, passando subliminarmente a idéia do caráter obsoleto e ineficiente das garantias processuais, a que se soma a percepção do processo penal como meio demorado de se fazer justiça em comparação com a ―célere‖ e ―perfeita‖ investigação da mídia.

É indiscutível que em semelhante situação o devido processo legal e a liberdade de imprensa sofrem e assim esta última, que se apresenta como direito civil elementar em uma sociedade democrática, pode terminar produzindo em seu extremo aquilo que deveria evitar: um modelo autoritário de exercício de poder, em virtude de que os procedimentos acabam tendo valor exclusivamente formal.

Convém aprofundar um pouco mais a análise para trazer à tona a questão dos procedimentos ilegais de apuração dos fatos, de que os meios de comunicação se socorrem em muitas oportunidades, e que transmitem a imagem do crime flagrado enquanto ocorre (a antiga verdade real, agora com nova roupagem), amplamente documentado e provado, supostamente cabendo à Justiça tão-só sacramentar o veredicto de condenação e punir o culpado.263

Como consignado na primeira parte deste trabalho, a

263

Renovo aqui a sugestão da leitura do texto de Aury Lopes Jr. sobre evidência, prova, tempo e processo penal. Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Garantista, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004.

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organização do sistema de direitos fundamentais em sua etapa inicial considerou a necessidade histórica de conter o poder do Estado, opondo-lhe barreiras consistentes nas liberdades públicas.

Era e de alguma maneira ainda é assim porque ao Estado são conferidos poderes cujo exercício implica em virtual interferência na esfera privada das pessoas, ameaçando o status de dignidade de que devem ser portadores todos os seres humanos, independentemente de quaisquer outras considerações.

No plano do processo penal, a proibição do emprego da tortura, a garantia da inviolabilidade física, do domicílio, das comunicações e do patrimônio, conjugam-se como regras destinadas a proteger a honra, a liberdade e a vida dos indivíduos, sendo que a crônica do exercício arbitrário do poder registra o emprego do processo penal como forma de exclusão e controle dos grupos sociais indesejáveis, naturalmente ao mesmo tempo em que se procurava controlar as ações que realmente atentavam contra interesses expressivos das comunidades.

Ter tudo em um mesmo conjunto sempre facilitou o poder no instante de encontrar um pretexto para excepcionar o emprego de meios processuais racionais e éticos de apuração das infrações penais, de sorte que a defesa social fundamentou discurso de compressão de exercício de direitos fundamentais em condições de justificar o processo penal dos regimes autoritários de meados do século XX, na Europa Ocidental.

Apesar disso, o movimento de internacionalização dos direitos fundamentais, iniciado após o fim da Segunda Guerra Mundial, ocupou espaços e detonou irreversível conscientização do caráter inalienável e irrenunciável destes direitos, obrigando o Estado a perseguir o delito e punir o delinqüente com as armas dispostas em um regime de estrita legalidade e eticidade.

Ocorre que o desenvolvimento da comunicação de massas, em um contexto de sociedade capitalista e tomando a forma cada vez mais acentuada de empresas transnacionais

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de comunicação (as grandes corporações, que monopolizam estes meios), edificou novo tipo de poder, neste caso fora do Estado.

A lógica de freios e contra-pesos não funciona em relação a eles, que preconizam auferir legitimidade em virtude do consumo massivo das informações que veiculam. O emprego da censura não é aceitável, pois no lugar de eliminar a doença mata o paciente, abrindo caminho para o extermínio da liberdade de informação e expressão.264

Embora se saiba que, no tocante ao funcionamento geral das corporações do ramo, a liberdade de imprensa é ditada por interesses mercadológicos, sobrevive em importante medida a liberdade de informação de que fazem uso os operadores da imprensa e que tem sido fundamental para esclarecer as pessoas (detentoras do direito a serem informadas) a respeitos de fatos relevantes da vida pública e social.

Com base nisto, parece que o controle das situações de conflito entre liberdade de imprensa e devido processo legal está em se proibir à imprensa aquilo que é igualmente proibido ao Estado, isto é, fazer uso de informações obtidas criminosamente.

Como a censura prévia é impossível,265 duas alternativas podem ser consideradas: o recurso aos mecanismos de responsabilidade tradicional, de natureza reparatória; e a intransigente proibição de que as partes do processo lancem mão das provas obtidas dessa maneira, a qualquer título.

Ademais, a fidelidade ao sistema acusatório implica em estipular que a sede para a solução dos conflitos de 264

Sobre censura é indicada a leitura de Liberdade de Informação e o Direito Difuso à Informação Verdadeira, de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 129-135, que no mesmo trabalho pesquisa o projeto da chamada ―Lei da Mordaça‖. 265 López Ortega refere a experiência do direito inglês, com as limitações prévias à liberdade de informar asseguradas pelo emprego da medida denominada contempt of court, prevista no Contempt of Court Act, de 1981. Assinala que na Grã-Bretanha o interesse do público na liberdade de expressão deve ceder ante o interesse do público de não impedir ou ameaçar gravemente o curso da justiça. Ob. cit., p. 70.

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interesses de natureza penal é — e sempre deverá ser — o processo judicial. Portanto, o ponto de vista defendido em ―Opinião Pública e Processo Penal‖, em 1995, continua válido. Nos casos de intensa exploração pela mídia, é conveniente que se proceda ao desaforamento temporal, suspendendo o curso do procedimento enquanto durar o estado de excitação social.

Finalmente, visando resguardar a coerência interna entre os diversos elementos constitutivos do sistema acusatório, quando confrontados com a publicidade pós-moderna, convém seguir e ampliar o exemplo espanhol, pelo qual, em virtude da ordem ministerial de 27 de novembro de 1959, completada pelo ofício circular de 22 de abril de 1985, o Ministério Público está autorizado a emitir comunicados escritos, destinados à imprensa, a fim de evitar informações errôneas.266 A propósito destes comunicados, deve a lei garantir à parte que se sentir prejudicada o direito de fazer uso de igual expediente, assegurando-se, assim, não só a liberdade de informação como também o exercício desta liberdade verdadeiramente como função social.

É sempre bom lembrar que as portas fechadas aos esclarecimentos públicos — que devem ocorrer excepcionalmente, em casos de repercussão, quando flagrantemente uma informação tida como errônea ganha curso livre e é capaz de conformar a opinião pública — são ultrapassadas por conta de práticas clandestinas, insuscetíveis de serem controladas.

O processo penal democrático necessita da publicidade dos seus procedimentos e assegurá-la pode impedir que se coloque no seu lugar a publicidade espetacular dos atores que deles tomam parte, além de facilitar o controle e coibir os excessos.

3.2.4. A TÍTULO DE CONCLUSÃO

São estas, em síntese, as características de sistema e

266 López Ortega, ob. cit., p. 74.

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princípio acusatórios, pesadas e sopesadas as correntes doutrinárias envolvidas em seu estudo. Várias também são, como vimos, as opiniões, algumas das quais são até mesmo opostas ou conflitantes entre si, motivo por que é conveniente encerrar este tópico com a advertência de José António Barreiros:267

Não há, assim, um conceito aprioristicamente

fundado de estrutura acusatória — a que os concretos ordenamentos processuais penais se tenham que sujeitar — mas uma filosofia da máxima acusatoriedade possível, que só após a análise especificada de cada ordenamento processual penal se poderá delinear concretamente no que à sua caracterização fundamental respeita.

A aferição da constitucionalidade de um sistema processual penal passa, deste modo, não pela subsunção estática dos institutos jurídicos concretos que ela admita aos comandos abstractos da Constituição mas pela análise ponderada da respectiva estrutura constitutiva, tendo em vista recortar-lhe os grandes princípios estruturadores, reconstituir-lhe o jogo de inter-relações dos vários agentes nele participantes, extractar-lhes os módulos, fases e graus de procedimento.

Trata-se, ao invés de muitos outros casos em que a constitucionalidade esteja em causa, de aferir um sistema, com toda a globalidade de inter-relações, uma estrutura, com toda a complexidade do seu modo particular de configuração.

267 Barreiros, José António. ―A Nova Constituição Processual Penal‖, in

Portugal — O Sistema Político Constitucional. Mario Batista Coelho (coord.), Lisboa: Instituto de Ciências Jurídicas, 1989, p. 769.

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4. A Eleição Constitucional do Sistema Acusatório

No Brasil, certamente não é tarefa simples assinalar

com precisão que sistema processual penal vigora ou em outras épocas que sistema imperou. A forma de definir a questão passa pelos interesses que movem os juristas, motivados pelo sentido e função que atribuam ao Processo Penal e pela maneira como vivem ou viveram a experiência política do seu tempo,

4.1. Breve Histórico do Processo Penal Brasileiro

Na verdade, até mesmo o estudo da história do processo

penal no Brasil, e por conta disso o estudo dos sistemas processuais penais, não é fácil, na medida em que o olhar do pesquisador tantas vezes está condicionado às formas mais visíveis nos dias atuais, resultantes da predominância cultural, política e econômica de origem européia.

Do modo de enxergar a sociedade e os mecanismos de composição dos conflitos de natureza penal e de solução dos casos penais é possível deduzir uma maneira de ver o processo penal brasileiro aceita passivamente como natural. A partir dessa forma naturalizada de enxergar o processo penal emitem-se juízos de valor e se consideram — ou não — válidas e científicas determinadas experiências históricas com exclusão de outras, sobre as quais não é raro a doutrina sequer dedicar alguma mínima atenção.

É o que ocorre com as práticas penais mais antigas. Em realidade, se o esquecimento ou falta de curiosidade sobre os tempos primitivos, no Brasil, pode haver sido gerado pelo que Eduardo Galeano designou como o fato de até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias das caçadas continuarem glorificando apenas o caçador, é importante, em uma perspectiva crítica, resgatar a história

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oculta, pelo que pode nos ensinar de nós mesmos e das alternativas que a ordem social, política e jurídica tem condições de oferecer.

Neste contexto, quase sempre olvidamos que os portugueses, ao chegarem nestas terras, encontraram uma população de cerca de dois milhões de pessoas, que ocupavam a Costa Atlântica e tinham a partilhar, em circunstâncias desconhecidas para os europeus, características comuns.1

É da tradição dos nossos estudos jurídicos, talvez para não termos de refletir sobre as condições e as conseqüências do genocídio perpetrado desde o ciclo das grandes navegações, nada dedicarmos a esta quadra da nossa vida política e social ou, quando muito, situarmos o estudo do período indígena e dos índios de um modo geral como atividade secundária e não influente, situada na ante-sala de um edifício maior onde reside a escravidão negra.2

Nilo Batista acrescenta a estes aspectos duas outras dificuldades, opostas agora aos que se animam ao estudo das práticas penais no direito indígena: de uma delas falamos quando abordamos o desenvolvimento das estruturas de composição dos conflitos nas sociedades simples e consiste na ausência de distinção entre um direito penal e um direito civil e, conseqüentemente, entre métodos específicos de resolução dos conflitos que eventualmente se verifiquem. A diferença não se resume aos métodos ou procedimentos e envolve uma concepção de organização social e econômica homogênea e coletivista, em relação à qual as demandas por justiça acabam sendo de tipo diverso; da outra pode-se dizer que se trata da técnica de interpretação das práticas penais mediante a correta aplicação daquilo que foi chamado de raciocínio ou pensamento pré-lógico.3

Pode-se extrair para o nosso estudo, todavia, a 1 Ribeiro, Darcy. Diários Índios, São Paulo: Cia. das Letras, 1996, p. 12. 2 Monteiro, John Manuel. Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo, São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 8. 3 Batista, Nilo. ―Práticas Penais no Direito Indígena‖, in Revista de Direito Penal, vol. XXXI, Rio de Janeiro: Forense, 1982, pp. 75-86.

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constatação que os nativos organizavam-se em conjuntos tribais, com lideranças bélicas mas responsáveis pelo provimento de decisões da vida material e social, que estavam sempre sujeitas ao consentimento de seus seguidores.

Ao lado dos rituais místicos e das guerras entre tribos, decisivamente influentes na ordem social, dada a fragmentação política existente, havia a propriedade comum dos meios de produção, despreocupada do sentido de circulação de bens e acumulação de riquezas que está na base da organização produtiva capitalista.4

Com tal conformação social, não é de estranhar que as situações de conflito segundo a nossa percepção não merecessem dos indígenas a atenção que lhes dispensamos, salvo quando derivadas da ação de pessoas de outros grupos sociais, gerando aí confrontos e guerras.

Ainda assim, pelo que disso resultou, o conjunto destas práticas pode ser interessante quando visto no contexto da convivência com costumes europeus. Se o processo de expansão cultural dos portugueses, difundido no Brasil em virtude da dominação político-econômica e da subjugação das populações nativas, determinou o desenrolar histórico adiante analisado, não é inviável do ponto de vista da antropologia lançar mão da idéia de sistemas de adaptação, desenvolvida entre outros por Darcy Ribeiro,5 para considerarmos a experiência da chamada República dos Guaranis (1610 — 1768).

4 Colocando em termos adequados a questão da influência que a interação com os portugueses e a suposta influência destes últimos podem haver tido sobre a ordem econômica indígena, Monteiro salienta que A oferta de gêneros por parte dos índios (aos colonos) não foi... uma simples ‗resposta‘ econômica a uma situação de mercado... Assim, cabe ressaltar que o escambo ganha sentido apenas na medida em que se remete à dinâmica interna das sociedades indígenas. Longe de se enquadrarem no contexto de uma economia de mercado em formação, as relações de troca estavam vinculadas intrinsecamente ao estabelecimento de alianças com os europeus (ob. cit., p. 32), estratégia que se revelou desastrosa e contribuiu para o declínio intenso da população nativa, submetida ao processo de incorporação da cultura européia. 5 Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatório, p. 68.

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Com efeito, a República dos Guaranis, instituída no sul da América do Sul, em área parcialmente compreendida em território brasileiro, nos dias atuais, caracterizou-se pela manutenção dos aspectos igualitários da ordem econômica indígena, englobando, por princípio de fraternidade e em consideração a inimigos comuns, significativa parcela de povos que antes viviam em antagonismo.

Talvez comunista demais para os cristãos burgueses ou cristã demais para os comunistas da época burguesa, como salientou Lugon,6 a comunidade então estabelecida conheceu um modelo de direito penal com as características das práticas penais indígenas, mencionadas por Nilo Batista, mas com a mediação efetiva de procedimentos em virtude dos quais um homem presumivelmente culpado era conduzido ao juiz, sem correntes nem algemas de espécie alguma, por muito grave que fosse o delito. Nenhuma pena era aplicada arbitrariamente ou sem prévio inquérito. Cada caso, mesmo pouco importante, era conscienciosamente estudado. As testemunhas eram ouvidas e acareadas.7

Comparada com a violência da justiça pública que estudaremos em seguida, herdada de Portugal e Espanha, e mesmo com a brutalidade da justiça privada, feudal, implementada inicialmente pelos donatários das capitanias hereditárias e depois pelos senhores de escravos, não há dúvida de que a justiça dos guaranis e dos jesuítas representou inestimável registro de progresso em direção à humanidade.

Do ponto de vista hegemônico na doutrina, começamos a nossa história de independência processual penal quase simultaneamente com a história da nossa independência política. A Constituição de 1824, outorgada pelo Imperador, depois da dissolução autoritária da Assembléia Constituinte, trouxe, em seu artigo 179, a previsão dos denominados

6 Lugon, Clovis. A República Comunista Cristã dos Guaranis, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 7 Lugon, Clovis. A República Comunista Cristã dos Guaranis, ob. cit., p. 93.

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direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, estabelecendo significativas garantias, conforme o espírito liberal que impregnou o século XIX.

À euforia liberal correspondeu, no plano específico do processo penal, a edição das Decisões nos 78 e 81, do Governo, determinando aos juízes a fundamentação das sentenças e declarando a incompetência, para funcionar no julgamento, daqueles que houvessem atuado na fase de devassa. Em 1832, finalmente, editou-se o Código do Processo Criminal de Primeira Instância, o primeiro Código de Processo Penal brasileiro.

Pierangelli destaca, argutamente, que toda e qualquer crítica que se faça ao Código do Processo Criminal do Império, deve ter em conta o momento histórico que era vivido.8 Por essa razão, se considerarmos a brutalidade dos procedimentos das Ordenações Filipinas haveremos de acatar a tese da evolução do sistema processual que as sucedeu, em que pese a intensa concentração de poderes nas mãos dos juízes de direito, municipais e de paz, encarregados de deflagrar o processo penal condenatório, por crime público, independentemente de provocação do ofendido ou de qualquer do povo.

Cumpre salientar que, ao lado da atuação judicial ex-officio, que permitia ao magistrado iniciar e formar o corpo de delito e iniciar e concluir a sumária inquirição das testemunhas (sumário de culpa), havia as designadas ação penal pública (a cargo do promotor público ou de qualquer do povo, ut civis), particular e as denúncias policiais.9

Situação interessante ocorreu depois da abdicação do primeiro Imperador, com a edição da Lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841, que veio a tornar mais rigoroso o procedimento, entre outros motivos, pelo deslocamento das funções jurisdicionais dos juízes municipais e de paz para o chefe de polícia e seus delegados, antecipando o que, em

8 Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, p. 99. 9 Idem, pp. 107-118.

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relação às contravenções penais, e mais tarde, aos crimes de homicídio e lesões corporais culposos, viria a acontecer, com a edição do Código de Processo Penal de 1941 e da Lei no 4.611/65. Na época, a transmutação rigorosa deu ensejo à observação, também de grande atualidade, do deputado liberal Álvares Machado, cuja reprodução é merecida:10

Parece que os meus colegas entendem que,

restringindo liberdades, evitarão crimes e desordens. Por ventura, o Livro V das Ordenações, apesar das penas e dos castigos horrorosos, evitou aquele caso de tentativa de morte contra a pessoa sagrada d‘El Rei D. José? Evitou a prática de crimes comuns? Evitou a nossa independência e o nosso sistema liberal?

Com a proclamação da República, em 1889, voltou-se a

sentir os solavancos das mudanças políticas, muito embora, desde 1871, houvesse ganhado corpo o movimento de reforma da lei processual anterior.

A introdução de um modelo federalista, inspirado no norte-americano, repercutiu de modo a deferir aos estados membros a competência legislativa em termos de processo penal, malgrado alguma reserva decorrente das disposições sobre direitos fundamentais, na Constituição de 1891 (artigo 72), bem como uma limitada previsão, em termos de processo penal, contida em várias leis federais.11

A verdade sobre o(s) sistema(s) do processo penal no Brasil, a partir de então, pode ser resumida nas anotações de Frederico Marques:12

Quando a pluralidade processual foi instaurada, era nosso processo penal informado pelos seguintes princípios: oralidade de

10 Almeida Junior, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, p. 180. 11 Pierangelli, José Henrique. Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, p. 160. 12 José Frederico Marques, apud José Henrique Pierangelli, Processo Penal: Evolução Histórica e Fontes Legislativas, pp. 158 e 160.

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julgamento e processo escrito para a instauração ou formação da culpa; contraditório pleno no julgamento e contraditório restrito no sumário de culpa; processo ordinário para os crimes inafiançáveis e afiançáveis comuns ou de responsabilidade, com plenário posterior à formação da culpa; inquérito policial servindo de instrumento de denúncia ou queixa, apenas nos crimes comuns; o processo especial estabelecendo desde logo a plenitude da defesa nos crimes comuns; a propositura e titularidade da ação penal, de acordo com o que dispunha o artigo 407, do Código Penal... essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.

Nova mudança política, em 1930, traz consigo,

naturalmente, novos ventos, valendo mencionar que, em 1935, por força das disposições transitórias da Carta de 1934 (artigo 11), nomeou-se uma comissão de juristas para proceder à elaboração do projeto do novo código unificado, havendo sido cogitada, na ocasião, a adoção do modelo do juizado de instrução.

Finalmente, depois da instalação do Estado Novo, mediante o golpe de estado de 1937, veio à luz, pelo Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941, o Código de Processo Penal brasileiro, que, salvo por algumas alterações pontuais, vigora até hoje, produto do labor e da cultura de Cândido Mendes de Almeida, Vieira Braga, Narcélio de Queiroz, Florêncio de Abreu, Roberto Lyra e Nelson Hungria.

Encontrar a melhor qualificação do sistema processual, cuja estrutura13 decorre das normas editadas no atual Código de Processo Penal, repita-se, não é tarefa fácil. Para tanto, basta considerarmos as opiniões antagônicas dos mestres

13 Perspectivada, aqui, como conjuntos pré-relacionantes e conformativos da realidade (Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, p. 5).

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Frederico Marques, Hélio Tornaghi e Rogério Lauria Tucci. O primeiro, em obra lapidar, recentemente republicada, assinala a existência de uma estrutura acusatória de nosso processo penal, salientando que o chamado sistema misto ou francês, com instrução inquisitiva e posterior juízo contraditório e de forma amplamente acusatória, também não pode informar nossas leis de processo,14, enquanto Tornaghi sublinha que o Direito brasileiro segue um sistema que, com maior razão, se poderia denominar misto, isto porque a apuração do fato e da autoria é feita no inquérito policial (somente nos crimes falimentares o inquérito é judicial), enquanto o processo judiciário é acusatório, em suas linhas gerais.15 Tucci também esposa a tese do sistema misto, fundado na inquisitoriedade peculiar dos atos preliminares de apuração das infrações penais.16

4.2. Características do Sistema Processual Brasileiro

Ainda restringindo nossa abordagem ao texto do Código

de Processo Penal, conforme aplicado por juízes e tribunais, passamos ao exame do estatuto jurídico dos sujeitos principais e da forma como a atuação deles se desenvolve, ordenada e sistematicamente, objetivando, deste modo, avaliar em que medida a lei processual penal modelo abraça um dos sistemas.

Com efeito, iniciamos pela aproximação às atividades debitadas ao autor da ação penal e ao juiz, na forma como se articulam e se desenvolvem a partir do instante em que se noticia a existência da infração penal.

Desde a promulgação da Constituição da República de 1988, em 5 de outubro, está vedada a iniciativa em processo condenatório, por crime de ação pública, salvo pelo Ministério Público ou, em excepcional hipótese, pelo

14 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, pp. 73 e 71, respectivamente. 15 Tornaghi, Hélio, Instituições de Processo Penal, vol. II, p. 20. 16 Tucci, Rogério Lauria. Persecução Penal, Prisão e Liberdade, pp. 79-80.

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ofendido, conforme dispõem, respectivamente, os artigos 129, inciso I, e 5o, inciso LIX,17 da Carta Magna, sendo certo que há crimes cuja ação penal é de iniciativa privativa do ofendido e há outros que, embora de ação pública, exigem a representação do ofendido (ou de quem tenha qualidade para representá-lo) ou a requisição do Ministro da Justiça.18

A propositura da ação penal condenatória, todavia, está condicionada à demonstração prévia, pelo autor, das condições mínimas de viabilidade da pretensão que objetiva deduzir. Isso decorre, não se questiona, da tutela constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1o, inciso III, da Constituição da República), projetada, no campo do processo penal, pela exigência de justa causa para a sua deflagração, sob pena de caracterizar, irremediavelmente, coação ilegal, a ser arrostada por habeas corpus.19

Assim, faz-se necessária, antes da propositura da ação penal condenatória, qualquer que seja ela, a realização de uma investigação criminal, que a rigor demanda a instauração de inquérito policial ou peças de informação (artigos 5o e 27 do Código de Processo Penal), visando

17 Artigo 129, inciso I, da Constituição da República: São funções institucionais do Ministério Público: I- promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; artigo 5º, inciso LIX, da Constituição da República: será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal. 18 Embora polêmico o tema, não há despropósito em afirmar a existência de uma ação popular de natureza mista, político-penal, como a definiu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Mandado de Segurança nº 21.263-DF, em 28/5/1993, relator Ministro Carlos Velloso (publicado no Ementário de decisões do STF, volume 1.705, p. 202), a respeito da ação de impeachment do Presidente da República, dos Ministros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal. 19 Artigo 1º, inciso III, da Constituição da República: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III- a dignidade da pessoa humana; artigos 647 e 648, inciso I, do Código de Processo Penal: Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar. A coação considerar-se-á ilegal: I- quando não houver justa causa.

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reunirem-se indícios de autoria e prova razoável da existência da infração penal.20

Pelas leis vigentes, o inquérito policial, quase sempre um procedimento de natureza jurídica administrativa, é dirigido pela autoridade policial encarregada do exercício da atividade de polícia judiciária (artigo 144, § 1o, inciso IV, e § 4o, da Constituição da República), enquanto as peças de informação, de caráter oficial, têm lugar em crime de ação pública, quando a notícia da infração penal é levada diretamente e por escrito ao conhecimento do Ministério Público.

O inquérito policial, pelas regras atuais, é sigiloso, escrito e não contraditório, podendo ser instaurado, em todo o caso, se for hipótese de apuração de crime de ação pública incondicionada, de ofício, pela autoridade policial, ou por requisição do juiz ou do membro do Ministério Público, ou em decorrência de notícia crime levada à autoridade policial por qualquer pessoa.

Ainda em se tratando de crime de ação pública incondicionada, é possível a instauração do inquérito, à vista da comunicação espontânea do próprio indiciado ou em virtude da instauração de auto de prisão em flagrante ou de auto de resistência (artigos 301 e 292 do Código de Processo Penal), ou, por derradeiro, a requerimento do ofendido, em consideração ao interesse público na repressão das infrações e punição de seus autores, que irá refletir na obrigatoriedade da ação penal pública. Se o crime a apurar, contudo, for de ação penal privada ou pública condicionada, o início do inquérito demandará manifestação do ofendido ou de quem tenha qualidade para representar ou requisitar (artigos 5o, §§ 4o e 5o, e 24 do Código de Processo Penal).

Logo se vê, pela distribuição da legitimidade para início 20

Em realidade, a investigação criminal não é obrigatória, desde que o autor da ação penal apresente ao juiz indícios de autoria e da infração penal, o que poderá ser feito por meio de documentos particulares, nos casos de ação penal privada. Todavia, a forma mais comum de pesquisar o suporte probatório mínimo e demontrar a existência de justa causa tende a ser a investigação criminal e entre as suas espécies predomina o inquérito policial.

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das investigações, que, embora a ação penal só possa ser proposta pelo Ministério Público ou pelo ofendido (ou seu representante legal), conforme o caso, além deles está o juiz autorizado a ordenar a instauração de inquérito, em crime de ação pública incondicionada.

Verberando contra a previsão, salientou Sérgio Demoro Hamilton, nos idos de 1974, que a ortodoxia acusatória do processo penal brasileiro exigia mais do que simplesmente afastar do juiz a possibilidade de iniciá-lo, mediante o procedimento aventado no artigo 531 do Código de Processo Penal, sendo caso, também, de proibir-lhe a requisição da instauração de inquérito, como, aliás, previa o artigo 249 do denominado Anteprojeto Frederico Marques (artigo 221 do Anteprojeto relacionado à Portaria no 320, de 26 de maio de 1981, do Ministério da Justiça),21 recomendando noticiasse o magistrado o fato delituoso do qual tomasse conhecimento ao Ministério Público.

Cremos, todavia, em que pesem o prestígio intelectual e a cultura do ilustre processualista, que a permissão para o juiz requisitar a instauração de inquérito não difere, substancialmente, da autorização legal para noticiar crime de ação pública, diretamente ao Ministério Público, como, é certo, já estatui o código em vigor, por meio da disciplina contida em seu artigo 40. Em ambos os casos, independentemente de quem seja o destinatário da informação sobre a infração penal, o juiz, ao noticiá-la, elabora, ainda que provisoriamente, um juízo de valor a respeito da existência do crime e, eventualmente, da positivação de indícios de autoria, dando origem a procedimentos oficiais, que não poderão ser desprezados.

