a concepção cartesiana da liberdade em questão

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Liberdade e/ou Necessidade A concepo cartesiana da liberdade em questoRaul Landim Filho 1IFCS/UFRJ/ CNPq

RESUMO: Descartes caracteriza, de maneira genrica, a liberdade humana como ausncia de coao ou de determinao da vontade por foras exteriores. Duas concepes diferentes de liberdade so compatveis com essa caracterizao negativa: [a] a liberdade como poder de escolha (poder de afirmar ou de negar, de perseguir ou de fugir de alguma coisa) e [b] a liberdade como inclinao espontnea e aparentemente irresistvel da vontade ao bem e ao verdadeiro. A concepo positiva da liberdade cartesiana parece flutuar entre esses duas concepes. Seriam elas compatveis? Haveria uma hierarquia entre as duas concepes? O artigo examina essas questes tanto nas Meditaes (texto latino de 1641-42, e sua traduo francesa de 1647), quanto na clebre carta de Descartes a Mesland de 1645. Em seguida, o artigo expe sucintamente a crtica espinosista caracterizao da liberdade cartesiana como poder de escolha. Assim, fica patente que duas concepes incompatveis de liberdade se afrontam no sculo XVII: liberdade como poder de escolha e liberdade como necessidade, isto , como a espontaneidade da natureza humana que se determina por si s a agir.

Ao formular nos Princpios da Filosofia, as razes para duvidar das proposies evidentes da matemtica, Descartes escreve: Mas, neste nterim, no importa por quem afinal existimos nem quo poderoso, quo enganador ele seja. Apesar disso, experimentamos haver em ns esta liberdade de sempre podermos nos abster de crer nas coisas que no so inteiramente certas e averiguadas, bem como nos acautelar de tal maneira que jamais erremos 2. A liberdade se encontra, assim, na raiz da dvida, e graas dvida emergiu a primeira proposio verdadeira no sistema cartesiano: eu sou pensante. A liberdade parece ser indubitvel, pois ela condio da prpria dvida. 31Artigo

baseado na conferncia plenria do XIV Encontro Nacional de PsGraduao em Filosofia da ANPOF, realizado em outubro de 2010. 2 Ren Descartes, Princpios da Filosofia, I, 6 edio latim/portugus, Coleo Philosophia, traduo coordenada por Guido Antnio de Almeida, Rio, Editora da UFRJ, 2002. Ver tambm C. Adam & P. Tannery (AT), v. VIII-1, Oeuvres de Descartes, Principia Philosophiae, I, 6, Paris, Vrin, 1973. 3 Sobre essa questo, ver o artigo de J.-M. Beyssade Descartes et la Libert de la Volont in Descartes au fil de lordre, Paris, PUF, 2001, p.259-275.

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Raul Landim Filho A proposio 39 dos Princpios da Filosofia reitera a afirmao inicial da proposio 6: a liberdade uma noo inata, conhecida por si mais bem discernida do que as coisas que naqueles momentos pareciam ser no duvidosas Sob este aspecto, ela parece usufruir do mesmo estatuto do Cogito: algo que escapa dvida, mesmo a mais radical das dvidas, a do deus enganador, que ps em questo a Regra Geral de Verdade, isto , a verdade das ideias claras e distintas. Mas qual o significado da noo de liberdade no sistema metafsico cartesiano? A natureza da liberdade foi analisada em Descartes num contexto epistmico de fundamentao da verdade. Nas Meditaes Metafsicas,4

depois de ter sido demonstrada a

existncia do sujeito pensante, a existncia do Deus Veraz, que garante a verdade dos juzos formados por ideias claras e distintas e, portanto, a validade da Regra Geral da Verdade, Descartes reflete sobre a questo do erro, tendo em vista que, causados por um Deus Perfeito, ns poderamos ter sido criados de tal maneira que nunca errssemos. Por que podemos errar, se um Deus Perfeito que nos criou ou, como afirma Descartes, ... se devo a Deus tudo o que possuo e se ele no me deu nenhum poder para falhar, parece que nunca devo me enganar? 5 Para justificar a possibilidade do erro sem ter que imputar essa imperfeio ao ato criador de Deus, Descartes distingue inicialmente duas funes (ou faculdades) da mente humana: o intelecto finito, passivo, cuja funo a de representar coisas, ou ter ideias (no sentido cartesiano de ideias) 6 e a vontade, cuja funo epistmica a de formar juzos, afirmando ou negando aquilo que lhe apresentado pelo intelecto. Por isso, as ideias em Descartes devem ser compreendidas como quadros mudos, segundo a correta observao crtica de Espinoza. A vontade, auxiliada pela funo representativa do intelecto, tem uma funo assertrica: a de formar juzos verdadeiros ou falsos. Ora, a vontade uma faculdade considerada infinita7

