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Teoria ator-rede e cibercultura das coisas A comunicação

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Teoria ator-rede e ciberculturadas coisas

A comunicação

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Teoria ator-rede e cibercultura

André Lemos

das coisasA comunicação

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A COMUNICAÇÃO DAS COISAS. TEORIA ATOR-REDE E CIBERCULTURA

Projeto, Produção e CapaColetivo Gráfico Annablume

Imagem da CapaIdeia - André Lemos, baseado nas fotografias de Todd McLellan

(http://www.toddmclellan.com) no projeto “Things come Apart”.

FotografiaLeonardo Pastor e Amana Dultra

RevisãoAndré Holanda, José Carlos Ribeiro, Leonardo Ferreira,

Leonardo Pastor e Mari Fiorelli.

Conselho EditorialEduardo Peñuela Cañizal

Norval Baitello juniorMaria Odila Leite da Silva Dias

Celia Maria Marinho de AzevedoGustavo Bernardo Krause

Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)Pedro Roberto Jacobi

Lucrécia D’Alessio Ferrara

1ª edição: outubro de 2013

© André Lemos

ANNABLUME editora . comunicaçãoRua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros

05415-020 . São Paulo . SP . BrasilTel. e Fax. (011) 3539-0226 – Televendas 3539-0225

www.annablume.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

L557 Lemos, André.A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura. / André Lemos. –

São Paulo: Annablume, 2013. (Coleção ATOPOS).310 p. ; 14x21 cm

ISBN 978-85-391-0596-0

1. Semiótica. 2. Comunicação. 3. Ciberespaço. 4. Cibernética. 5. Cibercultura. 6. Redes Sociais. 7. Aspectos Sociais do Ciberespaço. 8. Teoria Ator-Rede. I. Título. II. Teoria ator-rede e cibercultura. III. Série.

CDU 003CDD 302.2

Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino

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Para Alice e Bernardo

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AgrAdecimentos

Este livro não seria possível sem a ajuda de algumas pessoas e instituições. Meus sinceros agradecimentos a todos. A André Holan-da e Paulo Victor Sousa, pela parceria em dois artigos que são partes de capítulos deste livro. A André Holanda, José Carlos Ribeiro, Le-onardo Ferreira, Leonardo Pastor e Mari Fiorelli pela atenta revisão e sugestões para uma maior clareza do texto. A Leonardo Pastor e Amana Dultra pela produção e pela foto da capa. Agradeço, espe-cialmente, ao meu colega José Carlos Ribeiro pela leitura atenciosa, sugestões e comentários. Sou grato aos pesquisadores do Lab404 pelas discussões e amadurecimento da pesquisa sobre o tema deste livro, ao CNPq pelo apoio com a alocação de uma bolsa de produti-vidade em pesquisa, ao PPGCOM/FACOM/UFBa na figura do seu atual coordenador, Edson Dalmonte, sempre disponível às minhas demandas e a Massimo de Felice por me ter feito o convite para que este livro fizesse parte da coleção da editora Annablume. Agradeço a editora Annablume por acreditar neste projeto. Aos meus alunos de graduação e de pós-graduação e aos meus orientandos de TCC, mestrado e doutorado por me ensinarem muito e por suportarem as minhas exigências.

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sumário

Do social para as redes .................................................................. 11

Massimo Di Felice

Introdução ..................................................................................... 19

1. Teoria ator-rede (TAR) ............................................................. 31

Origens .......................................................................................... 34Conceitos e pressupostos teóricos ................................................. 42Sociologia da mobilidade .............................................................. 60Do paradigma ao cosmograma ...................................................... 66Contribuições gerais ...................................................................... 90Pós-TAR, ou como os modos de existência ampliam as redes ..... 94

2. Cartografia de controvérsias ................................................... 105

Controvérsias .............................................................................. 106Cartografias ................................................................................. 110Rastros......................................................................................... 119Algumas controvérsias ................................................................ 123

3. Dispositivos de leitura ............................................................. 145

Dispositivos de leitura eletrônicos .............................................. 145

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4. Mídias sociais. Ferramenta da revolução? .............................. 159

Meio como extensão ................................................................... 160Primavera árabe .......................................................................... 164Composições ............................................................................... 171

5. Espaço e mídias locativas ....................................................... 175

Espaço-rede ................................................................................. 178Espaço movimento ...................................................................... 193Mídias locativas .......................................................................... 201Cartografias colaborativas ........................................................... 216Cidade algoritmo ......................................................................... 230

6. Internet das coisas ................................................................... 239

Origem ........................................................................................ 242Coisas e objetos ........................................................................... 245Comunicação das coisas ............................................................. 254Objeto social ............................................................................... 261Parlamento das coisas ................................................................. 268

7. Entrevista com Bruno Latour .................................................. 271

Referências .................................................................................. 287

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do sociAl pArA As redes

MassiMo Di Felice

Prestes a partir para uma expedição militar, vestidos com suas armaduras e reunidos numa cerimônia, os soldados atenienses rece-biam em forma solene a seguinte invocação “por onde irão, serão polis!”. Portadores dos valores da democracia, os antigos guerreiros gregos foram os pioneiros inconscientes daquele processo milenar que levou o ocidente a exportar para o mundo seus modelos sociais, seus valores, seus deuses, atravessando mares, vencendo distâncias e conquistando povos e terras, mas sem jamais encontrar alguém.

Um processo unidirecional que, hoje, depois da crise de to-dos os tipos de colonialismo, assume nitidamente as caraterísticas da crise de um processo histórico: o da expansão do ocidente e de sua estrutura epistêmica totalitária. Surgida no âmbito industrial e no contexto positivista europeu, a sociologia herdou a forma sistêmica e estruturalista que, alinhada com a vocação do pensamento ociden-tal, exportou para o mundo uma forma específica de interpretar o social, dando às suas categorias e aos seus conceitos uma dimensão planetária e fazendo de categorias particulares, enquanto geográfica e culturalmente elaboradas, conceitos-orientadores universais. De um lado, a crise do método unitário nas ciências exatas, no começo do século XX, que repercutiu nas ciências sociais enfraquecendo as pretensões de objetividade de seus estudos, de outro, a crise do

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12 A COMUNICAÇÃO DAS COISAS

sistema industrial e o advento das formas digitais e conectivas que desenvolveram arquiteturas reticulares de interações, contribuíram para a necessidade do desenvolvimento de um tipo diverso de abor-dagem do social, evidenciando, ao mesmo tempo, os limites dos próprios pressupostos da particular concepção de sociedade pro-duzida em plena época industrial pelas ciências sociais clássicas. Os elementos de tal crise são hoje evidentes e tornam necessária a assunção e a reflexão a respeito de suas qualidades. A especi-ficidade do modelo de social, inspirado nas categorias e nos con-ceitos elaborados pela sociologia industrial europeia, embora seja possível contemplar também em tal modelo as principais escolas da sociologia norte-americana, funda-se sobre alguns pressupostos e caraterísticas principais: A) Em primeiro lugar, a própria forma “urbana” do social que limitou a dimensão ecológica do mesmo ao espaço da cidadania, entendida a cidade e as arquiteturas urbanas como os espaços principais de seu desenvolvimento. B) Em segundo lugar, a concepção antropocêntrica da dimensão do social, elemento fundante da tradição ocidental que influenciou a ideia de um social circunscrito aos humanos e interdito aos demais atores (animais, ve-getais, tecnologias, minerais e elementos da natureza em geral). C) A consequente incapacidade de entender o significativo qualitativo do papel da tecnologia e da comunicação no interior dos processos de formação e de transformação do convívio das coletividades. D) Enfim, a delimitação da ação social e de sua abrangência às ativida-des dos sujeitos-atores;

A) Da experiência da polis até o iluminismo, a tradição eu-ropeia limitou o conceito de sociedade às atividades dos indivídu-os, tornando o mundo ao redor objeto, matérias primas e recursos para o alcance de suas finalidades. A delimitação da ideia de social à cidade, própria da sociologia europeia e inspirada na concepção humanista ocidental, contribuiu para a construção ideal de uma hie-rarquia que indicava como estrangeira, arcaica e subdesenvolvidas, todas as realidades “extra-muros”, criando assim uma contraposição conceptual inapropriada e simplificadora que oponha o campo à ci-dade, o arcaico ao moderno, a tradição á inovação, o subdesenvolvi-do ao desenvolvidos etc.

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O espaço urbano tornou-se o habitat principal da sociedade industrial, enquanto espaço dominado e ordenado pelo contra-to social, o cenário e o palco privilegiado do convívio dos huma-nos: “Imerso no contrato exclusivamente social, o homem políti-co subscreve-o, reescreve-o e fá-lo observar até hoje, unicamente como perito de relações publicas e ciências sociais (...) Nenhum dos seus discursos falava do mundo, ocupando-se indefinidamente dos homens.” (Serres, 1990, p. 55). Além de exportar uma concepção política e um modelo de humano, a cultura ocidental exportou para fora da Europa uma ecologia social, urbana e dialética, que separa-va o humano do mundo e do meio-ambiente. Ao exportar tal eco-logia urbana do social, a perspectiva sociológica europeia ergueu uma divisão entre o espaço humano e o espaço da natureza gerando, assim, uma ecologia antropomórfica na qual: “A natureza reduz-se à natureza humana que, por sua vez, se reduz à historia ou á razão. O mundo desapareceu. O direito natural moderno distingue-se do clássico por essa anulação (...) Com o contrato social, ele ignora e passa em silencio o mundo, que nos apenas conhecemos porque o temos dominado” (Serres, 1990, p. 59).

B)Este processo de dominação do sujeito sobre o mundo que, de fato, marca toda a história do ocidente, é apontado por Martin Heidegger como o produto da metafísica ocidental, responsável pela construção de ontologias abstratas e não relacionais. Na época in-dustrial, com a difusão das sociedades a contrato, as ciências sociais herdaram, no contexto europeu, a mesma ontologia metafísica hu-manista que fundamentou o estudo de um social composto apenas pelos humanos, suas instituições e suas finalidades. Com a exceção de pouquíssimos autores, que buscaram complexificar o estudo da sociedade estendendo a dimensão do social no âmbito das ciências biológicas, como Gabriel Tarde, os pressupostos epistêmicos das ciências sociais permanecerá circunscrito ao âmbito humanista, ou seja, ao âmbito da narrativa europeia sobre o humano, helênica an-tes, cristã depois e iluminista e racionalista nos séculos XVIII e XIX. Baseadas nos pressuposto do mito do antropocentrismo, explicado por Roberto Marchesini (2002) como um paradigma sustentado por três coordenadas: “I. a pretensão de uma auto fundação do homem na escalada antropo-poietica; II. a consideração do homem como en-

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tidade de medida e concepção do mundo; III. o pré-conceito de uma pureza essencialistica na avaliação da relação homem-tecnologia”. (Marchesini, 2002, p. 164), as ciências sociais construíram suas teo-rias sobre o social a partir do pressuposto epistêmico da independên-cia e da supremacia do humano sobre a técnica e a natureza.

C) Os limites das interpretações e das narrativas sociológicas sobre o social são hoje mais evidentes que no passado. Tal visibili-dade se deve, pelo incremento do protagonismo dos objetos que as tecnologias digitais, através da possibilidade de conexão e de inte-ração entre circuitos informativos e ecossistemas trans-orgânicos, contribuíram para implementar, alterando as caraterísticas ecológi-cas dos convívios coletivos, tornando mais visíveis a participação e a contribuição dos não humanos na construção do social e das agregações coletivas. A dimensão agregativas do nosso convívio é hoje visivelmente mais complexa. Este aspecto nos obriga ao de-senvolvimento de uma nova teoria capaz de expandir a dimensão do social tanto aos elementos tecnológicos e inorgânicos, quanto àque-les orgânicos como a todos aqueles que compõem a bio-esfera. A passagem da sociologia para as ciências das associações (B. Latour, M. Calon, J. Law) comporta, também, a assunção de uma epistemo-logia reticular que descreva os processos agregativos não a partir de um determinismo analógico e sistêmico, ou seja, como a soma do conjunto de relações comunicativas entre os diversos aparatos de um mesmo sistema, mas como as dimensões conectivas e emergen-tes de um novo tipo de complexidade. Pensar a forma rede signifi-ca assumir uma importante transformação epistêmica que marca a passagem da uma lógica de complexidade estrutural-sistêmica para uma lógica reticular, hologramática (E. Morin) e conectiva.

É nesta perspectiva que a dimensão relacional e comunicativa assume a dimensão da “forma formantis”, isto é, a dimensão que explicita o poder criador da conexão que contrariamente à dimensão estrutural funcionalista, própria da tradição sociologia norte-ame-ricana (T. Parsons), descreve o imprevisível processo de constru-ção das agregações reticulares. O social deixa, assim, de ser para tornar-se evento, acontecimento comunicativo, único e a-sistêmico. A esfera comunicativa, nesta perspectiva, não pode ser mais pen-sada apenas como mídia, isto é, como o conjunto de meio e instru-

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mentos de repasse de fluxos de informações. A comunicação deixa também de ser o elo de junção entre os atores para se tornar forma constituidora. A partir desta concepção é necessário ressaltar que a nada servem as interpretações e os estudos sociológicos sobre a mídia desenvolvidos em contexto industriais para entender a com-plexidade do papel da comunicação que desenvolve-se em contextos de rede de redes. Estas remetem, provavelmente, a uma alteração do mesmo estatuto do social e não a um novo tipo de mecanicismo instrumental-comunicativo. Ter reduzido o papel social da técnica e da comunicação à sua dimensão mecanicista, que limitava à sua contribuição para o desenvolvimento do social à sua função, reduziu a possibilidade de compreensão e de analise das teorias sociológicas sobre as sociedades pós-industriais e as complexas e transorgânicas ecologias agregativas contemporâneas.

D) A assunção acrítica da concepção sistêmica que expressou a supremacia da estrutura sobre a forma e que impediu ao pensamen-to sociológico de enxergar os elementos informativos e tecno-comu-nicativos da situação social, acabou limitando a análise da mesma situação social circunscrita desde Erving Goffman à perspectiva físico-arquitetônica que a aprisionou na antinomia público-privado. Excluindo o elemento formante e agregador dos fluxos informativos, a representação sociológica do social conseguiu narrar apenas uma parte da complexidade do conjunto de relações perdendo, assim, o dinamismo ecológico das agregações e não conseguindo avançar na direção de uma teoria ecossistêmica do ato que reunisse os diversos atores, humanos e não, envolvidos no agir. Devemos a B. Latour, M. Calon, J. Law, avanços significativos em tal direção. Superando a te-oria clássica da ação social que circunscrevia o agir às atividades do sujeito-ator, artífice único e principal do dinamismo social, a teoria do ator-rede recoloca a questão na necessidade de repensar o próprio estatuo do social a partir de sua vocação agregativas e dinâmicas.

A crise do imaginário da sociologia europeia sobre o social, decorrente da crise do imaginário industrial e da crise do imaginário positivista-sistêmico, nos abre a uma perspectiva para os estudiosos do setor tanto complexa quanto sedutora que remete à necessida-de de repensar o estatuto do social. Para quem aceite o desafio de entreprender tal caminho, a leitura desta obra de André Lemos é

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fundamental. Fundador do Groupe de Recherche sur la Technique et le Quotidien (GRETECH) no Centro de Estudos sobre o Atual e o Quotidiano (CeaQ) da Universidade Sorbonne Paris V, e pioneiro no Brasil nos estudos dos processos de inovação do social a partir de suas formas comunicativas, André Lemos aponta em sua obra uma direção inovadora de pensar os significados qualitativos das transformações em ato através do dúplice e simultâneo olhar que agrega a necessidade de repensar a comunicação para além de sua perspectiva midiática e o desafio de enxergar a alteração do estatuto do social, a partir das qualidades trans-orgânicas de seus dinamis-mos agregativos e de suas propriedades conectivas. Descrevendo de maneira apropriada e analítica as principais abordagens sobre a teoria do ator-rede e sobre as práticas de realizações de cartografias das controvérsias, o livro oferece uma importante reflexão filosófica sobre a ontologia orientada ao objeto proposta por Graham Harman que evidencia a necessidade de repensar a digitalização a partir de uma reflexão capaz de abordar a alteração da condição habitativa, no sentido heidegeriano, isto é, no sentido próprio da transformação dos estatutos das coisas, dos “seres”, do “céu” e da “terra”, a par-tir de suas emergências relacionais. O livro indica claramente para onde começar a navegação nos mares inexplorados das agregações sem social. Próprio como os marinheiros, os pesquisadores que pre-tendem estudar os dinamismos das redes precisam deixar a cidade e seus portos seguros, para entrar numa outra ecologia, na qual o chão e o céu confundem-se e a direção do barco é o resultado de uma sinergia complexa entre os marinheiros, o vento, as correntezas ma-rinhas e a potência das ondas. Este livro constitui-se, portanto, como um importante mapa para se navegar novos mares.

Uma vez distante das cidades, em mar aberto os navegantes dos mares das redes deverão enfrentar três desafios principais: a ne-cessidade de estabelecer um tipo de epistemologia não mais sistêmi-ca, mas reticular e conectiva; a necessidade de repensar a uma nova teoria da comunicação não mais midiática ou instrumental, mas ca-paz de se abrir a uma dimensão que consiga desvelar as dimensões comunicativas do habitar; e enfim, a necessidade de pensar as for-mas agregativas numa perspectiva pós-sociológica que expresse um novo tipo de ecologia social, pós-urbanas e atópica, composta por diversas naturezas conectivas.

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O Brasil é um contexto privilegiado para o estudo das dimen-sões reticulares e conectivas. Por vários motivos, mas em primei-ro lugar por abrigar sabedoria e conhecimento não ocidentais que flanqueando-se à presença das epistemologias europeias confere ao contexto brasileiro uma especificidade propícia para a inovação e o desenvolvimento de perspectivas originais. Abaixo da linha do equador o social sempre foi mais complexo e nunca se limitou ao âmbito das atividades e das funções humanas. Entre os povos na-tivos, como amplamente sublinhado pelos estudos antropológicos e, em particular, pelas contribuições do Eduardo Viveiros de Cas-tro, o social é trans-orgânico e não apenas antropomórfico. Ao lado dos animais e dos vegetais também os objetos são cidadãos e, como no caso do machado Krahô, contadores de história e desenvolve-dores de interações. É este um privilégio e uma vantagem própria dos cientistas brasileiros que poderão acompanhá-los ajudando-os a encontrar, no céu estrelado que se espelha nos mares das redes, a co-nexão mais fértil. Aos marinheiros que optaram por não mais habitar dentro dos muros das nossas cidades, mas “debaixo da cúpula das constelações”, desejamos para a longa travessia a companhia deste mapa de navegação.

referênciAs

Marchesini, R. “Contra a pureza essencialista, rumo a novos mode-los de existencia” em Di Felice, M.; Pireddu, M., (org.) Pós humanismo, as relações entre o humano e a técnica na época das redes. 2010: S. Caetano do sul, Ed Difusão.

Serres, M., O contrato natural, 1990, Lisboa, Ed. Instituto Piaget.

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introdução

Onde estão os Mounier das máquinas, os Lévinas dos animais, os Ricoeurs dos fatos? O humano, como podemos compreender agora, só pode ser cap-tado e preservado se devolvermos a ele esta outra metade de si mesmo, a parte das coisas. Enquanto o humanismo for feito por contraste com o objeto abandonado à epistemologia, não compreenderemos nem o humano, nem o não-humano.

Bruno Latour (1994a, p. 134)

Humanos comunicam. E as coisas também. E nos comuni-camos com as coisas e elas nos fazem fazer coisas, queiramos ou não. E fazemos as coisas fazerem coisas para nós e para outras coi-sas. É assim desde o surgimento do humano no planeta. Na cultu-ra contemporânea, mediadores não-humanos (objetos inteligentes, computadores, servidores, redes telemáticas, smart phones, sensores etc.), nos fazem fazer (nós, humanos), muitas coisas, provocando mudanças em nosso comportamento no dia-a-dia e também, em con-trapartida, recursivamente, mudamos esses não-humanos de acordo com as nossas necessidades. O que eles, os não-humanos, nos fazem fazer, ganham, a cada dia, não só uma maior abrangência, invadindo todas as áreas da vida quotidiana, como também maior poder pres-

Andre Lemos
O humano, como podemos compreender agora, so pode ser cap- tado e preservado se devolvermos a ele esta outra metade de si mesmo, a parte das coisas. Enquanto o humanismo for feito por contraste com o objeto abandonado a epistemologia, nao compreenderemos nem o humano, nem o nao-humano.
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20 A COMUNICAÇÃO DAS COISAS

critivo, indicando e nos fazendo fazer coisas em um futuro próximo. Eles nos induzem a coisas que não podemos deixar de fazer, aqui e agora, acolá e depois. Não vivemos sem eles.

O leitor atento, aquele que não se deixou levar pela história do sujeito que domina o objeto, do sujeito senhor da situação e do objeto sempre passivo e subserviente, pode arguir que isso é assim desde sempre, que nossa relação com a técnica, esse modo de fazer coisas, e com os artefatos, essas coisas feitas por nós, é sempre de trocas, de mediação, de delegação, de inscrição, de tensão. Que ela é sempre comunicação. Certamente. Mas nem todo mundo pensa assim. Hoje, mais do que em outras eras da história da humanida-de, essa comunicação é mais intensa. Cada vez mais não-humanos, agora “inteligentes, comunicativos, conectados e sensíveis ao am-biente” (smarts, no jargão técnico) nos fazem fazer coisas, alteram a nossa forma de pensar e de agir em todos os domínios da cultura (família, trabalho, escola, lazer...). Vou mostrar neste livro sentidos dessa comunicação das coisas em algumas áreas da cultura digital pelo caminho proposto pela Teoria Ator-Rede (TAR)1.

Para quem ainda não está convencido das transformações da cultura digital, é recomendável parar e pensar um pouco nas suas ações diárias: você acorda e pega logo o celular, vê se ele te avisa de algo, uma ligação perdida, um SMS, um alarme da agenda… Se ele não te manda fazer nada, você checa os e-mails enquanto toma café, vê que vai ter que alterar a agenda e desfazer um compromisso. Liga o tablet, lê as informações pelos serviços de informações criados por algoritmos agregadores (e não por humanos) como Google Reader, Feedly, Flipboard, entre outros, ou baixa os jornais e revistas eletrô-nicos no seu e-reader e, da leitura, replica algumas das informações nas redes sociais cujos serviços, vão, automaticamente, fazer che-gar essas notícias aos seus contatos (Twitter, Facebook, Pinterest...). Depois, aproveita o embalo e vai se inteirar da vida dos amigos pró-ximos (e dos nem tão próximos) no Facebook ou no Instagram e,

1 Em muitos livros, artigos e trabalhos acadêmicos aparece a denominação “teo-ria do ator-rede”. É comum, mesmo em textos em português, autores adotarem também o acrônimo ANT de Actor-Network Theory. Vou adotar neste livro a denominação “Teoria Ator-Rede” e o acrônimo TAR, a partir da expressão em português.

Andre Lemos
O leitor atento, aquele que nao se deixou levar pela historia do sujeito que domina o objeto, do sujeito senhor da situacao e do objeto sempre passivo e subserviente, pode arguir que isso e assim desde sempre, que nossa relacao com a tecnica, esse modo de fazer coisas, e com os artefatos, essas coisas feitas por nos, e sempre de trocas, de mediacao, de delegacao, de inscricao, de tensao. Que ela e sempre comunicacao. Certamente.
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antes de sair de casa com o carro, ou para pegar o transporte público, lança o aplicativo Waze para ver as condições do trânsito, mudando a rota, se necessário.

Muitas pessoas fazem isso diariamente. E vejam que nem es-tou falando da atual fase das máquinas se comunicando com outras máquinas (M2M, no jargão técnico) de forma autônoma em uma “Internet das Coisas” (como veremos no capítulo seis): objetos hi-perconectados em redes (via protocolo IPV62) com sensores e eti-quetas de radiofrequência que estão ampliando a mediação e a de-legação dessa comunicação das coisas a um nível só pensado na ficção-científica: o carro comunicando com o celular avisando da revisão; a agenda checando a situação do vôo e mudando o horário do despertador para adequá-lo à nova situação; a xícara, vazia, pe-dindo mais café para a cafeteira que, sem pó, passa a comanda ao supermercado para comprar café; a torradeira pedindo atenção; a ár-vore falando sobre a situação ambiental; o lixo mostrando se ele foi jogado ou não onde deveria; remédios avisando ao paciente a hora de tomar a outra dose prescrita pelo médico...3 Os exemplos estão em expansão. Com essas coisas ainda mais inteligentes, as redes de “objetos não-humanos”, delegando coisas a outros “objetos não--humanos”, só farão aumentar a mediação da ação de nós, humanos. A comunicação das coisas entre elas e entre nós, os humanos, só aumenta.

A mediação com não-humanos é parte constitutiva do humano, mas a “Constituição” da modernidade tentou nos fazer esquecer isso, insistindo na separação e na purificação dos híbridos em “sujeitos e objetos” (LATOUR, 1994a). Na comunicação, esse parece ser um dos seus dogmas: o sujeito de um lado, as mídias do outro, contaminando

2 IPV6 é o mais atual protocolo de comunicação da internet que aumenta e torna praticamente infinita a possibilidade de associar um número IP a um objeto. Ele deve substituir o IPV4 que suporta cerca de 4 bilhões de endereços IP. Para mais informações veja a matéria “Desmystifying IPv6” de Dave Evans, disponível em http://blogs.cisco.com/ioe/demystifying-ipv6/

3 Sobre esses exemplos ver Brad the Toaster (http://affectlab.org/2012/07/26/meet--brad-the-toaster/), Talking Tree (http://talking-tree.com), Trash Track (http://senseable.mit.edu/trashtrack/), Internet of Thing Europe Teaser 1 (http://www.youtube.com/watch?v=kq8wcjQYW90) e Internet of Thing Europe Teaser 2 (http://www.youtube.com/watch?v=RTdRUwl9JsA)

Andre Lemos
A mediacao com nao-humanos e parte constitutiva do humano, mas a “Constituicao” da modernidade tentou nos fazer esquecer isso, insistindo na separacao e na purificacao dos hibridos em “sujeitos e objetos” (LATOUR, 1994a).
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22 A COMUNICAÇÃO DAS COISAS

a “verdadeira” relação com o mundo (que seria a não mediada). A comunicação com C maiúsculo seria a ação que se dá na “troca entre consciências”. E como os objetos não têm consciência, a comunica-ção seria assunto apenas de humanos. A mediação certamente é entre humanos e não-humanos, mas ela é purificada, separando um do outro e instituindo campos de saberes, campos políticos: a comunicação dos humanos de um lado e os objetos inertes de outro.

Na comunicação, a mediação, longe de ser neutra, está inseri-da na materialidade dos dispositivos, na constituição do seu design, no desdobramento das redes que dão apoio. Longe de ser neutra, como afirma David Banks (2013):

Technological systems and artifacts have politics, and communications te-chnologies are particularly interesting in this regard. They can be designed to decentralize organizations and resources, or they can require the conti-nued existence of large bureaucracies. Communications technologies are

politics frozen in silicon. Not only because these systems mediate our re-lationships at multiple scales, but also because looking at what is not there says a lot about who is and is not allowed to politically organize. Again, this isn’t about the intentions of engineers or designers per se, rather the technologies are imperfect and incomplete physical manifestations of the current political order.

Ora, a mediação dos artefatos digitais é hoje parte intrínse-ca do nosso quotidiano. Retire esses objetos do seu quotidiano e veja se ele ainda faz sentido. Claro, esses usos de artefatos digitais conectados a redes telemáticas podem ocorrer em maior ou menor grau, a depender do indivíduo, da cidade, do país, mas, de qualquer maneira, estamos sempre fazendo coisas que outros agentes (que vamos chamar mais adiante de “actantes”) nos fazem fazer e dos quais dependemos completamente: o carro, o transporte público, o rádio, a TV, os jornais, o telefone, a eletricidade, as redes de água e esgoto, as leis, as normas…

Como podemos pensar o humano independente dessas redes sociotécnicas? Como podemos pensar em algum momento no “só-cio”, na comunicação e no “técnico” como partes separadas, como domínios autônomos? Se olharmos o nosso mundo (o que está mes-mo ao nosso redor), só vemos híbridos criados por contínuas media-

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ções, delegações, inscrições de uns (humanos ou não-humanos) nos outros (não-humanos ou humanos) produzindo redes e associações. Tudo está nesse movimento. Como afirma Latour (1994a, p. 136) se referindo ao “humano”:

Como ele poderia ser ameaçado pelas máquinas? Ele as criou, transpor-tou-se nelas, repartiu nos membros das máquinas seus próprios membros, construiu seu próprio corpo com elas. Como poderia ser ameaçado pelos objetos? Todos eles foram quase-sujeitos circulando no coletivo que tra-çavam. Ele é feito destes objetos, tanto quanto estes são feitos dele. Foi multiplicando as coisas que ele definiu a si mesmo.

É isso a vida social. Ou o social, como objeto exterior, estaria separado de tudo, sendo a causa da técnica, da cultura, da economia, da religião? Precisamos de uma teoria do social que possa pensar essas relações e esses mediadores sem colocar, de antemão, os hu-manos no centro da intencionalidade, sem purificar a comunicação separando sujeito de objeto como mediadores e intermediários. As-sim sendo, para compreendermos a complexidade da cultura digital, torna-se imperativo ir além da separação entre sujeitos autônomos e objetos inertes, passivos e obedientes, simples intermediários. Eles são também mediadores e a mídia é mais do que uma externalida-de do humano, uma extensão do homem. Ela é parte da rede que o constitui. Na expressão “ator-rede”, o ator não é o indivíduo e a rede não é a sociedade. O ator é rede e a rede é um ator, ambos são mediadores em uma associação.

Acredito que para a área de comunicação e para os estudos da cibercultura no Brasil a presença de uma teoria que pense os media-dores sem dar muitos privilégios aos atores sociais clássicos (os su-jeitos) pode ser bastante estimulante. Uma teoria que busca nivelar topologicamente sujeitos e objetos, atores humanos e não-humanos, que descreve e destaca as controvérsias buscando abrir “caixas-pre-tas” (clichês, estereótipos, lugares-comuns, enunciados e objetos es-tabilizados) me parece bem apropriada para pensar a cultura digital hoje. Como, em uma área como a da comunicação, na qual tudo é mediado por artefatos tecnológicos sofisticados, não dar atenção aos híbridos? Essa teoria é a Teoria Ator-Rede (TAR).

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Pensamentos por estrutura (macro), agência (micro), herme-nêutica ou contexto (local, global) não dão conta da complexidade da cultura contemporânea, embora, devamos reconhecer, tenham dado contribuições interessantes para o conhecimento do “social”. Cada ação, para ficarmos no uso das tecnologias de comunicação e infor-mação, por mais simples que seja, associa múltiplos atores em uma circulação de mediações e delegações atravessando espaços e con-textos: engenheiros, criadores, produtores de informação, empresas, distribuidores, usuários, leis, software e bancos de dados, servidores, redes... Compreender a cultura digital é entender a relações entre esses diversos atores e suas formas de relação através de boas descrições e análises de seus rastros. Ou seja, pensar além das supostas essências e estruturas pode ser muito mais produtivo para o entendimento das particularidades associadas ao mundo contemporâneo.

O pensamento mais simples e geral leva a determinadas afirma-ções que em nada revelam das lógicas das mediações e da constituição do social. A internet emancipa ou é totalitária? O Facebook é lugar do narcisismo e da superficialidade, ou de informações e confissões? O Twitter é pura emulação de pensamentos imperfeitos ou ferramenta revolucionária? Ora, eles não são nem uma coisa nem outra, podendo ser uma coisa ou outra a depender da associação em jogo. E tudo de-pende também do momento e do lugar. Se partimos para essências e estruturas perdemos as associações (o social que de fato está se fazen-do) e as redes que aí se formam. Olhar para além das essências pode revelar as particularidades das ações que são irredutíveis a outras no espaço e no tempo. A crítica e o eufemismo, baseados nas essências e nas análises das estruturas nos deixam sempre com a sensação de que a “verdade” não foi dita, de que está sempre faltando algo. Certamente Morozov está errado. E Johnson também!4

A TAR é interessante, pois ela busca identificar justamente as associações entre atores, vistos como mediadores ou intermedi-ários, destacando as redes que se formam com a circulação da ação entre eles, entendendo as estabilizações, ou caixas-pretas que daí

4 Faço referência aqui a um artigo de E. Morozov criticando a perspectiva “centrada na internet” de S. Jonhson. Ver o artigo “Why Social Movements Should Ignore Social Media” no New Republic, disponível em http://www.newrepublic.com/article/112189/social-media-doesnt-always-help-social-movements

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se formam como algo momentâneo. Ela abandona o pensar em ma-croestruturas já que essas só aparecem, se aparecerem, a posteriori. Essência e estrutura não são aqui explicações causais.

Nesse sentido, ela é uma sociologia da mobilidade (já que de fato tudo está a ser refeito, remontado, reagrupado) que busca des-crever e analisar os entrelaçamentos em via de se fazer, a circulação da agência antes das estabilizações, compreendendo os atores (hu-manos e não-humanos) neles mesmos como mônadas, redes, even-tos dinâmicos. Esses eventos, mediações, inscrições e delegações são analisados e descritos em suas controvérsias, momentos polê-micos em que as associações estão se fazendo e que o “social” pode aparecer e mostrar as suas facetas (ética, moral, política, cultural, econômica, científica, tecnológica...).

Em uma área tão dinâmica como a cultura digital e a comuni-cação, como não se interessar por esse tipo de aporte teórico-meto-dológico? A cultura digital é, certamente, um ambiente propício a controvérsias, justamente por sua dinâmica e relação com o rápido de-senvolvimento tecnológico contemporâneo. A TAR pode nos ajudar a compreender as relações que se estabelecem e que criam a sociedade. Por exemplo, o uso das mídias sociais como o Facebook e o Twitter, e dos telefones celulares não mostraria muito das questões culturais, econômicas, comunicacionais e políticas no Brasil? Questões referentes à subjetividade, à política, à educação, ao jornalismo, à privacidade, ao anonimato, ao automatismo e independência dos objetos estão na ordem do dia. Não podemos aprisionar esses objetos em estruturas que matariam exatamente o movimento de suas relações. Esse é o ensina-mento da TAR: estabelecer frames a priori é exatamente abdicar de prestar atenção àquilo que circula, às mediações em andamento, às as-sociações se fazendo, ao social sendo permanentemente reconstruído.

Para os estudos de cibercultura, a TAR pode ajudar a revelar fe-nômenos tão dispares quanto a sociabilidade on-line, a vigilância dos ras-tros digitais deixados em diversas ações na internet, as mídias locativas, o corpo e a subjetividade, as interfaces e interações, a arte, o ciberativismo, o governo eletrônico, os games, a inclusão digital... Precisamos discutir esses assuntos, se posso dizer assim, por dentro, e abrir as caixas-pretas da cultura digital. Partir dessa abordagem realista, relativista e construtivista dos fenômenos sociais pode ser um bom caminho. É importante redefi-

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nir a sociologia como uma ciência do movimento dos objetos (humanos e não-humanos) em circulação e associação. O trabalho é menos de se prender entre uma visão do micro ou do macro, mas de seguir os rastros. E para Latour, “it is possible to remain faithful to the original institutions of social sciences by redefining sociology not as the ‘science of the so-cial’, but as the tracing of associations” (LATOUR, 2005a, p. 4-5).

* * *

Tenho pesquisado a cultura digital em sua nova fase. Temas como espaço urbano inteligente, tecnologias da mobilidade, mídias de geolocalização e internet das coisas me parecem objetos que clamam por uma análise de tipo “ator-rede”. Alguns colegas no Brasil têm se dedicado a essa teoria também em estudos sobre vigilância, monitora-mento de mídias digitais, pós-humano, arte eletrônica... Passamos por um momento bem interessante no país no qual a TAR desperta inte-resse crescente. Isso pode ser comprovado no número cada vez maior de citações nos principais encontros na área de comunicação como a Compós, a Intercom, o Simsocial e a Abciber5, para apontar apenas os mais importantes. Não poderia ser diferente, já que estamos imersos em uma cultura onde dispositivos eletrônicos e redes telemáticas se fazem presentes de forma cada vez mais intensa. O Brasil é um dos países que mais utilizam esses dispositivos, mesmo tendo que enfren-tar enormes desafios de infraestrutura, desigualdade social e proble-mas na democratização do acesso aos novos meios de comunicação.

Desde 2006 tenho discutido a TAR no Lab4046 - Laborató-rio de Pesquisa em Mídia Digital, Redes e Espaço, do Programa de

5 Intercom - http://www.portalintercom.org.br, Compós - http://compos.org.br, Simsocial - http://simsocial2012.gitsufba.net, ABCIBER - http://abciber.com

6 O Lab404 da UFBA (http://gpc.andrelemos.info/blog), o MediaLab na UFRJ (http://me-dialabufrj.wordpress.com), o Labic da UFES (http://www.labic.net), o Sociotramas da PUC - SP (http://sociotramas.wordpress.com) e o grupo Atopos, na USP (http://www.atopos.usp.br), são alguns dos lugares de discussão dessa teoria na área de comunicação no Brasil. Mas mesmo assim, ainda há pouca discussão, em comparação com outras áreas como Sociologia, Educação, Antropologia, Letras, Psicologia, Administração. Uma pesquisa na internet mostra rapidamente a situação. Veja, por exemplo, as teses defendidas na área de Ciências da Informação compiladas no INFORMARE - Caderno de Pós-Graduação em Ciências da Informação. Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, pp. 56-60, jan/jun 2000, disponível em http://www.brapci.ufpr.br/download.php?dd0=15149

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Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea da Facul-dade de Comunicação (PPGCCC) da UFBA, com pesquisadores de ini-ciação científica, mestrandos e doutorandos. Tenho me esforçado em fazer com que os alunos de outras áreas e linhas de pesquisa se interes-sem pelo tema, ministrando disciplinas tanto na graduação quanto na pós-graduação. Recentemente ofereci uma disciplina sobre cartografia de controvérsias para alunos de graduação (explico mais adiante a ex-periência) e começo, nesse segundo semestre de 2013 (no momento em que finalizo este livro), outra, obrigatória, sobre “TAR e teorias da comunicação”, para os alunos do PPGCCC da UFBA. Tenho orientado trabalhos de mestrado, doutorado e conclusão de curso de graduação sobre diversos aspectos da cultura digital sob essa ótica. Criei, em 2012, um grupo de discussão sobre o assunto no Facebook, o CyberANT7.

O objetivo deste livro é suprir uma lacuna como um trabalho de introdução à TAR no campo da comunicação no Brasil, podendo, desta forma, servir de base para futuros trabalhos. Com esta finali-dade, apresento alguns aspectos teóricos e exemplos práticos para ilustrar o tema e discutir a teoria. Exponho aqui temas atuais como as mídias locativas, o carro automático do Google, a internet das coisas, os tablets e e-readers, as revoluções e as redes sociais, en-tre outros. A preocupação foi explorar conjuntamente os principais aspectos teóricos e práticos a partir da analise de fenômenos atuais.

Os capítulos são oferecidos ao leitor com o intuito de esti-mular o pensamento e o uso dessa sociologia das associações em fenômenos da cibercultura. Assim, ele deve ser visto como um livro introdutório à teoria a partir do qual outros pesquisadores podem tirar proveito das discussões aqui feitas e tentar aplicá-las às suas áreas de interesse. O livro tem por base alguns artigos e ensaios que publiquei em livros e jornais acadêmicos nacionais e internacionais entre 2010 e 2013 sobre mídia, comunicação, cibercultura e TAR. Os artigos foram reescritos e reorganizados para este trabalho a fim de manter uma coerência e uma fluidez maior na leitura8.

7 https://www.facebook.com/groups/cyberant/8 Devo ao meu colega, o professor José Carlos Ribeiro, sugestões valiosas sobre a

organização dos capítulos e sobre algumas passagens do texto. Os problemas que persistem são de minha inteira responsabilidade. O livro apresenta capítulos iné-ditos e capítulos que retomam alguns artigos já publicados. São eles: Holanda, A.

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O livro está divido em seis capítulos e termina com uma en-trevista com Bruno Latour, o mais importante nome da TAR. No primeiro capítulo apresento a teoria, sua história e principais concei-tos. Aponto a sua importância para a área da comunicação e, mais especificamente, para os estudos sobre as novas mídias. Apresento (em texto escrito em parceria com André Holanda), sete contribui-ções da TAR para os estudos em comunicação. Centramos nossa análise na discussão sobre o jornalismo e mostramos como a teoria pode ser uma boa forma de compreensão de seus desafios teóricos. O capítulo termina com a perspectiva “pós-TAR” apontada por La-tour (2012a) em seu último livro / projeto: a enquete sobre os “mo-dos de existência”.

O segundo capítulo discorre sobre a cartografia de controvér-sias. Esse tema é descrito como uma forma de aplicação prática da TAR. Ofereço exemplos concretos e sintéticos em casos específicos, como a controvérsia sobre a ação de gandulas em jogos de futebol no Brasil, sobre o carro do Google que dirige sozinho, sobre as or-ganizações vistas como caixas-pretas e sobre o caso do segredo e do vazamento de informações pelo site Wikileaks. O intuito aqui é mostrar como a TAR pode ser aplicada a fenômenos do campo comunicação em geral, e da cibercultura em particular.

O terceiro e quarto capítulos são respectivamente sobre dis-positivos de leitura e mídias sociais. O objetivo do capítulo três é discutir a materialidade da comunicação e as principais mudanças nos dispositivos de leitura. Proponho uma análise particular do caso dos tablets e e-readers. O quarto capítulo traz uma discussão sobre a máxima mcluhaniana de que “a mídia é uma extensão do homem”, exemplificando a partir do uso das mídias sociais durante a revolu-ção conhecida como Primavera Árabe, em 2012. No momento em que finalizo esse livro, estamos assistindo, aqui no Brasil, a exibi-ção da força das mídias sociais (Facebook e Twitter, principalmente, mas também YouTube, blogs, SMS) como agentes mobilizadores das ações que tomam, em junho de 2013, as ruas das principais ci-dades do país.

e Lemos, A. (2013 e 2012) e Lemos (2010b, 2011a, 2011b, 2012a, 2012b, 2012c, 2013a e 2013b).

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O quinto capítulo versa sobre o tema das mídias e os proces-sos de espacialização. A partir de uma abordagem mais filosófica, discuto a dimensão espacial, compreendendo-a como rede e movi-mento. Apresento as novas mídias de geolocalização, conhecidas também como mídias locativas, mostrando suas principais caracte-rísticas. A seguir, faço uma discussão sobre as cidades e os mape-amentos colaborativos (em texto inédito escrito em parceria com Paulo Victor Sousa). O objetivo aqui é mostrar como a TAR pode nos ajudar a compreender o fenômeno atual da emergência das mí-dias de geolocalização e discutir a noção de espaço e os “processos de espacialização” em jogo com as mídias digitais.

O sexto capítulo discute o novo campo de expansão da cultura digital que é a “Internet das Coisas” (IoT). Nesse capítulo, discuto a Ontologia Orientada a Objeto (OOO), proposta por Graham Har-man e mostro como a TAR permite politizar as coisas em meio a processos autônomos em rede. Mostramos como os objetos passam a ter novas funções “infocomunicacionais” e que essas novas fun-ções vão modificar as formas de associação entre humanos e não--humanos gerando questões importantes como vigilância, controle, monitoramento, automatismo de processos e gestão do urbano.

Por fim, fecho o livro com a entrevista feita em agosto de 2012 com Bruno Latour em Salvador (com a participação de André Holanda), quando de sua conferência no seminário internacional “A Vida Secreta dos Objetos”. A entrevista retoma muito do que La-tour (2012a) propõe atualmente em sua “enquete sobre os modos de existência”. Ele discute a relação entre humanos e não-humanos, redimensiona o seu pensamento sobre a questão da potência, fala sobre processos emergentes e sustenta a ideia de que a noção de rede é boa para acesso aos diversos “terrenos” de pesquisa, mas que não ajuda muito a valorizar as associações.9

A minha motivação em publicar esse livro veio de conversas com alunos e colegas da área de comunicação. Muitos me diziam que a teoria é muito interessante, mas que gostariam de ver apli-cações práticas no campo da comunicação. Acredito que esse livro possa ser uma porta de entrada e um estímulo, já que apresentamos

9 Ver Holanda, A; Lemos, A. (2012). A entrevista está publicada aqui em uma ver-são mais curta e em português.

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alguns exemplos que, mesmo sendo ainda preliminares, já apontam para a potencialidade e a utilidade dessa teoria. Longe de mim a ideia de esgotar a difícil e complexa rede de contribuições que cons-titui essa teoria e os seus novos desdobramentos, com os “modos de existência” (LATOUR, 2012a). O objetivo aqui é bem mais modes-to: um exercício de pensar a TAR aplicada a fenômenos de teorias da comunicação, particularmente em sua interface com a cultura di-gital contemporânea.

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1. teoriA Ator-rede (tAr)

There is nothing specific to social order; that there is no social dimension of any sort, no ‘social context’, no distinct domain of reality to which the label ‘social’ or ‘society’ could be attributed…There is no such a thing as a society (…) It is possible to remain faithful to the original institutions of social sciences by redefining sociology not as the ‘science of the social’, but as the tracing of associations.

Bruno Latour (2005a, p. 4-5)

Social is not a place, a thing, a domain, or a kind of stuff but a provisional movement of new associations.

Bruno Latour (2005a, p.238)

Este capítulo tem como objetivo descrever os principais con-ceitos e pressupostos teóricos da Teoria Ator-Rede (TAR). Como podemos depreender das citações acima, a TAR é uma “sociolo-gia das associações e da tradução”, uma “sociologia da mobilidade” que coloca em questão a noção de social e de sociedade, de ator e de rede. O hífen da expressão é uma forma de sair da improdutiva discussão sobre de que lugar falar sobre os fenômenos sociais: da agência micro, individual, ou da estrutura, macro, do contexto, do

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fundo. É também uma questão do tempo, já que “ator-hífen-rede”, aponta para circulação, para o que “faz-fazer” e não para a imobi-lidade de um dos polos da ação. Ator não é sinônimo de indivíduo, assim como rede não é de sociedade. A mobilidade a que faço re-ferência aqui é a de formação das associações, dos movimentos de conexão e desconexão, da comunicação e da não-comunicação das coisas que se estabelecem sempre por três condições móveis de ins-tauração espaço-temporais:

1. Não sabemos exatamente a fonte original da ação; 2. Não sabemos exatamente a direção do vetor da ação e 3. O valor e a qualidade da associação estão sempre a se

construir.

A TAR tem como foco descrever as “trajetórias de instaura-ção”, como vai propor Latour (2012a) a partir de Souriau (2009). O elemento fundamental é a “subsistência” das coisas e não a sua “substância”. Latour sustenta uma visão ontológica que considera os seres como plurais, como trajetórias se realizando enquanto mo-vimentos de alteração em busca de sua manutenção. O ser é visto como entidade que tem a capacidade de “passar por outros”, como multiplicidade de “outros”. Não estamos aqui tratando de um ser pela sua “substância” que seria imóvel, vista sempre por diferentes visões que, a posteriori a “construirão”. O ser aqui não é o da imo-bilidade, mas o da trajetória e da sobrevivência. No seu último livro, que retomaremos no final deste capítulo, Latour (2012a, p. 172-173) coloca este que talvez seja o objetivo maior da sua obra, a hipótese central da TAR, afastando-se, definitivamente, de uma visão cons-trutivista tradicional:

...l’hypothèse centrale de cette enquête: de l’être-en-tant-qu’être on ne peut déduire qu’un seul type d’être dont on parlerait de plusieurs manières, alors que nous allons essayer de définir de combien de façons différentes l’être peut s’altérer, par combien d’autres formes d’altérité il est capable de se faufiler pour continuer à exister. Si la notion classique de catégorie désig-ne différentes façons de parler d’un même être, nous allons rechercher de combien de manières distinctes l’être a de passer par d’autres. Dans les deux cas la multiplicité ne se situe pas au même lieu. Alors qu’il y avait,

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1. Nao sabemos exatamente a fonte original da acao; 2. Nao sabemos exatamente a direcao do vetor da acao e 3. O valor e a qualidade da associacao estao sempre a se construir.
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par exemple pour Aristote, plusieurs façons de parler d’un être, toutes ces manières appartiennent, pour nous, à un seul mode, celui de la connaissance de type référentiel [ref]. L’être, lui, reste immobile, en tant qu’être. Tout change si l’on a le droit d’interroger vraiment l’altération des êtres dans plusieurs clefs en s’autorisant à parler de l’être-en-tant-qu’autre. S’il est exact, comme le dit Tarde que “la différence va en différant”, il y doit bien y avoir plusieurs modes d’êtres qui assurent leur subsistance par un prélève-ment distinct d’altérité; et qu’on ne peut donc rencontrer qu’en créant des occasions d’instauration différentes pour chacun, afin d’apprendre à leur parler dans leur langue.

Todos os seus princípios e conceitos apontam para a dimen-são de fluxo, desvios, movimentos, aberturas, instaurações (que La-tour prefere à ideia de “construtivismo”, como mostraremos adian-te). Em um dos textos fundadores, Michel Callon chama a TAR de “Sociologia da Tradução”, mostrando a sua diferença em relação ao que Latour chama de “Sociologia do Social”. Nesta o social explica as associações. Naquela, o social deve ser desvelado seguindo os atores e suas associações. Para Callon (1999, p. 267):

L’une des hypothèses au coeur da la SAR (…) est de considérer que la société ne constitue pas un cadre à l’intérieur duquel évoluent les acteurs. La société est le résultat toujours provisoire des actions en cours. La SAR se distingue des autres approches constructivistes par le rôle actif qu’elle fait jouer aux entités produites par les sciences et les techniques dans l’explication de la société en train de se faire.1

O momento principal de sua análise é a controvérsia, a po-lêmica, justamente o lugar e o tempo da associação e de formação do social. Vou, em um primeiro momento, situar as origens dessa teoria, explicar os seus principais conceitos, sustentar a tese da mo-bilidade e apontar para as contribuições da TAR no campo da comu-nicação sugerindo sete contribuições para a teoria do jornalismo. No final do capítulo, apresento o que podemos chamar de perspectiva Pós-TAR, proposta por Bruno Latour (2012a).

1 O tradutor da obra “Sociologie de la Traduction”, utilizou no texto de Callon, “So-ciology de l’acteur réseau” (SAT), para traduzir “Actor-Network Theory” (ANT).

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34 A COMUNICAÇÃO DAS COISAS

origens

A Teoria Ator-Rede (TAR) nasceu no âmbito dos Estudos de Ciência e Tecnologia (Science and Tecnology Studies, STS), sendo estabelecida nos anos 1980 por Bruno Latour, Michel Callon, Ma-deleine Akrich, John Law, Wiebe Bijker, entre outros (LATOUR, 2005a, AKRICH, M, CALLON, M., LATOUR, B., 2006, BIJKER E LAW, 1994). Ela é também conhecida como “sociologia da tra-dução” (“sociology of translation”) ou sociologia da inscrição (“en-rolment theory”).

Situada como uma sociologia da ciência e da tecnologia, a TAR se expandiu para uma crítica à sociologia tendo como influ-ências mais reconhecidas o pós-estruturalismo, a “semiótica mate-rial” de Foucault, os conceitos de agenciamento, rede e topografia de Deleuze e Guattari, as ideias de tradução, sujeito, objeto, espaço e tempo de Michel Serres, a etnometodologia de Garfinkel e a socio-logia de Gabriel de Tarde. A sua ontologia se aproxima do trabalho de Alfred Whitehead e, mais recentemente, dos modos de existência de E. Souriau. O termo foi proposto inicialmente por Michel Callon.

A intenção era oferecer uma alternativa aos estudos de ciência e tecnologia desenvolvidos pelas escolas de Columbia (a “sociolo-gia da ciência”, cujo expoente é Robert Merton, marcando bem a externalidade do social e o ethos interno da ciência) e a de Edim-burgo (conhecida como o “Programa Forte da Sociologia do Co-nhecimento Científico”, incluindo aí a tecnologia como objeto de pesquisa e cujos nomes mais importantes são o de Barry Barnes e David Bloor2).

Ambas as escolas dos STS, embora com diferenças impor-tantes, podem ser vistas como estruturais e funcionalistas, com concepções essencialistas da ciência, colocando o social como um fundo nas práticas científicas e tecnológicas, como aspectos extra-científicos (FERREIRA e BAPTISTA, 2009). Mesmo que a escola de Edimburgo tenha sido um rompimento com as ideias de Merton, tentando aproximar a “sociologia da ciência” da “filosofia da ciên-

2 Ver sobre isso os dois textos, o de Bloor (1999) contra Latour e o de Latour (1999a) contra Bloor.

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cia”, o princípio de simetria proposto por essa escola ainda não seria suficiente, como veremos adiante. De inspiração durkheimiana, ela insiste em uma explicação social (agora não mais como campo ex-terno, como pretendia Merton) da ciência.

É contra essa visão que a TAR surge, mostrando como o social se constrói no próprio desenvolvimento das ciências e das técnicas. Não é possível separar questões econômicas, simbólicas, institucio-nais, jurídicas, das ditas “científicas”. O social não é visto como uma substância. Para compreender a ciência e a tecnologia deve-se colocar a ênfase na formação das redes nos laboratórios, permitindo visualizar as inscrições e a construção do fato científico. Diferente-mente das duas escolas anteriores, a ideia de “estrutura social” não é operacional e opta-se por rastrear as associações entre elementos heterogêneos (humanos e não-humanos) onde as traduções se fazem por inscrições as mais diversas. Assim funciona a ciência. Assim funciona o “social”. Será essa constatação que levará a TAR para além do estudo dos laboratórios científicos.

Pesquisadores como Latour, Callon, Akrich começaram a de-fender a ideia de que as inovações científicas e técnicas devem ser pensadas em redes de atores que envolvem questões que não são necessariamente de ordem científica ou técnica. As suas pesquisas começam dentro de laboratórios e centros de pesquisa, fazendo uma antropologia simétrica do mundo moderno (LATOUR, 2004) e se expandem para todas as formas associativas. Aos poucos, ela trans-forma-se em uma ontologia dos objetos e da vida social podendo ser aplicada a qualquer associação, a qualquer ação ou controvérsia, fornecendo elementos para escapar das formas hegemônicas de ex-plicação do social que se constroem a partir de concepções “prescri-tivas” do espaço e do tempo (MURDOCH, 1998).

Aqui, o conceito de rede será o conceito-chave para compre-ender o movimento. Rede é o movimento da associação, do social em formação. Essa máxima será ampliada com a ideia de “propo-sição” e de modos de existência (LATOUR, 2012a). Individualizar a ação, ou conformar um espaço micro, também não ajuda. Ambos, micro e macro, individual ou coletivo são ficções. O ator é rede, a associação é rede e a inscrição atravessa as categorias posicionadas no micro ou no macro. A rede não é conexão, mas composição. Mais

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do que se posicionar em um lugar e tempo precisos, o melhor, sugere a TAR, é dirigir o olhar ao rastreamento das agências em circulação, ou seja, olhar para as redes. Espaço e tempo passam a fazer parte do que se constitui na circulação. Mais do que explicar os fenômenos tendo como causa a sociedade ou o social, o social será aquilo que emerge das associações, das redes.

Portanto, a TAR vai se opor à visão de que os fenômenos técnicos e científicos podem ter uma “explicação social”, já que fornecer esse tipo de explicação significaria que esses fenômenos são construídos por forças externas, situadas na “sociedade” e que a ciência seria outro domínio, outra “categoria”. Por outro lado, in-sistindo na noção de inscrição (fabricação de fatos por instrumentos em um ambiente artificial que é o laboratório) e na proliferação de rastros, Callon e Latour mostram como os cientistas no laboratório constroem, produzem os fatos científicos que vão também construir os artefatos técnicos. Assim, eles irão aproximar as palavras e as coisas, como afirma Callon (1999, p. 269):

Plutôt que de poser une séparation entre les mots et les choses, la SAR3 place au centre de l’analyse la prolifération de traces et d’inscriptions qui sont produites dans le laboratoire et qui, enchainées les unes aux autres, articulent les mots et les choses. L’analyse de cette articulation conduit aux deux concepts complémentaires de réseau et de circulation.

A partir da insatisfação das respostas dadas ao fato científico e aos artefatos tecnológicos, a TAR vai construir uma alternativa às ciências sociais que pensam e instituem essa separação (LATOUR, 2012a). Mais do que explicar os fenômenos tendo como causa a sociedade ou o social, a teoria vai colocá-los como consequência de circulação em redes sociotécnicas complexas, não deixando nenhum campo estanque ou separado como uma categoria. É o que afirma Callon (1999, p. 269):

Le réseau sociotechnique auquel appartient l’énoncé: ‘le trou de la couche d’ozone s’agrandit’ inclut tous les laboratoires travaillant directement ou indirectement sur le sujet, les mouvements écologistes, les gouvernements

3 O tradutor do livro optou por chamar a TAR de SAR (Sociologia do Ator-Rede).

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qui se rencontrent lors des sommets internationaux, les industries chimiques concernées et les Parlement qui promulguent les lois, mais également et surtout les substances chimiques et les réactions qu’elles produisent ainsi que les couches atmosphériques concernées.

Dessa forma, o princípio de simetria proposto pela escola de Edimburgo é ampliado por Callon (1986a, 1986b) como uma “si-metria extensiva”, e por Latour (2005a) como uma “ontologia pla-na”, rompendo a separação entre sujeito e objeto, natureza e cultura, ciência e sociedade. Eles sustentam um princípio de simetria ge-neralizada cuja rede, da expressão ator-rede é “um conglomerado de agenciamentos” (LATOUR, 2005a, p. 44-45 apud FERREIRA e BAPTISTA, 1999). A partir disso, Latour, Callon, Law, Bijker e Akrich começam a mostrar de que forma a perspectiva do social como externalidade é também um pressuposto nos diversos estudos de sociologia, limitando-os e levando-os a resultados que não con-dizem com as associações que de fato se desenvolvem e criam o so-cial. A TAR expande-se então para além do domínio tecnocientífico, e passa a ser uma crítica à sociologia de uma forma mais ampla, uma crítica ao que Latour chama de “sociologia do social”.

A questão principal proposta pela TAR às ciências sociais como um todo é, a meu ver, dedicar atenção à dinâmica da formação das associações, aos movimentos dos agenciamentos, à distribuição da ação entre atores diversos, humanos e não-humanos, a partir de uma simetria generalizada. Ela é uma sociologia da mobilidade. É nesse sentido, ao mesmo tempo crítico e móvel, que Latour propõe ver a TAR como uma “associologia”, já que dirige a atenção ao que se está construindo como híbridos por meio de associações. Nesse movimento, controverso na maioria dos casos (vamos ver isso com detalhes no próximo capítulo), pode-se compreender a ciência e as demais formas associativas que compõem o social.

Os seus pressupostos estão relacionados aos trabalhos de Mi-chel Serres, Gabriel de Tarde, Isabel Stengers, Algirdas Greimas, Alfred Whitehead, Étienne Souriau, Marshall McLuhan, Harold Garfinkel, entre os mais importantes. Para Latour, um pensamento sociológico menos sujeito a regras gerais, a estruturas, e mais pró-ximo de adaptações e variações não hierárquicas, que sustentasse

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que “toda coisa é social” (Tarde) foi prescindido por outro que afir-ma que o “social é uma coisa” (Durkheim). Esse embate Tarde x Durkheim parece trazer um frescor às ciências sociais e pode ilumi-nar os estudos sobre as novas mídias, a comunicação, o espaço e as relações sociais, como veremos mais adiante. Para Crawford (2004 apud RITZER, 2004, p. 1),

The terms actor and network are linked in an effort to bypass the distinction between agency and structure, a core preoccupation within sociology (as well as other disciplines). This distinction is neither useful nor necessary for ANT theorists, as macro level phenomena are conceived as networks that become more extensive and stabilized. Networks are processual, built activities, performed by the actants out of which they are composed. Each node and link is semiotically derived, making networks local, variable, and contingent.

Nas visões de Bingham e Thrift (2003), a TAR teria três ori-gens. A primeira é, como vimos, a sociologia da ciência, tratando as ciências naturais e sociais de forma mais simétrica. A segunda é a cultura intelectual francesa e sua epistemologia preocupada com o status social da ciência. Para os autores, Latour vai fazer uma peque-na rebelião, produzindo uma linguagem que tensiona essa epistemo-logia com uma empiria qualificada. E, por fim, a terceira fonte de inspiração seria o trabalho idiossincrático do filósofo Michel Serres (1982, 1994) de onde Latour teria herdado algumas ideias e atitu-des fundamentais para compreender a TAR. Primeiro, uma atitude antropológico-filosófica (tendo em vista que essa vertente do traba-lho de Serres é influenciada por antropólogos como René Girard e Geogers Dumezil); depois, a ideia de espaço e tempo como relação e movimento (veremos isso no capítulo cinco) e, por fim, a descon-fiança em relação às grandes estruturas e categorias. Para Bingham e Thrift (2003, p. 285):

What then, does actor-network theory consist of? It’s ‘essence’ is an ‘infra--physical’ language for mapping out the traces of networks through an an-thropology of the figures that set them going and keep them at work. Each of these terms requires further characterization. All ‘networks‘ — the term is chosen carefully to produce an image of the constant back and forth motion

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of a circulating entity — require a certain degree of management to produce some kind of stable form. These ‘circulations’ require certain activities to be delegated to ‘recruits’; they require a certain degree of faithfulness to themselves (displacement with deformation); they require a certain notion of what is taken to be real (fact) and what is taken to be unreal (fiction); and so on. These are the minimum conditions of their existence.

Aos poucos, a TAR transforma-se em uma ontologia dos ob-jetos e da vida social podendo ser aplicada a qualquer associação, a qualquer ação ou controvérsias, fornecendo elementos para escapar das formas hegemônicas de explicação do social que se constroem a partir da “sociologia do social”. A crítica aos sociólogos da ciência expande-se para uma crítica da “grande sociologia”. Callon (1999, p.146) aponta os limites dessa sociologia e mostra como a insistên-cia em estruturas inibe a visibilidade dos actantes, das redes e da distribuição da ação:

Ce que les sociologues ont du mal à faire - traiter les différentes catégories instituées de la pratique sans les doter a priori de propriétés spécifiques - les acteurs le réalisent quotidiennement. Ils ne connaissent que des gradients de résistance. (…) Les sociologues risquent de ne pas comprendre comment le social se construit s’ils se montrent plus timorés que certains acteurs et s’ils prolongent dans l’avenir les rapports de force du passé en imputant à cer-taines pratiques des logiques qui leur seraient propre au lieu de reconnaître que, à tout moment, ces logiques peuvent être interrompues ou déviées par une simple modification des rapports de forces.

Para Alcadipani e Tureta (2009), vemos se construir nos anos 1990 a TAR como uma perspectiva de análise que não parte de su-posições previamente definidas sobre os fatores comunicacionais, sociais, econômicos e técnicos, pois um de seus pressupostos funda-mentais é que não há qualquer tipo de definição rígida que possa ser aplicada em todas as situações. Se olharmos para causas genéricas e globais (macroatores que nada mais são do que “atores sentados em suas caixas-pretas” - LATOUR, 2005a), perdemos a distribuição da agência e perdemos a possibilidade de reagrupar o social. Como afirma Latour (1994b, p. 60)

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What is a society, the beginning of all social explanations, the given of social science? If my pragmatogony is even vaguely suggestive, socie-ty cannot be part of our final vocabulary, since the term had itself to be made, “socially constructed” as the misleading expression goes. But in the Durkheimian interpretation, a society is final indeed: it precedes individual action, lasts very much longer than any interaction does, dominates our lives - is that in which we are born, live, and die. It is externalized, reified, more real than ourselves, hence the origin of all religion and sacred ritu-al, which, for Durkheim are nothing but the return, through figuration and myth, of what is transcendent to individual interactions.

And yet society itself is constructed only through such quotidian interac-tions. However advanced, differentiated, and disciplined society becomes, we still repair the social fabric out of our own, immanent knowledge and methods. Durkheim may be right, but so is Garfinkel. Perhaps the solution, as according to the reproductive principle of my genealogy, is to look for nonhumans. (…) Society exists, in other words, but is not socially construc-ted. Nonhuman proliferate bellow the bottom line of social theory.

Ou ainda, em outro texto (Latour, 1992, p. 239):

Drawing a side conclusion in passing, we can call sociologism the claim that, given the competence, pre-inscription, and circumscription of human users and authors, you can read out the scripts nonhuman actors have to play; and technologism the symmetric claim that, given the competence and pre-inscription of nonhuman actors, you can easily read out and deduce the behavior prescribed to authors and users. From now on, these two absurdi-ties will, I hope, disappear from the scene, because the actors at any point may be human or nonhuman, and the displacement (or translation, or trans-cription) makes impossible the easy reading out of one repertoire and into the next. The bizarre idea that society might be made up of human relations is a mirror image of the other no less bizarre idea that techniques might be made up of nonhuman relations. We deal with characters, delegates, repre-sentatives, lieutenants (from the French ‘‘lieu’’ plus ‘‘tenant,’’ i.e., holding the place of, for, someone else)—some figurative, others nonfigurative; some human, others nonhuman; some competent, others incompetent. Do you want to cut through this rich diversity of delegates and artificially cre-ate two heaps of refuse, ‘‘society’’ on one side and ‘‘technology’’ on the other? That is your privilege, but I have a less bungled task in mind.

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Callon (1980, 1986a, 1986b, 1987, 1991, 1999, 2008) mostra muito bem essa posição ao argumentar que o objetivo é abandonar os conceitos tradicionais da sociologia, os quais são fundamentados em categorias sociais estabelecidas de antemão e pela rígida divisão entre social e natural. As entidades são, portanto, analisadas sem qualquer su-posição sobre o que e/ou quem são. A “realidade” não possui um status estável e definitivo. Para Latour (2005a) ela é um enunciado difícil de derrubar, sendo composta por redes de matérias heterogêneas (humanos e não-humanos) que estão reunidas momentânea e localmente. O real é um enunciado estabilizado, uma caixa-preta cujo esforço de abertura é gigantesco, mas que deve ser feito permanentemente.

A questão é assim topológica, ou, melhor dizendo, cronotópica, tendo como base um mapa plano de partida. Não se trata de enqua-drar um fenômeno no local ou no global, mas de ver as distribuições da ação que se fazem por “localizadores, articuladores, plug-ins e immutable mobiles” (LATOUR, 2005a), como veremos mais adiante no capítulo sobre o espaço. Deve-se evitar dar “explicações sociais” às relações e tentar seguir o social nas associações que se fazem em determinado momento e lugar. Como explica Latour (2000, p. 39):

Não tentaremos analisar os produtos finais, um computador, uma usina nu-clear, uma teoria cosmológica, a forma de uma dupla hélice, uma caixa de pílulas anticoncepcionais, um modelo econômico; em vez disso, segui-remos os passos de cientistas e engenheiros nos momentos e nos lugares nos quais planejam uma usina nuclear, desfazem uma teoria cosmológica, modificam a estrutura de um hormônio para a contracepção ou desagregam os números usados num novo modelo econômico (...).

Estudos sobre os laboratórios médicos, sobre Pasteur, sobre empresas de energia elétrica, sobre carros e aviões, sobre trens au-tomáticos, sobre anemia, sobre iluminação pública, sobre televisão e controle remotos, sobre energia nuclear, biodiversidade, organi-zações, entre outros, mostram concretamente como realizar estudos empíricos a partir da TAR. Hoje ela é aplicada a diversos campos do saber e está mesmo em expansão4.

4 Para mais exemplo e bibliografia sobre este aspecto, ver o site de Law, com um re-positório sobre o tema em http://www.lancs.ac.uk/fass/centres/css/ant/antres.htm e o site de Latour com seus livros, entrevistas, artigos, projetos em http://www.bruno-latour.fr

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conceitos e pressupostos teóricos

Apresento a seguir, de forma sucinta, os principais conceitos e pressupostos da teoria. O objetivo é fornecer ao leitor uma gramá-tica para a compreensão da TAR. Escolhi detalhar aqui as noções de: actante, intermediário, rede, tradução, mediação e delegação, ins-crição, princípio de simetria ou ontologia plana, rede, controvérsia, caixa-preta, essência, preposição e espaço-tempo. Elas serão apro-fundadas ao longo dos capítulos que se seguem a partir de estudos específicos.

Segundo Latour (1996, ver MELO, 2007), a TAR foi cria-da a partir de três eixos fundamentais: a) definição das entidades (actantes) que criam redes sociotécnicas heterogêneas (por media-ção, tradução, delegação), destacando a simetria entre os elementos humanos e não-humanos; b) definição das próprias redes, em sua dinâmica particular, pelas cadeias de tradução (inscrição, ontologia plana, essência, preposição) e; c) por um quadro metodológico para registrar tal construção - a controvérsia. Vejamos seus principais conceitos.

Actantes

Termo emprestado da semiótica greimasiana e que significa tudo aquilo que gera uma ação, que produz movimento e diferença, podendo ser humano ou não-humano5. É, na realidade, o ator da expressão “ator-rede”. Ele é o mediador, o articulador que fará a conexão e montará a rede nele mesmo e fora dele em associação com outros. Ele é que “faz fazer”. E actante é tanto o governante, o cientista, o laboratório, a substância química, os gráficos e tabelas… Ou seja, humanos e não-humanos em um mesmo terreno, sem hie-rarquias definidas a priori. Para Capdevila e Brown (1999, p. 40),

We may conceive of only basic formal units of substance (actants) which enter into relationships (networks) by way of encounters (trial of force)

5 Termo criado por Lucien Tesnière e usado na semiótica para designar o partici-pante (pessoa, animal ou coisa) em uma narrativa literária. Para Greimas (1974), o actante é quem ou o que realiza a ação.