A base de sustentação da autorização legal parece situar-se na compreensão da necessidade de repressão penal, na grande maioria dos casos, em vista do interesse predominantemente público na tutela penal dos bens

21 Hamilton, Sérgio Demoro. ―A Forma Acusatória Pura, uma Conquista do Anteprojeto‖, in Revista de Direito Penal, nº 13/14, jan-jun/1974, pp. 64-

67.

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jurídicos, vinculado ao valor segurança, explicitamente prestigiado no caput do artigo 5o da Constituição. Sendo assim, qualquer que seja a modalidade de intervenção judicial, voltada à comunicação oficial da existência provável de infração penal a apurar, o magistrado que vier a noticiá-la estará comprometido na sua imparcialidade, razão por que, nas duas hipóteses, sustentamos que estará quebrado um dos pilares básicos do sistema e também do princípio acusatório, tal seja, a imparcialidade judicial.

A medida da violação do sistema, porém, corresponde ao anseio de não deixar fora da persecução penal fatos que, de ordinário, não chegariam ao conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, critério de ordem política que, incidindo no campo do processo, ainda que antes da instauração deste, pode ser equilibrado pelo afastamento do feito daquele juiz que noticiou a infração. O juiz de um processo civil entre partes capazes, sem intervenção do Ministério Público, que constate o emprego de documento falso deverá comunicar o fato ao Ministério Público. Sem essa comunicação dificilmente o Ministério Público tomaria conhecimento da existência do crime previsto no artigo 304 do Código Penal.

Aplica-se, assim, o princípio da proporcionalidade, para coordenar a atuação dos direitos fundamentais à segurança e ao justo processo, sempre à base do princípio acusatório.

É imperioso ressaltar que, se a instauração da investigação pode, em excepcionais situações, derivar de ordem judicial, a orientação sobre os caminhos a seguir e a pesquisa e a crítica ao material probatório colhido, em todos os casos a cargo do juiz, na fase pré-processual, especialmente se a ação penal pública não é proposta por falta de suporte mínimo probatório (artigos 10 e 28 do Código de Processo Penal), violentam, decisivamente, o princípio acusatório.

Com efeito, não há razão, dentro do sistema acusatório ou sob a égide do princípio acusatório, que justifique a imersão do juiz nos autos das investigações penais, para avaliar a qualidade do material pesquisado, indicar

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diligências, dar-se por satisfeito com aquelas já realizadas ou, ainda, interferir na atuação do Ministério Público, em busca da formação da opinio delicti.22

A imparcialidade do juiz, ao contrário, exige dele justamente que se afaste das atividades preparatórias, para que mantenha seu espírito imune aos preconceitos que a formulação antecipada de uma tese produz, alheia ao mecanismo do contraditório.

Assim, por ocasião do exame da acusação formulada, com o oferecimento da denúncia ou queixa, o juiz estará em condições de avaliar imparcialmente se há justa causa para a ação penal, isto é, se a acusação não se apresenta como violação ilegítima da dignidade do acusado.

Neste plano, a manutenção do controle, pelo juiz, das diligências realizadas no inquérito ou peças de informação, e do atendimento, pelo Promotor de Justiça, ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, naquelas hipóteses em que, em vez de oferecer denúncia, o membro do Ministério Público requer o arquivamento dos autos da investigação, constitui inequívoca afronta ao princípio acusatório, como foi analisado anteriormente.

Em vista disso, e por considerarem que a partir de 1988, com a nova Constituição, o processo penal brasileiro realmente aderiu ao modelo acusatório, alguns tribunais, a nosso juízo acertadamente, têm editado atos normativos que regulam a tramitação dos autos de investigação criminal diretamente entre as unidades de polícia judiciária e os órgãos do Ministério Público.

Assim, o Provimento no 07, de 14 de abril de 1997, do Corregedor Geral de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, e o Provimento no 47, de 12 de novembro de 1996, do Vice-Presidente e do Corregedor do Tribunal Regional Federal da 1a Região, ambos impugnados por Ações Diretas de Inconstitucionalidade,23 perante o Supremo

22

Ver item 3.2.2.1 – II – Da Acusação. 23 Respectivamente, ADIN 1605-9-DF, Relator Ministro Sydney Sanches, e

ADIN 1579-6-DF, Relator Ministro Sepúlveda Pertence.

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Tribunal Federal, sem notícia de deferimento de medida liminar ou julgamento da causa até a presente data.

Vale, pois, reproduzir aqui o texto do Provimento no 07, acima referido, pelo que tem de bem ilustrativo a respeito do tema:

Considerando que o Ministério Público é instituição essencial à função jurisdicional do Estado;

Considerando que a Constituição Federal de 1988 conferiu ao Ministério Público relevantes funções na defesa da ordem jurídica e dos direitos individuais e coletivos, redefinindo sua competência e atribuições;

Considerando que pela atual Constituição são funções institucionais do Ministério Público, entre outras, promover privativamente a ação penal pública; exercer o controle externo da atividade policial; requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial;

Considerando as medidas adotadas pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região, Estados do Rio de Janeiro e Bahia, no sentido de adequar os procedimentos investigatórios aos atuais mandamentos constitucionais;

Considerando que a remessa, distribuição e exame de inquéritos policiais, e ordenação de diligências pelo Juiz, antes da remessa ao Ministério Público, ensejam a demora nas investigações em detrimento da rápida apuração da verdade real;

Considerando a decisão proferida pela 2a Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios na Reclamação no 1.068/96;

Considerando o requerimento encaminhado pelo Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios, que originou o P. A. nº 03.912/97;

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RESOLVE: Artigo 1o Somente serão admitidos para

distribuição às Varas Criminais da Justiça do Distrito Federal os inquéritos policiais e outras peças de informação, nos casos de intervenção obrigatória do Ministério Público, quando houver:

a) denúncia ou queixa; b) pedido de arquivamento; c) inquérito instaurado, a requerimento da

parte, para instruir ação penal privada e que deve aguardar, em juízo, sua iniciativa (Código de Processo Penal, artigo 19);

d) pedidos de prisão preventiva, busca e apreensão, prisão temporária e outras medidas cautelares;

e) comunicação de prisão em flagrante ou qualquer outra forma de constrangimento aos direitos fundamentais previstos na Constituição;

Parágrafo único. Independentemente de distribuição, o Juiz encarregado de supervisionar o Serviço de Distribuição encaminhará ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios o inquérito policial, peças de informação ou procedimento em que não couber distribuição (Código de Processo Penal, artigos 5o e 40).

Artigo 2o A devolução do inquérito pelo Ministério Público à autoridade investigante, para novas diligências, far-se-á independentemente de sua tramitação pelo Judiciário, mesmo nos casos anteriores à vigência deste provimento onde o inquérito policial tenha sido distribuído a uma das varas criminais.

Artigo 3o Este provimento entrará em vigor 30 (trinta) dias após a sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Publique-se, registre-se e cumpra-se. Na mesma direção estão o anteprojeto de código de

processo mencionado e o projeto de lei no 31, de 1995, de

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iniciativa do Senador Pedro Simon, sendo certo que, se o segundo postula a tramitação direta dos autos de inquérito, entre o membro do Ministério Público e a autoridade policial, retirando do juiz também a possibilidade de requisitar a instauração da investigação, o primeiro, ainda mais completo e sistemático, acrescenta que o controle da obrigatoriedade, no (não) exercício da ação penal pública, fica entregue ao próprio Ministério Público, por meio do seu Conselho Superior, notificando-se o indiciado e o ofendido.24

Em idêntico sentido dispõe o Projeto de Lei n. 4.209/01, preparado por Comissão presidida pela jurista Ada Pellegrini Grinover, nos termos da Portaria 61 do Ministério da Justiça, editada em 20 de janeiro de 2000.

Este projeto traz a seguinte redação para o artigo 28 do Código de Processo Penal:

Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, após a realização de todas as diligências cabíveis, convencer-se da inexistência de base razoável para o oferecimento de

24 Anteprojeto, artigo 234: Se o órgão do Ministério Público, esgotadas todas

as diligências cabíveis, se convencer da inexistência de fundamento razoável para a propositura da ação penal, promoverá o arquivamento dos autos de inquérito policial ou das peças informativas, fazendo-o fundamentadamente. § 1º Cópia da promoção de arquivamento será remetida pelo signatário, sob pena de incorrer em falta grave, no prazo de três dias, ao Conselho Superior do Ministério Público, intimados dessa providência, dentro de igual prazo, mediante carta registrada, o indiciado e o ofendido, ou seu representante legal. § 2º Até que, em sessão do Conselho Superior do Ministério Público, seja homologada ou rejeitada a promoção de arquivamento, poderão o indiciado e o ofendido, ou seu representante legal, apresentar razões escritas, que serão autuadas com a cópia referida no § 1º. § 3º A promoção de arquivamento, com ou sem razões dos interessados, será submetida a exame e deliberação do Conselho Superior do Ministério Público, conforme dispuser o seu Regimento. Se, deixando de homologá-la, concluir o Conselho pelo cabimento da ação penal, designará, desde logo, outro órgão do Ministério Público para oferecer a denúncia. § 4º O membro do Conselho Superior do Ministério Público, a quem incumbir relatar a deliberação de que trata o § 3º, poderá, quando entender necessário, requisitar os autos de inquérito policial ou peças informativas, bem como quaisquer diligências (art. 227).

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denúncia, promoverá, fundamentadamente, o arquivamento dos autos da investigação ou das peças de informação.

§ 1o Cópias da promoção de arquivamento e das principais peças dos autos serão por ele remetidas, no prazo de três dias, a órgão superior do Ministério Público, sendo intimados dessa providência, em igual prazo, mediante carta registrada, com aviso de retorno, o investigado ou indiciado e o ofendido, ou quem tenha qualidade para representá-lo.

§ 2o Se as cópias referidas no parágrafo anterior não forem encaminhadas no prazo estabelecido, o investigado, o indiciado ou o ofendido poderá solicitar a órgão superior do Ministério Público que as requisite.

§ 3o Até que, em sessão de órgão superior do Ministério Público, seja ratificada ou rejeitada a promoção de arquivamento, poderão o investigado ou indiciado e o ofendido, ou quem tenha qualidade para representá-lo, apresentar razões escritas.

§ 4o A promoção de arquivamento, com ou sem razões dos interessados, será submetida a exame e deliberação de órgão superior do Ministério Público, na forma estabelecida em seu regimento.

§ 5o O relator da deliberação referida no parágrafo anterior poderá, quando o entender necessário, requisitar os autos originais, bem como a realização de quaisquer diligências reputadas indispensáveis.

§ 6o Ratificada a promoção, o órgão superior do Ministério Público ordenará a remessa dos autos ao juízo competente, para o arquivamento e declaração da cessação de eficácia das medidas cautelares eventualmente concedidas.

§ 7o Se, ao invés de ratificar o arquivamento, concluir o órgão superior pela viabilidade da ação penal, designará

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outro representante do Ministério Público para oferecer a denúncia."(NR)

Como se vê, a tendência consiste em afastar o juiz desta

etapa, entregando-lhe apenas a função de decidir sobre medidas cautelares que incidam sobre direitos fundamentais.

Na verdade, não há motivo para ser de outra forma, uma vez que é inconcebível, sistematicamente, desconfiar-se do Promotor de Justiça que pleiteia o arquivamento, uma vez que a ação do integrante de uma instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, como é o caso do Ministério Público (artigo 127, caput, da Constituição da República), está erguida sobre princípios de legalidade e moralidade, próprios a toda atividade estatal. É de se presumir que o Promotor de Justiça atue de conformidade com tais máximas, funcionando o controle interno e a intervenção do ofendido como mecanismos suficientes para velar pela legalidade da decisão do Ministério Público.

Portanto, o controle interno do princípio da obrigatoriedade da ação penal, em uma segunda etapa, por órgão colegiado do próprio Ministério Público, a nosso juízo, desde que permeado pela intervenção do ofendido e do indiciado, satisfaz plenamente à aspiração de exame da legalidade da atuação do representante do parquet, sendo absolutamente desnecessária, e até mesmo indesejável, a intervenção judicial para assinalar ao órgão de acusação pública, como hoje ocorre, que deve acusar, ainda que a decisão definitiva esteja nas mãos do Procurador-Geral de Justiça.

Acaso atendido o pleito judicial, manifestado pela discordância quanto ao pedido de arquivamento dos autos de investigação criminal, pedido este formulado pelo Promotor de Justiça, não há dúvida de que o acusado tem a temer pela tendenciosidade precocemente demonstrada pelo juiz, antes mesmo da dedução da ação penal. Dizia-se com razão, na Idade Média, que aquele que tem um juiz por acusador,

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precisa de Deus como defensor. E, às vezes, isso não é suficiente.

Portanto, na linha perspectivada em um sistema acusatório, ainda que nesta hipótese o sistema esteja reduzido à sua expressão mais pura, a do princípio acusatório, a intervenção judicial, voltada ao controle da realização das investigações básicas para a deflagração da ação penal, é algo completamente anômalo, a ser expurgado do ordenamento jurídico, sob pena de violação das regras básicas pertinentes à distribuição de funções, com a garantia para o acusado da imparcialidade do seu julgador.

Ocorre, todavia, que, até a presente data, pelo que se tem notícia, o eg. Supremo Tribunal Federal não só não declarou a invalidade da norma contida no artigo 28 do Código de Processo Penal, aplicada com alguma freqüência em todos os Estados da Federação, como ainda, conforme veremos, ao tratarmos da Lei no 9.034/95, em um primeiro momento ratificou a atuação preliminar de investigação, desenvolvida ou diretamente controlada pela autoridade judiciária25.

Releva frisar que diferente é a situação gerada pelo indispensável controle pelo juiz, na etapa preliminar, das medidas constritivas de direitos fundamentais, pela reserva de função jurisdicional, estabelecida no artigo 5o, incisos XXXV, LIII, LIV e LV, da Constituição da República.26

25

Ao apreciar requerimento de medida liminar para sustar a aplicação do artigo 3º da Lei nº 9.034/95, em ação direta de inconstitucionalidade promovida pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL – (ADI 1517 MC/UF), o Ministro relator, Maurício Corrêa, entendeu que as atividades de investigação do juiz, na fase de inquérito, não violavam regras constitucionais. Ocorre que, por maioria de votos, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu julgar procedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Procurador-Geral da República, com o mesmo objeto, e declarar a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.034/95, que instituiu a figura do juiz investigador (ADI 1570/UF, rel. Ministro Maurício Corrêa, julgamento em 12 de fevereiro de 2004, com voto vencido do Ministro Carlos Velloso). 26 Artigo 5º, inciso XXXV, da CR: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; inciso LIII: ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; inciso LIV: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; inciso LV:

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Assim, objetivada, pelo virtual autor, providência preparatória que implique em restrição a direito fundamental (liberdade, disponibilidade sobre o patrimônio, intimidade), a medida só poderá concretizar-se depois de ponderado exame, pelo juiz, da presença dos pressupostos característicos das cautelares, além, é claro, da subsunção do caso concreto às hipóteses de cabimento legalmente previstas, com a ressalva constitucional da prisão em flagrante, sujeita, por sua própria natureza, a exame posterior de legalidade e necessidade.27

Cabe ao juiz decidir pela decretação da prisão preventiva, no curso do inquérito policial, ou ainda pelo deferimento da interceptação das comunicações telefônicas e busca e apreensão de bens ou pessoas. Estas medidas estão incluídas na chamada reserva jurisdicional de função.

Sabe-se que, se não há, à semelhança do Processo Civil, disposições específicas sobre um processo penal cautelar, em livro próprio, no Código de Processo Penal, de fato é inegável a existência de medidas cautelares no processo penal, destinadas à proteção dos processos de conhecimento e execução penais.28

Como sublinhado linhas atrás, na fase preparatória há um número significativo de providências que inauguram relações jurídicas de natureza cautelar, predispostas à tutela da liberdade do investigado, virtual acusado, ou da aquisição das provas, tais como a autorização para busca domiciliar,

aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 27 Artigo 5º, inciso LXI, da CR: ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; inciso LXII: a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; inciso LXVI: ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança; inciso LXV: a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária. 28 Barros, Romeu Pires de Campos. Processo Penal Cautelar, Rio de Janeiro: Forense, 1982.

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apreensão de coisas, prisão temporária e preventiva etc. Neste caso, embora a natureza preponderante das

investigações continue sendo administrativa, adere a ela a cautelaridade singular das referidas providências, sujeitas, naquilo que importa em compressão de direitos fundamentais, ao conhecimento e deliberação judicial e às regras do devido processo legal, ainda que, por conta dos objetivos visados e da eficácia da própria investigação, o contraditório tenha de ser diferido.

Portanto, a coerência com os ditames do princípio acusatório, à vista da implicação de um devido processo penal cautelar, em fase anterior ao processo de conhecimento condenatório, exigirá a iniciativa dos encarregados da investigação ou do titular do direito de ação, até o que o juiz deverá permanecer inerte, sob pena de quebra da imparcialidade.

Não se diga que o juiz penal dispõe de um poder geral de cautela, que o autoriza a, ex officio, promover as providências cautelares que julgue pertinente, pois tal poder, como no processo civil, não se exercita sem provocação da parte no feito cautelar,29 compreendendo-se como especial permissão para prover, na tutela dos processos principais, atuais ou potenciais, medidas a rigor não previstas na casuística típica das cautelares.30

Quando se trata da tutela dos mais importantes bens de um indivíduo, não é admissível supor que o encarregado de decidir sobre a sua fruição ou não seja alguém que tenha, na fase que antecede ao processo, espontaneamente tomado a iniciativa de ordenar a prisão do investigado ou a apreensão de uma arma que esteja na casa dele, sob a suspeita

29 Galeno Lacerda, todavia, sustenta que a disposição do artigo 797 do Código de Processo Civil, autorizando o juiz a determinar medidas cautelares, sem audiências das partes, em caráter excepcional, configura verdadeira permissão legal, excepcional, de provimento cautelar ex officio, ao contrário da regra instituída no artigo 2º do mesmo diploma e da posição adotada por muitos tribunais (RT 607/57). Lacerda, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VIII, tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1984, pp. 110-111. 30 Lacerda, Galeno. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 135.

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exclusivamente sua, do juiz, de que se trata da arma do crime.

Para isso, estão equipados a Polícia e o Ministério Público, os quais, por lidarem diretamente com a matéria e possuírem interesse na elucidação da infração penal, com a condenação de seu eventual autor, são, a nosso juízo, os legitimados a requererem providências cautelares, o mesmo se aplicando, mutatis mutandis, ao ofendido, se o crime é de ação que dependa da sua iniciativa.

A exceção é pertinente à tutela da liberdade, mediante determinação, de ofício, da liberdade provisória, em consideração ao princípio do favor rei, à presunção da inocência e ao papel garantista do princípio acusatório na sua harmonia com os demais princípios.

Portanto, é estranho ao sistema acusatório, porque incompatível com o princípio acusatório, o poder do juiz, por exemplo, de ofício decretar a prisão preventiva do indiciado (artigo 311 do Código de Processo Penal).31 Em que pese tal conclusão, também neste tópico não há, do Supremo Tribunal Federal, reserva quanto à declaração da constitucionalidade (ou expresso reconhecimento de inconstitucionalidade) da mencionada previsão.

Visto o que antecede o processo condenatório, cabe agora passar ao tratamento de algumas questões pertinentes ao processo propriamente dito.

Com efeito, ficou salientado que, pelo princípio acusatório, cumpre ao acusador, público ou particular, determinar o objeto do processo, o que faz por meio da articulação da acusação, definindo a causa de pedir da ação penal, que sustentará o pedido de aplicação da sanção. Isso não significa que o juiz esteja vinculado à qualificação jurídica atribuída ao fato pelo acusador, porque ao juiz

31 Artigo 311. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou do querelante, ou mediante representação da autoridade policial. Também a revogada Lei de Falências (Decreto-lei 7.661/45, artigo 193) previa a inconstitucional decretação da prisão preventiva de ofício. A regra não foi reproduzida na Lei n. 11.101/05.

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cumpre conhecer o direito — jura novit curia — nem tampouco que o réu seja prejudicado por um equívoco de expressão da tipificação penal mais adequada, na medida em que se defende do fato, que deve estar descrito, satisfatoriamente, na inicial.32

Mas, nos dois casos, alguns cuidados são absolutamente essenciais, uma vez que a casuística sistemática dos procedimentos penais, no direito brasileiro, leva em conta a qualificação jurídica da conduta e, ainda, no que toca ao exercício da defesa, esta não pode pressupor, sob pena de prejudicar-se, que o juiz venha a corrigir a classificação jurídica do fato e, quiçá, aplicar ao acusado pena mais grave, ou seguir o caminho equivocado inicialmente trilhado pelo acusador.

Em vista do exposto, o sistema acusatório, que demanda plenitude de defesa e contraditório, em face da pretensão do processo justo, assegura a emendatio libelli, prevista no artigo 383 do Código de Processo Penal,33 na fase de sentença, mas aplicável a todo o tempo (quanto antes, melhor), principalmente se resultar em significativa alteração do procedimento.34

32

Ver item 3.2.2.2 – III – A Mutatio Libelli. 33 Artigo 383. O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da denúncia ou queixa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. 34 Muito embora preconizemos aqui, para validade do processo, que a emendatio libelli em nenhuma hipótese surpreenda a defesa, instituindo-se o debate contraditório em consideração ao reconhecimento daquela que é, segundo o juiz, a acertada qualificação jurídica da infração, o eg. Supremo Tribunal Federal decidiu diferentemente, como se pode observar no habeas corpus nº 73.389-SP, julgado pela 2ª Turma, cujo relator foi o Exmo. Ministro Maurício Correa, publicada a decisão em 6 de setembro de 1996, no Diário de Justiça da União: ―Habeas Corpus‖. ―Emendatio libelli‖. Réu denunciado pelos crimes de estelionato e de apropriação indébita e condenado pelo crime de falsidade ideológica. Falta de intimação do acusado em face da desclassificação: cerceamento de defesa não configurado. 1. Ocorre emendatio libelli (CPP, art. 383) e não mutatio libelli (CPP, art. 384) quando o réu é denunciado pelos crimes de estelionato e de apropriação indébita, porém resulta condenado por falsidade ideológica, uma vez que a denúncia descreve perfeitamente o fato delituoso mas nela consta qualificação penal diversa. 2. A nova tipificação emprestada pelo juízo, em face da instrução processual, não

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Em 1989, no exercício das funções judicantes, recebemos denúncia do Ministério Público, por crime de desacato à autoridade judiciária, cometido por advogado, no curso de um processo civil, com atribuição ao juiz da prática de fato definido como crime, isso por petição.

No despacho inicial, na verdade, decisão, haja vista a conduta efetivamente descrita, a denúncia foi recebida, emendando-a para classificar o crime na moldura penal da calúnia, detalhada na vestibular com todos os seus elementos e circunstâncias.

A alteração pareceu apropriada, tendo em conta a diversidade de procedimento, um dos quais, acertado, com a possibilidade de oferecer ao acusado a exceção da verdade.35

Justamente este tipo de controle, deduzido, a princípio ou no decorrer do processo, até a sentença, permitirá que o acusado não fique refém da classificação jurídica emanada da acusação, em virtude da qual poderá, ou não, incidir um modelo de processo consensual, poderá, ou não, ser cabível a prisão preventiva ou a liberdade provisória, com ou sem fiança.

Os critérios de classificação das infrações penais são, pois, na exata medida em que se respeita o princípio constitucional da reserva legal,36 na edição de leis incriminadoras, determinados por modos de apreciação dogmaticamente objetivados e, assim, passíveis de serem controlados pelo juiz sem ferimento ao direito de iniciativa das partes.

Da mutatio libelli

constitui cerceamento de defesa ou oblívio ao devido processo legal, porquanto o acusado se defende dos fatos narrados na denúncia e não do delito nela qualificado. 3. Hipótese em que a falta de intimação do acusado, em face da desclassificação do delito, não configura cerceamento de defesa. 4. Habeas Corpus indeferido. 35 Em decisão proferida em 26/11/1990, no habeas corpus nº 11.896/90, julgado pela 1ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal, tendo como relator o eminente juiz Pirajá Pires, a emendatio libelli inicial foi mantida. 36 Artigo 5º, inciso XXXIX: Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

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Porém, se é viável, conforme a máxima acusatoriedade,

a aplicação do disposto no artigo 383 do Código de Processo Penal, o mesmo não acontece com a previsão contida no dispositivo seguinte, que autoriza, sob diferentes aspectos, a modificação substancial da acusação, por força da alteração do fato investigado, consoante as provas produzidas,37 ultrapassando-se, em alguns casos, o perímetro traçado pela imputação contida no pedido acusatório.

É imperioso, desde logo, ressaltar que a mutatio libelli se refere a uma mudança de perspectiva, relativamente a elementares ou circunstâncias do fato sobre o qual se funda a pretensão, em decorrência de provas surgidas durante a instrução, mas não corresponde ao acréscimo de uma nova acusação ou de uma acusação por novos fatos.

Se isso ocorrer, se na instrução vierem à tona novas infrações penais de ação penal pública incondicionada, lembra Frederico Marques,38 cabe ao juiz dar a notícia crime a quem de direito (artigo 40 do Código de Processo Penal).

Apesar disso, no primeiro caso previsto na lei — mudança das circunstâncias ou elementares da conduta, com preservação ou atenuação da pena — sem que seja necessária ou exigível qualquer intervenção do acusador, admite-se que o juiz amplie a esfera das quaestiones facti, como, igualmente, assinala Frederico Marques,39 intervenha o magistrado no âmbito interno do direito de ação, por meio

37 Artigo 384: Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas. Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação penal pública, abrindo-se, em seguida, o prazo de 3 (três) dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas. 38 Marques, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, vol. II, p. 239. 39 Marques, José Frederico. Elementos... , vol. II, ob. cit., p. 238.

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da modificação da causa de pedir. Como tivemos a oportunidade de ressaltar, uma

alteração dessa natureza só é compatível com o princípio acusatório se decorrer da iniciativa do autor. De outro modo, violado estará sendo o mencionado princípio, ainda que, pela ponderação com o da justiça material, mitigado o efeito negativo pela implementação do contraditório que terá de instaurar-se, possa, com as reservas indicadas no item 3.2.2.2, aceitar-se o tratamento legal dispensado.

A Comissão referida anteriormente, presidida por Ada Grinover, propõe que a mutatio libelli em qualquer circunstância dependa de modificação da acusação pelo autor da ação penal, estando vedada alteração de ofício.

A nosso juízo, contudo, a mais grave violação ao princípio da congruência, decorrente do acusatório, é vista, no processo penal brasileiro, no artigo 408, § 4o, do Código. No citado dispositivo está consignado que, por ocasião da Pronúncia — decisão interlocutória que admite a acusação por crime doloso contra a vida e remete o processo ao Tribunal do Júri — o juiz não ficará adstrito à classificação do crime, feita na queixa ou denúncia, embora fique o réu sujeito à pena mais grave, atendido, se for o caso, o disposto no art. 410 e seu parágrafo.