(ao contrrio do

intelecto humano que finito) porque pode afirmar ou negar, dizer sim ou no ao que lhe proposto pelo intelecto. Sua infinitude significa, entre outras coisas, que ela no se limita a afirmar como verdadeiras as ideias claras e distintas do intelecto nem a suspender o juzo, quando o intelecto lhe apresenta ideias confusas e obscuras. Ela pode, em razo de sua infinitude, porAT, v. VII, Meditationes de Prima Philosophia; AT, v. IX-1, Mditations, Paris, Vrin, 1973. Os textos citados em portugus da verso francesa das Meditaes foram extrados da edio brasileira da obra de Descartes: Descartes, Obra Escolhida, traduo de J. Guinsburg e Bento Prado Jnior, Meditaes, So Paulo, Difuso Europia do Livro, 1962. 5 Descartes, Obra Escolhida, p. 159; AT, v. VII, Meditationes, p. 54. 6 Sobre o significado do termo ideia em Descartes, ver o meu artigo Ide et reprsentation in Descartes, Objecter et rpondre, org. J.-M. Beyssade et J.-L. Marion, Paris, PUF, 1994, p. 187-203. Numa perspectiva diferente, ver a anlise de S. Nadler sobre a noo de ideia em The Doctrine of Ideas in The Blackwell Guide to Descartes Meditations, org. S. Gaukroger, Oxford, Blackwell, 2006, p. 86-103. 7 ...um livre arbtrio ou uma vontade bastante ampla e perfeita, visto que com efeito, eu a experimento to vaga e to extensa que ela no est encerrada em quaisquer limites. Descartes, Obra Escolhida, p. 163; AT, v. IX-1, Mditations, p. 45. Ver tambm, AT, v. II, Correspondance, p. 628 (carta a Mersenne de 25 de dezembro de 1639): E principalmente em razo dessa vontade infinita que existe (est) em ns....[grifo nosso]4

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Liberdade e/ou Necessidade exemplo, afirmar o obscuro como verdadeiro. Mas poderia negar uma ideia clara e distinta, percebida e reconhecida como clara e distinta? Eis uma questo que, no sistema cartesiano, pode colocar em conflito, de um lado, suas exigncias epistmicas e, de outro, sua concepo da liberdade. Em virtude desse poder do sim e do no, a vontade designada ora como uma faculdade de livre arbtrio, ora como uma faculdade de escolha ou como um poder de deciso. Assim, atravs da anlise da natureza da vontade, Descartes reflete sobre a questo liberdade humana. Os principais textos de Descartes sobre a liberdade se encontram na verso original latina das Meditaes, na traduo francesa desse livro, revista por Descartes, e nas cartas endereadas ao jesuta Pe. Mesland 8, numa poca que prenuncia os conflitos tericos com consequncias prticas dramticas entre os jesutas e os agostinianos ou jansenistas de Port Royal sobre a questo da liberdade e suas relaes com a graa divina, o mrito humano na salvao etc. Diferentes expresses so utilizadas para analisar a natureza da liberdade em Descartes: estado de indiferena, indiferena positiva, poder de escolha ou de deciso e inclinao espontnea da vontade. Nem sempre essas noes expressam concepes compatveis. O termo indiferena, por exemplo, muitas vezes usado num contexto onde ocorrem alternativas contingentes que poderiam ser escolhidas indiferentemente pela vontade. O termo espontaneidade ou inclinao espontnea da vontade, ao contrrio, exprime a adeso da vontade ao bem e ao verdadeiro que lhe apresentado pelo intelecto. Se liberdade significasse apenas espontaneidade no teria sentido caracteriz-la como indiferena e vice-versa. Assim, as expresses usadas por Descartes e por alguns dos seus intrpretes ou bem atestam uma ambiguidade da concepo cartesiana sobre a natureza da liberdade, ou bem so indcios de uma mudana de perspectiva ocorrida ao longo de sua obra. Nas Meditationes de 1641-42 (texto latino), a noo de liberdade inicialmente e provisoriamente caracterizada como o poder de fazer ou de no fazer uma coisa, isto , de afirmar ou de negar no juzo, de fugir ou de perseguir algo que apresentado pelo intelecto como bom ou como ruim 9. Sob este aspecto, a liberdade seria caracterizada, ao menos provisoriamente, como um poder fazer x ou y, isto , como um poder de escolha ou de deciso, denominado em outros textos de indiferena positiva 10. O texto latino das Meditaes no formula nesse momento asVer AT, v. IV, Correspondance, p. 110-120 (carta a Mesland de 2 de maio de 1644) e, principalmente, p. 172-175 (carta a Mesland de 9 de fevereiro de 1645). 9 ...ela [a vontade ou o poder de deciso (libertas arbitrii)] consiste somente nisto que ns podemos fazer uma coisa ou no fazer (isto , afirmar ou negar, perseguir ou fugir) ou, antes, ... AT, v. VII, Meditationes, p. 57. 10 Ver carta a Mesland de 9 de fevereiro de 1645.8