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wherein questions regarding the powers and identities of these selfsame units come to be temporarily settled by reference to the overall compound nexus of relationships within which they are now embedded (the translation and subsequent enrollment of actants).

Como a TAR não parte do entendimento do social como uma coisa que explicaria os fenômenos de agregação e associação, mas justamente como aquilo que emerge desses conjuntos, o principal objetivo é revelar as redes de mediadores em uma dada situação. Esses mediadores são os actantes. Eles são como mônadas, o todo e a unidade, singularidade e totalidade, caixas-pretas que podem ser abertas para revelarem as suas redes intrínsecas.

Não se trata, de fato, nem de individualidade, nem de cole-tividades. As variações de escala são ilusórias, como veremos no capítulo sobre espaço e mídias de geolocalização. Não há para a TAR nem fenômenos coletivos, nem fenômenos individualizados, mas apenas extensão e compressão das ações. Os fenômenos cole-tivos e individuais nascem dessa visão ilusória das escalas. Escalas aparecem pela inscrição em instrumentos de coleta (“coletivo”) em diversos dispositivos (fotos, vídeos, mapas, sítios, dados, discursos). Como afirma Matias (2013):

Latour takes this argument to an even more difficult place (as he puts it): If there exist no collective phenomena, there exist no ‘individual’ phenomena either. How is this similar to the illusion of zoom? An individual, he says, “is not an atom but extends as far as all the entities that it perceives and with which it is in relation.”

O princípio monadológico permite escapar dessa obrigação de escolher entre uma posição de análise micro ou macro, a partir da estrutura ou da microrrelacão social ou agência. Vejam que na entrevista, no último capítulo deste livro, Latour explica que essa noção é mais importante do que a de emergência, que implicaria a passagem para estruturas mais complexas a partir de estruturas simples. Como afirma Latour (2012b), não há estruturas simples e o conceito de mônada é preferível ao de “emergência”. Pensar em co-letivo, estrutura ou fenômenos individuais é uma maneira de perder a circulação da ação.

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A proposta é consequentemente radical: não há fenômenos coletivos, nem individuais, só há circulação de ação e ilusão (de ma-cro e micro, de coletivo e individual) produzida pelos instrumentos de coleta. São eles que geram esses fenômenos. Como afirma Ma-tias (2013), para Latour, “there is no upper level of collective expe-rience or a lower level of individual experience. Instead, he argues, we aggregate experiences into something that we call collective experience.”

Como para Gabriel de Tarde (1999, 1999a), as mônadas são formas de individualização do universo das relações. O princípio monadológico vai permitir a teoria revelar as associações sem partir de causas pré-definidas, sem fixar a direção dessa ação e sem esti-pular de antemão a qualidade das negociações. Ele permite evitar escalas ou a temporalidade linear, inibindo visões essencialistas de conjunto e de indivíduo. Tudo se dará na produção localizada por coletas específicas e influências disseminadas em uma rede de en-cadeamentos específicos. O mapa não é o mundo, e cada um tem o seu modo de veracidade e independência em relação ao outro. Para Matias (2013):

Why should researchers focus on monads? Everytime we invent a new te-chnology, we produce another collecting phenomenon. Instead of seeing a “collective level” and a “individual level” we should look at the different collecting devices on their own terms. The trading desk reflects a collecting phenomena that we call Finance rather than any generic notion of “society”. The meaning of “collective phenomena” is the superposition and overlap-ping of all the collecting apparatus. The digital allows us to follow these overlapping phenomena. For the first time, we have the direct experience of the monadological principle: the more you extend the network of relations, the more you individualize the grasping entities...

Cada actante é sempre resultado de outras mediações e cada nova associação age também como um actante (CALLON e LAW, 1986). A diferença dessa abordagem em relação a outras francamen-te construtivistas é, definitivamente, a de não colocar o humano em lugar de destaque, prestando atenção na circulação da agência. Ac-tantes (humanos e não-humanos) atuam sem hierarquias previamen-te determinadas e o objetivo é descrever e analisar o social a partir

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de seus rastros. O que interessa é a ação já que “essence is existen-ce and existence is action” (LATOUR, 1994b, p.33). E quem age é o actante.

No entanto, a ação nunca é propriedade de um actante, mas de uma rede. A origem e direção da ação nunca são facilmente identifica-das. Objetos (podendo ser actantes ou intermediários, já que tudo de-pende da ação) se deslocam no espaço levando uma rede estabilizada: um computador, um carro, um avião. Mas, de fato, eles são redes e não indivíduos técnicos; parecem estáveis - immutable - mas são redes de associações dinâmicas - mobile. O tempo e o espaço perdem dimen-sões de reservatório, de escala e de sucessão cronológica: não é possível identificar a fonte da ação ou sua direção de forma simples. Conse-quentemente a escala não ajuda, as dimensões de micro e macro não ajudam, o indivíduo não ajuda, o coletivo não ajuda, a transcendência não ajuda... na localização e na identificação do sentido da ação. Ela é sempre distribuída, como um desvio. É deslocamento (mediação, tradu-ção, delegação, inscrição), “shifting” (LATOUR, 1994b, p, 39).

A articulação está no mundo, diz Latour na entrevista que fe-cha esse livro, e não em um ou outro sujeito humano. Ele reforça a tese no seu “Enquete sobre os modos de existência”. Ele dizia já em 1994 (LATOUR, 1994b, p. 41):

Humans are no longer by themselves. Our delegation of action to other actants that now share our human existence is so far progressed that a pro-gram of antifetishism could only lead us to an on nonhuman world, a world before the mediation of artifacts, a world of baboons.

E reafirma em 2012 (LATOUR, 2012a, p. 164):

Balzac est bien l’auteur de ses romans, mais il écrit souvent, et l’on est tenté de le croire, qu’il a été “emporté par ses personnages” qui l’ont forcé à les coucher sur le papier. Il y a bien là toujours le redoublement du faire faire, mais cette fois-ci la flèche peut aller dans les deux sens : du constructeur au construit ou, à l’inverse, du produit au producteur, de la création au créateur. Comme l’aiguille d’une boussole contrariée par une masse de fer, le vecteur oscille sans cesse car rien ne nous oblige à croire Balzac : il est peut-être victime d’une illusion ou se rend coupable d’un gros mensonge en répétant le cliché usé de la “Muse inspiratrice des poètes”.

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C’est dans les marionnettes et les marionnettistes qu’on retrouve le plus claire-ment cette oscillation poussée au paroxysme puisqu’aucun doute n’est permis sur la domination que le manipulateur exerce sur ce qu’il manipule : oui, mais il se trouve que la main justement possède une telle autonomie que l’on n’est jamais très sûr de ce que la marionnette “fait faire” à son marionnettiste, lequel n’en est plus trop sûr non plus... (...) Même incertitude au laboratoire : il faut du temps pour que les collègues finissent par décider si l’expérience artificielle du laboratoire a donné assez d’autonomie aux faits pour que ceux-ci puissent exister “par eux-mêmes” grâce à l’excellent travail de l’expérimentateur. (...) Comment ne pas osciller toujours entre les deux positions?

Próxima da etnometodologia (GARFINKEL,1967), essa for-ma de ver o social parte do princípio de que os atores sabem o que fazem e que o analista deve aprender com eles, de que não se deve calar os actantes em prol de uma estrutura ou de um sistema global tomado como partida da análise. A TAR faz assim uma crítica aos sociólogos que agem como legisladores (na expressão de Bauman) já que o desafio é aprender com os atores sem impor a eles uma defi-nição deles mesmos ou do seus mundos. Esse aprendizado passa por uma valorização dos actantes e pela boa descrição das ações e dos seus rastros. O social aparece nesse movimento6. Assim, o hífen da expressão “ator-rede” é uma forma de escrever a tensão e o debate entre estrutura (contexto, global, coletivo) e agência (particular, lo-cal, individual) (LATOUR, 1999b, p. 16).

Intermediários

Intermediário é uma noção complementar a de actante. Ele não media, não produz diferença, apenas transporta sem modificar. Ele transporta (leva de um lugar a outro no espaço), mas não trans-forma, immutable mobile. Ele circula sem mexer nem no espaço, nem no tempo. Ele não é um actante, mas pode vir a ser. Vamos

6 Ora, normalmente, quando se quer desmerecer um trabalho acadêmico, a primeira crítica é de que ele é apenas descritivo, justamente por que se parte de estrutu-ras explicativas a priori que fazem os actantes “falarem” conforme esse sistema prévio. Mas, na realidade, a crítica, muitas vezes sobre a deficiência do trabalho é pertinente justamente quando este não é descritivo o bastante. A descrição é a revelação do movimento. A hipótese generalista é tomada como “crítica” ou “fundamentalismo” de antemão.

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dar exemplos mais adiante no capítulo sobre as controvérsias, mas podemos dizer que tudo que está no fundo, transportando sem modi-ficar, é um intermediário.

Veja que a noção de intermediário, e a diferença em relação ao mediador (actante) são sempre problemáticas, já que não existe transporte que não implique em alguma transformação. Latour afir-ma isto na entrevista no último capítulo. Entendemos que o interme-diário faz parte da ação, mas que ele fica em um fundo. O que ele “transporta” não faz outros fazerem coisas. Ele não é, portanto, um mediador, já que não mobiliza outros. O actante é o ator principal, ele está na frente da cena, se inscreve em outros e faz a ação aconte-cer. Continuando na metáfora teatral, em um teatro, os intermediá-rios estão lá quando entramos e nos sentamos. Mas a peça só começa quando mediadores tomam a cena. A questão é que como não há essência, um pode virar o outro, a depender de como se constitui a rede, as associações7.

O estudo das associações deve identificar claramente e sepa-rar os mediadores dos intermediários, sabendo que o intermediário é um intermediário apenas em um determinado contexto de subsis-tência, e não em substância. Essa perspectiva, que deixa de lado as noções de essência (estrutura ou agência próprias do objeto) como pensamento previamente explicativo da ação, nos permite seguir ac-tantes e intermediários em sua condição atual (a rede) e observar a distribuição da ação antes de enquadrá-las em grande “frames” como “razão”, “poder”, “sujeito”, “objeto”.

Esses elementos podem surgir e efetivamente surgem nas me-diações, mas não são necessariamente as suas causas. Um interme-diário certamente foi um actante e provavelmente será de novo no futuro ao romper a sua estabilidade. Eles, actantes e intermediários, são sempre “eventos” (HENNION e GOMART, 1999). Notem que qualquer transformação sem modificação é sempre limitada no tem-po e no espaço. Para que um objeto se caracterize como intermedi-ário é preciso que o evento cesse. Isso significa dizer que em outro momento ele foi um actante ou poderá ser no futuro.

7 Essa discussão é uma constante nos debates sobre a TAR. Devo agradecer aqui a André Holanda e a Leonardo Pastor que me chamaram a atenção para a necessi-dade de explicitar melhor as suas diferenças.

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Tradução

Tradução, ou mediação, é um conceito que remete para co-municação e transformações dos actantes, bem como para a cons-tituição das redes. É a ação principal e, por isso, a TAR é chamada também de “sociologia da tradução”. Tudo é mediação. O tempo, o espaço, ou o ser, como vimos no início deste capítulo. O conceito vem dos trabalhos de Michel Serres e significa relações que impli-cam sempre em transformação, comunicação, comunidade, no sen-tido principal dessa palavra, como causa, como o comum, a política. Ela não pode ser reduzida, nem à interação causal dos objetos, nem às intenções autônomas dos sujeitos. Ou há mediação, ou não há nada. Analisando o uso de uma arma, em um dos seus textos mais importantes, Latour (1994b, p. 33) explica:

This translation is wholly symmetrical. You are different with a gun in hand; the gun is different with you holding it. You are another subject be-cause you hold the gun; the gun is another object because it has entered into a relationship with you. The gun is no longer the gun-in-the-armory or the gun-in-the-drawer or the gun-in-the-pocket, but the gun-in-your-hand, aimed at someone who is screaming. What is true of the subject, of the gun-man, is as true of the object, of the gun that is held. A good citizen becomes a criminal, a bad guy becomes a worse guy; a silent gun becomes a fired gun, a new gun becomes a used gun, a sporting gun becomes a weapon. The twin mistake of the materialists and the sociologists is to start with essences, those of subjects or those of objects. That starting point renders impossible our measurement of the mediating role of techniques. Neither subject nor object (nor their goals) is fixed.

Tradução, mediação, comunicação é toda ação que um actan-te faz a outro, implicando aí estratégias e interesses próprios na bus-ca da estabilização futura da rede ou da resolução da estratégia ou do objetivo. Ela é uma operação semiótica entre actantes modificando ambos a partir de interesses específicos. Para Callon (1980, p. 211):

Considered from a very general point of view, this notion postulates the existence of a single field of significations, concerns and interests, the ex-pression of a shared desire to arrive at the same result....Translation in-volves creating convergences and homologies by relating things that were previously different.

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Em entrevista, Callon (2008, p.4) explica a noção de tradu-ção colocando ênfase na dimensão topológica (relação “lógica” entre os pontos de um mapa), definindo-a como movimento, como circulação:

Trata-se de uma noção tanto simples quanto fundamental, pois me parece que não podemos descrever a ação, partindo de fontes de origem que são pontos, estruturas ou agentes, mas sim, através da circulação de um certo número de entidades que são mais importantes que os pontos ou as estruturas. Na cir-culação, as relações são mais interessantes que os pontos relacionados, mas essas relações não se referem ao sentido formal do termo, mas sim, às coisas que circulam. Agora se entende que a idéia de tradução se associa à idéia de circulação. Essa idéia não havia sido expressa assim de forma tão nítida no texto sobre a sociologia da tradução, mas, no texto das redes tecno-econômi-cas (Réseaux technico-économique et irréversibilités), mencionei de modo mais claro a necessidade de descrever o que circula em uma rede.Digamos que não está em debate a capacidade de agenciamento dos seres hu-manos. A questão consiste em saber quais são os agenciamentos que existem e que são capazes de fazer, de pensar e de dizer, a partir do momento em que se introduz nestes agenciamentos, não só o corpo humano mas os procedi-mentos, os textos, as materialidades, as técnicas, os conhecimentos abstratos e os formais, etc. Neste sentido temos agenciamentos muito diferentes uns dos outros e que são capazes de fazer coisas igualmente diferentes....a partir da noção de tradução, consideramos que uma agência sem a pas-sagem por outra coisa (que pode ser um não-humano, uma técnica, etc.) não é uma agência humana. A agência limitada a um ser humano não alude a um ser humano. O ser humano está incorporado em operações de tradução, quero dizer, um ser humano se encontra sempre incluído em uma dinâmica de agenciamento.

Já a noção de “delegação” é parte da mediação, sendo, de fato, a passagem de responsabilidades de um actante a outro. Delegamos ações éticas, morais, funcionais a máquinas, leis, símbolos o tempo todo, como podemos ver nos exemplos do quebra-molas, da porta automática, ou do revólver citados por Latour em seus textos (LA-TOUR 1992, 1994b). Deixamos que não-humanos façam coisas por nós e fazemos com que humanos façam coisas para não-humanos. Há vários exemplos. Pense no uso do “Captcha” (aquelas letras que temos que colocar quando tentamos acessar um site) em um sistema informatizado. O humano é convocado a olhar a imagem e reprodu-

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zir as letras para que o circuito eletrônico se feche e permita o acesso de uma máquina a outra máquina. Para Latour (1992, p. 229):

I will define this transformation of a major effort into a minor one by the words displacement or translation or delegation or shifting; I will say that we have delegated (or translated or displaced or shifted down) to the hinge the work of reversibly solving the wall-hole dilemma. Calling on Robert Fox, I do not have to do this work nor even think about it; it was delegated by the carpenter to a character, the hinge, which I will call a nonhuman.

Tonelli (2012) explica essa dimensão para Latour:

A translação, assim vista, pode ocorrer: (i) quando alguém encontra e se associa a outras pessoas que querem a mesma coisa que ela: eu quero o que você quer; (ii) quando certa mobilização desperta interesses comuns em outras pessoas: eu quero; por que você não quer? (iii) quando, às vezes, para ser necessário alcançar um objetivo comum, alguém tem que ceder e desviar-se um pouco do seu objetivo inicial: se você desviasse um pouqui-nho... (iv) quando há remanejamento de todos os interesses e objetivos ini-ciais: deslocar objetivos; inventar novos objetivos; inventar novos grupos; tornar invisível o desvio; vencer as provas de atribuição (rejeitando a ten-dência dos historiadores ou, mesmo, dos próprios atores, em atribuir maior ou menor responsabilidade pela invenção a um ou outro ator) e (v) quando todos os agentes passam a se mobilizar em torno de uma ação coletiva de modo voluntário, contribuindo para a propagação de uma tese no tempo e no espaço: tornar-se indispensável.

Inscrição

É uma forma de mediação e de tradução no qual a associação se define a partir de “scripts”, de escritas em dispositivos os mais diversos (uma máquina, um gráfico, uma lei, um mapa…) fazendo com que a ação seja sempre fruto de hibridismo e de produção de resultados (de ficções) e não de “descobertas” de leis latentes. Toda produção de verdade é uma inscrição de alguma forma, produção de um rastro. Assim sendo, tudo é construído e produzido seja por instrumentos técnicos, por especialistas, por textos. O real (enun-ciado estabilizado, difícil de derrubar) se produz por inscrições. É importante sair da armadilha da crítica (a mediação retira do mundo

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a realidade) e dos fundamentalistas (os fatos não devem ser interpre-tados) que, por um lado ou por outro, tomam a realidade ou a irre-alidade de algo pela construção “artificiosa”. Como mostra Latour (2012a, p. 169):

Lorsqu’on pose la question : “Est-ce vrai ou bien est-ce une construction?”, on implique d’ordinaire : “Est-ce que ça existe indépendamment de toute représentation?” ou est-ce, au contraire, “le produit plus ou moins arbitrai-re de l’imagination d’un créateur tout puissant qui aurait tiré tout cela de son propre fond?”. Le redoublement de l’action? Perdu. L’oscillation sur la direction du vecteur? Égarée. Le jugement sur la qualité? Il n’est plus question de le repérer puisque toutes les constructions se valent. Au bout du compte, le vocable de “constructivisme” ne recueille même pas ce que le plus petit artisan, le plus modeste architecte aurait au moins reconnu dans ses propres réalisations : qu’il existe une énorme différence entre bien et mal faire ! Avec un tel emploi du constructivisme, on comprend que les fondamentalistes soient devenus fous de désir pour une réalité que rien ni personne n’aurait construite.

Essa é uma noção muito importante para compreender a cons-tituição da ciência, da técnica, da “Vida de Laboratório” (LATOUR e WOOLGAR, 1997) e do social. A inscrição é de fato a produção de ficção, a produção dos fatos científicos (e podemos expandir para o fato jornalístico, como veremos mais adiante ainda neste capítulo) em diversos dispositivos de leitura e de escrita. Sem eles não há “realidade”. Assim, para se diferenciar, Latour propõe substituir o termo “construtivismo” por “instauração”. A inscrição é a instaura-ção da realidade. Ela é o “script” que está por trás de cada categoria de análise (que Latour chama agora de “pre-posição”). O trabalho para revelar as associações e a verdade de um “fato” (seja ele jor-nalístico, científico, econômico, cultural...) é o da “descrição” ou da “des-scriptação”, abrindo as caixas pretas da instauração. Para Latour (2012a, p. 170):

Comment transvaser dans un autre mot les trois aspects essentiels dont je viens de dresser la liste et que le mot “construction” semble ne plus pouvoir contenir ? Quand on veut modifier les connotations d’un terme, mieux vaut en changer. C’est de nouveau à Souriau que j’ai recours : empruntons-lui le beau terme d’instauration.

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L’artiste dit Souriau, n’est jamais le créateur, mais toujours l’instaurateur d’une œuvre qui vient à lui mais qui, sans lui, ne procèderait jamais vers l’existence. S’il y a une question que ne se pose jamais le sculpteur, c’est la question cri-tique : “Est-ce moi ou est-ce la statue qui suis, qui est l’auteur de la statue?”.

De acordo com Alcadipani e Peci (2006, apud TONELLI, 2012) o que diferencia a TAR do construtivismo social é a con-sideração do importante papel desempenhado pelos não-humanos. Para o construtivismo social, a realidade é criada pelo sujeito, que interpreta e constrói o mundo. Ela desconsidera, ou leva pouco em consideração, as questões materiais. Ou seja, o conhecimento da realidade está no sujeito e não distribuído entre agentes humanos e não-humanos como propõe a TAR. Essa diferença é que retira a TAR do tipo de abordagem construtivista tradicional e a leva à proposição de uma “instauração”. Como explica Tonelli (2012, p.5)

O construtivismo social prioriza o linguístico, tirando de foco as entidades não--linguísticas, não-humanas e não-sociais (em última instância elas são constru-ções das atividades linguísticas, intersubjetivas e intertextuais). Akrich (1992) afirma que o construtivismo social nega a atuação dos objetos, assumindo que apenas as pessoas são capazes de atuar. Se faz necessário mudar o quadro de referência do social. Latour (2001) faz uso do recurso da semiótica, oferecendo um termo opcional ao social, o qual não tenha seu significado subvertido tão facilmente como algo oposto à natureza. Trata-se do termo “coletivo”.

Princípio de simetria ou ontologia plana

É o pressuposto de que se deve dar a mesma importância a su-jeitos e objetos, mais ainda, deve-se toma-los, propõe Serres, como “quase-sujeitos” e “quase-objetos”. Assim, actantes humanos e não--humanos estão no mesmo plano. Esse princípio foi o que diferen-ciou a TAR dos outros Estudos de Ciência e Tecnologia (Science and Technology Studies - STS) e lançou uma alternativa à socio-logia estruturalista, fugindo dos grandes enquadramentos teóricos explicativos do social e identificando redes, mediadores e intermedi-ários em movimento, atuando em uma determinada associação. Para Callon (2008, p. 5):

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No início do nosso trabalho, a separação de humanos e não-humanos era útil pois se tratava de repatriar os objetos aos humanos. Então, o primeiro ponto que se havia de fazer a respeito do conjunto das ciências sociais era dizer ... sim! Os artefatos atuam, ainda que não como os seres humanos. Naquele momento se tratava de se afastar daquela posição estruturante mo-dernista das ciências sociais e humanas, que consistia em uma partição on-tológica entre seres humanos e os outros, pois se não se aceitava a partição, corria-se o risco de ser considerado animista ou, talvez, um molusco; neste tempo, tratava-se de mostrar que os não-humanos atuam de certa maneira e contribuem para constituir a ação coletiva. Mas uma vez que se marcou este ponto, é necessário desembaraçar-se radicalmente da oposição entre humanos e não-humanos, que é uma distinção constringente, historicamen-te marcada e que corresponde ao modernismo, quero dizer, à convicção, segundo a qual, há duas categorias de entidades no cosmos a saber: os hu-manos e os outros.A partir do momento em que dissemos que a ação passa através dos cole-tivos distribuídos, rechaçamos a oposição entre humanos e não-humanos e aparecem todas as diferenças. Assim, em lugar de haver uma grande dicoto-mia entre humanos e não-humanos, apreciam-se muitíssimas diferenças de agências e de ação. A grande vantagem deste enfoque é que não temos que escolher entre duas categorias de agência (humana ou instrumental), mas simplesmente observar a decolagem de uma multidão de agências diferen-tes que estão ligadas ao fato de que há numerosos agenciamentos possíveis que atuam diferentemente. E que pode-se estudar tudo isso empiricamente. (...) Eu diria que a distinção entre humano e não-humano é simplesmente uma fórmula para irritar os sociólogos que sustentam a grande divisão. Não obstante, agora já não temos necessidade de manter esta distinção, pois a substituímos por uma proliferação de agenciamentos e agências diferentes.

Rede

É o próprio “espaço-tempo”. É, ou era até recentemente (LA-TOUR, 2012a), o conceito-chave que remete às formas de asso-ciações entre os actantes e intermediários definindo a relação (ou mediação, ou tradução ou inscrição) entre eles. A rede é o próprio movimento associativo que forma o social. Ela é circulação, a ins-crição de influências de actantes sobre actantes, tradução, mediação até a sua estabilização como caixa-preta. A rede constitui o espaço e o tempo na mobilidade das traduções e na fixação das estabilizações

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e pontualizações. Ou podemos dizer que a rede é o “spacing” e o “timing” (BINGHAM e THRIFT, 2003, p. 290), o espaço e tempo em movimento, criados nas associações.

Rede, para a TAR, não é a infraestrutura ou sociabilidade, embora essas dimensões sejam incluídas aí. Não estamos falando particularmente de redes sociais, de redes de esgoto, ou de teleco-municações. Rede não é por onde as coisas passam, mas aquilo que se forma na relação (mediação, tradução) das coisas. É o espaço e o tempo.

O espaço - tempo se constitui como rede (relação entre coisas produzindo espacialização - o espaço criado no movimento entre objetos e lugares; e a comunicação entre coisas mudando suas qua-lidades sensuais - o tempo). Toda ação constitui redes. Para Callon (2008, p.4), o conceito de redes da expressão “ator-rede” refere-se às redes sociotécnicas, bem como aos deslocamentos da ação e não às “redes sociais” e sua relações de identidade.

Um problema é que usamos durante muito tempo o termo rede sociotécnica apesar de ser este confundido com o de rede social. As redes sociais são configuradas por pontos e relações identificáveis; diferentemente, nas redes sociotécnicas, desejamos conhecer as traduções e as coisas que se deslocam entre os pontos. A implicação importante na rede sociotécnica reside em que se quer saber o que é transportado entre os pontos, conhecer como são e de que maneira ocorrem os deslocamentos, o que está circulando, apreciar o que está em causa, o que está se fabricando como identidade, a natureza do que se desloca, etc. A focalização teórica e a metodologia interessada no que circula permite conhecer de que matéria o social está feito e seguir sua dinâmica. Então, a idéia de tradução corresponde à circulação e transporte, a tudo o que faz que um ponto se ligue a outro pelo fato da circulação.

Se isso é verdadeiro, a forma de olhar esse social é pelo lugar e tempo de sua formação, onde tudo está em ebulição, onde actantes envolvem outros em jogos de mediação e tradução. Ou seja, nas redes e nas controvérsias. Uma rede estabilizada vai para o fundo e funciona “taken for granted”. Uma controvérsia aponta para a dinâ-mica e a formação de redes. E a sociedade (se é que ela existe) é rede se fazendo e se desfazendo a todo momento. Como explica Callon (1999, p. 270), “c’est en abandonnant l’idée d’une société définie a priori, et en la remplaçant par des réseaux sociotechniques que la

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SAR évite d’avoir à choisir entre le réductionnisme sociologique ou le grand partage entre technique et société.”

Controvérsia

É o lugar e o tempo da observação, onde se elaboram as as-sociações e o “social” aparece antes de se congelar ou se estabilizar em caixas-pretas. A visibilidade da rede se dá nas controvérsias. Por exemplo, qual o melhor transporte público para as principais capi-tais do país? O rastreamento desse debate pode revelar associações interessantes para compreender a política pública de transportes, as concorrências e licitações, os projetos técnicos dos veículos, as práticas dos usuários, a cultura do bem público, a sociabilidade e a comunicação em mobilidade no Brasil etc. É pelas controvérsias que vemos o social em sua tensão formadora, em seu “magma”, como prefere Venturini (2010, 2012). Que associações aparecem quando entramos na polêmica sobre o aquecimento global, a internet das coisas, a deliberação política em redes sociais, ou o Bóson de Hi-ggs? Olhar as controvérsias é olhar as redes em formação na disputa pela estabilização. Quando elas cessam, surgem as caixas-pretas.

Caixa-preta

É a estabilização (uma organização, um artefato, uma lei, um conceito) e a resolução de um problema. Após a resolução da con-trovérsia, tudo se estabiliza, passa para um fundo e desaparece, até o momento em que novos problemas apareçam e a rede se torne mais uma vez visível. Um aparelho de ar condicionado, por exemplo, é uma caixa-preta se está funcionando sem nos chamar a atenção. Pa-rece uno, indivisível, compacto. Quando quebra, vemos os diversos mediadores estabilizados que o compõe: peças, regras de garantia, disponibilidade de técnicos ou serviços especializados, problemas de engenharia ou de projeto etc.

Para Callon (1986a, 1986b, 1987, 1991), traduzir gera com-prometimento dos actantes perante um determinado ato, que pode ser individual ou coletivo. O engajamento dos actantes gera “pon-tualização”; surgimento de uma entidade ou evento. É essa ação que gera as caixas-pretas, entidades criadas quando os diversos

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elementos de um processo agem como se fossem um só e, pode-mos dizer, “desaparecem”. Para Latour, as caixas-pretas “cannot be easily disassociated, disconnected, or dismantled, renegotiated or re-appropriated” (LATOUR, 1987, p. 131). Elas são, portanto, intermediários, transportam sem modificar até que algo aconteça e novos eventos possam emergir.

Toda associação tende a virar uma caixa-preta, a se estabilizar e cessar a controvérsia. O interesse é sempre abrir as caixas-pretas, colocar de novo em causa (enquanto “matters of concern”, como prefere Latour) os elementos estabilizados, ressaltando a necessida-de de olhar para as controvérsias (a construção das associações) e as suas novas e futuras estabilizações (em outras caixas-pretas). Como propõe Latour (1987, p. 13)

Entraremos nos fatos e nas máquinas enquanto eles estão em construção: não levaremos conosco preconceitos sobre o que constitui o conhecimento; iremos olhar o fechamento das caixas pretas e ser cuidadosos ao distinguir entre duas explicações contraditórias deste fechamento: uma quando já está terminada, a outra quando está sendo construída.

Essência

Essência é um conceito muito problemático na TAR. Existe imanência, uma forma não tão forçada de saltar de uma coisa a ou-tra, e não transcendência. Latour explicita essa relação (de imanên-cia e não de transcendência), desde suas primeiras obras, mas a ideia ganha mais força a partir do “Jamais Fomos Modernos”. Existe ins-tauração, inscrições, mediações. Se há essência, ela é a subsistência que se dá momentaneamente em uma determinada associação. Tudo se define pelas associações e isso explica a ontologia plana, a impor-tância dos humanos e não-humanos e a ideia de que a sociedade é o que delas emerge e que não existe como “coisa” externa (“matter of fact”). Essa postura é mais difícil e trabalhosa (diz Latour que os pesquisadores da TAR, ANT em inglês, fazem trabalhos de “formi-gas” - ant) do que aplicar estruturas e agências previamente defini-das por uma essência.

Por exemplo, as críticas às novas tecnologias (e à técnica em geral, desde Martin Heidegger, passando pelos frankfurtianos e ne-

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ofrankfurtianos contemporâneos) são em geral mal construídas por insistirem na perspectiva essencialista do fenômeno técnico. O erro de críticos e fundamentalistas é partir justamente das essências, das supostas (e inexistentes) substâncias dos objetos ou dos “sistemas” técnicos. Para Bruno Latour (1994b, p. 44):

Technical also designates a very specific type of delegation, of movement, of shifting, that crosses over with entities that have different timing, diffe-rent properties, different ontologies, and that are made to share the same destiny, thus creating a new actant. Here the noun is often used as well as the adjective, as when we say “a technique of communication,” a technique for boiling eggs.” In this case the noun does not designate a thing, but a modus operandi, a chain of gestures and know-how, bringing about some anticipated result (…) Technical skill is not a thing we can study directly. We can only observe its dispersal among various types of actants”.

No caso da cultura digital é comum ouvir que a internet “É” isso, ou que o Twitter “É” aquilo, que o Facebook ou o YouTube “SÃO” assim. Ora, eles se oferecem como resultados parciais de estabilizações (como vimos, tudo é político e eles não são neutros), mas o que será da ação quando se juntam a outros actantes só se definirá e resolverá na associação. Esses ora intermediários, ora me-diadores da internet não podem ser explicados por um enquadra-mento genérico, mas apenas pela dinâmica das associações geradas em determinados momentos. Latour (1984) chama esse princípio de “irredução”: uma coisa não pode ser reduzida à outra.

Isso nos permite afirmar, como veremos no capítulo quatro, que o Twitter pode ter sido um elemento importante de mobiliza-ção na Primavera Árabe, mas que pode não ter a mesma função política em outro contexto. Não há uma essência do Twitter ou do Facebook que possa ser depreendida em todas as suas associações. Portanto, as noções que expusemos acima são fundamentais para inibir uma abordagem essencialista do social. Partir de explicações genéricas que são aplicadas aos envolvidos como, por exemplo, explicar toda a dinâmica da internet pela noção de poder transna-cional ou militar é mais fácil e cômodo do que dizer que não há essência e que temos que ver caso a caso: o Facebook ou o Twitter podem ser instrumentos de alienação e egocentrismo, mas podem,

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de maneira diferenciada, serem instrumentos de revoluções e mo-bilizações políticas.

Pela essência perdemos justamente a rede, as associações, em prol de uma explicação mágica e generalista. Matar a rede com uma varinha de condão que resolve tudo com uma explicação total. É o que vemos na crítica. Certamente algumas associações se darão tendo por base um poder bélico-militar, mas não podemos dizer que a internet seja isso, e que todas as associações que aí se formam possam ser explicadas por essa noção.

Preposição

A noção de preposição aparece para qualificar as análises das redes no último trabalho de Latour (2012a). Ela é um “modo” intro-duzindo para “pré-posicionar” a leitura dos fenômenos, permitindo valorizar as traduções ampliando assim o conceito de rede. É o que Latour afirma na entrevista no último capítulo: a rede é um excelente operador para ir a todos os campos de pesquisa, mas ela falha ao não diferenciar os valores e as qualidades das relações.

Rede, da expressão “ator-rede”, é uma espécie de veículo que passa por todos os terrenos sendo útil para revelar as associações. A preposição é, por sua vez, uma forma de interpretação de terrenos específicos (o direito, a religião, a política, a reprodução...). Na nova perspectiva desenvolvida por Latour, o conceito de rede, enquanto mobilidade das mediações entre actantes é um dos quinze modos de existência e não mais o conceito central, embora continue sendo a chave de compreensão da TAR, em minha opinião.

Espaço - Tempo

Vimos como todos os conceitos e pressupostos teóricos apre-sentados até aqui insistem no tensionamento do espaço e do tempo. Espaço é o que se produz da mediação entre os objetos (podendo ser humanos ou não-humanos). Ele é o movimento da mediação. Espaço é uma associação de coisas e de lugares. O mesmo podemos dizer do tempo. O tempo nada mais é do que aquilo que é produzido pela relação entre as coisas, pela sua dinâmica de constituição (ten-

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sões entre objetos sensuais e suas qualidades sensuais, como afirma Harman, 2011a). O tempo, inspirado em Serres, é simultaneidade. Passado, presente e futuro não estão distantes. É uma pretensão da modernidade pensar que o presente rompe com mitos e outros ele-mentos não-racionais do passado.

Um objeto, qualquer que seja ele, é sempre uma rede que cris-taliza um agregado heterogêneo de soluções científicas e técnicas, de materiais, de processos sempre de épocas e temporalidades di-ferentes. Olhe ao redor e tente identificar de onde vieram as coisas, de que tempo e de que lugar. Pensando em um carro, por exemplo, podemos ver peças de lugares diferentes e processos de tempo e lu-gares distintos (entropia, que explica o funcionamento de um motor - ciclo de Carnot - tem mais de dois séculos). Se pensarmos em um computador, idem: projeto de um lugar e tempo, peças de outros, processos eletrônicos e matemáticos de outros.

Olhe para o smart phone com suas partes internas expostas na capa deste livro. Vemos espaços e tempos cristalizados em um ob-jeto. É fascinante: podemos identificar a natureza do plástico e toda a indústria petroquímica por trás, os circuitos eletrônicos e trabalho dos engenheiros, o silício sendo extraído e processado, as antenas colocadas para captar as ondas de rádio nos envolvendo de forma invisível (e, para alguns, com possibilidade de danos à saúde), as lentes que, polidas e trabalhadas, permitem ao objeto fazer fotos e vídeos, o projeto de usabilidade da interface e o desenho do aparelho fazendo dele um objeto que cola ao corpo e às pontas dos dedos, o estoque de energia antecipando o tempo futuro de uso na bateria, as leis e concessões do Estado que permitem fazê-lo funcionar, as empresas que vão dar garantia e consertá-lo quando algo acontecer, o mercado que vai me fazer consumi-lo... Ele estabiliza, proviso-riamente, espaço e tempo diferenciados (de objetos, de projetos, de princípios científicos, de matérias-primas...). Espaço e tempo são consequências das associações.

A associação só acontece no agenciamento. Assim sendo, afirma Serres, “qualquer acontecimento histórico é, desse modo, multitemporal, remete para o passado, o contemporâneo e o futuro simultaneamente” (SERRES, 1996, p. 86 apud TONELLI 2012, p. 8). Como na metáfora do lenço, o tempo é “amarrotado”, já que

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dobrado conecta vários pontos e esticados, distancia-os (TONELLI, 2012, p.9). Assim, a mediação revela esse amarrotado tempo, colo-cando em circulação elementos de lugares e tempos diferenciados. O tempo é simultaneidade na qual passado, presente e futuro não estão distantes. Para Serres (1996, p. 83 apud TONELLI, 2012, p. 8): “O tempo não corre sempre como uma linha [...], nem segundo um plano, mas de acordo com uma variedade extraordinariamente complexa [...]”.

sociologiA dA mobilidAde

A TAR é uma sociologia da mobilidade, do “spacing” e “ti-ming”. Vimos como todos os conceitos e pressupostos teóricos apre-sentados até aqui insistem nessa dimensão. Todos evidenciam, de uma forma ou de outra, ideias de fluxo, de movimento, de circula-ção, de eventos. Os atores (actantes humanos e não-humanos) estão sempre se fazendo e se desfazendo como redes. Essas, como vimos, não são infraestruturas por onde passam as coisas, mas a própria associação pela mediação ou tradução.

A mobilidade está justamente nesse fazer outros fazerem algo, no negociar para impor vontades e ações, na tentativa de esta-bilização para alcançar os resultados pretendidos. A intermediação, mesmo sem modificar, transporta. É movimento e pode, a depender da ação, transformar-se em mediação (quando um intermediário vira um actante). A controvérsia é, em si mesma, movimento, magma constitutivo das redes, circulação da ação, da polêmica e de disputa. A teoria afasta-se de tudo o que é fixo: essências, estruturas, sis-temas unificadores, paradigmas. A sua ontologia, como vimos no início, é a que define o ser não pela substância, mas pelos seus mo-vimentos de subsistência.

A TAR é, definitivamente, uma “sociologia da mobilidade”, não da mobilidade de coisas (transporte) ou da informação (comuni-cação), mas a mobilidade das associações que compõem os seres, as coisas, os humanos, os não-humanos, o social. Para pensar a cultura digital e a comunicação contemporânea, os desafios metodológicos são gigantescos, embora as tecnologias de informação e comunica-ção tenham nos dado, recentemente, instrumentos importantíssimos

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para revelar as associações em movimento, muito mais do que as estatísticas dos séculos XVIII e XIX forneciam. Vamos ver as novas possibilidades de mapeamento dos rastros sociais no capítulo sobre o tema, mas podemos dizer que a cartografia digital dos movimentos permite ao analista ver os rastros das associações em tempo real, a rede em constituição, oferecendo uma visualização importante da mobilidade das associações.

O objetivo da TAR, afirmam seus pesquisadores mais impor-tantes, é pensar a mobilidade da agência. O social não é nem agên-cia, nem estrutura, mas “a circulating entity” (LATOUR, 1999b, p. 17). A TAR “concentrates attention on a movement - a movement well demonstrated by the successive shifts of attention of the dissa-tisfied social scientist.” (LATOUR, 1999b, p. 17). O analista deve seguir a ação, seguir os actantes que se apresentam em formatos variados, como “waves and particles, the slow realization that the social is a certain type of circulation that can travel endlessly wi-thout ever encountering either the micro-level (…) or the macro--level” (LATOUR, 1999b, p. 19). Transforma-se assim o social não em um território, mas “into a circulation”. Como afirma Latour, a TAR “is not a theory of the social, any more than it is a theory of the subject, or a theory of God, or a theory of nature. It is a theory of the space or fluids circulating in a non-modern situation” (LATOUR, 1999b, p. 22).

E a melhor forma de apontar a circulação é pela valorização dos actantes através da descrição dos seus rastros. Consequente-mente, a atenção está no fluxo, no movimento, na formação e no esfacelamento das associações. O técnico nunca é apenas técnico, o científico nunca é apenas científico, o social nunca é apenas so-cial, o natural não é apenas natural. Essas são formas fixas de tomar algumas consequências como causas. Talvez devêssemos mesmo acolher a ideia de Hennion e Gomart (1999) e ver a TAR como uma “TER”, ou “Teoria do Evento-Rede” (Event-Network Theory) já que se trata de desenhar os eventos circulando, seja sob a forma de ac-tantes, seja sob a forma de intermediários, seja sob a forma de rede. Cada um desses termos é um evento originário de uma composição (rede), e não um indivíduo fixo em sua substância ou integralidade. Para Hennion e Gomart (1999, pp. 225 - 226):

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We are not seeking, then, another theoretical oscillation between agent and structure as source of action. Instead we want to give up ‘action’ and turn toward ‘event’. The goal is to study other configurations of ‘what occurs’ and to highlight an idea already suggested by work on ‘mediation’. (…) Mediation is a turn towards what emerges, what is shaped and composed, what cannot be reduced to an interaction of casual objects and intentional persons. The network is not a black pool in which to drop, dilute, criticize and lose the subject.

Dessa forma, saindo da oscilação entre estrutura e agên-cia, podemos situar o debate naquilo que circula. Mais uma vez, o movimento é que importa, o evento, a mediação, a tradução, ou mesmo a “translação” (o que gira e faz girar em torno de algo, a controvérsia). Estruturas e agências existem, mas apenas como consequências temporárias das associações, nunca como causas, ou sistemas definidos a priori para explicar outras associações, mesmo que similares.

Por exemplo, um objeto técnico é sempre resultado tempo-rário de uma estabilização. Ele é um evento estabilizado de outras redes, de redes que o formam (as redes dos laboratórios de P&D, as estratégias empresarias, as visões dos criadores, as ideologias gover-namentais e as visões de mundo dos utilizadores...) e de redes que o mantém em funcionamento (distribuição, energia, publicidade, usuários…). No entanto, nada está determinado, já que sua essência se definirá no momento mesmo de sua associação a outros objetos (humanos e não-humanos) formando novas redes. Mais uma vez, impera uma ontologia da mobilidade na definição dos objetos.

O objeto, estabilizado, agirá de acordo com associações es-pecíficas, sendo que essas redes serão componentes a serem leva-dos em consideração na análise, mas não as causas essenciais de seu comportamento sempre e em qualquer lugar. Há prescrição, há moralidade nessas ações que devem ser descritas e mapeadas. Para Latour (1992, p. 232):

I will call, after Madeleine Akrich’s paper (Akrich 1992), the behavior im-posed back onto the human by nonhuman delegates prescription. Prescrip-tion is the moral and ethical dimension of mechanisms. In spite of the cons-

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tant weeping of moralists, no human is as relentlessly moral as a machine, especially if it is (she is, he is, they are) as ‘‘user friendly’’ as my Macintosh computer. We have been able to delegate to nonhumans not only force as we have known it for centuries but also values, duties, and ethics. It is be-cause of this morality that we, humans, behave so ethically, no matter how weak and wicked we feel we are. The sum of morality does not only remain stable but increases enormously with the population of nonhumans. It is at this time, funnily enough, that moralists who focus on isolated socialized humans despair of us—us meaning of course humans and their retinue of nonhumans.

Ou Callon (1999, p. 274), explicando um acidente automobilístico:

Ce sont des actants qui, au lieu de maintenir une frontière imperméable entre le lieu de l’accident et ses contextes, remettent en jeu toute une série d’autres lieux, d’autres acteurs qui viennent se mêler à la scène: les cons-tructeurs automobiles, le réseau de garagistes, les services de maintenance des infrastructures routières, les centres de formation de la police, etc. Ces situations de crise et de controverses, qui rendent visibles les actants en-gagés dans le cadrage montrent la voie à suivre: remplacer la notion de microstructure par celle d’interactions localement cadrées entre humains et non humains; remplacer la notion de macrostructures par celle de lieux cadrés qui sont connectés par les actants qui assurent leurs cadrages. La notion de réseau socio-technique inclut les asymétries produites par ces arrangements, asymétries qui deviennent analysables dans les situations de crise ou lors des activités de conception ou de maintenance.

Podemos pensar assim o Twitter, o carro automático do Goo-gle ou os livros eletrônicos. Devemos olhar as mediações desses “actantes-eventos” e escapar das oscilações entre sistema, estrutura e agência individual, ou do objeto e do sujeito, ou do local e do glo-bal. Olhar para as redes é mais interessante do que para as estruturas que nada vão dizer da associação em jogo. Essa posição é uma forma de revelar os desdobramentos das mediações e a constituições de ac-tantes, suas negociações e futuras estabilizações. Interessa assim ver a circulação entre uma coisa e outra. Consequentemente, ficar preso às estruturas, ou ao local, ou ao global, ou ao micro, ou ao contexto acrescentaria muito pouco ao que já se sabe, ao que está estabilizado

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e sem vida. Isso não abriria caixas-pretas e apenas reforçaria este-reótipos. Estaríamos fora do movimento. Como afirmam Hennion e Gomart (1999, p. 226):

The notion of ‘actant’ allows us to explore the heterogeneity of elements which inflect the course of things. It allows the types of relations between elements of a network to proliferate far beyond the usual sociological terms such as influence, power, exchange, domination, conflict, or strategy.

O mais interessante é ver a circulação das agências, as me-diações que podem depois se “encaixapretarem” em estruturas ou indivíduos, em sujeitos ou objetos, em local ou global, mas, mes-mo assim, provisoriamente. Essas caixas-pretas serão sempre con-sequências de fechamentos temporários. Mais uma vez, enquanto a sociologia do social toma a consequência como causa (estrutura, micro, macro, contexto…), a “associologia” que é a TAR inverte a polaridade e se preocupa mais em olhar as mediações entre tudo aquilo que produz ação, inscrição, tradução, circulação.

Acredito que essa postura ontológica e metodológica8 seja muito salutar para o estudo das mídias digitais e dos fenômenos da cibercultura. Latour a explica muito claramente. O que interessa é o que circula, o movimento da ação entre estrutura e agência. O pro-blema está em adotar uma postura que foque na dimensão macro, a estrutura, ou na dimensão micro, a agência que paralise a observa-ção. Para Latour (1999b, p. 17):

Social scientist soon realize that the local situation is exactly as abstract as the so called ‘macro’ one from which they came and they now want to leave it again for what holds the situations together. And so on ad infinitum. It seems to me that ANT is simply a way of paying attention to these two dissatisfactions, not again to overcome them or to solve the problem, but to follow them elsewhere and to try to explore the very conditions that make these two opposite disappointments possible.

Law reforçando a ideia de ser essa teoria uma “sociologia da mobilidade”, afirma que várias metáforas são evocadas para

8 Sobre possibilidades metodológicas da TAR, ver Nobre e Pedro (2010).

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explicá-la, como mobilidade ou deslocamento. Há tensão e mo-vimento já na própria expressão “ator-rede”, que é em si um oxi-moro. Citando Latour, ele reforça a ideia de que a TAR lida com “displacement, movement, dissolution, and fractionality” (LAW, 1999, p. 3), herdando da semiótica a concepção de que entidades têm seus atributos adquiridos como resultantes da relação com ou-tras entidades e não por suas qualidades inerentes. Afirma-se aqui a perspectiva não essencialista e movente das coisas em direção ao “ser-como-outro”. As análises devem considerar a força da mobi-lidade dos actantes em relação. Para Law (1999, p. 5):

‘Actor-Network’. This is a name, a term which embodies a tension. It is intentionally oxymoronic, a tension which lies between the centred ‘actor’ on the one hand and the decentred ‘network’ on the other. In one sense the Word is thus a way of performing both an elision and a difference between what Anglophones distinguish by calling ‘agency’ and ‘structure’. A difference, then, but a difference which is, at the same time a form of identity.

A noção de evento, como vimos acima, é mais um reforço da ideia de mobilidade (HENNION e GOMART,1999). Um actante, humano ou não-humano, é um mediador constituído anteriormente por condições específicas e que, ao se relacionar com outros, vai produzir novas condições de existência, novas condições associati-vas. Nesse sentido, um “evento” ocorre, a jusante e a montante, na rede. E esse acontecimento não é particular a um “ator”, mas a um conjunto que circula. A essência é a ação e esta se dá na mediação e na tradução de actantes humanos e não-humanos pensados mais como eventos do que como “atores singulares”.

Mais do que J. Urry (2007, 2010) ou Z. Bauman (2001), que têm trabalhado sobre a dimensão “móvel” ou “líquida” da experiên-cia social, tenho a impressão que a TAR pode ser definida como uma “sociologia da mobilidade” já que o objetivo é seguir os actantes como eventos, “displacement”, como fala Law, e rastrear os “fluids circulating”, como pretende Latour. Não nos referimos aqui à mobi-lidade de pessoas, do transporte de cargas, das mudanças de classe ou da comunicação como circulação de informações e mensagens. Mobilidade é, como propõe DeLanda (2006) inspirado em Deleuze,

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“agenciamentos”, ou “agenciamentos sociotécnicos”, como prefere Callon (2008, p. 4),

...utilizo o termo “agenciamento sociotécnico” (agencement sociotécnique) para descrever a grande diversidade de formas de agência. Aqui o problema não é saber se os seres humanos são dotados de intenção, se são capazes de tal ou qual forma de conhecimento, se são capazes de calcular, se são altruístas ou egoístas. Digamos que não está em debate a capacidade de agenciamento dos seres humanos. A questão consiste em saber quais são os agenciamentos que existem e que são capazes de fazer, de pensar e de dizer, a partir do mo-mento em que se introduz nestes agenciamentos, não só o corpo humano, mas os procedimentos, os textos, as materialidades, as técnicas, os conhecimentos abstratos e os formais, etc. Neste sentido temos agenciamentos muito diferentes uns dos outros e que são capazes de fazer coisas igualmente diferentes. (...) O agenciamento tem a virtude de designar a agência e de não reduzi-la ao corpo humano ou aos instrumentos que prolongam o corpo humano, mas de designá--la nos conjuntos de configuração de arranjos em que cada elemento esclarece os outros e permite compreender porque o agenciamento atua de certa maneira.

Como vimos, todos os conceitos e pressupostos da TAR apon-tam na direção do reconhecimento de que ela é uma “associologia” da mobilidade, muito mais afeita à formação de cosmogramas do que de paradigmas. Vamos ver isso no caso da teoria do jornalismo.

do pArAdigmA Ao cosmogrAmA9

Após termos visto os principais conceitos e características da TAR, vamos discutir o campo da comunicação, mais particularmen-

9 Esta parte do capítulo foi escrita em parceria com André Holanda, doutorando do Pro-grama de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBa e apresentada (em uma versão mais reduzida) no GT Epistemologia da Comunicação na COMPÓS em Junho de 2013. Devo aqui afirmar que o mérito sobre a discussão da história do jornalismo é de Holanda. Fiz aqui modificações e ampliações no texto. Ver Holanda, A; Lemos, A. (2013).” em substituição a “Este capítulo foi escrito em parceria com André Holanda, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBa e apresentado (em uma versão mais reduzida) no GT Epistemologia da Comunicação na COMPÓS em Junho de 2013. Devo aqui afirmar que o mérito sobre a discussão da história do jornalismo é de Holanda. Fiz aqui modifi-cações e ampliações no texto. Ver Holanda, A; Lemos, A. (2013).

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te a teoria do jornalismo. Sustentamos a necessidade da superação de paradigmas hegemônicos por desenhos gerados no mapeamento das associações: os cosmogramas. O ponto de partida é o caráter análogo que o trabalho de “dar ciência dos fatos” assume nos cam-pos jornalístico e científico. Concluímos afirmando que a TAR pode ajudar a superar disputas improdutivas, propor novas leituras dos fenômenos ancoradas na experiência empírica sem alimentar novas fantasias de purificação ou de hegemonia no campo. Com isto em vista, apresentamos sete contribuições da teoria:

1. Evitar a purificação dos fatos; 2. Oferecer um método capaz de ultrapassar delimitações

entre natureza, sociedade e discurso; 3. Reposicionar o entendimento sobre a mediação; 4. Apresentar o discurso midiático como rede de proposições; 5. Destacar a necessidade de não se abandonar o empírico

em favor de estruturas; 6. Mostrar que o papel do analista é mapear redes de actan-

tes mobilizados em determinada ação; 7. Flagrar a constituição interna das caixas-pretas.

O social não é o que abriga as associações, mas o que é gerado por ela. Ele é uma rede que se faz e se desfaz a todo o momento. Os actantes buscam, com muito esforço, estabilizar essas redes em organizações, instituições, normas, hábitos, estruturas, chamadas de “caixas-pretas”. Estrutura, norma, hábito não podem ser tomados como categorias de explicação a priori, como causas, mas são consequências temporárias de uma rede de distribuição e de estabilização de agências.

A revelação dos agenciamentos e das mediações é o que pode nos ajudar a compreender os diversos fenômenos da comunicação sob outro prisma. Essa área é privilegiada para uma abordagem pela TAR já que ela é, talvez mais do que qualquer outra, constituída por ten-sões entre humanos e não-humanos, entre pragmática e tecnologias da comunicação. Mediação e agenciamentos são palavras conhecidas do campo. Os principais conceitos da TAR (actante, rede, inscrições, mediações, intermediários, traduções, caixas-pretas) aproximam a discussão sobre a comunicação e encontram eco (em menor ou maior

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grau) nos trabalhos de H. Innis, M. McLuhan, Gabriel de Tarde, W. Lipmann, entre outros, todos importantes para a área. Não seria ab-surdo afirmar que a TAR poderia ser vista como uma “teoria da co-municação”. Mediação e associação são, basicamente, comunicação.

Aquilo que Latour chamou de “Constituição Moderna” (LA-TOUR, 1994a), pode ser entendido como o preceito que instaura o para-digma dos processos de purificação: da natureza, da cultura, do sujeito, do objeto, do humano e do não-humano. Mas, por outro lado, a proliferação de híbridos insiste em se expandir misturando tudo. Por conta desta cli-vagem essencial no domínio da ciência, surge o paradoxo, tipicamente moderno, de se conceber e constituir a mesma como um processo inega-velmente humano. No entanto, ela deve ser perfeitamente pura, isenta de “interferências” humanas (a subjetividade do pesquisador, os interesses dos financiadores, as forças históricas, políticas ou dogmáticas). Ou seja, ela é humana, mas deve ser, ao mesmo tempo, pura, não contaminada por mistificações interesseiras e preconceitos culturais.

O que caracteriza a modernidade é justamente este paradoxo entre o sonho de purificação dos domínios humano e não-humano e a proliferação inesgotável de híbridos “sócio-técnico-naturais” que insistem em atravessar as fronteiras imaginárias entre natu-reza, sociedade, ciência, mercado, cultura etc. Por conta disto, a substituição do neopositivismo por uma solução hermenêutica, ou por uma abordagem histórica e crítica, como a representada por Thomas Kuhn (2006) não se apresenta como resposta satisfatória. Trata-se apenas de múltiplos programas purificadores, alinhados com a “Constituição”. Como explica Latour (1994a, p.9):

A separação moderna entre o mundo natural e o mundo social tem o mesmo caráter constitucional, com o detalhe que, até o momento, ninguém se colocou em posição de estudar os políticos e os cientistas simetricamente, já que parecia não haver um lugar central. Em certo sentido, os artigos da lei fundamental que diz respeito à dupla separação foram tão bem redigidos que nós a tomamos como uma dupla distinção ontológica. Do momento em que traçamos este es-paço simétrico, restabelecendo assim o entendimento comum que organiza a separação dos poderes naturais e políticos, deixamos de ser modernos. Damos o nome de constituição ao texto comum que define este acordo e esta separação.

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A melhor forma de descrever os objetos é aceitar seu caráter híbrido e heterogêneo. A partir do princípio da simetria generalizada (como vimos, esse foi um dos principais pilares de afastamento da TAR das outras abordagens da sociologia da ciência e da técnica), todos os elementos (naturais, técnicos, políticos) precisam ser des-critos e analisados em um único nível, sem que a realidade de um domínio, ou nível, seja subsumida em níveis superiores ou prece-dentes que a determinariam. Assim, a partir dessa abordagem teóri-ca, a ação é provocada não por atores unívocos, mas por composi-ções heterogêneas mobilizadas para um determinado programa de ação. Como explica o criador do conceito, Callon (1987, p. 93), o “ator-rede” não pode ser reduzido nem à rede, nem ao ator individual:

The actor network is reducible neither to an actor alone nor to a network. Like networks it is composed of a series of heterogeneous elements, anima-te and inanimate, that have been linked to one another for a certain period of time… But the actor network should not, on the other hand, be confused with a network linking in some predictable fashion elements that are per-fectly well defined and stable, for the entities it is composed of, whether natural or social, could at any moment redefine their identity and mutual relationships in some new way and bring new elements into the network.

O ator-rede é transiente e só persiste enquanto persistirem as associações entre os diversos actantes mobilizados. A ação é o que deve ser analisado, pelos seus rastros, em uma determinada as-sociação. Ela é produção de diferença, mediação. Quando não há ação, vemos apenas intermediários. Existem diversos graus de atua-ção. Ora um elemento da rede pode ser um mero intermediário, que transmite informação sem modificar a ação, ora ele é um mediador, um actante que modifica substancialmente o resultado da ação. Po-demos dizer que um mediador sempre se engaja em um processo de comunicação.

Mesmo transiente e precário, o ator-rede ganha durabilidade e estabilidade com o fechamento em caixas-pretas, nas quais diver-sos actantes permanecem engajados em uma única ação, podendo ser então tratados como um único ator. Podemos falar então, como propõe Callon, em “pontualização”. É difícil perceber a complexi-dade interna das caixas-pretas já que elas são “taken for grated”, se

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deslocam para um fundo transparente ou estável demais para serem notadas. No entanto, como vimos, determinadas circunstâncias po-dem abrir as redes, quando uma das peças de uma máquina deixa de funcionar, ou quando aparece uma controvérsia sobre um con-ceito que o torna problemático e disputado. A controvérsia abre as redes e revela as associações que até então estavam estáveis, acei-tas ou invisíveis. A caixa-preta pode ser entendida como uma as-sociação temporária estabilizada de dispositivos, entendidos estes no sentido foucaultiano do termo, como um conjunto de técnicas, projetos, legislação, normas, hábitos. Para Foucault (1986, p. 244) um dispositivo é:

Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, institui-ções, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, fi-lantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos.

Esta abordagem traz consequências importantes para as esco-lhas teóricas e metodológicas em qualquer estudo das associações, uma vez que rejeita as purificações modernas que buscam explicar os fenômenos (incluindo aí os da “comunicação”) a partir estruturas prevalecentes sejam elas econômicas, culturais, políticas ou mate-riais. O conhecimento do social só é possível depois de um esforço de identificação dos diversos atores e de suas associações. É a di-mensão concreta dos rastros que filia a TAR à etnometodologia e às pesquisas empíricas, como vimos.

No que concerne à pesquisa empírica (pensada aqui como “experiência para o conhecimento”, na sua raiz grega empeirikos), o importante é identificar os rastros. Empírico aqui designa identi-ficações a quem, ou o quê age sobre quem ou o quê. Nesse sentido, por exemplo, a questão central do evento nacional da Intercom em 2011 foi sintomática: “quem tem medo da pesquisa empírica em comunicação?” Perguntar se se tem medo da pesquisa empírica im-plica reconhecer a carga por demais hermenêutica e estruturalista do campo. Efetivamente, materialidades e etnometodologia não estão entre as suas áreas mais desenvolvidas.

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O reconhecimento da agência dos actantes não-humanos pode ser uma das peças-chave para ampliarmos a relação entre TAR e Comunicação. A revelação dos agenciamentos e mediações é o que pode nos ajudar a compreender os diversos fenômenos da comuni-cação contemporânea. Podemos hoje, com as tecnologias digitais em rede, olhar para os dados sociais em uma ampla gama de níveis de agregação, indo e voltando do micro para o macro com facilida-de. Associações passam a ser assim visíveis para o analista social. É impressionante, afirma Latour, que neste exato momento os campos de rápido desenvolvimento da “visualização de dados”, da “ciência social computacional” ou das “redes biológicas” estão produzindo, diante de nossos olhos, exatamente o tipo de dados que Tarde teria aclamado.

Primeira Contribuição. Contra a pureza dos fatos

A pureza dos fatos é a pedra de toque destas aspirações, tanto no campo científico, quanto no jornalístico. Por esta razão, revelar os fatos na sua nudez perfeitamente lógica e necessária é a essência mesma da missão purificadora de “dar ciência dos fatos”. Eis a pri-meira contribuição trazida pela TAR: a purificação dos fatos não é a melhor abordagem nem para o trabalho, nem para a pesquisa em comunicação.

A purificação dos fatos acarreta separação dos campos de estudo. Muito esforço é realizado internamente por cada uma das escolas de pensamento para produzir e manter barreiras contra abor-dagens concorrentes, criando competição em torno da definição dos objetos, dos problemas de pesquisa e dos métodos válidos para es-tudar os fenômenos da Comunicação. Por qual caminho se atinge a realidade? Pelo estudo dos meios, das mediações, dos emissores, da recepção, da economia política, da construção de sentido?

Surge daí uma contradição interessante. Como a academia se divide em estudos que privilegiam isoladamente cada um dos ele-mentos que atuam no processo de comunicação, os quais passam a ser vistos como objetos de estudo autônomos que precisam ser purificados de suas conexões com os demais, estas escolas precisam tomar de empréstimo metodologias de outras disciplinas, gerando

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objetos de estudo e pesquisas cada vez mais híbridos. O sonho de purificação termina em uma vasta proliferação de híbridos como sociologias, semióticas, economias políticas, estéticas, histórias, fi-losofias, psicologias, epistemologias... da comunicação. Atravessar estas fronteiras é exigência obrigatória, já que as consequências da “constituição moderna” são inúmeras para a pesquisa científica. Em primeiro lugar, da separação dos domínios da natureza e da socieda-de surge a repartição dos poderes entre ciências naturais e política. O poder científico encarregado de representar os objetos e o poder político encarregado de representar os sujeitos. Como mostra Latour (1994a, pp. 33-34):

São dois pais fundadores, agindo em conjunto para promover uma única e mesma inovação na teoria política: cabe à ciência a representação dos não-humanos, mas lhe é proibida qualquer possibilidade de apelo à política; cabe à política a representação dos cidadãos, mas lhe é proibida qualquer relação com os não-humanos produzidos e mobilizados pela ciência e pela tecnologia.

No âmbito da comunicação, estas contradições se revelam nos eternos debates entre o papel da materialidade dos meios e das pres-sões sociais, culturais e econômicas que os querem mobilizar para seus próprios programas de ação. Para citar um exemplo recorrente, grandes controvérsias ocorrem entre abordagens do construtivismo social, da economia política e do determinismo tecnológico em tor-no da influência da disseminação de novos meios de comunicação na sociedade.

A “constituição moderna” vai implicar a definição de uma das fronteiras mais tradicionais no campo da comunicação: a separa-ção artificial entre a natureza dos meios, o poder que os mobiliza e os discursos que realizam. Latour (1994a) mostrou muito bem em “Jamais fomos Modernos” que este trabalho de purificação nega as características da realidade, principalmente ao restringir os fenôme-nos a campos purificados do social, da natureza ou do discursivo. No entanto, não há fenômeno que não atravesse estas fronteiras ar-bitrárias.

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Segunda Contribuição. As redes atravessam fronteiras

Todas as redes de atores que fazem os fenômenos sociais, in-cluindo aí a comunicação, atravessam livremente quaisquer frontei-ras artificiais entre natureza, sociedade e discurso. O interessante de olhar as redes é justamente poder ver o movimento das ações para além de quaisquer fronteiras de domínios específicos. Como afirma Latour em seu último livro, examinando o trabalho de uma hipoté-tica antropóloga que busca compreender os modos de existência e a antropologia dos modernos (LATOUR, 2012a, p. 58):

Elle est assez satisfaite de savoir décrire les pratiques par les réseaux, tout en restant fidèle aux valeurs de ses informateurs, sans pour autant croire aux domaines et, partant, aux comptes rendus qui sont les leurs, mais sans non plus (l’exercice est périlleux, on le conçoit) abandonner l’idée d’une possible reformulation du lien que les valeurs entretiennent avec les insti-tutions. Autrement dit, c’est une anthropologue qui ne craint pas de courir les risques de la diplomatie. Elle sait combien il est difficile d’apprendre à bien parler à quelqu’un de quelque chose pour qui lui importe vraiment.

O trabalho do analista é se deslocar por estas fronteiras, seguir os actantes, mapear os rastros em uma busca contínua das associa-ções criadas pelos e entre os atores que observa. O método é cosmo-político: simultaneamente construtivo (mas incluindo simetricamen-te os actantes não-humanos), empirista (preso aos rastros) e político (atento aos “matters of concern”). Portanto, a segunda contribuição da TAR está em oferecer métodos capazes de ultrapassar estas de-limitações. Esse é sentido mais profundo de “Jamais fomos moder-nos” (LATOUR, 1994a) e é o que parece estar sendo retomado na sua “Enquête sur les Modes d’Existence” (LATOUR, 2012a): ou se defende a separação operada pela constituição moderna, estudando e expondo o que ela proíbe e permite, esconde e ilumina através dos processos de purificação e mediação (que caracterizam a definição de todo objeto de estudo); ou se defende o trabalho de purificação ao preço de assumir o paradoxo da hibridização crescente.

Ainda sem completar seu primeiro século de existência, a pes-quisa científica em Comunicação Social se caracteriza por uma cres-cente diversificação, cujos traços dominantes são a controvérsia, que é

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necessária e salutar em se tratando do trabalho científico, e a dispersão dos esforços, que não pode deixar de ser negativa. Para Ferreira e Martino, esta dispersão estaria ligada a duas fragilidades principais: a pouca autonomia do campo como uma área específica da ciência e o “embotamento” da dimensão epistemológica desta pesquisa. Eles afirmam (FERREIRA e MARTINO, 2007, pp. 98-99):

Privado de uma reflexão sobre a especificidade da área, o pensamento co-municacional irá se desdobrar em múltiplas frentes de análise e mobilizar os mais diversos recursos teóricos, requisitados de praticamente todas as áreas do conhecimento. (...) O embotamento da dimensão epistemológica explica facilmente, então, a incrível diversidade teórica que irá se instalar, fazendo com que os cursos de teorias da comunicação apresentem uma for-te variação de conteúdos temáticos e de compreensões muito diversas sobre o papel da teoria.

Este diagnóstico é compartilhado pelos autores elencados no livro “Pesquisa Empírica em Comunicação” (BRAGA, LOPES e MARTINO, 2010)10. Nos estudos reunidos no livro, que reprodu-zem a diversidade temática e metodológica da área, o fechamento do campo aparece repetidamente como solução para a dispersão dos estudos em comunicação11. Este talvez seja o único ponto de concor-dância em todas as linhas de pesquisa ali representadas. No entanto, nem a epistemologia tradicional, nem a autonomia do campo pela via da purificação metodológica podem resolver este dilema.

Podemos supor que este esforço de purificação do campo é a causa da proliferação de hibridismos com outras ciências. Em pri-meiro lugar, é preciso lembrar que esta dispersão da área de comu-nicação começa pela própria relação entre as suas diferentes habili-tações. Jornalistas, publicitários e relações públicas não estudam as

10 É expressivo que no livro referência “Pesquisa Empírica em Comunicação”, da COMPÓS, 2010 (SP, Paulus), organizado por José Luis Braga, Maria Immaco-lata V. de Lopes e Luis Claudio Martino, apenas 1 texto faça referência a autores da TAR em suas 435 páginas. No recente livro da Intercom (2011), “Quem tem Medo da Pesquisa Empírica”, nenhum texto faz qualquer referência a essa teoria.

11 Muniz Sodré apresentou a mesma tese na conferência inaugural no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da FACOM/UFBA em Novembro de 2012, “O Campo Científico da Comunicação”, defendendo a autonomia do campo da comunicação.

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mesmas coisas, raramente dialogam profissional ou academicamen-te e muito raramente discutem as questões da ciência. Esta dispersão não é acidental, nem foi gerada por algum determinante externo. Muito pelo contrário, ela tem sido uma exigência permanente da maioria dos pesquisadores de jornalismo neste país. Como relata José Marques de Melo (2009, p. 222):

Durante as décadas de 1980 e 1990, eram frequentes os conflitos entre co-municólogos e jornalistas, cujas lideranças disputavam a hegemonia do en-sino e da pesquisa nas faculdades de comunicação. Este confronto foi de certo eliminado quando o Congresso aprovou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional eliminando o currículo mínimo para cada área do conhecimento e, de certo modo, dando autonomia às universidades para estabelecer seus próprios projetos pedagógicos.

Este ideal de autonomização dos estudos de jornalismo é muito antigo. Na visão excessivamente otimista do pioneiro alemão Otto Groth, que nas primeiras décadas do século XX estabeleceu as bases da sua Zeitungswissenschaft, “a Ciência dos Jornais teve que conquistar, passo a passo, um espaço entre as ciências e carrega até hoje marcas nítidas da luta pelo seu reconhecimento” (GROTH, 2011). De acordo com esse autor, para que os estudos do jornalismo pudessem exigir a definição de uma ciência própria, três elementos eram essenciais: um objeto próprio, um método específico e uma sistematização do próprio conhecimento. É fácil perceber que quase um século depois, nenhum dos três requisitos pôde ser cumprido integralmente. A luta pela afirmação do campo continua. Para Groth (2011, p. 369), duas interrogações fundamentais desafiam o jornalis-mo e seu compromisso para com os fatos e o público:

Primeiro, o poder humano consegue constatar os fatos de um acontecimen-to de forma ‘objetiva’, ‘fiel à realidade’? Sob quais condições e dentro de quais limites a mente humana pode apreender a existência, o ser, o porvir e o acontecer na sua factualidade (o que, aliás, é tarefa do jornalista relator)? Segundo, quais são as circunstâncias que aparecem de maneira geral que impedem o repórter (inclusive no caso do repórter ‘puro’, ou seja, do repór-ter do qual qualquer política de notícias está distante, que só tem a ambição e a vontade de noticiar os fatos para a satisfação da redação e do público) de trazer um relato (relativamente) objetivo?