A dispensa do aditamento à denúncia corresponde a uma verdadeira autorização deferida ao juiz, para que este modifique a acusação, independentemente da vontade do acusador, ainda que importe na aplicação, no futuro, de pena mais grave. Só precioso critério de matiz inquisitória, disfarçado em economia processual e obrigatoriedade da ação penal (de ofício), para explicar a medida. Ainda assim, o Supremo Tribunal Federal não lhe declarou, que seja do nosso conhecimento, a inconstitucionalidade,40 embora

40 O Supremo Tribunal Federal contenta-se com a ―implícita‖ descrição da novel figura jurídico-penal na inicial, o que, à toda evidência, é o mesmo que dispensar o juiz de concitar o acusador a alterar a acusação (aditar a inicial). Assim, na decisão transcrita na RT 336/495, referida por Hermínio Alberto Marques Porto (Júri, 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 87). No mesmo diapasão segue o Superior Tribunal de Justiça, conforme a decisão no Recurso

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setores significativos da doutrina concordem que a real aplicação da disposição está condicionada à manifestação do acusador.41

Finalmente, também em termos de mutatio libelli, temos no Brasil o mesmo tipo de resistência que em Portugal se enfrenta quanto ao que se considera violação, pelo Ministério Público, da reserva de função jurisdicional, por pretender atribuir ao fato que descreve na denúncia uma qualificação jurídica,42 dispondo, deste modo, do poder de determinar o tipo de procedimento e, o que nessa linha de argumento também se deduz, de até mesmo impedir a liberdade provisória,43 ou estabelecer, conforme perspectiva criativa, uma nova forma de prisão que não seja em flagrante ou decorrente de ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente: a prisão por opinio delicti,44 não prevista na Constituição.

Em que pese o respeito que merece quem sustenta a violação do monopólio de função jurisdicional pelo acusador, ao classificar juridicamente o fato, daí decorrendo uma série de conseqüências no conjunto das relações jurídicas processuais, sob pena de arrostar o princípio acusatório o juiz não pode atribuir à conduta do acusado objeto de sua atenção, e limite da sua futura decisão, uma qualificação distinta da operada pela denúncia ou queixa, se entre o fato narrado e esta qualificação promovida pelo acusador há

Especial nº 11070, da 6ª Turma, publicado no Diário de Justiça da União, p. 477 (citado por Damásio Evangelista de Jesus, in Código de Processo Penal Anotado, 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 283). 41 Marrey, Adriano; Franco, Alberto Silva; e Stoco, Rui. Teoria e Prática do Júri, 6ª ed. São Paulo: RT, 1997, pp. 226-227. 42 Pode-se dizer, naturalmente, o mesmo do ofendido, na ação penal de iniciativa privada. 43 De acordo com o artigo 2ª, inciso II, da Lei nº 8.072/90, Lei dos Crimes Hediondos, nos processos por crimes definidos como hediondos e assemelhados em seus efeitos, todas essas infrações são insuscetíveis de liberdade provisória. 44 Embora não concordemos com o argumento, temos de reconhecer a força da inteligência do Defensor Público fluminense, Paulo Alves Ramalho, que, em suas defesas nos Tribunais criminais do Rio de Janeiro, e em Brasília, nos Tribunais superiores, cunhou, pelo que é do nosso conhecimento, a expressão prisão por opinio delicti do acusador.

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perfeita sintonia. Pode ser, por exemplo, que os fatos apurados na

investigação criminal sejam diferentes do narrado na inicial (possuir drogas para uso próprio em lugar da conduta de trazer substância entorpecente, para fins de venda); pode ser que a descrição contida na denúncia ou queixa seja fruto de algum delírio, estando desconectada dos fatos efetivamente investigados.

Há, portanto, nestas hipóteses, desrespeito à exigência de justa causa para a ação penal pelo fato delirantemente deduzido, se a inicial for recebida pelo juiz e o processo penal condenatório seguir o seu curso normal, conformado à equivocada e abusiva classificação.

O caso é de rejeição da inicial, liminarmente ou pela via do habeas corpus, por falta de justa causa, extinguindo-se o processo, e não de se modificar o teor da acusação, por ato do juiz, com significativa perda da confiança que o acusado e a própria sociedade possam depositar na imparcialidade do magistrado e, o que é relevante, com ingerência do juiz sobre a causa de pedir e o pedido, isto é, em suma, sobre o conteúdo da própria acusação, direito do autor.

A rejeição da denúncia ou queixa, nesta situação, apesar dos autos de investigação criminal revelarem superficialmente a existência de uma infração penal, garantindo o princípio acusatório, coloca-o em primeiro plano e reserva ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, quando for o caso, uma posição secundária, porque a liberdade do acusado é mais importante, como direito fundamental, que a suposta necessidade de processar sempre, por todos os fatos.

Ademais, conciliam-se os princípios, ulteriormente, se, transitada em julgado a decisão de rejeição da inicial, nova acusação for formulada, pelo fato verdadeiramente verificado na investigação, não estando ao abrigo da coisa julgada, pois esta só alcança o fato principal, que tiver sido objeto da sentença (artigo 110, § 2o, do Código de Processo

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Penal).45 De se notar que a rejeição da denúncia ou queixa, por

falta de justa causa, corresponde a uma decisão necessariamente provisória sobre o mérito, à semelhança da sentença em processo cautelar, desde que não verse a propósito de causa extintiva da punibilidade.

Malgrado todas as considerações expostas, a linha decisória predominante no eg. Supremo Tribunal Federal é outra, como se pode aferir do relato de julgamento, pela Segunda Turma, divulgado no denominado Informativo STF de 8 a 12 de dezembro de 1997, no 96, publicado em 17 de dezembro, no Diário de Justiça da União e elaborado pela Assessoria da Presidência do Supremo Tribunal Federal a partir de notas tomadas nas sessões de julgamento das Turmas e do Plenário:

Segunda Turma Recebimento da Denúncia e Desclassificação Considerando que não cabe ao juiz, ao receber

a denúncia, desclassificar o crime nela narrado — hipótese distinta da prevista do art. 383 do CPP (―O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.‖), que faculta ao magistrado tal possibilidade no momento de prolatar a sentença — a Turma deferiu, em parte, habeas corpus interposto contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que recebera queixa-crime oferecida contra o paciente pelo crime de injúria e não de calúnia contra autoridade pública, tal como descrito na queixa (arts. 20, combinado com o art. 23, III, da Lei 5.250/67, Lei de Imprensa). No mesmo julgamento, ponderou-se, à

45 Artigo 110, § 2º, do Código de Processo Penal: A exceção de coisa julgada

somente poderá ser oposta em relação ao fato principal, que tiver sido objeto da sentença.

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vista da jurisprudência do Tribunal, que tanto o ofendido quanto o Ministério Público têm legitimidade concorrente para promover ação penal, quando se trate de ofensa propter officium. Precedentes citados: RE 104.478-MS (DJU de 4/10/85), HC 64.966-SP (DJU de 12/6/87), HC 74.649-DF (DJU de 10/10/97) e INQ. 726-RJ (RTJ 154/410). HC 76.024-RJ, rel. Min. Maurício Corrêa, 12/12/97.

Releva salientar, no tocante à disciplina das provas, que

a autorização prevista na parte final do artigo 156 do Código de Processo Penal, assim como, por exemplo, a disposição contida no artigo 209 do mesmo diploma,46 conferindo ao juiz poderes processuais de produção da prova, representa, conforme assinalamos ao abordarmos as características do sistema acusatório, violência flagrante ao referido modelo, quer em razão de atribuir ao juiz o que é direito das partes, conexo ao de ação e de defesa, e portanto, no primeiro caso, vinculado à acusação, quer por colocá-lo na difícil posição de investigador imparcial.

Todo investigador parte de uma premissa, que aceita como verdadeira, a ela se vinculando psicologicamente. No máximo, no exercício de poderes assistenciais ao acusado, visando tornar real a desejável paridade de armas e, em busca da justiça material, sem violar o princípio da presunção da inocência, estará o juiz autorizado a determinar provas cuidadosamente, mas consciente de que não respeitará, em concreto, o princípio acusatório.

Embora em outros julgados não siga essa linha, na irretocável decisão do Pretório Excelso, que inicia o nosso

46 Artigo 156 do Código de Processo Penal: A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante; artigo 209 do citado diploma: O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes. § 1º Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem.

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trabalho, visualiza-se, em determinado ponto, que merece ser transcrito, a idéia-força da atividade probatória como pertinente às partes, em especial à acusação, que tem o ônus de demonstrar os fatos sobre os quais alicerça a sua pretensão. Assim, pois, está consignado:

Nenhuma acusação penal se presume

provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-Lei no 88, de 20/12/37, art. 20, no 5).47

Do recurso de ofício Para finalizar, limitando o exame aos aspectos

principais do processo de conhecimento, sem prejuízo de reconhecer na execução penal, atualmente, carente da iniciativa do autor (salvo de modo restrito no caso de aplicação exclusiva de multa), da oralidade e de mais intensa publicidade, uma forma inquisitória mitigada pelo contraditório, deve ser objeto de menção o duplo grau obrigatório, denominado também recurso de ofício.

No artigo 574 do Código de Processo Penal está prevista a submissão da decisão proferida ao exame obrigatório pelo tribunal, como condição de eficácia da sentença. Assim, em relação à absolvição sumária do procedimento do júri, à decisão que concede habeas corpus, como também àquela

47 Habeas Corpus nº 73.338-7, impetrado em favor de José Carlos Martins Filho em face do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Relator Min. Celso de Mello. Acórdão da 1ª Turma, publicado no Ementário nº 1.855-2, do Supremo Tribunal Federal.

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que concede a reabilitação (artigo 746 do Código de Processo Penal), ou ainda arquiva inquérito ou absolve acusado, em crime contra a saúde pública ou economia popular (artigo 7o da Lei no 1.521/51), deve o juiz, independentemente de provocação, submetê-la ao reexame obrigatório.

Ada Grinover, Antônio Magalhães e Antônio Scarance asseveram que não encontra embasamento a classificação dos recursos, quanto à iniciativa, em voluntários e de ofício. Para os doutrinadores, qualquer recurso depende da iniciativa da parte, sendo sempre meio voluntário de impugnação.48 Daí concluem que o chamado recurso de ofício se apresenta como condição de eficácia da sentença. Apesar disso, a doutrina tem considerado a categoria jurídica em questão como recurso, malgrado anômalo49 ou necessário,50 cujo fundamento reside em se tratar de exigência do Estado, ditada por razões diversas, para assegurar obrigatoriamente, o duplo grau de jurisdição... para maior tutela dos interesses em jogo.51

Por isso, igualmente é recusada a alegação de sua inconstitucionalidade por contrastar com a norma predisposta no artigo 129, inciso I, da Constituição da República, conforme leciona Mirabete.52

Com a devida vênia dos que defendem ponto de vista contrário, nossa posição está em não ter sido acolhido pela Constituição, com a conformação que atualmente lhe defere a lei processual, o chamado recurso de ofício.

Sem dúvida alguma, não se trata de recurso, pois como tal entendemos o desdobramento do exercício dos direitos de

48 Grinover, Ada Pellegrini; Gomes Filho, Antônio Magalhães; Fernandes, Antônio Scarance. Recursos no Processo Penal, São Paulo: RT, 1996, p. 34. 49 Mirabete, Processo Penal, p. 587. 50 Tourinho Filho, Processo Penal, tomo 4, p. 263. 51 Idem, p. 266. 52 Convém analisar a decisão proferida no Recurso em Sentido Estrito nº 248/97-Cabo Frio, pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, relator Desembargador Paulo Ventura, dando integral aplicação à Súmula 423 do e. Supremo Tribunal Federal (Não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ex officio, que se considera interposto ex lege).

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ação e de defesa, que deve exigir como requisito prévio o interesse da parte, e promover, no seu processamento, de acordo com as normas de um devido processo legal, o contraditório interpretado como a dialeticidade que limitará o meio de impugnação, objetiva e subjetivamente, e proporcionará melhores condições de uma justa solução do conflito.

Como não há contraditório possível entre juiz e acusado no processo penal inspirado pelo princípio acusatório e como temos como imperativo constitucional este princípio, verdadeira condição de validade constitucional dos atos processuais, a sua dedução, visando impugnar decisão favorável ao acusado, é contrária à Constituição.

É preciso que se afirme claramente que, mesmo despido da roupagem de recurso, pela ausência do requisito da voluntariedade, o duplo grau obrigatório está previsto na lei exclusivamente para condicionar a eficácia de decisões favoráveis ao acusado, tais como as que o absolvem sumariamente, no procedimento do júri ou por crime contra a saúde pública, ou ainda julgam procedente pedido de habeas corpus.

Não há como disfarçar que o interesse público (estatal?) protegido mediante a atual conformação do duplo grau confunde-se com os interesses de defesa social que são perceptíveis a partir da consideração da repressão penal como vetor de uma ordem social que prestigia tal tutela prioritariamente.

Em tudo se assemelha a disposição ao contido no inciso II do artigo 669 do Código de Processo Penal, que prevê que só depois de passar em julgado a sentença absolutória, por crime a que a lei comine pena de reclusão, no máximo, por tempo igual ou superior a oito anos, será ela exeqüível.

À evidência o requisito acima mencionado, quanto à suspensão da imediata execução da sentença (art. 669, inciso II, do Código de Processo Penal), não tem mais aplicação porque atinge de plano o princípio da presunção da inocência. Se o réu é presumido inocente mesmo diante de sentença condenatória ainda passível de ser impugnada por

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recurso, por óbvio que com mais razão atuará o princípio se houver sido absolvido, não concorrendo em nenhum sentido a quantidade de pena cominada ou a gravidade da infração penal. Somente em um Estado extraordinariamente displicente com os princípios basilares das liberdades públicas, semelhante norma haveria de produzir efeito.

E é exatamente isto o que ocorre com o recurso de ofício, no processo penal brasileiro, hoje. O acento da preocupação do legislador não está, como deveria, na adequada tutela dos direitos fundamentais, de que tanto se falou neste trabalho. A ênfase toda recai na suspeição incidente sobre sentenças favoráveis ao acusado (ou investigado, ou condenado, no caso do habeas corpus), que podem indevidamente beneficiá-lo.

Ora, não é possível esconder que a dúvida sobre o acerto de tal tipo de decisão representa uma dupla desconfiança: primeiramente, suspeita-se que o juiz não saiba apreciar corretamente os casos em que beneficia o acusado, muito embora, quando a sentença é condenatória, não se presuma a mesma dificuldade; em segundo lugar, e mais uma vez, admite-se que o Ministério Público pode ficar negligentemente inerte diante de decisão injusta ou nula favorável ao réu, apesar de também não se cogitar de negligência se a decisão é contrária ao acusado.

Em ambos os casos, a tutela levada a efeito nada mais significa que uma presunção contra a inocência do agente, presunção que além de tudo está calcada na suposição da inércia do Ministério Público e, portanto, na necessidade de prolongar o processo penal para além do provimento judicial de resolução do conflito acatado pelas partes.

Há contraste com o princípio acusatório. Mas esta confrontação seria aceitável, na perspectiva constitucional, se estivesse voltada à tutela dos interesses do acusado. Nesta hipótese, o princípio da proporcionalidade, somado ao favor rei e inspirado no de justiça material, justificariam a compressão das normas que positivam o princípio acusatório. Um recurso de ofício de decisão condenatória, aplicando pena de prisão por longo período, em regime

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rigoroso, violaria o sistema acusatório, todavia poderia ser aceito em face do critério de proporcionalidade antes mencionado.

Como acontece exatamente o oposto, há de ser afastado o duplo grau obrigatório ou recurso de ofício. 53

Da compreensão cênica Neste capítulo 4, dedicado ao Sistema Acusatório e o

processo penal brasileiro, na terceira edição acrescento este item, sobre posicionamento das partes em sala de audiências.

Para o leitor estrangeiro desta obra (se é que existe) falar em assento das partes em sala de audiências criminais pode parecer, à primeira vista, incompreensível. Afinal, na caminhada em direção ao estabelecimento do status de autonomia das partes frente ao juiz, que marca o enraizamento do Sistema Acusatório no resto do mundo, o lugar ocupado pelas partes na sala de audiências é considerado projeção desse status e tem a finalidade de deixar evidente a independência do Ministério Público e da Defesa em relação ao juiz.

E o Sistema Acusatório é isso: ausência de vínculo de subordinação das partes ao juiz e compreensão de que, se o juiz tem o poder de decidir, as partes têm o direito de participar do processo e cooperar no sentido de que se produza a melhor (mais justa) decisão possível.

Em todos os lugares, portanto, é questão elementar distinguir o Ministério Público do Tribunal, assegurando ao Ministério Público local na sala de audiências que não o confunda com o juiz.

Há, porém, as jaboticabas. Estas são tipicamente brasileiras, já se disse. Talvez elas não sejam os únicos produtos exclusivamente brasileiros que deram certo. Por

53

Marcellus Polastri Lima igualmente salienta a inconstitucionalidade do recurso de ofício, com precisa fundamentação, com a qual concordamos. Curso de Processo Penal, vol. 1, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002, p. 151.

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cautela, porém, não devemos nos esquecer da advertência do escritor: cuidado com o que só existe no Brasil e não é jaboticaba!

A razão dessas linhas é comentar que a combinação de princípios e regras que compõem o Sistema Acusatório, definindo seus elementos, deve ultrapassar o umbral das coisas teóricas e chegar à cultura. Sem a vivência cotidiana a nos revelar as contradições entre o dever ser de respeito às igualdades e o ser concreto de frustração deste objetivo, nós brasileiros em determinado momento chegamos a achar natural e perfeita a instituição da escravidão.

Muitas vezes somente a ruptura tem capacidade de transformar a realidade. Persuadir as forças dominantes a abrir mão da situação de conforto gerada pela dominação é acreditar em uma inocência do poder desmentida no dia-a-dia.

Para a ruptura, porém, é preciso antes a posição de estranhamento. São os antropólogos que nos lembram disso. Quando todos os conviventes de uma determinada sala diariamente se encontram e estão de terno e gravata, há a tendência a aceitar que os demais seres viventes também usam terno e gravata o dia todo! É preciso, pois, estranhar, duvidar da normalidade das coisas e fixar o espírito questionador para buscar na história a razão de ser das categorias e instituições do direito e, sendo o caso, transformá-las.

A se acreditar na ―normalidade‖ da escravidão, estaríamos ainda hoje sob a égide do estado anterior à Lei Áurea, que libertou os escravos no Brasil em 13 de maio de 1888. A tradição que nos orienta é aquela que condiz com os propósitos democráticos de expansão da liberdade que, no passado, era bem de posse de poucos, mas hoje é promessa constitucional para a fruição de todos.

Feita a digressão necessária é o caso de registrar que em nenhum outro país o Ministério Público com atuação na área criminal se senta no lugar destinado ao tribunal, isto é, ao lado do juiz. Não se trata de um problema na Europa ou nos Estados Unidos da América, pois quando o Ministério

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Público conquistou autonomia em face do juiz, com o fim da inquisição, conquistou, conseqüentemente, o direito de não ser confundido com o tribunal. Trata-se de direito do Ministério Público.

Por que no Brasil, hoje, ainda é diferente e na sala de audiências criminais o Ministério Público se senta ao lado do juiz?

O antropólogo Roberto DaMatta, na explêndida análise do dilema brasileiro e no tópico dedicado à igualdade, formula uma tentativa de explicar outra genuína criação brasileira: o argumento de autoridade expresso na máxima ―você sabe com quem está falando!‖

De acordo com Roberto DaMatta, a definição de traços hierarquizantes na sociedade brasileira, percebida por Machado de Assis, explica a reinvenção do princípio da igualdade, por meio da qual a posição social assegura a validade do argumento que é empregado não para convencer, mas para dissuadir.54

Na realidade, segundo nossa ótica, a diferença do estado da matéria no Brasil, em comparação com outros países, é ditada pelo fato de não ter se completado o processo de autonomia do Ministério Público.

Com efeito, o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado. Isso é indiscutível. Também merece ser colocado em relevo que em sociedades com baixa densidade de organização social, como é o nosso caso, instituições como o Ministério Público são fundamentais para a consolidação da democracia, pois que postulam a tutela efetiva de direitos difusos e coletivos que beneficiam grandes setores da população que, de outra maneira, estariam fora do circuito de gozo desses direitos.

De 1988 para cá o Ministério Público deu passos largos para ocupar espaço condizente com as funções constitucionais e hoje, no horizonte das vitórias que a democracia brasileira computa é inegável a parcela de

54

DAMATTA, Roberto. Carnaval, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, 6ª ed., Rio de Janeiro, Rocco, 1997, p. 203.

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responsabilidade dessa instituição.55 A autonomia administrativa, econômica e financeira do

Ministério Público também foi alcançada em boa medida, da mesma forma que o poder de gestão da própria instituição com independência do poder de origem político-partidária.

A questão examinada neste tópico se coloca, pois, com exclusividade na seara penal. E o campo penal, no Brasil, como demonstrado ao longo do trabalho, que tem ficado impermeável à cultura da acusatoriedade.

Foi visto como ainda hoje se defende a existência de poderes probatórios do juiz. Ligou-se o fato à idéia de que a jurisdição penal está inserida no programa de segurança pública do Estado e não dirigida à defesa das garantias processuais, entre as quais há de ser ressaltado o direito ao julgamento por juiz imparcial. Salientou-se que o mesmo ocorre quando se trata de deferir ao juiz o poder de modificar o conteúdo da acusação (mutatio libelli). Em ambas as situações a ordem jurídica infraconstitucional procura enquadrar as funções do Ministério Público, que é olhado com desconfiança, como se seus membros não pudessem ser dotados de liberdade para agir em defesa da sociedade. É preciso, segundo a lógica inquisitorial que preside estes institutos (artigos 156, parte final, e 384 do Código de Processo Penal), transformar o juiz em fiscal do Ministério Público. E isso é feito desde antes do processo (artigo 28 do Código de Processo Penal), com a atribuição ao juiz do controle da obrigatoriedade da ação pública.

Como sabem os sociológos56 as práticas sociais têm

55

Basta ver neste ano de 2005 as ações efetivas do Ministério Público contra a remanescência do trabalho escravo e a negação de efetividade aos direitos à saúde e educação. Com base em ações coletivas promovidas pelo Ministério Público, vários grupos de pessoas foram libertados da cndição análoga a de escravo e outros tantos tiveram acesso a remédios e escolas que, de outro modo, não ficariam acessíveis. 56

Convém examinar a pesquisa coordenada por Sérgio Adorno, na USP, intitulada Dossiê Judiciário.: Crime, Justiça Penal e Desigualdade Jurídica: as mortes que se contam no Tribunal do Júri (Revista USP, 21, março-abril-maio de 1994, p. 132).

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mais força que as ordens do direito emanadas abstratamente. Não fossem suficientes as amarras jurídicas mencionadas, a enlaçar o Ministério Público ao juiz, coloca-se o próprio Promotor de Justiça fisicamente ao lado do juiz.

É claro que além da óbvia mensagem subliminar endereçada ao réu, de que a justiça penal tem função repressiva, motivo pelo qual juiz e Ministério Público estão aliados na tarefa de punir, há outra igualmente sutil, dirigida ao próprio Ministério Público. Segundo esta interpretação, a posição do Ministério Público ao lado do juiz é justificada por discurso que ressalta a importância da instituição, todavia deixa abaixo da superfície a intenção de controle judicial das funções de persecução.

Não há dúvida de que os objetivos latentes podem não se realizar por conta da autonomia com que cada membro do Ministério Público se comporta. Isso, também, é aplicável ao instituto da mutatio libelli, à produção de provas de ofício pelo juiz e à posição do Procurador-Geral de Justiça, que no exercício da atividade posta pelo artigo 28 do Código de Processo Penal poderá manter o ponto de vista (decisão) do Ministério Público que oficiou pelo arquivamento da investigação criminal.

A questão está naquilo que foi objeto de advertência no início do trabalho. Em uma democracia privilegia-se o governo sob a égide das leis e não de acordo com a arbitrariedade incontrolável do ser humano.

Assim, não basta ao juiz a confiança na própria imparcialidade. É necessário que se afaste do processo se antes funcionou como perito (artigo 252 do Código de Processo Penal). Assim, não basta para as partes (Ministério Público e Defesa) confiança na autonomia do Ministério Público e na não intervenção do juiz na atuação do Ministério Público. É necessário que o Ministério Público ocupe o seu lugar de parte, na sala de audiências, mantendo o juiz eqüidistante do Ministério Público e da Defesa.

Essas são considerações sobre o tema que, em realidade, não deixam de levar em conta os argumentos apresentados pelos juzes criminais do Rio de Janeiro,

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Rubens Casara e André Nicolitt, nas decisões pioneiras proferidas na 2ª Vara Criminal de Itaperuna (MS/proc. 2004.078.00039) e em Arraial do Cabo (proc. 2003.005.000056-7), objeto de mandado de segurança, com base em conceitos defendidos por Hassemer e Habermas. Também foram considerados os argumentos do voto condutor do acórdão proferido na Sétima Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pelo Desembargador Eduardo Mayr, Relator do Mandado de Segurança n. 035/04, que manteve a decisão de deslocar o Ministério Público da posição ao lado do juiz para outra simétrica a da Defesa e a tese exposta pelo jurista e Desembargador do Rio de Janeiro, Silvio Teixeira, citado por Rubens Casara nas informações do mandado de segurança.

Por igual foram considerados os argumentos de Lênio Luiz Streck, em artigo denominado A CONCEPÇÃO CÊNICA DA SALA DE AUDIÊNCIA E O PROBLEMA DOS PARADOXOS, recebido com carinho e que em breve será publicado no site www.leniostreck.com.br.

Conclusão do capítulo 4 De tudo o que foi visto é possível ratificar a advertência

feita no começo deste item. Tal seja, de que no Brasil, certamente não é tarefa fácil assinalar com precisão, acima dos interesses que movem os juristas, motivados pelo sentido e função que atribuam ao Processo Penal e pela maneira como viveram a experiência política do seu tempo, que sistema processual vigora ou que sistema em outras épocas imperou.

Assim, se aceitarmos que a norma constitucional que assegura ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, na forma da lei, a que garante a todos os acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, além de lhes deferir, até o trânsito em julgado da sentença condenatória, a presunção da inocência, e a que,

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aderindo a tudo, assegura o julgamento por juiz competente e imparcial, são elementares do princípio acusatório, chegaremos à conclusão de que, embora não o diga expressamente, a Constituição da República o adotou.

Verificando que a Carta Constitucional prevê, também, a oralidade no processo, pelo menos como regra para as infrações penais de menor potencial ofensivo, e a publicidade, concluiremos que se filiou, sem dizer, ao sistema acusatório.

Porém, se notarmos o concreto estatuto jurídico dos sujeitos processuais e a dinâmica que entrelaça todos estes sujeitos, de acordo com as posições predominantes nos tribunais (principalmente, mas não com exclusividade no Supremo Tribunal Federal), não nos restará alternativa salvo admitir, lamentavelmente, que prevalece, no Brasil, a teoria da aparência acusatória.

Muitos dos princípios opostos ao acusatório verdadeiramente são implementados todo dia. Tem razão o mestre Frederico Marques ao assinalar que a Constituição preconiza a adoção e efetivação do sistema acusatório. Também tem razão Hélio Tornaghi, ao acentuar que há formas inquisitórias vivendo de contrabando no processo penal brasileiro, o que melhor implica em considerá-lo, na prática, misto. O princípio e o sistema acusatórios são, por isso, pelo menos por enquanto, meras promessas, que um novo Código de Processo Penal e um novo fundo cultural, consentâneo com os princípios democráticos, devem tornar realidade.

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5. -O Sistema Acusatório e a Legislação Processual Posterior à Constituição

Um exame mesmo superficial da Constituição da

República revela ao estudioso do Direito Penal que a preocupação dos constituintes, em matéria penal, não se restringiu somente à determinação de normas de conteúdo ético-jurídico, voltadas à contenção do poder punitivo estatal, mas agora, também, demonstrou significativa mobilização, em face da disposição de juízos de valor sobre a substância da proibição.

Trata-se de uma perspectiva de incriminação de condutas cogitada pela própria lei maior.

Temos, assim, a previsão, no artigo 98, inciso I, da instituição de juizados especiais criminais, competentes para o julgamento de infrações penais de menor potencial ofensivo,1 correspondendo tal juízo à tese, amplamente difundida na Alemanha e em outros países, de que há um número importante de fatos delituosos que justificam a intervenção do Estado, porém não exigem, como natural contrapartida, a imposição de graves sanções penais.