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Raul Landim Filho condies do exerccio desse poder. Por exemplo, pode-se questionar se, diante de uma ideia clara e distinta, a vontade deve se inclinar e aderir espontaneamente ao que lhe representado ou se ela pode escolher outra alternativa. Na sequncia desse mesmo pargrafo das Meditationes, Descartes introduz uma clusula que pode ser interpretada seja como uma condio necessria ao exerccio do poder de escolha, que caracterizara inicialmente a noo de liberdade, seja como uma clusula explicativa do que se deve entender por poder de escolha. Descartes escreve: ...ela [a vontade ou o poder de deciso [libertas arbitrii] consiste somente nisto que ns podemos fazer uma coisa ou no fazer, (isto , afirmar ou negar, perseguir ou fugir) ou, antes (vel potius), nisto somente que ns somos levados a afirmar ou a negar, a procurar ou a fugir o que nos proposto pelo intelecto de tal maneira que ns no nos sentimos determinados por qualquer fora exterior 11.[grifo meu] Em virtude da expresso ou antes, essa frase parece caracterizar a liberdade como ausncia de coao de foras exteriores e no mais como um poder de deciso, ou poder de escolha, como fora inicialmente afirmado. bvio que a coao exterior pode impedir o poder de escolha. Mas no fica claro se a liberdade ainda caracterizada como o poder de escolha, que no pode ser exercido quando ocorre uma coao por foras exteriores, ou se livre aquele que no est coagido por foras exteriores, mesmo que no exera o poder de escolha, mas se incline, por exemplo, s determinaes de sua natureza ou s evidncias das ideias claras e distintas. A no-coao seria uma condio necessria e suficiente da liberdade? Ainda nas Meditationes, na mesma sequncia da anlise da liberdade, Descartes acrescenta uma nova explicao. De maneira surpreendente, mas enftica, ele afirma que no constitutivo da liberdade o poder de deciso, o poder de escolher uma dentre duas alternativas: Com efeito, no necessrio para que eu seja livre que eu possa me dirigir a um ou a outro lado....12 O poder de escolha, que caracterizara inicialmente a liberdade, no mais considerado como uma condio necessria dela. De fato, o que caracterizaria a vontade livre seria a ausncia de coao, agora interpretada como a inclinao ou a adeso espontnea da vontade ao verdadeiro ou ao bem que lhe apresentado pelo intelecto: ... mas ao contrrio, [contrrio ao poder de escolha] mais eu me inclino de um lado, seja

A verso francesa das Meditaes traduz esse texto da seguinte maneira: ... ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir as coisas que o entendimento nos prope, agimos de tal maneira que no sentimos absolutamente que alguma fora exterior nos obrigue a tanto. (Descartes, Obra Escolhida, Meditaes, p. 164 ou AT, v. IX-1, Mditations, p. 46). 12 AT, v. VII, Meditationes, p. 57.11

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Liberdade e/ou Necessidade que eu a reconhea de maneira evidente a razo do verdadeiro ou a do bem, ....mais eu sou livre escolhendo (eligo) esse lado 13. Nessa frase, Descartes usa a expresso mais eu sou livre escolhendo esse lado [grifo meu], o que significaria que ainda ocorreria uma escolha ou um poder de escolha, mesmo diante do bem e do verdadeiro? Nas Meditaes (texto latino e traduo francesa) negado esse poder de escolha diante da evidncia do bem ou do verdadeiro: pois se eu visse sempre claramente o que verdadeiro e o que bom, eu jamais deliberaria sobre o juzo e a escolha a fazer...14

Nesse caso, a vontade se inclina

espontnea e necessariamente diante da evidncia da verdade ou do bem. A liberdade consistiria prioritariamente nessa adeso necessria e no mais no poder de escolha. A adeso espontnea ao evidente justifica a tese epistmica cartesiana da fora persuasiva das ideias claras e distintas. Se fosse possvel diante do claro e do distinto escolher outra alternativa, a saber, o obscuro ou o confuso, ou recusar qualquer uma dessas alternativas, a fundamentao objetiva da certeza e da verdade, pretendida pelas Meditaes, dependeria, em ltima anlise, de uma deciso livre, mas arbitrria, do sujeito cognoscente. Escolha arbitrria porque no determinada por razes, mas pelo poder de escolha, isto , pela vontade dita livre. Do ponto de vista epistmico, para alcanar seus objetivos de fundamentao do saber, o sistema cartesiano exige que a vontade se incline espontaneamente diante da evidncia. Neste caso, o poder de escolha se aplicaria somente no caso de a vontade se encontrar no estado de indiferena, estado no qual ela no determinada por nenhuma das alternativas apresentadas pelo intelecto. O que denomino de estado de indiferena habitualmente denominado de indiferena negativa e caracterizado por Descartes da seguinte maneira: ... a indiferena me parece significar propriamente o estado no qual se encontra a vontade quando ela no conduzida nem de um lado nem de outro pela percepo do verdadeiro ou do bem 15. O poder de escolha, tambm chamado de indiferena positiva, no eliminado pelo estado de indiferena; donde, o agente, indiferente s alternativas no persuasivas das coisas propostas pelo intelecto, tem o poder de escolha e provavelmente no teria o destino do asno de Buridan, pois no estaria condenado inao. Mas o poder de escolha ou a indiferena positiva s poderia ser exercido no estado de indiferena?