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Tudo se passa como se o mercado e a arena política, em es-pecial os “interesses” e o “poder econômico”, fossem permanen-tes ameaças à pureza ética do trabalho jornalístico. O paradoxo é, obviamente, que o veículo jornalístico raramente deixa de ser um agente econômico tão mais importante quanto mais capitalizado e, ao mesmo tempo, um agente político tão mais relevante quanto mais influente ele for na arena pública. Isso significa que o seu capital social, mas não só este, vem invariavelmente de outros domínios.

Os profissionais no mercado de trabalho cultivam o relato he-róico da profissão: perante poderes que ameaçam a cidadania e a de-mocracia, eis que o jornal surge como o “quarto poder” que vigia e torna transparentes os outros poderes. Os jornalistas seriam os “wa-tchdogs” da democracia. O papel do jornalismo frente à democracia é um dos temas mais comuns da tradição americana dos estudos de comunicação, tendo sido debatido no passado por nomes como Joseph Pulitzer, Walter Lippmann e John Dewey em controvérsias que se tornaram clássicas da área e que continuam em discussão na academia (KOVACH e ROSENSTIEL, 2001).

Joseph Pulitzer, fundador da primeira escola de jornalismo, defendia tanto a necessidade de uma faculdade especializada quan-to - apesar de ser ele mesmo um dono de jornal - a independência da profissão com relação às considerações comerciais. Sua atitude, francamente purificadora, fica registrada no texto histórico de 1904, publicado pela Universidade de Columbia, por ocasião da fundação da escola de jornalismo e tomado por muitos como o testamento do seu legado (PULITZER, 2009).

Por outro lado, Walter Lippmann alertava para a incongruên-cia provocada por esta visão no seu célebre livro “Opinião Pública” (LIPPMANN, 2008). Para ele, esta perspectiva mística, quase reli-giosa, da busca da verdade pelo jornal termina menosprezando o seu valor, em vez de elevá-lo. Para ele, “esta insistente e antiga crença de que a verdade não é obtida, mas inspirada, revelada, fornecida gratuitamente” tornaria o jornal muito pouco valorizado pelo públi-co consumidor. Lippmann afirmava que o jornal - este relatório fun-damental para o governo dos assuntos humanos, a atuação política, a divulgação da cultura - vale hoje mais ou menos o mesmo que o (questionável) serviço prestado de um guardador de carros. Na épo-

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ca de Lippmann, o jornal era pago com “a menor moeda produzida pela casa da moeda”.

O problema tratado por Lippmann é justamente a incompre-ensão por parte de público, críticos, e mesmo parte da academia, so-bre o significado da mediação realizada pelo jornalismo. Para todos os que persistem em uma visão da mídia como idealmente transpa-rente, ou como um mero espelho da realidade, a mediação precisaria ser inexistente ou inócua. É o problema da construção dos fatos, das inscrições. A lógica é: “se há mediação, há construção, logo impu-reza e desvio da verdade”. Admitir que construção é “instauração” e inscrição não é um problema (e isso não significa neutralidade, nem relativismo absoluto). Assim, a notícia e o acontecimento pre-cisariam ser idênticos para que, face à primeira, se pudesse ter um conhecimento “imediato” do segundo. Lippmann se colocava contra este preconceito já em 1922. Ele afirma: “A hipótese que me parece mais fértil, é que as notícias e a verdade não são a mesma coisa e precisam ser claramente distinguidas” (LIPPMANN, 2008, p. 304).

Mesmo hoje, quando a maior parte da academia concorda que a notícia é construída no processo de mediação, que necessariamen-te envolve alto grau de interferência, seleção, e elaboração do relato sobre a realidade, persiste a cobrança de transparência, como úni-ca garantia possível da pureza do trabalho de transmissão de uma verdade que precisa ser evidente e inequívoca. Por conta desta per-sistente incompreensão do real sentido da mediação, surge este es-tranho complexo da mídia noticiosa calcado em um duplo vínculo insolúvel: para a maior parte do público e dos críticos, a mídia se define por mediar o acesso à realidade social. Entretanto, ao cumprir com o seu papel, não pode interferir na comunicação da verdade, o que esvazia completamente o valor do sentido daquele processo de mediação.

A responsabilidade pela manutenção da fantasia é, em pri-meiro lugar, da própria mídia, uma vez que “os próprios meios de comunicação se apresentam como transmissores da realidade so-cial” como aponta Miguel Alsina (2009, p. 9). Se os meios são me-ros intermediários no trânsito das notícias, os jornalistas são meros “mensageiros” e subentende-se que não podem interferir no livre curso da notícia. Porém, cabe questionar, a se crer nisto, qual é a

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contribuição do jornalista? Para que serve este estranho e elaborado esforço para mediar, sem fazer diferença? Para ser um intermediário e não um mediador?

É fácil notar que este dilema é o mesmo enfrentado pela ciên-cia em geral, frequentemente denunciada e vilipendiada pelo crime imperdoável... de ser ciência, ou seja: de ser pesquisa, experimento, debate e controvérsia, de ser produção, inscrição, mediação, instau-ração. Para complicar, ansiosos por valorizar a mística da profissão, cientistas, como os jornalistas, terminam colaborando com as ex-pectativas de desvelamento (a busca da essência escondida), como se eles fossem apenas intermediários de uma revelação de verdades ocultas na natureza ou nos fatos “sociais”. Lembremos, mais uma vez, o que escrevemos no começo deste capítulo sobre as inscrições como forma de mediação produtora da realidade, como instauração e inscrição.

Portanto, a separação ciência, natureza, sociedade aparece mais uma vez e ela não é nem um pouco produtiva ou verdadeira. Trata-se, tanto na ciência, como no jornalismo, de produção de fatos, de mediação entre humanos e não-humanos, instaurando e inscre-vendo argumentos que, por sua força momentânea, são tidos como “a realidade”, “o fato”, “a notícia”, “a natureza”. Mais uma vez, a solução para vencer o dilema é encarar a construção da verdade através do processo de “instauração”. Como explica Latour (2012a):

...impossible d’échapper à l’affaiblissement du constructivisme, impossible de conserver la notion d’instauration si l’on ne se résout pas à repeupler le monde que les Modernes habitent pour de bon mais qu’ils croient avoir été obligés de dépeupler préalablement (il est vrai qu’ils sont devenus experts dans les tâches d’extermination...).Sommes-nous maintenant en mesure de remplacer l’irréparable fêlure entre ce qui est construit et ce qui est vrai, par le déploiement des trajectoires qui distinguent les différents modes de véridiction? Si j’en crois trente an-nées de discussions et quelques vives disputes, la réponse ne peut être que: “Non!”. Les fondamentalistes triompheront toujours et leurs critiques aus-si, alternativement. Et pourtant, une fois diagnostiquée l’opposition entre théorie et pratique en situant son origine dans la conjonction imprévue des deux injonctions contradictoires, l’une sur les faits fabriqués non-fabriqués, l’autre sur le dieu construit non-construit, nous pouvons peut-être en reve-

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nir aux êtres en mal d’instauration. En tout cas, nous voilà bel et bien sortis de l’opposition : ou bien des représentations, ou bien des choses (p.185).Nous ne bénéficions pas encore des habitudes de pensée qui nous permet-traient de prendre la mesure de l’existence véritable de ces êtres dont nous prétendons suivre l’instauration. Inévitablement, nous risquons de retomber dans l’idée qu’il y a, d’un côté, ce qui existe et, de l’autre, les “représenta-tions” de ce qui existe. L’existence serait toujours une; les représentations, seules, seraient multiples (p. 242).

Mas não se trata aqui de trocar o estudo dos meios pelo estu-do das mediações, tal como propõe Martín-Barbero (1997) com seu mapa das mediações, instaurando análises que separam contexto so-cial e cultural, receptor e texto midiático. A mediação é um conceito interessante, entendida como um processo amplo, como um conjun-to que estrutura e organiza a recepção, dividindo o mundo da cultura em sociabilidade, ritualidade e tecnicidade (MARTÍN-BARBERO e BARCELOS, 2000). Mas esse tipo de análise de externalidades afasta-se da TAR. Os estudos das mediações, como aqueles dos processos sociais, históricos, carregados de potencial econômico e político são indispensáveis, mas não ao custo de sacrificar a visibi-lidade das redes. Não se trata de trocar um campo pelo outro, mas de atravessar livremente a tal fronteira imaginária reconectando os meios na sua materialidade, as mensagens na sua expressividade, os processos sociais que com estas interagem, sem esvaziá-los dos agentes não-humanos que fazem funcionar a recepção.

Terceira Contribuição. Mediação é sempre deslocamento

e transformação

Como vimos, intermediário é a quem foi delegada determinada tarefa e que a realiza em perfeita obediência ao programa, ao “script”. Ele transporta, mas não muda nada. Por exemplo, transmitir informação sem alterar seu conteúdo, portanto, sem contribuir ou enriquecer a co-municação, sem produzir diferença. O mediador, ao contrário, é aquele que modifica e é modificado no curso de sua “comunicação” que, preso ao prefixo “co” e à raiz “munis”, está em relação, em comunhão, em comunidade, na esfera do comum, portanto. O resultado da interação só se completa com o concurso da sua ação onde ele e outros se transfor-

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mam até a estabilização (na maioria das vezes provisória) da rede. Sua substituição acarreta invariavelmente uma mudança no resultado. Ele produz sempre diferenças e torna-se, ele mesmo, diferente. Actante é quem “in-forma”, cria e faz circular diferenças. Ou, como afirma Tarde, reforçando o caráter transformador do être-en-tant-qu’autre, “la diffé-rence va en différant” (LATOUR, 2012a, p. 169).

Ser mediador ou intermediário não são características essen-ciais dos elementos das redes, mas papéis assumidos na associa-ção. O jornalista pode divulgar comunicados oficiais, como se fosse um mero porta-voz, ou ainda escrever editoriais com os quais não concorda em nome do veículo para o qual trabalha, constituindo-se como mero intermediário entre os autores do discurso e o público. Mas ele pode também questionar e levantar contradições capazes de derrubar versões autorizadas dos acontecimentos, assumindo ple-namente sua condição de mediador. O veículo pode ser um mero intermediário para os programas do setor comercial, o interesse do patrão, ou das suas alianças políticas. Mas pode, por outro lado, ser um mediador de pleno direito cujas jogadas podem alterar os rumos dos jogos políticos ou econômicos.

O significado profundo desta terceira contribuição pode ser dito da seguinte forma: a mediação é sempre tradução de uma coisa em outra, é consequentemente comunicação, informação e, portanto, deslocamento do sentido “original”, criação de diferença, circulação e distribuição de transformações, inscrições, “pré-positions” e “ins-tauration” (LATOUR, 2012a). Quando não se considera este sentido de mediação como característica central do trabalho da mídia, esta termina sendo criticada, ora por deixar passar o discurso do poder, revelando-se um mero intermediário, ora pela razão oposta, por tornar explícita a sua interferência, sendo acusada de infidelidade.

Estudando a construção de fatos científicos, Latour e Woolgar (1997) definem o estabelecimento da “verdade dos fatos” como um processo de construção de uma rede de proposições, argumentos e inscrições obtidas pela mediação de métodos e técnicas específicas. Estas inscrições seriam traduções dos fatos observados diretamente, dos dados consultados em outras fontes, coletados por outros atores e finalmente, o que é mais comum em ciências humanas, dos relatos de informantes, analistas ou porta-vozes autorizados.

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Este trabalho de coleta de inscrições objetiva a composição de uma rede de elementos humanos e não-humanos responsáveis por diversos graus de mediação e tradução da realidade. Esta seria uma boa definição do trabalho jornalístico. O repórter vai a campo como o pesquisador, utiliza materiais e métodos mais simples, po-rém análogos aos da pesquisa científica, e com o mesmo objetivo de dar ciência ao público da realidade enquanto atualidade. A mediação possui papel central na ciência, ou no jornalismo, sendo responsável pela tradução do objeto observado em séries de inscrições. O objeto de estudo não se confunde, portanto, com o objeto do “mundo real”, não por estar preso na subjetividade do observador, mas por se tratar de uma construção a partir das inscrições realizadas pelo cientista ou o jornalista, ou o sociólogo, ou o antropólogo… A mediação opera-da pelos seus instrumento e técnicas de inscrições, pelos laboratórios e publicações é fundamentalmente uma tradução das observações.

Na academia, as divergências quanto à definição do trabalho jornalístico dizem respeito mais frequentemente à “matéria-prima” do processo, que tradicionalmente é definida como “o acontecimento” ou “os fatos” que o compõem, como define, por exemplo, Carlos Alberto de Carvalho (BRAGA, LOPES e MARTINO, 2010, p. 341-342). A experiência empírica mostra que o jornalista não costuma ser “tes-temunha ocular da história”, e nem precisaria sê-lo. Normalmente o repórter se vê às voltas com relatos sobre os fatos, coletados em en-trevistas (forma de inscrição) e contrapostos uns aos outros a fim de eliminar incoerências. Ele interage com a mediação de outros atores, responsáveis pelas suas próprias traduções e inscrições dos fatos.

Não faz sentido supor que o repórter precise testemunhar os acontecimentos para apreender os fatos e produzir a notícia. Como mostrava Lippmann há quase 100 anos: “Todos os repórteres do mundo trabalhando todas as horas do dia não poderiam testemunhar todos os acontecimentos no mundo. [...] Os jornais não tentam manter o olho em toda a humanidade” (LIPPMANN, 2008, p. 289). “Dar ciência”, seja no jornal, seja no laboratório, é compor uma rede de proposições e ins-taurações conectadas de forma a reforçarem-se mutuamente, inclusive com o recurso explícito ou implícito a dados, informes e resultados de testes, assim como outras formas de inscrições e registros que traduzem os dados em fatos comunicáveis. Como explica Latour (2001, p. 284):

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...a fidedignidade de uma representação é julgada por sua capacidade de transportar uma proporção mediante todos os tipos de transformações. Ou ela a transporta sem deformação, e é considerada acurada ou a transforma, e é considerada inacurada. [...] na prática a natureza dessa transformação consiste exatamente em perder informação em seu caminho e em re-descre-vê-la numa cascata de re-presentações, ou referência circulante, cuja natu-reza precisa tem sido tão difícil de apreender como a da política.

Não há lugar para nostalgia com relação à perda dos “fatos duros”, ou ao princípio norteador do jornalismo de eliminar os vie-ses e “get the (facts/story/news) straight”. A perspectiva composi-cionista apresentada aqui não busca “endireitar os fatos”, mas enca-deá-los em redes as mais resistentes possíveis aos testes da opinião pública. Como questiona Latour, “quem precisa dos fatos duros?” (LATOUR, 1998a, p. 336). As duas tarefas de coleta de informações e de disseminação das notícias apresentam uma contradição intrín-seca. Para Latour (1998a, p. 339):

O paradoxo dos construtores de fatos é ter de, simultaneamente, aumentar o número de pessoas que participam da ação – para que sua alegação se dis-semine – e diminuir o número de pessoas que tomam parte da ação – para que ela se dissemine como está”.

A prova de resistência é o fator responsável por “endurecer” os fatos ou dar um atestado de “realidade”. Os debates científicos, como os julgamentos no tribunal, põem à prova as alegações dos proponentes com o intuito de declarar a vitória da verdade, nun-ca desvendá-la ou descobri-la. A “realidade” ou a “verdade” é uma composição de uma rede de evidências, testemunhos e argumentos, tão firmemente interconectada pelos promotores da verdade que suas associações não podem ser desfeitas facilmente pelos adver-sários. A realidade é, como afirma Latour, um enunciado difícil de derrubar. Essa é a chave da vitória nos tribunais da verdade: seja no âmbito da justiça, da ciência ou do jornalismo.

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Quarta Contribuição. A credibilidade é estabilização tem-

porária da composição

A vantagem da TAR frente às perspectivas construtivistas tra-dicionais, como vimos, está em não colocar acima da rede de actantes (que é a mídia) determinantes como o contexto social, a infraestrutura de produção ou a cultura como os reais agentes de quem o conteúdo é recebido. Mais ainda, ela não permite facilmente identificar a origem da ação, a qualidade da relação, ou o sentido da ação. Este procedi-mento de apelo a determinantes externos está intimamente relaciona-do à purificação disciplinar da qual falávamos mais acima. Por esta razão, faz parte do problema que analisamos e não da sua solução.

Podemos aqui estabelecer a quarta contribuição da TAR: a credibilidade do discurso midiático é produzida por uma composi-ção por parte do mediador da matéria jornalística como uma rede de proposições que aspira a ser recebida como verdadeira, e que é, portanto, “instaurada” de modo a resistir às críticas (provas de resis-tência), a partir da constituição de uma rede de referências em que diversas vozes, afirmam, confirmam, referendam, explicam, uma única proposição de verdade.

Com a hibridização multidisciplinar da Comunicação, a rejei-ção de cada abordagem pelos vizinhos de campo é intensificada pelo recurso ao repertório metodológico e conceitual de outras ciências já estabelecidas. Com a mobilização destas redes, a dita abordagem torna-se muito mais potente frente às concorrentes. Ela torna-se mais resistente às objeções, que passam a desafiar os pressupostos, teses e resultados já endurecidos pelas provas realizadas nos outros campos. Por outro lado, ela torna-se mais exigente na admissão dos questionamentos, argumentos e refutações feitas pelos seus concor-rentes, que passam a serem medidas frente a outros critérios de co-erência. Assim, por exemplo, a análise de discurso passa a exigir da sociologia da comunicação maior rigor no falar da produção de sentido, e a segunda passa a cobrar da primeira uma perspectiva tão sofisticada da sociedade quanto a que ela própria utiliza.

O lado positivo desta dinâmica de hibridização despertada pelo sonho da purificação é a riqueza multidisciplinar que compõe o atual campo da comunicação. O lado negativo é que nem tudo

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que é multidisciplinar é interdisciplinar. O preço desta dinâmica é que só poderá haver diálogo verdadeiro entre escolas que possam concordar, pelo menos, sobre os objetos e problemas válidos, sobre as influências decisivas no processo, bem como sobre como validar reciprocamente estudos e resultados. No caso de diferenças, deve-se instaurar pré-posições (chaves de interpretação e lentes de observa-ção) para compreender específicos modos de existência (os “regi-mes de felicidade” de cada teoria) (LATOUR, 2012a). Para essas escolas que habitam cosmos distintos, não há escapatória à inco-mensurabilidade apontada por Thomas Kuhn (2006) nos confrontos entre paradigmas12. Resta aos contendores denunciar e diagnosticar, como desviante ou destituído de sentido, tudo aquilo que não se en-caixa no seu próprio cosmos.

Este processo de mobilização de forças externas para resolver as disputas internas ao campo parece sugerir uma leitura na perspec-tiva teórica de Pierre Bourdieu, baseada em conceitos como campo, habitus e capital específico (BOURDIEU, 1987, 1996). Para esse autor, a ação social está na relação entre as “estruturas incorpora-das de ação”, que constituem o Habitus, e as “estruturas objetivas” (regras de ação, educação formal, gostos, relações de produção e concorrência) “de cada espaço social”. Esse é definido como “cam-po”, estruturado pela disputa em torno do seu capital específico. (BARROS FILHO e SÁ MARTINO, 2003). Esta perspectiva torna--se particularmente importante para uma área do conhecimento onde persiste a luta de defesa da “integridade do campo”, mas não parece produtiva olhando pela perspectiva da TAR.

Quinta Contribuição. Jamais abandonar o empírico em

favor de estruturas

Podemos desatar os nós disciplinares e encontrar possibilida-des novas de mobilização da pesquisa sem submeter os actantes a determinações externas pressupostas por cada escola de pensamento e ausentes ao nível da pesquisa empírica. O mapeamento das asso-

12 Para Kuhn, paradigma é um modelo de determinados processos de investigação da ciência. São soluções universais, conjunto padronizados de regras, normas e métodos.

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ciações e das mediações dos atores não pode ser abandonado em prol da ação de estruturas exotéricas que agem a partir de fora. Só os rastros empíricos informam e interessam.

Mesmo sem recorrer a construções como o capital, o social, as estruturas e sistemas, tentativas mais recentes e mais sofisticadas foram feitas no intuito de articular os âmbitos micro e macro da so-ciedade, tal como a teoria de Bourdieu (1987, 1996), a estruturação de Giddens (1984), os Sistemas Complexos de Luhmann (1995) ou, em sentido inverso, o Interacionismo de Goffman (1999). No entan-to, essas abordagens apenas recolocam mais longe o velho problema das escalas. Para a TAR não bastam dialéticas entre interação local e estruturas (LATOUR, 2005a, p. 170).

Eis aqui a quinta contribuição: a vantagem de jamais aban-donar o empírico em favor de estruturas (ou estruturações dialéticas entre o local e o global). A rede “global” é necessariamente local em cada uma das suas partes, em cada uma das suas associações. Localizadores, articuladores e “plug-ins” são sempre mobilizados “achatando” o espaço, vinculando local e global de forma dinâmica em uma topologia plana. Para Latour (2005a, p. 194):

In effect, what has been designated by the term ‘local interaction’ is the assemblage of all the other local interactions distributed elsewhere in time and space, which have been brought to bear on the scene through the relays of various non-human actors. It is the transported presence of places into other ones that I call articulators or localizers.

O importante é estar atento ao que circula, à redistribuição de tempos e lugares em um espaço sem escalas. Assim, podem-se detectar diversas outras entidades que se deslocam e cujos deslocamentos eram dificilmente detectáveis pelas escalas artificiais (macro ou micro).

Sexta Contribuição. Do paradigma ao cosmograma

A pesquisa em comunicação se caracteriza como um conjun-to de atores (coletivos) com diferentes programas de ação e que, a partir da construção dos seus objetos, métodos e sistematizações, colaboram e competem por atenção e credibilidade através das con-

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trovérsias científicas ativas em cada período. Suas proposições são submetidas a provas de resistência que alimentam a própria rede em caso de sucesso, alimentam redes antagônicas em caso de fracas-so, ou ainda outras, suas sucessoras teóricas, para novas traduções quando se mostram insuficientes ou aproximativas.

O resultado desta produção não é necessariamente um para-digma, como propõe Thomas Kuhn (2006), nem depende apenas da acumulação de capital específico como quer Pierre Bourdieu (1987, 1996), tampouco pode ser entendido como resultado das suas qualidades epistemológicas intrínsecas, como sugere Karl Popper (1993). Para a TAR, podemos dizer que existem atores com suas estratégias e programas de ação em permanente disputa em torno de algo que poderíamos facilmente concordar em chamar de “capital específico”. Sejam estes pesquisadores individuais, grupos de pes-quisa, faculdades, “escolas de pensamento” ou até mesmo imensas redes como “a filosofia continental” ou a “tradição do pragmatismo anglo-saxônico”. Eles não são nem sujeitos individuais, nem ava-tares coletivos. Estes atores-redes só podem ser conhecidos pelos seus rastros, ou seja, através de registros, publicações, referências e resultados das pesquisas e debates13.

O esforço destes atores consiste em completar e comunicar seus achados, os quais estão necessariamente conectados a outros trabalhos, refutando-os, confirmando-os ou apoiando-se neles para sustentar suas próprias afirmações. O resultado da conexão entre es-tes actantes é uma rede que poderemos chamar de “abordagem x” ou mesmo “teoria x”, desde que convencidos da coerência e solidez das suas conexões. A dinâmica das controvérsias atende à perspectiva baseada no teste de falseamento de Popper (1993), desde que se con-sidere que não há juiz, júri, nem julgamento isento a que recorrer.

Esse processo coloca em jogo redes muito maiores de actantes e projetos. Não chamaremos estas redes de paradigmas, mas dire-mos que constituem cosmogramas, o que pode vir a significar muito

13 O trabalho de José Luis Braga sobre os temas discutidos em artigos publicados em eventos científicos na área de comunicação no Brasil é, nesse sentido, muito próximo da pesquisa “ator-rede”, mesmo que ele não estabeleça nem reivindique essa proximidade. A pesquisa foi apresentada na conferência de abertura do ano letivo do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, FACOM/UFBA, Salva-dor, Bahia, 2011.

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menos que um paradigma, uma visão de mundo, uma ideologia ou um sistema, mas traz a vantagem de estar completamente disponível à análise empírica graças à topologia plana de que falamos no tópico anterior. Surge daí a sexta contribuição da TAR, traduzindo as gran-des questões epistemológicas da seguinte forma: o papel do analis-ta é mapear as redes de associações entre os actantes mobilizados para determinados programas de ação, de acordo com estratégias para suportar provas de resistência (tentativas de falseamento por programas adversários), anotando cada conexão de acordo com os papéis que assumem nas delegações, mediações ou intermediações, de modo a visualizar o cosmos desenhado por estas associações.

O paradigma é o “frame’, o enquadramento teórico estabili-zado. O cosmograma é o movimento e o desenho da distribuição da agência, da mobilidade. Nesse mapeamento todos os atores-redes considerados relevantes para um programa de pesquisas, campo ou área do conhecimento, ganham sentido. Os cosmogramas, como os paradigmas, tendem a estabilizar-se como caixas-pretas, ou seja, como arranjos com maior coerência, resistência e durabilidade. Mas o cosmograma é o diagrama das mediações, é o desenho do movi-mento. O paradigma, a mediação transformada em um “modelo” ge-ral, como “estrutura”. Cada cosmograma é resultado de um trabalho de construção animado por certo programa de ação. No entanto, isto não serve como denúncia de manipulação, nem implica, por outro lado, um relativismo absoluto.

Basta lembrar que tudo começa nos rastros coletados pelo analista14, portanto, nos dados empíricos. Desta forma, e diferen-temente do modelo ou estrutura geral que é o paradigma, a rede permanece bem presa à realidade, mesmo que composta por des-locamentos, traduções e composições as mais heterogêneas. É esta consistência de referências circulantes que garante cada proposição, não sua coerência interna.

São as associações que permitem a cada ator-rede resistir às provas de resistência, críticas, ou tentativas de falseamento. A ga-

14 Esse é um ponto sempre polêmico já que os actantes “falam” e o analista descreve. Essa situação é compreendida pela TAR no momento em que o analista é também um actante e que a objetividade da descrição vai se dar pelo confronte entre outras descrições sobre o mesmo objeto.

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rantia metodológica de coerência reside no fato de que este trabalho deve seguir sem jamais abandonar o “rés do chão”, buscando revelar as agências distribuídas em uma rede achatada, sem escalas, em que todos os actantes estejam no mesmo nível. Desenhando cosmogra-mas, o analista não precisa recorrer a estruturas, sistemas, contextos ou poderes em outros níveis que desastradamente eliminem e obs-curantizem as redes e as conexões. A tarefa é percorrer a rede, se-guir as ações, o movimento (o verbo, como propõe Schiolin, 2012). A disputa entre paradigmas é sempre importante, mas não explica à distância, de cima para baixo, o desenrolar do debate científico. Com o paradigma vemos apenas a caixa-preta. Com o cosmograma aponta-se para a sua formação. Um é geral e estático. O outro é em-pírico e em movimento.

Como se pode ver, um elemento fundamental para este tipo de análise é a controvérsia entre atores concorrentes. O seu valor reside em expor a complexidade, a variabilidade e a ambiguidade que a necessária coerência interna característica dos cosmogramas escondia como necessidades lógicas. Trata-se de analisar a contro-vérsia para visualizar novamente como problemático aquilo que se assumiria como dado. Com a “cartografia de controvérsias” (VEN-TURINI, 2010, 2012), como veremos no próximo capítulo, busca-se flagrar a construção e a mobilização de argumentos e actantes onde as respectivas redes fingiam apresentar apenas a natureza das coisas. Transformar “matters of fact” em “matters of concern”. A coisa não como um objeto, mas como o que nos coloca em “causa”.

Cada proposição de verdade mobilizada para constituir um dado cosmograma parecerá inquestionável, uma vez que amarra-da pela coerência geral do cosmos em que passa a ganhar sentido. Desamarrar os laços que dão consistência à realidade é necessaria-mente uma tarefa difícil, porém duas oportunidades apresentam-se: testemunhar e registrar as estratégias dos atores na constituição de uma rede, percebendo como são fechadas essas caixas-pretas, ou flagra-las abertas e voltar a ver as diversas estratégias de ação, os con-flitos escondidos pela coerência do cosmos que está sendo estudado.

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Sétima Contribuição. Identificar e abrir caixas-pretas

Daí surge a sétima e última contribuição: um método dese-nhado para flagrar a constituição interna das caixas-pretas, sem que a sua consistência pareça naturalizada pela coerência do cosmogra-ma. Antes do fechamento das caixas-pretas, durante o projeto e de-senvolvimento do objeto em questão (seja ele uma lei, um veículo noticioso, um dispositivo técnico, uma reportagem, um partido polí-tico, um concerto sinfônico), o ideal é o recurso à etnometodologia como forma de acompanhar os atores, compreender seus programas de ação, a sua mobilização, as formas de mediação e a constituição da rede.

Mas, mesmo após o fechamento, ainda é possível recuperar a constituição da rede. Uma genealogia do objeto de estudos e a recu-peração histórica e bibliográfica de programas de ação através dos seus diversos registros podem permitir, desde que haja inscrições suficientes registradas e recuperadas, a revelação da constituição interna de uma caixa-preta. Toda a pesquisa genealógica, históri-ca, todo livro-reportagem, ou documentário histórico cumpre este papel. O livro fundador da TAR, “A Pausterização da França” (LA-TOUR, 1988a) é um exemplo.

Finalmente, ainda é possível abrir as caixas-pretas quando o seu projeto é colocado em crise por um fator externo, um progra-ma adversário, uma teoria crítica, uma facção divergente, ou seja, sempre que houver a necessidade de se questionar o que parecia natural ou de recuperar o que havia de problemático em uma rede estabilizada. Trata-se de apontar inconsistências, exigir a inclusão das demandas de um grupo, ou programa de ação que havia sido esquecido etc. Neste caso, a “cartografia de controvérsias” pode ser aplicada de modo a reconstituir como disputa os dois programas de ação, já que a defesa do objeto disputado implica a mobilização da sua rede para fazer face à crítica. As estabilidades serão postas em crise. As caixas-pretas serão abertas, por um lado ou pelo outro. A controvérsia é já em si a abertura da caixa-preta.

Seja através da pesquisa etnográfica, da genealogia históri-co-documental ou do mapeamento das controvérsias, a TAR pode contribuir para as ciências da comunicação e particularmente para

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a teoria do jornalismo de modo a superar muitas disputas impro-dutivas, recuperando importantes contribuições passadas e aumen-tando a nossa capacidade de propor novas leituras dos fenômenos da comunicação social, ancoradas na experiência empírica e mais criticamente aguçadas, sem alimentar novas fantasias de purificação e hegemonia no campo.

contribuições gerAis

Muito dos estudos sobre comunicação digital insistem nos cli-chês, nos estereótipos ou em análise nas quais os atores só aparecem para reforçar um enquadramento previamente estabelecido. Eles, os atores, são esquecidos em prol de generalizações, a mobilidade em prol da fixação confortável da estrutura. Na maioria dos casos, as associações são apenas pretextos para trazer, mais uma vez, esse grande intermediário que é o “frame teórico”.

Pensemos nos estudantes de mestrado e doutorado dos nossos programas de pós-graduação em comunicação (ou mesmo de ou-tros). Eles normalmente chegam com os “frames”, com as “teses” que pressupõem generalidades muitas vezes sem nenhuma evidên-cia de ações sociais concretas, ou mesmo de rastros teóricos bem construídos. Notem que sempre a questão do objeto e do método é negligenciado em prol da hipótese generalista, como se soubessem das causas de antemão15. E isso não é culpa deles. Nós, os profes-sores, avaliadores e orientadores fazemos e pedimos isso. Fomos treinados assim, para purificar os híbridos e generalizar as causas. É, simplificando bastante, a “religião do conhecimento” moderno que critica Latour desde “Jamais Fomos Modernos” até o recente “Enquete sobre os modos de existência”. Normalmente, quando per-guntamos qual o objeto ou a metodologia, a resposta é que ou não se tem ainda, ou que isso será feito depois!

Parece ser bastante sintomático esse procedimento. Já há o fra-me, mas não há objetos, nem formas de traçar e descrever as asso-

15 No caso de uma tese ou dissertação teórica, isso pode ocorrer quando o autor não constrói os rastros dos principais conceitos (uma genealogia) e se dedica apenas ao que interessa ao seu enquadramento. Trabalhos de viés “crítico” são os mais fáceis para identificar essa tendência.

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ciações. A tensão aparece de forma exemplar no diálogo entre um doutorando e um professor no “Reassembling the Social” (LATOUR, 2005a, p. 141 e seguintes). No fundo é como se a “moldura” fosse mais importante do que o quadro a ser pintado. Isso mostra como a “grande sociologia” ou, no caso da comunicação, as “ciências so-ciais aplicadas”, carecem de boas descrições dos objetos e de boas cartografias dos rastros. Como eles se limitam a repetir intermedi-ários, clichês e frames são construídos e reforçados o tempo todo. Pouco importam os agentes, já que o frame será aplicado e os fará “dançar conforme a música”. Pouco importa a metodologia, já que a resposta já está dada de antemão. Descrever o objeto parece ser um trabalho menor, sem importância, para “formigas”! Esse é o lugar muitas vezes do fundamentalismo crítico ou utópico.

Ora, o problema parece ser para a TAR justamente o oposto. Um trabalho não é bom se não for descritivo o bastante, se não man-tiver o olhar para os rastros. Descreva, descreva, descreva e você encontrará os principais mediadores (actantes), os intermediários (que transportam, mas não mudam nada), as ideologias, as forças, os poderes, as razões, as estruturas e as agências circulando. É a falta de uma boa descrição que faz de um trabalho um desperdício, ou apenas reforço de estereótipos ou caixas-pretas. Para fazer um bom trabalho nas ciências sociais, deve-se descrever e observar as controvérsias. As redes de atores e os atores-redes, como evento em circulação, são movimentos. E é por isso que o frame ou a grande hipótese é mais fácil. Eles congelam e permitem a análise a partir de um porto seguro, mesmo que fictício (o macro, ou o micro, o con-texto, ou o indivíduo).

A complexidade não está nos enquadramentos generalistas a priori, mas justamente na objetividade que só se exercita pela produ-ção de múltiplos pontos de vista e no movimento da agência só detecta-do (na realidade produzido, inscrito e construído) pelo monitoramento dos rastros. A objetividade (do objeto) e a subjetividade (do sujeito) devem ser pensadas como erros de perspectiva, como soluções artifi-ciosas exercidas pela grande divisão (“bifurcation”, para Whitehead) instituídas pela “Constituição” da modernidade. A modernidade nada mais é do que a “proliferação dos híbridos cuja existência – e mesmo a possibilidade – ela nega” (LATOUR, 1994a, p. 40).

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De fato, só há aquilo que é produzido por múltiplos olhares, diferentes visões e pontos de vista que emergem do objeto-sujeito, do sujeito-objeto, dos “quase-objetos” ou “quase-sujeitos”. O obje-tivo não é o que está do lado do objeto, assim como o subjetivo não é o que está do lado do sujeito. Não há sujeito sem objeto, nem objeto sem sujeito e quanto mais temos um, mais temos o outro. E na socio-logia do social são os actantes não-humanos os que estão faltando no balanço de massa da sua teoria. Como explica Latour (1992, p. 227):

To balance our accounts of society, we simply have to turn our exclusive attention away from humans and look also at nonhumans. Here they are, the hidden and despised social masses who make up our morality. They knock at the door of sociology, requesting a place in the accounts of society as stubbornly as the human masses did in the nineteenth century. What our ancestors, the founders of sociology, did a century ago to house the human masses in the fabric of social theory, we should do now to find a place in a new social theory for the non-human masses that beg us for understanding.

Objectivity and subjectivity are not opposed, they grow together, and they grow irreversibly together. The challenge to our philosophy, social theory, and morality is to intent political institutions that can absorb this much his-tory, this huge spiraling movement, this destiny, this fate... At the very le-ast, I hope to have convinced you that, if our challenge is to be met, it will not be met by considering artifacts as things. They deserve better. They deserve to be housed in our intellectual culture as full-fledged social actors. They mediate our actions? No, they are us.

Deve-se evitar a polarização, portanto, a purificação dos hí-bridos que coloca em lugares distintos o objetivo e o subjetivo, o lo-cal e o global, a cultura e a natureza. Só há híbridos e devemos parar de tentar purificá-los. Para Callon, essas redes não podem ser vistas como redes de sujeitos ou de objetos já que ela “mélangent humains et non humains (dispositifs techniques, électrons, anticorps mono-clonaux...), inscriptions de toutes sortes et monnaie sous toutes ses formes” (CALLON, 1991, p. 225).

Para o campo da comunicação, onde artefatos comunicacionais existem desde a invenção da escrita e modelam a nossa relação com o mundo, como não pensar a equivalência entre actantes humanos e

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não-humanos, trabalhando com relações simétricas? Com isso não pre-tendemos negar a potência humana em relação aos outros objetos, mas parece ser interessante para compreender a cultura digital não sustentar uma causa inerente às coisas que colocaria o humano no topo dessa ca-deia. Uma ontologia plana evita que, em primeiro lugar se divida huma-nos e não-humanos e, em segundo lugar, que a agência esteja apenas do lado do humano (HARMAN, 2009, 2011b; LATOUR, 1994a, 2005a).

Com esta postura, revela-se uma multiplicidade de materiais heterogêneos conectados por múltiplas dinâmicas, em movimento. Todos os fenômenos são efeitos dessas redes que mesclam simetri-camente pessoas e objetos, dados da natureza e dados da sociedade, oferecendo-lhes igual tratamento. O mérito desse posicionamento epistemológico é o de evitar falar de essência, ou qualidades in-trínsecas das coisas (das mídias, das Tecnologias de Informação e Comunicação - TIC - no campo da comunicação). A atenção deve se voltar para as transformações que um actante faz a outro, às me-diações, às traduções e ao posterior equilíbrio na formação de esta-bilidade nas caixas-pretas. Por esse ângulo de análise, não podemos dizer que uma determinada tecnologia, ou mídia, seja isso ou aquilo. Ela não “é”, mas está sendo, na associação.

Os enquadramentos das ciências da comunicação, seus gran-des temas e visões de mundo não podem ser usados de antemão para explicar as associações no campo midiático. Eles só podem emergir, se emergirem, após a análise dos rastros, a descrição dos actantes envolvidos na ação comunicativa (que não é a habermasiana, já que englobaria também a comunicação das coisas). Devemos considerar simetricamente os esforços para arrolar recursos humanos e não-hu-manos. Devemos reconhecer que nem sempre instrumentos episte-mológicos e metodológicos aceitam essa compreensão do social ou postulam o reconhecimento de “atores” não-humanos como agentes para a ação.

Para a comunicação, acho que essa é uma das mais óbvias contribuições da TAR para pensar a dimensão das redes sociotécni-cas e seus modos de mediação em jogo na atual cibercultura. Uma teoria que pressupõe considerar para análise do social as ações como topologicamente equivalentes entre humanos e não-humanos e que torna aparente as diversas associações entre esses atores revelando

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suas redes, parece ser muito oportuna para pensar a comunicação e a cultura digital.

Os conceitos e pressupostos teóricos apresentados até aqui trazem noções muito perturbadoras para as ciências sociais e huma-nas. O exposto até aqui afirma posições fortes que devem ser pensa-das, criticadas, relativizadas, mas levadas em consideração com co-ragem, principalmente no campo da comunicação e da cibercultura. Sintetizando podemos dizer que a TAR propõe que:

1. Humanos e não-humanos estão em uma mesma posição;2. Não há essência e tudo se define na associação;3. Não há transcendência, só imanência para pensar os sal-

tos, o gap de uma coisa em sua busca pela subsistência;4. Se não há ação (mediação, tradução ou delegação), não

há nada;5. Tudo tende a se estabilizar em caixas-pretas, que são re-

soluções temporárias;6. Tudo é ficção e ela se dá por inscrições híbridas, “produ-

zindo e construindo os fatos”, a realidade;7. Tudo está em movimento e uma coisa é irredutível à ou-

tra;8. O social não existe como externalidade. Ele não explica

as controvérsias, mas se faz e se desfaz o tempo todo ne-las;

9. As escalas são ilusões, entendidas aqui como ficções construídas.

Vamos retomar o debate nos capítulos que se seguem, mas antes é preciso mostrar os novos caminhos dessa teoria, suas novas veredas abertas pela enquete dos modos de existência.

pós-tAr, ou como os modos de existênciA

AmpliAm As redes

Para encerrar este capítulo, devo apontar para a perspecti-va que chamarei aqui sem muita convicção de “pós-TAR”. Ela foi

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adotada, sem esse nome, por Latour em sua última obra, “Enquête sur les Modes d’Existence” (LATOUR, 2012a). O novo livro não é apenas um livro, mas um projeto aberto que implica na partici-pação de outros pesquisadores de várias partes do mundo por meio das tecnologias de informação e comunicação16. O livro tem como consequência maior colocar a noção de rede como um dos modos de existência e não mais como a questão central da teoria. A teoria ator--rede é, de agora em diante, uma “Teoria dos Modos de Existência” (TME). O objetivo aqui é apenas apontar algumas mudanças sem ser uma resenha completa desse novo projeto.

O livro retoma definitivamente a obra “Jamais fomos Moder-nos” (1994a), mas não apenas essa. Vemos discussões que estão no “Vida de Laboratório” (1997), “Les Microbres: guerre et paix, sui-vi de Irréductions” (1984), a “Pausteurização da França” (1993), a “Política da Natureza” (2004), “Reagregando o Social” (2005) etc. O projeto retoma 30 anos de pesquisa de Latour e, por isso mesmo, revisita suas obras mais importantes sem que haja referências ex-plícitas. Aliás, ele é um livro acadêmico inovador e diferente já que oferece links para o site do projeto, por um lado, e nenhuma refe-rência de pé (ou fim) de página, ou mesmo referências bibliográficas completas no final. Podemos ver os livros anteriores nas entrelinhas. Alguns autores são explicitamente citados sem referências formais às suas obras (Whitehead, Tarde, Souriau, entre os mais importan-tes). O subtítulo do livro é “Uma antropologia dos Modernos”, fa-zendo assim uma ligação direta com o tema desse que está relacio-nado a uma das suas obras mais importantes.

Para Latour, a tarefa de fazer uma antropologia dos modernos é retomada de forma mais positiva (não mais afirmando que não fo-mos modernos, mas buscando identificar o que nos faz modernos e tirando daí suas conclusões), pois a urgência da situação do planeta exige respostas sobre as questões tecnológicas, econômicas, filosó-ficas, sociais que remetem a uma compreensão sobre os modos de existência.

A sua filosofia pragmática quer compreender o mundo em sua organização a partir dos modos de existir. Dessa forma, o direito, a

16 Ver o site http://www.modesofexistence.org onde há materiais de suporte, formas de colaboração, equipe, projetos, o livro “aumentado”, um blog etc.

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religião, a técnica, a estética... são modos de existência que se sobre-põem e que exigem formas de abordagem e de alcance para atingir o que Latour chama no livro de “condições de felicidade”. Como mostra Stephen Mueck, do Los Angeles Review of Books17 em uma resenha sobre o “Enquete”:

Instead of the monolithic, transcendent Reason we have inherited (or think we’ve inherited) from the Enlightenment, the Latourian adventure starts in the middle of our daily lives, in immanent constructions, mediations, and repetitions that are “paid for” by efforts of translation and displacement. In his proliferating mobile networks, nothing ever goes straight from cause to effect, or from subject to object; the course of existence never does run smooth. Transparency is an illusion, because various mediations get in the way, not the least of which are the technologies that continue to remake institutions, “nature,” and even living things.

É interessante notar como agora Latour coloca a rede em ou-tra posição, não como o conceito central de sua teoria (ator-REDE), mas como um dos quinze modos de existência, influenciado for-temente por Étienne Souriau, e menos por Simondon (referência imediata quando pensamos em “modos de existência”18). Os quinze modos de existência, seus hiatos e trajetórias, suas condições de feli-cidade e infelicidade, suas “instaurações” e “alterações”, todos estão explicados ao longo do livro19 e são compilados no final como uma tabela dos modos agregados em cinco grupos. Como explica Latour (2012a, pp. 488-489):

17 Ver http://lareviewofbooks.org/article.php?id=1279, de 28 de dezembro de 2012.18 Perguntei a Latour se ele via alguma aproximação entre o seu novo trabalho e o

de Simondon (1958) e ele respondeu que a referência forte é Souriau, como pode ser visto no último capítulo deste livro: “Retomo, de fato, as palavras “modo de existência” e evidentemente a técnica – que me interessa muito –, mas a ligação não é direta. A aproximação é mais importante com Etienne Souriau, um autor completamente desconhecido que ressuscitamos, e que escreveu um pouco antes de Simondon um livro que se chama “Les différents modes d’existence”, e que é o único livro de fato realmente conectado ao meu projeto. Mas Simondon é impor-tante porque é um dos únicos a desenvolver uma filosofia da técnica séria”.

19 Não vou discutir todos os aspectos do novo livro. O que me interessa aqui é resga-tar algumas noções que me parecem interessantes para pensar a TAR em sua nova fase e no contexto da discussão proposta neste livro.

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Le tableau récapitule l’état de l’enquête présentée dans le rapport; on trouvera en ligne les quinze modes reconnus jusqu’ici rassemblés en cinq groupes; on trouvera en colonne les quatre questions canoniques auxquelles on a soumis chacun des modes: quel est le hiatus et la trajectoire qui leur est propre (co-lonnes 1 et 2); quelles sont les conditions de félicité et d’infélicité (colonne 3); quels sont les êtres qu’il faut se préparer à instaurer (colonne 4) ; enfin, quelle altération subit à chaque fois l’être-en-tant-qu’autre (colonne 5).

A rede é importante, mas falha ao não detectar a qualidade das associações. Ela mostra bem a dinâmica das associações, mas não consegue revelar os valores dessas associações, suas diferenças, por exemplo, em relação ao direito ou à religião. Certamente, conti-nua como um elemento muito importante da teoria, mas é agora um entre quinze modos20. Em recente entrevista a Arnaud Esquerre e Jeanne Lazarus para o “La vie des Idées”21, Latour explica por que o conceito de rede não é mais o centro da pesquisa:

Le “réseau”, c’est une espèce de Buggy, de 4X4 qui m’a permis d’attacher ces terrains ensemble. “Symétrie”: je n’utilise plus tellement le terme parce que, tout d’abord, beaucoup d’eau a coulé sous les ponts. Ensuite, Philippe Descola a fait son travail de vrai anthropologue et a bouleversé considéra-blement la situation. Donc on n’a plus besoin de justifier maintenant qu’on fasse une anthropologie des naturalistes, qui sont d’ailleurs, d’après lui--même, le plus bizarre et le plus anthropocentrique des quatre modes de relation que les collectifs établissent avec les existants. Ça m’a beaucoup simplifié la tâche.

20 Ver a resposta dada sobre o assunto na entrevista do último capítulo: “Eu mudei na análise dos modos de existência. O modo em rede é um modo de análise que não é suficiente. A análise ator-rede é ideal para destrinchar as associações, mas há uma enorme falha, em particular, a de não entender a variedade das conexões. Não manteria a minha posição sobre o conceito de potência. O ator-rede é um dos modos, uma das formas de preparar o terreno. Mas ele deixa escapar essa coisa muito importante seja no direito, no terreno religioso etc: as pessoas que estão nessas práticas fazem muito bem a distinção entre ciência, religião, direito. A análise em termos de redes não é capaz de as captar. Ela funciona muito bem como ferramenta para delinear associações, mas é insuficiente para caracterizar os modos de existência”.

21 Le Diplomate de la Terre. Entretien avec Bruno Latour., in http://www.laviedesi-dees.fr/Le-diplomate-de-la-Terre.htm

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Ce qui est compliqué à comprendre, peut-être, pour ceux qui connaissent le reste de mon travail, c’est que le réseau n’est plus le mode principal de con-duite, de véhicule. Le monde s’est un peu peuplé: il y a plus de véhicules qui se déplacent dans des formes différentes. Même si le réseau reste abso-lument indispensable comme mode de connexion d’enquêtes, parce que le réseau reste la grande arme contre la notion de domaine clos, qui permet de sortir de l’idée que le droit a ses propres constructions, que la science est complètement différente de la politique, etc.

Mais ce n’est plus le réseau qui fournit le matériel unique, enfin, disons le centre d’attraction de l’enquête. Ça peut troubler des lecteurs, ça va en troubler, et ça en a déjà troublé quelques-uns, qui disent: ‘Oui, mais alors on abandonne l’acteur-réseau, on abandonne le mode d’enquête de l’acteur--réseau’. Ce que je trouve pas mal au contraire : oui, maintenant il faut res-pécifier, requalifier, à cause d’un projet intellectuel, qui est diplomatique, qui exige ce genre de requalification que le réseau ne donnait pas. Le réseau avait des avantages encore critiques, si j’ose dire. Disons qu’il était encore trop ‘20e siècle’...

Dessa forma, a noção de “modo” passa agora a ser mais im-portante do que a de rede, já que a engloba. Mais adiante, no capítu-lo cinco, proponho, como faço desde 2010, a ideia de “modo de me-diação”, que embora não seja a mesma coisa, em muito se aproxima. Modo é uma maneira de “investigar” as associações em jogo com os processos de espacialização com as mídias de geolocalização, é uma forma de “pré-posição”, tendo modos específicos (sonoro, visual, social, lúdico, acesso). O conceito de modo de existência de Latour pode ajudar a aprofundar a discussão sobre os modos de mediação locativos.

Para Latour, a enquete sobre os modos de existência deve evi-tar os erros “de sentido”, de direção, de lugar, erros topológicos, e não erros “dos sentidos”. Estes são facilmente superados seja por pesquisas, por mais dados ou por novas inscrições em instrumentos. De novo, o problemas não são os erros dos sentidos causados pelos “matter of facts”, mas os erros de interpretação, de posicionamento para transformar os “matter of facts” (os dados brutos, ou os fatos brutos, como vimos mais acima na análise da teoria do jornalismo) em “matter of concern”. Trata-se de não sucumbir nem ao conheci-

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mento objetivado, por um lado, nem ao ceticismo que consideraria tudo erro de sentidos, por outro.

O que interessa, afirma Latour, retomando posições adotadas em “Vida de Laboratório”, em “Irreduções”, ou mais recentemente em “Reagregando o Social”, não são os erros dos nossos sentidos sobre o real, mas os erros de postura, de direção, de sentido, signifi-cando aqui direção (posição, localização mesmo) para a compreen-são de um problema. Por isso a rede não é mais o único modo para descrever as associações. Ela não é capaz de indicar esses modos de posicionamento. Cada erro de categoria corresponderia assim a um modo de existência, como aponta o filósofo Patrice Mainglier22. De-ve-se buscar quais os princípios de julgamento de cada modo para decidir sobre o verdadeiro e o falso. A pluralidade dos modos de existência significa que há uma pluralidade de regimes de verdade e que o ator-rede é, de agora em diante, apenas um desses modos. Para Latour (2012a, p. 63):

Ce qui nous intéresse en revanche ce sont les cas où l’on se trouve devant une confusion sur la matière même dont il faut aborder la question de la vé-rité et de la fausseté. Non pas la résorption d’erreurs dans un mode donné, mais l’incertitude sur le mode même. Non pas une erreur des sens, mais une erreur de sens.

Cada modo tem, consequentemente, o seu “mode de véridic-tion” (LATOUR, 2012a, pp. 65-66). Este não tem nada a ver com a definição epistemológica de verdadeiro ou falso. Ele cita o caso do direito que tem seus modos de verdade separados da ciência, ou da psicologia. Há aqui erros do direito e erros de categoria, esses sendo de posição, de localização, de direção. Pode-se dizer que há sempre um erro de detecção do verdadeiro e do falso no interior de um modo, assim como usos diferentes do verdadeiro e do falso de acordo com o modo escolhido.

Para detectar os valores, Latour propõe agora, junto com o modo “rede”, o modo “préposition”, tendo o sentido gramatical de

22 Ver artigo no Le Monde, “Qui a peur de Bruno Latour?”, disponível em http://www.lemonde.fr/livres/article/2012/09/21/qui-a-peur-de-bruno-latour_1763066_3260.html

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“pré-posição”, o que prepara para a tomada de posição, o lugar a partir do qual iremos investigar e constituir a interpretação. Assim, as redes servem para visualizar as mediações, inscrições, traduções, mas não ajudam muito para valorar essas relações. A rede mostra a situação e a descreve, a “pré-posição” estabelece o lugar de ob-servação, a sua chave de interpretação. A ideia dinâmica de rede é complementada pelo modo de “locativo” de pré-posição. Assim, afirma Latour (2012a, p. 74):

De toute situation, nous dirons donc qu’on peut la saisir d’abord sous le mode [res] — on va déployer son réseau d’associations aussi loin qu’il le faudra —, puis sous le mode [pre] — on va s’attacher à qualifier le type de connexions qui permet son extension. Le premier permet de capter la multiplicité des associations ; le second la pluralité des modes repérés au cours de l’histoire compliquée des Modernes. Pour exister, un être doit non seulement en passer par un autre [res] mais aussi d’une autre manière [pre]

en explorant d’autres façons, si l’on peut dire, de s’altérer.

Apontando claramente os seus limites, Latour mostra que a TAR permitiu compreender o social como um movimento de cone-xões extensas e que não conhece categorias ou limites decididos a priori por estruturas. Aprendemos que ela não toma o social como uma coisa. Discutimos ao longo deste capítulo e retomaremos a dis-cussão nos que se seguem. No entanto, a ideia de rede que está no seu bojo mostrou-se limitada para dar conta das qualidades das as-sociações. Fazendo uma autocrítica, Latour explica (2012a, p. 76):

Ce n’est donc pas tout à fait sans raison qu’on accuse cette théorie de ma-chiavélisme : tout peut s’associer avec tout, sans qu’on sache comment définir ce qui peut réussir et ce qui peut rater. Machine de guerre contre la distinction entre force et raison, elle risquait de succomber à son tour à l’unification de toutes les associations sous le seul règne du nombre de liens établis par ceux qui ont, comme on dit, “réussi”. Dans cette nouvelle enquête, le principe de libre association n’offre plus le même métalangage à toutes les situations, mais doit devenir l’une seulement des formes par lesquelles on peut saisir un cours d’action quelconque. Le plus libre, certes, mais pas le plus précis.

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O “racional” não será rechaçado, mas recolocado como plurali-dade (o que pode parecer inconsistente, já que a razão seria um princí-pio único e unificador). Ele será usado para expressar as redes (seguir os rastros dos actantes) e, o que se coloca agora como novo elemento, a identificação de trajetórias específicas de verificação da verdade a partir das distintas “pre-posições”. Consequentemente, a compreen-são racional não é abandonada e deve ser a forma de rastreamento da rede e a definição da preposição. Mas, que fiquemos atentos: “Com-prendre rationnellement quelque situation que ce soit, c’est à la fois déployer son réseau et définir sa préposition, la clef d’interprétation dans laquelle on doit la saisir [res·pre]” (LATOUR, 2012a, p. 78).

A TAR ganha, portanto, um novo e importante elemento que é a “pre-posição”, uma espécie de modulador das redes, uma forma de ajuste das interpretações e das descrições das associações permi-tindo a valoração, a detecção de condições de felicidade e de infe-licidade das assertivas e das interpretações dos diversos modos de existência. Assim podemos falar o social. Talvez possamos dizer que agora a “Teoria dos Modos de Existência” é uma “Teoria Pre-positiva do Ator-Rede”.

A rede passa a ser um dos modos a se levar em consideração. Na sua nova proposição, Latour chega a quinze modos de existência divididos em cinco grupos. O primeiro grupo é o dos quase-sujeitos e dos quase-objetos, com os respectivos modos de existência: Re-produção, Metamorfose, Hábito. O segundo grupo é o dos quase--objetos e seus modos técnica, ficção e referência. O terceiro é o dos quase-sujeitos com seus modos: política, direito e religião. O quarto é o de ligação entre quase-sujeitos e quase-objetos com os modos: apego (attachement), organização e moralidade. E o quinto e último é o grupo da metalinguagem da pesquisa, constituído pelos modos: rede, preposição e “Duplo Clique”, o demônio que nega as mediações.

Esses modos não pretendem dizer que tudo depende do ponto de vista, instituindo um relativismo, mas um relacionismo. Como explica Latour, trata-se de um “relationnisme pratique qui cherche, dans un protocole de mise en relation et de parangonnage, à éviter les ravages du relativisme – cet absolutisme du point de vue” (LA-TOUR, 2012a, p. 479). É um projeto, como vimos acima, racional

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e relacional no qual o objetivo é criar um “dispositivo diplomáti-co” que consiga colocar em discussão os modos de existência e os regimes de verdade e de felicidade desses modos. O relacionismo implica outra dimensão importante que é a da correspondência entre o mundo e os enunciados sobre o mundo.

Na entrevista, Latour afirma (quando pergunto se ele acha que a relação entre não-humanos e humanos se mantêm): “A articulação está no mundo. É o mundo que é articulado, não os humanos”. A afirmação é reforçada no novo livro com o exemplo da cartografia (o Mont Aiguille e o mapa), afirmando que o que importa na noção de rede não é a representação fidedigna do mundo externo (o mapa ser idêntico à montanha), mas as cadeias de referências, as inscrições e trajetórias que permitem eficiência dos “immutable mobiles” (o mapa, os gráficos, os jornais). Estes são documentos de inscrições muito precisos que funcionam por encadeamento de referências e não por similitudes com o mundo lá fora. Como explica Latour (2012a, p. 88):

Le gain de connaissance que permettent les mobiles immuables provient justement de ce que la carte ne ressemble aucunement au territoire, tout en maintenant par une chaîne continue de transformations - continuité cons-tamment interrompue par la différence des matériaux emboîtés - un tout petit nombre de constantes. C’est par la perte de ressemblance que se gagne la formidable efficacité des chaînes de référence.

Dessa forma, não está em questão a substituição dos encade-amentos de referências das coisas às quais eles fazem referência. O mundo continua seu movimento. Esse mundo, ou “objeto real” não é o mesmo das cadeias de referência dos immutable mobiles por serem inacessíveis, ou velados, como diriam Heidegger ou Harman, mas porque eles estariam em outro modo de existência. Os immu-table mobiles não são o mundo, pois esse está em outro modo de existência. Ou seja, o mundo é articulado, o conhecimento também, as cadeias de referências também, mas os modos precisam de cor-respondência. Como explica Latour (2012a, p. 97) devemos evitar esses erros de categoria.

Pour éviter de telles erreurs de catégorie, il nous faudra proposer une autre sorte de transaction, la plus difficile peut-être de ces représentations diplo-

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matiques à venir : il faudrait accorder la notion de mode d’existence au travail de la référence et, inversement, reconnaître aux existants la capacité d’être vrais ou faux, ou, du moins, comme on le verra, d’être articulés à leur manière.

Só um espírito maligno poderia tomar os immutable mobiles como intermediários, que fornecem a informação sem transforma-ção, sem mediação e de forma totalizante. Latour chama esse demô-nio de “Double Clique”. Ele é o que nega as traduções, as media-ções, a constituição das redes, colocando a análise, ora do lado do relativismo (que sacrifica a razão em nome das redes), ora do lado do absolutismo (que sustenta que há movimento sem transforma-ção). De acordo com Latour (2012a, p. 104):

En prétendant donner à toutes les formes de véridiction un modèle unique et inaccessible - le déplacement sans transformation, la raison sans réseau -, ce Mauvais Génie rendrait, par contraste, toutes les autres distinctions du vrai et du faux irrationnelles et arbitraires.

O relacionismo é assim a correspondência em uma rede de relações de modos de existência diferenciados.

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2. cArtogrAfiA de controvérsiAs

Il ne s’agit de dire que tout est constamment négocié, mais de reconnaître que rien ne peut être exclu a priori de la négociation et qu’il n’existe aucun critère (de vérité ou d’efficacité) qui s’impose irrévocablement aux acteurs. Les nécessités sont construites, consolidées et garanties (plus ou moins bien) par des rapports de force.

Michel Callon (1999, p. 155)

Neste capítulo vou apresentar um “método de aplicação” da TAR. Se a TAR é uma teoria, a Cartografia de Controvérsias (CC) é a sua metodologia. Vou explicá-la a partir da reflexão de Callon em “Pour une Sociologie des Controverses Technologiques” (CALLON, 1999) e de dois artigos fundamentais posteriores de Tomaso Ventu-rini1 (2010, 2012). Nesses dois textos, Venturini propõe um roteiro para a criação das “cartografias de controvérsias”. No final, apresen-to algumas controvérsias para ilustrar a análise. São controvérsias sobre gandulas, carros, cidades, informação e organização.

Onde há estabilização, só há intermediários. Onde há contro-vérsia, há mediadores, actantes. Consequentemente, a CC pode ser entendida como um método de pesquisa para revelar as mediações,

1 Ver o site de Venturini: http://www.tommasoventurini.it/web/

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como uma versão aplicada e didática da TAR, tendo sido adotada em várias universidades europeias e americanas2. Ela está em ex-pansão com o novo projeto de Latour (LATOUR, 2012a). A CC não é exclusiva de domínios tecnocientíficos, embora, como a TAR se origina nos estudos de ciência e tecnologia, há muitos exemplos nesse campo. Nosso desafio, particularmente, é tentar aplicar a TAR e a CC ao campo da Comunicação e, mais especificamente, na área das mídias digitais e da cibercultura.

controvérsiAs

A controvérsia é o momento ideal para revelar a circulação da agência, a mediação, as traduções entre actantes, a constituição de intermediários, as relações de força, os embates antes de suas esta-bilizações como caixas-pretas. Na controvérsia, negociações se es-tabelecem e engajamentos são desenhados para futuras resoluções. Como uma sociologia da mobilidade, a TAR tem nas controvérsias o momento e o lugar privilegiados para observar a circulação, a cria-ção e o término das associações, para observar a “agregação social”3.

A controvérsia revela, como afirma Venturini, o “magma” social. Quando finda a controvérsia, cristalizam-se as ações, enrije-cem as relações, estabilizam-se os problemas e só aguardando novos acidentes poderemos ver as caixas-pretas voltarem a se abrir e delas saírem os novos problemas. Enquanto “magma”, as relações não es-tão nem no estado líquido (onde ainda não temos actantes, apenas indiferenciação), nem sólido (onde só temos caixas-pretas, resolu-ção e estabilização). A controvérsia é o momento onde ficam mais visíveis os actantes. Como mostra Callon (1999, p. 139), analisando a controvérsia sobre o veículo elétrico: “L’étude de cette contro-

2 O site Macospol (http://www.mappingcontroversies.net/Home/MacospolParis) agrega essas instituições: Fondation Nationale des Sciences Politiques (France); University of Oslo (Norway); Observa, Vicenza, (Italy); University of Munich (Germany); Université de Liège (Belgium); Ecole Polytechnique Fédérale de Lausanne (Switzerland); University of Amsterdam (Holland); University of Man-chester (United Kingdom).

3 O título da tradução brasileira do livro “Reassembling the Social. An introduction to Actor-Network Theory” é “Reagregando o Social. Introdução à Teoria do Ator--Rede”. EDUC, EDUFBA, 2012.

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verse montre que les principales catégories utilisées pour décrire la réalité sociale sont en permanence construites et déconstruites par les acteurs”.

Foi pela análise das controvérsias que os primeiros estudos da TAR sobre o conhecimento científico e o desenvolvimento de tecnologias mostraram a ineficácia dos procedimentos sociológicos que tomavam essas áreas como subdomínios e como externos ao so-cial. Vimos como a TAR, em suas origens, surge como uma crítica aos estudos de ciência e tecnologia que, de uma maneira ou de outra, tomavam o social como uma externalidade, ou, melhor dizendo, o social como causa, instituindo uma clara separação entre campos, sujeito, objeto, estrutura, indivíduo…

Os primeiros estudos mostraram que essa separação não era produtiva para entender a ciência e a tecnologia e depois, expandin-do as suas fronteiras, não era produtiva para entender a vida social em seus diversos aspectos. A TAR sai do domínio dos estudos em ciência e tecnologia e entra no domínio epistemológico de uma on-tologia do social. “Vida de Laboratório” (LATOUR e WOOLGAR, 1997) mostrou a produção da ciência a partir das noções de híbrido, de inscrições, de redes e de mediações. Callon é bem claro a esse respeito. O foco da atenção nas controvérsias científicas permite ver “la science en train de se faire” (CALLON, 1999, p. 135). Agora o objetivo é expandir e ver “a sociedade se fazendo”.

A melhor maneira de entender, não só os pressupostos de funcionamento da ciência, como o desenvolvimento tecnológico, é abandonar as categorias sociológicas globais e dirigir o olhar para os momentos em que elas tomam forma, nos quais noções fundamen-tais, ideologias e projetos estão sendo construídos e debatidos. Esse momento é a controvérsia, momentos de abertura, de circulação, de negociações que delimitam a escolha, o sucesso ou fracasso de de-terminado empreendimento.

Muitas das controvérsias analisadas na literatura mais inicial da TAR favoreciam estudos de cunho científico e tecnológico. Isso pode ser visto como uma herança dos estudos em STS, como vimos. Mas, certamente, podemos expandir para todas as áreas das ciências sociais: a instalação de um novo transporte urbano, o desenvolvi-mento de dispositivos de comunicação, a criação de interfaces para

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aplicativos, a decisão sobre leis e normas, a retirada de povos de suas terras para projetos de irrigação, implementação de chips em uniformes escolares, uma lei que indique em que grupo musical o Estado deve ou não colocar seus recursos de apoio à cultura... Como as controvérsias apontam para a relação “ator e rede”, elas seriam, como afirma Venturini, “a clear illustration of the meaning of the hyphen in Actor-Network Theory” (VENTURINI, 2010, p. 261-262).

Essa abordagem pode ser interessante para pensar a “interfa-ce” entre a esfera comunicacional e as novas tecnologias de comu-nicação e informação. Vamos mostrar isso nos próximos capítulos. Aliás, pensar na interface (comunicação - tecnologia) já revela uma maneira de analisar a comunicação como algo que estaria fora da relação com os objetos. Ela seria assim, contaminada pelos artefatos tecnológicos, como vimos no capítulo anterior ao analisarmos a con-tribuição dessa teoria ao campo do jornalismo. O “campo” da comu-nicação deveria buscar adotar teorias que pensem a relação entre o humano, o simbólico, a tecnologia, o ambiente, sem cair em dico-tomias ou ilusórias separações e purificações. Não dá para pensar o processo comunicativo sem entender as tecnologias da informação, os objetos técnicos, o mundo das redes telemáticas, os ambientes infocomunicacionais, em suma, as redes sociotécnicas em constante circulação. Como explica Callon (1999, p. 136-137),

À l’épicentre des controverses technologiques, là où la technique prend for-me, les acteurs sont plus audacieux que les sociologues ou les économistes, puisqu’ils n’hésitent pas à remettre en cause et à réagencer toutes ces no-tions ‘fondamentales’ que nous utilisons pour décrire la société. C’est en ce point de fusion de la réalité que nous allons nous rendre.

Para Callon, as controvérsias ligadas às tecnologias apresen-tam quatro características (que são certamente aplicáveis às polê-micas em relação às mídias digitais e à cibercultura). São elas: 1. A controvérsia é sobre um objeto técnico, mas não se reduz ao objeto pura e simplesmente técnico, já que esse não existe. Todo objeto é social e deve ser visto pelas suas relações; 2. As soluções são sempre múltiplas e sem direção dada de antemão, já que envolvem a nego-ciação entre diversos actantes que são eles mesmos redes, eventos,

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híbridos; 3. Os grupos implicados têm interesses variados, cosmo-visões que entram em conflito e que revelam forças e hierarquias diferenciadas; e, 4. As forças tendem a se equilibrar nas negociações ao longo da controvérsia, esfriando-a, criando pontualizações ou caixas-pretas.

As controvérsias são resistentes às reduções, apontando sem-pre para inúmeros fatores. Elas existem justamente por haver deses-tabilização, quando as coisas que estavam no fundo, despercebidas e estabilizadas, passam para a frente da cena, colocando o proble-ma em evidência e gerando novas mediações. Abrem-se as caixas--pretas. Logo, podemos ver as controvérsias como mundos que en-tram em conflito, como “modos de existência” em embate antes das estabilizações e da “agregação social”. Dessa forma, as controvér-sias seriam a melhor ferramenta para ver o social. Para Venturini (2010, p. 264):

Controversies are complex because they are the crucible where collective life is melted and forged: they are the social at its magmatic state. As the rock in magma, the social in controversies is both liquid and solid at the same time. But there’s more to this metaphor: in magma solid and liquid states exist in a ceaseless mutual transformation; while, at the mar- gins of the flow, the lava cools down and crystallizes, some other solid rock tou-ched by the heat of the flow melts and becomes part of the stream.

Podemos dizer que as críticas da TAR à “sociologia do social” são: o social é consequência e não causa das associações; humanos e não-humanos inscrevem e mediam ações criando redes por onde a agência circula sem essência; mais do que estruturas fixas, macro, agindo sobre sujeitos nas microrelações, temos complexas relações recursivas e negociadas a cada associação; fenômenos não podem ser explicados por categorias definidas a priori; cada actante é uma mônada, ao mesmo tempo indivíduo e rede, onda e partícula; não há essência e tudo se faz nas associações...; todas elas encontram na análise das controvérsias seu momento principal de observação e comprovação.

