a conexão planetária

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LÉVY, Pierre. A conexão planetária: o mercado, o ciberespaço, a consciência. Trad. de Maria Lúcia Homem e Ronaldo Entler. São Paulo: Ed. 34, 2001. Comentários O autor demonstra um otimismo em relação ao presente e ao futuro da humanidade. Ele observa tais fases da história como momentos de grande desenvolvimento da inteligência coletiva, da cooperação competitiva e do despertar do homem para a noosfera, ou seja, o momento da manifestação do espírito. Há conceitos hindus, budistas, evolucionistas, bem como de Teillhard de Chardin. O autor caminha “um pouco na linha” de Capra, porém com a distinção de que sua abordagem volta-se mais para a questão do ciberespaço e do virtual, que no seu entendimento, são a materialização da idéia de consciência coletiva. Aliás, o autor insiste no fato de que o mundo é virtual e que a Wild Web World (W.W.W.) será irremediavelmente o novo centro de encontro dos humanos, o novo lar do homem, a nova linguagem, ou – usando uma terminologia mais filosófica (porém não mencionada pelo autor) – a WWW será a nova casa do ser. Aqui faz-se necessário a ressalva de que a virtualidade será então o novo parâmetro do real. Mas ao contrário dos céticos e críticos, Lévy aponta tal situação como um fato positivo, pois os homens terão acesso a uma nova forma de cooperação competitiva que é o que move a humanidade desde os primórdios. Capítulo I – Manifesto dos planetários Nesse capítulo Lévy faz um auto retrato dos seres planetários, com destaque para o ser humano que ele vai colocar como o ser com maior complexidade de interconexão, partindo desde o surgimento do DNA mais simples até as interconexões fantásticas de DNA’(s) que formam a mente humana. Portanto, o homem é um ser

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Page 1: A conexão planetária

LÉVY, Pierre. A conexão planetária: o mercado, o ciberespaço, a consciência. Trad. de Maria Lúcia Homem e Ronaldo Entler. São Paulo: Ed. 34, 2001.

ComentáriosO autor demonstra um otimismo em relação ao presente e ao futuro da

humanidade. Ele observa tais fases da história como momentos de grande desenvolvimento da inteligência coletiva, da cooperação competitiva e do despertar do homem para a noosfera, ou seja, o momento da manifestação do espírito.

Há conceitos hindus, budistas, evolucionistas, bem como de Teillhard de Chardin. O autor caminha “um pouco na linha” de Capra, porém com a distinção de que sua abordagem volta-se mais para a questão do ciberespaço e do virtual, que no seu entendimento, são a materialização da idéia de consciência coletiva. Aliás, o autor insiste no fato de que o mundo é virtual e que a Wild Web World (W.W.W.) será irremediavelmente o novo centro de encontro dos humanos, o novo lar do homem, a nova linguagem, ou – usando uma terminologia mais filosófica (porém não mencionada pelo autor) – a WWW será a nova casa do ser. Aqui faz-se necessário a ressalva de que a virtualidade será então o novo parâmetro do real. Mas ao contrário dos céticos e críticos, Lévy aponta tal situação como um fato positivo, pois os homens terão acesso a uma nova forma de cooperação competitiva que é o que move a humanidade desde os primórdios.

Capítulo I – Manifesto dos planetáriosNesse capítulo Lévy faz um auto retrato dos seres planetários, com

destaque para o ser humano que ele vai colocar como o ser com maior complexidade de interconexão, partindo desde o surgimento do DNA mais simples até as interconexões fantásticas de DNA’(s) que formam a mente humana. Portanto, o homem é um ser voltado para fora, voltado para transpor os limites porque capaz de realizar interconexões.

O autor trabalha com a idéia de unificação da humanidade. Analisa a história humana baseada na tripartição evolucionista: paleolítico, neolítico e noolítico. Do paleolítico ao noolítico, o elemento que marca a presença humana na condução da natureza é o elemento silício, usado para fabricar as bifaces no paleolítico e para fabricar os microprocessadores, com o sílex.