Idem, p. 57-58. Ibidem. Ver tambm AT, v. IX-1, Mditations, p. 46 ou Descartes, Obra Escolhida, Meditaes, p. 164:...pois se eu conhecesse sempre claramente o que verdadeiro e o que bom, nunca estaria em dificuldade para deliberar que juzo ou que escolha deveria fazer; e assim seria inteiramente livre sem nunca ser indiferente. 15 Carta a Mesland, AT, v. IV, Correspondance, p. 173.13 14

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Raul Landim Filho Michelle Beyssade,16

em seu artigo sobre a doutrina cartesiana da liberdade, faz uma

interessante anlise comparativa entre o texto latino e a verso francesa das Meditaes no que concerne concepo cartesiana da liberdade. Segundo M. Beyssade, o texto latino excluiria o poder de escolha (indiferena positiva) como constitutivo da essncia da liberdade. De fato, Descartes escreve: Com efeito, no necessrio para que eu seja livre que eu possa me dirigir a um ou a outro lado,...17

[grifo meu]. Seguir-se-ia disso que liberdade consistiria prioritariamente na

adeso espontnea e necessria da vontade verdade e ao bem apresentado pelo intelecto. O estado de indiferena (indiferena negativa) ocorreria apenas na ausncia de conhecimento e seria o mais baixo grau de liberdade: Porm esta indiferena que experimento quando nenhuma razo me impele para um lado mais do que para o outro no testemunha qualquer perfeio na liberdade, mas apenas um defeito, isto , uma certa negao de conhecimento... 18 Ainda, segundo M. Beyssade, o texto da traduo francesa das Meditaes excluiria da essncia da liberdade no o poder de escolha, mas o estado de indiferena, j que Descartes afirma: Pois para que eu seja livre no necessrio que seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrrios...19

[grifo meu]. Note-se que, apesar de no ser considerado como

constitutivo da liberdade, o estado de indiferena considerado como o mais baixo grau de liberdade, exprimindo mais uma ausncia de conhecimento do que uma perfeio da vontade. Levando em considerao estas anlises, podemos considerar que os dois textos das Meditaes caracterizariam a essncia da liberdade pela no-coao da vontade por foras exteriores. Essa no-coao se manifesta da mais perfeita maneira na espontaneidade da vontade ao aderir necessariamente ao bem e ao verdadeiro, apresentado pelo intelecto. O estado de indiferena exprime apenas uma ausncia de conhecimento e no uma perfeio da vontade. Por essa razo, no considerado como constitutivo da liberdade. Segundo M. Beyssade, no texto latino das Meditaes, a indiferena positiva no uma condio constitutiva ou essencial da liberdade. Por sua vez, na traduo francesa das Meditaes, ela no mencionada; por isso no nem includa nem excluda da essncia da liberdade. Qual seria, ento, a concepo cartesiana da liberdade? O poder de escolha suporia a ocorrncia de alternativas contingentes que podem ou no ser escolhidas? O fato de o poder de escolha no ter sido considerado como uma condio

M. Beyssade Descartess Doctrine of Freedom; Differences between the French and Latin Texts of the Fourth Meditation in Reason, Will and Sensation, org. J. Cottingham, Oxford, Clarendon Press, 1994, p. 191-205. 17 Idem, p. 57-58. 18 AT, v. VII, Meditationes, p. 58. 19AT, v. IX-1, Mditations, p. 46; Descartes, Obra Escolhida, Meditaes, p.164.16

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Liberdade e/ou Necessidade necessria da liberdade no texto latino das Meditaes20