A prática de sociólogos e antropólogos em separar atividades simbólicas e institucionais, ou de separar lógicas tecnológicas de lógicas sociais não é nada produtiva e não explicaria o funcionamen-

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to das ciências, nem das tecnologias, nem da cultura digital. Essa purificação não explicaria nada das associações e das relações que compõem a vida social, das redes, da circulação e do movimento das ações. Callon (1999) vai criticar, nesse contexto, Althusser, que separa instâncias, Parsons, que separa sistemas, e Bourdieu, que se-para “capitais”. A separação entre técnica, social, simbólico, cultura seria a causa do fracasso da crítica da técnica contemporânea. As controvérsias permitem, portanto, colocar em evidência o fracasso da separação, da purificação e da categorização artificiosa das re-lações entre actantes humanos e não-humanos, reforçando os pri-meiros e apontando o social como uma coisa externa que explicaria os outros subsistemas. Como revela Callon (1999, p. 146): “Cette tendance à mutiler le social, en extirpant sa composante technique pour lui réserver un traitement non sociologique, se trouve à des degrés divers chez les sociologues des sciences”.

A separação dos agentes é um artifício da purificação que não revela as redes em formação. A análise atenta à trajetória dos actan-tes nas controvérsias pode, sustentam os autores da TAR, melhor in-dicar as constituições das associações e, portanto, do social. O obje-tivo é desenhar esses diagramas de força, esses mapas de mediação. O trabalho deve ser cuidadoso, intenso, respeitando a complexidade dos atores. Como afirma Venturini (2010, p. 263): “…if social car-tography requires hard work, it is because social life itself is made of hard work”.

cArtogrAfiAs

As “cartografias de controvérsias” (CC), propostas por Ven-turini e Latour, nada mais são do que formas de “desenhar” a distri-buição das ações, de seguir os actantes, de visualizar os diagramas da mediação, agenciamentos e de revelar cosmogramas. São os ma-pas gerados pela sociologia da mobilidade. Podemos dizer que a CC é um conjunto de técnicas para explorar e visualizar polêmicas, questões emergentes em determinados agrupamentos, o movimento, a circulação da ação e a fluidez das mediações, revelando as diversas dimensões que compõem uma rede sociotécnica.

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No entanto, deve-se fazer o mapeamento antes que os envol-vidos resolvam os seus problemas e tornem-se opacos uns aos ou-tros, criando pontualizações ou caixas-pretas. A controvérsia é, con-sequentemente, a chave de leitura da abertura das caixas-pretas. Ela começa no movimento de abertura (destruição) e termina na geração de caixas-pretas. A CC é o mapa dos deslocamentos, indicando o que está circulando, apontando actantes (mediadores) e intermediá-rios, o diagrama das relações de força.

Como podemos deduzir, as ações que merecem ser escolhidas para serem estudadas são aquelas em que os actantes ainda não estão harmonizados. São aquelas em que as traduções estão vivas, quen-tes, em andamento, onde a circulação é mais intensa e inacabada. É aqui que podemos ver o social se formando, revelando questões de diversas ordens (poder, política, direito à voz, força…). Por isso, o trabalho da TAR é descrever as controvérsias a partir do mapeamen-to dos seus rastros.

Para Latour, a questão parece ser bem simples: “Just look at controversies and tell what you see” (apud VENTURINI, 2010, p. 259). Para Venturini o problema está justamente no “just” e nas “controversies”. O “just” (“apenas”) nos leva a uma primeira cons-tatação: a CC não requer um método ou uma teoria específicos, um frame que balize a priori o olhar sobre os actantes. Isso leva a uma segunda constatação: os pesquisadores não podem fingir serem im-parciais, já que eles colaboram para a própria controvérsia a ser es-tudada. Em muitos casos eles são também actantes.

Como vimos, o que se entende por objetividade nada mais é do que o conjunto mais ou menos estável de olhares sobre um determinado objeto ou fato “social”. E o olhar do analista age sobre a controvérsia, assim como o cientista age sobre o fenômeno obser-vado. O que vai estabilizar uma controvérsia será justamente a reso-lução das tensões provocadas por múltiplos olhares. Como explica Venturini (2010, p. 259-260):

There are no definitions to learn; no premises to honor; no hypothesis to demonstrate; no procedure to follow; no correlations to establish. (...) Rese-archers cannot pretend to be impartial just because they comply with some theoretical or methodological guideline. According to the cartography of controversies, research perspectives are never unbiased.

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Os pesquisadores nunca são neutros e suas posições seriam sempre enviesadas (“biased”), sendo eles mesmos actantes nessa rede, entrando no próprio mapeamento que estão fazendo. Em mui-tos casos, a cartografia da controvérsia coloca mais fogo na con-trovérsia e passa a ser ela mesma um dos actantes importantes. Por exemplo, ao investigar um caso importante, um jornalista, como um cartógrafo de controvérsias, pode, ele mesmo, se transformar em ac-tante e entrar na disputa. Em outros casos, o analista é apenas um intermediário que não produz diferença no andamento da polêmica. Mas nada está dado de antemão. O que se deve garantir é, segundo Latour, um parlamento (incluindo aí os não-humanos) com o núme-ro maior de posições até a chegada a um enunciado que estabilize o problema. De acordo com Machado e Teixeira (2005, p. 6):

Quando uma tradução tem êxito, ela assume a configuração de uma rede. O termo “ator-rede” resume um duplo processo. Num primeiro momento o ator produz uma hipótese sobre a identidade dos outros atores e sobre suas ligações. No final desse processo, ele compõe seu ator-mundo que constitui o segundo momento, o da constituição de um ator-rede com ligações con-cretas e coercitivas para cada uma das entidades engajadas nesse processo. Se um ator torna-se o centro, é porque lhe foi atribuída à responsabilidade pela circulação dos intermediários que ele produziu. O resultado desse pro-cesso é fruto de um trabalho coletivo.

Por exemplo: questões relativas a artigos e parágrafos do Marco Civil da Internet no Brasil que ainda está em discussão. Um estudo dessa controvérsia deve partir não de um frame a priori do pesquisador (economia política, por exemplo), ou de uma posição espacial (global ou microrrelações, por exemplo), mas deixar os di-versos atores aparecerem e sustentarem suas posições. Essa posição é que filia a TAR à etnometodologia de Garfinkel (1967): os atores devem falar e os analistas (sociólogos, antropólogos, filósofos) não devem falar em seus lugares.

A resolução do problema do Marco Civil será ou por consen-so, ou por votação na Câmara dos Deputados e posterior aprovações em outras instâncias. Isso para momentaneamente a controvérsia e estabiliza os actantes, criando uma caixa-preta. No entanto, novas controvérsias podem ser criadas a partir de futuras aberturas des-

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sa caixa-preta, como, por exemplo, querelas jurídicas em cima de interpretações do Marco Civil em casos litigiosos. A abertura re-quer novos esforços argumentativos e hierárquicos que deverão ser mobilizados para tal. Se conseguir, a caixa-preta se abre e novas controvérsias aparecerão. Nesse caso, não cabe ao pesquisador se colocar aqui ou acolá, mas observar e descrever os actantes (os arti-gos, as normas, as questões técnicas, os lobbies, os argumentos dos juristas...)4.

Isso nos levaria a outra constatação: os pesquisadores têm que rever permanentemente suas atitudes diante do objeto observado e recolocar questões que permitem reposicionar os actantes e rever os diagramas da rede. Eles têm que dar valor à fala dos atores, mes-mo que as opiniões não estejam alicerçadas em teorias científicas. Assim, sintetiza Venturini (2010, p. 260): “1. you shall not restrain your observation to any single theory or methodology; 2. you shall observe from as many view points as possible; 3. you shall listen to actors’ voices more than to your own presumptions”.

Mas resta ainda saber como definimos o que é uma controvér-sia, e qual controvérsia escolher para analisar. Segundo Venturini (2010), para que haja uma controvérsia é necessário o acordo de um grande número de actantes sobre sua a veracidade. A CC é um conjunto de pressupostos que balizam as observações e descrições de incertezas compartilhadas. A controvérsia deve ser reconhecida por todos. Elas são situações nas quais os atores concordam na dis-cordância! Não é o analista que “inventa” a controvérsia, nem diz quando ela começa, nem quando termina. Ela é finalizada quando os actantes conseguem estabelecer um compromisso de viverem jun-tos, quando não há mais conflitos.

Não é muito difícil acharmos boas controvérsias atuais: aque-cimento global, crise econômica na Europa, impacto das novas mí-dias na educação ou nas formas de sociabilidade, carros elétricos, cidades inteligentes, internet das coisas, violação de privacidade em sites de redes sociais, leis de regulação da internet, para ficar

4 Vejam o vídeo (ainda bruto, sem edição ou outras informações, como me infor-mou o coordenador do projeto, Fabio Malini do Labic/UFES), mostrando a inte-ração dos perfis na controvérsia “Marco Civil na Internet”: http://www.youtube.com/watch?v=eva6GegF0gk

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apenas em algumas. Em todas essas polêmicas mobilizam-se vários actantes que terão hierarquias e poderes diferenciados a depender da associação formada (instituições científicas, indústrias, usuários, la-boratórios, universidades, leis e regulações, regras econômicas, mí-dia e opinião pública etc.). Em todas podemos ver o social se agre-gando aqui e acolá. As controvérsias são “fóruns híbridos”, espaços de conflito e de negociação. Como afirma Venturini (2010, p. 262):

In a few words, when you look for controversies, search where collecti-ve life gets most complex: where the largest and most diverse assortment of actors is involved; where alliances and opposition transform recklessly; where nothing is simple as it seems; where everyone is shouting and quar-reling; where conflicts grow harshest. There, you will find the object of the cartography of controversies.

As CC exigem esforços para reagrupar o social a partir dos rastros deixados pelos mediadores. Isso em muito se assemelha ao trabalho de um detetive que tem que buscar os indícios da ação (os rastros) para poder montar um quadro mais claro e fidedigno da si-tuação, ou ao trabalho de um jornalista investigativo, que deve ouvir as fontes, remontar as ações, contar a história. Essas situações não podem ser minimizadas por estereótipos ou frames que indicariam de forma generalista o que estaria em causa em uma determinada ação. Como vimos, esses frames não ajudariam muito, apenas servi-riam como reforço para mais intermediários, estereótipos.

Venturini afirma que isso não significaria dizer que a vida social seja caótica ou inexplicável. Podemos dizer algo, mesmo que temporariamente, sobre uma determinada associação. Definitiva-mente, os actantes querem sair das controvérsias e a tendência é resolverem suas diferenças na formação de caixas-pretas, como se o futuro das redes e das associações fosse a estabilização. Mediadores sempre lutam para diminuir a complexidade do social. As associa-ções devem ser explicadas em sua irredutibilidade (a si mesmo e a outras similares) pela ação dos actantes descritas pelo analista. Este, sem se isentar, deve observar e descrever da melhor forma possível, de maneira mais completa, o movimento de passagem de actantes--redes a redes de actantes, construindo então uma nova rede que é

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a rede descrita na controvérsia. Venturini (2010, p. 264) é claro a esse respeito:

To understand how social phenomena are built it is not enough to observe the actors alone nor is it enough to observe social networks once they are stabilized. What should be observed are the actors-networks - that is to say, the fleeting configurations where actors are renegotiating the ties of old networks and the emergence of new networks is redefining the identity of actors.

Mesmo sabendo que todo fenômeno social pode ser objeto de controvérsia, nem todos se configuram como um bom objeto de estudo. Venturini indica algumas recomendações para evitar a esco-lha de uma má controvérsia: 1. Evitar controvérsias frias que este-jam harmonizadas ou com indiferenças por parte dos atores. Se isso acontece é porque talvez nem haja mais uma controvérsia: “good controversies are always ‘hot’: they may involve limited number of actors, but there must be some action going on” (VENTURINI, 2010, p. 264); 2. Evitar controvérsias passadas. O interessante para o estudo é escolher temas atuais e que estejam ainda em debate. Isso não significa que a TAR trate apenas do presente. Detectar rastros é lidar com o passado. Mas uma controvérsia atual pode ser mais interessante e mais fácil para a investigação; 3. Evitar controvérsias ilimitadas, de longuíssimo alcance. As controvérsias já são muito complexas. Por isso, deve-se evitar algo muito amplo ou que não se tenha recursos (humanos, técnicos, financeiros) suficientes para mapear e 4. Evitar assuntos secretos e de difícil acesso. Estes reque-rem muitas energias e esforços. Ou o cartógrafo do social tem força e instrumentos, ou o melhor é escolher algo mais simples que possa ser objeto de boas observações e descrições.

Para Venturini é fundamental que o analista lance mão do que ele chama de “lentes de observação”. Nesses casos é interessante fazer um levantamento das declarações e da literatura especializada no tema. Uma das primeiras ações é mapear as declarações e ligá--las às questões que emergem da literatura científica, criando um banco de dados sobre essas declarações dispersas e os documentos da literatura. Como vimos em capítulos anteriores, os mediadores

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têm hierarquias e poderes diferenciados e devem ser mapeados. Para identificar se um determinado participante é um actante, Venturini sugere: “just ask yourself if its presence or absence does make any difference. If it does and if this difference is perceived by other ac-tors, then it is an actor” (VENTURINI, 2010, p. 266).

Identificar as controvérsias é também identificar visões de mundo que estão em negociação. Ao adotar um tablet para ler o jornal, que ideologias e decisões têm que tomar os leitores, os jorna-listas, as empresas, a publicidade, os fabricantes, os desenvolvedo-res de aplicativos, as redes de comunicação? O que deve fazer um algoritmo de um carro no momento de um acidente5? Que moral, ética e recurso pedagógico estão embutidos em chips de radiofrequ-ência que monitoram alunos entrando e saindo de escolas públicas no Brasil e nos EUA? Quais as controvérsias em relação à “Inter-net das Coisas” no Brasil? Alguns desses exemplos estão sendo es-tudados por pesquisadores do Lab4046 e há vários outros exemplo de análise já realizadas no livro “Shaping Technology” (BIJKER e LAW, 1994).

Observar as controvérsias é estar atento às redes que se fazem e se desfazem a todo momento, aos mediadores, aos fluxos das tra-duções. E como não há essência, e o atributo de um actante em uma dada associação é dado pela relação com outros actantes, deve-se abandonar uma das crenças fundamentais da civilização ocidental, a saber: de que sob o magma das controvérsias haveria uma reali-dade objetiva, uma essência, a serem descobertas que revelaria para sempre o status ontológico dos atores envolvidos. O mapeamento é assim uma coleção de rastros deixados pelos actantes, sendo irredu-tíveis a eles mesmos ou à rede então formada. Dessa maneira, expõe Venturini (2012, p. 801):

A scholar interested in, say, agenda-setting is only a few clicks away from the archives of hundreds of newspapers and magazines, the records of te-levision newscasts, the press-releases of institutions and agencies, the full-

5 Sobre isso ver o interessante artigo de Gary Marcus no New Yorker, “Moral Machines”., disponível em http://www.newyorker.com/online/blogs/news-desk/2012/11/google-driverless-car-morality.html

6 http://gpc.andrelemos.info/blog

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-text of blogs, forums, newsgroups. And that’s not all, with a little more effort, she can access the biography and bibliography of anyone who re-ported the story, the number of times the story has been searched on the Internet, the profiles of all actors involved and so on.

Não são os analistas que criam as controvérsias. Elas perten-cem aos atores. Como explicamos acima, as controvérsias não são resolvidas pelo mapeamento e os analistas não deve silenciar a dis-cussão em nome de um conhecimento ou verdade científicos. Quan-do observamos as controvérsias, olhamos para o estado líquido das tensões e quando descrevemos, começamos a ver as solidificações do magma. O cartógrafo do social deve ir ao seu território fazendo notas, planos, esboços. Os mapas são feitos a partir de ajustes entre as observações e as descrições. Eles não são o território observado, mas representação e encadeamento de referências que não associam as palavras e as coisas (LATOUR, 2012a). E assim deve ser, já que eles não são o mundo. Nas cartografias, as objetividades devem ser de múltiplos graus.

Para Venturini, pode-se pensar em três instâncias nas media-ções: a representatividade, a influência e o interesse. A representativi-dade diz que um ponto de vista ou afirmação compartilhada por múl-tiplos actantes merece ser mais destacada do que outra já que “not all perspectives are equally supported and social cartographers should find ways to render such disparity” (VENTURINI, 2012, p. 798). A influência mostra que as posições não são iguais e há desníveis, dife-renças e discrepâncias na luta pelas afirmações. Atores com posições influentes devem ser observados, já que eles podem criar ou destruir controvérsias. Venturini afirma que “actors occupying influential po-sitions deserve a special attention because, like it or not, they will have better chances to shape controversies” (VENTURINI, 2012, p. 798). Já o interesse mostra que sendo a representatividade e a influ-ência fatores importantes, o cartógrafo deve dar espaço a interesses dispersos e minoritários. Em muitos casos são esses interesses que abrem caixas-pretas. Interesses minoritários podem abri as caixas--pretas. Como explica Venturini (2012, p. 798):

Controversy mapping cannot content itself with majority reports, as the very rise of disputes depends on the presences of disagreeing minorities. It

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is disagreeing minorities who bring controversies into existence by refusing to settle with the mainstream and reopening the black boxes of science and technology.

Para construir mapas de controvérsias o analista deve ter em mente ainda três precauções: adaptação, redundância e flexibilida-de. A primeira é transformar o terreno em algo plano, devendo se adaptar às diversas posições dos mediadores. A segunda precaução é a que diz respeito às redundâncias. Uma cartografia não significa colocar tudo em um único mapa. Questões se sobrepõem e muitos mapas podem ser feitos. A terceira é em relação à flexibilidade. As cartografias devem ser flexíveis e não se renderem à tentação de esgotar o problema em uma totalidade. Deve-se ajustar e adaptar perspectivas diferenciadas. Para Venturini (2012, p. 800):

To sum up, the objectivity of cartographic representations depends on the quantity and the quality of the work spent to build them. What is true for buildings is true for representations as well: the better they are built (the more they adapt to their territory, the more they are redundant and flexible), the more solid they will be.

Para sintetizar, expomos a seguir o roteiro de Venturini para criação das CC: 1. Definir bem a controvérsia; 2. Observar, descre-ver e sustentar que o objeto é controverso; 3. Identificar se a con-trovérsia é fria/quente, presente/passada, secreta/pública, de difícil acesso/acessível, limitada/ilimitada; 4. Aplicar as lentes para a co-leta de informações (recolher declarações, opiniões, ler a literatura especializada); 5. Identificar os actantes humanos e não-humanos e esboçar a rede que os liga; 6. Identificar is cosmogramas, as ide-ologias e visões de mundo. O cartógrafo deve então identificar nas redes a representatividade, influência e interesse dos actantes.

A parir da identificação geral da controvérsia, Venturini pro-põe as seguintes recomendações: 1. Deve-se ouvir todos os actantes (lembremos que quem define a controvérsia são os actantes e não o analista); 2. Observar vários pontos de vista (a “objetividade” vem daí) utilizando vários métodos de análise e de observação; 3. Fa-zer uma boa descrição da controvérsia; e 4. Dar peso proporcional aos actantes (poder diferenciado). Atento a essas recomendações, o

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conjunto de mapas deverá apresentar os seguintes instrumentos: 1. Glossário de termos controversos e aceitos, 2. Repertório de docu-mentos, 3. Análise da literatura especializada, 4. Análise de opiniões publicadas nas mídias, 5. Mapas das posições contrárias ou ações de discordância, 6. Limites ou a escala da controvérsia, 7. Diagrama dos atores-rede, 8. Cronologia da controvérsia, 9. Tabela “cosmos” ou das ideologias diferenciadas.

Devemos notar que hoje, com as tecnologias de informação e comunicação7, a visualização está cada vez mais à mão do pesqui-sador, auxiliando na revelação dos rastros em tempo real. A asso-ciação pode ser vista no momento mesmo em que está se fazendo, no momento em que os rastros estão sendo produzidos e inscritos pelos instrumentos de coleta. Como fator fundamental das CC, vou explicar rapidamente o que são rastros sob a perspectiva da TAR.

rAstros

Rastros são índices, inscrições de uma ação passada. Estu-dos de semiótica mostram, na sua gramática, como eles são signos indicadores que remetem o significante ao significado como, por exemplo, um vidro quebrado de uma janela pode ser o índice de um assalto. Para o analista do ator-rede, onde não há ação, não há rastros, não há nada. O objetivo da CC é justamente mapear esses rastros. Um rastro é o vestígio de uma ação efetuada por um actante em qualquer situação. Se não há rastros, não há ação possível de ser descrita, detectada, produzida, inscrita em alguma materialidade ou testemunho.

Mas o rastro é uma marca produzida por dispositivos de per-cepção: sejam eles óticos, cognitivos, digitais. Rastros são produzi-dos, seja a partir de instrumentos de inscrição, seja a partir de teorias ou metodologias de escuta8. O que o define é justamente a sua produ-ção9. Se não temos como vê-los (aqui em sentido amplo, registrado

7 Há muitas ferramentas disponíveis. Ver, http://www.medialab.sciences-po.fr/tools/ 8 Penso aqui na psicanálise e na forma de detectar rastros nas falas a partir de um

arcabouço teórico. Aqui também há inscrição e produção desse rastro. Ou seja, ele não é apenas inscrito em suportes materiais.

9 Sobre esse tema, ver Bruno (2012).

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por instrumentos, inscritos), eles não podem contar para a descrição de uma ação, já que essência é existência, existência é ação, e ação sempre deixa rastros. Ele é uma construção, uma “instauração”, para usar um termo mais atual proposto por Latour (2012a).

Podemos pensar, como hipótese, que há rastros que estão sendo deixados e ações que estão ocorrendo sem que o analista os perceba? Sim, mas nesse caso temos duas opções. Primeira: ou a falha é do analista que não tem nem teorias, nem instrumentos para produzi-los, e consequentemente ela será corrigida certamente por olhares mais atentos e mais bem instrumentalizados de outros ana-listas. Ou, segunda: não há ainda nem analistas, nem instrumentos de inscrição desenvolvidos para as suas apreensões. Portanto, para o que interessa à cartografia, eles não existem mesmo.

Toda percepção de rastros é, ao mesmo tempo, produção. A objetividade de uma análise vai se dar pela confrontação de dife-rentes condições de rastreabilidade e possível consenso posterior ou estabilização (caixa-preta) do fenômeno, e não pela “realidade essencial de um dos rastros”. Deixar rastros é sempre inscrição para leitores de rastros. O rastro é assim um dispositivo, uma rede, um constructo sociotécnico, um actante. Ele não é apenas resultado da ação, mas resultado também de formas específicas de leituras dessas ações. Isso não retira do mundo a sua independência em relação à nossa percepção. Ele é uma rede que se constitui a partir de dispo-sitivos de inscrição e leitura (técnico, cognitivo, social, cultural), produto de associações entre o actante que o produz na mediação, o dispositivo de visibilidade que o inscreve em algo, e o analista, outro mediador, que lê e que o (re)produz em seu discurso, ou em outras ações, que deixarão, por sua vez, novos rastros.

Tendo isso no horizonte, podemos dizer que hoje as possi-bilidades de rastreamento das ações são bem maiores do que no começo do século XX, com as ferramentas estatísticas ainda não informatizadas e/ou dinâmicas. As novas formas de rastreamen-to digital (digital traceability) ampliam a produção de fenômenos coletivos e podem ajudar a mapear uma controvérsia e reagregar o social. A cultura contemporânea ampliou os instrumentos de co-leta (como forma de tornar coletivo um fenômeno, como vimos no capítulo anterior).

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Hoje, rastros digitais são abundantes devido à característica da cibercultura, produtora de controle e monitoramento informa-cional das ações de humanos e não-humanos. Eles são cada vez mais produzidos de forma voluntária (quando dou um check-in no Foursquare, por exemplo) ou involuntariamente (quando sistemas informatizados retiram informações de minhas ações sem que eu saiba). Podemos dizer que a característica do digital é a de multi-plicar instrumentos de inscrição (das ações de diversos mediadores) através de uma autenticação eletrônica. Essa autenticação é sempre uma forma de controlar protocolos, seja quando usamos um celular, quando nos conectamos um dispositivo à rede, quando usamos um cartão de crédito, as redes sociais, ou ainda quando efetuamos com-pras on-line, para ficar apenas nos exemplos mais corriqueiros.

Há inúmeras experiências mostrando a produção de rastros, ou a produção de fenômenos coletivos, como, por exemplo, associa-ções em tempo real no espaço urbano com as redes sociais e mídias locativas: rastros deixados pelo uso do telefone celular, pelo check--ins no Foursquare10, dos assuntos mais discutidos no Twitter11, ou mapas diversos das infraestruturas da cidade (transporte público, energia, ruído, poluição, discussão nas redes sociais…). São rastros de navegações em tempo real, de mapeamentos e articulações as mais diversas que permitem a visualização da formação de coleti-vos em tempo real12. As novas tecnologias fornecem assim dados

10 Ver mapas de check-ins em NY e Tóquio - http://laughingsquid.com/mapping-a-year-of-foursquare-check-ins-in-new-york-city-tokyo/. Para rastros digitais no Foursquare: http://skift.com/2013/01/21/humanitys-digital-footprint-as-visual-ized-by-foursquares-check-in-maps/

11 Para ver os posts no twitter em tempo real ao redor do mundo, acesse: http://tweet-ping.net

12 Para ter uma ideia dessas possibilidades, ver a seguir alguns exemplos de ma-pas, ferramentas de monitoramento de mídias sociais, rastreamento de celula-res e transportes públicos, entre outras formas de visualização de dados: News Map (http://www.newsmap.jp), Google Scraper (https://tools.issuecrawler.net/beta/scrapeGoogle/), Turtle de Density Design (http://www.densitydesign.org/research/turtle/), Follow the Hashtag (http://www.followthehashtag.com), Usha-hidi (http://ushahidi.com), Ville Vivante (http://villevivante.ch), Tweereal (http://tweereal.com), Issue Crawler (https://www.issuecrawler.net), Seekr (https://search.seekr.com.br), Scup (http://www.scup.com), Lithium (http://www.lithi-um.com/solutions/social-marketing/overview), Post X (http://www.postx.com.br), Sysomos (http://www.sysomos.com), Brand Watch (http://www.brandwatch.

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finos das associações, das variações, das adaptações e das redes que nenhuma estatística jamais pode oferecer. Como afirma Latour (2010b, p. 157):

It is indeed striking that at this very moment, the fast expanding fields of “data visualization”, “computational social science” or “biological ne-tworks” are tracing before our eyes, just the sort of data Tarde would have acclaimed. ... Digital navigation through point-to-point datascapes might, a century later, vindicate Tarde’s insights.

Na CC, o trabalho dos analistas é o de colher os rastros para reconstruir os diagramas de força nas redes. Com software apropria-do pode-se ver tudo em tempo real, manipular variáveis ilustrando esse ou aquele aspecto de uma determinada polêmica. Os rastros continuam a ser produzidos. Como vimos, eles não são naturais, nem neutros e precisam sempre de um instrumento específico de vi-sualização de sua inscrição. Mas, agora, a rastreabilidade se expande e está acessível a todos. Os métodos do passado são bem vindos, mas a CC tem hoje, certamente, como grandes aliadas as tecnolo-gias digitais de informação e comunicação. Os pesquisadores po-dem seguir controvérsias através da cobertura da mídia, na web, no Twitter, na blogosfera, no Facebook. Como afirma Latour (2007, apud VENTURINI, p. 801):

The ancient divide between the social on the one hand and the psychologi-cal on the other was largely an artifact of an asymmetry between the trace-ability of various types of carriers: (...) But today the data bank of Amazon.com has simultaneous access to my most subtle preferences as well as to my Visa card. As soon as I purchase on the web, I erase the difference be-tween the social, the economic and the psychological.

com), Twazzup (http://www.twazzup.com), Topsy (http://topsy.com), Debate Graph (http://debategraph.org), The Internet Map (http://internet-map.net), 140 Kit (http://140kit.com), GovCom (http://www.govcom.org/drafts.html), DIRT (https://digitalresearchtools.pbworks.com/w/page/17801672/FrontPage), Pe-destrian Monitoring System (Melbourne) (http://www.pedestrian.melbourne.vic.gov.au/#date=30-09-2012&time=19), San Francisco Live Bus (http://www.sflivebus.com), Live Maps of London Underground (http://traintimes.org.uk/map/tube/), WiFi Salvador (http://wifisalvador.com).

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AlgumAs controvérsiAs

Para concluir este capítulo, apresento a seguir um exercício de análise de alguns temas controversos e atuais apenas para ilustrar o que foi até aqui discutido. O objetivo não é oferecer cartografias, mas apontar para alguns objetos de interesse e estimular que novos mapeamentos sejam feitos. Deixo algumas reflexões de temas polê-micos como o papel do gandula em jogo de futebol, o carro da Goo-gle que dirige sozinho, as organizações e a cidade como caixas-pre-tas e o “affaire” da informação e do segredo com o site Wikileaks.

Sala de Aula

No semestre 2012.1, ofereci uma disciplina para estudantes de graduação na Faculdade de Comunicação da UFBA, tendo como tema as cartografias de controvérsias. O objetivo era realizar uma ex-periência prática. Os alunos (alguns calouros) nunca tinham ouvido falar em TAR ou CC. Depois de algumas discussões e explicações sobre a teoria e a cartografia, os temas dos grupos foram escolhidos. Demos preferência a controvérsias “quentes” e atuais como, por exemplo, a “Proibição de pré-campanha no Twitter”, a utilização de “Etiquetas RFID13 em uniformes escolares na Bahia”, “O AI-5 da Copa do Mundo”, a “Exigência do diploma de jornalista”, a “Lei de Imprensa na Argentina” e a “Lei Antibaixaria na Bahia”.

Os estudos realizados, com limitações e intenções mais pe-dagógicas, são exemplos interessantes do magma social antes das estabilizações nas caixas-pretas. As controvérsias propunham dis-cussões interessantes sobre a mídia, a tecnologia, a sociedade, a cul-tura, a comunicação. As cartografias desenvolvidas nos permitiram ver como a sociedade vai se constituindo e como as mediações vão sendo criadas, aquecidas e estabilizadas. Baseado no roteiro de Ven-turini, propus um “template” para todos os mapeamentos e os resul-tados foram muito interessantes. Cada uma das controvérsias mape-

13 RFID são etiquetas de identificação por radiofrequência. Coladas em um objeto, ao passar por leitores, elas emitem informações sobre o objeto em questão. Para definição de RFID, veja http://en.wikipedia.org/wiki/Radio-frequency_identifica-tion. Para o desenvolvimento ver o RFId Journal - http://www.rfidjournal.com

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adas foi abrigada em um blog que reuniu todo o material coletado e produzido pelos estudantes. Os resultados finais estão disponíveis na internet14. Faço abaixo uma rápida síntese.

As controvérsias sobre o Twitter nas eleições e sobre o uso das etiquetas de radiofrequência em escolas públicas na Bahia tra-zem ao debate a relação entre dimensões legais, políticas, educacio-nais e tecnológicas. Na primeira, a controvérsia sobre a legislação eleitoral e o uso da internet mostra como o desconhecimento do funcionamento técnico das ferramentas e da nova cultura comuni-cacional ajuda a manter uma legislação que está adaptada aos meios de comunicação da cultura de massa. Na segunda, sobre o uso de etiquetas RFID, como um artefato técnico atua como mediador da relação entre alunos, escolas e pais, instituindo formas morais e éti-cas no “script” do sistema, forçando agentes não-humanos a agir de determinada maneira (vou retomar esse exemplo no capítulo seis).

A análise da controvérsia sobre o que se vem chamando de “AI5 da Copa” remete para uma topologia plana, na qual questões relativas ao terrorismo global e a eventos planetários são relocalizados tendo com pano de fundo o imaginário da ditadura militar no país. As cartografias sobre o Diploma de Jornalista, sobre as Leis dos Meios na Argentina e sobre a Lei Antibaixaria na Bahia, mostram as relações entre economia, política, gênero e cultura popular na constituição de normas e leis. Já as questões corporativas ou de liberdade de expres-são são rebatidas sobre a formação universitária (no caso da contro-vérsia sobre a obrigatoriedade do diploma de jornalista no Brasil), questões políticas e sociais (no caso da lei da imprensa na Argentina) e problemas de gênero, violência e da cultura popular (no caso da lei antibaixaria na Bahia). Todos esses exemplos mostram a complexi-dade e as relações contingentes entre estrutura e agência, entre atores humanos e não-humanos, entre “o social” e o “tecnológico”.

Gandulas

Um jogo de futebol é uma atividade social muito interessante. Ele convoca uma série de instâncias, interdependentes, que com-

14 http://cartografiadecontroversias.wordpress.com

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põem o seu universo: os times de futebol, os torcedores, os jogado-res, a comissão técnica (do roupeiro ao presidente), as confedera-ções estaduais (no caso do Brasil), a confederação nacional (a CBF) e internacional (a FIFA), as comissões de arbitragem, os árbitros, as torcidas organizadas, os torcedores, os patrocinadores, as empresas jornalísticas (imprensa, rádio e TV), os blogs e outras ferramentas digitais com seus profissionais e usuários... e os gandulas.

Este livro não é sobre futebol, mas o tema poderia ser um bom exemplo de aplicação da cartografia de controvérsias. Podemos uti-lizar esse esporte para explicar duas noções-chave da TAR: media-dor e intermediário. Como vimos no primeiro capítulo, o primeiro é o actante, um evento, rede, que faz com que outros façam algo. O segundo é aquele que transporta sem transformar. Essas noções le-vantam sempre dúvidas quanto aos papéis que os agentes assumem em associações, ora como actantes, ora como intermediários.

Em uma reunião do Lab404 sobre TAR, falávamos sobre a ontologia plana que reivindica uma não hierarquia entre humanos e não-humanos, impedindo de pensar em essências e posições em uma estrutura definidas a priori. Hierarquias, relações de força, es-truturas e poder emergem, mas a posteriori, a depender de como se distribui a agência em uma associação. Para Latour (1994a), eles têm imanência, mas não essência. Isso significa dizer que actantes se comportam de acordo com as associações e que nem a estrutura (que o aprisionaria), nem a sua agência individual (que o libertaria) devem ser enquadramentos ou pontos de ancoragem para a análise.

Isso dito, aquilo que age não age sempre da mesma forma. Ele é devedor das associações que o compõem em uma determi-nada ação. Como vimos, um ator pode ser actante agora e inter-mediário depois, ou vice-versa. Consequentemente, uma ferramenta não é boa, nem má, nem neutra, já que ela depende da associação a qual se vincula. A vantagem da TAR é possibilitar a visualização do diagrama de ação por uma rede sem lançar mão de resoluções essencialistas.

Pois bem, debatíamos esses temas e era o momento da copa do mundo de 2010. Um dos alunos perguntou se poderíamos discutir a TAR e ver um dos jogos que passava ao vivo, ao mesmo tempo. Achei estranho, mas pensando na oportunidade de dar exemplos

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práticos, aceitei a proposta. O jogo de futebol nos ajudaria a compre-ender melhor as associações e as essências, os papéis de mediadores e intermediários. Não lembro mais qual era o jogo, mas a discus-são veio pelo estereótipo de uma equipe, pela questão de qual seria a sua essência.

Por exemplo, a equipe brasileira é tida mundialmente como aquela composta por jogadores talentosos, enquanto a Argentina é um time de bravos, de “milongueiros raçudos”. Esses são estereóti-pos construídos no tempo e com muito esforço. Nada está dado de antemão e vestir a camisa não é garantia de incorporação de uma suposta essência desses times. Os jogadores, ao vestirem as camisas podem ou não acreditar nesses estereótipos e assim, esforçarem-se para mantê-los vivos. Estereótipos são caixas-pretas que devem ser abertas. Como não há essência, todos os jogadores e a comissão téc-nica têm que fazer uma força muito grande para que a suposta es-sência se concretize no jogo, ou seja, tem que ser criada para poder, a posteriori ser vista como a confirmação: o reforço do estereótipo passando a ser entendido com “essência”.

Vejam que ela é uma construção discursiva a posteriori e que vai sendo reforçada até que se atualize na ação e na associação em jogo. Não há essência, mas apenas aquilo que vai, a cada jogo e com muito esforço, ser reconstruído por cada jogador (e torcedor, e técnico, e jornalista...). Assim, se na associação a “essência” não se reproduzir, ela desaparece com o tempo. Claro que as associações tendem a se manter e farão esforços para isso. Os actantes buscam sempre a estabilização e criação de caixas-pretas. Tudo vai ser feito para que, no final, tenhamos discursos dizendo como os Brasileiros são bailarinos do “futebol-arte” e como os Argentinos são “raçudos e catimbeiros”.

Como analistas devemos partir sempre de trás para a frente. Nunca partir da definição essencialista para ver a associação. Uma legião de fãs, críticos e técnicos de futebol vai tentar reforçar os estereótipos (as caixas-pretas) e eles serão também actantes impor-tantes nesse processo. São tão importantes que esses estereótipos continuam e continuam... Mas vejam, mais uma vez, não podemos tomar o resultado posterior pela causa essencial do jogo, ou do time, ou do que quer que seja.

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Outra confusão da TAR explicada aos alunos pelo futebol é a diferença entre mediador e intermediário. Usei o recente caso de ação dos gandulas em jogos no campeonato brasileiro. Em dois jo-gos, eles saíram do “script” e passaram a agir como jogadores, pas-sando a bola, ou colocando-a em posição de ser recolocada em jogo rapidamente (de forma ensaiada com os jogadores), desempenhando uma ação que não poderiam desempenhar, a saber, produzir diferen-ça, virarem “actantes”. O problema? Os gandulas tentaram passar de intermediários a mediadores, fingindo serem ainda intermediários. Essa mentira e essa transgressão foram exemplares e rapidamente punidas pela proibição dessas ações pela CBF e pela confederação de árbitros.

Houve dois jogos em que o problema com os gandulas apa-receu. Em um, eles recolocaram a bola rapidamente na posição de cobrança de um “corner” e isso era feito em comum acordo com os jogadores em treinos. No outro, uma gandula entregou rapidamente a bola nas mãos de um jogador já que a defesa adversária estava desorganizada e este deu um verdadeiro “passe” a um jogador resul-tando em gol. Essas duas ações lançaram a polêmica que foi resolvi-da por resoluções legais da comissão de arbitragem da CBF.

O gandula é sempre visto como um intermediário, como aquele que transporta sem modificar (no caso, literalmente, já que ele transporta a bola e devolve ao jogador). Ele não pode fazer nada para além do que delimita a sua ação no script da associação (o jogo e suas regras, a caixa-preta futebol). Ou seja, pegar a bola e devolvê-la ao jogador mais próximo da forma mais neutra possível. Mas, efetivamente, tudo vai depender das associações e é muito comum vermos gandulas saindo da posição de intermediário para a de actante (a depender do time mandante do jogo e que traz esses ajudantes).

Por exemplo, é comum e irritante ver gandulas se transforma-rem em mediadores ao retardarem a busca ou a reposição da bola. Normalmente, no Brasil, se é um jogo em que o time da “casa” é quem traz os gandulas, provavelmente, se esse time estiver ganhan-do, os gandulas desaparecem para devolver a bola ao adversário. Se for o contrário, eles aparecem e a repõem rapidamente em jogo. Os árbitros estão atentos e punem sempre que o intermediário gandula quiser ser um mediador, às vezes com cartão amarelo, às vezes com

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expulsão e retirada do gramado. A comissão de arbitragem também. No caso dos jogos recentes no campeonato brasileiro, a comissão de arbitragem teve que intervir e colocar claramente em texto da lei o que deve fazer um gandula para que ele transporte sem alterar o jogo, para que volte a ser um intermediário e pare de bancar o me-diador.

A dúvida dos estudantes é que ele, mesmo como intermedi-ário, participa do jogo e seria então sempre um mediador. Temos que admitir que o intermediário faz parte da associação, mas o seu papel, digamos, é de fundo. Ele vira mediador quando o fundo vai para a fachada e faz outros fazerem coisas que não faziam antes. O gandula, assim como qualquer ator não tem uma função definida pela estrutura para sempre. Ele está “sendo” na associação, e nessa trajetória de subsistência ele pode se alterar em outro e virar media-dor. A estrutura e a agência se dão e só podem ser vistas a poste-riori quando a caixa-preta se estabiliza de tal forma que aquele ator se comporta quase sempre como actante e aquele intermediário se comporta quase sempre como um intermediário.

Carros e ciborgues15

O termo ciborgue fez, recentemente (2010), cinquenta anos16. E, nesse mesmo período, surge a notícia que a empresa Google esta-va criando um carro que dirige sozinho. Essas duas notícias tratam de um mesmo assunto, o híbrido, o pós-humano, e nos permitem pensar relações de delegação (ação passada a outro actante) e de mediação (ação de um actante sobre outros) na TAR.

Mediação ou tradução, como vimos, é o que faz um actante agir transformando a si mesmo e ao outro. Há sempre “abstração” nesse processo (de um no outro) e “preposições” (as ocasiões des-ses encontros). A mediação/tradução é a capacidade de um actante manter outro envolvido, modificando-se e reinterpretando seus in-teresses. Ela é comunicação, produção de sentido, percepção, inter-pretação e apropriação. A noção de delegação, por sua vez, implica estender a ação a outro actante, comprometendo-se e confiando no

15 Este texto retoma trechos publicados no artigo Lemos (2011a).16 Ver http://www.guardian.co.uk/theobserver/2010/oct/03/50-years-cyborgs

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seu funcionamento. A ação social se realiza sempre como híbrido, na mediação e na delegação entre actantes.

Controvérsias em torno do pós-humano (ciborgues) e de au-tomatismos que fazem o humano não ser mais o centro do poder decisivo da ação (carros autônomos que dirigem sozinhos), expres-sam a sensação de estranhamento da mediação e da delegação. Esse estranhamento parte de um primeiro erro crucial da discussão sobre tecnologia e da sociologia em geral, como vimos: a separação sujei-to - objeto, natureza - cultura, estrutura - agência.

Revelar as “associações” (que criam o social) é prestar aten-ção nas diversas conexões entre humanos e não-humanos, aos hí-bridos. Por exemplo, escrever este texto é um processo híbrido que vai muito mais além do sujeito - autor. Há aqui importantes actantes humanos e não-humanos fortemente envolvidos: o autor, claro, mas os diversos dispositivos técnicos, mnemônicos e institucionais como o computador em que escrevo, o software usado no tratamento do texto, a editora que publica o livro, o meu enquadramento institu-cional que me permite dedicar tempo a essa atividade, a relação com grupos de pesquisa, alunos e pesquisadores que produzem o meu conhecimento, os órgãos de financiamento, os jornais acadêmicos, os livros de outros autores, os diversos congressos, seminários etc.

Assim como Latour afirma que o que voa são companhias aéreas e não Boeings, podemos dizer que, no nosso caso, o “que” escreve (textos, artigos, livros) não é um sujeito livre e independen-te, mas a “instituição” Universidade (ampla e muito além da buro-crática instituição, composta por todos os elementos citados acima). Sem meus alunos e pesquisadores, sem meu grupo de pesquisa, sem a universidade que paga meus salários, sem recursos de agências de financiamento, sem computadores, internet, livros e periódicos este livro dificilmente seria produzido.

Nesta perspectiva, os termos ciborgue e pós-humano são bons para ficção-científica, mas não fazem muito sentido antropológica e/ou sociologicamente, já que o que marca o humano é o hibridismo e a relação de mediação, tradução, inscrição e delegação com/para outros humanos e não-humanos. Esses conceitos são totalmente sem senti-do já que não há humano (e vida social) fora desse circuito híbrido com artefatos, desde os mais simples (um pedaço de sílex), aos mais

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complexos (um chip). O humano é constituído, desde a sua origem como “Homo-Habilis”, pela relação forte e intricada, híbrida, com os objetos e coisas (LEROI-GOURHAN, 1964). Não há humano sem a dimensão artificiosa da técnica, da linguagem, das instituições, das normas, da arte, do pensamento mágico e religioso…

O humano é desde sempre “pós-humano”, já que ele não é na-tural no sentido de se constituir fora de qualquer relação simbiótica com o artificial, ou com o mundo como externalidade. O próprio do humano, diz Heidegger, é que ele tem que “construir para habitar”. Nessa construção ele existe, como Dasein (HEIDEGGER, 1958). Se o termo ciborgue (de cibernética e orgânico) expressa o híbrido orgânico - inorgânico (eletrônico-digital), não é exagero dizer que somos todos ciborgues avant la lettre, já que desde o momento que nosso mais longínquo ancestral lascou uma pedra para fazer um ob-jeto cortante ou produziu o fogo, a relação orgânico-inorgânico se produz sem cessar17. O que chamamos de ciborgue é apenas a parte mais contemporânea desse hibridismo, uma relação mais complexa entre o orgânico e os dispositivos digitais cibernéticos.

O humano é, portanto, formado por processos históricos de mediação e de delegação. Ele é justamente a rede (e não indivíduo) formada por tudo a que se associa, associou e associará. Com diz La-tour em uma entrevista, seria mais interessante dizermos “associo: logo existo” do que “penso: logo existo”. O pensar aqui remete para indivíduos (a essência, o que não se divide), enquanto o associar remeteria para o “être-en-tant-qu’autre” (LATOUR, 2012a), como vimos no primeiro capítulo, para o que se divide e se constitui na trajetória de “subsistência”, e não na indivisibilidade da substância.

Se é assim, experimente retirar tudo a que um objeto (humano e não-humano) está ligado desde o início de sua existência e veja se encontrará algum “objeto” ou “sujeito” indivisível. Serres está certo: só há “quase-sujeitos” ou “quase-objetos”. Assim sendo, as questões fundamentais aqui são a mediação e a delegação. Por elas construímos a nossa subjetividade. Essa discussão está presente no novo projeto de carro automático em teste pela empresa Google, nos cinquenta anos do termo ciborgue. A delegação nos causa, assim

17 Explorei essa discussão no meu livro Cibercultura (LEMOS, 2002).

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como aceitar a mediação e o híbrido, feridas narcísicas, pois nos colocam fora do centro da ação. Somos, por assim dizer, impuros, misturados ao artifício.

Vejamos no caso do automóvel. Estamos acostumados à de-legação, à mediação entre humanos e não-humanos no seu uso quo-tidiano. O carro é um “objeto-rede” e não um indivíduo. Semáforos, faixas na pista, obrigação de carta de condução, seguro, quebra-mo-las, entre outros dispositivos, são bem aceitos na prática social do trânsito. Delegamos e entramos em mediação com o “dispositivo” carro (regras e leis de trânsito, normas, a máquina etc.). As media-ções (dos dispositivos a humanos e não-humanos) e as delegações (aos dispositivos para fazer outros fazerem coisas, como, por exem-plo, ao semáforo para dizer quando devemos parar, às faixas infor-mando se podemos ultrapassar, às placas proibindo estacionar...) são ritualisticamente encenadas e, por isso, funcionam. São, por assim dizer, caixas-pretas, ficam em um fundo e só aparecem quando algo acontece: falta de luz e os semáforos não funcionam, por exemplo. Isso nos faz compreender o quanto somos dependentes da mediação e da delegação. A sociabilidade no trânsito emerge das ações entre humanos e não-humanos, dessas mediações e delegações. Assim, não precisamos, por exemplo, de um humano dizendo se podemos passar, estacionar ou ultrapassar. Aqui o social emerge (e sabemos o quanto ele é tenso!) das associações entre humanos (motoristas, pedestres, guardas de trânsito) e não-humanos (objetos, sinais, leis, regras, signos).

Callon faz uma análise muito interessante do carro (CALLON, 1999). O automóvel não é apenas um artefato tecnológico, mas um evento, uma rede perpassando uma ilusória individualidade (o car-ro). O carro é uma rede. Assim como o avião é uma rede composta de diversos elementos que, em determinados momentos, agem como intermediários e em outros como mediadores. Se tudo corre bem, o avião (ou o carro) é apenas um objeto que nos leva de um lado para outro, deixando todo o resto (caixa-preta) em um fundo que funcio-na na intermediação de outros agentes. Mas se algo acontecer: nevo-eiro, falta de luz ou uma catástrofe natural que feche um aeroporto, ou um avenida importante, todo o resto começa a aparecer e as redes a revelar as mediações e delegações: as malas extraviam, os voos

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são cancelados, os pousos têm que ser deslocados para outros aero-portos, a malha de transporte terrestre entra em colapso, caminhos têm que ser desviados… Abrem-se as caixas-pretas mostrando que esse objeto, o avião ou o carro, é, na realidade, um ponto de conver-gência de múltiplos eventos (ativos e latentes), uma rede.

O carro, e não precisa ser automático (no sentido de dirigir sozinho como o do Google) para isso, mobiliza uma rede onde há mediação e delegação o tempo todo. Essas redes são em alguns mo-mentos visíveis e em outros invisíveis. Quando são visíveis esses elementos são chamados de actantes. Quando invisíveis, são inter-mediários, caixas-pretas, pontualizações e estabilizações. Mas no-tem que tudo isso é temporário, uma vez que intermediários podem virar actantes e vice-versa a depender do “acidente”. Trata-se de uma atividade coletiva, associativa, logo, social. Quando o carro anda, a rede anda com ele. Como explica Callon (1999, p. 270-271):

Ce réseau est actif, ce qui justifie à nouveau le terme d’acteur-réseau. Cha-cun des éléments humains ou non humains qui les composent participe à une action collective que l’utilisateur doit mobiliser chaque fois qu’il prend le volant de son automobile. En un sens le conducteur fusionne avec le réseau qui définit ce qu’il ou elle est (un conducteur-choisissant-une-desti-nation-et-un-itinéraire) et ce qu’il peut faire. Lorsque le conducteur tourne la clé de contact d’une Nissan pour aller voir un ami en vacances au lac de Genève, il ne fait pas seulement démarrer un engin: il déclenche également une action collective parfaitement coordonnée.

Mesmo delegando coisas (o funcionamento ao motor, a segu-rança ao cinto ou ao “airbag”, a parada ao freio etc.), o ator humano é um mediador necessário e legalmente responsável nessa rede que se forma enquanto se dirige. Com o carro autônomo da Google, ou-tra mediação/delegação aparece (duas cidades americanas já permi-tem o seu uso, estabelecendo um precedente legal). A ação de dirigir é delegada a computadores, sensores, GPS. São estes não-humanos que guiam o carro pelas ruas (que devem estar adaptadas aos senso-res do carro, ter cobertura de GPS etc.) e o fazem se relacionar com outros veículos, motoristas, objetos, pedestres. Nessa experiência, a ação humana ainda está presente, mas apenas para evitar que falhas no sistema aconteçam. Ele passa de protagonista a figurante no pro-cesso, de mediador a intermediário.

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Uma matéria do New York Times de John Markoff18 reve-la a dimensão do projeto e os problemas legais. O autor pergunta: quem se responsabiliza em caso de acidente, “the person behind the wheel or the maker of the software?”. O algoritmo é aqui um dos actantes principais nesse novo processo motor. Há, portanto, não a instauração inédita de processos de mediação e de delegação, mas novos tipos e eles precisam ser pensados, politizados, inclusive em termos jurídicos. Mas, certamente, não é essa relação (de mediar e de delegar), em si, a novidade. Trata-se, sim, de uma nova dimen-são dessa mediação (o homem não dirige mais) e na dimensão legal dessa delegação (o carro pode dirigir automaticamente sob efeito de algoritmos?).

Aceitamos a delegação e a mediação da máquina quando di-rigimos um carro, já que isso só acontece (a legalização do ato de dirigir automóveis) por acreditarmos e confiarmos na relação assim instituída. O híbrido (ciborgue em sentido lato, lembrando-me de um piloto de Fórmula-1 que dizia “vestir o carro”) está aqui, com-preendido como uma rede entre humanos e não-humanos: uma rede que se faz na ação de “sujeito-objeto-humano-carro” e que se desfaz quando paramos de dirigir (mas que se refaz ao virarmos pedestres – outro actante/intermediário dessa mesma rede). A questão é im-portante, com dimensões políticas, morais, éticas.

Como explicamos no primeiro capítulo, só há híbridos. Não há claramente causa ou efeito predeterminados. Cada nó de uma rede de ação, como, por exemplo, dirigir um carro, ver TV, usar um celular ou um laptop, coloca em mediação e delegação movimen-tos e circulação de ações que devem ser descritas para revelar “o social”. A dimensão política (social, ética e moral) institui-se nessa relação (mediação, tradução e delegação). A opção por um tipo de porta, se uso ou não o cinto de segurança, ou se diminuo ou não a velocidade ao ver um quebra-molas, representa uma dimensão polí-tica (social, ética e moral) instituída pela minha relação (mediação e delegação) com outros (LATOUR, 1991, 1992).

A TAR inibe que tomemos de antemão o humano como cen-tro da intencionalidade, e não precisamos chegar aqui ao carro do Google ou ao ciborgue cheio de dispositivos eletrônicos implanta-

18 Ver “Google Cars Drive Themselves”, disponível em http://www.nytimes.com/2010/10/10/science/10google.html?pagewanted=all&_r=0

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dos no corpo. Os conceitos de mediação (LATOUR, 1994b) e de de-legação (LATOUR, 2005a) ajudam a ver mais claramente os atores e as redes que aí se formam e a divisibilidade dos quase-sujeitos e quase-objetos entendidos agora enquanto dispositivos, redes.

Organizações19

Interpersonal networks and institutional organizations are assemblages of people; social justice movements are assemblages of several networked communities; central governments are assemblages of several organiza-tions; cities are assemblages of people, networks, organizations, as well as of a variety of infrastructural components, from buildings and streets to conduits for matter and energy flow; nation-states are assemblages of cities, the geographical regions organized by cities, and the provinces that several such regions form.

Manuel DeLanda (2006, p. 5-6)

Uma organização é um conjunto mais ou menos estável de atores em rede com o objetivo de realizar uma ação. A estabilidade se dá pela harmonização da rede, pela resolução de conflitos e de controvérsias. Resolver controvérsias é estabilizar. Um livro aca-dêmico deve ser resultado da tentativa de abrir caixas-pretas, de questionar estabilidades, de fomentar e expor controvérsias sobre um determinado assunto. É o que se propõe este livro: discutir TAR e a cultura digital em uma época de amplo desenvolvimento de redes sociais eletrônicas e da banalização de complexos artefatos tecno-lógicos. Vou analisar aqui rapidamente a relação das organizações face à comunicação e às redes sociais, como Facebook ou Twitter.

Certamente, devemos pensar as organizações por suas dimen-sões da comunicação. E isso desde as primeiras organizações huma-nas. Toda organização é um conjunto, uma rede de atores em pro-cesso de comunicação (mediação, tradução, delegação), buscando realizar uma ação, constituindo o cerne mesmo do social. Podemos pensar, como sugere a TAR, que as organizações são associações,

19 Uma versão deste texto foi publicado como prefácio do livro “Redes Sociais, Comunicação, Organizações”, organizado por Oliveira e Marchiori. Ver Lemos (2012c).

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ou, como sugere a “assemblage theory” (AT de Manuel DeLanda, influenciado fortemente por Deleuze), “agenciamentos”. As duas teorias têm muito em comum e podem ser úteis para pensar as orga-nizações contemporâneas.

Toda associação/organização busca manter-se no curso de uma ação. Ela visa estabilizar fronteiras e equilibrar suas relações com diversos actantes, internos e externos, humanos e não-huma-nos. As organizações procuram atingir equilíbrio e estabilização. Quando isso acontece, o conjunto se homogeneíza. Como vimos, para a TAR a caixa-preta é uma associação/organização que funcio-na de forma tão coesa que desaparece do centro das preocupações, fica em um fundo, taken for granted. Ela pode ser um objeto técnico, um conceito, uma lei, um estereótipo, ou uma empresa.

Uma boa organização (associação, agenciamento) é aquela na qual sua ação principal (o seu objetivo maior) se realiza sem que sua estrutura interna apareça muito, funciona bem, sendo mais um inter-mediário do que um mediador. É como escrever sem ter que pensar no computador. Se ao escrever o computador funciona bem, ele é um intermediário e a atenção está toda no texto. O computador é, assim, uma caixa-preta e é bom que assim permaneça. Mas tudo pode mu-dar. E tudo muda, sempre. A máquina, uma organização complexa de actantes humanos e não-humanos vai, em algum momento, apresentar algum problema e passar do fundo à frente da cena. Ela pode travar, desligar ou não funcionar mais. O que era fundo vem à tona. Ela não se comporta mais como um intermediário e passa a ser um incômodo mediador, produzindo ação que não estava no scritp, traduzindo ou-tros actantes, perturbando a ação anterior (escrever o texto)20.

Consequentemente, o computador passa a revelar suas redes complexas, atravessando as dimensões local e global, passado, pre-sente e futuro. Apagado como um intermediário, ele aparece e obri-

20 Devo precisar que o ato de escrever com um programa de tratamento de textos em um computador é sempre uma ação que está sendo produzida na relação híbrida entre sujeito e máquina. Na realidade, a máquina nunca fica completamente em um fundo, já que penso em todos os procedimentos de uso (teclado, programa etc.). O que quero dizer aqui é que essa ação passa a ser a ação mesma do es-crever. Assim sendo, não penso nas demais redes que compõem esse dispositivo (computador). A não ser no momento em que uma pane aparece. Devo a Leonar-do Ferreira a observação que me permite aqui explicar melhor o exemplo.

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ga a fazer coisas. Questões emergem. O que está causando o defei-to? Uma peça defeituosa fabricada na China? Um bug no software? Uma pane na rede elétrica? Problemas na “placa-mãe”? Qual seria o problema e o que é mesmo uma “placa-mãe”? Erro de projeto do computador, da memória? Quem vai consertar? Onde ficam as em-presas de assistência técnica? Quais são os meus direitos? A garantia ainda está no prazo de validade? As questões são de diversas ordens e se ramificam: questões técnicas, de normatização, de mercado, de política, de usabilidade, de inclusão social, de consumidor... A cai-xa-preta se abre e as redes de mediadores e intermediários começam a aparecer. É muito ruim quando uma organização, criada para um determinado fim, exige a produção de ação e de trabalho a serem feitos sobre ela mesma. Quando ela chama a atenção para si.

Uma organização/associação é um conjunto, um agenciamen-to de elementos heterogêneos (humanos e não-humanos) composto por dinâmicas redes (de atores), por relações (sociais) e por com-plexos fluxos comunicacionais (mídias) que buscam estabilização. Pensar as organizações como associações e agenciamentos é, neces-sariamente, pensar seus fluxos, suas redes e seus processos comu-nicacionais. Os cientistas sociais devem tentar abrir caixas-pretas, questionar conceitos e situações estabelecidas, rever fronteiras e analisar os processos territorializantes (reforço) e desterritorializan-tes (descontrole), para discutir a estabilização das organizações.

É muito difícil, senão impossível, desatrelar rede, social, tecnologia, comunicação e organização. Hoje a questão é ainda mais crítica, já que entramos em uma era da intercomunicação planetária e das redes sociais digitais. Pela linguagem da TAR, podemos dizer que rede é o que se forma da comunicação entre mediadores em uma organização temporária de eventos. Comuni-cação é a mediação em uma rede organizada no espaço e no tempo pela troca de mensagens e/ou informações. Essa mediação consti-tui o espaço e o tempo. A organização é uma associação, uma rede de atores (humanos e não-humanos) temporariamente estabilizada por fluxos comunicacionais.

As redes sociotécnicas sempre marcaram o desenvolvimen-to das organizações. Hoje, as redes telemáticas são a infraestrutura central da cultura do século XXI, presentes em todas as áreas da

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sociedade. É fácil perceber as grandes transformações pelas quais passam as instituições contemporâneas com o advento das novas tecnologias de informação e comunicação: bancos, universidades, laboratórios, empresas jornalísticas e de entretenimento, adminis-trações públicas e privadas... É difícil encontrar, nas grandes me-trópoles contemporâneas, organizações que não estejam sujeitas às influências das redes sociais digitais e da comunicação telemática.

Essa conjuntura demanda esforços acadêmicos consideráveis. As organizações têm, agora, instrumentos poderosos de visualização de dados (para monitoramento, controle, vigilância), de comunica-ção entre os diversos atores, de acesso aos usuários e consumidores de seus produtos (veja o uso do Twitter e do Facebook para esse fim), de memória institucional, de processamento de informações em tempo real, de comunicação multimidiática planetária (textos, sons, imagens fixas e animadas). As organizações mais modernas têm utilizado as redes e as mídias digitais para reforçar laços, estabi-lizar fronteiras, abrir caixas-pretas e inovar.

Mas as novas mídias, as redes sociais e a comunicação glo-bal são um pharmakon, simultaneamente veneno e remédio. Elas servem tanto para potencializar e estabilizar as redes e os fluxos comunicacionais, aumentado sua coerência interna e ampliando a eficácia de sua ação externa, como também para fomentar contro-vérsias, revelar inconsistências e visualizar problemas. As organi-zações devem ter consciência disso. Abrir um perfil em uma rede social para ouvir empregados e consumidores pode ser produtivo e reforçar estabilidades, mas pode também fomentar controvérsias e produzir a necessidade de mudanças e transformações mais radicais. Isso pode levar, por um lado, a um novo arranjo organizacional, com inovação e fortalecimento (criação de uma nova organização, dife-rente ou maior do que a anterior), ou, por outro, à desestabilização e à morte. As redes, as mídias sociais e a ampliação dos processos comunicacionais não vão, necessariamente, garantir a estabilidade das organizações. Elas são ferramentas para a inovação, para a co-municação, mas também para abertura de caixas-pretas.

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Wikileaks

Um exemplo interessante e atual sobre controvérsias liga-das aos segredos e à liberdade de informação é o Wikileaks. O site “Wikileaks”, que usa “hacktivismo”21 e redes sociais, como indica o nome, é a mais nova faceta do ciberativismo global. O site libe-ra informações confidencias de interesse público, guardadas como segredo de Estado ou de grande empresas em diversos países. O seu idealizador é o ciberativista australiano Julian Assange, que está abrigado na embaixada do Equador em Londres para não ser preso e extraditado para a Suécia ou os EUA sob diversas acusações. O site existe desde 200622.

Para situarmos historicamente o “affaire” Wikileaks, vou re-tomar algumas ações ciberativistas que conformaram a cibercultura e a história do Wikileaks. O papel das tecnologias de comunicação e informação (TIC) na reconfiguração do jogo político não é um fato novo, desde as ações ativistas e micropolíticas, até o uso por candidatos, políticos eleitos, partidos políticos, bem como governos e instituições públicas.

No que se refere a ações ativistas, podemos dizer que elas acontecem desde o surgimento da microinformática, já em 1970, como uma guerrilha contra a Grande Informática (BRETON, 1990), e ganham corpo com a expansão da internet nos anos 1990 (LEMOS, 2002). Temos como exemplo a máxima “a informação quer ser li-vre” dos anos 1980; o ativismo “hacker” nos anos 1990 lutando pela segurança da informação; o surgimento do movimento pela adoção de software livres e formatos abertos; o compartilhamento de arqui-vos de música a partir do “Napster” (que abriu o caminho dos atuais “torrents”); a luta contra a censura em diversos países, como China; as ações pelas mídias sociais em apoio à luta social em países tota-litários, com nas últimas eleições no Irã, nas revoluções nos países árabes, no movimento “Occupy”, nos anos 2000, entre outros.

A atual guerra cibernética (censura ao site por empresas e redes sociais, contra-ataque de “hackers” contra os “inimigos” do

21 Podemos dizer que “hacktivismo” é um conjunto de ações (na rede e nos algorit-mos) com intenção de uma ação política organizada.

22 Ver Assange (2012).

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“Wikileaks”, prisão do seu coordenador na Grã-Bretanha etc.) é her-deira de outras lutas no ciberespaço como a “Operação Sun Devil”, em 1991 (que culminou com o surgimento da “Electronic Frontier Foundation”); a manifestação contra o chip “Clipper” em 1993 (uma tentativa de vigilância e controle de computadores e redes pelo ser-viço secreto americano, culminando com o movimento “cyberpunk” de criptografia (os “cypherpunk” e a criação do programa “PGP” de criptografia pessoal); a campanha das fitinhas azuis nos websites contra a censura na rede pelo “Communication Decency Act” (que ficou conhecido como “Cyberporn”); o ataque e as diversas reações contra a livre troca de arquivos; o ativismo colaborativo copyleft pela livre circulação de informação e de novos sistemas de direito de autor (como o “Creative Commons”); o movimento pela adoção de software livre em detrimento dos sistemas proprietários etc. Em todos esses movimentos, politização, circulação livre de informação e uso de redes sociais (desde a “Usenet” nos anos 1990, até o “Twit-ter” e “Facebook” hoje) produzem um importante e interessante ar-ranjo sociopolítico.

Com o caso “Wikileaks” emergem algumas questões: é pos-sível controlar e censurar a internet? Qual o papel dos meios de comunicação de massa nessa nova ecologia midiática? No que se constitui, se é que se constitui, a nova esfera pública global? Esta-mos falando de ciberguerra ou de ciberativismo, ou de jornalismo investigativo? Qual o limite da legalidade ou da ilegalidade no aces-so e difusão de informações confidenciais? Toda informação quer ser livre? Como medir o impacto do ciberativismo nos países envol-vidos? Como analisar o papel das redes sociais nesses movimentos? Estamos vendo a emergência de uma cidadania global?23 Vejamos sobre alguns desses pontos, os depoimentos de J. Lanier, B. Sterling, M. Castells e U. Eco.

A relação do affaire Wikileaks com o ciberativismo e hackti-vismo foi explorada por autores como Lanier, em um texto conser-

23 Para uma leitura mais aprofundada sobre essas questões, ver o “Dossiê Wikile-aks. Cibercultura e Política” organizado por mim para a Revista Contemporanea (http://www.portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/). Todos os ar-tigos estão disponíveis em http://www.portalseer.ufba.br/index.php/contempora-neaposcom/issue/view/557

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vador e polêmico na The Atlantic. Para Lanier (2010), a revelação do segredo é um perigo para a democracia:

Too much power can accrue to those we have sanctioned to hold confiden-ces, and thus we find that keeping a democracy alive is hard, imperfect, and infuriating work. The flip side of responsibly held secrets, however, is trust. A perfectly open world, without secrets, would be a world without the need for trust, and therefore a world without trust. What a sad sterile place that would be: A perfect world for machines.

Em sentido oposto, Bruce Sterling (2010) afirma que “Wiki-

leaks Cablegate scandal is the most exciting and interesting hacker scandal ever”. Relacionando com a história do movimento Cyber-punk, ele mostra que o Wikileaks:

Is a manifestation of something that this has been growing all around us, for decades, with volcanic inexorability. The NSA is the world’s most public unknown secret agency. And for four years now, its twisted sister Wiki-leaks has been the world’s most blatant, most publicly praised, encrypted underground site.

Já Manuel Castells (2010) afirma que as novas tecnologias de comunicação reconfiguram a comunicação política no século XXI. Para o sociólogo espanhol:

El drama no ha hecho más que empezar. Una organización de comunicaci-ón libre, basada en el trabajo voluntario de periodistas y tecnólogos, como depositaria y transmisora de quienes quieren revelar anónimamente los se-cretos de un mundo podrido, enfrentada a aquellos que no se avergüenzan de las atrocidades que cometen pero sí se alarman de que sus fechorías sean conocidas por quienes los elegimos y les pagamos.

Umberto Eco (2010) chama a atenção em artigo no jornal

francês Libération para a falta de novidade nas informações que cir-culam nos meandros do segredo e da diplomacia em níveis mundiais e históricos. Em uma perspectiva que desmerece a novidade do Wi-kileaks, o pensador italiano mostra que:

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First off, the WikiLeaks confirm the fact that every file put together by a secret service (of any nation you like) is exclusively made up of press clip-pings. The “extraordinary” American revelations about Berlusconi’s sex habits merely relay what could already be read for months in any newspaper (except those owned by Berlusconi himself, needless to say), and the sinister caricature of Gaddafi has long been the stuff of cabaret farce.

Como analisar essa controvérsia?

Para lançar uma luz sobre esse fenômeno, pode ser interes-sante rever as posições de Lippmann e Dewey sobre o público, o interesse público e a informação. Não vou me estender aqui nessa análise, já que mostramos essas posições no primeiro capítulo quan-do da análise do jornalismo. O interesse é apontar a visão desses autores sobre o “público” e a “informação” (o cerne da questão Wi-kileaks) a partir do excelente artigo de Noortje Marres (2005).

Para Lippmann e Dewey em suas obras “The Phantom Public” (LIPPMANN, 2002) e “The Public and its Problems” (DEWEY, 1991), o problema nas democracias não é de informação seleciona-da, contextualizada e digerida. Para esses autores, a democracia não deve ser uma forma política construída para evitar controvérsias, trabalhar informações e adestrar cidadãos, mas, bem diferentemen-te, uma prática que acolha e estimule divergência de opiniões e con-flitos24. É só nesse acolhimento, sustentam os autores, que o público pode aparecer e entrar no debate. Fora disso ele é apenas virtual, um mero fantasma.

Uma das críticas centrais ao Wikileaks é que ele revela infor-mações sem contextualizá-las, fazendo assim do público refém, pro-porcionando um desserviço à causa democrática. No entanto, para Lippmann e Dewey, a democracia deve ser, ao contrário, o lugar das controvérsias onde informações não digeridas e problemas não so-lucionáveis trazem, e só assim, o público à baila. Para esses autores, o público é algo “virtual”, “abstrato”, criado pelas mídias e ele só se

24 É importante chamar a atenção aqui para o fato de que o debate Lippman x Dewey se deu em 1922, quando da publicação do “Public Opinion”. Devo essa observa-ção à André Holanda. Sem a precisão da conjuntura temporal, a minha explicação poderia dar uma ideia errada do contexto.

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revela quando há controvérsias, como é o caso atual do Wikileaks. Como mostra Marres (2005, p. 216):

One reason could be that a public is a partly imaginary entity — a phan-tom as Lippmann put it. In calling the public by this name, Lippmann was following the Danish philosopher Kierkegaard, who famously declared that after the rise of the press, the public was no longer primarily represented by “men of excelence,” but had taken on the form of an abstract creature.