No pólo oposto, há as infrações de especial ou maior gravidade, tendo a Constituição se referido diretamente aos crimes hediondos, à tortura, ao tráfico ilícito de entorpecentes, ao terrorismo, à prática de racismo e à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem

1 Artigo 98, inciso I, da Constituição: A União, no Distrito Federal e nos

Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

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constitucional e o Estado Democrático.2 Em todos os casos, é possível perceber o reflexo

imediato da atitude constitucional no campo processual, não só pela mecânica de compressão dos direitos fundamentais, com diferentes propósitos, mas também porque o procedimento penal consensual não pode ser exatamente igual ao de apuração de infrações penais mais sofisticadas.

A natureza desigual das ações delituosas e das formas mais recomendadas à eficácia da apuração, levando em consideração os fins manifestados pela Carta Constitucional, impele o ordenamento jurídico a estruturar diferentes procedimentos. A isso podemos denominar princípio da adequação dos procedimentos, cujos mandamentos têm por destinatários tanto o legislador como o juiz penal.

Dedicaremos este capítulo ao estudo das características do modelo processual pertinente à investigação da denominada ação de organizações criminosas, daquele relativo às infrações penais de menor potencial ofensivo, e da disponibilidade jurídica de uma importante técnica de aquisição de provas — a interceptação das comunicações telefônicas —, não avançando sem, antes, advertir que objetivo da abordagem não é o de comentar as leis, mas de verificar apenas aquilo que nelas as vincula ao sistema acusatório, eleito também na Constituição da República, teórica e praticamente.

Comecemos, pois, em obediência à ordem cronológica do aparecimento dos diplomas legais e à forma instrumental como se articulam.

2 Artigo 5º, inciso XLII, da Constituição: a prática do racismo constitui

crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

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5.1. -A Lei de Controle do Crime Organizado3 e a Lei das Interceptações Telefônicas

Observo ao leitor que permanecem válidas todas as

objeções formuladas sobre o tema nas duas primeiras edições do Sistema Acusatório.

Assim, a análise crítica acerca da cultura inquisitorial identificada na aceitação inicial da aplicação do artigo 3º da Lei nº 9.034/95, percebida no indeferimento de medida liminar em ação direta de inconstitucionalidade promovida pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL – (ADI 1517 MC/UF), sob o argumento de que as atividades de investigação do juiz, na fase de inquérito, não violavam regras constitucionais, é válida, ainda que o Supremo Tribunal Federal tenha mudado completamente sua posição.

Por maioria de votos, Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu julgar procedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República, com o mesmo objeto, e declarar a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.034/95, que instituiu a figura do juiz investigador (ADI 1570/UF, rel. Ministro Maurício Corrêa, julgamento em 12 de fevereiro de 2004, com voto vencido do Ministro Carlos Velloso).

São vários, porém, os projetos de lei com previsão de criação da figura do juiz de instrução no Brasil e a atualidade da crítica reforça a tarefa de defesa da Constituição da República de 1988, que também está a cargo da doutrina.

Também a análise sobre sigilo bancário está superada pelo advento da Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de 2001.

Por isso e pelo valor histórico dos argumentos que foram apresentados por ocasião de defesa pública deste trabalho, o texto a seguir foi mantido inalterado. 3 A respeito do tema, remeto o leitor ao nosso trabalho Crime Organizado,

Rio de Janeiro: Impetus, 2000.

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Em 4 de maio de 1995, entrou em vigor a Lei no 9.034, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.

A iniciativa demonstra a preocupação dos poderes públicos com a adequação da legislação, para tentar controlar o crime organizado, na seqüência da tendência de aumento da repressão, denominada de filosofia, política criminal ou movimento de Lei e Ordem, em consideração ao afirmado incremento da criminalidade violenta e sofisticada.

Em concreto, a lei editada procurou aparelhar os órgãos encarregados do controle social repressivo, conferindo, especialmente ao Judiciário, instrumentos normativos, por meio dos quais deseja alterar o panorama processual, incentivando a participação do juiz na busca da verdade real.

Na época da edição da mencionada lei, comentamos que foram instituídas, para isso, novas atribuições do juiz.4 Acentuávamos, já naquele momento, que a busca das provas da autoria e da existência da infração penal, pelo juiz, por mais grave que possa parecer o delito, compromete a imparcialidade daquele que vai decidir, dentro de uma perspectiva de que a jurisdição difere do exercício da ação penal e que este, por sua vez, não se resume a deflagrar-se o processo por meio da petição inicial, compreendendo, ainda, as práticas da ação cautelar, no tocante à aquisição e preservação das provas, além dos demais atos desenvolvidos no curso do processo de conhecimento, com o escopo de conformar a convicção judicial.

Tratando a lei da disciplina da persecução preparatória da ação penal, inseriu o juiz nesta tarefa, em que pesem às conseqüências do seu envolvimento, nas atividades preliminares à apresentação da lide.

Repita-se, portanto, que, pelo menos do ponto de vista psicológico, por mais sereno que seja o magistrado, sua inserção na mencionada atividade implicará certo grau de

4 Prado, Geraldo; Douglas William. Comentários à Lei Contra o Crime

Organizado, Belo Horizonte: Del Rey, 1995.

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comprometimento com os fatos apurados, afastando-se o julgador do ponto de equilíbrio que, como garantia das partes, traduz-se no princípio do juiz imparcial.5

Com efeito, a imparcialidade do juiz é o pilar de sustentação do tríptico do princípio acusatório, basilar em um processo penal democrático, de tal sorte que lhe entregar funções diversas daquelas típicas do exercício da jurisdição — dizer o direito e atuá-lo praticamente — acaba desnaturando o instrumento.

Apesar dos avisos de preocupação que na ocasião emitimos, concretamente acabamos por sustentar que não se devia, a priori, acoimar de inconstitucional a entrega de atividades probatórias ao juiz, na fase preliminar, porquanto, ainda que limitadamente, este teria condições de desenvolver a sua atuação com base nos poderes processuais conferidos pelo abordado artigo 156, parte final, do Código de Processo Penal ou, com maior freqüência, ou propriedade, no âmbito do processo penal cautelar, preservando os direitos fundamentais do investigado.

Acrescentamos que, nas hipóteses em que a obtenção e seleção de dados viessem a servir de pilar da denúncia, não estaria o magistrado impedido de funcionar no processo de conhecimento, salvo se resultasse da instrução preliminar a emissão de um juízo de valor.

Hoje vemos este posicionamento como típica interpretação da lei, em conformidade com a Constituição, porém, contra legem, modalidade interpretativa reputada por Canotilho como inapta a conferir validade à norma interpretada.

Segundo o mestre português, impõe que o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme à constituição, mesmo que através dessa interpretação 5 Garantia forte, assinalaria Ferrajoli, como tal classificando aquelas que, em

um sistema garantista, comportam diretamente a nulidade dos desvios, a minimização da discricionariedade dos poderes de investigação e a supressão dos poderes de disposição impróprios, cujo exercício é fonte inevitável de abusos (Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 594).

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consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais.6

Ao afiançarmos a constitucionalidade dos dispositivos da Lei no 9.034/95, designadores ao juiz de funções de persecução,7 porque poderia dar cabo delas com isenção, sem parcialidade, ou com fundamento em uma intervenção cautelar jurisdicional, assinalamos à lei uma interpretação que não condiz com a sua letra e com o seu espírito.

O que realmente deseja o legislador é maior eficácia persecutória, mais repressão, e por essa razão antecipa a intervenção judicial e oferece ao juiz as condições que o titular da ação penal deveria dispor, para preparar-se com vista à deflagração da citada ação, e exigindo do magistrado, em troca, sutilmente, a incorporação de um interesse público ou institucional voltado à repressão dos delitos.

No mesmo sentido, em 24 de julho de 1996, foi editada a Lei no 9.296, que regulamenta o inciso XII do artigo 5o da Constituição, dispondo sobre os casos e formas de interceptação das comunicações telefônicas.

O que nos interessa para o exame da conformidade ao sistema acusatório é o artigo 3o, caput, pelo qual são designados os legitimados a por em marcha o procedimento, aparecendo menção à atuação do juiz, de ofício,8 enquanto ao acusado e seu defensor negou-se qualquer referência expressa.

Reafirma-se que a pesquisa e seleção de provas,

6 Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional, pp. 235-236. 7 Funções que este deve desempenhar pessoalmente, recolhendo e

selecionando informações que venham a servir de suporte para potencial acusação

8 Artigo 5º, inciso XII, da Constituição: é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; artigo 3º da Lei nº 9.296/96: A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício, ou a requerimento: I — da autoridade policial, na investigação criminal; II — do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução processual penal.

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principalmente se não há ação penal proposta, para o julgador importa na emissão, expressa ou tácita, de juízos de mérito antecipados, que não se confundem, por exemplo, com as sentenças estatuídas no artigo 516 do Código de Processo Penal — que rejeitem a denúncia ou queixa em vista do convencimento da improcedência da ação penal — ou que igualmente rejeitem a inicial acusatória fundada na falta de justa causa, porquanto nestes casos a ação penal é proposta pelo autor, que para ela se prepara sem a colaboração do juiz.

Muito embora não se controverta sobre o fato de que a preservação do sistema acusatório não inviabiliza a adoção de medidas destinadas a garantir o êxito ou evitar a frustração dos processos de conhecimento condenatório e de execução penal, tratando-se aí de tutela cautelar. Também neste caso são requisitadas as manifestações dos interessados (a Polícia ou o virtual autor da ação penal) consoante as considerações anteriores, não tendo sentido que o juiz atue de ofício, implementando providências que se mostrem inúteis para aqueles interessados ou denunciem a suspeita do juiz em relação ao investigado — com a inversão, na prática, do princípio da presunção da inocência.

Numa solução de compromisso, chegamos a concluir, a respeito da Lei no 9.034/95, que só seriam considerados constitucionais os atos do juiz, relativos à obtenção, pessoalmente, de elementos de prova, se decorrentes da necessidade da medida, na presença do fumus boni juris, devendo, todavia, à vista da imprescindível preservação da imparcialidade do julgador, dar-se este por impedido sempre que, à colheita de dados ou informações, seguir-se a sua seleção, de modo a executar tarefa típica de perito.9

Pode-se compreender a dificuldade de conciliação dos preceitos, à luz da matéria que se avalia, e que, com efeito, consiste nas disposições adiante transcritas, reforçadas, posteriormente, pela regulação da interceptação das

9 Prado, Geraldo e Douglas, William. Comentários à Lei Contra o Crime

Organizado, pp. 36-37.

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comunicações telefônicas como meio de prova:

Art. 3o Nas hipóteses do inciso III, do art. 2o desta Lei, ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça.

§ 1o Para realizar a diligência, o juiz poderá requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza da função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aos objetos do sigilo.

§ 2o O Juiz, pessoalmente, fará lavrar auto circunstanciado de diligência, relatando as informações colhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos documentos que tiverem relevância probatória, podendo, para esse efeito, designar uma das pessoas referidas no parágrafo anterior como escrivão ad hoc.

§ 3o O auto de diligência será conservado fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem intervenção de cartório ou servidor, somente podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as partes legítimas da causa, que não poderão dele servir-se para fins estranhos à mesma, e estão sujeitas às sanções previstas pelo Código Penal em caso de divulgação.

§ 4o Os argumentos de acusação e defesa que versarem sobre a diligência serão apresentados em separado para serem anexados ao auto da diligência, que poderá servir como elemento na formação da convicção final do juiz.

§ 5o Em caso de recurso, o auto de diligência será fechado, lacrado e endereçado em separado para o juízo competente para a revisão, que dele tomará conhecimento sem intervenção das secretarias e gabinetes, devendo o relator dar vistas ao Ministério Público e ao Defensor em recinto isolado, para o efeito de que a discussão e o

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julgamento sejam mantidos em absoluto segredo de justiça.

Luiz Flávio Gomes apresentou objeção à

constitucionalidade dos referidos dispositivos que, inegavelmente, deferem ao juiz iniciativas probatórias, assinalando que a lei de controle do crime organizado acabou criando... uma monstruosidade, qual seja, a figura do juiz inquisidor, nascida na era do Império Romano, mas com protagonismo acentuado na Idade Média.10

Salienta o culto professor paulista, na esteira do magistério de Ferrajoli, que o sistema acusatório configura-se à base de um juiz como sujeito passivo, rigidamente separado das partes, ao passo que, no sistema inquisitório, o juiz procede de ofício, na busca das provas,11 sendo exatamente essa última a atitude esperada dele, pelo legislador, diante dos diplomas estudados.

A motivação psicológica ou social do deslocamento da figura do juiz, conforme a função de investigação que lhe é designada pelas citadas leis, consiste em uma concepção do poder jurisdicional e da verdade que a sentença há de conter, ao final de um virtual processo condenatório, em tudo distinta dos padrões epistemológicos encarnados pelo sistema acusatório. Ferrajoli aduz com convicção que o método inquisitivo expressa uma confiança tendencialmente ilimitada na bondade do poder e na sua capacidade de alcançar a verdade.12 É exatamente esta confiança resoluta na bondade do poder que o sistema acusatório renega, afastando o juiz do conflito, antes da sua dedução pelas partes, e complementando a atividade jurisdicional com preceitos de oralidade, publicidade, legalidade dos procedimentos e motivação das decisões, pois que se tem por premissa a desconfiança no poder como fonte

10 Gomes, Luiz Flávio. Crime Organizado: Enfoques criminológico, jurídico

(Lei 9.034/95) e Político-criminal, 2ª ed. São Paulo: RT, 1997, p. 133. 11 Idem, p. 135. 12 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 604.

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autônoma da verdade.13 Muito embora a concordância das duas afirmações que

se seguem tenha a aparência de uma evidência, incontestável à primeira vista, uma delas a respeito da eleição constitucional do sistema acusatório e, portanto, do princípio que lhe confere a designação, e a outra, resultante do reconhecimento que, ao atribuir ao juiz a realização pessoal de diligências de investigação, com seleção do material apurado, sem provocação dos interessados, tais sistema e princípio são violados, concretamente o Supremo Tribunal Federal não a aceita assim e se posiciona diferentemente.14

Duas ações diretas de inconstitucionalidade foram propostas perante a e. Corte, com pedido de medida liminar, sob o fundamento da invalidade de se conferir as atividades persecutórias em questão ao juiz, sendo certo que, até a presente data, apenas um dos casos foi apreciado, indeferindo-se a liminar. Vale, pelo que importa em termos de assinalar à eleição do sistema acusatório uma constitucionalidade meramente simbólica, na linha preconizada por Marcelo Neves, transcrever a nota do julgamento da liminar, pelo Plenário, divulgada no Informativo no 69, de 28 de abril a 5 de maio de 1997, do eg. Supremo Tribunal Federal:

Diligências realizadas por juiz - I Indeferida a cautelar requerida pela

Associação dos Delegados de Polícia do Brasil — ADEPOL em ação direta de inconstitucionalidade contra o art. 3o e seus parágrafos da lei federal no

13 Idem. 14

Ver mudança de posição do Supremo Tribunal Federal, noticiada no início deste item O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu julgar procedente pedido em ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Procurador-Geral da República, para declarar a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 9.034/95, que instituiu a figura do juiz investigador (ADI 1570/UF, rel. Ministro Maurício Corrêa, julgamento em 12 de fevereiro de 2004, com voto vencido do Ministro Carlos Velloso).

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9.034/95, que — dispondo sobre o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais durante a persecução criminal que verse sobre ação praticada por organizações criminosas — estabelece que, ―ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz‘ o qual ‗fará lavrar auto circunstanciado da diligência, relatando as informações colhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos documentos que tiverem relevância probatória...‖. A referida lei determina, ainda, que ―o auto de diligência será conservado fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem intervenção de cartório ou servidor, somente podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as partes legítimas na causa, que não poderão dele servir-se para fins estranhos à mesma, e estão sujeitas às sanções previstas pelo Código Penal, em caso de divulgação‖.

Diligências realizadas por juiz - II O Tribunal, por maioria de votos, entendeu

que os argumentos sustentados pela autora da ação — usurpação da função de polícia judiciária (CF, art. 144, § 1o, IV, e § 4o), ofensa ao devido processo legal (art. 5o, LIV) devido ao comprometimento da imparcialidade do juiz na apreciação de provas por ele próprio colhidas e ofensa ao princípio da publicidade (CF, art. 5o, LX) — não possuíam a relevância jurídica necessária para o deferimento da liminar. À vista dessas alegações, considerou-se: a) que o magistrado tem poderes instrutórios e a investigação criminal não é monopólio da polícia judiciária; b) que a coleta de provas não antecipa a formação de juízo condenatório; c) que a CF autoriza restrições ao princípio da publicidade (CF, art. 5o, LX). Vencido o Min. Sepúlveda Pertence, que deferia a liminar

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por violação ao princípio do devido processo legal por entender que a coleta de provas desvirtua a função do juiz de modo a comprometer a imparcialidade deste no exercício da prestação jurisdicional. ADIN 1.517-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, publicada em 30 de abril de 1997.15

Sublinhando o Supremo Tribunal Federal a existência

de poderes judiciais de investigação, opta a e. Corte por uma concepção restrita de princípio acusatório, excluindo do conceito os elementos pertinentes à atuação do juiz, na instrução, e sinalizando neste sentido não apenas na direção dos procedimentos que a Lei no 9.034/95 criou, como também em relação a todos aqueles instituídos para o processo penal de conhecimento condenatório, o que vai refletir, sem dúvida, na validade da interceptação telefônica determinada de ofício. Ada Grinover, militando entre os que declaram a inconstitucionalidade dos citados preceitos da Lei no 9.034/95,16 concita a não-aplicação desta lei, editada muito mais em conta da sua eficácia simbólica, como verdadeiro e acabado exemplo de legislação-álibi, do que propriamente por causa de alguma fé inabalável nos predicados intelectuais dos juízes.

Outro importante ponto de (des)conexão com o sistema acusatório, na Lei nº 9.034/95, refere-se à publicidade dos procedimentos.

Deve ser observado que o cuidado que a legislação aparenta dispensar à intimidade e vida privada pode ser alcançado sem distorção do sistema acusatório, e com a exigência, aliás sempre presente, em se cuidando de

15 As Ações são as seguintes: Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.517-6-

DF, requerida pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil — ADEPOL, sendo relator o Ministro Maurício Corrêa, e Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.570-2-DF, requerida pelo Procurador-Geral da República, sendo relator também o Ministro Maurício Corrêa.

16 Grinover, Ada Pellegrini. ―O Crime Organizado no Sistema Italiano‖, in O Crime Organizado (Itália e Brasil): A Modernização da Lei Penal. Penteado, Jaques de Camargo (coord.), pp. 13-29.

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informações bancárias, dos interessados na aquisição dos elementos de convicção baterem à porta do Judiciário, requerendo-os17.

Cumpre à justiça, então, o papel que a Constituição lhe impõe, de garante dos direitos fundamentais, sem embaraçar a ação de investigação e atormentar a consciência dos acusados com especulações sobre a imparcialidade do julgador.

Exemplo disso pode ser visto na jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, que deliberaram, em várias oportunidades, antes da edição da lei sob comento, o modo de ordenação e execução da colheita de informações pertinentes à esfera íntima do indivíduo. O objetivo da orientação jurisprudencial consistiu na proteção do direito à vida privada, de índole constitucional, isso embora o Ministério Público, mesmo antes do advento da Lei no 8.625/93, tenha reivindicado, à luz do artigo 29 da Lei no 7.492/86, o acesso às informações bancárias, o que só lhe era deferido no estreito âmbito dos crimes previstos no citado estatuto.

A este respeito, convém trazer à colação ao menos o seguinte acórdão, do não menos prestigiado Tribunal Regional Federal da 2a Região:

Habeas Corpus — Gerentes Administrativos

de Bancos Particulares — Quebra de Sigilo Bancário.

I — Somente ao Poder Judiciário e às CPI‘s do Legislativo cabe decidir sobre quebra do sigilo bancário, ex vi do art. 38 da Lei no 4.595/64. O dispositivo não foi revogado pelo artigo 129, VI, da Constituição Federal que, dispondo sobre os poderes do Ministério Público, inclui os de

17

Hoje a matéria pertinente ao sigilo bancário está tratada na Lei Complementar n. 105, de 10 de janeiro de 2001. Recomenda-se a leitura do excelente livro de Juliana Garcia Belloque, Sigilo Bancário (São Paulo, RT, 2003).

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requisitar informações e documentos para instruir procedimentos administrativos de sua competência.

O pressuposto é a existência de procedimentos administrativos de competência do Ministério Público.

Além disso, o dispositivo carece de regulamentação por lei complementar (art. 129, VI). Quanto ao artigo 29 da Lei no 7.492/86, permite ele a requisição pelo Ministério Público de documento ou diligência a ―qualquer autoridade‖.

A autoridade, no caso, seria dirigente do Banco Central e não o gerente do banco, que não é titular de cargo ou função pública. Em suma, mesmo em se admitindo a legitimidade do Ministério Público para requisitar a quebra do sigilo bancário em caso de crime econômico, tal requisição deveria ter sido dirigida ao Banco Central, ao qual poderiam as impetrantes fornecer os dados sem incidir nas penas cominadas ao crime de quebra de sigilo bancário.

II — Ordem de habeas corpus concedida.18 Convém destacar que no plano constitucional agitou-se

a problemática da reserva da vida privada em face dos processos judiciais, consignando-se, textualmente, a providência de restrição da publicidade nas estritas hipóteses de defesa da intimidade e interesse social — artigo 5o, inciso LX, da Constituição da República — sem perda de consistência do aspecto de garantia do sistema acusatório, porque, em verdade, preserva do dano quer o agente, cuja inocência se presume, quer a vitima, que poderia ficar submetida a vexames e constrangimentos com a exibição pública dos seus tormentos.

18 Habeas corpus nº 93.02.18736-5-Rio de Janeiro. Tribunal Regional

Federal da 2ª Região. Impetrante: Miguel Reale e outro. Relator: Desembargador Federal Chalu Barbosa. 7/3/1994.

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A esse propósito, salientou Celso Ribeiro Bastos que em muitas circunstâncias o interesse maior de reserva se opõe à publicidade. Sem dúvida a publicidade funciona como garantia das partes, da coletividade em geral e do magistrado, as primeiras colocadas ao abrigo de medidas arbitrárias e premeditadamente injustas, a comunidade resgatada em um conceito de controle democrático sobre os atos judiciais, e o magistrado protegido contra insinuações e maledicências19.

O segredo de justiça, contudo, não anula as conquistas da democracia burguesa, relativas à exigência de motivação das decisões judiciais, celebração do devido processo legal e, como sua conseqüência lógica, a estabilização do contraditório e da ampla defesa em um processo de estrutura acusatória.

Somente quando o interesse público determinar, ou a preservação da intimidade não puder prescindir do sigilo, caberá excluir a publicidade, com as cautelas recomendadas pelo artigo 93, inciso IX, da Constituição da República, sem que fique afetado o sistema acusatório, pois se preserva, por vassalagem à própria Constituição, o acesso à informação pela parte e seu advogado, inclusive, se for o caso, pelo representante do assistente, durante o processo, pois que a assistência só poderá ser adequadamente exercida com o conhecimento integral do material probatório.20

Ao final, a própria sentença há de ser publicada, não se lhe colocando as fronteiras do segredo, incompatível com o processo penal democrático, de tal sorte que os elementos de convicção poderão vir a público para o julgamento da opinião pública sobre a ação da própria justiça, forma legítima de controle dos atos dos agentes estatais.

Diga-se ainda, ao final deste tópico, que a omissão do 19 Bastos, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, vol. II. São

Paulo: Saraiva, 1989, p. 285. 20

Verificar o comentário sobre a nova redação do artigo 93, inciso IX, da Constituição da República, determinada pela Emenda Constitucional n. 45. A matéria foi comentada neste livro quando da análise da publicidade interna do processo.

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acusado e de seu defensor entre os legitimados a propor a interceptação das comunicações telefônicas, como meio de demonstrar os fatos alegados e obter um resultado processual favorável, denota inconsciente voto repressivo quanto ao emprego da lei, com prejuízo do princípio da paridade de armas, sequer objeto de especulação justamente em virtude da percepção das funções repressivas da jurisdição penal.

Esta lacuna deve ser colmatada pela aplicação do princípio da igualdade das partes, de índole constitucional, estendendo-se ao acusado os mesmos recursos de que pode dispor a acusação.

Em vista do exposto, concluímos acentuando a inconstitucionalidade do tratamento dispensado pelas Leis no 9.034/95 e no 9.296/96 ao juiz, levando em conta a quebra do princípio acusatório.

Somente forte inclinação cultural a favor de uma postura tipicamente inquisitória, sem que isso possa representar qualquer juízo de valor que não seja jurídico, fundamenta a preservação das medidas reguladas no citado diploma, cuja invalidade deve ser objeto de declaração, pelos juízes e tribunais mediante recusa de aplicação da lei inconstitucional.

No tocante à publicidade do processo, com a reserva de que a sua limitação deve obedecer a critérios fixados pela própria Constituição — defesa da intimidade e interesse social — fica consignado que o procedimento do primeiro estatuto especial só é aplicável, sem os excessos que prevê, resguardando-se a intimidade dos envolvidos até o instante da prolação da sentença, ato público por excelência, garantindo-se, assim, outra pilastra do sistema acusatório.

5.2. A Lei dos Juizados Especiais21

21 Especificamente sobre a suspensão condicional do processo remeto o leitor ao nosso trabalho Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais: Comentários e Anotações, 3ª ed., em co-autoria com Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. Pequeno enxerto consta do

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Também aqui o leitor deve ser advertido que entre as

duas edições anteriores e esta terceira o autor aprofundou idéias e modificou pontos de vista.

As obras citadas na nota de rodapé anterior indicam as obras específicas sobre Juizados Especiais Criminais nas quais o leitor terá a oportunidade de examinar a fundo os mecanismos de solução consensual dos casos penais.

Este item, todavia, oferece visão panorâmica da estrutura processual da suspensão condicional do processo e da transação penal, ambas à luz dos princípios que regem o sistema acusatório.

O leitor não deverá desconsiderar o registro anterior, no sentido de que as práticas penais de consenso, tais como a suspensão condicional do processo e a citada transação penal, ainda estão em busca de sua teoria processual e que os ajustes ao modelo acusatório são forçados.

Ficou consignado que os elementos que determinam a existência dos sistemas processuais estão vinculados aos sujeitos processuais e ao modo como atuam, além da relação que se estabelece entre o juiz e a busca de informações sobre o fato. Por isso estas categorias não se prestam ao fim de definir o modelo fundado no consenso. Para este modelo está colocado o desafio da sua compreensão, que significará desenhar com clareza o estatuto do juiz e das partes.

Entenda-se que a análise destas categorias de acordo com os padrões do sistema acusatório é ―forçada‖ por conta das diferentes funções que o processo penal tradicional desempenha, quando comparado ao processo penal de consenso, o que foi objeto de análise no item 3.1.

Apesar disso, hoje o complexo de garantias processuais que está à disposição é fruto da busca pela implementação do sistema acusatório. Justifica-se, assim, que se parta daí para uma teoria garantista da Justiça Penal Consensual, com

comentário à suspensão condicional do processo. Acerca da transação penal volto a recomendar a leitura do livro Elementos para uma Análise Crítica da Transação Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

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consciência das duras críticas decorrentes de se aceitar soluções penais que não tenham sido fundamentadas em provas, mas em acordo entre o Ministério Público e o réu.

Nestes termos, começamos pela observação de Figueiredo Dias acerca das ―novidades‖ do processo penal português, engendradas no Código que foi editado para consolidar os ideais e princípios introduzidos pela Constituição democrática.