e de no ter sido mencionado na sua

traduo francesa parece ser um forte indcio de que ele no constitutivo da essncia da liberdade. a no-coao da vontade por foras exteriores, que se manifesta na espontaneidade ou na inclinao necessria da vontade ao evidente e ao bem, que parece caracterizar, nas Meditaes, a natureza da liberdade. Trata-se, portanto, de conceber a liberdade como uma livre necessidade.21 Dessa maneira, Descartes estaria prximo da concepo espinozista, pois, segundo Espinoza, o homem livre aquele que determinado a agir sob a conduta da razo, ou seja, aquele que determinado a agir pela sua natureza.22 Mas, a clebre carta de Descartes de 9 de fevereiro de 1645 23, endereada ao padre jesuta Mesland, escrita antes da publicao da traduo francesa das Meditaes em 1647, pe, no entanto, em questo as concluses que acabamos de formular. Nessa carta, Descartes afirma a prioridade do poder de escolha sobre a espontaneidade: Mas talvez outros compreendam por indiferena a faculdade positiva de se determinar por um ou por outro dos dois contrrios, isto , de perseguir ou de fugir, de afirmar ou de negar. [Texto que reproduz com as mesmas palavras a caracterizao inicial da liberdade do texto latino das Meditaes]. Esta faculdade positiva, eu no neguei que estivesse na vontade. Eu estimo, ainda mais, que ela a se encontre no somente nos atos aonde ela no levada por qualquer razo evidente para um lado como para outro, mas em todos os outros casos, a tal ponto que, quando uma razo muito evidente nos conduz para um lado, bem que, moralmente falando, dificilmente podemos ser conduzidos ao partido contrrio, falando de maneira absoluta, ns podemos fazer isto. Porque sempre possvel nos impedir de perseguir um bem claramente conhecido ou admitir uma verdade evidente, condio que pensemos atravs disso que um bem afirmar a nossa liberdade de arbtrio24. [grifo nosso] Em seguida, na mesma carta, Descartes reitera enfaticamente sua afirmao: ... a maior liberdade consiste ou bem numa maior facilidade de se determinar ou bem num maior uso dessa potncia positiva que ns temos de seguir o pior, mesmo vendo o melhor. 25 Se o estado de indiferena exprime um defeito ou uma privao de conhecimento, pois as alternativas apresentadas pelo intelecto no impelem a vontade para um lado ou para outro, aSalvo na caracterizao inicial e provisria da liberdade, anterior clusula vel potius. Livre necessidade ou liberdade esclarecida so expresses que J.-M. Beyssade utiliza para caracterizar a inclinao espontnea e necessria da vontade diante do bem e do verdadeiro. Ver artigo citado de J.-M. Beyssade Descartes et la Libert de la Volont, p. 267-268. 22 Spinoza Opera, Ethica, vol II, Ethica IV, prop. 35 e 47, edio C. Gebhardt, Heidelberg, 1925. 23 AT, v. IV, Correspondance, p. 173-174. 24 Idem, p. 173. 25 Ibidem, p. 174.20 21

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Raul Landim Filho indiferena positiva, no entanto, seria uma perfeio da vontade e, por isso, constitutiva da natureza da liberdade. Ela tem prioridade sobre a espontaneidade, pois, mesmo diante do melhor, podemos escolher o pior. Esta tese reala as frases iniciais que pareciam caracterizar tanto no texto latino quanto no texto francs 26 das Meditaes a essncia da liberdade como poder de escolha. Nas Meditationes est escrito: ...ela [a vontade ou o poder de deciso [libertas arbitrii] consiste somente em que ns podemos fazer ou no fazer uma coisa (isto afirmar ou negar, perseguir ou fugir) ou, antes,.... 27. Descartes justifica a concepo da liberdade, formulada na carta a Mesland, afirmando que o poder de escolha um bem maior mesmo quando a vontade no se inclina evidncia do bem e do verdadeiro. O bem, reconhecido como evidente, pode ser recusado, j que o poder de escolha um bem ainda maior. Assim, a vontade sempre visa espontaneamente um bem, mesmo quando aparentemente o rejeita, pois o que possibilita a sua rejeio, a afirmao do poder de escolha, ainda um bem maior. Diante dessa hiptese paradoxal, pode-se afirmar que a vontade livre sempre adere ao bem, tese que no contrariaria a caracterizao da liberdade das Meditationes. Assim, para o homem o bem supremo seria a sua liberdade. Em nenhum dos textos de Descartes foi negado que a espontaneidade tambm constitutiva da liberdade. Alis, como j assinalamos, a pretenso das Meditaes de fundamentar a verdade exige a adeso espontnea e imediata ao evidente. Em alguns textos, a indiferena positiva, isto , o poder de escolha, reconhecido como constituindo a natureza da liberdade. Na carta a Mesland, essa indiferena, sob certas condies, tem prioridade sobre a espontaneidade da adeso da vontade ao evidente e ao bem, diante de um bem maior que consiste na afirmao do poder de escolha. Assim, na anlise cartesiana da liberdade, convivem, talvez de modo pouco harmnico, a tese que caracteriza a liberdade como espontaneidade da vontade e a tese do poder de escolha. De fato, se h um poder absoluto de escolha, isto , um poder de escolher o pior vendo o melhor, a indiferena positiva no se exerceria somente no estado de indiferena ou na ausncia de um bem que determinaria a inclinao da vontade. Se o poder de escolha s pode ser exercido no estado de indiferena ou na ausncia de um bem determinante da vontade, claro que a tese da espontaneidade no se contrape tese da indiferena positiva. Mas, se a adeso espontnea ao bem e ao verdadeiro significa uma adeso necessria e se o poder de escolha um poder absoluto, a tese da espontaneidade seria contrria tese da indiferena positiva.AT, v. IX-1, Mditations, p. 46; Descartes, Obra Escolhida, Meditaes p. 164: ...ela [a vontade]... consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto afirmar ou negar, perseguir ou fugir) ou, antes,.... 27 AT, v. VII, Meditationes, p.57.26