A solução não é traduzir questões complicadas pelos meios tecnológicos, mas produzir controvérsias. Só assim o público pode aparecer e sair de seu estado fantasmagórico. Essa posição é muito próxima da defendida pela TAR. Lippmann e Dewey simplesmente rejeitam a ideia de que a informação trabalhada e contextualizada seja uma condição para a democracia e que muita informação seja um problema. Para Dewey, a prática democrática deve sustentar que “‘foreign entanglements’, far from constituting an obstacle to demo-cratic politics, actually play an absolutely key role in getting people involved in politics.” (apud MARRES, 2005, p. 210). Esse é o papel central da prática democrática, convocar o “público” ao debate.

Nesse sentido, o Wikileaks pode ser uma oportunidade para ressaltar controvérsias e fazer com que o público apareça, que ele passe de entidade virtual (intermediário?) a agente, a mediador. Para os autores, de acordo com Marres (2005, p. 212):

Yet it is in controversies of this kind, the hardest controversies to disen-tangle, that the public is called in to judge. Where the facts are most obs-cure, where precedents are lacking, where novelty and confusion pervade everything, the public in all its unfitness is compelled to make its most important decisions. The hardest problems are problems which institutions cannot handle. They are the public’s problems.

E é isso o que faz o Wikileaks. É justamente onde as institui-ções estão em impasse (a diplomacia, os jornalistas envolvidos com grandes empresas e que não podem publicar os “cables”, os políti-cos e instituições envolvidas) que o público aparece. Ele é assim, “atualizado” e pode se engajar na coisa “pública”.

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A crítica ao Wikileaks, por esse viés, feita por Eco e por La-nier deve ser relativizada. Ele produz controvérsia em nível plane-tário, passando por cima de fronteiras e atualizando um “público” mundial. Talvez, como disse Sterling, esse seja mesmo o caso mais expressivo e atual do hacktivismo. Pela polêmica e não pela reso-lução por parte das instituições envolvidas, o “affaire” Wikileaks convoca o público a se posicionar. E o público aqui não é uma co-munidade de opiniões convergentes, mas um conjunto de indivíduos com interesses precisos, diferenciados e conflituosos.

Podemos ver em Lippmann e Dewey como o público pode ser ora mediador, ora intermediário, às vezes entidade abstrata, global; outras, actante que se atualiza no problema a ser enfrentado, sendo um mediador em uma rede formada por jornalistas, governos, ati-vistas, hackers, empresas, etc. Não é à toa que Latour retoma Lipp-mann nas suas mais novas intervenções. Quando as partes trabalham para ajustar o problema, não há nenhum envolvimento público, este simplesmente desaparece. Ele só se apresenta ou deve se apresentar quando as instituições falham nessa resolução. Como afirma Marres (2005, p. 213):

According to Lippmann, it is thus the failure of existing social groupings and institutions to settle an issue, which sparks public involvement in poli-tics. It is the absence of a community or institution that may deal with the issue, that makes public involvement in politics a necessity. (…) Dewey, just like Lippmann, sees the need for public involvement in politics arise when those directly involved in an affair fail to deal with a problem. (…) “As long as a social grouping successfully manages its own affairs, these affairs are not really the public’s business. (…) In the case in which a pu-blic is confronted with the failure of existing institutional arrangements to deal with the issue that called this public into being, then the public must re-make the state.

A “reconstrução do Estado” se dá pela “ungraspability”, como uma forma de agência. Para Marres (2005, p. 216):

We then say that what makes a public such a special agent is that when specific actors get organized into one, they may evoke the anonymous, col-lective, virtual, somewhat mysterious creature we call public. And maybe

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it is precisely in this capacity of a phantom, that a public may generate that virtual, somewhat mysterious thing called “pressure,” which can then be directed at specific instances, to induce shifts in their habits, policies, regu-lations, commitments.

Não seria esse o caso do Wikileaks: uma pressão mundial que pode redirecionar hábitos, políticas, regulamentações e compromis-sos? Affaire à suivre!

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3. dispositivos de leiturA

O objetivo deste capítulo é, a partir dos novos dispositivos de leitura, fazer uma discussão sobre a visão instrumental dos artefa-tos tecnológicos contemporâneos, questionando a visão dos mesmos como ferramenta ou intermediário, e visualizando a controvérsia sobre materialidade, mobilidade, original e cópia em jogo com o surgimentos dos livros e dispositivos de leitura eletrônicos. Desen-volvo uma reflexão comparando as práticas de leitura em diferentes dispositivos (computadores, leitores eletrônicos e tablets) e analiso a necessidade de adaptação da cultura dos livros de papel à nova cultura digital.

dispositivos de leiturA eletrônicos1

É ao mesmo tempo uma revolução da modalidade técnica da produ-ção do escrito, uma revolução da percepção das entidades textuais e uma revolução das estruturas e formas mais fundamentais dos su-portes da cultura escrita. Daí a razão do desassossego dos leitores, que devem transformar seus hábitos e percepções, e a dificuldade para entender uma mutação que lança um profundo desafio a todas as

1 Parte deste texto foi publicado em Lemos (2011b e 2012b).

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categorias que costumamos manejar para descrever o mundo dos livros e a cultura escrita.

Roger Chartier (2002, p. 24)

A evolução das mídias digitais tem levado a um retorno a experiências consagradas com a mídias de massa. Elas aportam no-vidades consideráveis, mas estão buscando, de certa maneira, um retorno a experiências passadas, ancoradas nos hábitos culturais estabelecidos. As análises sobre as novas mídias centraram-se nas diferenças, na morte dos antigos formatos e na superação da expe-riência analógica com o surgimento do digital e das redes telemáti-cas2. Mas as práticas atuais mostram que estamos assistindo a um retorno a experiências muito similares às anteriores, com o aprovei-tamento das inovações sociais e tecnológicas do digital, principal-mente no que se refere às possibilidades de produção de conteúdo, de compartilhamento de informação e de criação de redes sociais. Isso acontece com a nova TV3, com as mídias de geolocalização4, com o cinema5, com a música6 e com os livros.

2 Robert Darnton, autor de “A questão dos livros” (2009) é claro a esse respeito: “devia--se pensar em livros velhos e e-books como aliados, e não como inimigos” (2011).

3 O mesmo podemos dizer do futuro da TV. Interessante artigo publicado na Te-chnology Review, “Searching for the future of television”, mostra bem as nego-ciações e sustenta a hipótese de se buscar, com as maravilhas da interatividade digital, a experiência da TV analógica. Ver http://www.technologyreview.com/featuredstory/422126/searching-for-the-future-of-television/

4 Não se trata, com as mídias locativas, de navegar em uma “Matrix” fora do mun-do real, em um “espaço” a parte do espaço físico, urbano, local. O que estamos assistindo é uma volta (se é que isso se perdeu algum dia) de territorializações.

5 Ir ao cinema não é equivalente à experiência de ver um filme em DVD em casa, ou no celular, por exemplo (Estamos falando da experiência clássica. Isso não leva em conta novas experiências como, por exemplo, o “cinema expandido”). O con-teúdo pode ser o mesmo, mas cinema é corpo em um ambiente. A materialidade desse conjunto de dispositivos comunicacionais (a sala, a película, o som, a luz, os espectadores, a presença de outros espectadores, a impossibilidade de interagir e interferir na visualização etc.) é bem distinta daquela de uma sala de uma resi-dência onde se assiste ao mesmo filme em um DVD, por exemplo.

6 Com a música é diferente. O suporte não importa, mesmo que o lugar da audição seja sempre importante. O que conta é o “onde” e o “quando” se ouve, mas não a manipulação (o corpo que toca) do suporte (vinil, fita, CD, DVD). Não inte-ressa muito se o que se ouve está em um CD, MP3 ou vinil (mesmo que existam idiossincrasias de uma minoria nessa escuta). Da mesma forma que o cinema, os concertos não são substituídos pela audição em casa.

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Vejamos o caso dos livros e leitores de livros eletrônicos. Para o que nos interessa aqui, buscamos compreender a relação material7 e corporal8 do uso desses artefatos a fim de sugerir uma análise que leve em conta as características de cada um deles na relação com suas práticas e usos.

O jornal impresso tem o papel como suporte, onde os carac-teres estão previamente fixados. Ele é um produto acabado, como uma temporalidade própria (diário em sua maioria) que indica uma determinada postura corporal (sentado, folheando as páginas) e um momento especial de leitura, mais focado, já que o produto é ofere-cido de forma finalizada ao leitor. Ele é barato, portátil e descartável. Já o jornal na web é aberto, com conexão entre links que oferece possibilidades de leituras mais rápidas. Os caracteres (agora eletrô-nicos) fixam-se por demanda, a cada clique, aparecendo em uma tela iluminada, desaparecendo a cada navegação. Não há um fechamento temporal já que as atualizações das matérias são constantes. Dife-rentemente do impresso, há formatos multimidiáticos e interativos. Esse produto jornalístico oferece ainda a possibilidade de acesso a arquivos em bancos de dados, criando uma gigantesca memória in-formacional disponível através de alguns cliques. A postura corporal é bem diferente daquela do leitor do jornal impresso. O corpo curva--se sobre uma máquina, através de uma interação indireta (através de mouse e pads). Além disso, convoca uma posição parecida com aquela de quem trabalha, não com a de quem lê.

Já a experiência de leitura nos tablets ou e-readers é seme-lhante à manipulação do papel. É possível ler um jornal como se fosse o jornal impresso. E os aplicativos fornecem produtos simila-res ao impresso, fechado, com uma temporalidade também delimi-tada (a edição do dia). Ao clicar para “baixar” o jornal (comprando

7 Como muitos afirmam, provavelmente a “era do impresso” tenha sido mesmo apenas um parêntese (o “parêntese Gutenberg”) na história da leitura e da escrita. Sobre a discussão sobre o “parêntese Gutenberg”, ver: http://www.niemanlab.org/2010/04/the-gutenberg-parenthesis-thomas-pettitt-on-parallels-between-the--pre-print-era-and-our-own-internet-age/

8 Recente livro publicado na França (PERELMAN e MION, 2013) trata desse tema mostrando como o livro tem também um corpo (pé de página, título na “cabeça”, colunas…) e está em relação íntima com o nosso (leitura sedentária ou nômade, livros de bolso ou “coffee table books”…), alterando formas e produzindo trans-formações importantes.

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um exemplar, ou fazendo uma assinatura), o usuário tem a versão do dia, similar à versão impressa9. Os caracteres digitais fixam-se por uma “tinta eletrônica” em uma tela sem luz que emula (bem) o papel, no caso dos e-readers. Estes procuram trazer de volta a experiência de se ler um livro ou um jornal de papel.

Mas, sendo digitais, tablets e e-readers ampliam as possi-bilidades de acesso, já que o usuário pode receber um exemplar em qualquer lugar do mundo em segundos (por redes sem fio – Wi-Fi, 3G, 4G), pode-se acumular os exemplares sem que com isso tenha que carregar os cadernos impressos (ou os livros) e compartilhar trechos de uma matéria e links nas redes sociais. Com um conteúdo fechado (como um livro ou um jornal im-presso), a leitura é mais “focada”, diferente do “surf” na web. A postura corporal também é diferente, seja daquela do jornal na web, seja da leitura do jornal impresso: os cadernos não são abertos em movimentos amplos dos braços e não se está sentado com o corpo curvado em direção a um computador, como no caso da web. A leitura é próxima daquela de um livro (as duas mãos diante dos olhos).

A leitura de um jornal ou de um livro em um tablet, como o iPad, por exemplo, não é nem como a leitura de um jornal im-presso, nem como um jornal na web, nem como a leitura em um e-reader (embora se assemelhe muito e ambos estejam em rota de fusão). O tablet utiliza aplicativos adaptados ao dispositivo e novos produtos jornalísticos veem surgindo a cada dia. No Bra-sil, podemos citar o 24/7, Globo A+ e o Estadão Noite, produtos específicos para o dispositivo, adaptados à nova prática e horário de leitura dos usuários (principalmente os dois últimos). Dife-rente dos leitores do jornal impresso, que o lêem logo pela ma-nhã, os leitores de tablets preferem o fim de tarde. Temos aqui um produto adaptado ao dispositivo, síntese das informações do dia, conteúdo multimidiático (vídeos, fotos, música) e crossme-dia (sugerindo seguir links que remetem a mais informações em páginas na Web).

9 Há algumas diferenças e limitações. Há menos fotos que o impresso e, na sua maioria, não há o uso de links, como em um jornal na web.

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Nos tablets, a informação é fixada em uma tela iluminada (bem diferente do conforto dos e-readers que não oferecem a opção), no qual a posição de leitura é similar àquela de quem lê um livro (“lean back”, diferente também daquela da web). O conteúdo pode ser ou-tro, mais aberto, com links, interativo, multimidiático, adaptado à tela “touch-screen” e aos movimentos de rotação do equipamento (“acelerômetro”). Por exemplo, ao usar o dispositivo na horizontal ou vertical, uma imagem pode se transformar em um vídeo. A tela tátil permite uma interação intuitiva e mais fluida do que aquela com o teclado para a web, ou as teclas para passar as páginas em alguns e-readers sem esse recurso. A ação corporal é diferente daquela do impresso ou da web, e bem mais próxima dos e-readers, embora a interatividade produza novas exigências de apoio do dispositivo, ou de movimentos característicos, como fazer da ponta dos dedos (“pinçar”) uma função ótica (zoom in e zoom out).

A rápida descrição dos dispositivos e experiências de leitura revela diversos mediadores que atuam diferentemente a depender do conteúdo, do dispositivo e das práticas corporais: tipo do artefato eletrônico, produtores de textos, criadores de software, de imagens e de sons, usuários e suas práticas e hábitos corporais, lugares cons-tituídos, hábitos históricos de leitura, distribuidores, escritores etc. Essa rede de atores está constituindo novos hábitos de leitura e, de hoje em diante, deve ser considerada para a análise das práticas e há-bitos de leitura e escrita, bem como da cadeia de produção e de dis-tribuição dos livros (impressos e eletrônicos)10. A nova rede de me-diadores terá um papel fundamental no processo de constituição da atual mobilidade dos processos de leitura e de escrita. A mobilidade não é, certamente, uma novidade, mas devemos considerar a sua dimensão atual. Sabemos que as transformações são uma constante na história da leitura, da escrita e do desenvolvimento dos suportes (tabuletas, pergaminhos, papiros, códex, computador, internet, celu-lares, e-readers, tablets...). Precisamos seguir a sua trajetória.

10 Há e-readers com touch-screen, como o Nook da Barnes and Nobles.

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Novas trajetórias

Duchamp, bebendo um refrescante shandy, aproximou-se e explicou a Pra-dos que só se narram contos para que alguém os repita, e que deixamos de contá-los quando esses relatos não se conservam, e que, se não se conser-vam, é porque deixamos, ao escutá-los, de fiar e de tecer. Enrique Vila Matas (2011, p. 34)

A questão da mobilidade dos textos e dos dispositivos de lei-tura remete ao problema da localização da informação e da origi-nalidade da obra produzida. Vou abordar essas noções a partir da dificuldade que os leitores eletrônicos apresentam quanto à forma de indicar uma referência. Isso mostra as dificuldades de transição das materialidades dos dispositivos em meio à cultura digital e à necessidade de adaptações criativas.

Como citar as referências de um livro no Kindle, se o mesmo não tem páginas, mas “locations”? Para a citação de uma obra ele-trônica (PDF, ou texto em sites), em geral, o que fazemos é colocar a referência como no impresso, no site ou indicar o DOI, como, por exemplo, no meu artigo “Lemos, André. Post-Mass Media Func-tions, Locative Media, and Informational Territories: New Ways of Thinking About Territory, Place, and Mobility in Contemporary So-ciety. In Space and Culture, November 2010 13: 403-420”. Há a referência à revista de papel e ao documento eletrônico, mantendo a paginação da revista impressa. Neste outro caso: “Tuters, M., Var-nelis, K. (2006). Beyond locative media. In http://networkedpublics.org/locative_media/beyond_locative_ media”, não há páginas e o texto é apenas eletrônico, indicando a URL. Caso citemos algum tre-cho, esse fica sem páginas, devendo indicar a data de acesso ao site.

No caso do Kindle, o que se aconselha é que façamos a cita-ção da obra no suporte impresso (livro ou revista) e indiquemos que a referência partiu de uma versão do Kindle. Mas não há consenso. Alguns especialistas indicam que o melhor é a localização, ou o nú-mero do parágrafo (em alguns leitores que não o Kindle). A loca-lização é um problema já que não está mais ligada à uma página11. Outros autores sustentam a necessidade de manter o formato atual

11 Agradeço a Leonardo Pastor a precisão dessas informações.

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e que o pesquisador busque a referência nos livros impressos em bibliotecas, livrarias ou no “Google Books” (quando houver). Ou seja, o dispositivo eletrônico não deve mudar a forma canônica de localização das informações estabelecidas pela cultura do impresso, o número da página.

No entanto, o problema persiste e só tende a aumentar se pensarmos que, cada vez mais, teremos obras eletrônicas sem re-ferências a versões impressas, feitas em formatos específicos para dispositivos específicos. Como citar uma passagem? Meus livros “Reviravolta” (LEMOS, 2010c) e “Caderno de Viagem” (LEMOS, 2010d) são e-books, sem versão impressa. Como leio os dois no Kindle, devo fazer a citação usando a localização e dizer que é no formato “mobi” para Kindle? E se for em formato “e-pub”, em um iPad, mantenho outra forma de indexação da passagem, a página, por exemplo, gerada na versão eletrônica?

Uma discussão interessante foi travada na lista “[email protected]” da “Association of Internet Researchers”12. O debate está aberto e longe de terminar. Quero destacar que a mudança de dispositivo mobiliza uma rede de mediadores humanos e não-hu-manos, produzindo controvérsias (memória, confiabilidade, referên-cias, indexação, cópia, original) e alterando as formas de produção, difusão e estoque de informação. Há uma mudança, a longo prazo, nas formas de produzir, distribuir e armazenar o conhecimento.

Sem enfrentar o problema, recentemente o Kindle o resolveu de forma bastante conservadora. Foi assim, pragmático, não enfrentando o seu próprio desafio (e que reflete o problema da cultura digital em geral: referenciação, original, copyright etc.). A Amazon (empresa que pro-duz o Kindle) passou a oferecer o número da página da versão impressa, a versão que dá “origem” ao livro eletrônico. A solução é conservado-ra, já que mantém a amarração do texto com a sua versão impressa. Isso resolve o problema de normatização, temporariamente (enquanto obras ainda tiverem uma origem impressa), mas não ousa com uma so-lução mais inovadora (abandonando em parte o location) já que tende a apagar as diferenças das publicações digitais em relação às impressas. Toma-se a versão impressa como se ela fosse a “original”.

12 http://www.aoir.org/

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A questão é mais profunda, pois remete à indexação de obras eletrônicas, que devem, aos poucos, abandonar a noção anacrônica de páginas dos impressos e se libertar das amarras de um suposto original. Não é isso, no fundo, o que ainda está pairando na discus-são sobre os livros de papel e os digitais e na resistência em relação a esses últimos? Não seria mesmo a nostalgia do papel, que seria o original que fixa para sempre a informação em suas páginas? O que é mesmo uma página senão a materialidade do papel?

A página é uma face de uma folha de papel. Esse foi o forma-to consagrado no Códex. O papel formou e conformou o nosso pen-samento ao moldar formas de escrita e leitura. É justamente a ma-terialidade que está em questão, sendo substituída, pouco a pouco, pela materialidade eletrônica do dispositivo. Nos dispositivos de lei-tura eletrônicos, o suporte em papel (forma fechada pela edição) dá lugar a uma superfície eletrônica de onde emergem signos textuais que podem ser modificados (mudança de tamanho de fonte), coloca-dos em contato com outros textos de forma mais performática que a referência em pé de página em um suporte em papel, ou comparti-lhados em redes sociais (pode-se compartilhar trechos dos livros no Kindle no Twitter, ou ver o que outros leitores marcaram no livro13). O leitor torna-se, de alguma forma, o editor da obra (e também, no limite, distribuidor, já que pode repassar o texto se estiver livre de proteção, ou contorná-la e distribuir em outros formatos). O editor e o “tipógrafo”14 passam a ser o próprio leitor (CHARTIER, 2002).

O livro entra, na cultura contemporânea, em uma era de ban-cos de dados e tanto o dispositivo como a leitura ganham novas dimensões: buscar livros em bancos de dados extensos (Amazon, Google Books), encontrar passagens de um livro em outro livro, ver o que os leitores marcaram, cruzar essas marcas, circular partes do texto de um livro em redes sociais, identificar quando e quan-

13 Esse recurso é oferecido no Kindle. O usuário, ao configurá-lo, pode adicionar, aos livros que está lendo, as marcas e comentários feitos por outros leitores da mesma obra, tornando a leitura uma ação de “rede social”.

14 O que é hoje bem comum para a música, filmes e software, a troca de arquivos em redes P2P, está começando a acontecer com os livros eletrônicos. Esse é ainda um dos motivos que têm levado algumas editoras a não adotar, ou adotar com receio o novo formato.

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tas vezes uma palavra aparece nos livros por ano etc.15 Amplia-se a comunidade de leitores, criando uma nova “República das Letras”. Esses dispositivos são “biblio” (DERRIDA, 2004), um espaço/lugar de armazenamento e distribuição de informações textuais móveis.

Original e Cópia

Latour e Adam Lowe (2010) desenvolveram um interessante argumento mostrando que, na obra de arte, o que importa é que o original gere uma linhagem (as mais diversas cópias e versões). Para os autores, mais importante do que perguntar se estamos diante de um original ou de uma cópia, é saber se a cópia é boa, se ela valoriza a sua origem, se ela “produz” a “aura” do original. Este é importante se consegue gerar o maior número possível de boas cópias (boas edições). Caso contrário, ele perde a aura e desaparece (um livro não publicado ou reeditado, uma peça teatral sem remontagens, uma música sem exibições etc.). O original só pode ser pensado enquanto tal se continua a existir nas suas reproduções. São elas que garantem a sua originalidade como aquilo que dá origem, que inicia uma tra-jetória. O problema do copyright é assim econômico. A cópia refor-çaria a potência do original.

No caso dos livros, o debate da localização da informação faz eco a essa discussão, já que a opção pela manutenção de uma localização pelo número da página do papel impresso indica que essa versão seria a original. Mas, nesse caso, a versão digital é des-valorizada como cópia, já que deve manter as amarras da sua versão impressa. Dessa forma, o “original” das versões impressas se sobre-põe à “cópia” da versão eletrônica. Esta visão distorce e pressupõe a ideia de original no impresso e de cópia no eletrônico, ao mesmo tempo em que não leva em consideração as características dos atuais dispositivos de leitura.

15 Ver o post de Bernhard Rieder, “81,498 Words: the Book as Data Object” no blog Masters of Media, http://mastersofmedia.hum.uva.nl/2011/05/22/bernhard-rie-der-81498-words-the-book-as-data-object/. Ver também a ferramenta do “Google Ngram Viewer” que permite a busca de palavras em livros desde o início da era do impresso. Veja por exemplo a palavra “book” de 1500 até hoje: http://books.google.com/ngrams/graph?content=book&year_start=1500&year_end=2000&corpus=15&smoothing=3&share=

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No entanto, essa novidade é uma ilusão já que a referência à página do impresso já é ela mesma um deslocamento do original, uma trajetória de uma origem da localização do texto. Ela já é a cópia de um “original”. No fundo, as letras e os dispositivos são sempre móveis e são sempre trajetórias de um original. A fixação na página nada mais é que uma ilusão de um “porto seguro” fixada temporariamente. Não é agora, com os e-readers, que os livros e os leitores tornaram-se móveis. Só há textos e leitores móveis. Na realidade, só há cópias de um original, movendo os caracteres a cada edição, alterando a sua localização.

Latour e Lowe afirmam que o que interessa é a trajetória da aura do original. Um artigo mais antigo de Hennion e Latour (1996), publicado nos “Cahiers de Médiologie”, já mostrava esse erro, afirmando que a aura aumenta com a reprodução técnica. Benjamin estaria errado, já que a trajetória do original não pode ser vista como a degradação da aura, mas justamente o oposto. O que garante a importância de uma origem, ou o reforço da aura é a existência da sua linhagem, a geração de cópias. O que importa é que a cópia (a releitura, a montagem, a edição, a versão) seja de qualidade e possa continuar a trajetória de um original. Toda produção (não só da obra de arte) deve ser vista como o desen-volvimento de uma “trajetória” na qual o original é a “origem”, e a cópia resultado desse original “copioso” e farto. No fundo, essa é a ontologia da TAR, o ser como “être-en-tant-qu’autre” na sua trajetória de subsistência, como vimos no primeiro capítulo. Para Latour e Lowe (2010):

A work of art – no matter of which material it is made – has a trajectory or, to use another expression popularized by anthropologists, a career. What we want to do in this paper is to specify the trajectory or career of a work of art and to move from one question that we find moot (“Is it an original or merely a copy?”) to another one that we take to be decisive, especially at the time of digital reproduction: “Is it well or badly reproduced?” The reason why we find this second question so important is because the quality, conservation, continuation, sustenance and appropriation of the original depends entirely on the distinction between good and bad reproduction. We want to argue that a badly reproduced original risks disappearing while a well accounted for ori-ginal may continue to enhance its originality and to trigger new copies (p. 4).

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Actually, this connection between the idea of copies and that of the original should come as no surprise, since for a work of art to be original means nothing but to be the origin of a long lineage. Something which has no progeny, no reproduction, and no inheritors is not called original but rather sterile or barren. To the question: “Is this isolated piece an original or a facsimile?”, it might be more interesting to ask: “Is this segment in the trajectory of the work of art barren or fertile?” (p. 5).

Na citação acima, qual seria o original que principiou a repro-dução? Provavelmente o texto escrito (a quatro mãos?) em mais de um processador de texto, em um vai e vem entre os autores? Chegar ao original, ou seja, no texto dito pronto para gerar publicações e có-pias, é um árduo e longo trabalho de produção de “proto-originais”. Sabemos o quanto é difícil decidir quando chegaremos ao original que será a origem de uma trajetória de reproduções e cópias ao ponto final. E isso para todas as obras técnicas ou artísticas. Como citar o texto anterior já que ele foi retirado de uma cópia eletrônica na internet sem páginas?16 Que reprodução irá manter a trajetória do original? Em páginas do livro impresso, em locations no Kindle, ou sem nenhuma localização como no PDF que origina aqui as minhas reproduções? Uma é mais legítima do que a outra? Ou deveria abdi-car das versões eletrônicas em meio à riqueza que é a internet como fonte de informações e citá-lo apenas no livro publicado, buscando a página (que não tenho e, portanto, não poderia assim fazer essa reflexão)?

No fundo a questão mais radical é se precisamos mesmo de uma localização, de uma página, de uma marca original. Se usamos um livro impresso, claro, preciso da página, já que ela é a única forma automática de achar algo no conjunto de caracteres textuais de uma obra. Mas vou precisar fixá-lo de alguma forma, indicando o ano, a editora e a cidade. Mas, se estamos utilizando dispositivos

16 Nota sem referência à localização das passagens já que o PDF que utilizei não oferece essa informação. As citações acima vêm de uma reprodução em PDF, que é na realidade o original (o que origina a trajetória desse texto já que ele está sen-do publicado em um livro). O livro já está publicado. Vejam o seu rastro escrito abaixo do título do artigo em PDF: “A chapter prepared by Bruno Latour & Adam Lowe for Thomas Bartscherer (editor) Switching Codes, University of Chicago Press (2010). Final version –after editing by CUP”.

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eletrônicos, a necessidade desaparece, já que se quero saber onde está a referência e comprovar se a citação está correta, ou qual o seu contexto, bastaria usar as características do dispositivo e fazer uma busca eletrônica a partir de uma ou mais palavras reproduzidas na citação, deixando a máquina me dizer onde ela está. Não é essa a função da localização? Comprovar a informação e situá-la em um contexto anterior ao que a situo agora?

Assim, o que importa, efetivamente, não é tanto a discussão sobre a origem no impresso, ou sobre a localização em números nos e-readers ou tablets. Esse debate não pode interromper a trajetória de um original. Devemos mudar o foco e a forma canônica de inde-xação em páginas e aceitar os novos formatos com localização flu-tuante (pouco importa aqui se mudo ou não as fontes ou seus tama-nhos, já que a máquina encontrará a informação) que vão permitir, de forma mais rápida e planetária, que as trajetórias se mantenham e cresçam. Não se trata tanto de voltar a uma página de uma repro-dução impressa que congelaria o tempo e tomaria para si o lugar de ponto central e original de ancoragem principal das citações, como fez o Kindle para resolver o problema.

Cada edição, mesmo as impressas, produz outra localização da informação, já que é sempre uma cópia. Localizar a citação de uma obra editada é localizá-la em uma reprodução, em um ponto da trajetória de uma originalidade. O original passa sempre por repro-duções, resolvidas provisoriamente na edição do impresso. Haverá sempre novas reproduções do original (se for bom e se mantiver vivo) e novas localizações, seja das páginas dos impressos ou dos “locations” do Kindle. Muitos não se reproduzem e morrem nos HD dos escritores (um texto não aprovado para publicação, por exem-plo, é um original que não se reproduz e que morre enquanto origi-nal, como o que cria uma linhagem).

No caso do impresso, a localização pelo número da página é sempre provisória, pois das duas uma: ou a obra continuará (e será reproduzida, desarrumando as informações, mudando as páginas), ou será esquecida, ficará sem linhagem e trajetória, e desaparecerá. Por isso a solução da página também coloca em causa a migração da “aura” do original e é tão problemática quanto a “location” do Kindle. Aprendemos a pensar na fixação da página impressa como

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mais “confiável”, como um “original”, de onde emanaria a “aura”, e a pensar a reprodução (qualquer uma, e a digital mais recentemen-te) como inferior, como denegrindo a imagem do original, como a destruição pela reprodutibilidade eletrônica (a opção de Benjamin).

Vejam que a mobilidade do texto e o reconhecimento de que ele é uma cópia está na forma canônica da citação acadêmica. Deve-se sempre informar o número da página, mas também o tempo e o espaço, ou seja, o ano, a cidade e o nome da editora. Essa forma de citar reconhece, em cada edição, a reprodução da trajetória de uma origem, a sua mobilidade. O original (onde está ele mesmo?) só existe na reprodução que efetua a trajetória da migração, perpetuan-do a sua existência. E isso muda o tempo todo. A página de um texto na sua primeira edição na editora X da cidade Y não será, certamen-te, a mesma da sétima edição, da editora Z da cidade W.

O que interessa, efetivamente, não é tanto a discussão sobre a origem, mas saber sobre os tipos de reproduções e sobre as possibili-dades de continuar a reproduzir o texto. E como localizar a citação? Seria mais interessante falar de uma localização fluida, ou mesmo de uma não localização indexada (e que depende do leitor – aquele que lê, e do dispositivo utilizado) do que forçar os leitores a se fixarem na estrutura das páginas de uma edição impressa (também fluida de fato, mas com aparência de estática), ou nos números dos “locations” do Kindle. Voltando às páginas de um impresso como original, ou marcando os números da location ou dos parágrafos nos e-readers, perdemos a oportunidade de avaliar mais seriamente as mudanças na cultura digital e, mais particularmente, da mobilidade dos textos, dos originais e das cópias nos novos dispositivos de leitura eletrônicos.

Os dispositivos não são apenas ferramentas, mas mediadores importantes. O mesmo podemos dizer dos demais artefatos técnicos: eles não são ferramentas, meios, por um lado, ou agentes, mediado-res por outro. Se abandonamos a perspectiva essencialista, podemos ver nas associações e as redes em formação e afirmar que os arte-fatos não são uma coisa ou outra, não estão na dimensão micro ou macro, mas se definem nas associações, em espaços planos e em di-mensões que colocam em tradução humanos e não-humanos. Assim é com os dispositivos de leitura eletrônicos, assim é com a internet e as redes sociais.

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4. mídiAs sociAis.

ferrAmentA dA revolução?1

All media exist to invest our lives with artificial perceptions and arbitrary values.

Marshall McLuhan (1964, p. 199)

In this electronic age we see ourselves being translated more and more into the form of information, moving toward the technological extension of consciousness.

Marshall McLuhan (1964, p. 57)

Neste capítulo descrevo o papel das mídias digitais nos levan-tes sociais de 2012 que ficaram conhecidos com a “Primavera Ára-be”. Partindo de McLuhan e de sua máxima “o meio como extensão do homem”, amplio a discussão e mostro, como sugere a TAR, que não há essência e que as posições de “ator principal” e “interme-diário” são sempre estabelecidas por negociações. Para tanto, vou explicar como a ideia de que “os meios são extensões do homem” de McLuhan deve ser ampliada e revista para nos permitir analisar os novos fenômenos.

1 Parte deste texto foi publicado em Lemos (2012a).

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Para demonstrar esta tese, vou analisar como o Twitter, Fa-cebook, blogs e o YouTube não foram apenas ferramentas, meios, ou mídias que “estenderam” a ação humana na Tunísia e no Egito, por exemplo, mas mediadores que em conjunto com outros criaram uma rede de associações que mudaram o panorama político desses países. Não havia humanos de um lado e mediadores não-humanos do outro, estendendo os primeiros. Não se trata de um mais o outro, mas de “um-sendo-com-o-outro”.

meio como extensão

McLuhan foi um pensador extremo, apontando transforma-ções que eram apenas esboçadas nos anos 1960 e 1970. Ele viu com um olhar agudo as transformações comunicacionais e indi-cou com perspicácia como as mídias eletrônicas estavam criando um ambiente, uma ecologia de mídias, que transformaria para sempre a sociedade. Máximas como “aldeia global”, “os meios são as mensagens”, “os meios como extensão do homem” devem ser vistas hoje em perspectiva, mas não se reconhecermos que elas indicaram um caminho, hoje incontornável, para compreen-der a atual cultura digital. Vou esboçar algumas ideias em relação aos limites da máxima “o meio como extensão do homem” (uma das mais importantes do pensamento de McLuhan, e uma das mais bem aceitas para descrever o papel das mídias na socieda-de) problematizando a separação entre sujeito e objeto (o sujeito estendido pelo objeto).

A TAR é herdeira da teoria ecológica de McLuhan. Mostra-mos, no primeiro capítulo, como ela propõe a superação das dico-tomias modernas (sendo “a-moderna” e não “pós-moderna”) entre sociedade - natureza, sujeito - objeto, instituindo um pensamento que reconhece apenas híbridos. Consequentemente, não há um meio que seja uma “ampliação” ou “extensão” do homem. O que define o sujeito, ou “o homem”, é exatamente as associações com outros actantes. Ser sujeito é ser sujeito em rede, em um “meio”. Ele é, por assim dizer, sempre ampliado pela formação de híbridos. Se retira-mos as relações de um sujeito com os objetos não encontraremos mais nem sujeito, nem objetos.

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Se esse raciocínio está correto, podemos afirmar que McLuhan viu bem os híbridos na constituição do campo social das mídias, e talvez tenha sido um dos mais enfáticos na afirmação sobre a forma-ção de uma ecologia cognitiva, mas purificou a mistura, separando, a posteriori, o sujeito, o homem, o objeto, a mídia. Só estando sepa-rado para poder ser uma extensão. Mas, no entanto, ele sabia desse erro, pois todo o seu trabalho consiste em mostrar exatamente como não podemos pensar assim, que o “meio” é a mensagem e ele nos enreda. As mudanças culturais, econômicas, cognitivas das novas mídias são, na realidade, a constatação dessa relação intrínseca, não de extensão, mas de hibridização. O meio não é extensão, mas cons-tituição do homem.

Ao afirmar que o meio é uma extensão do homem, McLuhan mostra que os meios de comunicação prolongam capacidades corpo-rais e cognitivas humanas, aumentando a sua potência de ação sobre o mundo. Podemos ver aqui uma filosofia da técnica que toma os ob-jetos e artefatos como algo que potencializa a estrutura física e cog-nitiva humana já que para McLuhan (1964, p. xxi), “we shape our tools and afterwards our tools shape us”. Um martelo é a extensão do braço, a escrita uma extensão da memória, os meios eletrônicos e hoje as redes telemáticas, uma expansão da consciência.

Devemos ver nesses diversos objetos técnicos um comple-mento da potência humana constituindo-se como um ambiente, ou fundo, no qual o humano cresce, se desenvolve e também se apri-siona. Estamos agora em um ambiente midiático que nos engloba, balizando nossas atividades físicas, sensórias no espaço e no tempo. Os artefatos são “extensões”, logo externos ao homem, com profun-das implicações cognitivas, sociais e históricas. O meio, o ambiente é um fundo no qual o jogo em sociedade se desenrola tendo como agente principal os meios de comunicação de massa eletrônicos. Portanto, pensar os media dessa forma é certamente reconhecer a materialidade da comunicação (GUMBRECHT e PFEIFFER, 1994) e o papel da técnica na constituição da sociedade e da cultura.

McLuhan não estava errado, mas impreciso. Podemos ir além, ampliando a análise sociocomunicacional que McLuhan nos deixou pela ontologia plana da TAR. Como vimos nos capítulos anteriores, esta teoria tem como pressuposto “filosófico-empírico” (que é de

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grande valia para a análise da sociedade e da cultura da informação) o entendimento de que as ações sociais são geradas por mediadores, formando redes. Embora estejam próximos, há algumas diferenças fundamentais entre o pensamento de McLuhan e a TAR. Essas dife-renças ficarão mais claras mais adiante no exemplo do uso das redes sociais nas revoluções árabes, mas podemos dizer que para Latour, diferentemente da perspectiva de McLuhan, as mídias, artefatos ou qualquer objeto técnico não são “extensões” do homem, mas media-dores. Toda ação é fruto de traduções, não sendo facilmente identi-ficado quem “estende” quem. Aqui vemos toda a diferença entre as perspectivas de McLuhan e de Latour:

It is impossible here to proceed as if the hammer ‘fulfilled a function’, for it overflows the strict limits of this container on all sides. The claim that ‘the organ creates the function’ can be made about all tools (and of the hammer in particular). With it in hand, the possibilities are endless, providing who-ever holds it with schemes of action that do not precede the moment it is grasped. It is what James Gibson has so well documented with the notion of ‘affordance’, at once permission and promise: thanks to the hammer, I become literally another man, a man who has become ‘other’, since from that point in time I pass through alterity, the alteration of that folding (Gib-son, 1986). This is why the theme of the tool as an ‘extension of the organ’ makes such little sense. Those who believe that tools are simple utensils have never held a hammer in their hand, have never allowed themselves to recognize the flux of possibilities that they are suddenly able to envisage (LATOUR e VENN, 2002, p. 250).

Vimos que o que define um actante não é a sua independência em relação a outros, mas justamente a sua dependência em uma rede de ações e a indeterminação da origem da ação e da sua direção. Só podemos falar dessa origem e direção na análise descritiva e fina das associações, não a priori. Pensar as mídias como extensão do homem é pensar em entidades separadas, dadas de antemão, situ-ando claramente que é o agente e para onde se dirige a agência. Diferentemente, para a TAR, o meio não é algo que se coloca em um fundo, como uma estrutura ou uma malha (a ideia de macro ou infraestrutura de rede de transporte ou comunicação), mas, de forma mais dinâmica, aquilo que se forma nas mediações, nas traduções

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como mobilidade sem que saibamos de antemão o que vem do micro ou do macro e mesmo determinar previamente essas posições.

Meio (como mídia) seria assim muito mais do que extensão do homem, já que não se poder dizer facilmente quem aumenta quem (como podemos pensar no humano e na subjetividade sem as mídias?), ele seria a própria rede que efetua, não a “extensão”, mas a “constituição” dos humanos. O limite da máxima de McLuhan é assim o de pensar a relação como extensão e não como “mediação” no sentido e constituição do híbrido.

A mediação é um elo que coloca actantes em relação, huma-nos e não-humanos, sem hierarquias em um espaço plano. Ela se dá na rede e em processo de hibridização onde as forças se definem no momento da associação. A mediação ou tradução é o que produz transformações nas redes sociotécnicas. Não se trata tanto de exten-são, já que as mídias criam o sujeito sem que elas estejam em algu-ma externalidade. Elas mediam em um processo em rede exigindo esforços de sustentação por parte dos actantes (ações do usuário, es-tabilidade do sistema, confiabilidade nos dispositivos, informações e dados etc.). Elas são assim, redes e não elementos externos que “estendem” o homem. Elas são mediadores envolvendo humanos e não-humanos em uma rede de ações comunicacionais complexas. A TAR vai além do pensamento de McLuhan. A última frase de Latour (1994b, p. 37) no artigo “On Technical Mediation” é muito clara a esse respeito:

At the very least, I hope to have convinced you that, if our challenge is to be met, it will not be met by considering artifacts as things. They deserve better. They deserve to be housed in our intellectual culture as full-fledged social actors. They mediate our actions? No, they are us.

Certamente o pensador canadense entendeu o processo de hi-bridização em jogo com as mídias eletrônicas, mas não conseguiu evitar a tentativa de purificação do processo ao colocar o sujeito de um lado e a mídia do outro (que o estende), congelando as redes, identificando o meio, ou a mensagem. Em McLuhan, o papel do hu-mano e do artefato, embora hibridizados, são purificados, separados e explicados pela dicotomia sociedade (sujeito) - natureza (objeto).

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Só assim este último poderia expandir o primeiro. Se é assim, po-deríamos facilmente supor que os meios de comunicação são ferra-mentas para a ação, aumentando e expandido capacidades humanas.

Vou colocar esta visão em xeque quando da análise do papel das “redes sociais” nas revoluções de fevereiro de 2011 em alguns países árabes. Nada é irredutível a outra coisa, nem contém, “in po-tentia”, outra. Tudo se dá no jogo das associações e na forma que uma determinada ação se produz, não havendo “papéis” definidos a priori. Por exemplo: o humano seria a fonte da consciência, da ação política, causa do movimento e de um lado, o Twitter, o Face-book, o blogs e o YouTube, ferramentas, instrumentos, artefatos que o “estendem” do outro. Como mostraremos a seguir, a TAR pode ir além da purificação efetuada por McLuhan e nos ajudar a entender o papel das mídias sociais na atual cultural digital e mais amplamente, o papel da técnica na cultura contemporânea.

primAverA árAbe

Muitos artigos têm discutido o papel das mídias sociais e dos telefones celulares nos acontecimentos de fevereiro de 2011 no nor-te de África e Oriente Médio: Tunísia, Egito, Bahrein, Líbia, Iêmen, Marrocos... Uma verdadeira avalanche revolucionária atingiu os pa-íses dominados por ditaduras ancestrais e/ou por fundamentalismos religiosos. O que assistimos foi uma revolução de jovens que pedia a saída de regimes autoritários em nome da liberdade e da melhoria das condições de vida, sem slogans anti-imperialistas ou bandeiras religiosas. A formação de um novo Mundo Árabe, sem ditaduras mi-litares apoiadas pelo Ocidente ou teocracias fundamentalistas (em-bora ainda seja cedo para saber o que vai acontecer) é, junto com os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, os maiores eventos do ainda debutante século XXI.

As “redes sociais”, principalmente Blogs, Twitter e Face-book, e os celulares, com fotos, vídeos e SMS, têm sido mediadores fundamentais nesses levantes. Há debate se essas novas ferramen-tas produziram ou não a revolução, o que alguns estão chamando de “Revolução 2.0”. A questão que tem sido colocada (a saber, se as redes sociais e celulares são apenas ferramentas, instrumentos,

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meios ou atores) aponta para uma má compreensão do papel dos objetos na vida social e para a sustentação da máxima de McLuhan de que os meios são extensões do homem. São comuns afirmações de que objetos são “apenas” ferramentas. Seria essa a sua essência, seu modo de existência?

Um martelo, um computador, leis e normas, um telefone ce-lular, um blog, o Twitter ou o Facebook não são ferramentas, meios, intermediários, por um lado, ou agentes, mediadores, tradutores, atores, por outro. Objetos podem exercer um ou outro papel a depen-der das associações em que estão envolvidos. Isso não significaria dizer que a tecnologia é neutra. As associações definem politica-mente um artefato, uma rede sociotécnica, um dispositivo. Ela será sempre posta a prova em outros imbróglios (novas associações) que irão, mais uma vez, defini-los, politicamente.

Um telefone celular, por exemplo, é resultado da estabiliza-ção de uma rede que define politicamente usos, leis, redes, operado-ras, concessões, custos... Não existe telefone celular como objeto em si, isolado das associações de suas redes sociotécnicas. Elas o fazem existir (indústrias, desenvolvedores de software, leis de regulação, design de interface, usuários, mercado etc.). Ele, ou qualquer obje-to, é uma caixa-preta politicamente definida. Ou seja, não é neutro. Mas, ao se associar a outras redes, ele pode vir a ser um interme-diário ou um mediador, servir ao poder constituído ou ser arma na mão de revolucionários2. Tudo se joga nas associações futuras, sem que ele seja visto como neutro. Como vimos na introdução, as atuais tecnologias de comunicação, são, no dizer de Banks, “políticas con-geladas no silício”. Esse congelamento é temporário e caixas-pretas podem se abrir, colocando em causa (matters of concern) aquilo que se estabilizou politicamente antes. Vejam como Banks (2013) define a internet:

What has been invented, is a decentralized network of peer-to-peer machi-nes that share data and information over a variety of hardware and software governed by an equally diverse amalgam of intellectual property rights and

2 O uso de SMS nas eleições em Madri pós atentado, no Iraque em protesto con-tra as eleições, nas Filipinas para depor o presidente Estrada, são apenas alguns exemplos desde o final dos anos 1990.

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service contracts. It is called the Internet, and it is fraught with politics. The Cold War is usually associated with big, hulking organizations that rely on strategic planning and mathematical theory: Historical accounts are replete with continental super powers strutting along each others’ borders with mi-litary technologies that are, themselves, highly centralized and ordered en-tities. Both sides tried to out-maneuver the other by decentralizing resour-ces and populations. In America, it meant spending lots of defense money on building the first peer-to-peer computer networks and the nation’s first interstate highways. Decentralization and redundancy is the best defense against centralized power. Again, the decision to decentralize cities and computer systems was a political (not to mention military) decision.

Efetivamente a decisão é política, no sentido de coisas que nos colocam em causa e que decisões foram tomadas para fazer da internet esse tipo de rede. Mas nada está garantido e tudo pode mu-dar, já que outras associações e novos imbróglios podem aparecer. Vejamos como esse acordo sociotécnico se comporta caso a caso, como ele se redefine politicamente nas revoluções árabes.

Por exemplo, cartas e bilhetes foram mediadores importantes em eventos e guerras passadas (na Grécia, na Primeira Guerra Mun-dial, nas revoluções políticas do século XX etc.). O mesmo podemos dizer do rádio e da TV. Em alguns momentos são meros intermedi-ários (não modificam outros agentes e não produzem diferenças), em outros, são actantes, agentes produzindo diferenças, ações (pode ser um martelo, um computador, um artigo científico, uma lei...). Nas revoluções árabes de 2012, podemos dizer (já que há rastros que provam a afirmação) que blogs, Facebook, Twitter, YouTube e celulares agiram como mediadores e foram agentes mobilizadores de ações de/para outros actantes que ganharam várias dimensões (as ruas, as emissões televisivas, os artigos etc.) e fizeram com que as ditaduras da Tunísia e do Egito caíssem3.

3 No momento em que termino este livro, as manifestações populares no Brasil (que começaram motivadas pela luta contra o aumento das tarifas dos transportes urba-nos em Porto Alegre e São Paulo, e ganharam novas reivindicações nas principais cidades do país) são mais um exemplo de como as mídias sociais, especialmente Facebook e Twitter, podem ser mediadores importantes. Finalizo o livro em meio a novas manifestações marcadas pelo Facebook para os próximos dias nas prin-cipais capitais brasileiras. Ver o artigo de Eliane Brum, de 17/06/2013 na Revista Época, “Quanto valem 20 centavos?”, disponível em http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/06/quanto-valem-20-centavos.html

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Eles podem não ter função mediadora no futuro, já que não há essência ou potência velada, só associações que se fazem ou não no tempo. No fundo, a discussão sobre se as mídias sociais e telefo-nes celulares são extensões ou fizeram a revolução se perde, como vimos, na polarização entre sujeitos (que têm uma essência – ser o mediador e senhor da agência) e os objetos (que têm uma essên-cia – serem apenas intermediários, “ferramentas”, “instrumentos”, “meios”).

No caso das revoluções atuais, vários textos consideram que as ferramentas digitais foram o que são: apenas ferramentas, me-ros intermediários, “meios” de comunicação, extensões do homem. Esse debate aparece no artigo de Manuel Castells4 em matéria no Le Monde5 sobre juventude pós-islamistas e também aqui, onde o autor se pergunta se “Les Révolution Arabes sont-elles des ‘révolutions 2.0?”6. A discussão continua em texto de Charles Hirschkind7 sobre a importância do Facebook e do Twitter no Egito, bem como no ar-tigo de Devin Coldewey8 afirmando que: “pessoas, e não coisas, são as ferramentas da revolução”, e na discussão motivada pelo texto “A revolução não será tuitada”, de Malcolm Gladwell9.

É comum pensar que uma revolução que se preze só pode acon-tecer, e ser assim nomeada, se for feita por “sujeitos” livres, indepen-dentes dos objetos (que não podem ter papel ativo na ação). Pessoas são independentes das ferramentas. Objetos são, no máximo, instru-mentos, epifenômenos dos eventos que os aumentam, estendem sua potência (a perspectiva de McLuhan). Levantes “legítimos” são feitos por “sujeitos” livres, por subjetividades que compõem a nova multi-dão emancipada. O sujeito não se mistura ao objeto e, para ser sujeito,

4 http://www.lavanguardia.es/opinion/articulos/20110219/54117604837/anatomia--de-una-revolucion.html

5 http://www.lemonde.fr/idees/article/2011/02/12/revolution-post-islamis-te_1478858_3232.html

6 Ver http://www.lemonde.fr/afrique/article/2011/02/21/les-revoltes-arabes-sont--elles-des-revolutions-2-0_1483033_3212.html

7 Ver http://blog.p2pfoundation.net/p2p-aspects-of-the-arab-uprising-3-the-real-history-of--the-role-of-blogs-and-facebook-in-egypt/2011/02/12?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+P2pFoundation+%28P2P+Foundation%29&utm_content=Twitter

8 Ver http://techcrunch.com/2011/02/11/tools-of-revolution/9 Ver http://www.newyorker.com/reporting/2010/10/04/101004fa_fact_gladwell

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deve mesmo ser o mais “independente possível” dos objetos, deve se livrar das amarras para achar o seu “núcleo” velado no interior. Esse é o ponto crucial do equívoco da máxima de “extensão do homem”: a dicotomia que separa sujeito e objeto.

As mídias sociais fizeram a revolução, mas em uma rede de mediação e tradução entre diversos actantes. Não foi uma revolu-ção das empresas Facebook ou Twitter. Essas “redes sociais” foram agentes produtores de mediações na alavancagem dos acontecimen-tos nos países árabes. Facebook, Twitter, Blogs, telefones celulares, entre outros actantes não-humanos, fizeram as revoluções ao entra-rem em associação com outros “actantes” (pessoas, discursos, dados sociais – desemprego e baixos salários, informações sobre corrup-ção e violência policial, mídia internacional, panfletos, pedras etc.). É difícil achar uma agência puramente humana nesses fenômenos de associações, traduções e mediações. É difícil achar ação puramente humana, tout court!

Nas revoluções que reconfiguram o Mundo Árabe, podemos dizer que atores humanos e não-humanos entram em mediações e traduções que as produziram. De novo, não se trata propriamente de “extensão”, mas de “mediação”, de “tradução”, já que o processo comunicacional se dá nessa rede híbrida. Sustentar o contrário é, em primeiro lugar, negar os fatos e, em segundo, se apegar a uma sepa-ração essencial entre sujeito e objeto, natureza e cultura que apaga os actantes não-humanos em prol de uma causalidade central (o hu-mano) ou de uma estrutura ou sistema explicativo global. Descrever essa revolução (ou qualquer outra associação) até o seu esgotamento é a maneira de ver todos os actantes que a produzem as associações e os processos não de extensão, mas de mediação e tradução.

Para os que compreendem o mundo a partir da grande Bi-furcação (segundo termo de Alfred Whitehead, 1978), uma “legíti-ma” e “essencial” revolução só pode ser feita por sujeitos “puros”, desamarrados de quaisquer relações com “atores não-humanos” (que só viriam a contaminar, ou a estender a sua essência). Essas seriam assim revoluções “Sociais”, com S maiúsculo, produzidas por sujeitos humanos, tendo sua potência estendida pelos media. A TAR se opõe a essa visão do Social. Para muitos analistas, as atuais revoluções estariam latentes, aguardando sua atualização como um

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“devir”, uma resolução de poderes, uma essência da multidão, uma potência adormecida.

A “Sociologia do Social”, como afirmam os teóricos da TAR, esconde os actantes sob o manto das grandes narrativas e não nos permite ver as associações entre humano e não-humanos como me-diações que revelam verdadeiramente o “social”. A “Sociologia do Social” só vê extensões e não mediações. E podemos facilmente retraçar as associações pelos rastros deixados pelos mediadores: os artigos citados, os logs dos SMS, os posts nos blogs, Facebook e Twitter etc. Pode-se traçar assim uma cartografia da “controvérsia”.

Ora, uma revolução sem actantes não-humanos não aconteceu no norte da África, não acontece agora no Oriente Médio e talvez não seja exagero afirmar que nunca tenha acontecido na história da humanidade. Toda luta política, todo levante, toda ação que possa ser chamada de social (criada por associações entre actantes que tra-duzem e mediam uns aos outros) só acontecem pelas conflituosas, difíceis e tensas relações entre humanos e não-humanos. De novo, não se trata de extensão, mas de mediação, hibridização, tradução, associação. Cabe, portanto, analisar em que momento, a partir dos rastros das ações, determinados actantes não-humanos serviram como mediadores, como tradutores, e em que momentos eles se calaram (não produzindo ações), sendo meros intermediários, não havendo nem mediação, nem extensão.

Como vimos acima, a essência não existe e a agência se dá (ou não) na associação. Como pensar que guerras e levantes seriam realizados sem discursos das mais diversas ordens, sem imagens (fo-tografia, cinema, TV), sem armas, sem propaganda, sem panfletos, sem imprensa, sem telefone, sem rádio... Onde encontraremos um sujeito desprovido de seu hibridismo com o objeto, um sujeito não “estendido”? É mais interessante pensar nas mediações no momento em que elas acontecem, do que na extensão como um a priori que separa causa e consequência, sociedade e natureza, sujeito e objeto.

Sim, ferramentas podem ser “apenas” intermediários quando não produzem diferenças, quando não traduzem outros agentes, ou seja, quando não produzem ação! Mas não a priori. Nas revoluções que aconteceram no Egito e Tunísia (veremos o que acontecerá nas outras), os rastros deixados confirmam que celulares, mídias e re-

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des sociais (assim como o telefone fixo, satélites, TV, megafones, apitos, armas improvisadas, pedras etc.), agiram como mediadores e tradutores de outros agentes (humanos e não-humanos) e fizeram sim sua parte para que as revoluções acontecessem. E parece que estão fazendo também as que estão em curso na Líbia, Bahrein, Iê-men. Mas não há garantias já que tudo depende da associação e não de uma “essência” dos media.

Jornalismo é Ação

Vejam como, erroneamente, Dan Patterson da ABC News10 afirma: “Twitter is a tool, the web is a medium, and journalism is an action”. Para Patterson, o jornalismo é ação (não seria ele ação de relatar acontecimentos?) onde agentes humanos (mas e as máqui-nas, as instituições, as redes de distribuição etc?) têm o controle da agência. Já os não-humanos, Twitter e Web são ferramenta e meio, mídia, respectivamente (vejam como a ANT pode nos ajudar nos estudos das mídias). Mais uma vez, credita-se uma suposta essência e no poder das ferramentas de “estender” o humano, no caso aqui o “jornalismo”. Mas o Twitter usado pelo Jornalismo na Web seria o quê? E a Web? Ferramenta, ação ou mídia? Aqui está de novo a grande Bifurcação.

Como dissemos, tudo depende da associação. Ferramentas podem ser intermediários, quando não produzem ação, ou “ac-tantes”, quando, em conjunção com outros, mediam, traduzem e enredam. Pensar como Patterson significa eleger a separação en-tre atores humanos e não-humanos dando privilégio a um dos po-los, no caso o “Jornalismo” que seria estendido pelas mídias. Mas como pensar na constituição de um jornalismo (ou de um sujeito) não híbrido? O jornalismo efetivamente produz ação. No entanto, como explicar a ação? Como esse “sujeito” jornalismo a produz? Não seria a ação do “jornalismo” fruto de um conjunto de associa-ções entre actantes humanos e não-humanos, sem que haja a priori um que seja o sujeito da “ação”, outro a “ferramenta” e outro o “meio”? Como agiria o “jornalismo” sem os editores, os repórte-

10 Ver http://bit.ly/gz3CE8

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res, as agências de notícias, as indústrias culturais, os professores e escolas de comunicação, as empresas publicitárias, os distribui-dores, o jornaleiro, o papel jornal, a banca de jornal, os computa-dores, os telefones, o celular, o fax e... a internet e suas expressões como o Twitter e a Web? Como pode um jornalista pensar e agir sem outros jornais, jornalistas, empresas, indústrias, publicidade, satélites etc.? Quem faz a ação é um sujeito não-híbrido livre de relações não instrumentais que seria “estendido” pelas ferramentas midiáticas? Podemos separar de um lado “o jornalismo” e do outro as “ferramentas e meios” que o estendem?

Para Patterson, o jornalismo é um “sujeito”, uma “estrutura” que cala os actantes não-humanos. Ele só vê essências: jornalismo - ação, Twitter - ferramenta, Web - meio. Dito dessa forma, jor-nalismo é apenas um nome que apaga os demais actantes em uma grande Narrativa. Dizer “jornalismo” é o mesmo que não dizer nada. Não descreve o que ele é nem esclarece sobre sua prática. Apenas qualifica: Ação! É como dizer Sistema, Estrutura, Poder, Império, Multidão sem se ater às descrições. Retirem do “jornalismo” toda a rede descrita acima. Ainda é possível ver o jornalismo?

composições

Falamos aqui do jornalismo, mas podemos dizer o mesmo da nossa atividade acadêmica: como produzir um texto acadêmico sem a Universidade, a sala de aula, os alunos e os grupos de pesquisa, o computador, a internet, o financiamento à pesquisa, as revistas aca-dêmicas, os livros, os pares avaliadores etc.? Quem faz pesquisa e produz textos não é o gênio solitário, um sujeito (humano) puro, em sua essência genial estendido pela ação externa das mídias, mas uma instituição que associa diversos actantes (humanos e não-humanos) – a Universidade! A genialidade e originalidade de um pesquisador, ou jornalista, ou artista, ou médico, vêm da forma como ele entra em associação com outros actantes humanos e não-humanos, e não da independência de outros actantes. Mais uma vez, é mais produtivo falar de “mediadores” do que de algo externo que “estende”.

Da mesma forma, se as mídias sociais foram apenas “ferra-mentas”, tentemos então retirar dos fatos (rastros) produzidos nos

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eventos revolucionários árabes esses mesmos artefatos (Twitter, Facebook, celulares...) e vejamos se ainda conseguimos ver o fenô-meno. Retiremos as “ferramentas” das matérias escritas, dos progra-mas de TV, das informações na Internet, das discussões no rádio, apague os logs de SMS, os posts nos diversos Blogs, as páginas do Facebook, os relatos e informações no Twitter, os vídeos e fotos dos celulares... e vejamos se conseguimos ver as revoluções realizadas no Egito e na Tunísia.

Não preciso insistir, mas é bom lembrar, que isso não quer di-zer que os agentes não-humanos agem sozinhos. Acho que a questão nem mesmo deveria ser colocada, se me fiz compreender nos pará-grafos anteriores. Mas é bom repetir: não é uma revolução do Twit-ter, não é uma revolução do Facebook. Não é uma revolução sem Twitter, não é uma revolução sem Facebook. É uma revolução na qual as mídias e redes sociais se constituíram como mediadores, tra-dutores, actantes, importantes para a associação que a realizou. Elas não estenderam, elas mediaram e traduziram. Para Banks (2013):

Did Twitter cause the Arab Spring? A million times no. Were the two si-milarly structured and, perhaps, mutually shaping one-another throughout those historic few months? Yes, probably. The politics of technology are difficult to see because technologies that “work” are very compatible with the dominant political order, or a community that is large enough to provide and sustain the practical necessities for its continued existence. Technolo-gies’ perceived “neutrality” is the up shot of this compatibility. The inhe-rent politics of a technology are revealed by either cataloging how it “fits” within the given order, or by engaging in a thought experiment wherein one seeks out the technologies that never were.

Como vimos, a ação se dá pelas associações de diversos me-diadores (que não são em essência mediadores, mas que agem em determinado momento como tais). Devemos reconhecer a perspicá-cia de McLuhan ao identificar o forte processo híbrido na comunica-ção e como as mídias eletrônicas transformam as associações. Mas, ao mesmo tempo, tentamos apontar neste texto os limites do pensa-mento que vê nos artefatos e nas mídias “extensões” de um sujeito autônomo, senhor e causa da ação. De forma a continuar o pensa-mento de McLuhan, devemos tentar abolir essa falsa separação para

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que possamos pensar os eventos em sua complexidade, para além da polarização “physis” – “techné”, “sujeito” – “objeto”, “natureza” – “sociedade”.

Os eventos de fevereiro de 2011 nos países árabes podem nos ajudar a reconhecer uma “política da composição” para avançar na constituição de uma filosofia dos objetos e de uma sociologia das associações que não coloquem apenas no sujeito humano a prima-zia da ação e nos meios apenas ferramentas de expansão do sujeito humano. Temos que ir além da visão dos objetos e das mídias como extensões do homem e pensar uma mais complexa ecologia. Esse é o legado de McLuhan que devemos continuar. Vejam o que afirma Latour (2010a) no seu “Manifesto Composicionista”:

But no doubt that it is a fabulously useful ploy, invented in the seventeenth century, to establish a political epistemology and to decide who will be allowed to talk about what, and which types of beings will remain silent. This was the time of the great political, religious, legal, and epistemological invention of matters of fact, embedded in a res extensa devoid of any mea-ning, except that of being the ultimate reality, made of fully silent entities that were yet able, through the mysterious intervention of Science (capital S) to “speak by themselves” (but without the mediation of science, small s, and scientists—also small s!” (p. 476).

(...) The continuity of all agents in space and time is not given to them as it was to naturalists: they have to compose it, slowly and progressively. And, moreover, to compose it from discontinuous pieces. Not only because hu-man destiny (microcosm) and nonhuman destiny (macrocosm) are now en-tangled for everyone to see (contrary to the strange dream of Bifurcation), but for a much deeper reason on which the capture of the creativity of all agencies depends: consequences overwhelm their causes, and this overflow has to be respected everywhere, in every domain, in every discipline, and for every type of entity. It is no longer possible to build the cage of natu-re—and indeed it has never been possible to live in this cage. This is, after all, what is meant by the eikos of ecology” (p. 484).

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5. espAço e mídiAs locAtivAs

Hace unos años comenzaron a aparecer unos graffiti misteriosos en los mu-ros de la ciudad nueva de Fez, en Marruecos. Se descubrió que los trazaba un vagabundo, un campesino emigrado que no se había integrado en la vida urbana y que para orientarse debía marcar itinerarios de su propio mapa secreto, superponiéndolos a la topografía de la ciudad moderna que le era extraña y hostil

Enrique Villa-Matas (1991, p.7)

Neste capítulo, vou discutir as mídias locativas e explorar os novos processos midiáticos de espacialização através da TAR. Mídias que sentem o espaço, que reagem e produzem informações georreferenciadas, que fazem objetos se comunicarem de forma autônoma com outros objetos em rede, estão entre as tecnologias emergentes que mudaram a nossa relação com o espaço, o tempo e a comunicação. O Big Data, a “internet das coisas” (M2M, ou “Machine to Machine Communication”) e as mídias locativas estão em expansão.

Não se trata de abandonar o lugar em busca de um espaço vir-tual fora do mundo concreto. Olhe ao redor e veja como os disposi-tivos móveis estão sensíveis ao lugar e são interativos em relação ao

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contexto. Para isso, basta pegar um smart phone nas mãos e lançar aplicativos populares como Facebook, Twitter, Waze, Foursquare, Google Maps... O que aparece na tela não é a Matrix, esse “outro mundo” eletrônico, fictício e desconectado do mundo de pedras e carne, como diria Sennett (2006), mas as pessoas e os lugares mais próximos. A discussão sobre as TIC, o espaço e lugar nunca esteve tão em destaque.

Sensores, etiquetas inteligentes, realidade aumentada, mapas colaborativos, objetos conectados à internet, reconhecimento facial e vocal, câmeras inteligentes, e toda uma panóplia de dispositivos portáteis e móveis embutidos nos mais diversos objetos e colados ao corpo estão montando redes com aquilo que está próximo, in-formando sobre o que acontece ao redor, no mundo concreto das coisas. Essas tecnologias que ampliam a “comunicação das coisas” e que multiplicam formas de mediação e de delegação entre humanos e não-humanos, caracterizam a cibercultura contemporânea. Vários estudos em prospectiva tecnológica mostram como elas estão entre as tecnologias mais importantes desse século1.

Para compreender a “comunicação das coisas” é imprescin-dível discutirmos a ideia de espaço e de lugar. Vou sustentar aqui que a noção de espaço tem um componente abstrato que não nos diz muito sobre as associações, que não nos ajuda a descrever e a revelar as mediações. Vou mostrar que é o conceito de lugar que nos per-mite ver as traduções e a formação social, o espaço e o tempo como “spacing” e “timing”, como resultados das associações. Pensando mais no que circula pelos lugares do que no espaço abstrato, pode-mos compreender as transformações da nossa experiência quotidia-na com as mídias em geral e com as mídias locativas em particular.

O espaço passa a ser entendido não como reservatório onde estão todas as coisas, mas como rede, produzido continuamente pela dinâmica de circulação e mediação de coisas e lugares. O mesmo

1 Ver Venture Beat, http://venturebeat.com/2013/02/07/forresters-top-15-emer-ging-technologies/, World Economic Forum, http://www.weforum.org/content/top-10-emerging-technologies-2013, MIT Technology Review, http://www2.technologyreview.com/featured-story/402435/10-emerging-technologies-that--will-change-your/, IT Business, http://www.itbusinessedge.com/slideshows/show.aspx?c=94104.

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podemos dizer do tempo. Ele é a outra dimensão da comunicação das coisas. O espaço e o tempo não são absolutos, sendo, portanto, contingentes. São dimensões das associações entre humanos e não--humanos e, consequentemente, relativos, incertos, eventuais, gera-dos nas mais diversas mediações. A caixa-preta é uma tentativa de estabilizar a dinâmica sempre móvel do espaço e do tempo.

Se podemos afirmar isso, a questão do espaço e do tempo é, portanto, central na TAR já que tudo é movimento, circulação. Es-paço e tempo são, assim, o “espaço-tempo-rede”, criado nas associa-ções de coisas e lugares. É na dinâmica das associações de objetos e lugares que o espaço e o tempo se produzem. Considerando essas características, a TAR oferece um olhar interessante sobre essas no-ções. Isso será importantes para compreender os processos de es-pacialização em jogo na cultura contemporânea com as mídias de geolocalização.

O espaço se constitui no espaçamento (associações em mo-vimento) entre objetos e lugares. Da mesma forma, o tempo não é uma dimensão absoluta, cronológica. Ele é simultaneidade da rela-ção entre as coisas. Se não há mediação, relação de uma coisa com outra, não há tempo, não há espaço. Eles são, portanto, contingentes, já que consequência eventual e incerta do imbróglio entre as coisas: o espaço como arranjo da mediação, o tempo como a relação de tro-cas. Como diz Law (2002, p.96), “spaces are made with objects” . A TAR remete para um espaço-tempo relacional ou, como prefere o geógrafo britânico J. Murdoch (1998), um espaço tempo de “nego-ciação”, em oposição ao espaço-tempo da “prescrição”.

O espaço seria então um espaço-rede que se compõe pela di-nâmica de circulação de ações entre lugares e coisas (que estão nos lugares ou passando por eles e pelos objetos). O mesmo podemos dizer do tempo, como simultaneidade, para além do passado, pre-sente e futuro, como ensina Michel Serres. Dessa maneira, abolindo noções de escala espaço-temporal, a TAR só vê conexões e articu-lações entre actantes em um espaço relacional de topologia plana e de simultaneidade. Importam mais as lógicas das relações entre lugares, ou seja as suas topologias, do que a posição que cada coisa ocupa em seu lugar, como em uma grade ou espaço abstrato, a sua topografia.

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espAço-rede2

Para entendermos o espaço como “rede”, proponho nesta par-te do capítulo uma análise em diálogo com a perspectiva da Ontolo-gia Orientada a Objetos (OOO) de Harman (2011a), do correlacio-nismo de Quentin Meillassoux (2008) e da teoria da “assemblage” (agenciamento) de Manuel DeLanda (2006). A tese que sustento é que pela dinâmica de circulação de ações entre lugares e coisas (que estão nos lugares ou passando por eles) se compõem esses espaços--rede. Em um segundo momento, discuto a noção de lugar, sendo esta pensada como o conjunto de localização, do local e das rela-ções sociais (localização: latitude e longitude; local: cidade, bair-ro, rua; e as relações que aí se desenvolvem). Quanto mais lugares/objetos, mais “espaçamentos” serão criados. Esta análise será im-portante para a compreensão das mídias de geolocalização, no final deste capítulo.