Periferia e centro são referenciados de acordo com a interconexão que possuem com a rede mundial de inteligência coletiva. A noção de centro e periferia do espaço físico e geográfico é alterada de acordo com o nível de interconexão com o sistema.

O poder depende da interconexão. As fronteiras são derrubadas em vista da interconexão. As verdadeiras nações são as ondas do espírito. A humanidade caminha para a noosfera, a era do espírito, na qual todos serão vistos não mais como indivíduos de uma nação, de um Estado, mas como membro da inteligência coletiva que será o diferencial entre um grupo e outro.

“... A história e a aventura da consciência...” (p. 42) “... O verdadeiro destino do homem é ser um planetário, participando ativamente da inteligência coletiva de sua espécie...”.(p. 43).

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Capítulo II – A Economia VirtualEsse capítulo talvez seja o mais “melindroso”, pois o autor aponta a

economia atual como uma produção humana necessária e boa (positiva) a despeito de todos os críticos do neoliberalismo, do capitalismo, etc. Argumenta o autor que exploração, desigualdades, injustiças sociais, etc, sempre existiram, muito antes que o capitalismo aparecesse sobre a face da terra. Baseia-se o autor na riqueza de ofertas, nas propostas de escolha, na variedade de criação dos produtos para apontar a economia atual como uma abertura do espírito.

Para Lévy, o “... ciberespaço será o epicentro do mercado, o lugar da criação e da aquisição de conhecimentos, o principal meio da comunicação e da vida social...” (p 51). O ciberespaço será o produtor de riqueza. As eras do trabalho manual e industrial cedem espaço para a criação de riqueza através do trabalho do espírito.

Os camponeses da nova era serão os que não participarem dos programas de competição cooperativa que estão baseadas na troca de inteligência coletiva distribuídos no ciberespaço. A Web é o centro da economia virtual.

O sentimento de consumo é apontado como o incentivador para o crescimento da economia virtual.

A economia tende a tornar-se cada vez mais na economia das idéias: a riqueza é produto da criação da inteligência.

“A riqueza vem das idéias, as idéias vêm das interações sociais, a indústria e o comércio vêm das idéias e das interações sociais, e tudo isso se engendra de maneira otimizada no espaço virtual...” (p 66).

A fonte da riqueza está na abertura de espírito que as pessoas podem realizar. O autor aponta a dependência do Estado como perniciosa para a evolução e a abertura do espírito e, portanto, para a geração da riqueza.

O autor tece o elogia ao homo economicus, pois o atual estágio da economia mundial é fruto da evolução do homem na abertura do espírito e no desenvolvimento da inteligência coletiva. Aponta ainda no elogio o comércio como criador de relações pacíficas e o fato de que as pessoas tornam-se empresas com a ocupação nos negócios promovida pela Web.

O sentido da economia aponta para a convergência do homo economicus e do homo academicus para o ciberespaço. A inteligência coletiva (academia) aplicada para a geração e administração da riqueza (economia) converge para o ciberespaço que congregará tanto um quanto o outro. O autor aponta para a necessidade das academias (universidades) formarem para a criatividade.

Lévy, de certo modo, conduz sua análise para uma supremacia da idéia, ou um idealismo, quando propõe que toda a realidade é ideal e na noosfera, espiritual: “... Os objetos são ideais. As ferramentas são idéias. Os procedimentos são idéias. Os serviços são idéias. Os textos são idéias. As obras de arte são idéias. Foi preciso pensar nelas! Tudo o que habita o mundo humano não existe senão porque primeiro foi pensado...” (p 87).

Trabalha o autor o conceito de cooperação competitiva ou de competição cooperativa. Ao longo da evolução dos organismos dos mais simples aos mais complexos, a competição sempre se mostrou cooperativa na busca de evoluir e preservar-se. Entre os humanos o autor aponta a cooperação competitiva cultural que se dá através da linguagem, da técnica.