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Liberdade e/ou Necessidade De fato, o poder absoluto de escolha e a adeso espontnea da vontade ao bem satisfazem condio de no-coao que caracteriza em geral a liberdade. livre quem usa o seu poder de escolha, como tambm seria livre aquele que aderisse espontaneamente ao bem; ambos agem sem serem constrangidos por foras exteriores vontade. A dificuldade a de fixar uma prioridade entre estes dois princpios da liberdade: pode a vontade escolher o pior diante do melhor ou ela adere espontaneamente ao melhor? Seriam compatveis essas duas concepes de liberdade? Descartes sugeriu um princpio de soluo que procura harmonizar essas duas concepes de liberdade, soluo qual ele no parece aderir claramente, tendo em vista que ela no foi incorporada verso francesa das Meditaes, publicada depois da carta a Mesland. A liberdade pode ser analisada nas aes da vontade sob dois enfoques: antes da realizao efetiva da ao e durante a ao. Considerada antes da ao, a liberdade envolveria28

o poder de escolha. Mas

como a liberdade consiste numa maior facilidade de se determinar ou num maior uso desta potncia positiva que ns temos de seguir o pior, vendo o melhor29, se o intelecto nos apresenta algo de bom ou de evidente, ns nos determinamos mais facilmente e por isso, tendo o poder de escolher o pior, somos mais livres ao escolher o melhor. Se, por ventura vendo o melhor, escolhemos o pior, tambm somos livres, pois usamos dessa potncia positiva, que um bem ainda maior. Considerada durante as aes da vontade, a liberdade no envolve qualquer indiferena (negativa ou positiva) porque o que est sendo feito no pode deixar de ser feito enquanto feito. Nessa hiptese, escreve Descartes, livre, espontneo e voluntrio so uma mesma coisa 30. Se esta a concepo de liberdade de Descartes, compreende-se a prioridade dada ao poder de escolha na carta a Mesland, pois a espontaneidade na ao supe o poder de escolha que engendra a prpria ao. Mas, como j assinalamos, essa concepo pe em questo o projeto de fundao do saber das Meditaes. A evidncia das ideias claras e distintas no determinaria uma adeso espontnea da vontade, a no ser que se tenha decidido anteriormente que a evidncia deva determinar a adeso da vontade. Em ambas as verses das Meditaes (verso latina e traduo francesa), a caracterizao inicial da liberdade como poder de escolha em seguida interpretada, atravs da expresso vel potius ou ou plutt, como a no-coao da vontade por

Envolver pode significar implicar, que exprime uma necessidade lgica. Note-se que na edio das obras de Descartes, F. Alqui, ao traduzir a carta de Mesland de 9 de fevereiro de 1645, usou o termo implicarcomo traduo de envolvere. Ver Descartes Oeuvres Philosophiques, vol III, Paris, Garnier, 1973, p. 552. 29 AT, v. IV, Correspondance, p. 174. 30 Idem, p. 175.28

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Raul Landim Filho foras exteriores e a no-coao identificada posteriormente com a espontaneidade da vontade em aderir ao verdadeiro e ao bem. A concepo cartesiana da liberdade flutua, assim, entre duas concepes, a do poder de escolha e a da adeso espontnea. A indiferena negativa supe que certos eventos no mundo sejam contingentes. A indiferena positiva, ou o poder de escolha, implica que nem todas as aes so determinadas por razes. Assume-se, assim, a contingncia e o arbitrrio na ordem da causalidade dos eventos humanos. Descartes, com a sua ou as suas teorias da liberdade, propiciou aos cartesianos dissidentes, Espinoza e Leibniz, a satisfao inconsciente de matar simbolicamente o pai. A tradio racionalista percebeu que a originalidade e a fragilidade da concepo cartesiana da liberdade residiam na noo de indiferena, positiva e negativa. Mas, se as aes humanas so submetidas a um nexo causal, se as volies e as inteleces so uma mesma coisa e so sempre determinadas e determinantes causalmente, se a contingncia uma a iluso provocada pela ignorncia da ordem causal, no tem sentido caracterizar a liberdade como poder de escolha. Espinoza foi, assim, o crtico mais radical e sem concesses de Descartes. O necessitarismo espinozista,31 exclui a contingncia, o poder de escolha e a indiferena negativa, sem, no entanto, excluir a liberdade humana. Assim, o espinozismo surge no debate do sculo XVII como uma alternativa concepo de liberdade como poder de escolha. Quais foram as razes que levaram Espinoza a rejeitar a indiferena positiva ou o poder de escolha como condio constitutiva da vontade livre? Na tica I, definio 7, Espinoza define a liberdade da seguinte maneira: dita livre a coisa que existe somente pela necessidade de sua natureza e determinada a agir por si. necessria, ou antes, coagida, a coisa que determinada a partir de outra coisa a existir e a operar de uma maneira certa e determinada. Segundo essa definio, a coisa livre deve preencher duas condies: [a] existir pela necessidade de sua natureza e [b] ser determinada a agir pela sua prpria natureza Ao longo da tica I, Espinoza estabelece os fundamentos do seu necessitarismo ou determinismo causal, formula as condies da liberdade e as razes da sua crtica noo cartesiana de vontade livre. Inicialmente, demonstrado que a substncia absoluta, constituda na sua essncia por infinitos atributos, cada um deles infinito, causa de si (Et. I. 11) (1 condio da definio de coisa livre). Em seguida, mostra que tudo o que existe e que concebido, existe e Sobre o sentido preciso do necessitarismo espinosista, ver o artigo de Marcos Gleizer: Consideraes sobre o Necessitarismo de Espinosa in Analytica, v. 7, n 2, 2003, p. 59-87.31