Diferente do que foi dito no início do desenvolvimentos da internet (já então erroneamente), de que as redes telemáticas e as novas tecnologias de comunicação seriam “desterritorializantes” e criariam um “espaço-Matrix” fora do mundo real (ou seja, o lugar perderia importância e sentido), as novas mídias digitais, com ên-fase na geolocalização, na “atenção” ao contexto e na comunica-ção imediata entre objetos em proximidade, estão proporcionando o consumo, a produção e a distribuição de informação acoplada a uma dimensão “hiperlocal”, permitindo e ampliando velhos e novos usos do lugar, possibilitando a emergência de dinâmicas particulares e a criação de significados sobre os lugares. Não são apenas processos de desterritorialização que estamos assistindo. Eles, efetivamente, fazem parte das associações. Mas, trata-se também, e cada vez mais, de processos “territorializantes”, com delimitações concretas de mo-dos de produção do espaço (“localização”).

Abolindo noções de escala, a TAR só vê conexões e articu-lações entre mediadores em um espaço-rede conectado por “arti-culadores”, “localizadores” e “plug-ins”. Não há nada apenas lo-cal ou global, mas circulação. As escalas são erros de perspectiva.

2 Parte deste texto foi publicado em Lemos (2013b).

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Para Latour, a visão de escalas é “panóptica” (aquela que vê tudo de cima) sendo sempre ilusória. Não há o em cima ou o embaixo. A mudança de escala é também uma ilusão. Há apenas mudanças de instrumentos e dispositivos que associam, de forma especial, infor-mações, como faz, por exemplo, o Google Earth ou o Google Maps, colocando junto dados georreferenciados de fotos de satélites dife-rentes gerando a ilusão de uma mudança de escala. Há instrumentos de coleta que produzem esse “em cima” ou esse “embaixo”. Como explica Matias (2013), “Latour says that we should replace the idea that there are collective phonemena with a focus on these locations, whether it’s the high tech computer system at CERN or the low tech notebook of Shirley Strum as she studies baboons”.

O mais importante seria ater-se a uma visão “localizada”, es-pecializada, ao “oligopticon”. Para Latour (2005a, p. 181):

We, however, are not looking for utopia, but for places on earth that are fully assignable. Oligoptica are just those sites since they do exactly the opposite of panoptica: they see much too little to feed the megalomania of the inspector or the paranoia of the inspected, but what they see, they see it well—hence the use of this Greek word to designate an ingredient at once indispensable and that comes in tiny amounts (as in the ‘oligo-elements’ of your health store). From oligoptica, sturdy but extremely narrow views of the (connected) whole are made possible—as long as connections hold. Nothing it seems can threaten the absolutist gaze of panoptica, and this is why they are loved so much by those sociologists who dream to occupy the center of Bentham’s prison; the tiniest bug can blind oligoptica.

Há, certamente, duas noções importantes para a compreensão do espaço: 1) Espaço como conceito abstrato (matemático, reserva-tório de todas as coisas) e, 2) Espaço como aquilo que é constituído pela distensão dos lugares (construídos historicamente), como re-lacional e dinâmico, o “espaço-rede”. Na primeira acepção, espaço é o reservatório de todas as coisas e concebido como uma entidade matemática. As coisas e os lugares estão em um espaço a priori que os contém. Na segunda acepção, o espaço é uma rede de lugares e objetos que vai se formando pelas suas dinâmicas. Certamente a ideia de espaço deve ser compreendida em suas duas dimensões (a abstrata e a relacional). No entanto, para pensar o “social” e a “co-

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municação”, talvez seja mais interessante nos concentrarmos nesse espaço relacional como uma rede que é produzida nas relações entre coisas e objetos.

E quando falamos de rede a partir da TAR, é sempre bom insistir que não estamos falando apenas de infraestrutura (que pode ser visto aqui, homologamente, como “espaço), mas sim, do que é produzido na relação entre humanos e não-humanos (ou a dimensão “local”). Rede aqui é um conceito relacional que localiza as me-diações. Ela não é infraestrutura fixa que “espacializa” as relações sociais. O que de fato conecta é a localização das conexões. Um é topografia, o outro topologia, tensão local entre coisas, o tecido de dada associação.

Ao olharmos o mundo, vemos redes se fazendo e se desfazen-do a todo momento. Temos a sensação de que tudo está se movendo no espaço que tudo contém, quando, na realidade, é o espaço, en-quanto rede de circulação de ação entre coisas em seus lugares, que se expande e se contrai o tempo todo. O espaço, como rede, é pul-sante. É aquilo que se forma e se deforma aqui e acolá pela dinâmica das relações sempre localizadas e articuladas. Tudo está localizado e os lugares são redes de atores que conectam sempre outros lugares e temporalidades. Cria-se, nessa dinâmica, espacialização, espaço como rede, ou a rede que é o espaço dessa articulação e um tempo da simultaneidade. Não se trata, portanto, de ver o global no local, nem o local além do global, nem mesmo de pensar em “glocal”. Na cita-ção abaixo Latour (2005a, p. 129) explica o conceito de rede. Para o que nos interessa aqui, podemos facilmente substituir a palavra rede (network) por espaço:

Thus, the network does not designate a thing out there that would have rou-ghly the shape of interconnected points, much like a telephone, a freeway, or sewage ‘network’.It is nothing more than an indicator of the quality of a text about the topics at hand. It qualifies its objectivity, that is, the ability of each actor to make other actors do unexpected things. A good text elicits networks of actors when it allows the writer to trace a set of relations defi-ned as so many translations.

Podemos correlacionar a ideia de estrutura ao espaço urbano, e o de associação ao espaço-rede formado na articulação entre coi-

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sas e lugares. A estrutura é o que torna visível o espaço genérico, criado pelo planejamento da cidade instituída (LEFEBVRE, 1991), um espaço abstrato, matemático, administrativo, invisível, confor-mando o espaço social. Se quisermos compreender e dirigir nosso olhar para a vida social em seus movimentos, devemos, certamente, compreender a instituição dessa estrutura espacial (já que ela será um importante mediador nas associações locais). Entretanto, será nas dimensões concretas da experiência, das ações localizadas e ar-ticuladas a outros tempos e lugares que poderemos colher os rastros que nos permitirão ver as conexões. Aqui, devemos prestar atenção ao lugar da associação, às mediações e traduções sociocomunicati-vas que constituem o social e suas tramas.

Lugares não estão no espaço. Lugares criam espaço. Podemos exemplificar com o espaçamento que inventamos ao deslocar mó-veis em uma sala; ou na rua, ao construir novos equipamentos urba-nos; ou na cidade, ao criar ruas, praças, monumentos; ou no planeta, ao ampliar as coisas na terra, no céu e no mar; ou mesmo no cosmos, ao distender o “nosso” espaço com satélites e viagens espaciais. A espacialização do homem por meio da técnica já foi para além do “reservatório” do planeta Terra. E ampliamos esse processo de espa-cialização sempre por meio de redes sociotécnicas complexas.

A noção de paisagem, por exemplo, é aqui mais um elemento que nos permite reforçar a tese de que o espaço é algo que vai sendo construído como uma “rede” de relações entre coisas e lugares. De acordo com a filósofa francesa Anne Cauquelin (2007), a noção de paisagem é uma “invenção” do regime de visão surgido com a pers-pectiva no século XV. Não há “paisagem natural”. Ela é um disposi-tivo de visão, uma maneira de relacionar os objetos na natureza, de integrar elementos separados.

Como afirma a filósofa, uma sucessão de objetos não compõe uma paisagem, já que ela é aquilo que as une e as integra na mol-dura do dispositivo “perspectiva”. Podemos falar também de uma paisagem urbana, ainda mais construída do que a natural. Explica Cauquelin (2007, p. 149-150):

(...) Emolduramos, fazemos da cidade paisagem pela janela que interpo-mos entre sua forma e nós. Numerosas vedute, uma esquina de rua, um

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balcão avançado, a perspectiva de uma avenida. O prospecto aqui é per-manente. A cidade participa da própria forma perspectivista que produziu a paisagem. Ela é, por sua origem, natureza em forma de paisagem. (...) a paisagem urbana é mais nitidamente paisagem que a paisagem agreste e natural... sua construção é mais marcada, mais constante, ainda mais coagente. Ali tudo é moldura e enquadramento, jogos de sombra e de luz, clareira de encruzilhadas e sendas tortuosas, avenidas do olhar e desre-gramento dos sentidos.

Em relação às novas tecnologias, a noção de paisagem é des-feita e voltamos a algo que existia antes da sua própria invenção. Não há mais espaço relacional, apenas percepção intelectual e a perspectiva. Como aponta Cauquelin (2007), ela seria um parên-tese na nossa história das formas perceptivas. Com as tecnologias digitais:

...temos somente a imagem, transmitida por câmeras, dados digitais em mo-nitores, sem ponto de fuga, e ilegível, até mesmo indecifrável para quem não estiver de sobreaviso (...) podemos apenas perceber intelectualmente que há, sem dúvida, ‘algo a ser percebido’ (...) a própria noção de paisagem é desmontada (p. 179).

Nenhuma ‘paisagem’ - entidade de ligação autônoma - vinha preencher o espaço intersticial entre as figuras” (...) Nessas condições, a paisagem, tal como a praticamos há 500 ou 600 anos, seria um parêntese em uma história das formas perceptivas...sob a condição, claro, de que essas ‘novas ima-gens’ tenham alguma chance de transformar nossa aparelhagem perceptiva (p. 184).

Correlacionismo

A visão de um “espaço-rede” relacional e não abstrato pode ser também corroborada pela filosofia correlacionista de Meillassoux. Para o filósofo francês, é correto afirmar que o sensível só existe na nossa relação com o mundo. Mas, por ou-tro lado, algumas propriedades são intrínsecas aos objetos. O correlacionismo propõe que é impossível ter acesso às coisas nelas mesmas. Como diz Meillassoux, “we only ever access to the correlation between thinking and being, and never to either

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term considered apart from the other” (MEILLASSOUX, 2008, location 923).

Nunca apreendemos o objeto isolando-o de sua relação com o sujeito, assim como nunca apreendemos o sujeito fora de sua relação com o mundo. Esse é o círculo do correlacionismo, que será con-testado por Harman, como veremos mais adiante. Só podemos ter acesso à correlação entre pensamento e ser. O mundo aparece para mim como mundo por estar aí. Mas o sujeito só é sujeito quando está perante esse mesmo mundo. É a correlação! Para Meillassoux, até Kant, o problema da filosofia era apreender a verdadeira natureza da substância. Depois de Kant, a questão passa a ser a de saber quem apreende melhor as correlações (filosofia analítica ou fenomenolo-gia, por exemplo).

Há aproximação e distanciamento entre o correlacionismo de Meillassoux e a TAR. Latour afirma que quanto mais objetos, mais sujeitos e, quanto mais sujeitos, mais objetos, o que é muito próximo do correlacionismo. No entanto, o correlacionismo se afasta da TAR ao reconhecer uma propriedade do mundo externo fora das relações entre as coisas. Na concepção da TAR, não há essências, como vi-mos. Tudo deriva da relação entre actantes. Como afirma Harman (2009), Latour é um correlacionista no meio-termo. Diferente de Meillassoux, ele não acredita que algo preexista às relações. Se não há relação, não há ator, não há nada.

Para Meillassoux, durante o século XX as principais mídias dessa correlação foram a consciência (a filosofia analítica) e a lin-guagem (a fenomenologia), o que Francis Wolff chama de “objeto--mundo”. Nessa perspectiva, estaríamos presos na consciência ou na linguagem. Ser consciente da árvore é ser consciente da árvore como árvore e não da ideia de árvore. E isso se faz falando da ár-vore. Consciência e linguagem fecham o mundo como se estivésse-mos em uma jaula transparente. A linguagem e a consciência nos transcendem em direção ao mundo, mas só fazem isso por existir um mundo lá fora, que reflexivamente é correlativo a nossa própria existência na consciência e na linguagem. Assim, não nos transcen-demos entrando no mundo já que estamos face a face. Para Meillas-

3 Localização usando uma versão do livro no “Kindle”.

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soux, a correlação entre pensamento e ser não é a mesma coisa e não pode ser reduzida à correlação sujeito e objeto: ela não pode ser reduzida a uma filosofia da representação (MEILLASSOUX, 2008).

Podemos dizer que a nossa relação “correlacionista” com o mundo se dá na produção do espaço. O próprio do homem é produ-zir espacialização. É o seu modo de existência. Aqui podemos dizer que tanto Meillassoux como Latour apontam para uma visão do es-paço como rede que se faz na associação ou correlação (que não são a mesma coisa, mas apontam para a dimensão relacional e produtiva da espacialização).

Heidegger é importante nesse contexto. Para o filósofo ale-mão, o espaço é concebido como vorhanden (present-at-hand, o objeto nele mesmo, a coisa, “thing”) e zuhanden (ready-to-hand, o objeto, a ferramenta para o nosso uso, a “região”, o lugar por onde nos deslocamos). Essas duas dimensões mostram uma dependência do objeto em relação ao sujeito (zuhanden), e o objeto em sua exis-tência não relacional (vorhanden). Para Harman (2011a, p. 39):

No matter how hard I work to become conscious of things, environing condi-tions still remain of which I never become fully aware. When I stare at a river, wolf, government, machine or army, I do not grasp the whole of their reality. This reality slips from view into a perpetually veiled underworld, leaving me with only the most frivolous simulacra of these entities [...]. The readiness-to--hand of an entity is not exhaustively deployed in its presence-at-hand

Para Heidegger, o homem não existe no espaço da mesma forma que os outros animais ou coisas. Existimos produzindo es-pacialização, sendo esse o nosso modo de existência, o “Dasein”. Esse modo de existência se dá por dois outros componentes: a de--severance (aquilo que está próximo ou distante) e a directionality (a orientação do movimento). Assim, o espaço não é abstrato, mas o que se cria nas relações entre as coisas construídas. Como afirma Heidegger, “une espace (Raum) est quelque chose qui est ‘ménagé’ […] il est ménagé par des lieux…” (HEIDEGGER, 1958, p. 186). De acordo com Arisaka (1995, p. 460):

Heidegger’s theory rejects the absolute theory’s claim that space is an independent entity. His theory, however, retains some elements from the

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relational theory. Though Heidegger would not reduce space to physical entities and their relations, there is a sense in which he treats space as coex-tensive with our daily actions, or what Heidegger calls the “care structure.” De-severance, directionality and regionality just are the various ways in which Dasein exists as care, together with temporality. Spatiality describes Dasein’s relational dealings with entities within the world, and there is no space “beyond” this spatiality of Being-in-the-world. Neither Dasein nor entities exist independently of each other “in” some empty space, but ra-ther, Dasein and entities are essentially spatial.

Ontologia Orientada a Objetos (OOO)

A Filosofia ou Ontologia Orientada a Objetos (OOO)4 propõe ver o espaço como uma dimensão que emerge de uma tensão espe-cífica entre duas das quatro qualidades dos objetos. Os objetos po-dem ser colocados na perspectiva de um quadrante onde aparecem o “objeto sensual” (o que se dá à consciência), o “objeto real” (que se retira e é impossível de ser conhecido), a “qualidade sensual” (as que percebemos pelos sentidos) e a “qualidade real” (acessível apenas intelectualmente). Vou explorar mais em profundidade esta discussão no próximo capítulo. Aqui quero destacar apenas a ques-tão do espaço. Para o filósofo americano (HARMAN, 2011a, p. 49),

4 Em seu blog Harman explica o que é o realismo especulativo e a Ontologia Orien-tada a Objetos (OOO). Uma tradução em português está disponível em https://praticamenteteorico.wordpress.com/2013/06/15/breve-tutorial-realismo-especu-lativo-e-ontologia-orientada-aos-objetos/. Segundo Harman, o termo realismo especulativo foi cunhado por Ray Brassier em 2006. “Filosofia Orientada a Obje-tos” (FOO) é um termo proposto por Harman em 1999. A FOO é uma subespécie do realismo especulativo. Para Harman ela “considera que entidades individuais de variadas e diferentes escalas são as coisas definitivas do cosmo”. No entanto, essas entidades não podem ser reduzidas, como pretendem Latour e Whitehead, às suas relações. O termo “Ontologia Orientada a Objetos” (OOO), foi cunhado por Levi Bryant em 2009. O movimento OOO foi iniciado em abril de 2010 no Georgia Tech, em Atlanta por Harman, Ian Bogost e Levi Bryant, com a partici-pação de Steven Shaviro e Barbara Stafford. A OOO é uma filosofia da existência que coloca as coisas no centro das atenções. Para os filósofos da OOO (e vemos aqui uma aproximação forte com a TAR), o humano não ocupa uma posição espe-cial em detrimento das coisas. No site fundador do movimento (http://ooo.gatech.edu/?about) podemos ler: “OOO steers a path between the two, drawing attention to things at all scales (from atoms to alpacas, bits to blinis), and pondering their nature and relations with one another as much with ourselves.”

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While there may be an infinity of objects in the cosmos, they come in only two kinds: the real object that withdraw from all experience, and the sensu-al object that exist only in experience. And along with these we also have two kinds of qualities: the sensual qualities found in experience, and the real ones that Husserl says are accessible intellectually rather than through sensuous intuition.

No objeto quádruplo, Harman (2011a) defende a existência dos objetos para além de suas relações, diferenciando-se de Latour e de Meillassoux. É no quadrante que as diferenças entre Latour e Harman tornam-se claras. Harman sustenta que o objeto tem uma essência e que ele não é dependente de suas relações. Posição con-trária à de Latour. Há nesse quadrante tensões. Neste capítulo, vou me concentrar na primeira e na segunda tensão5. A primeira tensão é aquela entre o “objeto sensual” ou intencional e suas “qualidades sensuais”. Isso é o que entendemos por tempo. Como explica Har-man (2009, p. 217):

There would be no sense of time if we could not experience streets or plas-tic bottles under subtly shifting conditions from one instant to the next. The feeling that time is flowing along is in fact a sense of the swirling play of accidents on the surface of slightly deeper intentional objects.

A segunda tensão é o espaço. É a tensão entre um “objeto real” e suas “qualidades sensuais”, entre o objeto real que se retira de toda possibilidade de apreensão e a maneira como pensamos esse mesmo objeto. É a dinâmica de afastamento e aproximação ao ob-jeto que se retira da nossa percepção e vive nele mesmo. O conceito se aproxima mais uma vez de espaço como relação e não como re-servatório. Em recente entrevista a Jonas Žakaitis (2011), o filósofo explica a tensão.

5 Para efeito de esclarecimento, indico rapidamente a terceira e a quarta. A terceira tensão é a “essência”, relação entre o “objeto real” e a “qualidade real”. A quarta tensão é a que emerge do “objeto sensual” e suas “qualidades reais”. Esta tensão é o “eidos” (HARMAN, 2011a). Esta dimensão será importante para compreender as novas funções infocomunicacionais dos objetos em projetos de internet das coisas, como veremos no capítulo seis.

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Fourth and finally, we get to the one that is relevant to your question. There is a tension between real objects and sensual qualities. I hold that this is the meaning of “space.” Keep in mind that there is never any direct sensory experience of space, as John Locke observed. Our entire realm of sensory experience could be viewed as totally flat. Babies treat it this way when they try to reach for very distant objects like the moon: everything that is experienced is directly before me, and in that sense not distant at all. We learn to infer that the moon and a distant skyline are distant rather than directly touching our bodies. What space really means is that there are real objects at a certain distance from us, though we encounter directly certain qualities that seem to belong to them. This is the tension known as space. And when this tension becomes explicit, we have “allure” in the sense I described earlier. There are sense-qualities directly before us, but suddenly they seem enslaved to a distant object that withdraws from our access.

O espaço é consequentemente relacional e não é exagero tra-tá-lo como “rede” já que ele é “sítio de relação e de não-relação”, como explica o filósofo americano (HARMAN, 2009, p. 218), pró-ximo do conceito adotado por Leibniz de espaço relacional:

Space is not the site of relation, but of both relation and non-relation. We have a strong pre-philosophical grasp of this teaching: space is a medium in which I can fly to Bangkok or Dubai, but also one in which I am not currently in those places. Space is both nearness and distance. Things make contact along specific surfaces but are not exhausted by this contact, and recede partially into private depths.

O correlacionismo de Meillassoux, a espacialização de Da-sein em Heidegger e o quadrante da ontologia dos objetos de Har-man reforçam a tese de um “espaço-rede” como associação (La-tour), mesmo que haja diferenças e divergências importantes entre esses autores. Assim sendo, o espaço pode ser entendido para além da ideia de uma infraestrutura por onde passam coisas e ser apre-endido em sua dinâmica móvel e associativa. Ele é constituído por atravessamento de fluxos e por dinâmicas que vão além de uma ação do micro no macro e vice-versa. É abolindo essas escalas que o analista social pode visualizar os movimentos dos actantes sem enredá-los em estrutura (macro) ou no interacionismo (micro).

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É interessante notar como, por analogia, podemos ver o cibe-respaço a partir dessa perspectiva. Ele é espaço abstrato, infraestru-tura planetária de redes telemáticas interligando computadores. Mas ele é espaço relacional, ou espaço-rede, em formação permanente pela articulação de objetos, humanos e não-humanos. Ao pensar o ciberespaço como espaço-rede, podemos escapar das dimensões micro e macro e ver, para além das grandes chaves explicativas, o movimento, as associações, o social se formando. O espaço do “ci-ber-espaço” é o espaçamento produzido por lugares, coisas, pessoas e objetos conectados ao redor do planeta. Por isso, ele está sempre em construção. A internet vai produzindo espacialização na relação dos lugares e nas movimentações pelas conexões de tudo e todos, em um espaço de controle que se faz e se desfaz no movimento de agenciamentos. Esse é outro ponto que gostaríamos de explorar com a “assemblage theory” de Manuel DeLanda.

Agenciamentos

O trabalho do filósofo Manuel DeLanda traz uma contribui-ção interessante ao debate. O que DeLanda chama de “assemblage theory” (AT), pode ser pensada como similar à teoria das totalidades especiais de Gabriel de Tarde, da monadologia de Leibniz, das as-sociações híbridas de Latour, do agenciamento de Deleuze. Muitos têm traduzido assemblage por agenciamento, por causa da evidente e reconhecida inspiração da ideia de exterioridade de Deleuze. Tan-to para a TAR como para a AT, as associações não podem ser pen-sadas nem como totalidade, nem como possuindo uma essência que anularia as particularidades de suas partes. Pensar o espaço como composição dessa natureza nos ajudaria a reforçar a relação comple-xa entre as micro e as macrodimensões do social. É como se essas dimensões não existissem. Para DeLanda (2006, p. 17),

The combination of recurrence of the same assembly processes at any one spatial scale, and the recurrence of the same kind of assembly processes (territorialization and coding) at successive scales, gives assemblage the-ory a unique way of approaching the problem of linking the micro- and macro-levels of social reality.

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DeLanda defende uma ontologia social realista na qual as ins-tituições e as organizações sociais, as redes interpessoais e outras entidades são tratadas diferentemente em relação ao construtivismo. O social é um agenciamento, fruto de processos históricos e não apenas da linguagem. Não há micro e macrodimensões, como estru-turas e agências, mas um conjunto que não é redutível às suas partes, sendo criado por causalidades recorrentes e por contingências. Esses conjuntos não são e não formam uma totalidade. Ela não tem uma essência que comprometeria para sempre a sua existência.

Para DeLanda, entender as composições do social é ir além dos reducionismos, dos micros ou dos macrodeterminismos. O pri-meiro (micro) considera o nível da racionalidade do indivíduo e da microeconomia como determinantes da experiência pessoal. É o construtivismo social. O segundo (macro) pensa por estruturas. O social se dá nesses enquadramentos que não negam o indivíduo, mas colocam a sua formação subjetiva no seio de uma estrutura deter-minante (E. Durkheim, T. Parson, K. Marx, entre outros). Haveria também uma espécie de mesodeterminismo imputado ao sociólogo britânico Antony Giddens, misturando agência individual e estru-tura social em uma relação dialética que anularia as polarizações6. Como explica DeLanda (2006, p. 5-6):

This is because assemblages, being wholes whose properties emerge from the interactions between parts, can be used to model any of these interme-diate entities: interpersonal networks and institutional organizations are as-semblages of people; social justice movements are assemblages of several networked communities; central governments are assemblages of several organizations; cities are assemblages of people, networks organizations, as well as of a variety of infrastructural components, from buildings and stre-ets to conduits for matter and energy flows; nation states are assemblages of cities, the geographical regions organized by cities, and the provinces that several such regions form.

Assim como Latour, DeLanda afirma que não há algo como “a sociedade como um todo”. Ele recusa a metáfora orgânica, fruto

6 Como exemplos de sociólogos que atuam fora do determinismo, DeLanda cita Goffman (na sua microssociologia da conversação), Weber (sobre as instituições) e Tilly (na compreensão dos movimentos sociais).

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de analogias equivocadas entre o corpo humano e a sociedade, prin-cipalmente após Claude de Saint-Simon no século XIX. O que pen-sadores expõem como “organismo social” deve ser visto como com-posições e agenciamentos nos quais as relações não são obrigatórias ou essencialmente determinadas, mas contingentes. Agenciamentos são composições (podemos chamar de associações) que acontecem a partir de duas funções centrais (de suas partes). Há, por um lado, as capacidades expressivas e materiais e, por outro, as funções de es-tabilização (e seu oposto). Essas funções (que são de suas partes na composição) agem aumentando (ou diminuindo) a homogeneidade interna e externa de suas fronteiras. DeLanda chama essa função de territorialização (ou desterritorialização, o seu contrário). A territo-rialização se dá por codificação (controle): os genes e as palavras, o código genético e a linguagem7.

DeLanda mostra, por exemplo, que as novas mídias são vistas como desterritorializantes por, em determinados conjuntos (a rela-ção face a face, por exemplo), mudar as condições de materialida-de e de expressividade. Certamente, com a internet e o celular, a relação muda, não sendo mais aquela do compartilhamento de um mesmo contexto, ambiente ou lugar. Mas cria-se uma espacialização pela ação mediada. Esses dispositivos midiáticos, por instituírem uma descontinuidade nas relações face a face, engendram processos desterritorializantes (abrem-se as fronteiras, há interferências de lu-gares distintos, que atingem diferentemente os interlocutores etc.). Para DeLanda (2006, p. 55),

Finally, a technological invention that allows a conversation to take place at a distance affects its identity not by changing it into some other form of social encounter but by blurring its spatial boundaries, forcing participants to compensate for the lack of co-presence in a variety of other ways.

No entanto, podemos dizer que outra associação se faz, outro conjunto é “territorializado”. O uso constante dessas mídias criaria

7 Para AT, organismos vivos são “agenciados” por matéria e expressividade de suas partes que têm na territorialização ações dos genes e da linguagem. Da mesma forma, as organizações sociais hierárquicas, que embora não tenham genes bioló-gicos, mantêm a sua fronteira pela territorialização da linguagem.

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novos agenciamentos das relações interpessoais, novas regiões de fachada e de fundo (em sistemas como blogs, Twitter, Facebook, chats...). Da mesma forma, as mídias de geolocalização podem ser vistas compondo novas associações infocomunicacionais. Por um lado são desterritorializantes, mas por outro criam territorializações ao reforçar sentidos de lugar e controle informacional. Por exem-plo, ir a uma praça de alimentação de um shopping pela oferta de conexão Wi-Fi. O hotspot Wi-Fi age como catalisador, sendo mais um componente (actante) na constituição desse lugar. A conexão à internet pode “retirar” o usuário do lugar (ao conectá-lo ao ciberes-paço), mas também reforçar antigos vínculos a esse mesmo lugar.

A aproximação entre AT e TAR é evidente e tanto Latour (2005a) como Harman (2009) reconhecem a similaridade8. Pode-mos dizer, falando pela AT, que os agenciamentos desenvolvem--se e perecem pela dinâmica material e expressiva de suas partes. Estas agem territorializando e reforçando suas fronteiras por ações amplas onde a codificação genética e a linguagem operam. Pela lin-guagem da TAR diríamos que as associações (que formam o social) criam-se, desenvolvem-se e perecem pelo exercício sempre difícil da articulação da rede de actantes, criando temporariamente e local-mente uma ação. Não há essência, mas as codificações genéticas e a linguagem podem ser actantes importantes em uma dada associação.

A manutenção de uma assemblage é sempre muito difícil e re-quer esforços dos actantes ou de suas partes. Isso se dá, obviamente, por processos recorrentes que fazem com que uma determinada associação possa se manter por muito tempo, e ainda gerar associações maiores. Para DeLanda, não devemos associar rapidamente a ligação entre com-ponentes como interioridade ou essência. A interação dos genes com o maquinário orgânico, por exemplo, não pode ser vista como aquilo que define a essência desse mesmo maquinário. Da mesma forma, não podemos definir o sujeito apenas pela interação, pela linguagem ou pela instituição social. Como explica o filósofo (2006, p. 16):

In an assemblage approach, genes and words are simply one more compo-nent entering into relations of exteriority with a variety of other material and

8 Sobre as relações de proximidade e distanciamento entre o pensamento de Latour e DeLanda, ver o excelente texto de Harman (2012).

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expressive components, and the processes of coding and decoding based on these specialized lines of expression operate side by side with nongenetic and nonlinguistic processes of territorialization and deterritorialization.

A estabilidade e o crescimento só podem ser vistos a posterio-ri, fruto de propriedades emergentes, sem essências, gerando even-tos em uma mistura complexa de “causas, razões e motivos”, como coloca Max Weber (citado por DeLanda). Assim como a TAR, a AT não permite pressupor generalidades reificadas ou essências. Só há, como afirma DeLanda, “contingent nature of the boundaries” (2006, p. 27). Uma espécie animal, por exemplo, deve ser vista como uma entidade individual, tão única quanto os organismos que a compõem, mas maior em escala espaço-temporal. Ela não é uma categoria ge-ral, ou um “tipo natural” (Aristóteles), que marcaria uma essência de todos os seus exemplares. Esse tipo de análise, equivocada para DeLanda e Latour, parte sempre de uma generalização, descobre suas supostas lógicas internas e, a posteriori, constrói o que seria a estrutura ou a “essência”. Da mesma forma, a “sociologia do social” parte de generalizações para enquadrar os actantes em estruturas ou essências, de trás para a frente. DeLanda (2006, p. 28) esclarece:

Assemblage theory [...] avoids taxonomic essentialism through this ma-noeuvre. The identity of any assemblage at any level of scale is always the product of a process (territorialization and, in some cases, coding) and it is always precarious, since other processes (deterritorialization and decoding) can destabilize it. For this reason, the ontological status of assemblages, large or small, is always that of unique, singular individuals. In other words, unlike taxonomic essentialism in which genus, species and individual are separate ontological categories, the ontology of assemblages is flat since it contains nothing but differently scaled individual singularities (or haccei-ties). As far as social ontology is concerned, this implies that persons are not the only individual entities involved in social processes, but also indivi-dual communities, individual organizations, individual cities and individual nation-states.

Assim, se algo se repete, não devemos falar de estruturas ou essências, mas de “singularidades universais”. As diferenças que surgem nesses sistemas não são atribuídas a uma diferenciação ló-

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gica, mas sempre histórica. Para DeLanda, o conjunto de singula-ridades universais é o que Deleuze chama de diagrama, ou o que estamos chamando aqui de “espaço-rede”. Ele organiza o espaço de possibilidades de uma determinada associação. Pessoas, instituições e mesmo uma nação (todas singularidades individuais) têm seus es-paços de possibilidades (seus graus de liberdade) organizados a par-tir de um arranjo de singularidades universais. Um exemplo dessas singularidades universais é o que Weber chama de “tipo ideal”. Ele não é uma essência, mas um diagrama9. Singularidades universais e individuais permitem que a AT possa atuar sem falar de essências. O que a aproxima da TAR.

espAço movimento

Como vimos, a AT em muito se aproxima da TAR. Ambas pensam em relações que não são definidas por essências, mas por re-lações emergentes (diagramas, espaço-rede) que podem, por contin-gência, se manter. A relação espacial pode assim ser pensada. Não há um global agindo sobre o local, nem um local independente do global. Há conjuntos mais ou menos estáveis que se interpenetram e constituem associações para determinada ação nas quais localiza-dores ou articuladores e plug-ins (LATOUR, 2005a) colocam em partilha tempos e lugares distintos.

Cabe ao analista social sair da armadilha de ter de escolher o seu lugar de análise, seja a partir do “macro” (o global, o contexto, a estrutura), seja a partir do “micro” (a agência individual, o inte-racionismo, a microeconomia). Pela comodidade de ter uma escala definida, um polo fixo de observação, o analista faz desaparecer a dinâmica social. As associações não mais podem ser vistas, já que rastros dos actantes são apagados em prol de uma resolução fixa de um “espaço” geral, ou de um “lugar” particular. No entanto, a ação

9 Para Deleuze, a noção de diagrama é de uma máquina de possibilidades, abstrata como o “vir a ser” que constitui a possibilidade de qualquer coisa. Não é a coisa, não a representa, mas é a sua possibilidade, causa dos agenciamentos (daí deriva a relação entre diagrama e dispositivo em Foucault). A “causa imanente” é para Deleuze o que existe entre o diagrama (a máquina abstrata) e os agenciamentos concretos.

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dos actantes só pode ser vista se partimos de uma espacialização plana, sem escalas.

Para a TAR, de acordo com Latour (2005a), nenhuma relação pode ser vista como: isotópica – tudo o que age em um lugar vem sempre de muitos tempos e lugares; sincrônica – os lugares reúnem sempre actantes gerados em diversas temporalidades; sinóptica – não é possível ter uma visão do todo; homogênea – os lugares não têm as mesmas qualidades; ou isobárica – as relações e as pressões são diferenciadas, e intermediários transformam-se em mediadores e vice-versa. Isso nos permite deslocar a discussão sobre escalas, micro e macro. Não há nada, para a TAR, que possa ser pensado como global ou local.

Há sempre uma relação entre localização e contexto a partir do que Latour chama de “articulators” ou “localizers” (LATOUR, 2005a). O lugar não é independente do contexto nem um mero refém deste. Há sempre um vai e vem entre diversos mediadores através desses elementos de articulação, de localização ou de “plug-ins”10 que conectam localidades e temporalidades, fazendo do lugar o re-sultado de um atravessamento de fluxos. Se o espaço é essa rede móvel de coisas e humanos, de lugares em mutação, de comunica-ção entre objetos e humanos, não há nunca uma coisa meramente local ou global.

É interessante ver como Latour, em um texto sobre a globali-zação (LATOUR, 2011a), fala que, para termos uma noção do seu significado, devemos olhar as coisas que estão ao nosso redor, ou as coisas de que necessitamos para viver e nos perguntar: de que espa-ços e tempos eles vêm? Pense na sua mesa de trabalho e olhe para os objetos ao seu redor: de onde eles vêm, quando e onde foram feitos,

10 Plug-in pode ser visto como uma forma de conexão de uma coisa a outra, inte-grando lugares e temporalidades diferentes. O termo vem da informática e remete para um programa que é acoplado a outro como, por exemplo, um programa de vídeo que é baixado como um plug-in e permite assistir filmes em um “browser”, navegador da internet, como Safari, Mozilla ou Explorer. A ideia de plug-in é interessante para a discussão sobre o espaço, pois ela faz o trânsito de entidades pelas dimensões micro e macro, criando localmente individualização, subjetiva-ção e/ou personalização. Latour parece gostar de termos da informática. Outro adotado recentemente é o de “Duplo Clique”, espécie de demônio que tenta evitar ver as mediações e transformar tudo em intermediário (LATOUR, 2012a).

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quem pode consertá-los ou melhorá-los? Quanto mais distantes as coisas e as pessoas estiverem, maior é a sensação de globalização, de atravessamento de fluxos e maior também é a deformação do espaço e do tempo, bem como o cruzamento entre micro e macro-dimensões. Mas esse não é um fenômeno da globalização, embora tenha sido ampliado por esta. Tempo e espaço aparecem então nos agenciamentos, nas associações, nas mediações, nas redes.

Com o achatamento ontológico do espaço, não se trata nem de globalizar o lugar, nem de localizar o global, mas de pensar nas agências e suas redistribuições espaço-temporais, gerando uma nova cartografia, mais dinâmica, menos generalista (espacial) e mais lo-cativa e simultânea. Esta cartografia teria o papel de mostrar os ras-tros deixados pelos actantes, como vimos. O espaço plano mostra os deslocamentos e as distribuições, os rastros digitais, detectando movimentos para além de uma visão fixada a priori em dimensões do micro ou do macro, da estrutura ou da agência. Para entender as associações em um determinado espaço, devemos buscar os rastros, os caminhos deixados pelos actantes, que podem ser de inúmeras formas, mas que sempre marcados pelos seus lugares de produção e pelos locais de interação. Localizadores, articuladores e plug-ins entram em jogo em toda associação. Para Latour (2005a, p. 194):

In effect, what has been designated by the term ‘local interaction’ is the assemblage of all the other local interactions distributed elsewhere in time and space, which have been brought to bear on the scene through the relays of various non-human actors. It is the transported presence of places into other ones that I call articulators or localizers.

Dessa maneira, os elementos que agem como articuladores e intermediários (immutable mobiles) fazem sempre circular a ação por espaço, lugares e tempos diferenciados. No limite, tudo é localizado por atravessamento e circulação. Se pensarmos a partir de interação local ou global, não poderemos mais ver as conexões do social, não conseguiremos mais retraçar as associações. Devemos evitar a tenta-ção de aprisionar o social em duas caixas – a global e a local.

Os mediadores estão sempre fazendo itinerários bizarros. O importante é estar atento ao que circula, à redistribuição de tem-

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pos e lugares em um espaço sem escalas. Assim se pode visualizar diversas outras entidades que se deslocam e cujos movimentos são dificilmente detectáveis pelas escalas artificiais.

Como uma paisagem seca e empoeirada deixa mais marcas, o espaço mais liso, sem escalas, sem estar previamente articulado entre estrutura e interação, entre macro e micro, faz os rastros apare-cerem. Como explica Latour (2005a, p. 207):

Surely the question we need to ask then is where are the other vehicles that transport individuality, subjectivity, personhood, and interiority? If we have been able to show that glorified sites like global and local were made out of circulating entities, why not postulate that subjectivities, justi-fications, unconscious, and personalities would circulate as well? And sure enough, as soon as we raise this very odd but inescapable question, new types of clamps offer themselves to facilitate our enquiry. They could be called subjectifiers, personnalizers, or individualisers, but I prefer the more neutral term of plug-ins, borrowing this marvelous metaphor from our new life on the Web. [...] Being a fully competent actor now comes in discreet pellets or, to borrow from cyberspace, patches and applets, whose precise origin can be ‘Googled’ before they are downloaded and saved one by one.

A alternância abrupta entre micro e macro, ator e sistema, não é assim uma característica essencial do social, mas uma forma de encarar as associações criadas por uma determinada sociologia. Para a sociologia das associações, deve-se evitar passar do con-texto estrutural para as relações interativas da microssociologia ou vice-versa. O interessante é poder olhar a circulação de actantes por entre essas instâncias sem congelar a análise. Como ensina Latour (2005a, p. 231):

It is only by making flatness the default position of the observer that the activity necessary to generate some difference in size can be detected and registered. If the geographical metaphor is by now somewhat overused, the metaphor of accounting could do just as well—even though I may have used it too much already. The transaction costs for moving, connecting, and assembling the social is now payable to the last cent, allowing us to resist the temptation that scaling, embedding, and zooming can be had for nothing without the spending of energy, without recruitment of some other entities, without the establishment of expensive connections.

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A ideia de um espaço-tempo ligada à ideia de movimento, de processo é, segundo Bingham e Thrift (2003), mais uma das heran-ças do filósofo Michel Serres que desconfia das grandes categorias analíticas de tempo e de espaço. Reforçando a ideia de um espaço--rede, Serres e Latour (1995) mostram que tudo se dá no movimento e nas relações. Bingham e Thrift (2003, p. 289) mostram que :

What this requires is nothing less than a gestalt shift according to which space and time are no longer conceived of as existing ‘independently as an unshakeable frame of reference inside which events and places would occur’ (Latour 1987:228, emphasis in original), but, conversely, the result of inter- action, ‘consequences of the ways in which bodies relate to one another’ (Latour 1997a:174, emphasis in original). It is not empty abstrac-tions which are primary here, but the many and varied ‘other entities that are necessary for maintaining us in existence’ (ibid.: 186, emphasis in ori-ginal). In particular, what takes centre stage is the circulation of certain of these ‘other entities’.

Ou, como afirma Latour (1988b, p. 25, apud Bingham e Thrift, 2003, p. 289):

Gods, angels, spheres, doves, plants, steam engines, are not in space and do not age in time. On the contrary, spaces and times are traced by reversible or irreversible displacements of many types of mobiles. They are generated by the movements of mobiles, they do not frame these movements.

Espaço e tempo definem-se pela relação. O espaço como relação entre as coisas e o tempo com a mudança nos objetos a partir de sua relação com outros objetos. Nesse sentido, espaço e tempo não são categorias abstratas, nem aquilo que contém todas as coisas, nem a sequência dos segundos que passam no relógio. Para a TAR, eles são “the product of transformation and not the containers for transmission, spaces and times are outcomes of the combination and recombination of a full world.” (BINGHAM e THRIFT, 2003, p. 289). E, em um mundo de redes e media-ções, afirma Latour, “spaces and times prolifarate” (BINGHAM e THRIFT, 2003, p. 289). Para Serres (1982, p. 45, apud Bingham e Thrift, 2003, p. 289-290):

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My body [for example] lives in as many spaces as the society, the group or the collectivity have formed: the Euclidean house, the street and its ne-twork, the open and closed garden, the church or the enclosed spaces of the sacred, the school and its spatial varieties containing fixed points, and the complex ensemble of flow-charts, those of language, of the factory, of the family, of the political party and so forth.

Consequentemente, o espaço e o tempo são menos importantes do que o “timing” e o “spacing” (BINGHAM e THRIFT, 2003, p. 290). Eles são assim cronotopológicos e não métricos, tendo nos luga-res-eventos a fonte das dinâmicas de produção do espaço e do tempo. O verbo “spacing” é particularmente interessante já que mostra, mais uma vez, a TAR como uma sociologia da mobilidade e o espaço como movimento, como rede, constituído pelos deslocamentos de coisas pelos lugares. Mas ainda nos falta definir melhor o que é um lugar.

Lugar

Vimos até aqui como o espaço é movimento e rede de rela-ções entre objetos e lugares. Os lugares são, no fundo, os actantes principais nessa discussão sobre o espaço, eles são os mediadores que o conformam como rede. Voltando a Heidegger, podemos bus-car no texto “Habiter, Bâtir, Penser”, uma explicação do espaço como dinâmica entre os lugares, como afirma o filósofo alemão: “les espaces que nous parcourons journellement sont ‘ménagés’ par des lieux” (HEIDEGGER, 1958, p.186). Se a essência do homem é re-sidir, construir (um lugar) para habitar, é no construir que ele funda os lugares e articula os espaços: “les espaces reçoivent leur être des lieux et non de ‘l’’espace” (HEIDEGGER, 1958, p. 183).

Para geógrafos, antropólogos e sociólogos, lugar é o espaço socialmente produzido. É apenas na década de 1970 que o lugar passa a fazer parte das discussões sobre o espaço. Como afirma o geógrafo Tim Cresswell (2004, p. 135), “spatial scientists were not very interested in how people related to the world through experien-ce. People as objects or rational beings are not ‘experiencing’ the world and geographers studying them are certainly not interested in how they experience the world.”

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Para Cresswell (2004, 2008, 2009), o lugar deve ser pensado como uma combinação de localização, do localidade e de seu sen-tido social, incluindo as formas de sociabilidade que o constituem. A dimensão local, diferente da abstrata de espaço, é vista, ao mes-mo tempo, como um ponto no espaço abstrato (longitude, latitude, altura), como uma localidade (a praça X da cidade Y) e como rela-ção, como associação que produz sentido (social). Local é o topos. Se formos confrontar essa definição com o que dissemos até agora, vemos que ela reforça a dimensão constitutiva dos lugares como morada das associações e como formadores da rede em movimento que é o espaço. A noção de experiência passa a compor o núcleo da abordagem humanista e construtivista do lugar.

Para as novas experiências comunicacionais da cibercultura (particularmente com as mídias locativas), outro elemento tem que entrar em jogo: a mobilidade. Ela sempre foi vista como inimiga da dimensão local, como desagregadora e destruidora das relações an-coradas no lugar, já que movimentar é sempre “des-locar”. Muitos estudos partem da ideia de que o lugar é o ponto fixo em um con-tainer que seria o espaço (MEYROWITZ, 1985 e 2004, RELPH, 1976, YI-FU TUAN, 2001, AUGÉ, 1995). Meyrowitz e Augé vão insistir na ideia de que na era das mídias de massa, do espetáculo, da “supermodernidade” e da globalização, o ciberespaço e as tecnolo-gias móveis digitais fazem os lugares perderem sentido, sendo me-ros simulacros de experiências e relações. Se é assim, quanto maior a mobilidade (física e informacional), menor a importância do lugar.

No entanto, a nossa experiência diária é oposta a essa ideia. Nos movimentamos levando conosco uma rede de elementos hete-rogêneos. Ela compõe os lugares. Estes, nas suas relações, consti-tuem o espaço (rede). Lembrem do evento do “carro-rede” em mo-vimento desenvolvido por Callon no capítulo dois. Lugares estão em permanente tensão na mobilidade. Assim sendo, ver mobilidade como oposta ao lugar só é possível quando se adota uma visão do espaço como ambiente abstrato e reservatório, e quando se entende a experiência vivida no lugar como fixa.

Ora, como critica Cresswell, lugar não é apenas topos (Aristóteles), ou morada (Heidegger), mas fluxo, evento de associa-ções que colocam em jogo vários dispositivos (tecnologias, leis, rela-

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ções, hábitos culturais etc.). Eles se produzem nas relações em movi-mento. Lugar não é fixação e morada, como quer Yi-Fu Tuan (2001), mas eventos que se definem no fluxo da mobilidade. Para Cresswell (2008, p. 137), “whatever kinds of places are constructed they are never truly finished and always open to question and transformation.”

Da mesma forma, Massey (1993) sugere pensarmos em sen-tidos progressivos de lugar e não em formas fixas da identidade. Como mostra Cresswell (2008, p. 137), “if we think of place as cle-arly bounded and rooted in singular histories then people tend to identify places as ‘ours’ and not ‘theirs’. This forms the basis for narrow-minded xenophobia”.

Devemos evitar dividir as associações em globais e locais e ver intercessões de diversas influências que são convocadas em cada ação. Esta análise é próxima também da visão de Pred (1984) quando o autor propõe ver os lugares como processos: “Place is produced through action and action is produced in place through a constant reiterative process. (…) place is through its relation to mobilities, to the dynamism and flow of objects and people through them” (CRESSWELL, 2009, p. 7).

Como mostramos em outros trabalhos (LEMOS, 2007, 2009, 2010a e 2010b), as atuais experiências com as mídias locativas mos-tram que, mesmo em um fluxo globalizante, os lugares não perdem sentido. Deve-se aliar novos sentidos dos lugares a esse senso glo-bal da mobilidade. Ao abandonarmos a perspectiva do lugar como fixação, podemos identificar os rastros deixados nos fluxos e redes, nas associações.

Os espaços-rede são assim produtos de relações entre coisas e lugares em mobilidade, sendo formados por fluxos e movimentos entre diversos intermediários e mediadores. Afasta-se assim de uma visão do lugar como entidade congelada que perderia sentido com a mobilidade física e informacional. A extensibility (JANELLE, 1973), ou seja, a possibilidade de “alcançar” outros lugares pelos meios de comunicação não apaga os lugares, apenas os tornam mais complexos e os conecta ao espaço-rede. O interessante é ver o trân-sito, a circulação e a redistribuição da agência entre o perto e o lon-ge, entre o “local” e o “global”. Sobre as relações em um auditório universitário, explica Latour (2005a, pp. 195-196):

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This local site has been made to be a place by some other locus through the now silent mediation of drawings, specifications, wood, concrete, steel, varnish and paint; through the work of many workers and artisans who have now deserted the scene because they let objects carry their action in absentia; through the agency of alumni whose generous deeds might be rewarded by some bronze plaque. Locals are localized. Places are placed. (…) Circulation is first, the landscape ‘in which’ templates and agents of all sort and colors circulate is second.

Compreender as dinâmicas do espaço-rede e dos lugares é fundamental para a análise das diversas associações que compõem as práticas comunicativas com as novas mídias de geolocalização. Podemos agora tentar entender um pouco melhor esses novos pro-cessos de espacialização em jogo na atual fase da cibercultura. Essas mídias estão em expansão no Brasil e no mundo, caracterizando a fase da computação ubíqua (WEISER, 1991). Propomos, nesta par-te do capítulo, modos de mediação específicos nos quais objetos, protocolos, programas, bancos de dados, contexto local são atores importantes na dimensão local da experiência. Eles ajudam a bali-zar, como veremos, os modos de escrita, escuta, visibilidade, socia-bilidade, acesso e lúdico. A proposta aqui é oferecer um roteiro de análise dessas mídias, tendo como base os pressupostos teóricos e metodológicos da TAR.

mídiAs locAtivAs11

Mídias locativas são tecnologias de comunicação e informa-ção, bem como os serviços correlatos baseados na localização dos dispositivos. O uso de smart phones, GPS, redes sem fio (Wi-Fi, 3G ou bluetooth), realidade aumentada, etiquetas de radiofrequência (RFID), M2M (machine to machine, ou internet das coisas), entre outros, estão transformando a forma como a sociedade consume, produz e distribui informação no espaço urbano. As atividades já são bem corriqueiras e estão em expansão: localizar um ponto de interesse com o celular, navegação automotiva com GPS; anotação eletrônica com QR Codes ou etiquetas RFID, comunicação via blue-

11 Parte deste texto foi publicado em Lemos (2010b).

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tooth; objetos autônomos tomando decisões ligados a outros pela internet, check-in com o Foursquare; uso de “Realidade Aumenta-da” com aplicativos como o Layar ou Wikitude ou mesmo com o uso de dispositivos de visão acoplados ao corpo, como o mais novo “óculos” do Google.

Esse conjunto de ações infocomunicacionais produz uma re-lação específica entre informação, comunicação, mobilidade, redes e espaço. Estamos saindo da falsa dicotomia entre o espaço e o ci-berespaço, o virtual e o real, os átomos e os bits. Cada vez mais, bits e átomos estão em forte sinergia, produzindo formas de mobilidade informacional, ação atenta a lugares e hiperespacialização (LENZ, 2007; HEMMET, et. al., 2006; RUSSEL, 1999; SANTAELLA, 2008; TUTERS e VARNELIS, 2006, LEMOS, 2007, LEMOS e JOSGRILBERG, 2009; NOVA, 2009).

As mídias locativas são mídias de localização e da mobilida-de. O fluxo comunicacional se dá localmente, identificando a posi-ção do usuário, propondo serviços atentos ao contexto, exigindo a co-presença de usuários, dispositivos, software. O uso de um desses sistemas ou dispositivos convoca uma rede importante de media-dores: artefatos, redes sem fio, base de dados, geolocalização por GPS, bússola, serviços acoplados… Essa rede em ação favorece no-vos usos do espaço como mostramos em outros trabalhos (LEMOS, 2009, 2010a, 2010b).

Estamos acostumados a acessar a internet de qualquer lugar. Quando, na primeira fase do seu desenvolvimento, acessávamos a internet da escola, de casa ou do trabalho, o lugar de acesso era apenas um fundo ou resíduo no processo infocomunicacional. Ele era um intermediário. Na atual fase móvel e locativa dos processos infocomunicacionais, a informação, o acesso, a distribuição, o con-sumo, a produção estão diretamente vinculados ao contexto local. O lugar passa a ser um mediador importante no processo. Do fundo ele passa à frente da cena.

Os serviços de geolocalização ou os dispositivos utilizados são todos mobilizados localmente, a partir da particularidade do contexto como, por exemplo, achar em um mapa um ponto de inte-resse mais próximo. Este é um dos serviços mais utilizados hoje e qualquer smart phone traz essa função. Chamei a primeira fase da

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internet de “upload de informação e virtualização para o ciberespa-ço”, onde o lugar tem uma importância relativa. Hoje, com os siste-mas locativos atuais, como no exemplo acima, a função do lugar é crucial, caracterizando o “download do ciberespaço para objetos e lugares” (LEMOS, 2009). Aqui o lugar é um mediador fundamental da ação, já que a informação “emana” e reage de/a partir dele.

Pela TAR, podemos dizer que o “lugar” passa de uma função de intermediário, na primeira fase, para a de mediador, atualmente. Não é por acaso que muitos estudos da primeira fase da internet, nos anos 1990, insistiram na superação dos lugares, na sua perda de sentido, no fim da geografia ou das cidades, no fim do corpo, ou no “virtual” superando o “real”. Esses estudos acreditavam, justamente por termos nesse tipo de acesso o espaço ou o lugar como mero intermediários, que eles passariam mesmo para um fundo. O lugar não importava mais.

No entanto, o que estamos vendo hoje é justamente o oposto. O lugar não é mais um simples intermediário (um fundo que trans-portava as conexões à internet sem influir substancialmente nessa conexão). Ele passa para uma posição de agente diferencial, de pro-dutor de diferenças, de mediador. Ele é um elemento fundamental nas novas mediações. Essa mudança é importante para compreender os desafios da sociedade da informação e o desenvolvimento de apli-cativos de geolocalização. É importante também para evitar, de uma vez por todas, falar de virtual e de real como se fossem entidades que separariam o espaço concreto de um espaço ficcional, ilusório, imaginário.

Com a popularização atual dos telefones celulares e dos ser-viços baseados em localização, estamos passando por uma virada espacial no estudo da comunicação (FALKHEIMER e JANSSON, 2006). Passamos efetivamente do “no sense of place” (MEYRO-WITZ, 1985), onde o lugar é superado pela comunicação massiva e pelo ciberespaço em sua fase de “upload”, para um “new sense of place”, no qual as relações comunicacionais se dão com influên-cias diretas dos lugares e dos objetos próximos. É isso que fazem projetos como “Google Latitude”, “Foursquare” ou “Brightkite”; “MurMur”, “Peninsula Voices”; “Can You See Me Now; “Layar”, “Wikitude”; GPS automotivo; monitoramento de produtos com

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RFID12... Mais do que nunca, lugar não é aquilo que fixa ou imo-biliza, mas eventos, pontos dinâmicos, mediadores importantes no atual ambiente informacional.

As ações com as mídias locativas, aliando mobilidade e geolo-calização, devem ser pensadas como associações de diversos e com-plexos atores (sujeitos, lugares, objetos, redes, sensores, servidores, bancos de dados, software...) e, como tal, convocam uma análise complexa dos atores-rede envolvidos nos seus modos de mediação e tradução. Podemos defini-la como um conjunto híbrido de atores que age no processamento de informação sensível aos contextos lo-cais. Burlacu e Fliervoet fazem uma relação entre os projetos com mídias locativas e a TAR13. Como afirmam os autores (2012, p.2):

…For example, in the case of locative media, we can say that GPS devices have a discussion with computers, the first sending the information to the latter, information which in turn gets assessed and analyzed). In this sense, locative media helps reveal how manmade objects are composed of issues around which public form (such as environmental debates and policies). (…) In this sense ANT and the object-turn also become important when thinking about environmental, urban planning or technological issues, and how locative media can help with their understanding.

12 Ver http://www.google.com/latitude, http://playfoursquare.com/,http://brightki-te.com, http://murmurtoronto.ca/, http://www.planbperformance.net/dan/loca-tive.htm, http://www.canyouseemenow.co.uk/, http://video.globo.com/Videos/Player/Entretenimento/0,,GIM1011058-7822-TECNOLOGIA+BLUETOOTH+NO+ESTADIO+DE+FUTEBOL,0 0.html, http://www.layar.com, http://www.wikitude.org .

13 Ver: “Pigeons that Blog”, com pombos equipados com sensores que medem a qualidade do ar e postam na internet, “Environmental Health Clinic“, no qual o conceito de saúde está vinculado a uma mudança do local e não internamente no corpo individual; “The MILK Project”, que traça o percurso do leite, da vaca até o consumidor final; “Shadows from Another Place” e “Cerry Blossoms, instalações com mapa mostrando problemas de um outro lugar; “Area’s Immediate Reading” (AIR), para monitoramento do ar; “Constraint City – The Pain of Everyday Life”, no qual pontos de conexão WiFi tornam-se visíveis no corpo do usuário; My City = My Body, interações biológicas na cidade onde participante fornecem dados do seus excrementos e esses dados são alocados aos códigos postais; “Trash Track”, mapeamento de lixo por etiquetas GSM; “Give Me Back My Broken Night”, experiência cinemática de busca de espaços vazios da cidade.Ver http://masterso-fmedia.hum.uva.nl/2012/03/20/when-objects-talk-with-each-other-the-new-turn--in-locative-media/

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Com as mídias locativas temos objetos em conexão vincula-dos a relações espaciais, móveis e interpessoais ao mesmo tempo. Cada um dos projetos citados tem ênfases diferenciadas e devem ser analisados por uma abordagem que privilegie a materialidade dos dispositivos e as alianças, mediações e traduções que a rede for-mada engendra. Objetos passam a conformar políticas do urbano nas associações formadas com as mídias locativas e a internet das coisas. Uma abordagem que privilegia as associações pode chamar a atenção para fatores ambientais e políticos dos lugares. Essa “pré--posição” (LATOUR, 2012a) pode, no futuro, ajudar na valoração das relações que se estabelecem em cada modo, como vou mostrar a seguir. Para Burlacu e Fliervoet (2012, p. 4):

All in all, location-awareness seems to become more and more part of our everyday lives and it has started to create significantly different relations between us and the objects that surround us. Besides helping us locate our-selves in relation to objects, the object themselves are also communicating with each other in much more obvious ways, making the networks betwe-en them more transparent. And, as networks become more obvious, we in turn learn how to place ourselves in relation to them and how to act within them in such a way so as to create beneficial results without disrupting the networks.

Ao analisarmos projetos de mídia locativa como, por exem-plo, o uso de um GPS automotivo, devemos abrir a caixa-preta e tentar compreender as associações que se estabelecem nessa ação: quem fez o mapa, quem decide pelos pontos de interesse, como o motorista se adapta a essa nova forma de dirigibilidade, como ele produz sentido sobre os lugares por onde passa…

O recente caso de uma belga que seguiu o seu GPS e saiu da rota é bem interessante14. Ela pretendia ir 90 milhas ao norte e aca-bou a 800 milhas ao sul, na Croácia. Questionada, afirmou que se distraiu e apenas pisou no acelerador, revelando assim um invejável desprendimento: se deixar levar pelo erro do GPS, sem lugar, sem

14 Ver “GPS sends Belgian woman to Croatia, 810 miles out of her way”, dispo-nível em http://news.cnet.com/8301-17852_3-57563958-71/gps-sends-belgian--woman-to-croatia-810-miles-out-of-her-way/

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espaço, só fluxo e aceleração, sem topos, sem sujeito. Como dizia Proust, “lugares são pessoas” (POULET, 1992, P. 37). Essa é uma perspectiva bem interessante para o híbrido “humano-não-humano”. Como vimos, não há o espaço para depois haver lugares. Há lugares e então espaçamento. A belga, perdida, distraída, sem lugar, con-sequentemente sem espaço, era só fluxo, abrindo a caixa-preta do GPS.

Um erro no GPS é uma abertura de caixa-preta, revelando muito das novas relações que se estabelecem com as mídias de ge-olocalização: com o dispositivo, com os lugares, com os trajetos, com os movimentos. Nosso desafio, portanto, é pensar as mídias locativas considerando elementos e dinâmicas sociocomunicacio-nais que daí emergem. Lugares, dispositivos, redes e sensores, além dos humanos, são actantes em sistemas e tecnologias baseados em localização com formas específicas de tradução, mediação, redes e caixas-pretas. Devemos ressaltar o papel de cada actante, as tradu-ções (mobilização, comprometimento, alocação, problematização), as caixas-pretas estabilizadas e identificar os modos de mediação em marcha. Pensar nas redes é pensar também na materialidade dos processos de comunicação.

Materialidades

A teoria das Materialidades da Comunicação (Materiality of Communication), proposta por Gumbrecht na década de 1990 (1993, 1998) pode ajudar na análise que será indicada em seguida sobre os modos de mediação locativos. O conceito de materialidades visa tratar as mídias para além de uma hermenêutica da comunica-ção. A teoria parte do princípio que toda forma de comunicação é feita a partir de suportes materiais e que estes devem ser analisados antes de serem interpretados ou abstraídos de suas características materiais. O antecedente desta teoria encontra-se em Derrida, no seu “De la Grammatologie” (1973), onde o filósofo mostra como o lo-gocentrismo é uma forma de anular o significante.

A teoria das materialidades da comunicação só será estrutura-da em 1990, nos EUA, com Gumbrecht e Pfeiffer (1994) a partir de estudos literários com o objetivo de equilibrar as análises de contex-

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to (FELINTO, 2001, HANKE, 2005, PEREIRA DE SÁ, 2004). Po-demos encontrar ecos também na teoria “ecológica” de McLuhan, como vimos no capítumo anterior. Pela teoria das materialidades, devemos reconhecer o papel dos artefatos e dos atores não-humanos na comunicação. É portanto contra a imaterialidade da comunicação que a teoria surge. Para Gumbrecht, o sentido não deve se sobrepor ao suporte e à materialidade. Isso, no entanto, não significa que seja impossível uma interpretação do processo comunicacional.

Buscamos aqui, no nosso caso particular, chamar atenção para a materialidade dos processos com as mídias locativas. Nos interessa enfrentar o problema da materialidade para incluir a me-diação técnica no cerne do processo e avaliar os diversos mediado-res nessas redes. Aceitaremos, portanto, três premissas dessa teoria que se aproximam muito da TAR: destemporalização, destotaliza-ção e desreferencialização. Isso significa dizer que compreender as mídias locativas é pensar fora de um fluxo progressivo e linear do tempo que aponta para um futuro já dado (como vimos no primeiro capítulo, a ação não tem uma direção facilmente detectável e a sua fonte também é sempre controversa); é saber que eles não podem ser vistos como totalizantes ou universais (não há essência e tudo vai se jogar nas associações); e que devemos ir além dos referenciais constituídos (e tentar visualizar as redes em formação).

Assim sendo, para estudar a virada espacial atual precisamos de um modelo teórico-metodológico no qual os objetos e o lugar tenham um papel importante na ação infocomunicacional. Eles não podem ser vistos como residuais em prol de uma análise apenas her-menêutica do processo. Temos que reconhecer e equilibrar a análise com a “massa” que falta (LATOUR, 1992): os actantes não-huma-nos, os objetos em sua materialidade, o espaço em sua dimensão local, o software e as bases de dados em suas dimensões de efetivos mediadores… Ao descrever e analisar os processos sociocomunica-cionais com as mídias locativas, é imperativo ampliar a busca dos rastros para outros actantes que não apenas o humano, seguir a ação de todos que efetivamente agem e não obliterar as redes em função de estruturas já previamente desenvolvidas.

Dessa forma, a ação comunicacional deve ser analisada aqui colocando todos esses actantes em uma topologia plana para locali-

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zar os fluxos de agência distribuídos no processo em rede. Trata-se mesmo de olhar para a comunicação das coisas e entre as coisas, incluindo aí o humano, de visualizar a rede que se forma e se desfaz e identificar os processos de fechamento e estabilização, as caixas--pretas. As teorias da materialidade, assim como a teoria ator-rede parecem ser chaves interessantes para a análise desse e de outros fenômenos da cultura digital.

Com a computação ubíqua, não se trata de investigar as re-lações desmaterializadas do ciberespaço. Como tudo se passa em um contexto local, concreto e material, temos que entender como uma rede de atores (redes, dispositivos, sujeitos, contexto) altera o processo comunicacional no espaço urbano; como eles tensionam comunicação e espacialização. Como todo processo sociotécnico, as mídias locativas são um conjunto híbrido de atores humanos e não--humanos em meio a um contexto local. Este passa a ser dotado de características informacionais pela interseção de suas dimensões fí-sicas, imaginárias, históricas, culturais, econômicas com a nova ca-mada informacional. De intermediário ele passa a ser um mediador. Tenho chamado esse espaço híbrido de “território informacional” (LEMOS, 2007, 2009, 2010a, 2010b).

O desafio atual é descrever e analisar os processos comu-nicacionais entre os diversos atores e tentar compreender como o lugar pode ou não ganhar novos sentidos com a “territorialização” informacional. Esta hipótese de pesquisa ilumina as formas de es-pacialização em marcha com as tecnologias digitais. Trata-se não de uma novidade, mas de uma linhagem histórica dos processos de espacialização criados pelas mídias de comunicação, desde a escrita, passando pelos correios, telégrafo, rádio, TV, internet e, agora, as mídias de localização e mobilidade.

Com as mídias locativas, pensa-se, normalmente, nos dispo-sitivos, sensores e tecnologias como a infraestrutura técnica, e nos sujeitos humanos como agentes intencionais e causais. O lugar é um mero reservatório, um “espaço” neutro. O híbrido aparece, já que o lugar é fundamental, mas ele é purificado, tendo em vista que as ações, intenções e consequências estão sempre do lado humano.

Os modos de mediação implicam em formas materiais espe-cíficas e abertas entre os sujeitos (humanos e artefatos). É a relação

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(social e moral) que daí emerge que produz o espaço-rede. Assim sendo, as tecnologias e os serviços baseados em localização im-plicam modos específicos de mediação e que esses caracterizam o relacionamento comunicacional como espaço, redefinindo os usos e apropriações dos lugares. São modos no sentido de serem uma forma de existência particular (LATOUR, 2012a), exigindo uma maneira também particular de interpretação. Consequentemente, a aplicação desse modelo teórico-metodológico retira a visão centrada apenas no usuário ou no receptor.

Modos de Mediação

Proponho pensar através de modos de mediação como mode-lo de análise de projetos com as mídias locativas. A ideia de “modos de mediação”, proposta em 2010, é próxima da adotada por Latour (2012a), embora a usada aqui tenha uma dimensão muito menor e seja focada nas mídias locativas. Na sua enquete sobre os modos de existência, a “pre-posição” é uma maneira de olhar e de interpretar modos de existência. No meu caso, modos de mediação são também modos de existência de produção do espaço com as mídias de geo-localização. Eles convocam “pre-posições” de análise. Esses modos são a forma como se dá a produção social do espaço ou, dizendo de outra maneira, a mediação e tradução no espaço-rede. Proponho seis modos: escrita, escuta, visibilidade, sociabilidade, acesso e lúdico. Esta escolha considera a materialidade da comunicação e os diver-sos híbridos formados por humanos e não-humanos, permitindo in-vestigar as redes formadas e as redes em mediação, incluindo aí a dimensão espacial.

Modo designa a forma, a maneira como algo se relaciona com o mundo, as formas de interação e comunicação, sua existên-cia. A relação homem-mundo é mediada, traduzida pela técnica. A técnica é um modo de mediação, um modo de existência e de tradução entre actantes humanos e não-humanos que se estabili-zam em objetos, processos, produtos, serviços, como caixas-pre-tas. Estas podem ser abertas seja por defeitos, por apropriações e desvio de usos, seja pela inovação. Nossa relação com o mundo passa sempre por um mediador artificial (linguagem, instituições,

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artefatos). No caso das mídias locativas, pelos modos de mediação podemos identificar como determinado conjunto de tecnologias se relaciona com o espaço e como os agentes humanos e não-huma-nos criam processos de significação. Os diferentes modos de me-diação nos fornecem possibilidades de investigar os processos de espacialização.

Mediação é, como vimos, tradução, comunicação, ação en-tre diversos atores onde não há causalidade facilmente identificá-vel ou linear. Ela se dá de acordo com os modos, ou seja, ela é uma ação a partir da maneira pela qual se dá o processamento, a troca, o consumo e a produção infocomunicacional local entre os atores. Os mass media do século XX nos jogaram em uma cultura planetária na qual nossa visão de mundo é constantemente tensio-nada por agendamentos e enquadramentos. Eles são o centro da circulação da informação pelo controle da emissão e distribuição. Hoje, com as novas tecnologias infocomunicacionais, este mode-lo passa por reconfigurações com formatos pós-massivos (abertos, bidirecionais, com o polo da emissão livre, conexão generalizada e reconfiguração das instituições da indústria cultural) que permitem a livre e ampla produção, consumo e circulação de informação. Toda mediação, seja ela massiva ou pós-massiva15, nos joga no cerne da cultura material.

Para o estudo das mídias locativas propomos pensar seis mo-dos de mediação. São eles os modos de escuta (sonoro); de escrita (textual); de visibilidade (mapeamento); lúdico (jogo); de acesso (conexão) e; de sociabilidade (rede social). Um projeto com mídia locativa pode, e na maioria das vezes tem, vários modos no cerne da ação. Por exemplo, projetos de anotações eletrônicas como Yellow Arrow ou GPS Drawing, privilegiam o modo de escrita. Sonic City, Buenos Aires Sonora, Location 33 e Montreal Sound convocam o modo de escuta. Neighbornode, Peuplade, Barcelona Accessible co-locam em ação o modo de visibilidade. Redes sociais móveis como Foursquare, Imity, Dodgeball e Citysense funcionam sob o modo de sociabilidade. Nos jogos Geocaching, Can You See Me Now, ou Uncle Roy All Around You é o modo lúdico que sobressai. Em áreas

15 Chamo de “pós-massivo” os processo infocomunicacionais em voga com as redes telemáticas e mídias digitais. Ver Lemos (2010a).

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de acesso Wi-Fi, como em um parque, shopping, aeroporto ou cafés, o modo de acesso é evidente16.

Cada modo implica uma ou mais mediações. No caso das mídias locativas, a espacialização se dá pelos modos de mediação que oferecem serviços infocomunicacionais específicos e que criam formas também específicas de relação com o lugar (navegação, lo-calização, etiquetagem, mapeamento, redes sociais, jogo, acesso etc.). A mediação deve ser vista aqui como entendimento da ação dos agentes interferindo na percepção e uso do espaço e em sua res-significação do mesmo. Em todos os projetos, um ou outro modo de mediação locativo estará em jogo. Para compreender melhor os modos de mediação, sugiro alguns indicadores para projetos com mídias locativas.