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“... A cooperação leva à concorrência e a concorrência à cooperação no interior de um elo autocriador que engloba uma realidade cada vez mais vasta, diversa e integrada, que é o movimento mesmo da inteligência coletiva” (p 93).

O ciberespaço é a primeira emergência da noosfera ou da inteligência coletiva, que é alimentado pela cooperação competitiva.

Economia da atenção: a esse tema é dedicado um tópico desse capítulo no qual o autor propõe que a consciência da economia está voltada para a economia da consciência. A economia da consciência se dá no ciberespaço com as formas criadas constantemente. O ciberespaço ou a virtualidade apresenta modificadores de experiência. Por fim o autor finaliza o capítulo apontando para a consciência como a principal potência econômica e para a economia geral da consciência.

Capítulo III – A subida em direção à noosfera

Nesse terceiro capítulo o autor parece aproximar-se das propostas holísticas “defendidas” por Capra e outros autores como, talvez, Leonardo Boff, no Brasil.

Lévy aponta para a eminência da cultura universal na qual o aspecto da tradição que ele denomina de cultura identitária deva ser suplantado de vez pela cultura de linhagem. A cultura universal será a convergência e a reunião de todas as linhagens que são, grosso modo, universais, são em todos os tempos e lugares, indiferentes a cultura identitária.

Nessa mesma linha de convergência de culturas e tradições, o autor aponta a convergência e influência entre o ocidente e o oriente: o primeiro tem a contribuir com sua técnica e ciência e o segundo com sua espiritualidade. É necessário o equilíbrio.

A linguagem da Web é virtual e comporta a inteligência coletiva: “A Web anuncia e realiza progressivamente a unificação de todos os

textos em um único hipertexto, a fusão de todos os autores em um único autor coletivo, múltiplo e contraditório. Não há mais que um único texto, o texto humano” (p 141).

A limitação da lógica é apontada. O autor aponta ainda quatro atributos chamados objetos antropológicos: o fogo, a arte, a escrita e o computador.

O computador é visto como um produto do homem que ainda não terminou sua hominização, pois este permite a consciência humana passar a um nível superior.

“A noosfera será a grande memória viva da humanidade, seu espírito ativo, conectado com tudo o que se descobre e inventa, interconectando a criação contínua da nossa espécie e do mundo que se move por meio dela...” (p 150)

A essência do ciberespaço é a meditação coletiva do espírito humano, pois todo o inconsciente coletivo torna-se consciente, isto é, interconecta-se.

“Somos tanto mais humanos quanto mais somos cultos. Nós nos cultivamos para nos tornarmos efetivamente os seres humanos que já somos virtualmente... A educação (ou, visto por outro ângulo, a aprendizagem) é uma atualização da cultura, e isso não somente no plano de seu conteúdo (as formas

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aprendidas), mas sobretudo no plano de seu gesto exploratório, consciente, deliberado...” (p 154).

“... A verdadeira educação e a verdadeira aprendizagem fundem todas as disciplinas em uma apreensão global para a qual a aprendizagem de si é tão importante quanto o conhecimento do mundo...” (p 156).

IV – A Expansão da Consciência.Lévy inicia o último capítulo, ainda na linha holística, apontando para o

fato de que o “... essencial não é saber quem domina quem, mas quando e como a consciência humana se amplia” (p 157).

É feita uma crítica aos sociólogos que apenas apontam as diferenças enquanto que o mundo na verdade precisa é de amor. O que interessa não é saber as divisões, as hierarquias sociais, mas que planeta unitário estamos no limite de edificar.

O autor propõe que tornemo-nos nós mesmos para compreender o que viemos fazer aqui: participar da expansão da consciência, ser livres, amar. Precisamos nos “descondicionar” dos velhos conceitos e direcionarmos para a abertura a todas as dimensões da existência.

“... De fato, as idéias circulam em nós, somos seus veículos, mesmo se temos a impressão de que nós as pensamos...” (p 165).