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Liberdade e/ou Necessidade concebido na substncia absoluta nica (Et. I, 14/15). Da natureza da substncia absoluta decorre necessariamente uma infinidade de coisas atravs de uma infinidade de modos (Et. I, XVI). Da se segue que a substncia absoluta age somente atravs das leis de sua natureza (Et. I, 17). Por conseguinte, em virtude de ser nica, de tudo existir nela e por ela ser concebido, segue-se que ela causa imanente de todas as coisas (Et. I, 18), o que satisfaz segunda parte da definio de coisa livre. Espinoza, ento, afirma no corolrio II da proposio 17 que s a substncia absoluta causa livre (Et. I, 17/18), pois s ela existe e age pela necessidade de sua natureza: sua essncia envolve sua existncia e da sua essncia decorrem causalmente a essncia e a existncia das coisas. Para demonstrar todas as teses acima mencionadas, Espinoza analisou na tica I as relaes dos atributos da substncia infinita com seus modos infinitos, imediatos e mediatos. Todas essas relaes necessrias procedem por causalidade eficiente imanente, no transitiva, o que confirma que a substncia absoluta satisfaz s condies da segunda parte da definio de coisa livre. Mas, as proposies acima mencionadas ainda no esclareceram o modo de agir ou de operar32

das coisas singulares, que so expresses certas e determinadas, isto , finitas, dos

atributos da substncia absoluta (Et. I, 26, cor.). Portanto, ainda no foi tematizada a questo da liberdade do homem, ou melhor, ainda no foi esclarecido se uma coisa singular finita pode tambm ser considerada livre. Obviamente, as coisas singulares no so causa sui. Assim, a primeira parte da definio de coisa livre no se aplica s coisas singulares nem aos modos imediatos e mediatos dos atributos da substncia absoluta. Mas, poderia ser aplicada tambm ao homem a segunda parte da definio da liberdade? O homem poderia agir, no sentido espinosista desse termo? O agir humano definido por Espinosa da seguinte maneira: ... quando feito algo em ns ou fora de ns do qual somos causa adequada, isto , quando a partir da nossa natureza se segue, em ns ou fora de ns, alguma coisa que pode ser por ela s [pela nossa prpria natureza] compreendida clara e distintamente (Et. III, def. II). Nesse sentido, seramos livres se agssemos, isto , se a nossa natureza, por ela mesma, fosse causa, imanente ou transitiva, de algo em ns ou fora de ns. Na clebre proposio 28 da tica I, Espinoza demonstra que qualquer coisa singular, isto , qualquer coisa finita, no pode existir nem operar se no determinada a existir e a operar por outra coisa finita e assim sucessivamente. Assim, as coisas finitas, consideradas como expresses certas e determinadas dos atributos da substncia infinita, se determinam entre elas por uma

Sobre a distino entre agir e operar na tica I de Espinosa, ver o artigo de P. Macherey: Action et Opration: sur la signification thique du De Deo in Avec Spinoza, Paris, PUF, 1992, p. 69-109.32

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Raul Landim Filho causalidade transitiva; as coisas singulares so causas transitivas de outras coisas singulares e so causadas transitivamente por outras coisas singulares. Desse modo, o determinismo causal espinozista, inicialmente provado para as relaes entre os infinitos atributos da substncia (que exprimem, cada um em seu gnero infinito, a essncia da substncia absoluta) e os seus modos infinitos, imediatos e mediatos, se aplica tambm s relaes entre as coisas finitas, que so expresses certas e determinadas dos atributos da substncia absoluta. A diferena entre esses dois tipos de relao causal reside na natureza da causalidade, imanente do ponto de vista da substncia absoluta e transitiva entre as coisas singulares distintas. Isso torna plausvel a afirmao de Espinoza de que as coisas no podem ser produzidas pela substncia absoluta em nenhuma ordem diferente daquela em que elas foram efetivamente produzidas (Et. I, 33). Como as coisas singulares so submetidas a um nexo causal infinito, segue-se que no existe contingncia na natureza: tudo determinado a existir e a operar de uma maneira determinada pela necessidade da natureza divina (Et. I, 29). As coisas so consideradas contingentes por defeito do nosso conhecimento; ns desconhecemos a ordem das causas que as determinam (Et. I, 33, esclio 1).33 Finalmente, como golpe fatal noo da vontade livre cartesiana, Espinoza mostra, na tica I, que a vontade um modo e, enquanto tal, no constitutiva da essncia da substncia absoluta. Por isso, se considerada como modo infinito, ela necessariamente determinada causalmente pela natureza do seu atributo (Et. I, 32, cor 2). As volies finitas, por sua vez, so tambm submetidas ao nexo causal: cada volio no pode existir nem ser determinada a produzir um efeito a no ser que tenha sido causada por outra volio, que tambm foi determinada por outra e assim indefinidamente. Na tica II, proposies. 48-49, Espinoza retoma a anlise das volies finitas. Alm de reiterar as proposies anteriormente demonstradas de que as volies so submetidas a um nexo causal infinito, Espinoza extrai dessa tese uma crtica distino cartesiana que explicara aNa tica I, proposio 33, esclio 1, Espinoza explica as noes modais que utiliza ao longo da tica. Uma coisa dita necessria seja em razo de sua essncia, seja em razo da sua causa, pois a existncia de uma coisa se segue seja da sua essncia, seja da existncia de uma causa eficiente. Uma coisa impossvel seja em razo da essncia dessa coisa envolver contradio, seja porque no existe causa exterior que seja determinada a produzir esta coisa Uma coisa contingente se no sabemos se sua essncia envolve contradio ou no sabemos que no envolve contradio, mas, neste caso, nada de certo podemos afirmar sobre sua existncia porque desconhecemos a ordem das causas a que ela estaria ou no submetida. Na tica IV, Espinoza introduz uma distino entre contingente e possvel. As coisas contingentes so aquelas coisas singulares que, quando examinada a sua essncia, no encontramos nela nada que ponha necessariamente ou que exclua necessariamente sua existncia (Et. IV, def. III). As coisas possveis so aquelas coisas singulares que, ao serem examinadas as causas que poderiam produzi-las, no sabemos se estas causas so determinadas a produzi-las (Et. IV, def., IV). Contingncia e possibilidade concernem sempre um estado de no saber.33