Actantes - No caso específico das mídias locativas, mas isso pode ser adaptado para qualquer análise de ações sociais, podemos elencar o seguinte grupo de actantes. 1. Dispositivos Tecnológicos – artefatos, redes e sensores; aplicativos; servidores e bases de dados (DIAMANTAKI et. al., 2007); 2. Serviços Baseados em Localiza-ção – mapas, anotação, informação, localização, navegação, pontos de interesse, redes sociais, jogos, acesso; 3. Sujeitos/Usuários - hu-manos; 4. Lugar/Espaço/Objeto - o contexto (local, geográfico); 5. Leis, regulações, normas.

Etapas de análise - De acordo com McBride (2000) e Brooks e Atkinson (2004) podemos adaptar as seguintes etapas para a análi-se das mídias locativas: 1. Identificar atores (humanos e não-huma-nos); 2. Investigar os actantes e ver como age cada um deles; 3. Ma-pear as interações entre esses actantes e intermediários, descrevendo as relações em termos de mediação, delegação e pontualizações; 4. Construir um modelo ou um mapa que possibilite entender as rela-ções e as conexões fortes e fracas, bem como avaliar a complexidade

16 Ver http://yellowarrow.net/index2.php, http://www.gpsdrawing.com/, http://www.tii.se/reform/projects/pps/soniccity/index.html, http://www.buenosairesso-nora.com.ar/, http://interactive.usc.edu/project/location-33/, http://cessa.music.concordia.ca/soundmap/en/, http://www.neighbornode.net/, http://www.peu-plade.fr/home/, http://www.megafone.net/BARCELONA/barcelona.php?can_actual=74&qt=7.2., http://www.imity.com, http://www.dodgeball.com/, http://www.citysense.com/, http://www.geocaching.com/, http://www.uncleroyalla-roundyou.co.uk/street.php.

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dessas interrelações; 5. Identificar irreversibilidades dos eventos e as hierarquias e diferenças de poder entre os diversos actantes. Deve-se mostrar quais as funções, as posições, quem decide, as necessidades instauradas etc.; 6. Identificar inibidores e promotores que podem surgir da tecnologia, dos usuários ou do lugar.

Esses passos, embora não sejam exaustivos, apontam para o que discutimos anteriormente e configuram-se como metas de uma cartografia de controvérsias. Vamos aplicar, de forma muito preli-minar e apenas como ilustração, algumas partes do modelo a alguns projetos a partir de seus modos de mediação.

Modo de Escrita – Realidade Aumentada. Vejamos três projetos mais populares: Layar17, Wikitude18 e Sekai Camera19. Eles inscrevem o espaço físico com informações eletrônicas e, através da tela do celular, é possível visualizar a “realidade aumentada”, ou seja, informações que se sobrepõem ao espaço físico urbano. Layar e Wikitude têm bancos de dados prontos que o usuário ativa ao apontar o dispositivo para um objeto ou direção (prédio, monumen-to, metrô etc.). Já Sekai Camera permite que qualquer pessoa possa deixar informações eletrônicas que se tornam visíveis para outros usuários em qualquer lugar do espaço urbano, sendo como um “post it” eletrônico indexados a objetos da cidade. Nos dois primeiros, vemos os modos de escrita e visibilidade e no terceiro, além destes, também o de sociabilidade. Os principais mediadores são o lugar, o banco de dados, os smart phones, as imagens e informações, as redes sem fio, o software utilizado, os usuários, o serviço oferecido (informações sobre empresas, da Wikipédia, do metrô, etc.).

Nesses projetos, a mediação e a delegação criam uma relação de escrita e leitura do espaço. Há uma narrativa especifica nesse caso, escrita eletronicamente sobre os espaços físicos que implica em formas de narrar (delegação) e de consumir (mediação). Ao res-saltar esse ou aquele objeto, com essa ou aquela informação, o siste-ma (a ser descrito para cada projeto) produz uma forma de consumo do espaço que é uma forma de produção de um lugar informatizado que destaca coisas de um fundo pelo modo de escrita e de visibili-

17 Ver http://layar.com18 Ver http://www.wikitude.com19 Ver http://sekaicamera.com

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dade. O projeto mais aberto, o Japonês Sekai Câmera, oferece for-mas de produção de informação e compartilhamento produzido pelo próprio usuário, implicando aqui também na existência do modo de sociabilidade. A produção do espaço se dá por uma narrativa inter-polada por lentes e telas, pela intenção do serviço (histórico, social, comercial, artístico), pela escolha dos lugares. Os modos de escrita, visibilidade e sociabilidade ativam relações específicas entre o su-jeito e o mundo.

Modo de Escuta – Anotações Sonoras. MurMur20, Peninsu-la Voice21 e Define sua Cidade22 são projetos que propõem uma lei-tura sonora do espaço urbano através das mídias locativas. Peninsula Voices, projeto em Bristol - GB, permite que os usuários possam ouvir histórias associadas aos locais por onde passam, contadas por pessoas que ali vivem ou viveram. O lugar é aqui não apenas o local, mas também o percurso. Ele passa a ser um “disparador” de histórias através de bancos de dados ligados aos dispositivos portáteis. O que emana dos lugares é o conteúdo criado por moradores em entrevistas. Os principais mediadores são os usuários, o software Mobile Bristol, o lugar, o dispositivo, o GPS, os contadores de história... Já MurMur é um projeto similar, canadense, que consiste em gravações sonoras deixadas por pessoas sobre determinados lugares de algumas cida-des ao redor do mundo como Toronto, São Paulo, Edimburgo, São José, entre outras. Ao passar por um lugar, o usuário vê uma placa com uma imagem e um número de telefone. Ao ligar para o número, o usuário ouve a história do lugar onde está. Já o projeto experimen-tal brasileiro “Define a Sua Cidade” (2009), usou um texto em áudio do poeta baiano do século XVII, Gregório de Matos, indexado em QR Codes espalhados por pontos turísticos de Salvador. Ao clicar no celular com um leitor de QR Code, o usuário é levado a ouvir o poema homônimo que questiona as belezas e a “alegria” da cidade. O objetivo é aqui artístico e político ao instaurar um estranhamento local e problematizar a visão idílica instituída pelos poderes públi-

20 Ver http://murmurtoronto.ca21 Ver http://www.streamarts.org.uk/projects/peninsula-voices22 O projeto foi realizado por alunos da minha disciplina optativa “Mídias Locati-

vas” (FACOM/UFBA) como trabalho final. Ver http://andrelemos.info/midialo-cativa/

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cos, principalmente pelo turismo local. A espacialização se dá pela apropriação narrativa sonora dos lugares. Ao associar a história de um com histórias de outros cria-se um vínculo social mobilizando o modo de mediação de sociabilidade e um reforço de pertencimento ao lugar, propondo uma ressignificação social, cultural e histórica.

Modo Lúdico – Jogos Locativos de Rua. “Can You See Me Now”23, do grupo britânico “Blast Theory”, foi realizado em BH durante o evento “ArteMov” de 2009. O jogo é considerado um clássico, vencedor do prêmio “Ars Electronica”24, sendo um jogo de “realidade mista” que funde jogadores on-line e no espaço urbano. Os actantes são os computadores, celulares, palms, GPS, rádio, re-des 3G e internet, o lugar, os transeuntes. A mediação e delegação se dão de acordo com as regras do jogo e o uso dos dispositivos. Os corredores no espaço urbano (os runners) têm como objetivo “pe-gar” os jogadores virtuais (que estão em qualquer lugar do mundo) quando chegam perto da representação virtual dos jogadores on-li-ne. Os runners fotografam o local real onde “está” o jogador on-line. Estes aparecem nos dispositivos móveis em um mapa representando a praça onde os runners estão. Os jogadores on-line veem os runners nos computadores como avatares correndo no mapa representativo da praça real. A espacialização se dá pela mediação dos atores-rede pelos modos de visibilidade, de acesso, de sociabilidade e lúdico. A forma lúdica de apropriação do lugar se dá na produção social do espaço como nos velhos jogos de rua (amarelinha, futebol ou “pega-pega”).

Modo de Sociabilidade – Rede Social Móvel - O Google Latitude25 ou o Foursquare26 permitem que o usuário, através de um smart phone dotado de mapas e GPS, localize amigos e lugares in-teressantes em um mapa. O serviço cria possibilidades de interação social através das tecnologias digitais, mas, diferente dos chats, o objetivo é promover uma relação de escrita sobre os lugares da ci-dade e também criar possibilidades de encontro face a face, embora não seja necessário que estes ocorram. Os modos de visibilidade e

23 Ver http://blasttheory.co.uk/bt/work_cysmn.html24 Ver http://www.aec.at/prix/winners/2003-prix-gewinner-interactive-art/ 25 Ver http://www.google.com/intl/pt-BR_ALL/mobile/latitude/26 Ver https://pt.foursquare.com

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de acesso estão presentes aqui pelo monitoramento dos conhecidos e pelo acesso a redes 3G e internet. Os atores envolvidos são os usuários, os lugares e pontos de interesse, o serviço de mapas, o GPS, às redes 3G e Wi-Fi, as ferramentas de troca de mensagens. A mediação se dá pela visibilidade e sociabilidade no espaço urba-no. A mediação e a delegação promovem uma inserção do usuário valorizando a descoberta de lugares e possibilitando encontros pre-senciais. O sistema também produz uma visão do espaço em que sociabilidade e privacidade são questionadas.

Modo de Acesso – Zonas Wi-Fi - Vou usar aqui o exemplo da zona Wi-Fi gratuita do Shopping Barra em Salvador. A praça de alimentação é dotada de uma zona Wi-Fi e é frequente ver o seu uso para acesso à internet (entretenimento, informação, estudo ou trabalho). Os mediadores são os dispositivos móveis, a rede Wi-Fi, o lugar (praça de alimentação), os serviços acessados, os usuários, as regras de uso. A modificação espacial é tão evidente que os adminis-tradores do Shopping afixaram uma placa informando que o sistema estará sempre indisponível de 12 às 14h, para que as mesas da praça não sejam ocupadas apenas pelos que buscam acesso. A mediação e a delegação implicaram em um conflito em um espaço semipúblico, conflito esse resolvido pela proibição do uso e pelo corte do sistema ou bloqueio do “território informacional”.

Modos de Visibilidade – Mapeamentos Colaborativos – Vou citar dois projetos: Wikimapa27 e Wikicrimes28. Wikimapas é um projeto de mapeamento de pontos de interesse em comunidades de baixa renda no Rio de Janeiro. WikiCrimes é um mapa de crimes em cidades brasileiras. Em ambos, os usuários anexam informação a um mapa sobre a sua cidade. Temos como actantes os mapas, os lugares da cidade, o software e os bancos de dados, os participantes, as redes e o serviço oferecido. Os modos de mediação são: escrita (alimentar os mapas), visibilidade (olhar para o espaço urbano) e sociabilidade (participação e colaboração). A produção do espaço se dá pela conjunção desses modos de mediação. O modo de escrita se dá pela produção de conteúdo com etiquetagem geográfica de infor-

27 Ver http://wikimapa.org.br28 Ver http://www.wikicrimes.org/main.html;jsessionid=CFB7391095D89531DEA

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mações (fotos, textos, vídeos) sobre o espaço. O modo de sociabili-dade se dá pela participação e colaboração, criando um sentimento de identidade, engajamento social e político. O modo de visibilidade atua como um olhar panóptico que controla e monitora o espaço. Esse regime produz também o espaço social. Vou aprofundar a dis-cussão em relação às cartografias colaborativas.

cArtogrAfiAs colAborAtivAs29

Realizamos uma investigação acerca de quatro projetos bra-sileiros baseados em mapeamento colaborativo, todos dedicados a problemas relativos à infraestrutura urbana: WikiCrimes, WikiBaru-lho30, Buracos de Fortaleza31 e Urbanias32. A fim de compreender as experiências, trazemos à tona, além da própria TAR, os conceitos de colaboração em ambientes produtivos baseados em Web 2.033, ma-peamento digital, mapeamento 2.0 e GeoWeb. A intenção é oferecer um aporte teórico-metodológico a fim de discutir os processos de colaboração no mapeamento 2.0, buscando encorajar, tendo em vis-ta a perspectiva da TAR, a reflexão sobre a mediação que elementos humanos e não-humanos desenvolvem nesses ambientes.

Diversos artigos insistem nas características de Wiki ou web 2.0 dessas cartografias. Procuramos mostrar que tais análises não chegam a detalhar nem a descrever com acuidade os papéis que mediadores não--humanos desempenham nos processos de mapeamento colaborativo. As cartografias digitais e os formatos participativos e colaborativos pos-sibilitam visualizar associações e destacar novos sentidos dos lugares.

29 Parte deste texto foi escrita com Paulo Victor Sousa, doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas, no PPGCCC/Facom/UFBA. A análise das cartogra-fias foi feita por Paulo Victor Sousa e faz parte da sua dissertação de mestrado defendida sob minha orientação.

30 Ver http://wikimapps.com/a/barulho31 Ver http://maps.google.com/maps/ms?msid=202097956151187534994.000468b

42e61d4606e18c&msa=0>32 Ver http://www.urbanias.com.br33 O termo web 2.0 surge em uma conferência, em 2004, de Tim O’Reilly, significan-

do um sistema informático de produção colaborativa da informação (O’REILLY, 2005). A web 2.0 oferece mais poder aos usuários que passam de consumidores a produtores de informação. Para discussão ver Gartner (2009) e Antoun (2008).

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As cartografias colaborativas revelam narrativas sobre luga-res e não representam um espaço de forma panorâmica ou mimé-tica. Mapas tradicionais (representacionais e miméticos) mostram infraestruturas de forma panorâmica. Mapas digitais, navegacionais, permitem a produção de camadas discursivas mostrando actantes em ação. O uso livre de mapas digitais cria oportunidades de pro-dução coletiva e colaborativa de cartografias onde pessoas comuns podem acessar e anotar posições de coisas no espaço: buracos nas ruas, relações sociais, crimes, redes Wi-Fi e 3G, histórias dos bair-ros, depoimentos sobre guerras, sons urbanos etc.

Mapas representativos (miméticos) não dizem nada sobre os lugares, são “panoramas” que fixam generalizações. Mapas digitais colaborativos abrem a perspectiva de cartografias menos represen-tativas do espaço e mais reveladoras de associações (lugares) (VID-GEN e McMASTER, 1996, 2005). Essa cartografia pode ter um papel de reconstrução da memória social, de engajamento espacial, de produção de sentido local, de reforço identitário e de produção de uma política da cidade. Ao revelarem rastros das associações, os mapas colaborativos digitais oferecem uma visão que não pode ser aprisionada por enquadramentos absolutos próprios dos mapas ana-lógicos ou do discurso generalista da dimensão espacial.

Esses mapas criados por poucos (especialistas) e para mui-tos (como os meios de massa) não revelam as redes e os actantes, não fazem as boas correlações. Eles descrevem um “espaço gené-rico” e não os “lugares” das associações. O interessante nas carto-grafias colaborativas é que elas buscam efeitos performativos das relações entre entidades e não a expressão abstrata referente a um “espaço”. Quanto mais traços e anotações entre pontos, mais senti-dos do habitar podem aparecer. Nos mapas panoramas vemos tudo, mas perdemos as articulações e conexões, as topologias. Podemos dizer que com os mapas colaborativos emerge a possibilidade de “criar o espaço no processo de viajar nele e criar narrativas dessas viagens que, simultaneamente, constroem o conhecimento” (TUR-NBULL, 2002). Ou, como diz Ingold (2000): “we know as we go, from place to place”.

Buscar associações pelos rastros deixados é fundamental para vislumbrar a importância social do lugar em detrimento de uma abstra-

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ção espacial. Assim, o “tracing of associations” (LATOUR, 2005a), que é a sociologia do “ator-rede”, pode nos ajudar a compreender di-versos fenômenos das cidades na cibercultura. Com os mapas cola-borativos, o reconhecimento de assinaturas do espaço urbano pode ir além de uma visão global da cidade. Novas formas de visibilidade dos rastros por dispositivos eletrônicos e bancos de dados pode ser uma alternativa sociológica para o estudo dos lugares do urbano.

Chama-se de mapeamento 2.0 (CRAMPTON, 2009, 2010; HAKLAY et al., 2008) o sistema de produção de cartas geográficas com as “Tecnologias de Informação Geográfica” (TIG) em conjunto com as redes telemáticas, permitindo a seus usuários uma produção de formas autônomas de escrita, as quais se realizam sobre uma base cartográfica já estabelecida – procedimento por muito tempo reser-vado aos profissionais e empresas especializadas em mapeamento. Atualmente, tais práticas constituem-se na convergência da web e as TIGs, sendo conhecida por conceitos como GeoWeb, geocolabora-ção (MacEACHEREN, BREWER, 2004; MERICSKAY, ROCHE, 2011), mapeamento colaborativo (Mac GILLAVRY, 2006) e infor-mação geográfica voluntária (GOODCHILD, 2007).

Essas atividades permitem que se criem mapas e lhes sejam anexados dados por meio de processos de colaboração on-line. Esse fenômeno tem ganhado importância pelo fato de dar aos cidadãos o poder de produzir e distribuir informações sobre o espaço urbano de forma autônoma e livremente, ao modo como encontramos no “jornalismo cidadão”, na Wikipédia, no crowdsourcing e crowdfu-ding ou nas recentes “revoluções 2.0” iniciadas em países árabes e tomando novas proporções hoje no Brasil (junho de 2013), com as manifestações em algumas capitais contra o aumento das tarifas dos transportes urbanos.

Com o mapeamento colaborativo, o espaço urbano passa a ser palco para anotações de experiências vividas por cidadãos não-es-pecialistas. Em geral, as iniciativas situam a cidade como um terri-tório contestado e plural (LEFEBVRE, 1991; CRESSWELL, 2004, FALKHEIMER e JANSSON, 2006; EK, 2006, ADAMS, 2009). O mapeamento 2.0 mostra como as novas tecnologias podem ser de grande utilidade para a compreensão daquilo que está em jogo nas cidades contemporâneas (GRAHAM e MARVIN, 1996).

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Os projetos analisados evidenciam problemas urbanos: Wi-kiCrimes realiza uma cartografia de crimes; Urbanias identifica problemas (genéricos) na cidade de São Paulo; Buracos de Forta-leza coloca em um mapa os buracos das ruas e avenidas da cidade; WikiBarulho, também em Fortaleza, o faz em relação a problemas de poluição sonora. Nosso estudo foi conduzido em duas etapas: efetuamos, a partir de um processo de observação, uma descrição detalhada da estrutura de cada projeto, como indicado pela TAR, de modo a apurar as controvérsias em torno de seus elementos constitu-tivos e; concomitante, realizamos entrevistas semiestruturadas com os organizadores de cada projeto. Apresentamos aqui uma síntese dessa pesquisa.

WikiCrimes - Estabelecido em 2007, é um site dedicado ao ma-peamento colaborativo de ocorrências criminais. Os usuários podem, sobre uma base cartográfica já estabelecida, marcar crimes alocados em diferentes categorias e obter uma visualização geral do território. Apesar de sua origem brasileira, atualmente o site dispõe de áreas car-tografadas em outros países, especialmente nas Américas e na Europa. O mapa do WikiCrimes exibe “zonas quentes” relativas aos lugares em que incidentes foram registrados. Os visitantes têm a opção de visuali-zar, avaliar e comentar a partir de um cadastro gratuito.

Urbanias - O projeto foi criado em 2009 como um portal para a promoção da cidadania e qualidade de vida para os residentes na cidade de São Paulo. Ele permite realizar a localização geográfica de problemas diversos concernentes à metrópole. Urbanias não só exibe as queixas realizadas como também as envia para as institui-ções competentes. Os problemas são mostrados inicialmente a partir de categorias como segurança, transporte, saúde pública, poluição sonora, dentre outros. As páginas internas do portal fornecem dados mais completos sobre aquele tópico, com comentários e discussões dos usuários. Para ter acesso a esses recursos, é necessário se ins-crever gratuitamente no site. Hoje um projeto da prefeitura de São Paulo cumpre também esse papel: “Mapeamento Colaborativo”34.

Buracos de Fortaleza - Criado em 2009, o projeto se propõe a ser um mapa colaborativo de problemas da malha urbana da capi-

34 Ver http://mapa.gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br

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tal do Ceará. Mesmo tendo seu escopo limitado à cidade de Fortale-za, atualmente é possível ver uma extensão do mapeamento a outros municípios do estado. A iniciativa nasceu da insatisfação de alguns blogueiros locais que, cansados com a situação das ruas e avenidas da cidade (repletas de buracos), deram início a discussões informais no Twitter e em seus blogs pessoais, originando, a partir de então, o mapa hospedado no Google Maps (o projeto não possui um site específico). Dentre os exemplos aqui examinados, este é o mais descentralizado de todos – tanto que, para participar, basta possuir uma conta Google, disponível gratuitamente.

WikiBarulho - Mapa colaborativo criado em 2009 a par-tir da iniciativa do jornal “O Povo”, de Fortaleza. O projeto está alocado no site do jornal e utiliza outro serviço, o WikiMaps, para o gerenciamento dos dados. Tem por objetivo exibir zonas de ocorrência de poluição sonora. As informações são detalhadas com descrições do problema, data de criação, nome do reclamante etc. Para realizar denúncias, há duas opções: enviando um e-mail à redação do veículo ou criando uma conta gratuita no WikiMaps. Dentre os casos aqui presentes, este é o mais centralizado. As in-formações são controladas e devem passar pela mediação da equi-pe responsável do jornal.

Todos os projetos são caracterizados pelo mapeamento cola-borativo de problemas concernentes à infraestrutura e a segurança urbana, utilizando a base cartográfica fornecida pelo Google Maps. Eles são acessíveis ao público de forma livre e aberta, sem exigên-cias de condições especiais de participação (ser um expert ou mesmo residente das cidades). Em geral, as pessoas que desejem participar não precisam mais que efetuar um cadastro, após o qual as ferramen-tas de “escrita” sobre o mapa ficam disponíveis.

Quanto à gestão da informação, a maioria dos projetos efetua uma baixa mediação no que tange ao controle da qualidade (com ex-ceção de Buracos de Fortaleza, que não possui nada do tipo). Igual-mente, todos os projetos são hospedados em algum website próprio (exceto, mais uma vez, Buracos de Fortaleza, que se encontra di-retamente no Google Maps). Em relação a aplicativos para smart phones, WikiCrimes é o único a ter desenvolvido um, tanto para sistemas iPhone como Android.

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As iniciativas não realizam monitoramento ou tratamento de dados quanto às práticas dos usuários (quantidades, origem de tráfe-go, informações demográficas etc.). Urbanias não possui condições estruturais ou econômicas. WikiBarulho se encontra inserido em uma empresa jornalística onde não é tratado como assunto priori-tário. WikiCrimes é o único a oferecer uma seção específica com dados estatísticos, porém bastante sucinta.

À época da pesquisa e das entrevistas35, constatamos que, ao todo, WikiCrimes exibia cerca de 250.000 problemas regis-trados em todo o globo, dos quais quase 15.000 são do Brasil (os dados mostrados refletem sempre as ocorrências dos últimos seis meses). Buracos de Fortaleza dispunha de cerca de 960 proble-mas mapeados, a maioria realizada em 2009. WikiBarulho pos-suía cerca de 340 participantes e 320 denúncias, sendo o único a exibir os nomes dos participantes (embora a maior parte das contas pareça estar inativa). Urbanias, por sua vez, não fornece dados públicos.

Os quatro projetos foram criados num momento de experi-mentação e popularização dos processos de mapeamento colabo-rativo pelo mundo, como se percebe não somente pelo período de seus lançamentos (três em 2009 e um em 2007), mas também pelos testemunhos das pessoas entrevistadas. Ao longo das conversas, os criadores deixaram clara a intenção de favorecer a expansão da par-ticipação cidadã, cada um, à sua maneira e dentro de seus próprios limites (técnicos ou econômicos), buscando criar um canal para a expressão do descontentamento dos cidadãos em relação aos proble-mas de infraestrutura de suas cidades. As iniciativas oferecem ferra-mentas baratas e colaborativas de visualização, o que pode ajudar os citadãos a solicitar melhorias às autoridades responsáveis. É possí-vel dizer que os projetos de mapeamento colaborativo que utilizam a GeoWeb (TIG mais web) são instrumentos digitais de criação de formas de participação social.

35 A investigação em profundidade foi realizada para a dissertação do, na época, mestrando Paulo Victor Sousa, sob minha orientação em 2012. Não apresentamos os detalhes aqui. O trabalho e o mérito da análise são de Paulo Victor Sousa.

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GeoWeb

A expansão das mídias móveis e dos recursos de geolocaliza-ção denota o desenvolvimento e a difusão de tecnologias e serviços baseados na mobilidade e localização, proporcionando aos cidadãos a oportunidade de produzir, consumir e distribuir informações sobre uma dada base cartográfica. O objetivo é criar uma relação dos cida-dãos com o espaço urbano, o que pode ter importantes consequên-cias culturais, econômicas, comunitárias e políticas contra a anomia das metrópoles contemporâneas.

Trata-se, como afirmamos, de uma “virada espacial” no uso de mídias digitais. Inicialmente havia o ciberespaço como um mun-do alternativo ao “mundo real”. Negroponte (1995) falava, naquele momento, da substituição de átomos por bits. Atualmente, pode-se dizer, a partir de Russel (1999), que o ciberespaço encontra-se “pin-gando” sobre o mundo real. Os novos dispositivos e serviços ba-seados em mobilidade e localização mostram que a dinâmica atual não é aquela prevista por Negroponte, mas exatamente o contrário: os bits estão migrando para os dispositivos portáteis (smart pho-nes, tablets, GPS) e o incremento do uso de serviços baseados em mobilidade e localização demonstram a nova dimensão da cibercultura (JANSSON, 2006; EK, 2006, ADAMS, 2009; NOVA, 2009; LEMOS, 2010a, 2010b).

O mapeamento colaborativo faz parte dessa “virada espacial”. Trata-se de um período marcado não apenas pela forte relação entre a Internet e o espaço físico, mas também pelos sistemas que incen-tivam a participação aberta e a produção e distribuição de informa-ção sobre os mais diversos formatos (CRAMPTON, 2009). Haklay, Singleton e Parker (2008) dão a essa época o nome de GeoWeb, apontando as suas origens em meados dos anos 1990 com o surgi-mento do primeiro software para consulta cartográfica na Internet – o que veio a servir de base àquilo que chamaram de mapeamento 2.0. Tal história passa pela introdução de ferramentas como Xerox PARC MapView, de 1993 (HAKLAY, SINGLETON, PARKER, 2008), MapQuest36, de 1996, Google Earth37 e Google Maps, de

36 Ver http://www.mapquest.com37 Ver http://www.earth.google.com

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2005 (CRAMPTON, 2009, 2010; FARMAN, 2010). A padroniza-ção dos procedimentos técnicos (tais como KML38 e GeoRSS39) e a liberação do uso civil do GPS fizeram nascer um ambiente decisivo para a “wikificação” dos SIGs (Sistemas de Informação Geográfica) (SUI, 2008).

A história da geocolaboração é necessária para que se com-preenda a mudança (social, cultural, técnica e econômica) do papel da cartografia. Desde o século XVI, os mapas são instrumentos de poder, dominados por grupos políticos e por burocratas técnicos. Embora as bases de dados cartográficos sejam sempre produzidas por especialistas, a utilização dos mapas modificou-se com o adven-to de redes telemáticas e com a web 2.0. Essa mudança faz dos leito-res e usuários não apenas consumidores, mas produtores de discurso sobre o espaço.

Podemos aqui estabelecer um paralelo entre a dinâmica dos meios de massa, que caracteriza os mapas tradicionais (analógi-cos, feitos por cartógrafos profissionais, cuja emissão é controla-da e cujos utilizadores não passam de leitores), e as TIG e bases cartográficas, que podem ser apropriadas pelos usuários a partir de uma comunicação transversal, aberta e colaborativa. Estes não são unicamente leitores, mas produtores e distribuidores de informações cartográficas. O mapeamento 2.0 criou um modo de produzir escri-tas sobre o espaço disponível a todos aqueles que possuam acesso à Internet. Trata-se de um momento de abertura à participação e à colaboração. Se os mapas podem ser considerados meios (uma men-sagem, um canal, um emissor e um receptor), aqueles tradicionais estão para as mídias de massa, enquanto os digitais, para as mídias “pós-massivas” (LEMOS, 2010a, 2010b).

Como mostram Camacho-Hübner, Latour e November (2010), o mapa digital é uma plataforma de navegação que ultra-passa o caráter de indicações territoriais fixas. Os autores põem em evidência quatro características desse modelo: a) o mapa digital se assemelha a um banco de dados; b) para além de visualização, o pró-prio mapa se apresenta como uma interface para tratar distintos da-

38 Keyhole Markup Language. Keyhole Inc. é a empresa que criou as primeiras ver-sões do Google Earth.

39 Informação geográficas atribuídas ao arquivos RSS (Really Simples Syndication)

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dos; c) é também uma interface de interação mútua entre diferentes usuários; d) por ser manipulável e observável em camadas, o mapa digital pode resultar em diferentes leituras.

As noções de apropriação, adaptação, variabilidade e ha-cking são subjacentes à própria dinâmica cultural da cibercultura (LEMOS, 2002; LÉVY, 1997; BELL 2011; CASTELLS, 1996). As TIC criam a possibilidade de produção e distribuição de informa-ção menos centralizadas do que podem fazer os meios de massa, fornecendo ferramentas que ajudam na apropriação social das mí-dias. Elas são utilitários potenciais a serviço da promoção social, inovações técnicas e econômicas, renovação cultural e transforma-ções políticas. Essas ideias constituem a fundação do mapeamento colaborativo atual (Mac GILLAVRY, 2006; MacEACHEREN e BREWER, 2004).

Ambientes de Colaboração

Os projetos de mapeamento colaborativo possuem suas ori-gens na emergência daquilo que se chama por “Web 2.0”, cujo fun-cionamento se dá por meio da participação e da colaboração (AN-TOUN, 2008; BENKLER, 2002; BENKLER e NISSENBAUM, 2006; HAYTHORNTHWAITE, 2009). Esse cenário é marcado pelo surgimento de ferramentas tecnológicas digitais de escrita coletiva (os blogs, as wikis40) que possuem a capacidade de integrar diversos programas (mashups) e uma grande série de serviços. Podemos ver aqui três atributos das TIC: a modularidade (um projeto pode ser divisível em elementos menores); a granularidade (os módulos são pequenos e leves); e o baixo custo de integração.

A marca de diferenciação da web 2.0 é precisamente a aten-ção e a valorização da participação de seus usuários, o que vem a ca-racterizar o fenômeno de crowdsourcing (HOWE, 2006). O usuário se torna um agente ativo e importante nos ambientes on-line cujas particularidades são deliberadamente fundadas sobre a contribuição

40 Wiki designa os ambientes cuja edição da informação é simplificada e descen-tralizada, tornando-se hoje quase um sinônimo para sistemas colaborativos. Ela começa a ser usada em 1990 no domínio da informática on-line (LEUF e CUN-NINGHAM, 2001).

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de seus membros. Nesse contexto, o internauta é tratado como um indivíduo que possui não somente o poder de agir (produzindo, dis-tribuindo e consumindo informação), mas também de manter e de fazer progredir os ambientes dos quais participa. Os sites do tipo “wiki”, por exemplo, são um exemplo de sistemas de edição cole-tiva. São gratuitos, simples e largamente dirigidos para a dimensão colaborativa e comunitária.

Por consequência, em ambientes colaborativos on-line, como no caso da “cartografia 2.0”, a informação é tratada como um bem público ou “não-rival”, um commons. Como diz Benkler (2007), as mudanças de cenário no domínio da produção e da distribuição de informação têm os commons por princípio norteador, o que quer dizer que a posse de dados não implica na perda ou impossibilidade de manuseio por outro autor. Uma vez que um usuário tem acesso a ferramentas de produção baseadas em commons, os indivíduos e seus grupos possuem também os meios de cooperar. Essa forma de trabalho coletivo cria bases para trocas de dados descentralizados, livres e mais autônomas. É o caso do mapeamento colaborativo.

TAR e Processos de Colaboração

Clay Shirky (2010), ao discorrer sobre a criatividade em am-bientes on-line, argumenta que estamos num momento de transfor-mação: de passividade face às oligarquias e aos monopólios a um estado ativo de produção e participação. Shirky propõe pensar no excedente (surplus) como a palavra-chave para compreender a co-laboração atual. A produção em grande escala e a distribuição em massa de produtos e serviços, característicos do período pós-revo-lução industrial, levou-nos a uma situação passiva. Na sociedade industrializada, a produção é uma atividade relegada a certos setores validados por um circuito fechado de autolegitimação. As expres-sões da “cultura participativa”, sustenta Shirky, podem ser entendi-das como o estado atual desse excedente.

O autor traz várias proposições sobre a cultura de participa-ção. O primeiro ponto se refere aos meios, que devem ser compre-endidos não somente como as mídias, mas também em relação às condições, os recursos e os dispositivos utilizados para a ação. Des-

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sa forma, um objeto – um fórum on-line, por exemplo – pode re-presentar um papel crucial para a estruturação de um dado contexto de colaboração. A questão do acesso aos recursos, por sua vez, está fortemente ligada aos meios. Não é o caso de haver um uso preesta-belecido. Como explica Shirky (2010, s/p), “a tecnologia possibilita tais comportamentos, mas não os causa”. É precisamente a sinergia (entre os meios, as motivações e as oportunidades) que criam um espaço apropriado para os projetos de colaboração. No que concer-ne aos ambientes colaborativos on-line, particularmente quanto ao mapeamento colaborativo, podemos ver pelo menos dois elementos importantes:

a) Existem estruturas prontas como aquelas usadas para a gestão de conteúdo por meio de software, tais como GeoServer, Ge-oCommons, Umapper, WikiMapps e Ushahidi41. Devemos também lembrar que há bases de dados cartográficos já prontas para uso, a saber, Google Maps, Bing Maps ou OpenStreetMap42.

b) A ação se desenrola no seio de uma rede: a contribuição de uma pessoa entra num conjunto de conexões formadas por outros indivíduos, instituições e dispositivos tecnológicos. Os meios (de produção, propagação, integração etc.) se ligam às oportunidades e às motivações dos indivíduos para favorecer a articulação e a cola-boração.

Embora não cite diretamente, podemos notar em Shirky ecos da TAR. A ideia de meio em Shirky pode ser vista como a de rede – a qual é formada pelas associações entre os atores humanos e não--humanos. Para Shirky (2010, s/p), “a transformação real [desse cenário] vem de nossa compreensão de que o surplus cria opor-tunidades inéditas, ou melhor, de que ele cria uma oportunidade sem precedentes para que nós criemos essas oportunidades uns para os outros”.

A TAR descreve e observa as relações entre os mediadores humanos e não-humanos na execução de uma ação particular. Num sistema de mapeamento colaborativo, por exemplo, podemos dizer

41 Ver http://geoserver.org, http://geocommons.com, http://www.umapper.com, http://http://ushahidi.com/ e http://wikimapps.com

42 Ver http://maps.google.com, http://www.bing.com/maps e http://http://www.openstreetmap.org

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que os criadores, os utilizadores, o software, as regras, as intenções e as ideologias são todos actantes importantes na ação e devem ser considerados como peças-chave imbricadas numa rede de colabo-ração. Trata-se de pensar a colaboração como uma rede na qual os actantes não-humanos possuem um papel relevante.

E cada associação é particular e irredutível. Um objeto é sempre uma rede de usos e intenções diversas (GIBSON, 1977). Não há prescrição que não seja confrontada ao trabalho dos actan-tes em associação (LATOUR, 1994b). Para os projetos de mapea-mento colaborativo, os actantes humanos e não-humanos atuam de modo decisivo nos processos de tradução, delegação e formação de caixas-pretas. A TAR nos permite compreender os projetos de cola-boração on-line: o usuário que trabalha sobre um mapa e opera um programa de gestão de base de dados realiza operações em torno de links dentre as ferramentas de visualização.

A perspectiva sociológica da TAR serve, acima de tudo, como um ponto de partida para pôr em evidência duas constatações, as quais devem ser levadas em consideração em qualquer projeto de colaboração, especialmente aqueles que possuem as TIC como base: a) Os actantes humanos e não-humanos formam redes geran-do associações específicas. Como vimos, eles também são redes em si e entram nos processos de mediação, delegação e formação de caixas-pretas. Para a colaboração on-line, encontramos traduções entre os sujeitos e as diversas ferramentas (computadores, a Inter-net, o software utilizado, os protocolos de troca de arquivo etc.); b) Não há hierarquias prévias. Os actantes têm poderes distintos a cada associação criada. Outros serão simples intermediários. Numa dada associação, os actantes humanos e não-humanos possuem papeis di-ferentes a fim de conduzirem aquela associação ao êxito.

Para Benkler e Nissembaum (2006), as motivações para a participação são questões referentes aos sujeitos. Eles mostram que, na atuação em ambientes colaborativos baseados na Web, encon-tramos certos comportamentos sociais que refletem o altruísmo: a autonomia, a liberdade, a criatividade, a generosidade, a benevolên-cia, a amizade, a cooperação, dentre outros. Não estão errados, mas o peso da explicação está claramente sobre a intenção do sujeito humano em detrimento de actantes não-humanos. Os objetos são

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“ferramentas”, “meios”, “intermediários”. O altruísmo, aqui, não é outra coisa senão a força que produz a existência do grupo, bem como a que atua na mobilização de novos membros a se engajarem na colaboração. Clay Shirky (2010) também fala da natureza intrín-seca da ação participativa (as motivações pessoais) ou extrínsecas (as recompensas) dos sujeitos. Sucintas, e por vezes vagas, as duas explicações não mostram a complexidade das redes nem das cone-xões feitas e desfeitas ao longo das associações em jogo nos projetos colaborativos.

Essas visões certamente são corretas, mas também bastante genéricas. Nosso objetivo aqui é oferecer ao leitor uma análise com-plementar às de Benkler, Nissembaum e Shirky – que são centradas sobre o eixo do sujeito humano. Com base na pesquisa de quatro projetos de mapeamento colaborativo brasileiros, podemos dizer que um dos actantes mais importantes e visíveis é precisamente o mapa digital. Todos os projetos de cartografia são, em certa medida, uma realização coletiva dada a dependência mútua entre numerosos profissionais e usuários. Mas os mapas digitais se tornaram um ob-jeto cultural a fugirem das mãos de cartógrafos profissionais e das instituições oficiais. Maleável e disponível como um bem não-rival e acessível como uma bases de dados abertos, o mapa digital é um objeto para a leitura e escrita do espaço urbano a partir da cultura participativa (a web 2.0).

É igualmente importante sinalizar que as interfaces facilitam as iniciativas. Cada um à sua maneira, os sistemas de mapeamen-to colaborativo colocam à disposição dos usuários ferramentas que permitem anotações e edição de informação sobre a base cartográ-fica utilizada (o que reforça, uma vez mais, a capacidade de tratar o mapa como uma base de dados composta por várias camadas de informação). Trata-se de um processo no qual os sujeitos (huma-nos) deixam pegadas semânticas, as quais geram a dimensão local para além da localização dos lugares. Por sua vez, as máquinas e os sistemas de tratamento da informação manipulam os dados a fim de criar interfaces convidativas à colaboração. Sem esses mediado-res não-humanos não há cartografia colaborativa. É justamente aqui que reside a colaboração, na circulação da agência entre humanos e não-humanos. Estão em jogo as intenções altruístas dos sujeitos,

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as máquinas, os mapas digitais e as interfaces que fazem parte dos projetos. E há também a rede entre os atores-redes, evidenciada em cada projeto a partir das associações particulares entre os actantes. A colaboração não é aquilo que emerge do altruísmo, nem aquilo que está situado nos mapas digitais ou nos sistemas on-line, mas a associação que se faz nessa conjuntura e circulação da agência.

Os ambientes de mapeamento colaborativo são, a um só tem-po, dispersos e centralizados. Dispersos, pela capacidade de fun-cionar independentemente da base cartográfica adotada (a maioria usa o Google Maps). A possibilidade técnica de troca está sempre presente, sem a necessidade de se lidar com disposições legais. De outra parte, os ambientes colaborativos possuem também um papel de centralização, na medida em que catalisam uma série de vetores de participação, caracterizando projetos visíveis e numericamente importantes.

É precisamente a reunião, a associação, que cria a participação, a colaboração e a coletividade. Não se trata de um movimento pla-nificado de modo “top-down”, típico da comunicação de massa, que engendra a participação dos usuários (WikiBarulho, mantido por um jornal - um meio massivo - é, de modo bastante sintomático, o projeto que incorporou o menor número de participação pelos cidadãos). É preciso observar como a natureza distribuída desses ambientes produz condições capazes de iniciar e manter a produção colaborativa.

As bases sociotécnicas foram importantes para o desenvolvi-mento de mapas colaborativos (a cartografia digital, os sistemas de gestão de dados, as ferramentas e aplicações). A associação – a vida social – faz-se pela presença de conexões em rede entre os usuários e as máquinas, o software, as interfaces, as bases de dados. Fazem--se, portanto, pelos actantes não-humanos que amplificam as for-mas de colaboração. Nessa análise de mapeamentos colaborativos, podemos dizer que a visualização dos problemas de infraestrutura urbana é desencadeada pela associação entre elementos humanos e não-humanos. Os papéis das TIC e dos serviços de geolocalização são postos em evidência tanto como mediadores, quanto como ins-trumentos de delegação pelos indivíduos.

Para terminar este capítulo vou analisar a “cidade algoritmo” e as formas de inserção no espaço-rede. Ela é a cidade da cibercultu-

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ra, dos mapas digitais colaborativos, das mídias de geolocalização, da internet das coisas. Compreender a cidade em sua nova dimensão é levar a sério o papel dos dados, das coisas eletrônicas no nosso quotidiano.

cidAde Algoritmo

A city doesn’t consist of a general, stable frame in which private actions are nestled, like doves in a dovecote or tombs in a cemetery, but of a criss--crossing of stars, the branches of which serve as supports, obstacles, op-portunities or décor for one another, unless, as is usually the case, they never meet, even though each of them is supposed to cover the entire city

Bruno Latour e Emilie Hermant (1988, p. 44)

Na nossa experiência de inserção no espaço urbano, agimos por aderência a determinados locais, por hábitos de circulação que se constituem como verdadeiras “assinaturas espaciais”, pontuais, por agregação aqui e acolá. A inserção se dá, também, por uma flutuação panorâmica no que ela tem de dimensão invisível, genérica, abstra-ta. Moro em Salvador, mas, na realidade, “assino” apenas algumas partes dela, e são essas partes que fazem sentido no meu dia-a-dia.

Tenho, no entanto, para sobreviver, uma visão global, pano-râmica e abstrata que me informa sobre a sua invisibilidade, que me coloca na generalização confortável, que me permite navegar não mais em um insuportável vazio de sentido (as minhas pequenas assinaturas), mas no clichê que nos une em uma visão generalis-ta, mas compartilhada: Salvador. O espaço aqui se constrói como um discurso globalizante (turístico, econômico, demográfico, polí-tico), enquanto o lugar se faz na experiência quotidiana das associa-ções. É o espaço, global, artificial, construído, que torna as cidades invisíveis.

As cidades são cada vez mais, cidades de algoritmos, cidades de dados, de software. Pensar o urbano é pensar a cidade que se faz cada vez mais por influência, mediação e tradução de não-humanos digitais em programas, redes telemáticas e bancos de dados. Para compreender o urbano, devemos, de agora em diante, prestar aten-

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ção nessa nova forma de comunicação das coisas. A comunidade da urbe vai se fazer, mais e mais, a partir dessas novas coisas que nos “colocam em causa”.

Como vimos, o mais interessante é olhar não para o espaço genérico e abstrato da cidade, para a sua topografia (lugares em uma infraestrutura), mas para as associações que fazem a cidade e que se dão em uma lógica da relação dos lugares, ou a sua “topologia”. Para ampliar os discursos sobre o urbano, precisamos levar em conta e pensar as “coisas digitais”, os dados, os algoritmos.

Pense nas ações, hoje bem comuns, como a que vivi recente-mente. Chego ao hotel em uma cidade que não conheço bem. Per-gunto à recepcionista onde há um lugar para tomar um café perto, já que não quero me aventurar nesse momento pela cidade. Ela me diz que há o bar do hotel, mas que não sabe informar sobre cafés por perto. Talvez ela trabalhe longe de casa e apenas passe pelos lugares sem prestar muita atenção: de casa, de ônibus, direto para o trabalho e vice-versa. Assinamos alguns lugares da cidade e o resto é espaço genérico, apagado pelos deslocamentos, que só serve aos gestores urbanos. Lanço então o Foursquare e vejo muitos lugares sendo sugeridos pelos usuários. Essas informações foram deixadas ou por “locais”, ou por turistas que tiveram experiências em alguns desses estabelecimentos.

Escolho um dos locais a partir das recomendações (o que eu buscava com a recepcionista do hotel e não consegui) e vou. Para ir ao destino, abro o Google Maps para saber onde fica e chegar usan-do o GPS do dispositivo sem muitos desvios. De lá quero pegar um taxi para ir a outro lugar. Antes vejo os deslocamentos dos ônibus e do metrô em tempo real pelos mapas para ver se vou encarar um transporte público ou se opto pelo taxi. Com pressa, escolho o taxi, mas me dizem para ter cuidado com os taxistas que não são muito confiáveis. Uso assim o TaxiBeat, onde posso ver a reputação de alguns motoristas e os serviços oferecidos no carro (mais uma vez os “locais” me dando dicas sem saber mesmo que eu existo ou quando estou acessando a informação). Escolho um, mais uma vez baseado no que me dizem, e chamo o taxi. Acompanho em tempo real o deslocamento do automóvel pelo mapa. Ele chega e me leva para o lugar escolhido. O café estava bom. O taxista honesto e simpático.

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Ao chegar ao meu novo destino, uso a rede Wi-Fi gratuita e disponível do lugar (uma universidade, mas, agora, um lugar infor-macional com novos significados, assim como passam a ter novos significados hotéis, cafés, restaurantes com a oferta de acesso à in-ternet) para consultar alguns sites. Vejo que no portal do governo local há uma seção com dados abertos onde empresas e usuários comuns podem criar aplicativos que permitem a todos os cidadãos monitorar o ar, fornecer dados sobre ruído, ver onde há bicicletários, informar sobre problemas como coleta de lixo, buracos na pista ou quaisquer outras ocorrências. Há também um centro de controle da cidade que monitora todos os seus fluxos (energia elétrica, limpeza urbana, meteorologia, pontes, metrô, estradas de ferro…). Aqui os gestores controlam, como um “big brother”, tudo o que acontece na cidade. Essa cidade é uma cidade como todas as outras, com hu-manos e não-humanos em mediação constante. Mas ela é, cada vez mais, uma cidade de algoritmos. Ela não é nenhuma cidade de ficção científica, mas uma colagem real de algumas (Salvador, New York, Rio, Paris, São Paulo, São Francisco e Londres).

Este exemplo mostra como os dados nos permitem colocar em causa muitas coisas: o uso do espaço urbano (como no caso da recepcionista que nada conhecia do lugar onde trabalha), os proble-mas de infraestrutura (transporte urbano e violência e confiabilidade como no caso do uso do Google Maps e do TaxiBeat), a participação cidadã nas novas formas de “escrita e leitura” dos lugares (como o uso de dados abertos para deixar rastros e ler dados sobre violên-cia, transportes públicos, poluição sonora e do ar…), o governo pelo monitoramento, controle e vigilância dos fluxos (como no centro de operações da cidade). Para compreendermos as cidades contempo-râneas devemos definitivamente colocar no seu balanço energético e social as coisas eletrônicas, os fluxos em redes, os dados, os sen-sores, as câmeras, os aplicativos, os dispositivos e todos os não--humanos que nos fazem fazer coisas.

Nunca a comunicação das coisas foi tão importante para com-preender o espaço urbano e a política. Elas (as coisas) sempre estive-ram presentes. Mas hoje, essa influência aumenta já que tudo passa a ter característica infocomunicacional. Assim, eles devem nos co-locar em causa e fazer com que tenhamos outra postura em relação

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ao lugar onde vivemos. Latour tem razão quando fala que o que interessa não são os “matters of facts” (os objetos neles mesmos, os dados puros), mas os “matters of concern” (as coisas como causas, o que nos interpela, nos provoca e nos faz agir politicamente).

Hoje, os algoritmos nas cidades agem em quatro grandes áre-as: na gestão do espaço de fluxos, na comunidade de dados abertos, nas narrativas do espaço (mapas, escritas e anotações urbanas), e na internet das coisas (com objetos mediando outros com pouca ação humana). Como propõem Amin e Thrift (2002), temos definitiva-mente que “reimaginar o urbano” considerando a “cidade-algorit-mo”. Eles afirmam que grande parte da teoria urbana contemporânea baseia-se na nostalgia das relações humanas, no face a face, limitan-do a visão da cidade. Ela não é mais a cidade em que vivemos. Por isso, os autores propõem uma sociologia dos fluxos, dos algoritmos, das coisas, ou seja, da presença de não-humanos para reconstituir debates suprimidos do urbanismo.

A mudança nas coisas e objetos faz com que objetos do quo-tidiano ganhem qualidades infocomunicacionais, fazendo com que eles façam outras coisas e façam outros objetos fazerem outras coi-sas... Eles geram novas associações entre humanos e não-humanos e essa nova associação traz à baila uma dimensão política, da polis, do comum. Muda o comum, o comunitário, o comunicacional da cida-de que deve trazer para o debate, as coisas, os dados, os algoritmos. Só colocando os não-humanos na comunidade podemos politizar a urbe com aquilo que diariamente nos concerne.

Trata-se, como dissemos no início, de ver as associações e não o espaço abstrato, de olhar o que se forma na relação entre as coisas. Não é como pensam os físicos que tomam a consequência como causa quando afirmam que: “corpos podem ocupar qualquer lugar no espa-ço”. O espaço é, como vimos, justamente o que vai sendo criado pelo movimento entre coisas, lugares e corpos, e não o que espera, como uma dádiva, pela sua ocupação. O espaço é a consequência e não a causa do arranjo dos corpos. Se pensarmos assim a urbe, podemos ver as associações de humanos e não-humanos que nos concernem nas redes que vão se formando, constituindo o “espaço-rede”.

É interessante ver como um mapa de uma cidade desconheci-da não diz muito sobre a cidade. Ao olhar esse mapa, não sabemos

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nada sobre ela. Ele definitivamente revela apenas a “extensão” entre as coisas, sua infraestrutura, seu “espaço” topográfico em uma es-cala definida por convenção. Nada de sua lógica relacional aparece, não sabemos onde há morte, violência, falta de luz, água ou sanea-mento básico, a não ser que tenhamos mapas temáticos específicos. Os mapas representativos não revelam os actantes, não fazem corre-lações, não nos permite ver as redes. Eles falam do “espaço” e não dos “lugares”.

O interessante nas cartografias colaborativas, como vimos, é que elas buscam efeitos performativos das relações entre entidades e não a expressão abstrata referente a um contexto ou “espaço” ge-ral. Quanto mais traços e anotações entre pontos (ação topológica), mais sentidos do habitar podem aparecer. No projeto “Paris, Ville Invisible”, Latour e Hermant (1988) exploram, em textos e fotos, a “cidade-luz”. Paris é uma cidade tida como uma das mais belas, amadas e visitadas, mas, e por isso mesmo, continua impenetrável, vista de forma panorâmica e abstrata. É uma cidade, por assim dizer, invisível, “encaixapretada” em seus mais diversos clichês. É preciso viver lá para conhecer os lugares que o morador assina. Afirmam os autores:

Paris, the City of Light, so open to the gaze of artists and tourists, so often photographed, has been the subject of so many glossy books, that we tend to forget the problems of thousands of engineers, technicians, civil servants, inhabitants and shopkeepers in making it visible. The aim of this sociologi-cal opera is to wander through the city, in texts and images, exploring some of the reasons why it cannot be captured at a glance. (…)

Como o espaço abstrato e genérico, o imaginário global de uma cidade nada mais é do que uma forma de torná-la invisível, de transcendê-la em um panorama que mostra tudo, mas que nada re-vela. O que é Paris, a “cidade-luz”, Nova York, a que nunca dorme, Salvador, a cidade da alegria, Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa, a não ser denominações de um panorama que as deixam pairar na invisibilidade genérica? São caixas-pretas que estabilizam as redes que as formam. Contrariamente, os rastros digitais das cidades dos algoritmos, podem ajudar a revelar as caóticas navegações e as flui-das associações pelo vivido. Para Latour e Hermant (1988):

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Our photographic exploration takes us first to places usually hidden from passers-by, in which the countless techniques making Parisians’ lives pos-sible are elaborated (water services, police force, ring road: various “oli-gopticons” from which the city is seen in its entirety). This helps us to grasp the importance of ordinary objects, starting with the street furniture cons-tituting part of inhabitants’ daily environment and enabling them to move about in the city without losing their way. It also makes us attentive to prac-tical problems posed by the coexistence of such large numbers of people on such a small surface area. All these unusual visits may eventually enable us to take a new look at a more theoretical question on the nature of the social link and on the very particular ways in which society remains elusive. We often tend to contrast real and virtual, hard urban reality and electronic uto-pias. This work tries to show that real cities have a lot in common with Italo Calvino’s “invisible cities”. As congested, saturated and asphyxiated as it may be, in the invisible city of Paris we may learn to breathe more easily, on condition that we alter our social theory.

Podemos, pelo uso dos algoritmos, constatar que agimos no espaço urbano por aderência a determinados locais, por hábitos de circulação, por agregação aqui e acolá. Como no exemplo citado, no qual podemos aferir que a recepcionista do hotel, provavelmente, mora em outro bairro e apenas assina partes da cidade como entrada e saída do trabalho, a nossa inserção no espaço abstrato onde vive-mos se dá, também, por essa flutuação panorâmica no que ela tem de dimensão invisível, logo genérica e abstrata. Ou seja, estamos não no vazio composto por relação entre lugares (no entanto, é isso que é real!), mas em uma cidade delimitada por fronteiras abstratas e reforçada por clichês que fecham os lugares em uma caixa-preta.

Os clichês servem para compor esse “espaço”. Ele é uma caixa-preta que envelopa todos os lugares, como se os lugares esti-vessem nele. Mas, de novo, tomamos a consequência como causa. O espaço aqui se constrói como um discurso globalizante, ficção abstrata, mas tão forte que acreditamos e levamos a sério a ponto de tomarmos ele como causa. Mas o que temos mesmo são os lugares, suas dinâmicas, eventos e fluxos, que se fazem na experiência quoti-diana em suas mais diversas associações. Os lugares compõem redes dinâmicas que, consequentemente, criaram o espaço, o espaço-rede, como vimos.

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É o espaço, global, artificial, construído, que torna as cidades invisíveis, inexistentes, mas que acreditamos existir. Criamos leis para reforçar essa ficção: regras, normas, taxas como o IPTU, deli-mitadas por fronteiras abstratas e genéricas. Vejam como uma ficção pode ser um poderoso actante. Uma ficção bem construída que age como mediadores bem reais que nos fazem fazer coisas, incorporar coisas (bairrismo, por exemplo) e aderir às suas constituições.

As cidades, essas obras de ficção, só são visíveis nos lugares e nos espaçamentos, no imaginário panorâmico, abstrato e urbanís-tico, mas, na realidade, são todas invisíveis (mais uma vez a escala é ficção), sendo apenas experimentadas, navegando-as, no corpo a corpo com o construído. O que pode nos revelar o social são os rastros deixados nos objetos, corpos e lugares, nas associações que deixam os actantes falarem para além de uma sociologia crítica que remete os actantes a cadeias forçadas de causas e efeitos determina-dos a priori.

Podemos redescobrir as cidades como cidades-algoritmo. Por exemplo, o projeto “Invisible City” mostra rastros associativos co-municacionais de usuários do Twitter em Manhattan, criando uma visualização dos mesmos (uma topologia) como uma topografia na cidade, como uma ideografia dinâmica das associações comunica-cionais vinculadas a um espaço urbano concreto. “Invisible City” torna visível o invisível da comunicação mediada pela rede social Twitter nas grandes cidades. A dinâmica das redes sociais digitais revelam aspectos do espaço urbano, o que os autores chamam de “city of the mind”:

Invisible Cities maps information from one realm - online social networks – to another: an immersive, three-dimensional space. In doing so, the piece creates a parallel experience to the physical urban environment. The inter-play between the aggregate and the real-time recreates the kind of dynamics present within the physical world, where the city is both a vessel for _and a product of human activity. (…) Aggregate activity is reflected in the under-lying terrain: over time, the landscape warps as data is accrued, creating hills and valleys representing areas with high and low densities of data. In the piece, nodes are connected by narrative threads, based on themes emerging from the overlaid information. These pathways create dense meta-networks of meaning, blanketing the terrain and connecting disparate areas of the city.

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Imagine agora andar por cidades atuais, mas tendo o seu des-locamento projetado em mapas desse mesmo espaço no passado, ser um “flâneur” no túnel do tempo. Não seria interessante ter o confronto do passado e do presente no momento mesmo da navega-ção pelo espaço urbano? O embate entre o invisível do passado e o destaque do presente não poderia ser assim revelado nesse caminhar cronotópico? O imaginário do passado e do futuro não se processa-riam no movimento no presente (no dia-a-dia)? É isso que propõe o projeto “Walking Throug Time”43 no seu aplicativo para iPhone ou Android, começando por Edimburgo:

Walking Through Time is a mobile application that allows smart phone users with built-in GPS to not only find themselves in the present, but find themselves in the past. By making available historical UK maps, users will be able to scroll through time and navigate places using maps that are hun-dreds of years old.

Real-time activity is represented as individual nodes that appear whenever a message or image is posted. Aggregate activity is reflected in the under-lying terrain: over time, the landscape warps as data is accrued, creating hills and valleys representing areas with high and low densities of data. In the piece, nodes are connected by narrative threads, based on themes emerging from the overlaid information. These pathways create dense me-ta-networks of meaning, blanketing the terrain and connecting disparate areas of the city.

As cidades são visíveis nos lugares e nos espaçamentos, nos rastros das associações, como vimos. Os lugares compõem o “espa-ço-rede”. As mídias locativas trazem modos de mediação que nos permitem analisar os processos de apropriação e de criação de novos sentidos dos lugares. Os mapas colaborativos se aproximam dessa inserção na cidade onde coisas podem vir a nos colocar em causa. Devemos, portanto, colocar a comunicação das coisas no cerne da compreensão da “cidade algoritmo”.

43 Ver http://www.walkingthroughtime.co.uk

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6. internet dAs coisAs1

The Internet of Things; imagine a world where everything can be both ana-logue and digitally approached – reformulates our relationship with objects – things – as well as the objects themselves. Any object that carries an RFID tag relates not only to you, but also through being read by a RFID re-ader nearby, to other objects, relations or values in a database. In this world, you are no longer alone, anywhere.

Martijn De Wall, et al. (2012)

“Internet das Coisas” (IoT) é um conjunto de redes, sensores, atuadores, objetos ligados por sistemas informatizados que ampliam a comunicação entre pessoas e objetos (o sensor no carro avisando a hora da revisão, por exemplo) e entre os objetos de forma autônoma, automática e sensível ao contexto (o sensor do carro alertando sobre acidentes no meu caminho). Objetos passam a “sentir” a presença de outros, a trocar informações e a mediar ações entre eles e entre hu-manos. Para essa comunicação das coisas, a TAR e a OOO parecem muito apropriadas para trazer os objetos à dimensão do “matter of concern”, para politizá-los.

1 Parte deste capítulo foi publicado em Lemos (2013a).

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A hipótese que vou defender aqui é simples: se os objetos mudam ao ganhar funções infocomunicacionais, as relações entre eles e os humanos mudam também. Não é à toa que o tema da IoT está sempre associado aos perigos da vigilância, do controle, do mo-nitoramento, do automatismo. As discussões colocam em tensão três elementos fundamentais: a internet, a coisa e o hífen. Portanto, para compreendermos a atual fase de desenvolvimento dessa comunica-ção hiperautomatizada das coisas é necessário compreender esses três elementos. Para compreender os objetos (as coisas) vou lançar mão da OOO, para entender a nova dimensão da internet, as dis-cussões de especialistas em torno do ainda mal definido conceito de “internet das coisas”, e para a compreensão das associações, do hífen que os liga, a TAR2.

Os objetos mudam sempre e é muito difícil desvelar todos os seus segredos3. No caso de projetos de IoT, eles ganham metafori-camente “vida” (eles falam com outros, tomam decisões, reagem a problemas, mudam seus comportamentos, adaptam-se ao entor-no). Essas novas qualidades infocomunicacionais os fazem ampliar as mediações e delegações, transmitindo instruções e agindo sobre outros objetos (humanos e não-humanos). Parece mesmo que estão “vivos”, que se “comunicam” e que estão, de agora em diante, do-tados de inteligência, já que reagem ao contexto e tomam decisões (smart).

Questões como controle, vigilância e monitoramento, inva-são de privacidade, autonomia dos não-humanos por delegação, mediação de não-humanos dirigindo ações humanas, invisibilidade dos processos, problemas de ordem jurídica, entre outras, emergem. Consequentemente, o desafio é tentar compreender como as novas funções dos objetos nos colocam em causa, ou seja, nos interessa pensar menos na coisa enquanto coisa do que na coisa como aquilo

2 Notemos que esta, por sua vez, também coloca em tensão três elemento: o ator, a rede e o hífen (LATOUR, 1991). Compreender os “hífens” é compreender as associações nas quais os objetos devem entrar no balanço de massa (na consti-tuição da sociedade), como mostrou Latour em “where are the missing masses?” (LATOUR, 1992).

3 Vejam as discussões no evento que organizamos em Salvador, em agosto de 2012: “A Vida Secreta dos Objetos”, disponível em http://avidasecretadosobjetos.word-press.com

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que coletivamente produz tensão (a perspectiva sociológica) e per-ceber como o “matter of fact” transforma-se em “matter of con-cern”. Sobre essa passagem, explica Latour (2005a):

The discussion begins to shift for good when one introduces not matters of fact, but what I now call matters of concern. While highly uncertain and loudly disputed, these real, objective, atypical and, above all, inte-resting agencies are taken not exactly as object but rather as gatherings. (...) A natural world made up of matters of fact does not look quite the same as a world consisting of matters of concern and thus cannot be used so easily as a foil for the ‘symbolic-human-intentional’ social order (p. 125).The important ethical, scientific, and political point here is that when we shift from the world of matters of fact to the worlds of matters of concern, we can no longer be satisfied either by the indifference to re-ality that goes with multiple ‘symbolic’ representations of the ‘same’ nature or with the premature unification provided by ‘nature’. By in-cluding the many results of the sciences into the zoos of agencies at work together in the world, we have crossed another Rubicon, the one leading from metaphysics to ontology. If traditional social theory was against delving into the first, it is even more hesitant to sink into the second, which reminds it too much of its own philosophical infancy. And yet, if we wish to travel, we have to learn how to swim these tur-bulent waters (p.127).

Pensando nos “matter of concern” podemos fazer emergir questões morais, éticas, políticas, pedagógicas dessa mediação (transformação de um em outro) e dessa delegação (autonomia de um, dada por procuração a outro) na internet. Portanto, por ser um arranjo econômico, social, político, comunicacional, a IoT é um campo privilegiado para a aplicação da TAR. Va-mos discutir a essência dos objetos e suas qualidades quando eles passam a ter nova funcionalidade: a infocomunicacional. Apresentaremos os principais conceitos, tipos e características da IoT. Em todos os casos de IoT (reais e em implementação), o que vemos são objetos sensuais (um parafuso, uma placa de carro, uma camiseta, um sapato...) dotados de novas qualidades (não imediatamente perceptíveis na experiência sensual) com impactos importantes nas formas de associação entre humanos

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e não-humanos. Já que não podemos revelar os segredos dos objetos (sua dimensão real), nos caberia, então, problematizar suas qualidades reais, seu eidos e pensar nas associações pro-postas em suas dimensões políticas, morais, éticas. Esse é, a meu ver, o terreno de discussão da IoT.

origem

Notemos, em primeiro lugar, que não há uma “internet das coisas”, nem uma “internet das pessoas”. Só há híbridos, na in-ternet ou em qualquer outra rede sociotécnica. Para compreen-dermos o fenômeno técnico devemos evitar definitivamente uma perspectiva essencialista que insista na separação entre sujeito e objeto. O que está sendo chamado de “internet das coisas” é uma nova configuração da rede internet, na qual objetos (reais e virtuais, ou seja, concretos e digitalizados) trocam informações sem um usuário humano dirigindo diretamente o processo. Este é diferente daquele que estamos habituados quando utilizamos um celular ou um computador para acessar, produzir ou distribuir informações na internet em serviços específicos (Web, e-mail, chats, videoconferência, Facebook, Twitter...). Nisso que se cha-ma de “internet das pessoas” há, obviamente, objetos tomando decisões e agindo por trás da cena, mas o pedido do serviço é fei-to a partir de uma intencionalidade direta e visível do “usuário”. Daí a ênfase no humano.

Já no caso da “internet das coisas”, o usuário está fora do nú-cleo central da mediação. Ele age e “é agido” a posteriori, quando, por exemplo, o carro avisa da hora da revisão ou do acidente a mi-nha frente. Antes disso, o objeto, o carro (que é, lembre-se, sempre uma rede - e seus sensores, software, GPS, atuadores, bancos de dados...) fez tudo sozinho em negociação com outros objetos con-cretos e virtuais. Como vemos, é complicado falar na purificação, na separação de coisas e pessoas quando nos referimos à internet, já que ela, como qualquer outra rede sociotécnica, conforme dis-cutimos nos capítulos anteriores, é sempre um híbrido. Portanto, o termo “Internet das Coisas” (IoT) carece de rigor. No entanto, o mantenho aqui já que ele tem sido utilizado pela literatura da área

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(junto com outros como “internet dos objetos”, “internet de todas as coisas”, “rede M2M”...)4.

A origem da IoT, e do mundo dos dados em nuvem, não é recente. Eles foram se constituindo pela produção, manipulação, armazenamento e distribuição dos dados desde o século XVIII, ga-nhando novos formatos na crescente automatização dos processos de produção e de ações de máquinas e serviços na era industrial. O computador é uma máquina automática de processamento de infor-mação, a máquina símbolo e o ápice do automatismo da sociedade da informação em meados do século XX. Em pleno século XXI é a rede de computadores (dos mainframes a etiquetas RFID) o ator técnico mais importante. Esse dispositivo (computador e suas redes) torna-se ubíquo, espalhando processos informacionais automáticos a todas as coisas e em todas as esferas da vida quotidiana. Falamos agora de “Big Data”, de computação nas nuvens, de mineração de dados, de “Smart Cities”, de comunicação máquina a máquina, de “internet de todas as coisas”. A era da informação é global.

Os dados e o automatismo no seu tratamento passam a ser agentes centrais das ações (gerenciais, produtivas, governamentais, policiais) no mundo contemporâneo. Sua gênese começa no século XVII, ganha contornos mais nítidos no século XVIII e XIX com a gestão do público e o surgimento de uma biopolítica ligando sub-jetividade a dados pessoais, produção do espaço e dados geoespa-ciais mais precisos, e se institui definitivamente no século XX com a sociedade informacional em rede (CASTELLS, 1996). Os objetos passam a ter capacidades automáticas de processamento de informa-ção, ou seja, de comunicação, acesso e manipulação de bancos de dados. Para que se tenha uma ideia do impacto, hoje há mais objetos conectados à internet do que pessoas no planeta. E a situação tende a ser ampliada nos próximos anos. Estima-se que em 2020 sejam 50 bilhões de coisas interligadas à rede, ou seja, de seis a dez objetos por pessoa conectada à internet5.

4 Veja por exemplo o evento IoT Week 2013, que acontece na Finlândia. Ele é um dos mais representativos sobre o tema e o conceito parece bem estabelecido: http://www.iot-week.eu/iot-week-2013

5 “In 2010, the global average of connected devices per person was 1.84. Taking only those people who use the Internet (around 2 billion in 2010), that figure

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Essa história pode muito bem ter começado com os utilitaris-tas ingleses do século XVII, segundo os quais compreender a vida social era compreender os fatos, transformados em dados. Fato é um dado operacional. Só os fatos interessavam, só os dados podiam ajudar na gestão da vida urbana. Mais tarde, a teoria matemática da informação e a cibernética serão fundamentais na construção e na operacionalização maquínica desse mundo de dados e na implan-tação do tratamento automático da informação. Passamos, em três séculos, da escassez de dados (século XVII), para a captação dos dados (“data”) e inflação de dados (séculos XVII a XIX), para um regime de “captação” generalizada e explosão dos dados (ou “cap-ta”, como preferem Dodge e Kitchin, 2007) com o surgimento dos computadores após a segunda guerra mundial (século XX).

A informação e o tratamento de dados em programas sofisti-cados de mensuração e rastreamento é hoje a nova face do poder e a base do desenvolvimento da IoT. Não é à toa que o perfil das gran-des empresas mudou, adaptando-se a esse estado de coisas: nos anos 1950 - 1960, as primeiras máquinas de cálculo gigantes (IBM e os primeiros computadores - hardware), depois, nos anos 1970-1980, os primeiros microcomputadores e os programas e sistemas opera-cionais (Microsoft, Apple - software), em seguida, nos anos 1990, o surgimento de empresas de busca e mineração de dados (Google - busca de dados) e hoje, a partir dos anos 2000, grandes empresas sociais com o rastreamento e produção de perfis a partir de ações individuais dos usuários (Facebook, Twitter, YouTube...).