Figueiredo Dias salientou que a atitude de legalidade que caracteriza o direito penal, não significa exigência de que a cada crime cometido e esclarecido corresponda, por necessidade, um processo penal.22

Soluções que representem a assunção do papel do direito punitivo como ultima ratio são alternativas de controle social indispensáveis nessa virada de milênio23. Assim, consagra-se o princípio da mínima intervenção, pelo qual, dada a gravidade indiscutível da sanção penal, com todas as deletérias conseqüências que a acompanham, recomenda-se a ativação da força máxima penal somente em situações de real seriedade.

As inovações incorporadas ao cenário do processo penal brasileiro, por meio da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, procuram acompanhar os grandes movimentos ideológicos, políticos e culturais que têm motivado os ramos mais progressistas da criminologia, no chamado Mundo Ocidental.

O passo dado, se não foi o ideal em alguns aspectos, conferindo mínima margem de elasticidade ao conceito de infração penal de pequeno potencial ofensivo, representou, obediente à nossa Constituição, profunda ruptura de dogmas intocáveis, até 1988, no campo do direito e do processo penal.

A singular aplicação de dois institutos diferentes de tudo quanto até então existia — a transação penal,

22 Dias, Jorge de Figueiredo. Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal, p. 25. 23

A obra originalmente é do fim do século XX.

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principalmente, e a suspensão condicional do processo — e, mais do que isso, opostos ao pensamento corrente da aplicação da pena como forma exclusiva de resolução dos casos penais,24 talvez nos tenha encontrado despreparados.

De se dizer que a tônica das modificações em questão envolveu aspectos tais como a efetividade do processo, o acesso à justiça e a concepção unitária do conflito, revitalizando também o papel da vítima e a promoção do consenso, palavra-chave para entendermos os novos institutos, tudo conforme uma visão prática e real do processo, desafetado e, em alguns pontos, imunizado contra o vírus do excesso de formalismo.25

Ressalva deve ser feita ao papel da vítima, pois que se cabe ao Direito Penal tutelar os interesses dela, o processo penal pouco pode fazer para ajudá-las, pois que é disposto a proteger a situação do acusado. De toda forma, a justiça penal consensual reposiciona a vítima no cenário do processo.

Compreender as novas categorias processuais — transação e suspensão condicional do processo — só é viável, eficazmente, recorrendo-se ao dogmatismo jurídico, apontado algumas vezes como o principal responsável pelo divórcio entre o mundo dos fatos e a realidade do processo, com o conseqüente desprestígio da Justiça.

Nessas horas de ausência de paradigmas próximos, e de alguma perplexidade, o dogmatismo resgata o seu real valor, na medida em que encerra as variedades de técnicas de abordagem de um fenômeno da vida em sociedade, acima e além de qualquer polêmica, em si mesmo complexo. 24 Desprezou-se, em nosso caso necessariamente, a prudente recomendação de introduzir o novo sem perder de vista o tradicional, que assinala a nossa identificação cultural e histórica, a partir do peculiar modo de vermos o mundo (Exposição de Motivos do Código de Processo Penal Português). 25

Em Elementos para Análise uma Crítica da Transação Penal (op. cit.) procuramos demonstrar que a Justiça Penal Consensual adota discurso de suavidade em termos de aplicação do Direito Penal, todavia aprofunda o processo de expansão deste Direito, para alcançar conflitos que ficariam de fora da incursão do Sistema Penal caso valesse de fato o princípio da intervenção mínima.

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5.2.1. DA TRANSAÇÃO PENAL

Para iniciarmos o estudo, a partir da transação penal,

visando identificar a existência de pontos de contato entre a estrutura sobre a qual se ergue e o princípio acusatório, algumas considerações preliminares são essenciais.

Com efeito, na maioria estamos todos de acordo em que o processo é instrumental e, destarte, tudo o que vier a operar nesta perspectiva há de considerar a natureza e as características do direito material em disputa, pela via do instrumento.

Contudo, Barbosa Moreira já advertia para o fato de que, mesmo simplificada, a relação processual se desenvolve como atividade realizada, por assim dizer, intra muros, em grande parte a cargo de pessoas nas quais se presumem conhecimentos especializados,26 sendo necessária a compreensão dos conceitos e alcances verdadeiros de cada mecanismo posto à disposição dos sujeitos. Para isso deverá o intérprete e operador do Direito se valer de dados que fogem muito ao senso comum, sob pena de naufragarmos em uma vã tentativa de modernização.

Alguns anos passados da edição da Lei no 9.099/95, e até agora a doutrina diverge sobre o que efetivamente significa a transação penal no Direito Brasileiro.

A medida está prevista como resultado de uma atividade iniciada pelo Ministério Público quando, em caso de infração penal de menor potencial ofensivo, o juiz homologar proposta do órgão estatal de acusação, aceita pelo investigado, orientado por defensor, aplicando pena não-restritiva da liberdade.27 A infração penal deverá ser de ação

26 Barbosa Moreira, José Carlos. ―Sobre a Multiplicidade de Perspectivas no Estudo do Processo‖, in Temas de Direito Processual - Quarta Série, São

Paulo: Saraiva, 1989, p. 11. 27 Artigo 61 da Lei nº 9.099/95: Consideram-se infrações penais de menor

potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial; artigo

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penal pública incondicionada ou condicionada28 e, além disso, a hipótese não poderá ser de arquivamento da investigação (arquivamento do termo circunstanciado).

Querem certos autores qualificar como sentença meramente declaratória a decisão que lhe dá vida, enquanto outros, enxergando na decisão função ou efeito condenatório, assim a classificam e a partir daí tendem a negar-lhe a constitucionalidade.29 Há, finalmente, os autores que optaram por terceiro gênero, tal seja, o de ser simplesmente homologatória, com ou sem eficácia de título executivo.30

Da definição do modelo de sentença, acreditamos seja possível investigar a questão básica da iniciativa para a transação, cujo resultado, a nosso juízo, será idêntico ao da

76: Havendo representação ou tratando-se de crime de ação pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. § 1º Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade. § 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado: I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva; II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo; III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida. § 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetido à apreciação do Juiz. § 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos. § 5º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá apelação referida no art. 82 desta Lei. § 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.

28 Nesta última hipótese, se tiver havido representação e não se tiver conseguido a conciliação entre a vítima e o suposto autor do fato.

29 Assim, Rogério Lauria Tucci, apud Cláudio Antônio Soares Levada, ―A Sentença do artigo 76, da Lei nº 9.099/95, é declaratória‖, in Boletim do Instituro Brasileiro de Ciências Criminais, nº 35, novembro, 1995, São Paulo.

30 Grinover, Ada Pellegrini et al. Juizados Especiais Criminais, São Paulo: RT 1995, p. 134.

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suspensão condicional do processo, vinculando as categorias ao sistema processual sufragado pela Constituição.

Acreditamos, de início, que os argumentos elencados em defesa deste ou daquele ponto de vista, apesar da qualidade dos doutrinadores, não compreenderam todas as possibilidades da classificação. Sem dúvida serviram ao propósito de validar o esforço de sistematização, porque expuseram as conseqüências práticas de considerarmos a sentença em tela condenatória ou não condenatória, de sorte a determinarmos o âmbito integral de aplicação da norma.

Nosso pensamento é de que a sentença em questão é condenatória, de tipo sumário, e que emerge em seu meio instrumental definido por alguns doutrinadores como o devido processo legal da transação penal, apesar da objeção de inconstitucionalidade oposta pelo esvaziamento de qualquer tipo de atividade considerada própria ao devido processo legal (atividade probatória, fundamentação das decisões e efetividade do contraditório).

Pelo que de elucidativo importará ao nosso estudo passemos, então, ao exame da classificação das sentenças.

A sentença, ato pelo qual se põe fim ao processo, com ou sem julgamento do mérito (artigo 162, § 1o, do Código de Processo Civil), pode ser classificada de diversas maneiras, predominando a sistematização que a considera a partir das funções ou efeitos que produzirá. Com isso as sentenças são distinguidas entre as que meramente declaram, constituem e condenam, conforme produzidas em processos cujas ações sejam, por sua vez, predominantemente do mesmo tipo, ao exigirem como provimento jurisdicional o simples acertamento de um situação jurídica duvidosa, a criação, modificação ou extinção de uma situação ou relação jurídica, ou a imposição ao réu de uma prestação — no caso do processo penal, de uma sanção.

Esta é a classificação tradicional, denominada tripartida,31 em oposição à classificação quíntupla, em

31 Pará Filho, Tomás. Estudo Sobre A Sentença Constitutiva, São Paulo:

LAEL, 1973, p. 39.

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sentenças de declaração, constitutivas, de condenação, executivas e mandamentais, de Pontes de Miranda, que não logrou sucesso na doutrina nacional.

Tendo por pressuposto quer a função exercitada pelo ato judicial — como é o caso da sentença constitutiva — quer os efeitos que produz, autorizando o exercício pelo Estado do monopólio da força para concretizar a sanção imposta — como ocorre com a sentença de condenação — a decisão aparece ao fim de um processo dialético, no qual as partes estão contrapostas, porém não necessariamente imunes aos argumentos umas das outras.

Sendo assim, é natural, e com freqüência acontece no processo civil, que o exercício da função ou a produção do efeito venham a ser queridos por autor e réu, simultaneamente, e que, em se tratando de direito disponível, somente caiba ao juiz homologar tal disposição de coisas, extinguindo o processo.

Há efetivo poder discricionário na atuação das partes, que elegem, em consenso, a solução que reputam a mais viável, conforme o direito.

Resolve-se o conflito de interesses por mútua concessão, muitas vezes arrimada em estado de ânimo prévio, no entanto impossível de ser validado independentemente da intervenção estatal, tal como ocorre com as ações constitutivas necessárias, das quais a de separação judicial é a sua mais famosa ilustração.

Releva notar, portanto, que a homologação nada mais representa senão a forma pela qual o juiz soluciona o conflito ou o caso, impondo uma determinada sanção ou criando, modificando ou extinguindo situações jurídicas. Todas as sentenças de homologação, ditadas em processo de conhecimento, cabem em um ou outro modelo, conforme o conteúdo do ato ou os efeitos que intenta produzir.

Sendo assim, a classificação apresentada pelos ilustres doutrinadores Ada Grinover, Antonio Magalhães, Antonio Scarance e Luiz Flávio Gomes não resolve a questão de nos

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posicionarmos sobre se é ou não condenatória a decisão de homologação da transação penal.32

Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, por sua vez inovam, pois defendem que a multa ou a providência restritiva de direitos incidentes em razão da sentença de transação penal, do artigo 76 da Lei do Juizado Especial Criminal, não caracterizam sanção penal em sentido estrito, entre outros motivos porque o caráter imperativo das penas não se coadunaria com o consenso pretendido, em virtude do qual a decisão depende da aceitação, pelo suposto autor do fato, da proposta levada a efeito pelo órgão do Ministério Público, ensejando a prolação de uma sentença sui generis, de mera homologação da transação.33

Ao aceitarmos o ponto de vista dos ilustres professores, nem mesmo assim teríamos condições de deferir à sentença em questão esta classificação especial, isto porque ainda que não autorize a execução em caso de não implemento espontâneo34, quando há condições para se cumprir o pactuado, é indiscutível que se vislumbra uma alteração na situação jurídica do agente, permitindo a extinção da punibilidade e com isso vedando a dedução em juízo de pretensão punitiva baseada no mesmo fato.

Outra vez ocorre a tendência de a sentença inserir-se em uma das classificações tradicionais, embora discordemos, pelas razões mais adiante expostas, do interessante ponto de vista deduzido.

É curial recordar-se que as sentenças de mera declaração, constitutivas e de condenação distinguem-se entre si em razão dos efeitos principais perseguidos pelas partes e produzidos pelo ato judicial, não importa a forma

32 Grinover, Ada Pellegrini et al., ob. cit,. pp. 90 e 134. 33 Demercian, Pedro Henrique e Maluly, Jorge Assaf. Juizados Especiais Criminais: Comentários, Rio de Janeiro: AIDE, 1996, pp. 61-66. 34

A impossibilidade de execução das penas impostas via transação penal decorre da ausência de previsão legal, exceto para a cobrança da pena de multa. Não se pode perder de vista o princípio da reserva legal, pelo qual não há crime nem pena sem prévia cominação legal (artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição da República).

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que tomam ao surgirem. Eduardo Couture asseverava, a propósito, que são

sentencias declarativas, o de mera declaración, aquellas que tienen por objeto la pura declaración da existencia de un derecho,35 enquanto são chamadas constitutivas as decisões que:

En primer término... cream un estado jurídico

nuevo, ya sea haciendo cesar el existente, ya sea modificándolo, ya sea sustituyéndolo por otro... En segundo lugar, integran esta clase de sentencias aquellas que deparan efectos jurídicos de tal índole que no podrían lograrse sino mediante la colaboración de los órganos jurisdiccionales: el divorcio etc.36

Finalmente, são de condenação todas aquellas que

imponen el cumplimiento de una prestación, ya sea en sentido positivo... ya sea en sentido negativo...37

Mantendo, entretanto, a classificação original, não deve ser totalmente afastada a conclusão de Enrico Tulio Liebman, no sentido de se aceitar a existência da sentença condenatória sumária, fruto de um processo condenatório especial, que assim se caracteriza em face do tipo de cognição que admite.38

A lição do mestre peninsular, muito embora haja tido por inspiração procedimentos diversos daquele objeto de nosso estudo, aplica-se à hipótese vertente, como pode ser visto do seguinte texto:

Nesses casos, pois, taxativamente previstos em lei, a ação condenatória considera-se privilegiada, porque pode levar à prolação da

35 Couture, Eduardo J. Fundamentos Del Derecho Procesal Civil, Buenos

Aires: Depalma, 1988, p. 315. 36 Idem, p. 320. 37 Idem, p. 318. 38

Hipótese de cognição sumária pode ser extraída das tutelas de urgência, quer no processo civil, quer no processo penal.

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sentença condenatória com base em uma cognição sumária (isto é, incompleta ou superficial) dos seus pressupostos substanciais normais; e, justamente por essa razão, leva o nome de ação condenatória sumária.39

As ainda recentes inovações no Processo Civil

trouxeram à tona a discussão acerca das cognições possíveis nos diversos procedimentos, conforme a natureza das decisões perseguidas. Sobre o assunto, aliás, o magistério de Cândido Dinamarco não podia ser mais feliz, ao distinguir entre cognição exauriente e cognição sumária, a primeira destinada a provocar na convicção do julgador a certeza jurídica, enquanto à outra basta o convencimento sobre a probabilidade40 de existência dos fatos alegados pelas partes, dos quais são extraídas certas conseqüências jurídicas.

A discutível constitucionalidade da cognição sumária, no âmbito de um processo penal condenatório marcado pela articulação entre a busca da verdade e o pleno exercício da ampla defesa, garantia constitucional, será avaliada mais adiante.

De acordo com o que vimos, digladia-se na doutrina sobre ser a sentença homologatória em exame declaratória ou condenatória.

Apesar de não ter se pronunciado expressamente, acreditamos que para Damásio de Jesus a sentença de transação penal é declaratória, até porque, ao se manifestar sobre os efeitos da decisão judicial, aduz que esta não gera:

a) condenação; b) reincidência (§ 4o); c) lançamento do nome do autor do fato no rol dos culpados (§ 4o, parte final); d) efeitos civis; e) maus antecedentes.41

39 Liebman, Enrico Tulio. Manual de Direito Processual Civil, vol. I. Rio de

Janeiro: Forense, 1985, p. 187. 40 Dinamarco, Cândido Rangel. A Reforma do Código de Processo Civil. São

Paulo: Malheiros, 1995, p. 144. 41 Jesus, Damásio E. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. São

Paulo: Saraiva, 1995, p. 68.

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Certamente segue a mesma linha Claudio Antonio

Soares Levada, no ensaio a que nos referimos. É natural que todos os juízos que decorram da

investigação científica sejam provisórios, de sorte que, feita essa ressalva, não aceitamos a classificação.

Segundo a própria Constituição, ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (artigo 5o, inciso LIV), garantindo-se, assim, a jurisdicionalização da sanção penal, em virtude do que, como foi dito no início do trabalho, é necessário que haja processo para que se imponha a pena. Nulla poena sine judicio.

Ora, sendo ponto pacífico o dever de existência do processo, pois não há sentença sem processo, refletimos que a função da sentença nele emitida não seja meramente declarar o que, sem a decisão, seria considerado incerto.

Nunca se pensou que, sendo a pena por definição a conseqüência jurídica da infração penal a sanção penal preexista ao processo. A infração penal é reconhecida pelo processo, mas tem a sua existência como fato histórico marcada, independentemente do ajuizamento da ação.

Basta considerarmos a cifra oculta dos crimes para concluirmos que não são todas as infrações penais seguidas da aplicação da sanção, bem como as penas só aparecem como tais se logicamente antes, na sentença mesma, reconhecer o juiz a ocorrência do crime.

Observe-se que ainda que se convença da prática do delito, se extinta a punibilidade por alguma causa, o juiz não imporá pena, motivo suficiente, segundo pensamos, para não aceitarmos a idéia de que a sanção antecede ao processo, sendo apenas declarada, quando da homologação.

A sentença que impõe a pena, ainda que fruto de acordo entre as partes traz algo mais, além do simples reconhecimento da existência do crime ou da contravenção.

Carrega em seu bojo a autorização para que se exija do suposto autor do fato, coativamente, determinada prestação.

A execução de forma autônoma, tendo por base uma sentença — título judicial — é uma característica do processo

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que sucede o de conhecimento condenatório. Não deve assustar a idéia de transação sobre a sanção,

partindo-se do correto pressuposto de que, se é pena, não cabe negociar a sua aplicação.

O que ocorre, a nosso juízo, é que se transaciona tendo por objeto a qualidade e a quantidade de determinadas sanções, nunca se serão ou não aplicadas, pois, em se tratando de infrações de ação penal pública, cumpre ao Ministério Público propor a ação penal tradicional, em não havendo acordo.

O princípio da consensualidade, de magnitude constitucional, resolve a questão, possibilitando assim a convergência de vontades exclusivamente sobre a sanção, pois que não se negocia a realidade de se exigir a sua imposição.

Finalmente, entendemos que o sofisticado argumento, trazido à colação por Demercian/Maluly, em artigo citado, sobre não serem a multa e as providências restritivas de direito sanções penais em sentido estrito, também colide de frente com o texto legal e não merece ser aceito, porque é a própria lei que denomina de pena restritiva de direito ou multa (artigo 76, caput) as medidas em tela, assinalando que a condenação não fique constando dos registros criminais (artigo 84, parágrafo único).

Nem sempre a escolha do nomen juris do instituto, pelo legislador, é a mais feliz. Todavia, tanto a multa como as penas restritivas de direito são consideradas sanções penais, em razão de que sempre se tenha exigido fossem aplicadas somente pelo devido processo legal em resposta ao reconhecimento da responsabilidade penal do acusado.

Ainda que o suposto autor do fato queira submeter-se à multa, sem o processo não poderá fazê-lo e a própria relação processual, sem os requisitos mínimos para a sua existência e validade — prova da existência da infração penal e indícios de autoria — não será instaurada por falta de justa causa.

Portanto, se as medidas em foco derivam de um crime (ou contravenção), não se discute a nosso ver que se trata de sanções penais, nada havendo de sui generis no seu processo

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de imposição que lhe contamine a natureza jurídica, embora seja diferente no que toca a diversos aspectos de seu procedimento e ao tipo de cognição que é produzida em seu interior.

Poder-se-ia argumentar, dada a novidade da matéria, que estamos diante de uma sentença constitutiva necessária, no plano penal.

Em um primeiro instante ficamos animados a deste modo caracterizar a sentença, pois que, diferentemente da decisão emitida em processo condenatório comum, o princípio da consensualidade opera em certa medida, fazendo valer — ainda que com restrições — a vontade dos principais atores: o acusador oficial e o (suposto) autor do fato.

Seria o caso de imaginarmos uma deliberação anterior ao processo, condicionada ao ajuizamento da manifestação, para que se transforme a situação jurídica do autor do fato.

Clamam-se como constitutivas as decisões proferidas na Revisão Criminal e a de interdição de direitos prevista no artigo 47 do Código Penal,42 na sentença condenatória.

Na segunda hipótese, porém, como também na que está sendo objeto de nossos estudos, não parece correto falar em função constitutiva, quando temos a imposição de uma prestação, cuja execução poderá ensejar — em alguns casos necessariamente ensejará — um processo autônomo de execução.

A sempre lembrada distinção de Pará Filho, em virtude da qual a imposição de uma prestação (leia-se, sanção penal) faz a diferença entre a sentença condenatória e a constitutiva, que se basta a si mesma, na medida em que transforma uma situação jurídica, deve ser invocada para afastarmos a idéia de função constitutiva.

Resta, pois, trabalharmos com o modelo de sentença de condenação, em face do qual existem algumas causas de perplexidade. A prudência é a melhor conselheira diante da

42 Cintra, Antonio Carlos de Araújo, et al. Teoria Geral do Processo. 10ª ed.

São Paulo: Malheiros, 1994, p. 304.

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novidade, adverte com razão Alberto Silva Franco, que provoca a meditação quando, por oportuno, acrescenta:

Como entender que se possa, mediante um

acordo, aplicar, por força do art. 76 da Lei no 9.099/95, pena restritiva de direitos ou multa, conversíveis em pena privativa de liberdade, sem que o acusado responda ao devido processo legal?43

Mais ainda, na mesma linha e levando em conta o

fundamento de legitimidade democrática do exercício da função jurisdicional, cabe também indagar com Ferrajoli como é possível conceber o nexo entre crime e sanção a partir de um comportamento processual do acusado e não do valor de verdade sobre a existência da infração penal e a responsabilidade de seu autor, demonstrado ao longo do processo, em contraditório.44

Parece que a resolução da perplexidade não decorre da admissão de que, à vista dos requisitos definidos em Lei, o Ministério Público esteja vinculado ao ato de propor o acordo sobre a pena, porque se constitui em direito público subjetivo do autor do fato, o que só faz aumentar as dificuldades.

Segundo essa linha de pensamento, recusando-se o Ministério Público a oferecer a proposta, o juiz não está inibido de tomar a iniciativa, como parte da doutrina e mesmo alguns tribunais se inclinam a aceitar.45

43 Boletim IBCCrim, São Paulo, nº 35, p. 9, nov/1995. ―Os questionamentos provocados pela Lei nº 9.099/95‖. Atualmente, por força do disposto na

Lei nº 9.268, de 1/4/1996, a multa penal é considerada dívida de valor e não pode mais ser convertida em prisão.

44 Ferrajoli, Derecho y Razón, p. 609. 45 A Escola Superior da Magistratura criou uma Comissão Nacional para a

Interpretação da Lei nº 9.099/95, presidida pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira e composta dos Ministros Luiz Carlos Fortes de Alencar e Ruy Rosado de Aguiar Júnior, dos Desembargadores Weber Martins Batista, Fátima Nancy Andrighi e Sidnei Augusto Beneti, dos Professores Ada Pellegrini Grinover e Rogério Lauria Tucci e do Juiz Luiz Flávio

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Fosse dessa maneira, estaríamos diante de literal desrespeito ao que dispõe o artigo 129, inciso I, da Constituição, que defere ao Ministério Público privatividade para a propositura da ação penal pública, pois outra não pode ser a natureza da iniciativa do Ministério Público, salvo a de exercício de direito de ação condenatória, pela forma sumária e consensual, porquanto não há pena sem processo e, pelo princípio acusatório, não há processo condenatório sem ação. Nulla poena sine judicio. Nullum judicium sine accusatione.

Para Afrânio Silva Jardim o procedimento instituído pelo artigo 76 da lei é o devido processo legal para a imposição daquelas sanções,46 cumprindo, pela clareza e objetividade da abordagem, transcrevê-la:

Por outro lado, estabelecemos uma premissa para compreensão do sistema interpretativo proposto: quando o Ministério Público apresenta em juízo a proposta de aplicação de pena não privativa de liberdade, prevista no art. 76 da Lei no 9.099/95, está ele exercendo a ação penal, pois deverá, ainda que de maneira informal e oral — como a denúncia — fazer uma imputação ao autor do fato e pedir a aplicação de uma pena, embora esta aplicação imediata fique na dependência do assentimento do réu. Em outras palavras, o

Gomes. Das conclusões a que chegaram ressalta a Décima Terceira (Se o Ministério Público não oferecer proposta de transação penal e suspensão do processo nos termos dos arts. 79 e 89, poderá o juiz fazê-lo), que preserva a iniciativa do órgão de acusação estatal, quanto a transação, na fase preliminar, o que é inócuo, se admite a iniciativa judicial, posteriormente, após o ajuizamento da causa mediante denúncia oral. O Superior Tribunal de Justiça, no recurso de Habeas Corpus nº 6.410-PR, na sua 6ª Turma, tendo por relator o Ministro Vicente Leal (Recorrentes: Omires Pedroso do Nascimento e outro e recorrido o Tribunal Regional Federal da 4ª Região), em decisão de 13/5/1997, deliberou que a suspensão condicional do processo é direito subjetivo do réu, cabendo ao juiz decidir por ela mesmo quando omisso o órgão de acusação pública.

46 Jardim, Afrânio Silva. ―Os Princípios da Obrigatoriedade e da Indisponibilidade nos Juizados Especiais Criminais‖, in Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 48, São Paulo, nov/1996.

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promotor de justiça terá que, oralmente como na denúncia, descrever e atribuir ao autor do fato uma conduta típica, ilícita e culpável, individualizando-a no tempo (prescrição) e no espaço (competência de foro). Deverá, outrossim, a nível de tipicidade, demonstrar que tal ação ou omissão caracteriza uma infração de menor potencial ofensivo (competência de juízo), segundo definição legal (art. 61). Vale dizer, na proposta se encontra embutida uma acusação penal (imputação mais pedido de aplicação de pena).47

Talvez careça de explicação a questão probatória,

colocada em relevo à luz da consensualidade, pela qual a busca da verdade é substituída pela prevalência da vontade convergente das partes ou, como prefere Ferrajoli, porque a prova e a sanção penal não são mais objeto principal da atividade jurisdicional, que se concentrará na conduta processual do réu e na (escassa) gravidade da infração penal.

Para os defensores do devido processo legal da transação penal a resposta é encontrada no fato do dispositivo legal conter regras gerais e abstratas, aptas a considerar o desenvolvimento regular do processo de proposta de pena, iniciado a partir do oferecimento, pelo Ministério Público, de sua proposta de sanção.

Existem requisitos objetivos e subjetivos que devem ser observados, sendo certo que o autor do fato estará acompanhado de defensor, sob pena de nulidade da transação.

Entendemos que o exercício da ampla defesa vem sustentado na obrigatoriedade da orientação do autor do fato por advogado, além da necessidade de se documentar a proposta, que será feita oralmente.

A escrituração, nestes casos, não fere o objetivo de diminuição da formalidade do procedimento, porque

47 Jardim, Afrânio Silva. ―Os Princípios da Obrigatoriedade e da Indisponibilidade nos Juizados Especiais Criminais‖, ob. cit.

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resultará da redução a termo de pronunciamento oral do Ministério Público, servindo ao propósito de precisar a res in judicio deducta, para o fim de evitar a renovação indevida da demanda e assegurar que o procedimento está sendo aplicado a fatos legalmente previstos, conforme suporte mínimo probatório que também está sujeito a ser analisado pelo defensor e pelo juiz.