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Liberdade e/ou Necessidade liberdade e o erro, distinguindo o intelecto, faculdade representativa, passiva e finita, da vontade, faculdade infinita, livre, dotada de funo assertrica. Espinoza mostra que no existe uma faculdade absoluta, a vontade. Vontade significa apenas uma entidade abstrata, universal, um ente metafsico, formado a partir das volies singulares. Em seguida, Espinoza mostra ainda que o intelecto e a vontade, isto , as volies singulares e as ideias singulares, so uma mesma coisa. Fica assim reiterada a tese, formulada na tica I, de que a vontade no uma causa livre (Et. I, p. 32), pois, enquanto volio singular, submetida ao nexo causal infinito. No esclio da proposio 2 da tica II, Espinoza conclui enfaticamente: ...os homens se crem livres [no sentido cartesiano de liberdade] pela nica razo que eles so conscientes das sua aes e ignorantes das causas pelas quais elas so determinadas Deveramos, ento, afirmar que s a substncia absoluta livre, pois s ela causa de si e age por necessidade de sua natureza, no sendo jamais coagida ou determinada por coisas exteriores a operar, enquanto que o homem, parte da natureza, seria necessariamente coagido por outras coisas singulares (Et. IV, p. 2-4)? Estabelecido o necessitarismo ou o determinismo causal, Espinoza demonstrar nas ticas subsequentes, especialmente nas ticas II-IV, que o homem pode ser livre 34, pois, segundo certas condies, ele age (e no apenas opera) determinado por sua prpria natureza. A prova da existncia da liberdade humana supe o esclarecimento de inmeras outras noes e a demonstrao de vrias proposies que envolvem essas noes. Obviamente, no cabe reconstruir o longo e laborioso caminho percorrido por Espinoza para mostrar as condies da liberdade humana. Para o nosso propsito suficiente dar os indcios da crtica devastadora de Espinoza noo de liberdade da vontade formulada por Descartes. Espinoza procurou mostrar que o necessitarismo, fundamento dessa crtica, no exclui a liberdade humana, pois, sob certas condies, agimos determinados causalmente pela nossa prpria natureza, ou melhor, agimos sob a conduta da Razo. Liberdade no se ope necessidade, mas coao. Agir por necessidade de sua natureza significa agir livremente. Em Espinoza, a ao humana livre no envolve as chamadas fices cartesianas: a distino entre intelecto (finito) e vontade (infinita) e o poder de deciso da vontade. O homem age livremente no por deciso ou por escolha, mas por determinao necessria de sua natureza. Liberdade significa, ento, agir por necessidade.

Sobre a questo da possibilidade da liberdade humana no sistema espinosista, ver o artigo de Marcos Gleizer: Notas sobre o problema da ao humana. Este texto ser publicado ainda neste ano numa coletnea de artigos organizada por Luiz Carlos Dias Pereira, intitulada Lgica e Metafsica34

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Raul Landim Filho certo que a crtica concepo da liberdade cartesiana envolve muitos pressupostos, explicitamente assumidos por Espinoza. As definies e os axiomas da tica I j nos indicam o que devemos assumir para rejeitar a noo de liberdade como poder de escolha. A questo saber se os pressupostos espinosistas, to contundentes, so de fato persuasivos. Mas, conceber a liberdade como a no-coao de foras exteriores e, por conseguinte, como a ao espontnea determinada pela prpria natureza humana, no , sob este aspecto, uma tese que contrariaria a concepo cartesiana da livre necessidade.

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