A idéia de uma só consciência esbarra na questão da interioridade e da subjetividade:

“... De fato, talvez até fosse não apenas uma consciência absolutamente idêntica aqui e ali, mas, ainda mais profundamente, a mesma consciência, uma consciência única, incluindo-se aí os animais mais simples. Eis o fundamento do amor universal” (p 169).

O imanentismo é constante na teoria de Lévy, pois para ele “...tudo o que povoa nossa experiência faz parte de nós...” (p 171). O todo e o uno parecem ser faces de uma mesma realidade. Há, pelo que se percebe, forte influência da filosofia oriental (hinduísmo) e de Espinosa. Há um “enredamento ontológico radical”.

“... A ilusão do eu é um ‘truque’ da seleção natural, muito útil para a reprodução da nossa espécie em seu ambiente pré-histórico, mas que perdeu agora uma parte de sua utilidade, porque estamos à beira de um novo estágio da evolução, no qual a experiência da não-dualidade e a prática da benevolência onidirecional nos assegurarão melhores aptidões cooperativas, mais criatividade, mais poder coletivo de agir e de sentir...” (p 174).

“... todos os seres vivos se tocam... Os seres vivos são uma única vida...” (p 177).

O ser humano é o ser que possui o mais alto grau de consciência, e portanto, Levy concorda com Teillhard de Chardin: “... Somos, ao contrário, a ponta mais viva, mais sensível, mais criativa. Em nós, é ainda o mundo unitário que cria e que se sente”. (p 180).

A especialização humana é a expansão da consciência. Na atualidade essa expansão acontece quando a consciência explode o real, dilatando sem parar a esfera da experiência. O virtual é o espaço da expansão da consciência que o homem descobriu.

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“... A inteligência e o amor, no fundo, são um único e mesmo ato: o ato de sair de si mesmo, de todos os ‘si mesmos’ (incluindo aí o dos conceitos), para coincidir com a fonte da existência...” (p 184).

Conclusão“... Tudo é interessante quando se ama. O desenvolvimento da

inteligência coletiva da humanidade é uma ascensão de amor...” (p 188).As formas são pinceladas do divino. O autor conclui sua obra numa

perspectiva da “amorização” já proposta por Chardin. Mas tem-se que observar o espaço virtual como a primazia da realidade, ou seja, o real é o virtual. Mas o amor necessita de prática, de realidade palpável, de um ajoelhar-se ante o outro e lavar-lhe os pés. Como conciliar a amorização com o espaço virtual?

“... À medida que o universo se distancia no tempo do big-bang físico, a liberdade humana o leva em direção a um big-bang espiritual que o transporta para a dimensão do amor...” (p 189).

ReflexõesSerá que o espaço virtual é de fato o momento do despertar da

consciência humana em direção ao todo? Será que no espaço virtual o homem dará conta de perceber-se a si mesmo como uma única inteligência coletiva?

Lévy parece bastante otimista em relação ao futuro da humanidade. A obra foi escrita antes da Guerra dos EUA e Iraque, e talvez antes dos atentados de 11 de setembro de 2001. Será que já não houve mudanças para um fechamento dos Estados em si mesmos? Será que a humanidade nesse momento atingiu esse estado de consciência holístico, ou ainda nos fechamos muito quando nos sentimos ameaçados e só nos dispomos ao diálogo quando conseguimos confiar novamente no outro. Evolução de consciência não pode ser medida em alguns anos e pautada em alguns fatos, mas parece que há que se considerar senão um retrocesso, talvez uma estagnação nessa evolução.

A leitura de Lévy, guardada as grandes diferenças, trouxe-me a memória as obras de Thomas Merton, um convertido ao cristianismo no século XX que entra para um mosteiro religioso de extrema rigidez. Merton, ao final de sua vida foi acusado por alas mais tradicionais da Igreja de ter-se aproximado nas suas idéias da filosofia oriental, principalmente do holismo.

O Bagavad Gita também é bastante próximo, em alguns pontos, com as idéias de Lévy.