Em conjunto com este dado, que expõe claramente a justa causa para a modalidade especial de ação penal condenatória, acrescentamos que a tese da impossibilidade de se renunciar ao exercício de direitos fundamentais, em vista de um conflito instaurado entre o particular e o Estado, está sendo mitigada pela própria Constituição da República em consideração à autodeterminação do acusado e por conta do juízo de benefício que possa concretamente auferir se transacionar. Se o réu pode confessar, apesar de lhe ser assegurado o direito a não se incriminar — nemo tenetur se detegere —, estamos andando na mesma direção quando aceitamos possa ele transigir sobre a sanção penal, desde que não se lhe sacrifique a própria liberdade, nem mesmo indiretamente, o que o princípio da proporcionalidade estaria a impedir.

Mais importante de tudo está em que ao acusado, que a lei por estranhas razões quis denominar autor do fato, é necessário informar minuciosamente em que consiste a transação penal e quais são as suas conseqüências. Trata-se do dever de instrução que condiciona a validade que se operará da renúncia a mais ampla defesa.

Enquanto o ideal da jurisdição penal está relacionado ao grau de verdade que a sentença deve conter, e, portanto, a limitação à ampla defesa e ao contraditório, ainda que prevista na Constituição, deve ser evitada, a projeção das alternativas penais derivadas das soluções consensuais é, no marco cultural de hoje, representativa da estratégia em direção a descriminalização das condutas, reservando-se o direito e o processo penal para as infrações que ao juízo da

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comunidade mereçam mais séria reprovação. Positivada a constitucionalidade da transação penal48,

apesar da baixa densidade das garantias fundamentais, cabe sublinhar que, ao contrário do que já foi defendido,49 a consciência da prevalência constitucional do princípio acusatório não permite que o juiz inicie, de ofício, como verdadeira jurisdição sem ação, tal modelo processual, ainda que o representante do Ministério Público não tenha oferecido a proposta à luz do entendimento pessoal da ausência de condições subjetivas, do que discorda o magistrado.

Pode-se frisar, embora não seja certo, que semelhante postura equivale a estabelecer um âmbito de discricionariedade para a atuação do órgão de acusação, a ponto de introduzir, indiretamente, o princípio da oportunidade.

Tratando do sistema espanhol Teresa Deu menciona que tal campo de discricionariedade não pode ser justificado, de maneira semelhante ao que ocorre no Direito Administrativo, isto porque a aplicação do princípio da legalidade penal, em sua faceta jurisdicional, impede a implantação de critérios de oportunidade que incidam sobre a existência, ou não, da persecução penal.50

A primeira ressalva, incidente sobre a objeção, deflui do fato de que as alternativas postas à disposição do órgão de acusação implicam, necessariamente, na propositura da ação penal.

Não sendo caso de arquivamento, ou o Promotor de Justiça oferece a proposta de pena não restritiva da liberdade ou oferece a denúncia. Nos dois casos, oferecendo-se proposta de transação penal ou denúncia, não vigora

48

Essa é hoje a posição dominante, contra a qual nos manifestamos em Elementos, op. cit. 49 Prado, Geraldo. ―Da Natureza Jurídica da Sentença Homologatória de Acordo sobre a Pena — Lei nº 9.099/95‖, in Caderno Científico do Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade Gama Filho, nº 4, ano III, Rio de Janeiro, 1996, pp. 31-46. 50 Deu, Teresa Armenta. Principio Acusatorio y Derecho Penal, pp. 38-39.

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princípio algum de oportunidade. A segunda oposição refere-se à possibilidade do acusado deixar de fruir um benefício acessório, embora importante, ao tipo específico de condenação, em consideração à opinião do Promotor de Justiça. Figueiredo Dias, tantas vezes citado, assevera que deferir ao Ministério Público alguma discricionariedade não significa criar um espaço onde possam frutificar tratamentos privilegiados ou discriminatórios, mas, sim, reconhecer a importância que a instituição merece no contexto da construção democrática da política criminal.

Aos abusos que podem decorrer do fato do Promotor de Justiça indevidamente, na visão do juiz, não oferecer a proposta de pena, opõe-se a possibilidade de controlar-se a ação, no âmbito interno do Ministério Público, velando-se por sua moralidade e impessoalidade. Basta, para isso, recorrer-se à aplicação analógica do controle pelo Procurador-Geral, regulado no artigo 28 do Código de Processo Penal.

Mesmo se no lugar da proposta o representante do Ministério Público opte pelo oferecimento direto da denúncia, o procedimento deverá ser sustado para que o juiz remeta ao Procurador-Geral os autos, alertando quanto à desatenção sobre a obrigatoriedade da solução consensual. Caso o Procurador-Geral concorde com o Promotor de Justiça, não haverá o necessário consenso a conferir base à transação e, em vista disso o processo retomará seu curso natural. Se for o contrário, caberá ao próprio Procurador-Geral formular a proposta de pena ou delegar a formulação a outro Promotor de Justiça, homologando o juiz o acordo, se este for concretizado, e deixando de receber a denúncia já oferecida porque o conflito haverá sido resolvido definitivamente.

O ideal, todavia, para a completa aproximação ao princípio acusatório, estaria em a lei prever que antes de oferecer a denúncia oral e à semelhança do que propomos sobre o arquivamento, o Promotor de Justiça comunicasse ao Conselho Superior do Ministério Público as razões do não oferecimento da proposta, disso dando ciência ao ofendido e

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ao investigado. Chancelada a solução, em instância superior, teríamos o controle da atuação do Promotor de Justiça sem incluir o juiz em uma etapa ainda precoce e preparatória da ação penal tradicional.

A objeção de ordem prática derivada quer da dificuldade que o acervo de autos de investigação pudesse opor ao eficiente funcionamento do Conselho Superior do Ministério Público, ou ainda em virtude da perda de celeridade que a implantação da providência poderia acarretar, teria de ser arrostada pela adequada estruturação pessoal e material da instituição, de modo a torná-la apta a apresentar respostas rápidas e eficazes às demandas que dizem respeito à persecução penal.

A garantia da preservação do princípio acusatório, com o inegável reconhecimento das graves funções atribuídas aos membros do Ministério Público, justificaria com sobra o aperfeiçoamento da instituição.

A objeção de ordem jurídica dos defensores da transação penal como direito público subjetivo do acusado, quanto ao exercício deste direito ser controlado não pelo Judiciário, do qual não se pode excluir a apreciação de lesão ou ameaça de lesão a direito, mas pelo titular da ação condenatória, estará superada à vista da natureza jurídica da proposta de transação — ação penal condenatória especial não tradicional e não direito público subjetivo do réu — em razão do que se pode afirmar que ninguém pode invocar o direito de sofrer sanção penal.

Quando se assevera que, em determinadas condições, o condenado tem direito público subjetivo ao sursis se está afirmando que, com a sua responsabilidade determinada legalmente, em um processo penal com ampla defesa e contraditório, reconhece-se que entre as alternativas de pena a correta e adequada é aquela representada pelo sursis. Entretanto, na ausência de proposta de pena não temos como argumento as alternativas de sanção consideradas concretamente, porque sequer se concluiu sobre a existência da infração penal e a responsabilidade do agente. Há um processo condenatório, com requisitos de validade e eficácia,

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a ser percorrido e superado antes das alternativas penais emergirem.

5.2.2. DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO

O mesmo acontece quando se trata da suspensão do

processo.51 Ficou consignado em passagem anterior que o exercício do direito de ação não se esgota com o oferecimento da acusação. Pelo contrário, o conjunto de relações processuais que ordenadamente se sucedem, a partir daí, depende dos atos processuais que, reciprocamente, vinculam, ligam, autor, réu e juiz.

Admitir-se, como o faz a conclusão da Comissão de Interpretação da Lei no 9.099/95 ou o mencionado acórdão do e. Superior Tribunal de Justiça, que o juiz pode propor (ou decidir pela, forma literal que não esconde a realidade da medida) a suspensão do processo, que, por sua vez, resultará na extinção da punibilidade do acusado, ao final do prazo

51 Artigo 89 da Lei nº 9.099/95: Nos crimes em que a pena mínima

cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal). § 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições: I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; II - proibição de freqüentar determinados lugares; III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz; IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades. § 2º O Juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado. § 3º A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano. § 4º A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta. § 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade. § 6º Não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo. § 7º Se o acusado não aceitar a proposta prevista neste artigo, o processo prosseguirá em seus ulteriores termos.

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assinado, sem iniciativa ou concordância do autor, é dispor do conteúdo material do feito, à revelia de uma das partes, quebrando, assim, uma das estacas de sustentação do triângulo.52

5.2.2.1. Da Natureza Jurídica — Primeira Parte

Afirmar a natureza jurídica de um determinado

instituto significa indicar a que categoria geral aquele instituto específico está integrado.

No caso da suspensão, o fenômeno percebido consiste em o Ministério Público formular proposta ao réu, visando obter dele certos comportamentos positivos e negativos ao longo de um tempo determinado, de modo a ver declarada extinta a punibilidade do acusado pelo crime que funda a causa de pedir da ação penal.

Para que a extinção da punibilidade se concretize, é necessário que o acusado, orientado por seu Defensor, aceite a proposta e o juiz a homologue. Provas não serão produzidas e o acordo somente será válido se aperfeiçoado depois de recebida a denúncia, com a constatação da existência de justa causa para a ação penal.

Finalmente, a medida só é cabível para determinado grupo de infrações penais, originando-se a extinção de punibilidade na hipótese de consumação do período de prova sem revogação.

Parece fora de dúvida que há dois aspectos distintos a serem estudados: a proposta que se formula e a decisão que a homologa, depois da proposta ser aceita pelo réu. Além disso, há de se considerar os efeitos que gera a não-revogação da suspensão.

No tocante à formulação da proposta, duas correntes 52

O Supremo Tribunal Federal resolveu em definitivo a questão por meio do verbete 696 da Súmula, cujo teor é o seguinte: Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.

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digladiam no direito brasileiro. De um lado, estão os defensores de que se trata de direito público subjetivo do acusado; do outro, estão os que postulam sua qualidade de parte integrante do direito de ação.

A nosso juízo, a definição da natureza jurídica da proposta de suspensão do processo está condicionada à verificação do que acontece quando a proposta é aceita pelo réu e homologada pelo juiz.

É fácil verificar que a suspensão condicional do processo efetivamente nada suspende. Ao contrário da suspensão do processo, prevista no artigo 366 do Código de Processo Penal, que paralisa o curso do processo de conhecimento em relação à atividade de instrução, impedindo dessa maneira que o pedido de condenação seja apreciado pelo juiz, e das demais situações de suspensão processual derivadas da necessidade de aguardar decisão de questão prejudicial pertinente ao estado de pessoa (artigo 92 do Código de Processo Penal), e eventualmente nos incidentes de falsidade (artigo 145 do Código de Processo Penal) e de insanidade (artigo 149 do Código de Processo Penal), a suspensão condicional do processo paralisa apenas a marcha processual destinada à produção das provas pelas partes.

O autor da ação penal e o réu poderão encontrar uma forma de composição do conflito de interesses penal que não dependa de ficar demonstrada a existência da infração penal e a responsabilidade do processado.

No lugar das provas dos fatos que sustentam as pretensões das partes, figuram as atitudes que o réu se compromete a adotar e o autor entende suficiente. Com isso, vencido o período de prova, se a suspensão condicional do processo não for revogada, considera-se definitivamente solucionada a questão penal, isto é, com força de coisa julgada material.

Note-se que se tratará de decisão de mérito, sujeita a consolidar coisa julgada material tanto quanto as sentenças absolutórias. À semelhança do que acontece no processo civil, as soluções de mérito no âmbito penal não ficam

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restritas aos casos de julgamento do pedido do autor, com a condenação ou absolvição do réu. Também no âmbito penal as soluções consensuais impõem definitiva resolução do conflito (vide a transação penal), ao tempo em que o reconhecimento da prescrição ou de qualquer causa de extinção da punibilidade cumpre o mesmo papel da declaração da prescrição e da decadência, no processo civil, levando à extinção do processo com julgamento do mérito.

Diante deste quadro, é válido assinalar que a suspensão condicional do processo imporá às partes outro percurso processual distinto da caminhada probatória, mas orientado pelo mesmo fim desta última, tal seja, oferecer definitiva solução ao conflito de interesses penal. Só haverá paralisação da atividade de instrução mediante produção de provas, estando o juiz, por isso mesmo, impedido de julgar o pedido do autor. No mais, o processo seguirá em busca da solução que, de acordo com a legislação, é eficaz para recompor o tecido social supostamente afetado pelo delito. Não há suspensão propriamente dita.

As condições da proposta e da suspensão não são pena criminal e a sentença homologatória não tem natureza de condenação. Antes, a suspensão representa justamente a opção legislativa pela não condenação como forma de composição do conflito, em situação bastante semelhante, por exemplo, à prescrição.

Como as condições da suspensão do processo não têm caráter de sanção, nunca poderão equivaler às sanções principais ou alternativas previstas na legislação penal. A solução realmente exclui a aplicação de qualquer pena e por essa razão é inviável socorrer-se o juiz das medidas prescritas como sanções criminais, ainda que ao argumento de que não poderão ser implementadas compulsoriamente. A implementação compulsória das penas configura mera possibilidade das penas derivadas de condenação criminal transitada em julgado, que poderão ser executadas sem oposição do condenado (pagamento de multa, prestação pecuniária etc.) e não considera os efeitos psicológicos das providências.

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Com tudo isso, o que se constata é que a suspensão condicional do processo atua como meio de composição do conflito de interesses penal, pelo qual veicula-se causa de extinção da punibilidade. A decisão de suspensão é homologatória e a suspensão tem natureza jurídica de procedimento penal de conhecimento. Em si mesma, não é direito do réu ou do autor. É tão-só o devido processo legal de uma forma especial de composição do conflito. 5.2.2.2. Da Natureza Jurídica — Segunda Parte

Com base nestas considerações, é possível definir a

natureza jurídica da proposta. Com efeito, se a suspensão condicional do processo

constitui modelo de procedimento de resolução do conflito de interesses que opõe de forma atenuada a pretensão acusatória à pretensão de resistência da defesa, é natural que a proposta represente um dos caminhos pelos quais o Estado busca alcançar a efetividade do direito penal, efetividade que consiste na restauração de uma hipotética paz social, mas que também pode ser compreendida como esforço de harmonização de interesses contrapostos, de sorte a proporcionar condições dignas de vida para todos os envolvidos no drama do delito.

Ora, a instauração do processo penal de condenação não pode ser tida como direito do acusado. Da mesma maneira, não é certo falar que o indivíduo, ainda não processado, tem direito a algum tipo de sanção penal. O acusado terá direitos, deveres, ônus e faculdades no processo penal. Não terá, porém, direito a que o titular da ação penal o processe como o agente não tem direito a sofrer pena.

A submissão do réu ao processo acontece compulsoriamente e depende da presença de requisitos pertinentes à ação (as chamadas condições da ação) e ao processo (a justa causa e os pressupostos processuais).

A submissão de alguém a uma sanção criminal depende de estarem provadas a existência do delito e a responsabilidade penal da pessoa acusada, com

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independência dela ter confessado (incisos LIV e LV do artigo 5o da Constituição da República e artigo 158 do Código de Processo Penal).

Por fim, é necessário sublinhar de uma vez por todas que o direito de ação não se esgota, no processo penal de condenação, no ato de oferecer a denúncia ou queixa, como Ada Pellegrini Grinover teve a oportunidade de acentuar.53 Assinala a jurista que:

Nessa ampla acepção, ação e defesa não se

exaurem, evidentemente, no poder de impulso e no uso das exceções, mas se desdobram naquele conjunto de garantias que, no arco de todo procedimento, asseguram às partes a possibilidade bilateral, efetiva e concreta, de produzirem suas provas, de aduzirem suas razões, de recorrerem das decisões, de agirem, enfim, em juízo, para a tutela de seus direitos e interesses, utilizando toda ampla gama de poderes e faculdades pelos quais se pode dialeticamente preparar o espírito do juiz.

Diante do exposto, mostra-se irrefutável a tese de que a

proposta de suspensão representa um dos elementos constitutivos do direito de ação penal condenatória. Direito de ação que em uma de suas faces se apresenta como o direito de estar em juízo e pedir ao juiz a adoção de uma solução diferente da pena criminal, nos casos em que a lei autoriza esta solução.

O poder de impulso típico da promoção da ação penal é complementado com a indicação, pelo autor, de que o Estado ficará satisfeito com a aplicação de medida distinta da pena criminal, visando resolver o conflito que a pretensão do acusador carrega.

53 O Processo Constitucional em Marcha: Contraditório e Ampla Defesa em

Cem Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 11

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Esta posição, além de guardar coerência com o sistema processual acusatório estruturado constitucionalmente, velando pela autonomia da ação em face da jurisdição e reservando à defesa a tarefa de resistir à pretensão, é a única que assimila por inteiro a idéia da solução consensual do conflito de interesses penal.

Assim é que as soluções só podem ser denominadas de consenso se ambos os interessados estiverem de acordo quanto ao estipulado. O fundamento de uma resolução dessa natureza é a autonomia da vontade, que só existirá plenamente se o acusador e o acusado puderem concorrer com a sua vontade livremente. Não haveria autonomia de vontade se uma das partes estivesse obrigada a transigir!

Portanto, é acertada a posição do Supremo Tribunal Federal quando aponta para a iniciativa do Ministério Público relativamente à formulação de proposta de suspensão (Habeas Corpus no 74.153-3–SP, rel. Min. Sydney Sanches, impetrante Edmo Pontes de Magalhães, jul. 3/12/1996).54 5.2.2.3. Da Natureza Jurídica — Terceira Parte

Fixada a natureza jurídica da proposta, cabe indagar: o

que fazer se o Ministério Público, sem justificativa, deixar de formular a proposta?

Em primeiro lugar, temos que destacar que a decisão do Ministério Público a respeito do oferecimento da proposta não é ato vinculado, no sentido estrito. Por ato vinculado, entende José dos Santos Carvalho Filho55 aquele praticado em virtude de uma situação de fato, delineada na norma legal, de modo tal que, verificada a situação de fato, ao 54 Em outra decisão, porém, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a

necessidade da proposta do Ministério Público, mas o voto expressamente referiu-se a esta proposta como direito subjetivo do acusado (Habeas Corpus nº 75.197-1-PR, rel. Min. Moreira Alves, impetrante Lúcio Jatobá, 1ª Turma, jul. 19/8/1997, unânime), seguindo assim a posição pioneira do Superior Tribunal de Justiça (RHC nº 6.410/PR, rel. Min. Vicente Leal, recorrente Omires Pedroso do Nascimento, por maioria).

55 Manual de Direito Administrativo, 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 82.

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agente nada mais caiba senão praticar o ato. O motivo do ato é motivo de fato e não de direito.

Não é o que ocorre relativamente à proposta. Examinando o artigo 89 que está sendo comentado, resulta claro que um dos requisitos para a homologação da suspensão é a simetria entre a situação pertinente à conduta e, do outro lado, aquela que se extrai dos requisitos do sursis, o que se traduz da expressa remissão ao artigo 77 do Código Penal.

A Lei no 9.099/95 parece orientada a permitir a solução alternativa somente se for adequada à culpabilidade do acusado (artigo 77, inciso II, do Código Penal). Ora, isto significa dizer que há de ser levado a cabo um juízo prévio — provisório e antecipado — sobre a reprovação pessoal da conduta indicada na denúncia.

E é inevitável que este juízo seja conotativo, pois apenas com atribuição de valor ao comportamento, em caráter provisório e tendo em vista as informações da investigação criminal, será possível conceber a correspondência hipotética entre a culpabilidade e o merecimento da solução diferenciada da pena criminal.

Por conta desse fator, todos os componentes da situação fática que autoriza a proposta não estão presentes de imediato, a ponto de transformar a própria situação de fato em motivo de fato e subordinar o ato do Ministério Público, vinculando-o. Uma intervenção do agente (leia-se Ministério Público) se faz necessária e o papel desta intervenção é o de determinar a concreta política criminal aplicável em cada caso, gerando a eleição pelo Ministério Público da situação fática que motivará a aplicação da regra jurídica e a formulação da proposta. A culpabilidade do agente comporta a solução da suspensão? Em caso afirmativo, o Ministério Público formula a proposta; caso contrário, de forma fundamentada deixa de fazê-lo. Somente o exame da situação de fato, pelo Ministério Público, indicará a propriedade de se formular a proposta de suspensão.

Com isso, é correto afirmar que o ato do Ministério Público é discricionário, muito embora o espaço de atuação

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seja bastante limitado. Acrescente-se que discricionariedade não se confunde com arbitrariedade, que estará presente na ação desvinculada de qualquer situação de fato prevista na lei.56

A atuação do Ministério Público deverá ser fundamentada, tanto quando oferece a proposta como quando deixa de fazê-lo, propiciando o controle necessário ao juízo de discricionariedade — com exclusão da arbitrariedade — e às regras que regulam a vida democrática, pois não há poder jurídico legítimo em uma democracia que se exerça sem a possibilidade real de controle.

Caso o acusado e/ou o juiz entendam que a proposta tinha de ser apresentada e indevidamente não o foi, terá inteira aplicação o artigo 28 do Código de Processo Penal, por analogia. Com efeito, dispõe este artigo que, se o Promotor de Justiça deixar de oferecer denúncia quando devia fazê-lo, pronunciando-se pelo arquivamento, o juiz, discordando, remeterá ao Procurador-Geral os autos de inquérito ou peças de informação. O Procurador-Geral então insistirá no arquivamento ou exercerá a ação penal, oferecendo denúncia ou designando outro Promotor de Justiça para oferecê-la. Trata-se de uma forma de controlar o exercício da ação penal pública, regulada pelo princípio da obrigatoriedade.

De acordo com nosso entendimento, a proposta de suspensão constitui modalidade alternativa de exercício da ação penal pública. Assim, estará o Ministério Público obrigado a exercitá-la sempre que presentes os requisitos legais. Caso o Promotor de Justiça ou Procurador da República deixe de formular a proposta, o juiz controlará a inércia relativamente ao exercício da ação penal pública, remetendo os autos ao Procurador-Geral. Ao Procurador-Geral caberá dar a última palavra, formulando a proposta ou ratificando seu não-oferecimento.

Outra solução que despreze a intervenção do Ministério Público além de não preservar a estrutura fundamental 56 Carvalho Filho, José dos Santos. Ob. cit., p. 82.

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acusatória de nosso processo penal ferirá gravemente o princípio da autonomia de vontade das partes, obrigando o Ministério Público a acatar solução definitiva do conflito de interesses ainda quando discorde dela. Será o mesmo que reduzir o exercício de ação penal ao mero ato de denunciar, retirando do Ministério Público a condição de parte.

A feição acusatória eleita na Constituição não permite ao juiz tal providência, cumprindo-se o controle da legalidade, impessoalidade e moralidade da abstenção do representante do Ministério Público, exclusivamente no âmbito interno da sua instituição, pela provocação ao Procurador-Geral.

Por todo o exposto, defendemos que só estará preservado o princípio acusatório se a suspensão condicional do processo for homologada em face da livre manifestação do acusador e do acusado.

Este tem sido o entendimento do eg. Supremo Tribunal Federal, conforme pode ser vislumbrado das decisões, cujas ementas, para finalizar, transcrevemos a seguir:

Habeas Corpus. Improcedência da alegação de não ter sido o

defensor do ora paciente intimado para a apresentação das razões de apelação.

No caso, por não haver o Ministério Público, quando do oferecimento da denúncia, proposto a suspensão do processo, não há razão para decretar-se a nulidade deste a partir desse oferecimento.

Habeas corpus indeferido, determinando-se a restituição dos autos da ação penal à origem.57

Habeas Corpus. Impetrado contra acórdão

que, em 13/12/95, sem pedir manifestação do Ministério Público sobre a admissibilidade da

57 Habeas corpus nº 75.197-PB, julgado pela 1ª Turma, relator Ministro

Moreira Alves, publicado do Diário de Justiça da União em 24/10/1997.

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suspensão do processo prevista no art. 89 da Lei no 9.099/95, em vigor desde 27/11/95, confirmou a sentença de 19/6/95, que condenara o paciente a 15 dias de detenção e 50 dias-multa, por infringência do art. 330 do Código Penal.

Efeito retroativo das medidas despenalizadoras instituídas pela citada Lei no 9.099 (Precedentes do Plenário: inquérito no 1.055, D.J. de 24/5/96).

Pedido deferido para, anulados o acórdão e a sentença, determinar-se a remessa dos autos da ação penal ao Tribunal Especial Criminal, para a aplicação, no que for cabível, do disposto nos artigos 76 e 89 da Lei no 9.099-95.58

58 Habeas corpus nº 74.017-CE, julgado pela 1ª Turma, relator Ministro

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6. A Execução Penal e o Sistema Acusatório1 Com razão, Yadira Calvo lembra, ao tratar da

discriminação sexual em todos os níveis, que se supõe que Deus escreve certo por linhas tortas; porém não os seres humanos, que quando torcem as linhas o fazem porque têm torcidas também as intenções.2

Assim é em termos de Direito e da mesma maneira quando tratamos de Democracia, principalmente na América Latina e de modo mais específico no Brasil.

Muito embora tenha parecido a muitos que a promulgação da Constituição, em 1988, haja representado o ponto culminante da transição para a democracia, os reflexos de uma ordem jurídica democrática não são visíveis para além dos contornos meramente formais da Democracia procedimental. Por ordem democrática real, é preciso desde logo fixar, entendemos algo mais que a simples conexão de procedimentos entre elementos dispostos a assegurar a participação popular, livre e direta, na eleição dos representantes no Congresso e no Executivo. Em companhia de Lola Aniyar, preferimos optar por um conceito substancial, em virtude do qual a existência de três pilares básicos é imprescindível para condensar o verdadeiro significado do termo: que o poder seja ascendente, isto é, que vá das camadas populares, para cima; que seja utilitário, pois que responda a interesses generalizáveis; que tenha capacidade para conter os abusos de poder.3

1 Trabalho elaborado para publicação na Revista Jurídica da Faculdade de

Direito Iguaçu – UNIG e na Revista Juris Poiesis, do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Estácio de Sá, que serviu de base para a palestra com o mesmo título, proferida no VI Simpósio Nacional — Direito Penal e Processual Penal — ―Novas Idéias — Novos Rumos”, em 30/4/1999, no Hotel Glória, Rio de Janeiro, pelo Instituto de Direito.

2 Calvo, Yadira. Las Líneas Torcidas del Derecho, San José: ILANUD, 1996, p. 5.

3 Aniyar, Lolita. Democracia y Justicia Penal, Caracas: Congreso de la República, 1992, p. 7.

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De concreto, a implementação de uma democracia com essas características é um projeto dinâmico e sempre não totalmente realizável, porque pressupõe um nível de igualdade social, econômica e jurídica que não corresponde à nossa realidade e, o que é mais grave, a um futuro que sequer hoje a maioria dos brasileiros aspira.

Da democracia aparente ao processo penal democrático aparente o passo não é largo e costuma ser dado sem dificuldade, infelizmente, por conta do mesmo tipo de cultura que embarga os esforços de redução da criminosa distorção na distribuição de rendas, prêmios e castigos em nossa sociedade.

No campo do processo penal de conhecimento, mais visível e interessante para a própria dramaturgia do Estado Espetáculo, várias garantias são dispostas pelo direito para aqueles que têm condições de acesso a melhores recursos jurídicos, e também, em grau variável, para todos os demais acusados. Assim, exige-se que um juiz imparcial aprecie a demanda do acusador, em um ambiente filtrado pelo contraditório, que só é possível graças à ampla defesa assegurada pela direta participação do acusado no processo e pela intervenção de Defensor profissional. As provas valoradas ao final devem ter sido obtidas de forma lícita e o julgamento há de ser, normalmente, público, fundamentando-se a decisão.

Cumprida a trajetória do processo de conhecimento, resta, para os definitivamente condenados, expiar a culpa, termo religioso que bem demonstra o sentido que a aplicação da sanção e a execução penal ainda têm.

No momento inicial da execução penal, vislumbra-se claramente a distorção do primeiro eixo deste tipo de processo. Antes de ser um árbitro imparcial de um conflito entre partes — Ministério Público e condenado — por uma dessas situações peculiares à ideologia com projeção no mundo jurídico, o juiz deve tomar e manter a iniciativa da execução, à semelhança do modelo inquisitório. Do ponto de vista subjetivo, verifica-se o fenômeno da transferência, para o magistrado da execução, das responsabilidades geradas

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pela suposta expectativa social, de que o condenado seja efetivamente castigado.

A teoria crítica, tão importante na década passada, por evidenciar as incoerências do discurso jurídico, desmoralizando a tese de que a prisão é eficaz método de reintegração social do condenado, acaba de certa forma manipulada pelos defensores de uma vivência social autoritária, conservadora e discriminatória, que dela recolhem somente um retalho para justificar a retribuição pela retribuição, porque possivelmente, dizem, nada mais é possível fazer pela socialização!

Perde-se o contato com o sentido de humanidade que deve guiar toda ação estatal opressiva pela própria natureza e se substitui tal exigência de humanidade pela expectativa de que o juiz fará o condenado perceber de maneira indiscutível a gravidade da conduta que o levou a ser punido e, portanto, a ser afastado real ou simbolicamente, mediante a prisão ou substitutivos penais, da comunidade dos seres humanos saudáveis!

Tendo por alicerce demandas sociais dessa qualidade é que um juiz, na execução, é chamado a cumprir o seu papel, em flagrante contraste com as exigências constitucionais de uma jurisdição imparcial e voltada à implementação de medidas de justiça social. É justamente por força dessa distorção que a posição do juiz no processo de execução tem de ser repensada em bases mais democráticas, simultaneamente com a convicção na eficácia dos procedimentos jurídicos para conter os abusos.

A falência factual do propósito de ressocialização da sanção penal, denunciada pela teoria crítica, se não pode levar, contemporaneamente, à abolição da intervenção punitiva institucionalizada, como a conhecemos, importa em duas conclusões que dimensionam a intervenção do juiz na execução da pena: sem que seja necessária uma profunda reflexão crítica cabe ao juiz compreender que a integração social dos condenados, qualquer que tenha sido a sanção eleita, é uma via de mão dupla, exigindo adaptações tanto da parte de quem sofre a pena como da sociedade e do Estado,

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este devedor de tantos serviços sociais elementares para diminuir a pobreza; além disso, do condenado não se pode exigir mais do que a sentença impõe e tudo o que se deve exigir dele há de estar condicionado pelo fim de humanizar as relações sociais presentes e futuras.

Em um quadro com tais notas, o juiz funciona atento para eliminar os abusos durante este processo e pronto para resolver as controvérsias sobre a execução do julgado, seus limites e possibilidades, e a respeito da tutela dos inúmeros interesses jurídicos do condenado.

Colocar o juiz no ponto central do procedimento de execução penal acarreta, como conseqüência inevitável, levar o Ministério Público para a extremidade da relação, como permanente parte autora da execução, em todos os seus momentos, como acontece em Portugal, enquanto o condenado passa a ter, obrigatoriamente, presença decisiva na definição do curso da sua vida, durante a execução da pena, influindo, pessoalmente e por seu Defensor, na conformação da convicção judicial.4

É possível, a partir daí, começar a desenhar um modelo de procedimento em contraditório na execução, que, na visão de Elio Fazzalari, mencionado por Antônio Magalhães Gomes Filho, pode ser identificado pela simetria das posições subjetivas, a sua mútua implicação e a substancial paridade que se traduzem para cada um dos participantes, na possibilidade de dialogar não episodicamente, mas sobretudo de exercitar um conjunto de controles, reações e escolhas.5

4 Antonio Magalhães Gomes Filho salienta, com razão, que a defesa do

condenado no processo de execução penal não se confunde, pois, simplesmente, com a eventual oposição às pretensões dos órgãos estatais incumbidos de promover o cumprimento das penas impostas, mas se caracteriza, antes de tudo, como um conjunto de garantias através das quais o sentenciado tem a possibilidade de influir positivamente no convencimento do juiz da execução, sempre que se apresente uma oportunidade de alteração da quantidade ou da forma da sanção punitiva (―A Defesa do Condenado na Execução Penal‖, in Execução Penal, Ada Pellegrini Grinover (coord.), São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 41).

5 Antonio Magalhães Gomes Filho, ob. cit.

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É verdade que isso não basta e que, se alcançássemos a excelência do procedimento contraditório na execução, ainda assim a vida e as perspectivas do condenado sofreriam somente pequena alteração.

A nosso juízo, a arquitetura ideal da execução está ligada a reformulações na prática e na cultura da execução penal. Na prática porque, como salientava Marcuse, se a teoria trabalha com o universo estabelecido do discurso, que é aquele de um mundo não livre, o pensamento dialético que na essência nada mais significa que diálogo com a razão, é sempre destrutivo e qualquer libertação que ele possa trazer é libertação em pensamento, em teoria. Porém, o desencontro entre pensamento e ação, teoria e prática é, ele mesmo, sublinhava o filósofo, parte de um mundo não livre, de sorte que nenhum pensamento e nenhuma teoria podem desfazê-lo. É necessário atuar incisivamente sobre a realidade, guiando-se pela teoria, se o propósito é transformar para melhor, visando alcançar um modo de tratamento da pessoa condenada mais de acordo com a pauta de valores éticos difundida no meio social. Nesta perspectiva, Wolfgang Leo Maar6 adverte que os problemas éticos demandam soluções práticas. A postulação de uma nova praxis importa em modificar a cultura da e na execução penal, alterar o sentido do patrimônio simbólico dos modos padronizados de pensar e de saber que se manifestam, expressamente, através da conduta social de todos os principais atores.

Compreende-se melhor o desafio à vista da seguinte hipótese, certamente bem real: mesmo que o processo de execução esteja sendo regularmente impulsionado pelo Ministério Público, à diferença do que ocorre hoje, e no seu desenvolvimento normal a Defesa postulasse, para ilustrar, tutela jurídica consistente na aplicação da lei penal posterior benéfica, que prevê substitutivos à prisão (Lei no 9.714/98), a um caso de condenação de traficante de drogas a três anos de

6 ―Introdução a Marcuse: Em busca de uma ética materialista‖, in Herbert

Marcuse: Cultura e Sociedade, São Paulo: Paz e Terra, 1997.

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reclusão, pena mínima, uma solução fora de parâmetros puramente ideológicos, com raciocínio do tipo o tráfico de drogas é um crime grave e, portanto, seus autores a priori não merecem a substituição, não seria de se esperar.

Vamos buscar um exemplo menos polêmico: Caio, reincidente em crime doloso, condenado a dezoito

anos de reclusão, em regime fechado, trabalha internamente durante nove anos. Como para cada três dias de trabalho é possível a remição de um dia de pena, Caio tem direito a remir três anos de sua pena, que ficaria reduzida a quinze anos, nove dos quais cumpridos! Acontece que, de acordo com o artigo 127 da Lei de Execução Penal (Lei no 7.210/94), o condenado que for punido por falta grave perderá o direito ao tempo remido, de sorte que se Caio, num dia menos inspirado, cometer falta grave, por essa indisciplina receberá a sanção adicional correspondente a três anos de reclusão, pena superior à de muitos crimes!

O episódio de um único dia de Caio na prisão poderá determinar uma virada decisiva e negativa na continuidade da vida do condenado, eliminando aquilo que ainda é a insulada e frágil garantia da sociedade no retorno dele ao convívio social amplo: sua esperança.

Enfrentando a questão no Rio de Janeiro, o juiz Marco Aurélio Belizze, em decisão fundada na eqüidade, reconheceu o excesso imprevisto para o legislador (excesso culposo, provavelmente) e, aplicando por analogia as condições do indulto, encontrou solução razoável, que não importou em sacrifício inconstitucional da posição jurídica do condenado, limitando a perda dos dias trabalhados aos doze últimos meses, parâmetro inspirado nos decretos de indulto.7 Hipoteticamente, de três anos de reclusão, o saque em conta de um condenado pode atingir quatro meses!

Só se tornou possível a solução equilibrada e justa porque o juiz soube, inspirado na constitucional proibição do excesso, mediar o conflito entre partes opostas e atender a

7 Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro, processo nº 90/02843-2,

decisão de 10/7/1998.

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interpretação legal mais condizente com os direitos fundamentais, premissa básica da democracia.

Isso não tira, todavia, o caráter excepcional da decisão. A seguir prestigiados autores, como Mirabete,8 os juízes decretam a revogação da remição, que termina por alcançar a totalidade do tempo trabalhado e atingir o condenado, punindo-o hoje com o sacrifício de tanto tempo empenhado muito antes de viver o problema que resultou na falta grave.

Por isso é que, a nosso juízo, a reformulação teórica do processo de execução há de implicar em alterações práticas sensíveis no plano cultural. Além do deslocamento do julgador para o ponto central do processo de execução, deixando ao Ministério Público a iniciativa, é imperativo que se assegure a dinâmica do contato pessoal entre juiz e condenado, propiciada verdadeiramente pela predominância da forma oral de procedimento, que pode oferecer ao juiz algo das sensações e das dificuldades experimentadas pelos condenados no cumprimento das mais variadas modalidades de pena e dar ao magistrado, que as desconhece, o sentido dos limites e possibilidades reais dos seres humanos em condições desfavoráveis.

Hassemer chama a isso de compreensão cênica, cujo objetivo consiste em, reconhecendo-se as peculiaridades da comunicação humana que não está limitada a palavras, e menos ainda a palavras escritas, que o juiz interpreta na hora de julgar como se estivesse interpretando um texto escrito, uma obra literária qualquer, fornecer as condições de comunicação próximas ao ideal.9 O sentido dos gestos, tom de voz, a força de argumentos que um defensor pouco hábil desconsidera e, principalmente, a possibilidade do condenado sentir-se confiante para revelar ao juiz, diretamente, as experiências mais arbitrárias que possa estar sofrendo, tudo isso demonstra que a forma primeira do

8 Mirabete, Júlio Fabrini. Execução Penal, 5ª ed. São Paulo: Atlas, 1992, p.

319. 9 Hassemer, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, Barcelona: Bosch,

1984.

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procedimento de execução deve ser a oral, ao contrário do que está preconizado no artigo 196 da lei de execução. Hoje o procedimento na execução penal é tudo, menos predominantemente oral.

O Projeto de Lei no 2.687-96, em tramitação no Congresso, prevê a modificação dos artigos 195 a 197 da LEP e introduz o procedimento oral e a audiência como regra. É limitado quanto à possibilidade das partes provarem, o que deve ser melhorado, contudo, avança ao incorporar a audiência, que tende a reduzir as distâncias entre o juiz e o condenado, seu jurisdicionado na execução.

Um procedimento oral, no qual, ainda conforme Hassemer, o juiz desça do seu pedestal e encare as partes como pessoas portadoras de direitos e deveres, ônus e faculdades, e que esteja inserido em um contexto de distribuição rigorosa das funções na execução, entre juiz, Ministério Público e condenado, assistido por Defensor, pode oferecer soluções equânimes, justas, para situações diferenciadas no transcurso do processo, em virtude das quais mesmo ao condenado por tráfico não se negue, sistematicamente e sem motivação jurídica, quando for o caso, a substituição da prisão por outra medida.

A oralidade envolverá aí, por outro lado, cuidados especiais com o emprego da tecnologia no procedimento de execução. Enquanto é indiscutível que a era da informática e da telemática pode oferecer vantagens indiscutíveis, em termos de controle do tempo de duração das penas e medidas e da celeridade na produção dos atos jurídicos necessários, um dos pressupostos elementares do processo oral está em permitir o contato direto entre o juiz e a parte, contato que não deve ser mediado por sofisticados recursos de transmissão de voz e imagem, distanciando fisicamente os protagonistas do processo e deixando um deles isolado em ambiente que lhe pode ser hostil, justamente aquele sujeito mais necessitado da segurança que o contato direto proporciona.

A cultura pós-moderna implicada em determinadas atitudes, louváveis sob inúmeros aspectos, porque visam

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agilizar e melhorar a prestação jurisdicional, tem de se render à realidade instrumental da tecnologia. Ela não vale por si, como o processo igualmente não é um fim em si mesmo!

A tecnologia é importante pelos resultados que a sua aplicação prática proporciona, de modo que, se estes resultados não atendem aos objetivos de propiciar uma adequada tutela jurídica, devem justificar o abandono, ainda que provisório, do recurso mais sofisticado. No caso, o contato pessoal, na velha conhecida audiência, se causa transtornos de locomoção, segurança etc., é um aparente atraso que, em termos de processo jurisdicional, humaniza e, neste sentido, acaba sendo um atraso progressista, algo como DE VOLTA PARA O FUTURO. Seguindo este caminho, creio que não necessitaremos temer pela advertência de Boaventura de Sousa Santos, de que um dia teremos pateticamente de inventar, sempre com atraso, o que já tivemos quando éramos atrasados.10

Às vantagens da audiência devemos somar a conveniência, no caso de presos, tendo em vista a sempre alegada dificuldade de transporte e segurança, do ato realizar-se nas unidades prisionais. Um dos pontos mais sensíveis e de mais delicada solução jurídica está relacionado aos desvios e excessos de execução, medida que não exclui a audiência no tribunal, mas a complementa.

Quantas vezes o indivíduo devia estar cumprindo pena em regime semi-aberto ou aberto e, apesar da penitenciária ter essa qualificação, na prática, o sistema é fechado. Quantas vezes a única progressão se dá exclusivamente de sistemas mais fechados para outros apenas menos fechados! Pior, todos sabemos que o artigo 88 da LEP, que trata das mínimas condições físicas dos cárceres, é sistematicamente desrespeitado pelos governos estaduais. São excessos na execução das penas, conforme a tipologia desenhada no artigo 185 da LEP, que o juiz poderá perceber in loco,

10 Santos, Boaventura de Sousa. Pelas Mãos de Alice, São Paulo: Cortez, 1995,

p. 67.

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reforçando o seu dever de fiscalizar ao mesmo tempo em que o jurisdicionado tem certeza, porque está em audiência com o juiz, no próprio ambiente carcerário, que o magistrado haverá de leva-los em consideração na hora de decidir sobre os pleitos deduzidos. Se as partes tradicionalmente têm o direito de serem ouvidas pelo juiz — é dito que têm direito ao seu dia na corte — o juiz passa a ter o direito ao seu dia na prisão: one day in jail.

Para os presos, é benéfica a configuração procedimental com essas características, aproximando o juiz da realidade de vida do condenado, se houver a pretensão de convencê-los da justiça intrínseca da ordem jurídica.

No plano processual, algumas conseqüências podem ser desde logo percebidas:

a) quanto ao excesso de execução, além da providência jurídica óbvia de eliminação da medida excessiva ou desviada — por exemplo, transferindo-se o preso para unidade compatível com as exigências da fase de execução — caberá imaginar a viabilidade de pretensões jurídicas que não se restrinjam à indenização preceituada no artigo 5o, inciso LXXV, da Constituição da República, mas que, aplicando o princípio da proporcionalidade, importem na compensação quantitativa de sanção pela violência qualitativa constatada. Verdadeira e jurídica redução da pena. De lembrar que se outro preso, condenado ao mesmo tempo de reclusão em regime idêntico, vai sofrer uma limitação da sua liberdade na mesma porção de tempo a ser suportada por este, em visível excesso, há quebra do princípio constitucional da isonomia, que o Poder Judiciário não pode deixar de coibir;

b) QUANTO AOS ADOLESCENTES, rompe-se muitas vezes a ideologia do senso comum, que pode inspirar alguns juízes, levando-os a crer na eficácia da internação como medida estacionária da situação de conflito. Muitas vezes, o caráter banal da internação está fundamentado na crença em uma eficácia corretiva dela, absolutamente distante da realidade, como demonstra a criminologia. O juiz, ao ter contato direto com o cárcere e com o adolescente em

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cumprimento de medida em condições concretas, estará melhor instruído para pesar o que realmente pretende internando o jovem e não se deixará iludir pela denominação comum de ―Escolas‖ ou ―Educandários‖ que muitas destas unidades ostentam.

Muitas outras questões mereceriam ser enfocadas, mas a limitação de tempo permite tão-só citá-las, para orientar a meditação dos interessados: o cabimento da execução penal provisória, idealizada tendo em vista interesses reais do condenado; a possibilidade jurídica do Ministério Público recorrer a favor do processado, durante a execução; o não cabimento do mandado de segurança para impedir a imediata execução de decisão favorável ao condenado; o procedimento do recurso de agravo (semelhante na execução penal ao do recurso em sentido estrito); o caráter jurisdicional pleno da execução, para englobar a questão das faltas graves e suas conseqüências; a impossibilidade da regressão de regime cautelar (objeto de recente decisão do Des. Valmir da Silva, do Rio de Janeiro); e, finalmente, o debate sobre se o preso tem direito a não progredir de regime (por conveniência, segurança ou conforto, por exemplo).

A teoria jurídica pode e deve fornecer os elementos indispensáveis à construção de um processo de execução penal mais humanizado e comprometido com os fins da sanção, reformulando em linhas gerais o atual. Já se disse que, embora disponha de duzentos e quatro artigos, a lei de execuções penais dedica apenas dezoito ao processo, demonstrando, em linhas gerais, como há muito salientou Ada Grinover, uma certa falta de atenção da lei para com as garantias processuais das partes e da jurisdição.11

Temos certeza que a elaboração de um novo processo de execução, no entanto, não é suficiente para remodelar as relações sociais penetradas pelo problema do crime.

11 Grinover, Ada Pellegrini. ―Anotações sobre os Aspectos Processuais da Lei de Execuções Penais‖, in Execução Penal. Ada Pellegrini Grinover (coord).

São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 15.

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A democracia no processo penal de execução, preconizada no início, a ser alcançada, em síntese, por intermédio do reforço à estrutura caracteristicamente de acusação, com distribuição rigorosa de funções, e levando em conta, no futuro, um procedimento oral, ainda que repercuta na mentalidade dos operadores jurídicos de modo a torná-los protagonistas em um enredo de respeito aos direitos fundamentais, é só um dos caminhos em direção ao contexto democrático mencionado por Lola Aniyar.

A democracia substancial, que é o nosso postulado, acaba algo parecida com a utopia e, como tal, novamente nas palavras de Boaventura de Souza Santos, está a indicar os caminhos a seguir, muito embora apenas vislumbre nas sombras de um futuro incerto o lugar de chegada. Semicega a utopia democrática, diria Boaventura, enxerga o processo de execução penal carente de mudanças, mas reclama também a democratização do sistema penal como um todo e a humanização do controle social hoje extraordinariamente brutal. É preciso e urgente redimensionar o papel das classes populares em todo o percurso ideal deste sistema. E o fim ou destino desta utopia, gostaríamos que fosse a emancipação dos grupos carentes da sociedade. SE É SEMICEGA A UTOPIA DEMOCRÁTICA, QUEM SABE NÃO É TAMBÉM SEMIVIDENTE E NOS INDIQUE, AO FINAL, COMO PONTO DE CHEGADA E REPOUSO DA EMANCIPAÇÃO, UMA SOCIEDADE JUSTA, LIVRE E FRATERNA. UMA SOCIEDADE VERDADEIRAMENTE SOCIALISTA.

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7. Conclusão De tudo quanto foi exposto, cabe agora articular os

tópicos fundamentais do trabalho, não sem antes registrar que, malgrado a advertência contida no texto, de que a aferição da constitucionalidade de um sistema processual passa pela estática concordância entre as funções processuais e também pela ponderação da dinâmica de relações que se estabelecem, o fundo cultural é determinante fator de efetivação de sistema e princípios constitucionais, impondo-se a evolução em direção à plena democracia simultaneamente com a aproximação às expectativas sociais. Desse modo, a recíproca relação entre o mundo direito e o mundo real potencializará a semente, no campo do processo penal, de um sistema que não seja apenas aparentemente acusatório, mas torne ambos, princípio e sistema acusatórios, realidade, conjugando eficaz tutela da segurança de todos e da dignidade de quantos venham a sujeitar-se ao processo penal.

São estas, pois, as principais conclusões: 1. o processo penal condenatório rege-se por padrões

normativos, de origem constitucional, que traduzem limitações significativas ao poder punitivo do Estado;

2. as limitações do processo penal estão a princípio traçadas, levando em conta a efetivação dos direitos fundamentais;

3. por sua vez, a efetivação dos direitos fundamentais só tem lugar em um Estado Democrático, fundado no princípio da divisão dos poderes, de tal sorte que o processo penal, espaço jurídico dentro do qual os direitos fundamentais são mais exigidos, tutelados e, em circunstâncias excepcionais, comprimidos, deve ser um processo penal democrático;

4. a democracia no processo penal projeta a tutela dos

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direitos fundamentais e da disciplina constitucional da divisão dos poderes em seu interior e resulta na implementação do princípio da divisão de funções no próprio processo, atribuindo-se a diferentes sujeitos as atividades principais de acusar, defender e julgar;

5. o sucesso na implementação de um processo penal estruturado dessa forma depende não apenas da normatividade constitucional, como da existência de um fundo cultural que reconheça a validade prática de um tal sistema, em atenção aos justos anseios de proteção e segurança da comunidade;

6. de outra forma, a Constituição produz eficácia meramente simbólica e a regulação dos seus princípios esbarra em processos de interpretação que lhes reduzem o alcance e significado;

7. visto assim, o processo hermenêutico adquire relevante valor, comportando apenas interpretações conforme à Constituição, como condição de validade das normas ordinárias;

8. da interpretação derivada da articulação das normas constitucionais que disciplinam direitos fundamentais, instituem a privativa atuação do Ministério Público, no exercício da ação penal pública, e reservam ao juiz a função de decidir os conflitos de interesses, além de preconizar a publicidade do processo e a oralidade do procedimento, resulta a convicção de que a Constituição preocupou-se com a inserção de princípios determinantes da estrutura e do modelo de processo penal;

9. o modelo eleito não é original mas sim o produto da evolução, cujo conhecimento contribui para edificar critérios de avaliação dos sistema e princípios;

10. não existe uma compreensão exclusiva e unicamente válida sobre que elementos compõem os sistemas processuais, variando conforme a história dos povos e o enfoque teórico que conferem à questão do comportamento delituoso e seu modo de controle, de sorte que nem sempre coincidem as visões histórica e teórica dos sistemas;

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11. é possível, todavia, determinar alguns pontos convergentes, sendo que, relativamente ao sistema acusatório, há, além do pacífico reconhecimento de que se fundamenta na divisão das tarefas de acusar, defender e julgar (princípio acusatório), concordâncias sobre as exigências de publicidade e oralidade;

12. a definição do que se compreende por acusação é elementar na delimitação da área de atuação do acusador e do juiz;

13. optou-se, neste aspecto, por inserir a acusação no conceito de ação penal — importando na imputação de uma infração penal, com pedido de aplicação da sanção — e, assim, extrair todas as conseqüências possíveis, quer no tocante à delimitação do objeto do processo, quer quanto à distribuição das atividades probatórias ;

14. reconheceu-se que as leis processuais ordinárias brasileiras, de acordo com o maneira como estão sendo aplicadas, não respeitam totalmente as fronteiras traçadas pelo princípio acusatório;

15. ficou evidente, em face da interpretação predominante, que o conceito de princípio acusatório está reservado à iniciativa de demandar, a partir do que, o dogma da verdade real se instala e, com ele, fortes tendências de investigação judicial;

16. a legislação especial, consoante tem sido interpretada e aplicada, não foge à regra, vigorando a crença na existência de poderes de instrução do juiz, além e acima do direito à prova das partes;

17. finalmente, questiona-se a suposta discricionariedade do Ministério Público quanto à implementação das soluções de consenso incorporadas pela Lei no 9.099/95, a partir da previsão constitucional contida no artigo 98, inciso I, debatendo-se, em vista disso, sobre o lugar que ocupa a instituição em um processo penal democrático, fundado na legalidade e na acusatoriedade;

18. concluímos, afirmando que, de fato, a Constituição da República optou pelo sistema acusatório, mas o ordenamento jurídico processual ainda está distante da

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máxima acusatoriedade, razão pela qual recomenda-se que, propondo-se a reforma do processo penal, como conseqüência da transformação constitucional operada em 1988, coloque-se de lado a aparência acusatória e efetive-se a estrutura que, democraticamente, divide tarefas, funções e responsabilidades.

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dos Tribunais, 2004. VAZQUEZ ROSSI, Jorge E. Derecho Procesal Penal, tomo I,

Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1995. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da

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WEFFORT, Francisco. Qual Democracia?, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, São Paulo, RT, 2003.

ANEXO

Da Lei de Controle do Crime Organizado:

crítica às técnicas de infiltração e escuta ambiental1

1 Este artigo sintetiza as idéias apresentadas em 21 de abril de 2001,

no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, no Simpósio Novos Rumos, Novas Idéias, promovido pelo Instituto de Direito – ID.

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1. Introdução

Em 11 de abril passado foi sancionada a Lei n.

10.217/2001, que alterou dispositivos da Lei n. 9.034/95,

conhecida também como Lei de Controle do Crime

Organizado2.

É necessário desde logo salientar que em virtude da

nova redação conferiu-se previsão legal à interceptação

ambiental e à infiltração de agentes, consistindo a infiltração,

nos termos da Lei, em atuação de agentes de polícia ou de

inteligência em organizações criminosas, sob falsa

identidade, para capturar provas de infrações penais

supostamente praticadas por integrantes das referidas

organizações.

O objetivo deste texto é colocar em destaque a

inconstitucionalidade de ambas as providências, inspiradas

em modelos de política criminal dotados de características

distintas daquelas que defluem da ordem jurídica brasileira.

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2. A proteção da intimidade e da vida privada como direitos

constitucionais e a autodeterminação informativa

Para melhor compreender as questões críticas e

problemáticas advindas da aplicação da mencionada lei,

situando a análise tanto no campo do direito processual

penal de índole constitucional como no da política criminal,

que estabelece as linhas mestras do programa de controle da

criminalidade, é preciso lançar luz sobre o fato de que, nos

dias atuais, o direito à vida privada e à intimidade pode ser

severamente afetado pela difusão descontrolada de

informações cuja obtenção acaba sendo facilitada pelo

emprego de tecnologias sofisticadas de comunicação e

informação.

Os modernos bancos de dados pessoais, que evoluem para a

formação de verdadeiros dossiês de personalidades

individuais3, permitem a permanente devassa da vida

privada das pessoas, ao que se soma o aparato de câmaras e

2 O texto da Lei n. 10.217/01 pode ser obtido no site www.direitosfundamentais.com.br.

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microfones capazes de captar imagens e sons, sem que as

pessoas visadas ou os interlocutores se dêem conta de que

estão sendo vigiados. Isso, é claro, não induz à formação de

juízos de valor a priori. Não se trata de questionar toda e

qualquer utilização de meios refinados de registro,

armazenamento, tratamento e transmissão de dados,

imagens ou sons, como se estivéssemos a julgar e condenar a

sociedade tecnológica (ou de informação como preferem

alguns), comparando-a com um passado de simplicidade e

harmonia total, que na realidade nunca existiu.

O ponto sobre o qual gira o eixo deste trabalho pode

ser fixado a partir da idéia de que a facilidade de disposição

das citadas informações não raro proporciona o seu emprego

para fins de controle social e mesmo de violação de

interesses vitais das pessoas, sem que os indivíduos

prejudicados disponham de recursos eficientes e rápidos de

3 Chama a atenção para o denominado dossiê genético, questionado pela incomensurável potencialidade lesiva aos interesses vitais das pessoas.

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neutralização dos efeitos perversos conseqüentes à invasão

de sua privacidade.

É bastante razoável supor que a disposição de

câmaras que ficam parcialmente ocultas em agências

bancárias e aeroportos previna situações problemáticas. Da

mesma maneira, pudesse o médico em caso de emergência

dispor de informações seguras a respeito das condições de

saúde daquele paciente até então desconhecido, cujo

atendimento de urgência se impõe, é claro que as chances de

que essa pessoa seja atendida satisfatoriamente aumentam

de modo significativo. Ninguém pode ser contra isso.

A questão crítica aparece quando as informações não

são usadas em benefício da maior parte das pessoas que

compõem o núcleo social ou ainda quando o emprego das

informações é precedido por desproporcional violação da

esfera privada das pessoas.

Há muito se sabe que a pretexto de controlar (ou

combater) a criminalidade, os grupos e classes sociais

dominantes empregaram meios violentos voltados,

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claramente, à neutralização dos setores sociais

desfavorecidos, desprivilegiados ou simplesmente

contestatórios4. Em um mesmo contexto eram tratados os

agentes responsáveis por atos que atentavam contra os

interesses individuais mais importantes (vida, integridade

física, honra) e aquelas outras pessoas que reivindicavam

mudanças radicais da ordem estabelecida, como no caso da

repressão aos movimentos operários, mediante

incriminação, nos séculos XIX e XX.

Em retrospectiva é concebível especular que os

movimentos de humanização e racionalidade, de corte

liberal, que marcaram o iluminismo e a modernidade no

plano do direito penal e do processo, tiveram eficácia

limitada mesmo nos países da Europa Ocidental, onde foram

gerados, sendo que nos chamados Estados periféricos nem

4 George Rusche e Otto Kirchheimer.in Pena y Estructura Social, Colombia, Temis, 1984.

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isso, tendo sido reduzidos à mínima expressão, de eficácia

basicamente retórica5.

Mesmo assim, a idéia-força de consolidação da

modernidade, fundada em um direito de cunho ético e

dirigida à transformação social, com redução das

desigualdades, proporcionou a edificação de uma estrutura

de direitos e garantias de natureza penal que, a par de

controlar a resposta estatal aos atos criminosos, atenuando-

lhe a brutalidade, buscou definir o Estado como entidade

cujos atos de seus agentes deveriam situar-se nos marcos de

uma legalidade prenhe de legitimidade e conformada

eticamente. Desse modo, os atos de repressão, apuração e

punição das infrações penais e de seus autores não seriam de

forma alguma equiparáveis aos atos dos próprios agentes de

delito.

O emprego da tortura e de outros meios cruéis para a

descoberta da verdade foi repudiado – ainda que na prática

tenha sido tolerado ou incentivado por regimes de vocação

5 Sobre o tema recomendo a leitura do artigo – Revista Doutrina n. 11,

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autoritária – e a aquisição e introdução de provas obtidas

por meios ilícitos esbarraram em firme objeção doutrinária,

jurisprudencial e, finalmente, legal-constitucional.

Não obstante o princípio de reserva de lei para

comprimir, legitimamente, o exercício de direitos

fundamentais, o certo é que de nada valeria a citada garantia

se os agentes do Estado Administração, encarregado da

repressão e apuração das infrações penais, pudessem decidir

diretamente os casos de restrição ao exercício dos direitos

que conformam a dignidade humana. Há aí nesta hipótese,

claramente, a percepção de que o Estado-Administração tem

interesse direto e atua como parte, de sorte que seus agentes

dirigem suas ações ao fim de coletar provas da existência de

crimes e da responsabilidade dos supostos autores.

A tensão com os interesses das pessoas investigadas

– que não são necessariamente culpadas e não podem ser

tratadas como tal até que seja definitivamente pronunciada

decisão condenatória – é inevitável.

Rio de Janeiro, Instituto de Direito (ID) ano 2001.

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A única solução cabível para resolver este conflito

entre interesses legítimos repousa em atribuir a órgão

imparcial o poder exclusivo de conhecer as pretensões de

limitação dos direitos fundamentais alheios, julgando

quando realmente é necessário ou imprescindível reduzir a

esfera de exercício destes direitos em prol de interesses

prevalecentes.

Por isso cumpre reconhecer a existência de

verdadeira ―reserva constitucional de função‖, atribuível ao

Poder Judiciário para examinar as demandas dos

responsáveis pelas investigações criminais, que estejam

interessados em obter provas ou assegurar a eficácia prática

de virtual decreto condenatório fazendo uso de medidas

coercitivas dirigidas contra o investigado ou processado e

seus direitos fundamentais.

A postura de imparcialidade do juiz, no processo

penal, independentemente de expressar a recomendável

eqüidistância entre pretensões que lhe são submetidas, na

expectativa de que receberão solução justa, não tendenciosa,

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funciona também como garantia de que os interesses vitais

dos membros da comunidade, vinculados entre si por um

moderno pacto social6, não serão postergados salvo em casos

extremos, em benefício do conjunto do grupo social após

ponderada avaliação dos interesses em jogo.

Nessa dimensão entende-se a razão por que a

limitação dos direitos fundamentais não é auto-aplicável e

porque o juiz sempre terá de julgar as situações concretas,

padecendo de inconstitucionalidade os dispositivos legais

que imponham, automaticamente, restrição ao exercício de

direitos fundamentais sem apreciação da necessidade,

adequação e proporcionalidade das medidas de limitação7,

como ocorre, por exemplo, com a proibição de deferimento

6 Vale sublinhar que o pacto social contemporâneo concebido pelo autor, diferentemente da versão liberal clássica engendrada por LOCKE e HOBBES, compreende as distintas posições sociais dos membros da comunidade e se orienta a reduzir as diferenças naquilo em que – para citar BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS – a diferença desfavorece as pessoas. 7 Trata-se de aplicar à hipótese o critério da proporcionalidade, definido por CANOTILHO da seguinte maneira: ―O princípio considerado significa, no âmbito das leis interventivas na esfera de liberdades dos cidadãos, que qualquer limitação a direitos seja feita deve ser apropriada, exigível e na justa medida, atributos que permitem identificar o conteúdo jurídico do cânone da proporcionalidade em sentido amplo: adequação; necessidade; proporcionalidade entre meios e fins (sentido estrito).‖

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de liberdade provisória em processo por crimes hediondos e

equiparados8.

O exercício deste controle, que é de necessidade,

adequação e proporcionalidade, está prejudicado nos termos

da Lei n. 10.217, como veremos adiante.

3. A infiltração e a escuta ambiental

3.1. Questão prévia

Antes porém de cuidar de examinar como a Lei n.

10.217/01 entrou em rota de colisão com a Constituição da

República, no tocante à violação indevida de direitos

individuais fundamentais, vale dedicar algumas palavras ao

tipo legal de crime organizado – ou mais precisamente, ao

tipo legal de crime de associação criminosa, se neste caso

não há heresia no uso do termo precisar.

Com efeito, o tipo legal de crime tem importantes

funções, estudadas pela dogmática penal, de que salienta a

função de garantia, exercida de modo a permitir aos

indivíduos em geral conhecer com antecedência os

8 Lei n. 8.072/90.

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comportamentos penalmente proibidos, assegurando-lhes a

possibilidade de omitir a conduta capaz de violar a norma

penal.

Para tanto, é imprescindível que a lei penal

incriminadora contenha termos e expressões de significado

inequívoco, isto é, unívoco9, para que a conduta vedada seja

passível de ser apreciada e compreendida por todos. De nada

serviria pois um tipo penal contendo palavras de sentido

variado, duvidoso, impreciso e até mesmo contraditório,

carecedor de eficácia para orientar o comportamento dos

indivíduos desejosos de evitar a comissão do ato ilícito penal.

A mera estipulação prévia, em lei penal, ainda que votada

regularmente pelo Parlamento e introduzida de maneira

formalmente regular na ordem jurídica, não sana deficientes

redações de tipos penais, com abuso de expressões vagas,

ambíguas e polissêmicas, sendo por si só fator de invalidade

da norma jurídica em posição de contrariedade com a ordem

constitucional.

9 JUAREZ CIRINO.

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O nullum crimen nulla poena sine legem, deduzido

do artigo 5o, inciso XXXIX, da Constituição da República,

não se satisfaz apenas com a estipulação prévia da conduta

penalmente relevante. Para que haja perfeita harmonia entre

a norma penal incriminadora e a regra constitucional de

garantia é indispensável que a lei realmente defina a conduta

censurável, indicando claramente os seus elementos e as

suas circunstâncias10.

Desde o advento da Lei n. 9.034/95 advertíamos

para a grave situação deflagrada por seu artigo 1o., uma vez

que, fazendo menção de regular meios de provas

concernentes a associações ou organizações criminosas,

girava sua bateria indistintamente para os integrantes de

quadrilhas ou bandos, como é natural na forma definida no

artigo 288 do Código Penal11.

A atenção foi reivindicada principalmente para o fato

de a lei em questão autorizar providências de intensa

10 Assim, FRANCISCO ASSIS TOLEDO, em Princípio Básicos de Direito Penal, São Paulo, Saraiva.

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restrição de direitos fundamentais – algumas das quais

inconstitucionais –, que poderiam ser aplicadas a autores de

infrações penais de escassa gravidade e mesmo aos

integrantes de bandos cuja existência, embora perturbadora

da tranqüilidade social, poderia ser controlada sem recurso a

medidas extremas. De frisar, uma vez mais, na linha do

magistério de CANOTILHO, que a adoção de recursos

capazes de cercear o exercício de direitos fundamentais está

na direta dependência da necessidade de adotá-los, na

medida em que de outro modo não é possível evitar a lesão

de direitos igualmente significativos e fundamentais.

Na verdade, o alvo da política criminal espelhada na

Lei n. 9.034/95 eram as organizações criminosas

responsáveis por crimes de expressivo potencial ofensivo,

marcadamente os de corrupção estrutural e os violentos, de

índole patrimonial. Portanto, as medidas de restrição então

incorporadas ao arsenal de controle da criminalidade grave

poderiam, dada a defeituosa redação da lei, ser aplicadas

11 Ver GERALDO PRADO e WILLIAM DOUGLAS em Crime

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indistintamente, sem a prudência inerente ao critério da

proporcionalidade.

Para fugir ao desacerto legal parte da doutrina

inclinou-se a sustentar que o legislador havia criado novo

tipo de delito de associação – tomar parte de organização

criminosa -, chegando a indicar os novos elementos em cuja

presença seria possível falar em organização criminosa12.

Ocorre, todavia, que a função de criação de tipos

penais é reservada, com exclusividade, ao legislador, nos

termos do mencionado inciso do artigo 5o, da Constituição

da República. Desse modo, constatando-se a impossibilidade

de distinguir em abstrato quais são os destinatários das

medidas restritivas, sem com isso invadir a seara da lei,

ficam os juízes impedidos de aplicá-la. Essa é a única solução

que preserva a integridade da Constituição mas não foi a

eleita pelos tribunais.

Organizado, Niterói, IMPETUS, 2000. 12 Assim, por exemplo, LUIZ FLÁVIO GOMES reivindica para as organizações criminosas a previsão de acumulação de riqueza indevida; hierarquia estrutural; planejamento empresarial, uso de meios tecnológicos sofisticados, alto poder de intimidação, conexão local, regional ou internacional com outra organização criminosa etc.

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É provável, todavia, que o alerta da doutrina tenha

repercutido nos gabinetes governamentais. Como podemos

observar com facilidade, o novo texto do artigo 1o, da Lei n.

9.034/95, com a redação que lhe confere a Lei n. 10.217/01,

procura deixar evidente o alcance dos dispositivos legais,

assinalando que os meios operacionais para a prevenção e

repressão de ações praticadas por organizações criminosas

poderão ser utilizados em procedimentos de investigação

que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas

por quadrilhas ou bandos ou, frise-se, associações

criminosas de qualquer tipo.

Portanto, no lugar de corrigir a redação infeliz do

texto original, optou-se pela via flagrantemente

inconstitucional, ao negar a diferenciação necessária,

reconhecida por várias legislações de outros Estados, como é

o caso da Italiana, que trata da associação de tipo mafioso13.

13 A Associação de Tipo Mafioso - artigo 416 bis do Comissões

Parlamentares de Inquérito, pela doutrina italiana pressupõe ―Uma

lógica de domínio e de conquista ilegal e violenta do espaço de poder

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O anteprojeto de reforma da Parte Especial do

Código Penal, no Título VIII – Dos Crimes Contra a Paz

Pública – inova com redação mais feliz que a atual. De

acordo com sua exposição de motivos, destacando que ―o fato está em expansão não só no Brasil como no exterior. Se

a Quadrilha ou Bando, como anota a doutrina, quase

sempre se ajusta aos crimes de bagatela, diferente,

preocupando se apresenta a – Organização criminosa (art.

278)‖, sublinha os contornos do tipo penal proposto,

oferecendo a seguinte redação: “Constituírem, duas ou mais

pessoas, organização, comprometendo ou tentando

comprometer, mediante ameaça, corrupção, fraude ou

real‖ (ANTOLISEI - Manuale di Diritto Penale - Parte Speciale - II -

Crime contra a ordem pública). GAETANO NANULA (1996), in La

Lotta Alla Mafia, e GIULIANO TURONE (1995), in Il Delito di

associazione mafiosa, caracterizam a associação de tipo mafioso por

uma rigorosa hierarquia de poder e de funções, exprimindo, ainda,

uma poderosa força de intimidação, derivada da eficiência, da unidade

indecifrável e da estrutura organizacional, sujeitando seus integrantes

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violência, a eficácia da atuação de agentes públicos, com o

fim de cometer crimes – Reclusão, de quatro a oito anos‖. Ainda conforme a exposição de motivos ―busca-se impedir

também a conexão internacional. Aliás, a literatura

qualifica esse delito como ‗Crime sem Fronteira‘.‖

Do jeito que está na Lei n. 10.217 a

inconstitucionalidade persiste, uma vez que não diferencia

situações desiguais, permitindo ao juiz analisar os casos em

que será necessário reprimir mais intensamente o exercício

de determinados direitos elementares à dignidade da pessoa

humana.

3.2. A proteção da intimidade e da vida privada

Examinando agora as novas técnicas de investigação

introduzidas pela Lei 10.217, é certo que há visível tensão

entre elas e a tutela da intimidade e da vida privada.

à omertà. O tipo penal alcança até mesmo as influências da

organização sobre as ações político-partidárias.

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O argumento primário dos que postulam expressiva

restrição da proteção à intimidade e vida privada costuma

estar fundamentado politicamente na concepção de que a

garantia destes interesses se coloca como questão típica do

direito burguês e que tratar do acesso a informações nesse

nível significa assegurar a proteção de criminosos do

colarinho branco e membros de oligarquias corruptas

encastelados nos governos, agentes políticos que

historicamente estiveram bem protegidos pelo Direito e são

grandiosos em suas fraudes e danos que causam a um

número expressivo de pessoas.

Na ótica da efetividade dos direitos que constituem o

esqueleto normativo do denominado Estado de Direito, na

América Latina, é certo que a profundidade e extensão da

aplicação destes direitos revela-se como mais uma entre

tantas práticas de discriminação e controle social autoritário.

Com efeito, há direitos civis reconhecidos desde a

Constituição do Império do Brasil. A atuação prática destes

direitos, todavia, na maior parte das vezes esteve dirigida à

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proteção dos grupos sociais historicamente mais bem

situados na pirâmide social. Não há erro em afirmar que a

República foi proclamada, no caso brasileiro, mas o

sentimento republicano raramente foi compartilhado por

pessoas de todos os segmentos sociais. Isso se deve ao fato de

a República – como a monarquia pós-independência – terem

sido movimentos políticos verticais, produzidos de cima para

baixo, do cume para a base da sociedade, base esta que,

excluída do gozo das riquezas, permaneceu durante longo

tempo desconhecendo o significado da cidadania.

Isso marca sobremodo a percepção peculiar ao senso

comum, nos quadrantes dos países periféricos e semi-

periféricos, de que os direitos fundamentais são, na

realidade, escudos artificiais de que se valem parcelas das

elites para elidir sua responsabilidade quando flagrados

violando a norma penal.

A disfunção histórica em termos de efetividade de

direitos fundamentais no Brasil e no restante da América

Latina não nos permite, no entanto, tomar como medida de

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injustiça social a pretensão de tutela de interesses vitais para

todas as pessoas, com independência da sua situação social,

nem tampouco deixar de reconhecer que determinados

direitos não são essencialmente fundamentais14, muito

embora sejam tratados como se fossem, ampliando

indevidamente o âmbito de segurança de valores que

realmente dizem respeito a apenas uma fração da

comunidade.

Pelo contrário, o viés estritamente discriminatório

que marcou a dura relação entre exercício de direitos

fundamentais e a condição de determinados atores políticos

serve para demonstrar de que maneira a manipulação destes

direitos funciona como fonte de contenção das reivindicações

sociais e de que forma a ampliação, tanto no nível horizontal

(dos sujeitos que devem ser protegidos das ações contra seus

direitos fundamentais) como vertical (da profundidade da

proteção, com a implementação de ações judiciais de fundo

14 Como é o caso do sigilo bancário, que está baseado em relação de confiança mas que terminou sendo interpretado, equivocadamente ao nosso juízo, como emanação da personalidade.

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constitucional) poderá servir de instrumento para

neutralizar a tendência de congelamento da atual situação de

desigualdade15.

Desprezar a função política dos direitos

fundamentais é, ao meu juízo um enorme equívoco, como

salienta igualmente LÖIC WACQUANT em sua obra PUNIR

OS POBRES: A NOVA GESTÃO DA MISÉRIA NOS

ESTADOS UNIDOS16.

O exame das estratégias que unem políticas sociais e

criminais em torno do controle social punitivo, nos países

centrais, demonstra como a penetração na intimidade das

pessoas que integram os chamados grupos sociais marginais

ou suspeitos (as minorias que atemorizam o imaginário das

classes médias) pode ser empregada para criar novos guetos,

dominados por um moderno, complexo, competente e difuso

PANÓPTICO.

15 Penso que a difusão dos direitos fundamentais – políticos e sociais – contém enorme potencial de transformação da sociedade, com capacidade para romper as barreiras erguidas pelas diferenças econômicas e sociais. 16 Ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 2001.

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Diferentemente das tendências de criminologia

crítica e sociologia do direito penal, o Movimento de Lei e

Ordem, a que se filiam as práticas de política criminal

orientadas à restrição dos direitos à intimidade e vida

privada17, estipula funções basicamente repressivas para

conter os grupos sociais rebeldes, setores da sociedade que

supostamente põem em risco a lógica do capital e do

mercado18.

O fenômeno da criminalidade transnacional, em

grande medida expressão do caráter transnacional que

caracteriza a economia da era da globalização, com seu

permanente e descontrolado fluxo de capitais, recebe o

tratamento de criminalidade grave à semelhança do modelo

de criminalidade política que na década de 1970 marcou

17 Filiação evidente tanto da Lei n. 9.034/95 como da Lei n. 10.217/01. 18 Na obra mencionada LÖIC WACQUANT sublinha que as políticas sociais são quase inexistentes ou nulas e não criam condições reais para a transferência de rendas e universalização dos benefícios decorrentes do emprego prático das novas tecnologias. Por outro lado, as agências sociais norte-americanas dispõem de um completo banco de dados que permite controlar as populações empobrecidas, fazendo fluir dos bancos de dados sociais aos criminais e vice-versa informações vitais para determinar, por exemplo, áreas de concentração das populações negras e orientar as investigações criminais em cima do conhecido perfil de criminoso.

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Itália e Alemanha. Com isso, o aparato bélico legalizado

nestes países ganha insuspeita credibilidade, como conjunto

de recursos eficazes para a descoberta de criminosos

perigosos e a punição deles.

De lembrar, com MANUEL AUGUSTO ALVES

MEIRES19, que é da legislação anti-terrorismo que emerge,

ao nível legislativo, a figura do provocador, parente direto do

nosso infiltrado, aceita pelo Tribunal Constitucional Alemão,

por supor a eficácia da justiça penal, ―indispensável à

realização da justiça material‖20.

Posta nestes termos, a questão da eficácia repressiva

destes instrumentos encobre os efeitos negativos que o

cotidiano da justiça criminal no Brasil não cansa de

constatar: a ausência de controle real sobre os agentes

encarregados da investigação criminal, quando estes são os

únicos responsáveis pela gestão das técnicas de investigação

que invadem o âmbito privado das pessoas, atua como forte

19 O Regime das Provas Obtidas por Agente Provocador em Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1999, p. 27. 20 Idem, p. 28.

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fator de corrupção e violência, degradando as relações entre

a população e as autoridades. Isso acontece no cotidiano das

cidades brasileiras, quando as casas da periferia são

invadidas sem mandado e quando os informantes da polícia

de fato fazem parte dos grupos de criminosos que a mesma

polícia devia tentar controlar, de tal maneira que para as

populações das áreas carentes acaba sendo tarefa difícil

delimitar o espaço dentro do qual os agentes do poder

público atuam para defendê-las daquele outro em que estas

mesmas populações são reféns destes agentes como o são

dos grupos criminosos.

Nos países centrais o sistema de garantias funciona

relativamente nas oportunidades em que é acionado para

proteger os cidadãos. No Brasil e no restante da América

Latina o sentimento difuso de que as garantias processuais

não alcançam os mais pobres é reforçado pela certeza de que

os Estados não dispõem de Defensorias Públicas

permanentes e bem equipadas. Aliás, sequer um sistema

judiciário com plantões freqüentes é encontrado em todos os

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lugares, de modo a garantir o rápido acesso à justiça

daqueles eventualmente atingidos por atos arbitrários.

Ora, se diante de quadro semelhante o PANÓPTICO

se instala nos Estados centrais para, a pretexto de combater

a criminalidade, controlar imensas parcelas dos grupos

sociais tidos como potencialmente perigosos (imigrantes

latinos, negros etc.), como supor que no Brasil – e em

qualquer outro país da América Latina – a liberdade de

invasão na esfera da vida privada e intimidade não servirão

exatamente para acentuar o grau de discriminação que

caracteriza nossos sistemas penais?

Até porque, somente para ficarmos com um singelo

exemplo, retirado do campo de (im)possibilidade de

aplicação da Lei n. 10.217/01, de onde virão os agentes

policiais que estarão infiltrados nos órgãos dirigentes dos

grandes grupos econômicos, se porventura houver suspeita

da prática de crimes do colarinho branco?21 Parece evidente

que o alvo são as quadrilhas formadas por sujeitos

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recrutados nas periferias, distinguindo aí, mais uma vez, os

modelos de criminalidade conforme o grupo social a que

pertencem os agentes de delito.

Neste cenário comprometido pela violação da

intimidade e vida privada, com escuta ambiental e atuação

de agentes infiltrados, o chamado direito à

AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA, compreendido

como direito de o sujeito sobre o qual são armazenadas

informações conhecer previamente os limites de emprego

futuro dessas mesmas informações, está previamente

prejudicado. E mais. Não obstante a exigência legal de o juiz

deferir ambas as medidas – autorização para que agentes

policiais sob disfarce se infiltrem em quadrilhas e bandos e

escuta ambiental – é indiscutível que nenhum controle

judicial sobre as informações coletadas e até mesmo sobre as

ações levadas a efeito pelos infiltrados será eficaz.

Neste sentido, a lei brasileira criou condições para os

agentes infiltrados decidirem questões que em muitas

21 No Seminário a que me referi na nota 1 esta foi das indagações da

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hipóteses um único Ministro do Supremo Tribunal Federal

não poderia decidir sem fundamentar sua decisão e

submetê-la ao controle do colegiado e do Ministério Público:

tal seja, se é caso ou não de entrar em determinada

residência e ouvir as conversas alheias, interceptando-as por

qualquer meio!

A constante atuação do infiltrado colocará insolúvel

problema de ordem processual-constitucional: como não

compreendê-la como violação das comunicações e do

domicílio sem ordem judicial e como não atentar para a

flagrante violação da AUTODETERMINAÇÃO

INFORMATIVA?

Aceitando a posição defendida por HASSEMER e

SÁNCHEZ, de que o direito à AUTODETERMINAÇÃO

INFORMATIVA – que não é nenhum invento de nossos dias

- tem como elementos constitutivos a transparência do

desenvolvimento para o cidadão, possibilidades de controle e

platéia, que realçou o caráter discriminatório da chamada infiltração.

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correção e a proteção absoluta do âmbito básico da pessoa22,

é incontestável que pelo menos nestes dois últimos aspectos

haverá grave atentado contra a liberdade com a efetivação

quer da escuta ambiental quer da infiltração.

Em NOVAS TENDÊNCIAS DO DIREITO

PROCESSUAL23 ADA GRINOVER advertia para as graves

conseqüências advindas do emprego da escuta ambiental.

Sublinhava a mencionada autora que ―o interrogatório sub-

reptício do indiciado ou acusado, clandestinamente

gravado, constitui inequivocamente prova ilicitamente

obtida, não só em face dos princípios gerais (de proteção à

vida privada) acima expostos, mas ainda por contrariar

frontalmente as regras de advertência quanto ao direito ao

silêncio, incluído na garantia do nemo tenetur‖. A infiltração, por sua vez, representa verdadeira

autorização em branco, dada pelo juiz, para que o agente

22 HASSEMER, Winfried e SÁNCHEZ, Alfredo Chirino. El Derecho a la Autodeterminación Informativa y los Retos del Procesamiento Automatizado de Datos Personales, Buenos Aires, Del Puerto, 1997, p. 6. 23 GRINOVER, Ada Pellegrini, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1990, p. 67.

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infiltrado ingresse nos mais variados domicílios, suspeitos

ou não de abrigar provas de infrações penais,

independentemente do exame judicial prévio de estrita

necessidade, adequação e proporcionalidade em cada

oportunidade!

Mais grave: a lei permite que o agente infiltrado não

integre os corpos das polícias responsáveis pela investigação

criminal, indiciando perigosa tendência de militarização da

tarefa de persecução penal, sem embargo de uma nociva

espécie de cooperação penal internacional, que poderá

comprometer nossa soberania.

4. A título de conclusão

As medidas previstas na Lei n. 10.217/01 apontam

um falso problema: são inconciliáveis as demandas de

punição dos autores das infrações penais se não houver

drástica restrição ao exercício de certos direitos

fundamentais.

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Na minha opinião, o controle repressivo da

criminalidade passa pelo aperfeiçoamento das polícias, a

disposição de maiores e melhores recursos materiais e o

respeito à dignidade dos policiais que atuam em todas as

etapas – preventivas e de investigação – que compõem o

circuito de atuação diretamente em contato com as práticas

delituosas. Isso não significa que os índices de criminalidade

recuarão significativamente, pois é certo que há outros

vetores – políticos, econômicos e sociais - que influenciam

decisivamente o processo de incriminação e que parecem

não ser afetados imediatamente pela capacidade de reação

do sistema repressivo.

A restrição de direitos fundamentais, por sua vez –

remédio vendido às escâncaras no mercado global –, poderá

produzir mais presos mas não necessariamente mais justiça,

mesmo quando se tem em mente tão-só as decisões do

judiciário criminal.

O resultado provável da limitação dos direitos

fundamentais em Estados de escassa tradição democrática e

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republicana tende a ser, segundo penso, o aumento das

posições sociais vulneráveis e a fragilidade das próprias

instituições democráticas para atender as demandas sociais.

A promiscuidade no trato de direitos fundamentais nada

acrescenta à cultura da indispensabilidade destes direitos e

ao importante valor da dignidade de todas as pessoas que

integram o grupo social, elemento básico de coesão da

comunidade e de constituição de um ambiente de

solidariedade, compreensão e harmonia.

GERALDO PRADO