A fase atual, e vamos ver o crescimento nos próximos anos (2010 em diante) é a do desenvolvimento de projetos, empresas e programas investindo em serviços de hiperlocalização e de comu-nicação generalizada das coisas integrados aos diversos serviços já existentes da internet. O século XXI já é o do “Big Data”, da “Smart City”, da computação nas nuvens e da IoT ou, em síntese, IoE (“in-ternet of everything”). Compreender a nova fase da sociedade da in-

becomes 6 devices per person. Chip makers such as ARM have targeted develop-ments of low-power CPUs and predicts up to 50 billion devices connected by 2020” (http://www.cisco.com/web/about/ac123/ac147/archived_issues/ipj_15-3/153_internet.html). Ver também o infográfico da Cisco disponível em http://blogs.cisco.com/diversity/the-internet-of-things-infographic/.

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formação nos leva, paradoxalmente, à busca pela compreensão dos objetos mais banais.

Não somos levados a um descolamento, a uma desmateriali-zação do mundo, a uma matriz virtual descolada do mundo concreto das coisas. Não vamos ao espaço cibernético e às “não-coisas” ele-trônicas, mas sim aos lugares concretos e aos objetos que os ocupam. A rede digital é, cada vez mais, uma rede que está sendo acoplada a todos os nossos objetos e lugares do quotidiano. Precisamos voltar, portanto, a uma filosofia dos objetos. Se a internet agora é a de todas as coisas, o que é uma coisa e como ela muda quando passa a ganhar capacidades infocomunicacionais?

coisAs e objetos

Um primeiro passo a ser dado é tentar compreender o que são coisas e objetos, e como eles devem ser entendidos quando ganham novas funções infocomunicativas, inteligentes, sensíveis ao contex-to e telemáticas. Se eles mudam, como nos ensina a TAR, eles criam também novas formas de associação. Estas novas formas de associa-ção implicam uma nova constituição do social, dessa relação entre objetos (humanos e não-humanos).

Vou mostrar que o objeto muda e que essa mudança aponta questões políticas importantes. Não é banal uma xícara virar mí-dia, um carro tomar decisões sozinho, um escudo de um uniforme avisar os pais se os filhos chegaram ou não à escola, ou um óculos ser, ao mesmo tempo, instrumento de captação de informação so-bre o estado atual do mundo e sobre pessoas. Precisamos politizar os objetos.

Mas essa não é uma tarefa fácil, pois os segredos dos obje-tos nunca são revelados. Só podemos ver trajetórias e compreendê--las nas associações. Objetos são sempre múltiplos, portadores de funcionalidades, fonte de memórias, mobilizadores de affordances (GIBSON, 1977), de agências, fonte de memórias, de comporta-mentos e de sentimentos. A existência dos objetos é só em parte percebida pela nossa experiência. Objetos estão sempre associados a outros objetos e a outros componentes que formam a sua estabilida-de como caixas-pretas. Uma xícara, um computador ou uma caneta

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Bic são objetos compostos de muitos outros objetos, remetendo a funções e experiências diversas que se estabilizam em uma unidade.

No entanto, basta um problema acontecer para que as redes que o compõem tornem-se visíveis, e os pedaços revelem outros ob-jetos vinculados (veja, por exemplo, a capa desse livro tornando vi-sível os pedaços de um smart phone). Olhem para os objetos ao seu redor e tentem visualizar, abrindo as suas redes, onde eles começam ou terminam. É difícil e, ao mesmo tempo, fascinante. Como o carro e o celular exemplificados no começo deste livro, os objetos são “redes”. Ele parece individual quando na realidade ele é múltiplo!

Cruzando um olhar sobre o que cada objeto convoca do céu, da terra, dos deuses e dos mortais, propõe Heidegger (a sua qua-dratura, das Geviert, 1958), podemos tentar nos aproximar da “es-sência” dos objetos. A quadratura é uma forma de aproximação a um objeto real que se retira sempre. Mas, por sorte, ainda temos as redes, o objeto nas associações, o objeto na vida social, onde ele efe-tivamente existe. Aqui podemos abrir as redes, ao invés de ficarmos presos ao fracasso do desvelamento de sua essência. Se abandonar-mos essa busca fadada ao fracasso e olharmos a “essência” agora como associação, como propõe a TAR, podemos então colocá-los em discussão.

Nas redes abrem-se as articulações (simploriamente separa-das em categorias como: economia, cultura, política, ciência, tec-nologia...) e o objeto social aparece em sua multiplicidade e “divi-dualidade”. Podemos até tentar identificar fronteiras, mas elas serão forçadas, fictícias e, com certeza, permeáveis. O entrelaçamento e a circulação de agências provisoriamente fixas na estabilidade do dispositivo é o que nos impede de apreendê-los em sua totalidade. E isso é bom já que, mais uma vez, não interessa o “matter of fact”, mas o “matter of concern”. Se, como dizem os filósofos, o objeto real é inescrutável, podemos ainda ver o objeto social como asso-ciação, em rede!

Harman, um dos mais importantes filósofos contemporâne-os dessa corrente que compreende o objeto real como inescrutável, propõe pensar o objeto em quatro dimensões, ampliando a visão de Husserl e mesclando-a àquela de Heidegger. No livro The quadru-ple object, Harman (2011a) sustenta que os objetos (para ele tudo o

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que existe: coisas, pessoas, nêutrons, seres imaginários) só podem ser compreendidos por essas dimensões. Esta, por sua vez, produz tensões fundamentais: o objeto sensual, a qualidade sensual, o ob-jeto real e a qualidade real. Para Harman, os objetos são revelados apenas parcialmente, sendo a sua essência apreendida do resulta-do das tensões. É nesse quadrante (influenciado pela quadratura de Heidegger) que podemos compreender os objetos. Dessas tensões surgem toda a sua filosofia: o tempo, o espaço, a essência e o eidos. Já vimos a dimensão do espaço. Voltaremos aqui à discussão sobre o objeto em Harman.

O objeto sensual, a partir de Husserl, é aquele que é perce-bido pela nossa consciência; o objeto real é, para Heidegger, ines-crutável. Jamais poderemos entendê-lo em sua totalidade. Algo está sempre velado ao entendimento humano e essa dimensão pertence para sempre ao objeto. Nunca chegamos a desvelar o segredo do objeto “real”. Para Harman, Husserl não via o objeto real, apenas o sensual. Ele faz assim uma síntese de Heidegger, que inclui o objeto real onde Husserl só via o sensual. A qualidade sensual é aquela que percebemos pelos sentidos, é a que experimentamos ao nos deparar-mos com o objeto (sua forma, textura, cor, peso...) e a sua qualidade real só nos é acessível através do intelecto (dizendo de forma sim-plificada, é o que intelectualmente entendemos ser esse objeto - uma xícara, por exemplo, é um recipiente para líquidos, e apenas certos tipos de líquidos). Assim sendo, apreendemos os objetos pelas suas qualidades sensuais, pela experiência, e pelas suas qualidades reais, o que pensamos ser ele.

Harman constrói sua filosofia a partir desse quadrante. As ten-sões entre os tipos de objetos e suas qualidades geram as principais questões da sua filosofia: o tempo, o espaço, a essência e o eidos. O tempo, é a tensão que surge entre o “objeto sensual” (ou intencional) e suas “qualidades sensuais”. Percebemos, ao observar o objeto em relação com objetos, que algo muda (a oxidação do ferro, a deterio-ração da casca de banana jogada no chão, o envelhecimento de uma casa ou de uma pessoa, o amarelamento do papel etc.). O objeto percebido pela consciência na experiência muda em relação à sua qualidade sensual. O tempo é associação, e a dinâmica desta dará a sensação de passagem daquele. Por exemplo, se jogo uma garrafa de

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plástico na natureza, a percepção do tempo é bem diferente daquela de uma casa de banana jogada no mesmo local: uma apodrece em dias, a outra em séculos. Com pouca associação com os elementos da natureza, o tempo parece não existir para a garrafa de plástico.

A segunda tensão é o espaço. Ele, como o tempo, também é associação, relação que se estabelece entre as coisas, ele é o que se produz dos arranjos dos objetos e dos lugares, como vimos no ca-pítulo anterior. Para o filósofo, o espaço é a tensão entre um “objeto real” (que sempre escapa) e suas “qualidades sensuais”, através das quais ele é acessível. É uma dimensão relacional, já que não temos uma percepção direta do espaço (um objeto nunca é apreendido, apenas aferido na relação entre objetos sensuais). Ele surge da ten-são entre o que percebemos e o que falta dessa percepção do objeto. Assim como o tempo, ele é o que se produz nas associações. A rede, enquanto essa dinâmica, é que cria o espaço e o tempo.

A terceira tensão é o que Harman chama de essência, a relação entre o objeto “real” e a sua “qualidade real”, ou seja, a tensão entre o objeto que se retira da experiência e a qualidade que é apreendi-da do objeto pelo intelecto, o que pensamos ser esse objeto. Aqui aparece mais claramente a filosofia de Heidegger sobre os objetos, como podemos ver no clássico texto sobre o martelo ou sobre a jarra (HEIDEGGER, 1958). Para a TAR, não há necessidade dessa busca da essência, já que a essência vai ser considerada como a relação que um determinado objeto vai estabelecer com outros em determinadas ações. E essa relação nunca é a mesma, não pode ser reduzida nem a “estrutura” da ação passada, nem a agência do objeto em outra ação similar. Sendo o objeto social, ou seja, emergindo sempre em sua complexidade como rede nas associações, a questão de buscar o objeto real em relação à qualidade real vai se jogar na ação e não em um objeto real velado para sempre.

A quarta tensão é o eidos (aquilo que se vê, a aparência, a ideia, o tipo, a forma, a natureza do objeto). Ela emerge da relação entre o “objeto sensual”, que percebemos na nossa relação com ele, e suas “qualidades reais”, do que pensamos ser o objeto. Essa di-mensão será muito importante para compreender os objetos na era da IoT já que o que muda é a apreensão da forma do objeto.

Por exemplo, pensemos mais uma vez no carro que avisa da revisão ou do acidente na estrada. O objeto real é inescrutável, logo

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nada muda. O objeto sensível é o mesmo carro de sempre (com ro-das, motor, feito de aço). No entanto, novas funções aparecem. Ele passa a se comunicar de forma autônoma com outros carros, a inte-ragir com a oficina mecânica e com o planejamento realizado pelo mecânico, a sugerir rotas pelos sensores de geolocalização...

A ideia do carro como um monte de ferro em cima de quatro ro-das que nos leva de um lugar a outro muda. E por que ela muda? Porque a tensão entre o objeto sensual (olhando para o carro, parece ser o mes-mo carro) e a sua qualidade real muda. O carro agora é inteligente, ele é uma mídia, ele “fala”, avisa de coisas, sugere ações e toma decisões. Se é assim, a sua qualidade real muda. O carro não é apenas a máquina que me transporta de um lado para outro sobre quatro rodas, mas passa a ser outro objeto com novas funções infocomunicacionais.

A tensão quádrupla vale para todos os objetos. Olhe para uma xícara. Vemos todas as tensões: o seu envelhecimento (tem-po), como a relação entre sua objetividade sensual e sua qualidade sensual; o que ela é (a essência) na tensão entre a sua qualidade real e o que dela se retrai (o objeto real); o espaço como distensão entre aquele objeto em sua realidade inescrutável (real) e sua qualidade sensível (o que se afasta do que percebemos); e, por fim, sua aparên-cia (eidos), a relação entre a sua qualidade real de conter líquidos, e sua percepção sensível (objeto sensível).

A questão importante para pensar os objetos na cultura digital de uma forma mais ampla é identificar essas tensões a partir do momento em que eles passam a ganhar uma capacidade inédita: a potência info-comunicacional em rede que se traduz em formas de comunicação e de agência à distância. Como compreender que a xícara que agora está na minha mesa muda (como objeto sensível e suas qualidades) ao ganhar poderes infocomunicativos? Imagine que agora, ao ser esvaziada do seu líquido, ela pode solicitar a uma cafeteira em outro lugar a produção de mais café. Esta máquina de café pode me avisar por Twitter ou SMS assim que o novo café estiver pronto, ou pedir ao mercado ao lado para trazer mais grãos de café para a trituração. Aqui a xícara é uma xícara, mas é também mais que uma xícara, é uma mídia!

Algumas questões emergem: como identificar, em meio a uma crescente hiperconectividade de coisas à internet, se um objeto está en-viando ou não informações (mediando outros humanos e não-humanos) e tomando decisões (delegação dos humanos e não-humanos) se essas

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características são invisíveis e ainda fora da história do hábito desses mesmos objetos? Como poderia, ao ver a xícara sobre a mesa, saber que por trás desse objeto – as qualidades sensual (objeto com certa cor, forma, peso, função) e real (a xícara é um objeto para conter líquidos) – outra função aparece? A tensão entre o objeto sensual e sua qualidade real muda: a xícara agora “fala” e comanda outros objetos. Ela contém líquidos, é assim um jarro, mas também é uma mídia que se comunica de forma digital com outros objetos. A visibilidade (ou invisibilidade) infocomunicacional e a potência da ação à distância (delegação e me-diação importantes) só aparecem, ou pela história do objeto (o uso e seu hábito), ou pelos rastros eletrônicos que eles deixam.

Temos aqui uma dimensão ética da mudança do eidos. Jamais saberemos o que é a xícara real (o objeto real), mas podemos dizer que o objeto sensual e suas qualidades sensuais mudam com a IoT. Esse recipiente para líquidos passa a ser uma xícara que se comunica por redes telemáticas e fazem outros objetos fazerem outras coisas, inclusive nós, os humanos. Muda a sua qualidade real (a xícara é agora também uma mídia) enquanto o objeto sensual permanece o mesmo (a mesma xícara de porcelana). Devemos dar importância à comunicação das coisas.

Essa mudança poderia reforçar a ideia de que só podemos compreender a trajetória dos objetos (xícara) e não sua essência. Como o objeto sensual e a qualidade real da xícara se redefinem com a nova função infocomuncacional, poderíamos dizer que a essência mudou? Ora, se sua qualidade real muda, a sua relação entre o objeto real também. Na IoT, a xícara continua a sua trajetória, ampliando de forma infocomunicacional a sua ação sobre outros agentes huma-nos e não-humanos e passa de reservatório a “reservatório-mídia”.

Para Heidegger, há diferenças entre coisa e objeto6. A coisa tem sempre uma dimensão oculta. O objeto é sempre a ferramenta. A coisa (cujo real é sempre oculto) é o que ele chama de “present--at-hand”, ou “vorhanden”, o objeto diante de nós, pensado, mas

6 Como propõe Harman, não vou diferenciar, como faz Heidegger, coisa de objeto. O objeto é uma coisa natural, uma pedra no caminho, ou um peso de papel con-feccionado pelo homem com a mesma pedra. O objeto é assim, ao mesmo tempo, objeto natural e objeto técnico. Heidegger valoriza o primeiro em detrimento do segundo que teria uma conotação negativa. Aqui vou tratar objeto sinônimo de coisa e vice-versa.

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nunca totalmente desvelado. Alguns traduzem essa expressão por “teoria”. Já o objeto é para ele o “zurhanden”, ou o “ready-to-hand”, pronto para a mão, a “ferramenta”, a dimensão prática do uso. Aqui a coisa/objeto só pode ser percebida no movimento entre essas ten-sões. A coisa é mais interessante do que o objeto já que escapa de sua dimensão apenas instrumental.

Para Heidegger, a melhor forma de situar a tensão e de captar a essência de uma coisa é colocá-la em perspectiva através da sua “quadratura” ou “Geviert”: a terra, o céu, os deuses e os mortais (o homem). Essa quadratura é pouco explicada pelo filósofo e alguns dos seus comentadores consideram um devaneio poético. Para se apro-ximar da essência de uma coisa, o filósofo deve se perguntar como ela se relaciona com a quadratura. Heidegger faz esse exercício ao mostrar a essência de um jarro (HEIDEGGER, 1958). Ao tensioná-lo nessa quadratura é possível chegar perto de sua essência e da coisa real. Ela parece ser também a base do objeto quádruplo de Harman.

No entanto, para ampliar essa visão, muito centrada no obje-to, acho importante trazer a noção de dispositivo que nos permite co-locá-lo em rede. A noção de dispositivo permite ligar a OOO à TAR e sair da necessidade de procurar o objeto real, sempre velado. É mais interessante buscar as associações. A ampliação do pensamen-to do objeto como um dispositivo nos permite colocá-lo em rede, ver associações, retirá-lo de uma posição meramente instrumental, ou por demais filosófica. A noção de dispositivo é bastante ampla, e por isso mesmo interessante para a nossa discussão aqui. O dispositivo é uma rede. Ele é rede que coloca em relações coisas, normas, leis, resoluções, práticas, deontologia... Como explica Foucault, citado por Agamben (2009, p.28):

Aquilo que procuro individualizar com este nome é, antes de tudo, um con-junto absolutamente heterogêneo que implica discursos, instituições, estru-turas arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrati-vas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o não dito, eis os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se estabelece entre estes elementos... (Dits et écrits, v. III, p. 299-300).

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Partindo de Foucault, Agamben mostra que a noção de dispo-sitivo está associada a redes de poder e a sentidos jurídicos, tecnoló-gicos e militares. É importante compreender o que é um dispositivo e mesmo colocar os objetos tecnológicos nesse domínio, pois ao fazermos isso conseguimos ver suas relações e interconexões de for-ma mais ampla. Por exemplo, pensar um celular, uma xícara ou um escudo escolar com etiquetas RFID como “dispositivo” nos permite ver políticas de telecomunicação, interfaces, mercados de aplicati-vos, formas de sociabilidade, projeto pedagógico, relação pai-filho, professor-aluno, política educacional... A noção de dispositivo colo-ca em relação o objeto em sua dimensão fundamental que é a asso-ciação a outros objetos, a sua dimensão como uma rede sociotécnica.

Latour afirma, com razão, que só há objeto social, em rela-ção. Ele rejeita assim a visão de Heidegger. No entanto, acredito que ele se apoia em muitos dos seus princípios e poderia apontar o que acho ser as quatro influências mais diretas de Heidegger ao seu pensamento.

1. Para Heidegger, podemos ver o objeto quando ele se que-bra e revela as suas tensões. É a noção de caixa-preta para Latour: ao abri-las vemos as redes e as associações;

2. A coisa para Heidegger, de sua própria etimologia, é o que nos coloca em causa, o que nos concerne politica-mente, o que nos envolve. É o “parlamento das coisas” em Latour, dos não-humanos que nos colocam em “cau-sa”, do “matter of concern” e não do “matter of facts”;

3. As coisas devem ser vistas, para Heidegger, pela suas associações a outras (através da quadratura), mesmo que para achar a sua essência em relações muito amplas. Para Latour, as coisas são sociais, ou seja, sua essência está na associação, e, por fim;

4. O movimento. Para Heidegger a essência do martelo é o “martelando”, ou a afirmação de que “a coisa coisa” (thin-gs things”). Essa dimensão do verbo como movimento também é muito forte em Latour, e em todos os estudos que têm por base a TAR. O texto de Schiolin (2012) sobre o papel do verbo em Heidegger e em Latour é revelador.

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Verbo é a ação. Para Latour devemos seguir os actantes, seguir a ação. Schiolin chama de “seguir o verbo”. Como explica o autor (SCHIOLIN, 2012, p. 784):

Just as the being of the hammer – the hammering – connects and gathers all kinds of beings, Latour’s concept of the social gathers and connects a host of heterogeneous actors (or beings). Just as the hammer transforms the forest and the mountain into houses and other things when it becomes part of a multiplicity of references, and just as modern technology transforms nature and humans into available resources, the heterogeneous actors in Latour’s sociology of association are transformed when they, deliberately or not, take part in the processes of translation that finally lock them in bla-ck boxes. For Latour, this is only possible because his concept of the social is exactly interpreted as association. (...) Just like hammering, the verbal noun ‘pasteurisation’ expresses something that gathers and connects diffe-rent beings. Often things such as pasteurisation and Christmas appear as closed black boxes. Along with Law, one can say that this is only the case because the processes of translation have been able to translate the actions of the actors, expressed in verbs, in such a unidirectional and stabilising way that they are now understood as essences, expressed in nouns.

No entanto, apesar de ter o filósofo alemão como uma fonte para a discussão sobre a técnica, Latour vai rejeitar a visão heide-ggeriana de essência, de objeto velado, de privilégio das coisas na-turais que estariam mais próximas de uma relação essencial com o homem. Ele afirma de forma categórica que só a sociologia pode pensar efetivamente os objetos já que esses, livres de associações, simplesmente não existem. Um martelo não existe apenas na men-te do filósofo, ou girando em um espaço imaginário ou na floresta negra. Esse martelo não seria mais próximo da natureza humana do que uma usina hidroelétrica. Só há objetos em relação, em associa-ção. Todo objeto é assim social. Parece que a filosofia heideggeriana retira o objeto do mundo colocando-o isolado perante o filósofo, valorizando uns e depreciando outros.

Ora, não há objeto isolado. Onde podemos encontrar uma xícara, um martelo, uma jarra, uma usina nuclear, um escudo, uma etiqueta RFID isolados de outros objetos, contextos e situações? Embora seja importante uma análise do objeto pelo olhar do filósofo, devemos ir

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além e aceitar a proposição da TAR de que só existem objetos em re-lação. Dessa forma, a sociologia teria mais a dizer sobre um objeto do que a filosofia e poderia nos ajudar na compreensão das diversas impli-cações dos objetos na cibercultura. Como afirma Latour (1994b, p. 46):

Objects that exist simply as objects, finished, not part of a collective life, are unknown, buried under soil. Real objects are always parts of institutions, trembling in their mixed status as mediators, mobilizing far away lands and people, ready to become people or things, not knowing if they are compo-sed of one or of many, of a black box counting for one or of a labyrinth con-cealing muititudes. And this is why the philosophy of technology cannot go very far: an object is a subject that only sociology can study - a sociology, in any case, that is prepared to deal with non human as well as human actant

comunicAção dAs coisAs

Todo objeto é social. Ele comunica de alguma forma, troca e se associa. Por exemplo, a passagem do tempo é a forma comunicava de troca com outros objetos do ambiente e, por isso, ele vai envelhecendo (a relação entre o objeto sensual e sua qualidade sensual). Mas, com a “Internet das Coisas” (IoT), trata-se agora de outra forma de co-municação das coisas: uma comunicação informacional em rede, por protocolos de conexão seguindo a algoritmos e performances, crian-do delegações, mediações, intermediações e estabilizações de outra ordem. Essa me parece ser uma das questões centrais da discussão: como compreender as novas qualidades dos objetos, já que a mudan-ça acarreta consequências importantes nas relações sociais (técnicas, conversacionais, culturais, pedagógicas, ambientais).

A IoT pretende oferecer, nessa nova comunicação das coisas, a melhoria na eficiência de gestão (questões de logística e automatis-mo industrial), de pessoas (questões de mobilidade, ações e perfis), de comportamentos (vigilância, controle, privacidade) e do ambien-te (monitoramento das condições climáticas). Ela é, de acordo com CERP (“Cluster of European Research Projects on the Internet of Things”, 2009), uma infraestrutura de rede global dinâmica, baseada em protocolos de comunicação em que “coisas” físicas e virtuais têm identidades, atributos físicos e personalidades virtuais, utilizan-do interfaces inteligentes e integradas às redes telemáticas.

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As coisas/objetos tornam-se capazes de interagir e de comu-nicar entre eles e com o meio ambiente por meio do intercâmbio de dados. Objetos reagem de forma autônoma a eventos do “mun-do real / físico” e podem influenciá-los por processos eletrônicos sem intervenção humana direta. É o que Adam Greenfield chama de “Everyware” (2006) e Bruce Sterling de “Spime” (2005). Objetos e sistemas que mediam de forma independente a ação humana, comu-nicando e retroagindo sobre eles mesmos em ações em um espaço--tempo ampliado (espaço global das redes e tempo real imediato de trocas). Como afirma Greenfield (2006, p. 16):

It involves diverse ecology of devices and platforms, most of which have nothing to do with “computers” as we’ve understood them. It’s a distri-buted phenomenon: The power and meaning we ascribe to it are more a property of the network than of any single node, and that network is effectively invisible. It permeates places and pursuits that we’ve never before thought of in technical terms. And it is something that happens out there in the world, amid the bustle, the traffic, the lattes, the gossip: a social activity shaped by, and in its turn shaping, our relationship with the people around us.

O mesmo é pensado por Bliss (2012):

The Internet of Things is comprised of networked objects with sensors and actuators. These objects observe their environment and share the data they collect with each other, Internet servers and people. This data is analyzed and the results are used to make decisions and affect change. Change may come from a connected object making adjustments in the environment, or it may come after the collected information is analyzed further by a person.

A expressão Internet das Coisas7 parece ter surgido em 1999 quando, em uma palestra, Kevin Ashton explicava o potencial de

7 É interessante notar como a frase utiliza, em outras línguas, tanto os termos “objetos” como “coisas”. Os franceses chamam de Internet des Objets (http://fr.wikipedia.org/wiki/Internet_des_objets), os espanhóis de Internet de las Cosas (http://es.wikipedia.org/wiki/Internet_de_las_cosas) e os italianos usam as duas expressões: Internet delle cose ou Internet degli oggetti (http://it.wikipedia.org/wiki/Internet_delle_cose).

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uso das etiquetas de radiofrequência (RFID). Treze anos depois, ele afirmava (ASHTON, 2012):

But what I meant, and still mean, is this: Today computers—and, therefore, the Internet—are almost wholly dependent on human beings for informa-tion. Nearly all of the roughly 50 petabytes (a petabyte is 1,024 terabytes) of data available on the Internet were first captured and created by human beings—by typing, pressing a record button, taking a digital picture or scanning a bar code. Conventional diagrams of the Internet include servers and routers and so on, but they leave out the most numerous and important routers of all: people. The problem is, people have limited time, attention and accuracy—all of which means they are not very good at capturing data about things in the real world.

Essa reação é muito interessante pelo privilégio dado ao ator humano no processo, mesmo que o autor entre em contradição ao reconhecer a relação híbrida entre humanos e não-humanos: “typing, pressing a record button, taking a digital picture or scanning a bar code [...] include servers and routers and so on” (ASHTON, 2012). Ora, uma ação puramente humana nesse, e em quase todos os do-mínios, é mais um desejo de purificação em busca de uma essên-cia humana natural do que uma realidade antropológica e empírica. O domínio da IoT é o da mediação e da agência, da delegação de não-humanos a outros não-humanos mediando a ação humana. O que Ashton quer fazer é politizar a IoT colocando o humano em evidência. A intenção é boa, mas a purificação (do híbrido) é aqui o problema.

Para o CERP (2009), a IoT é:

... an integrated part of Future Internet and could be defined as a dynamic global network infrastructure with self configuring capabilities based on standard and interoperable communication protocols where physical and virtual “things” have identities, physical attributes, and virtual personalities and use intelligent interfaces, and are seamlessly integrated into the infor-mation network. In the IoT, “things” are expected to become active partici-pants in business, information and social processes where they are enabled to interact and communicate among themselves and with the environment

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by exchanging data and information “sensed” about the environment, while reacting autonomously to the “real/physical world” events and influencing it by running processes that trigger actions and create services with or wi-thout direct human intervention. Interfaces in the form of services facilitate interactions with these “smart things” over the Internet, query and change their state and any information associated with them, taking into account security and privacy issues (p. 6).

The Internet of Things allows people and things to be connected Anytime, Anyplace, with Anything and Anyone, ideally using Any path/network and Any service. This implies addressing elements such as Convergence, Con-tent, Collections (Repositories), Computing, Communication, and Connec-tivity in the context where there is seamless interconnection between peo-ple and things and/or between things and things so the A and C elements are present and addressed (p. 8).

Aqui vemos claramente como o termo faz referência a objetos reais e virtuais (objetos físicos e eletrônicos) que mediam, agindo também por delegação, outros objetos produzindo ações em diversos campos. Eles têm um funcionamento inteligente (smart) na medida em que mudam a própria ação e a de outros nessa relação, indepen-dentemente de uma ação humana direta. Assim, a IoT permite que humanos e não-humanos estejam em permanente conexão de tudo e todos. Como mostram os As e os Cs destacados da citação acima, a comunicação das coisas é total e ubíqua: “Anytime, Anyplace, with Anything and Anyone, ideally using Any path/network and Any ser-vice; Convergence, Content, Collections (Repositories), Computing, Communication, and Connectivity.”

Na IoT, a comunicação funciona, como vimos, com objetos sensíveis ao ambiente (sensores), atuando sobre outros (atuadores), usando lógica e programas de ação acoplados a bancos de dados (al-goritmos), distribuindo informações pelas redes. Eles captam, pro-duzem e distribuem dados através de sensores, etiquetas de radio-frequência, atuadores, redes, middleware (software) e aplicativos8. Yang et al. (2010, p. 360) apontam que, para a Comissão Europeia, a IoT é aquela na qual “things having identities and virtual personali-

8 Ver o site Shodan que pretende mostrar todas as coisas conectadas à internet: http://www.shodanhq.com

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ties operating in smart spaces using intelligent interfaces to connect and communicate within social, environmental, and user contexts”.

Isso mostra como a qualidade (sensual e real) do objeto pas-sa a adquirir novos contornos comunicacionais. Essa potência info-comunicativa amplia a sua ação sobre o mundo e deste sobre ele9. Atzori et al. (2010) afirmam o caráter comunicacional e animista dos objetos. O caráter “pervasivo” de ação dos objetos sobre eles mesmos e sobre os humanos na vida quotidiana é que oferece a sen-sação de estarmos diante de objetos vivos, ativos, mediando as ações sociais em busca de objetivos e metas precisos. Por isso a tentativa de resgate do humano por parte de Ashton, como vimos. Para Atzori et al. (2010, p. 1):

The Internet of Things (IoT) is a novel paradigm that is rapidly gaining ground in the scenario of modern wireless telecommunications. The basic idea of this concept is the pervasive presence around us of a variety of things or objects – such as Radio-Frequency IDentification (RFID) tags, sensors, actuators, mobile phones, etc. – which, through unique addressing schemes, are able to interact with each other and cooperate with their nei-ghbors to reach common goals.

Já Kranenburg et al. (2011) consideram a IoT como um con-junto de objetos identificáveis por meios eletromagnéticos que a partir daí executam comportamentos e semânticas específicas. Interessante ver como esses objetos não são apenas identificados pelas suas carac-terísticas sensuais tradicionais (uma xícara é sempre uma xícara), mas também pela qualidade magnético-informacional do objeto, alterando seu comportamento e semântica. A questão, mais uma vez, é da inser-ção da ação humana no conjunto, como se agora estivéssemos em um domínio de delegação total e de mediação exclusiva dos não-huma-nos. A intenção de politizar o debate e retirá-lo da esfera meramente mercadológica é importante e louvável. Para os autores (2011, p. 5):

Besides smart objects, there is an emerging question if human users inclu-ded in the definition, as hypothesized by the European Research Cluster on the IoT (IERC). A pan-European consumer group wishes that the IoT

9 Para exemplos emergentes é interessante observar os projetos em andamento no site http://postscapes.com/internet-of-things-and-kickstarter

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be called “The Internet of People”, so as to emphasize the human element (BEUC/ANEC, 2008) or the “Internet of Everyone” in a recent report pu-blished in 2011 funded by Accenture. IETF however states that the IoT as a concept “refers to the usage of standard Internet protocols to allow for human-to-thing or thing-to-thing communication” (Garcia-Morchon, 2011), hence, including the human element in the very definition.

Em outro artigo, Kranenburg (2012) mostra seis fatores im-

portantes para o desenvolvimento da IoT. Esses fatores são res-ponsáveis pela sua expansão10. O primeiro fator é o surgimento dos códigos de barra ubíquos em 1974, mostrando um padrão de uso. O segundo fator foi o surgimento de etiquetas RFID que hoje se confundem com a própria IoT. O terceiro fator é o barateamento do armazenamento de dados. O quarto é o protocolo IPV6 que am-plia as possibilidades de atribuição de endereços na internet fazendo com que qualquer coisa possa ter um endereço único, um código de identificação único na rede. Como afirma Kranenburg (2012):

We can expect internet addresses in anything that has software in it: your too-thbrush, coffee machine, fridge, washing machine. Technologically thus IoT is an ecology of barcodes, QR codes, RFID, NFC, active sensors, wifi and Ipv6.

O quinto fator é a concretização da computação verdadeira-mente ubíqua, como sonhada por Weiser (1991). A IoT, menos tan-gível que os hardwares, traz vida aos objetos. Essa vida é justamente a nova qualidade sensível dos objetos. O sexto fator são os atores humanos que embarcam dispositivos informacionais: celulares, iPa-ds... Para Kranenburg (2012):

We can not deny that as a species the drive is towards more connectivity, more awareness of where people and objects are and an ever-growing sy-nergy between all the different applications and services, none of which can survive on its own any more. […] the challenge we are facing today is not how can we stop or guide this process, as it is going so fast. No, the challenge is how can we make sure that this process that is inevitable is inclusive and open.

10 Um dos entraves é ainda a falta de padrões que permitam a livre comunicação entre dispositivos e protocolos. Ver Fitchard (2012).

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Uckelmann et al. (2011) ressaltam a relação com a ubiquidade e a “pervasividade” da atual fase da computação, mas diferenciam a IoT desse domínio (o que eles chamam de “Internet of People”). Mais uma vez, a expressão reforça diferenças e polarizações que de-vem ser superadas para o entendimento do social como associação entre humanos e não-humanos. Pensar na internet das “coisas” ou na internet dos “humanos” não ajuda a compreender as novas funções do objetos, nem o novo campo da comunicação. Como vimos, não é o aparecimento de objetos mediando humanos que é a novidade, mas antigos objetos com novas qualidades, produzindo novas as-sociações e revelando novas qualidades reais desses novos/velhos objetos e associações. Como afirmam Uckelmann et al. (2011, p. 8):

The future Internet of Things links uniquely identifiable things to their virtual representations in the Internet containing or linking to additional information on their identity, status, location or any other business, social or privately relevant information at a financial or non-financial pay-off that exceeds the efforts of information provisioning and offers information ac-cess to non-predefined participants. The provided accurate and appropriate information may be accessed in the right quantity and condition, at the right time and place at the right price. The Internet of Things is not synonymous with ubiquitous / pervasive computing, the Internet Protocol (IP), commu-nication technology, embedded devices, its applications, the Internet of People or the Intranet / Extranet of Things, yet it combines aspects and technologies of all of these approaches.

Gigli e Koo (2011) apresentam também categorizações inte-ressantes que nos permitem pensar as qualidades desses novos/ve-lhos objetos. São elas: 1. serviços de identificação (identity telated services), com o acoplamento de um identificador eletromagnético (como uma etiqueta RFID) a um objeto e um leitor; 2. serviços de agregação de informação agregada (information aggregation ser-vices) que são processos de captação de dados de vários sensores, processando e transmitindo essa informação pela rede para um apli-cativo; 3. serviços atentos à colaboração (collaborative-aware ser-vices), usando dados agregados para tomada de decisão e, a partir dessa decisão, efetuar uma ação; e 4. serviços ubíquos (ubiquitous services), sendo o “epítome” da IoT, atentos às coisas e pessoas a qualquer lugar e momento.

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objeto sociAl

Objects that exist simply as objects, finished, not part of a collective life, are unknown, buried under soil. Real objects are always parts of institutions, trembling in their mixed status as mediators, mobilizing faraway lands and people, ready to become people or things, not knowing if they are com-posed of one or of many, of a blackbox counting for one or of a labyrinth concealing muititudes. And this is why the philosophy of technology can-not go very far: an object is a subjects that only sociology can study - a sociology, in any case, that is prepared to deal with nonhuman as well as human actants.

Bruno Latour (1994b, p. 46)

Como vimos nos primeiros capítulos, a TAR, por ser uma teoria que pressupõe uma ontologia plana, ou seja, considerar para análise do social as ações como topologicamente equivalentes entre humanos e não-humanos, e que torna aparente as diversas associa-ções entre esses atores revelando suas redes, parece ser muito opor-tuna para pensar a fase atual da IoT em todas as suas facetas (hibri-dismo, automatismo, eficiência comunicativa, vigilância e controle). Devemos visualizar as controvérsias e o que nos coloca em causa na IoT com objetos comuns sendo dotados de novas funções infocomu-nicacionais. A TAR é uma forma de entender o hífen unindo objetos e redes telemáticas.

As perspectivas de Harman e Heidegger sobre os objetos são importantes para uma análise do objeto nele mesmo, o que é muito interessante para revelar formas de suas futuras associações. Colocá-los como dispositivos (Foucault) permite-nos enredá-los em vínculos cada vez mais amplos (geopolíticos, jurídicos, técnicos, culturais... ) e ajudar a abrir as caixas-pretas. Já a TAR coloca o objeto como social e permite que visualizemos o que nos concerne nas associações. Consequentemente, em um mundo de Big Data, automatismo nas trocas informacionais em rede na qual temos cada vez mais objetos “comunicando” de forma independente da ação humana, esse tripé (filosofia do objeto, dispositivo e TAR) nos ofe-rece excelentes “cosmogramas”, diagramas do movimento das asso-ciações, diferente dos paradigmas que seriam frames explicativos, modelos fixados a priori, como vimos.

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262 A COMUNICAÇÃO DAS COISAS

Mostramos que a IoT é a interconexão de objetos reais e vir-tuais a redes telemáticas por protocolos de comunicação (IPv4 e migrando para IPv6), tendo como seus elementos fundamentais os objetos reais, sensores, atuadores, aplicativos, base de dados, que coletam, processam e distribuem informações de forma automática, bem como os usuários finais que em muitos casos nem percebem a ação dos objetos. Vimos os tipos, as áreas de atuação, as tecnologias e as vantagens (automatismo, eficiência, objetividade, transparên-cia, conforto) e desvantagens (privacidade, falta de padronização, segurança no trânsito dos dados, marco regulatório...).

Nos projetos de IoT diversas mediações em várias áreas da vida social: na escola, na cidade, no comércio, na indústria, no con-trole e vigilância policial... Lidamos agora com uma ação instituída em algoritmos. A ação deve ser deixada para a negociação judicial (há uma lei e analisa-se depois se houve ou não uma ação de desres-peito da lei) ou a lei deve ser implementada diretamente no software, como, por exemplo, quando um carro não puder passar de 80 km/h em uma rodovia, essa decisão não estará mais com o motorista e sim com o carro já que a velocidade seria controlada pelo software que, por geolocalização, “sabe” qual a velocidade permitida e obriga o carro a andar nesse regime de velocidade.

Não podemos abandonar os objetos. Assim sendo, é preocu-pante a ausência de uma reflexão filosófica sobre os objetos, bem como o desconhecimento da TAR como uma perspectiva teórica importante para visualização das controvérsias e das redes que estão se constituindo nesse campo. Isso nos coloca um desafio teórico em um terreno ainda pouco explorado.

Cabe ao analista colher os rastros, observar as distribuições das agências, ver o que nos provoca enquanto seres políticos, observar regimes de visibilidade e invisibilidade a fim de analisar o social que surge nas controvérsias de projetos de IoT. É importante pensar essa nova relação entre objetos que ganham qualidades comunicacionais e performatividade sobre outros objetos e pessoas à distância e como eles estão configurando o social como associações híbridas, gerando problemas com dimensões políticas, ética, morais e comunicacionais importantes. Vamos analisar, a título de ilustração, como o uso de eti-quetas RFID em escolas traz o problema para o campo da educação.

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RFID na Escola

A fim de exemplificar uma das controvérsias de projetos de IoT, analisamos a implementação de etiquetas de radiofrequência nos uniformes de alunos de uma escola municipal em Vitória da Conquista (BA)11. O projeto, inovador no Brasil, tem como objeti-vo controlar a entrada e a saída de alunos do Centro Municipal de Educação Professor Paulo Freire (CAIC), em Vitória da Conquista (BA). A Prefeitura investiu cerca 1,2 milhão de reais no projeto. O objetivo é que, até o final de 2013, todos os 43 mil estudantes da rede pública da cidade, entre 4 e 14 anos, já possuam uniformes com a tecnologia RFID. Para a eficiência do sistema o mesmo é totalmente automatizado (sem interferência de actante humanos), compulsório (não há escolha por parte do aluno ou da família) e gratuito (não há desculpas para não se usar o uniforme “inteligente”).

A experiência suscitou diversas controvérsias entre pedago-gos, psicólogos, jornalistas, intelectuais, pais e alunos. Esse caso de aplicação de IoT é interessante para mostrar como as controvérsias expressam as tensões do social antes de estabilizações e caixas--pretas. Aqui, uma nova qualidade dos objetos traz à baila questões técnicas, mas também pedagógicas, familiares e mesmo policiais, alterando regimes de sociabilidade no âmbito escolar.

Toda etiqueta RFID tem um código universal. Ela é cadastra-da no sistema da instituição com os dados do estudante e o número do telefone celular de seus pais ou responsáveis. Um leitor foi ins-talado na portaria da escola. Quando o aluno vestindo o uniforme passa pela portaria, o leitor ativa a etiqueta nesse exato momento, produzindo uma informação (entrada ou saída de aluno). Como cada etiqueta tem um número, esse é associado a um aluno específico. Assim, ao detectar a entrada e saída do aluno X, o sistema envia, automaticamente, um SMS para o telefone cadastrado dos responsá-veis desse aluno. Todos os alunos matriculados no Centro já recebe-ram, gratuitamente, duas peças do uniforme “inteligente”.

11 Como vimos no capítulo dois, esta discussão foi feita por um dos grupos de estu-dantes da minha disciplina. Ver http://educacaoradiofrequenciada.wordpress.com

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Podemos dizer que muitos actantes se envolvem nessa contro-vérsia. Esquematicamente, separamos em humanos (a diretora-geral do Centro, a secretária de Educação de Vitória da Conquista, o coor-denador do projeto, os alunos do Centro, os pais e mães de alunos, o prefeito de Vitória da Conquista) e os não-humanos (a empresa Da-Costa RFID, a Prefeitura de Vitória da Conquista, as etiquetas de ra-diofrequência, os uniformes escolares, o escudo, o Centro Municipal de Educação Professor Paulo Freire, os leitores de RFID, o sistema informatizado, as redes de telecomunicação, a operadora de telefo-nia, os celulares, a lei de regulação). As suas relações se estabelecem durante um período de tempo de forma polêmica e controversa. Hoje parece estar estabilizada, embora novos actantes possam criar deses-tabilizações (o uso mostrará essas novas polêmicas).

Esse sistema (automático, gratuito e compulsório) traz ao debate a relação entre dimensões legais, políticas, educacionais e tecnológicas da IoT. Não é um problema apenas técnico, ou social, ou cultural, ou policial, ou político. Ele revela questões que tocam todas essas esferas. Na controvérsia aqui suscitada, o uso de etique-tas RFID se dá com um artefato técnico atuando como mediador das relações entre alunos, pais e professores. O escudo na camisa, no qual a etiqueta RFID foi implantada, é aqui um objeto mediador da relação entre os diversos actantes, cuja delegação (ao chip e ao sis-tema) institui formas morais e éticas no script do sistema (BIJKER e LAW, 1994).

Interessante perceber no discurso da coordenadora do CAIC que tudo não passa de uma questão de controle, reforçando estereó-tipos tanto do determinismo tecnológico, como da falta de segurança pública12. Esses foram os argumentos fortes para a implementação do sistema. Em entrevista aos alunos, a coordenadora pedagógica afirmou:

É uma questão de controle dos alunos. Como a escola é muito grande e temos, aqui, somente alunos do ensino fundamental, que demandam uma maior responsabilidade, achamos importante ter esse maior controle através da tecnologia. Havia também muitos casos de alunos que saíam da escola e

12 Esses depoimentos foram colhidos pelos alunos do grupo que desenvolveu a aná-lise da controvérsia: http://educacaoradiofrequenciada.wordpress.com

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não iam pra casa, e sim para outros lugares, deixando os pais preocupados. Com os uniformes inteligentes, pais e mães ficam mais tranquilos ao saber o horário que seus filhos saem da escola.

Agora, nós temos um maior domínio de quantos alunos vêm à escola todos os dias. E também podemos deixar os pais mais cientes da vida escolar dos seus filhos.

Eles (os pais) gostaram bastante da medida. Há, porém, reclamações a res-peito das operadoras de celular. Algumas operadoras, como a Oi, por exem-plo, não têm um bom sinal aqui em Vitória da Conquista e as mensagens demoram pra chegar.

Não, eles (os alunos) aceitaram numa boa. Alguns ficaram surpresos com a adoção dos uniformes, mas não chegaram a se manifestar contra.

O objeto (escudo do uniforme) ganha propriedades infocomu-nicacionais (e também morais e éticas) servindo como mediador de formas de vigilância, controle, monitoramento e comunicação entre alunos, pais e professores. Aqui, o objeto sensual é o mesmo (o es-cudo/uniforme) e sua qualidade sensual só é percebida se houver a visualização dos rastros digitais deixados ou a publicização dessa nova função.

Lembremos que, para Harman (2011a), a tensão entre o obje-to sensual e qualidade real é o eidos. Vejam que com o exemplo dos escudos dos uniformes, a mudança mais notável é na qualidade real do objeto. Ele permanece sendo o mesmo escudo (qualidade sensual e objeto sensual não mudam). O objeto real permanece inescrutável. Assim, podemos supor que o eidos muda, já que a relação objeto sensual (o mesmo escudo) e a qualidade real muda. Agora o escudo é bem mais do que um escudo, já que ele aciona uma rede sociotéc-nica complexa a partir de artefatos eletrônicos conectados, sendo ele um desses. Ele é agora uma mídia, um instrumento de controle de outra ordem. Vejam que ele já era um dispositivo de controle antes, já preso a uma camisa, compõe assim o “uniforme” que identifica o estudante e faz com que ele entre na escola. Mas agora ele é também um dispositivo eletrônico de controle. Nesse sentido, a percepção intelectual do objeto é alterada (a sua qualidade real).

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Um estudante que ignorasse a nova qualidade do objeto, po-deria usar o uniforme (sair e entrar na escola), sem saber que o escu-do estaria coletando a informação dessa ação (entrar e sair da escola) e, mais ainda, comunicando de forma automática a ação aos direto-res da escola e aos seus responsáveis. Ele só perceberia, a posteriori, que o escudo é um instrumento mais performático de controle e que monitora o seu movimento. Ele não é apenas um passe para entrar e sair. Ele é um monitor silencioso e eficaz de seu movimento. Como o objeto e a qualidade sensuais permanecem os mesmos (a etiqueta RFID13 introduzida no objeto é imperceptível), só depois, com as sanções (da escola ou dos pais) ele iria detectar essa nova caracte-rística do objeto.

Podemos pensar sobre a qualidade real desses objetos em sua nova trajetória: o uniforme é agora um objeto infocomunicacional, um actante importante na relação entre humanos (pais, alunos, pro-fessores) e não-humanos (a escola, a operadora, a RFID...). Notem que esconder no escudo a sua função performativa é transformar o conjunto “escudo - camisa - RFID” em uma caixa-preta, neutrali-zando e colocando a sua visibilidade no “fundo”. Ele só aparece na controvérsia ou se houver falhas (sociais, técnicas, políticas...) no sistema. A visibilidade / invisibilidade é aqui uma questão política e pedagógica. As etiquetas RFID alteram a relação dos objetos, ga-nhando novas qualidades que podem passar despercebidas, ou não serem discutidas (o script moral e ético que falava anteriormente).

O microchip foi instalado sob o escudo da instituição14, no qual podemos ler a frase do educador Paulo Freire: “A educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas trans-formam o mundo”. O lema no escudo reforça a visão humanista do

13 Veja que a questão da invisibilidade é um problema desses chips, chamados por especialistas de “espiões”. Sobre os problemas de segurança e transparência do uso desses “chips espiões” ver Albrecht e McIntyre (2005) e o site Spychips: http://www.spychips.com

14 A questão é bem atual, e escolas nos EUA estão adotando o mesmo procedimento em braceletes. Mas aqui a “função bracelete” é a de ser um instrumento de moni-toramento. Aqui o objeto revela a sua função. O objeto sensual está bem ajustado à sua qualidade sensual. Ver a matéria do NYT, “Student IDs That Track the Stu-dents”, disponível em http://www.nytimes.com/2012/10/07/us/in-texas-schools--use-ids-to-track-students.html?_r=2&hp, acesso em 10 de outubro de 2012.

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educador e mais uma vez insiste no privilégio do humano sobre o não-humano, esquecendo que a sala de aula é um artefato construído para abrigar esse tipo de discurso (o escolar), e que sem essa estru-tura física, e outros objetos, o professor ou “a pessoa” não existem. Pessoas – objetos transformam o mundo. As pessoas e os objetos são a educação.

Não podemos esquecer que o ambiente escolar é um híbrido de instrumentos pedagógicos e disciplinares desde sempre (salas, laboratórios, equipamentos, regras de conduta, rituais quotidianos e filas, cadernetas escolares e boletins de notas...). Um boletim é um boletim, uma caderneta é uma caderneta, uma sala de aula é uma sala de aula... Todos esses objetos têm uma qualidade que se esgota (em parte) na sua materialidade e na história de seus hábitos de uso. No caso da IoT, em geral, e das RFIDs nos escudos do uni-forme, em particular, o que temos é uma nova trajetória do objeto “uniforme” que faz com que sua qualidade (real) seja ampliada para performances infocomunicacionais (que podem ser invisíveis e não percebidas), trazendo assim questões éticas, morais, pedagógicas dessa nova delegação e mediação. O mesmo pode acontecer com todo e qualquer objeto.

Várias perguntas emergem dessa mediação. Podemos inda-gar sobre o projeto pedagógico por trás desse sistema. Seria esse o sistema mais eficiente para resgatar o diálogo entre pais, alunos e educadores ao transferir (delegar) a um sistema automático a re-lação? Como esse sistema se relaciona com aquilo que é oferecido pela escola (alimentação, transportes, bons professores, ambiente laboratorial, convivialidade...)? A comunicação entre pais e escola não deve ser feita pela mediação a partir do diálogo mais recorrente, complexo e menos automatizado? A simples delegação ao sistema dessa conversação não seria um esvaziamento da questão social, cultural, política e pedagógica da escola? Não caberia, antes de qual-quer disparo automático de uma informação, discutir com o aluno o porquê da sua ausência ou do seu afastamento em um determinado momento? A informação sem contextualização não seria uma sim-ples burocratização das relações e simplificação das suas causas e consequências? A relação entre comunicação e controle não deveria ser contextualizada e não apenas delegada a um sistema de IoT? A

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suposta transparência não estaria escondendo mais do que revelando os problemas da instituição (insatisfação com os professores, com a escola, bullying, falta de estrutura...)?15

Não é por mero acaso que o escudo, com esse slogan, tenha sido escolhido como o lugar mesmo de comunicação do objeto com outros objetos, agindo sobre a moral e a ética escolar, comunicando a pais e professores de forma automática as ações e movimentos dos alunos. O escudo é o símbolo do controle, o passe da entrada, a imagem da instituição. No entanto, é bastante questionável que um sistema automatize o que deveria ser motivo de conversação e de entendimento entre as partes envolvidas. A IoT aqui toma o lugar do diálogo e da negociação mediando a ação entre humanos e não--humanos com delegações precisas da ação. A escola passa assim a informatizar o sistema de conversação pelo sistema que detecta o movimento, checa o sistema, envia o SMS, finaliza a sua missão, “lavando as mãos”. Será essa uma função da escola?

pArlAmento dAs coisAs

Buscamos aqui apontar para uma transformação nas qualida-des reais dos objetos com os projetos de IoT. A transformação do objeto sensual é bem menos visível. Portanto, na atual fase da IoT, objetos do quotidiano, como uma xícara, um carro, um escudo, ga-nham capacidades infocomunicacionais que alteram a sua relação com o mundo, com os outros objetos humanos e não-humanos. A qualidade real do objeto, como aquela que percebemos intelectu-almente, muda a partir dessa discussão e do novo objeto sensual. Se muda o tipo do objeto muda a relação entre sujeitos e objetos, as associações e, portanto, o social. Se é assim, precisamos pensar sobre essa mudança. Para Latour (2005b, p. 5), um “parlamento das coisas” (Latour), como discussão de causas, deve se estabelecer:

It’s clear that each object – each issue – generates a different pattern of emotions and disruptions, of disagreements and agreements. There might

15 Ver entrevista com F. Bruno reforçando essas questões: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=3&noticia=746

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be no continuity, no coherence in our opinions, but there is a hidden con-tinuity and a hidden coherence in what we are attached to. Each object gathers around itself a different assembly of relevant parties. Each object triggers new occasions to passionately differ and dispute. Each object may also offer new ways of achieving closure without having to agree on much else. In other words, objects – taken as so many issues – bind all of us in ways that map out a public space profoundly different from what is usually recognized under the label of “the political”. It is this space, this hidden geography that we wish to explore through this catalog and exhibition.

A mudança da eidos tem implicações políticas, sociais, cultu-rais e pedagógicas, como vimos. Indicamos que os objetos seguem sua trajetória nas associações e que, agora, objetos comuns da vida quotidiana estão ganhando capacidades performativas inéditas. Não se trata do ineditismo da comunicação das coisas, já que os objetos estão sempre em associações, mas de chamar a atenção para uma nova forma de relação entre objetos e humanos a partir da atual tra-jetória informacional. Uma etiqueta RFID em um escudo escolar altera em muito a relação que aí se estabelece. E os outros projetos?

Mostramos como a TAR pode ser de grande ajuda para a compreensão desse fenômeno, já que ela parte da hipótese inicial de que não há essência e que tudo se define pelas associações. Huma-nos e não-humanos não são hierarquicamente diferentes, cabendo ao analista distinguir as formas de delegação, mediação e interme-diação que se estabelecem em cada associação. Podemos analisar os fenômenos da cultura digital tendo como ponto de partida o hibridis-mo entre humanos e não-humanos e a definição de suas “funções” apenas pelas associações que se estabelecem em um determinado momento, e que podem não mais se estabelecer no futuro. Mas pre-cisamos equilibrar e fazer as coisas tornarem-se públicas: discutir a etiqueta RFID é colocá-la no parlamento. Assim, os objetos passam a ser “matter of concern”. Vejam o que diz Latour (2005b):

...imagine a parliament without its material set of complex instruments, “air-conditioning” pumps, local ecological requirements, material infras-tructure, and long-held habits is as ludicrous as to try to parachute such an inflatable parliament into the middle of Iraq. By contrast, probing an object-oriented democracy is to research what are the material conditions

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that may render the air breatheable again (p. 8).Are not all parliaments now divided by the nature of things as well as by the din of the crowded Ding? Has the time not come to bring the res back to the res publica? This is why we have tried to build the provisional and fragile assembly of our show on as many fault lines from as many tectonic plates as possible (p. 12).On the contrary, in the object-oriented conception, “parliament” is a techni-cal term for “making things public” among many other forms of producing voices and connections among people. By this comparative visit, we seek to learn how parliaments – with a small “p” – could be enlarged or connected or modified or redrawn. Instead of saying that “everything is political” by detecting dark forces hidden beneath all the other assemblages, we wish on the contrary to locate the tiny procedures of parliamentary assent and dissent, in order to see on what practical terms and through which added labor they could, one day, become pertinent. In this show, we hope visitors will shop for the materials that might be needed later for them to build this new Noah’s Ark: the Parliament of Things. Don’t you hear the rain pouring relentlessly already? And Noah for sure was a realist (p. 24).

Um momento de abertura de caixa preta é a controvérsia en-volvendo a IoT e particularmente o uso de etiquetas de radiofrequ-ência em uniformes de alunos do CAIC, na Bahia. Essa controvérsia revela as tensões nas associações onde questões emergem com as novas qualidades dos objetos. Com estas discussões, tentamos mos-trar como a TAR pode ajudar a revelar essas redes associativas exi-bindo estereótipos, crenças e visões polarizadas envolvendo a tecno-logia, a educação, as relações sociais, a educação e a comunicação.

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7. entrevistA com bruno lAtour1

André Lemos (AL) – Em sua conferência no colóquio inter-nacional “A vida secreta dos objetos”2, em Salvador, duas frases me chamaram atenção: 1. “A objetividade não é uma questão de episte-mologia, mas de sobrevivência”; 2. “Passamos do universo infinito ao cosmos fechado”, invertendo Koyré (2003). O senhor poderia nos explicar essas ideias?

Bruno Latour (BL) – A questão da ciência sempre esteve atre-lada a uma questão epistemológica, como se o problema mais im-portante fosse saber o que podemos conhecer ou não. A questão da objetividade foi concebida na disputa entre o realismo e o relativis-mo. Isso corresponde a um certo estado de conhecimento em torno de questões de filosofia das ciências. Agora, por causa da expansão das controvérsias (a partir do fato de que os objetos não são mais

1 Entrevista realizada no dia 8 de agosto de 2012 em Salvador, Bahia, Brasil, por mim, com participação de André Holanda e publicada em francês (HOLANDA, A., LEMOS, A., 2012). Apresento aqui uma versão editada e traduzida para o por-tuguês. Agradeço a Leonardo Pastor que ajudou na transcrição da entrevista no original e na tradução da mesma para o Português. O texto aqui apresentado foi mo-dificado e os problemas que ainda persistem são de minha inteira responsabilidade.

2 Ver o site - http://avidasecretadosobjetos.wordpress.com

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“matters of fact”, mas sim, imbróglios, gambiarras3 nas quais exis-tem incertezas sobre as ciências, a técnica, a política, o direito etc.), a questão da objetividade tornou-se uma questão muito delicada. É por isso que eu simplifiquei um pouco ao dizer que passamos de uma questão epistemológica a uma questão de sobrevivência4. Sem isso, ficaremos presos à ideia de que a única virtude interessante na ciência é a questão do conhecimento. Ora, a questão do conheci-mento é importante. Mas sabemos como fazer, sabemos como obter certezas. Não é esse o problema. O problema é encontrar o acordo e continuar. A noção de fato indiscutível é menos interessante que a questão de saber como se obtém, por discussão, um acordo sobre os ‘matters of concern’ em situação de tensão extrema face à extensão de controvérsias. A segunda frase...

AL – Passar do universo infinito ao cosmos fechado.

BL – Sim, é um problema. Não sei se tenho razão, mas é um sentimento ligado ao trabalho de (Peter) Sloterdijk. Na definição antiga, estávamos em um cosmos fechado (nem todos, entretanto; para muitas civilizações, o universo não era assim tão fechado). Os europeus tinham um espaço fechado que evidentemente explodiu. Passamos “do cosmos fechado ao universo infinito”. Isto coloca em questão problemas de valor. Não sabíamos mais onde estávamos: sob o pathos de Pascal, o pathos de Kant, o pathos de Freud etc. Não sabíamos qual o nosso lugar. E, muito rapidamente, desde o fim dos anos 1980 do século passado, com a descoberta da Terra como limite, retornamos à ideia de um cosmos, mas sem uma cosmologia correspondente. Estamos em uma era de limite e de desordem.

AL – Aqui o pensamento de Michel Serres é muito impor-tante...

3 Latour utiliza a palavra “gambiarra”, em português, exatamente no sentido brasi-leiro relacionado ao improviso, desvio (muitas vezes ilegal) em infraestruturas ou objetos. A gambiarra é uma apropriação social muito popular no Brasil.

4 A questão aparece mais fortemente no enquete sobre os modos de existência (LA-TOUR, 2012a), como explicamos no primeiro capítulo. Latour afirma no seu úl-timo livro que não se trata de questões de substância, mas de sobrevivência.

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BL – Sim, é o que dizia Serres em “O Contrato Natural”. Isso não quer dizer que voltamos ao cosmos antigo, porque ele não é de nenhuma forma ordenado. Temos a impressão de estarmos, de novo, em um espaço que, na história das ciências, chama-se infralunar, por oposição ao supralunar, que é uma espécie de pequeno limite, um espaço que não tínhamos antes.

AL – O senhor disse em sua conferência que devemos fazer os objetos saírem de sua clandestinidade e documentá-los. Como? Pela cartografia de controvérsias? Pela documentação de rastros? Essas descrições e documentações são a possibilidade de constituir o que o senhor chama de “parlamento das coisas”?

BL – Sim. Essas são noções um pouco fabricadas, “gambiar-ras”. “Parlamento das coisas” é tipicamente uma mistura. Gostaria de utilizar uma antiga terminologia a qual estamos habituados em polí-tica e, em seguida, adicionar “as coisas”, entendidas como negócios, como “matters of concern”, como disputas. O que é, aliás, o sentido antigo da palavra “coisa”, disputa, o que nos atrai já que não estamos de acordo. Portanto, não parece sem sentido falar de parlamento das coisas, se entendemos “coisa” no sentido de “negócio”, como “con-trovérsia”. Para mim, a análise de controvérsias é uma espécie de...

AL – Fazê-los sair da clandestinidade, de documentá-los...

BL – Sim, mas isso não os vai deixar mais transparentes. Vai torná-los oficiais. Por exemplo, este hotel mal construído5. Se ele fosse público, se levasse uma vida pública, isso não significaria di-zer que teríamos feito um bom prédio... O fato de falar das coisas como matters of concern não resolve nada. Mas cria-se um voca-bulário para fazê-las sair da clandestinidade (que foi o tema de seu colóquio), e dá-las uma documentação. Elas são relativamente traçá-veis e construímos hábitos, como o que você fez com as cartografias de controvérsias que vimos antes6 (a cronologia, a multiplicidade

5 Latour refere-se ao hotel em que ele estava hospedado em Salvador. 6 Latour se refere à cartografia de controvérsias que eu desenvolvi (e que vimos juntos

antes da entrevista) com meus estudantes de graduação descrita no capítulo dois.

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dos atores, o fato de que há diversas vias etc.). Isso coloca hábitos diferentes de eficácia, de rentabilidade, de objetividade, três crité-rios a partir dos quais julgamos e, sobretudo, dizemos: “tudo isso é indiscutível!” Os políticos, os estetas, os sociólogos discutem, mas a partir de zonas centrais não há discussão. Se estamos nesta situação, retornamos aos objetos, à objetividade, à clandestinidade.

AL – Lendo seus livros e artigos, alguns afirmam a diferença entre os intermediários e os mediadores. Os primeiros são aqueles que fazem o transporte, mas não modificam os outros. Os últimos são os agentes, actantes que modificam e mudam eles mesmos e os outros ao longo das associações. Mas em outros livros o senhor pa-rece dizer que no fundo não há nenhuma possibilidade de transportar sem transformar, sendo o intermediário igualmente um mediador. Existe a possibilidade de fazer o transporte sem transformação?

BL – Não.

AL – Então um intermediário é sempre um mediador?

BL – Novamente, são conceitos um pouco “briocolés”. Neste tablet que te serve como gravador, a tela está quebrada7 e uma pe-quena parte da mediação aparece...

AL – Sim, e eu fiz uma “gambiarra” ao colocar fita adesiva para colar a tela...

BL – Existem tantos componentes neste aparelho quanto... você sabe, no programa Apollo. Os computadores do programa Apollo eram menos potentes que esse tablet... Nele existem dezenas de milhares, talvez milhões de elementos que são alinhados e que consideramos, com razão, como simples intermediários. É o martelo quebrado, o famoso exemplo de Heidegger. Então, a diferença “me-diadores - intermediários” não é uma diferença conceitual porque, evidentemente, não há apenas intermediários. Cada elemento que

7 Latour aponta para meu iPad (que eu utilizei para registrar a entrevista) e faz refe-rência a sua tela quebrada.

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está agora alinhado foi objeto de uma invenção, de um certificado, de uma descrição, de uma fábrica etc.

É necessário, para se obter os efeitos de alinhamento, pagar pelos efeitos de organização, de geopolítica. É sempre uma relação, como diz Harman8 de maneira bastante interessante, de forma. Lo-calmente temos os alinhamentos de intermediários para os quais, grosso modo, trata-se realmente de uma caixa-preta. Mas, para obter esses efeitos intermediários é necessário, em outro lugar, que uma enorme quantidade de mediação tenha sido implantada e mantida.

Tenho uma máquina Miele, uma máquina de lavar. Para com-preender a sua confiabilidade é necessária toda a cultura alemã de engenheiros por trás. Ela, para mim, é um intermediário. Mas se ob-servo agora em ator-rede o conjunto que permite a ela ser intermedi-ária, vejo todas as mediações necessárias à manutenção da existên-cia da cultura engenheira alemã. São conceitos sempre localizados que dependem, de alguma forma, do local onde estamos situados.

AL – A TAR parece ser uma teoria do presente, do ponto de ebulição, da mobilidade, do momento onde as coisas se produzem. Como essa teoria trata o passado, e particularmente o futuro?

BL – Não há distinção entre fazer uma análise ator-rede de elementos históricos ou sobre o presente. Eu mesmo trabalhei sobre Pasteur. É exatamente a mesma coisa. Por outro lado, existem duas questões em sua questão. Há aquela sobre o método. Eu diria, ao contrário, que ator-rede é um método histórico, de atenção ao me-diador, bastante clássico, completamente compatível com os hábitos da história.

AL – Sim, encontrar os rastros é refazer a história...

BL – Sim. É aplicar os métodos históricos a questões muito amplas. É por isso que os historiadores se sentem satisfeitos. Esse método veio em grande parte da história das ciências. A Teoria Ator-Rede é uma mistura de história das ciências, etnometodolo-

8 Latour se refere à conferência de Harman no Colóquio Internacional “A Vida Secreta dos Objetos” - http://avidasecretadosobjetos.wordpress.com

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gia e semiótica. Portanto, é uma gambiarra de primeira! A Teoria Ator-Rede é algo completamente brasileiro (risos)!

Por outro lado, é uma questão de filosofia sobre a questão da potência. E mudei um pouco de ideia em relação a “Irréduction” (LATOUR, 1984). A crítica da noção de potência era para se afastar da oposição “força e razão” que paralisava, e paralisa sempre e ainda mais, a discussão. Era um instrumento de polêmica, de crítica da noção de potência que tinha um efeito deletério. Quando utilizamos a potência, podemos sempre escapar, acrescentando força à força. “Irréduction” foi um ponto crítico para resgatar o mundo das redes. Quando utilizados força e razão, as redes não são mais visíveis.

Eu mudei na análise dos modos de existência9. O modo em rede é um modo de análise que não é suficiente. A análise ator-rede é ideal para destrinchar as associações, mas há uma enorme falha, em par-ticular, a de não entender a variedade das conexões. Não manteria a minha posição sobre o conceito de potência. O ator-rede é um dos mo-dos, uma das formas de preparar o terreno. Mas ele deixa escapar essa coisa muito importante, seja no direito, seja no terreno religioso: as pessoas que estão nessas práticas fazem muito bem a distinção entre ciência, religião, direito. A análise em termos de redes não é capaz de captá-las. Ela funciona muito bem como ferramenta para delinear as-sociações, mas é insuficiente para caracterizar os modos de existência.

AL – A TAR coloca os humanos e não-humanos em uma po-sição de igualdade. É sua “ontologia plana”. Mas porque os huma-nos fazem questões sobre eles mesmo e sobre os não-humanos, isso parece ser uma divisão não muito produtiva. O senhor mostrou isto em seu capitulo no livro “Shaping Technology” (BJIKER e LAW, 1994): o problema com os termos, a gramática. Como o senhor pen-sa essas questões hoje? É melhor falar de “modos de existência”, como o senhor propõe em sua pesquisa atual?

BL – Não. Aqui eu sou ainda mais radical do que antes em relação aos humanos e não-humanos. Todos os trabalhos que foram

9 Latour refere-se a sua última obra (2012a), “Enquête sur les Modes d’Existence”, na qual a noção de rede é um dos modos e não o conceito central, como vimos no primeiro capítulo.

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feitos, tanto em antropologia quanto em outras áreas, mostram que a distinção entre os humanos (que falam) e as coisas (que não fa-lam) não corresponde nem à maneira como cantam os cantores, nem à maneira que o titereiro vive com suas marionetes, nem à forma da nossa responsabilidade ecológica… Ela não nos permitiria com-preender os seres do Candomblé. Aqui devemos ser, ao contrário, muito firmes: a ideia de que são sempre os humanos que falam e que tomam iniciativa, quando todas as experiências mostram o contrário (somos tomados pelas emoções, pelos desejos de transformar, pelos seres que nos habitam...). Sobre esse ponto, a ideia inicial do ator--rede era muito boa... Os humanos e os não-humanos deverão ser associados. Acredito que essa ideia precisa ser reforçada. Contraria-mente à noção de potência, que é uma noção que eu reconheço ser discutível, deve-se ser muito mais radical para poder preencher as interações de todos os seres que agem, que fazem, que falam...

AL – Para afirmar a ontologia plana?

BL – Sim, mas muito mais que isso. A articulação está no mundo. É o mundo que é articulado, não os humanos. Basta olhar para as crianças. Olhando para meu neto, Ulysse, refazemos a expe-riência que você teve com as suas. Desde que há crianças, elas falam muito antes de falarem... Podemos dizer isso dos caracóis, dos carra-patos, como fez Deleuze... A dificuldade começa pelas pedras, mas, mesmo assim, Whitehead mostrou que elas também são articuladas. A linguística nos colocou em uma armadilha limitando a linguagem àquela que os linguistas são capazes de captar com um gravador. Mas esta é uma parte minúscula do que podemos chamar de articu-lação. É o mundo que é articulado. Então, ao contrário, deve-se ser muito mais firme em relação ao não privilégio de articulação dos humanos.

AL- O modo de existência é um clássico de Gilbert Simon-don. Quais são as proximidades entre você e Simondon?

BL – As palavras: “modo de existência”. Mas, para além das palavras, não há muitas ligações. Sim, existe uma ligação com a

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genealogia que ele faz do modo de existência, que é ainda uma ideia de gênese a partir da magia... Retomo, de fato, as palavras “modo de existência” e, evidentemente, a técnica – que me interessa muito –, mas a ligação não é direta. A aproximação é mais importante com Etienne Souriau (LATOUR, 2011b e SOURIAU, 2009), um autor completamente desconhecido que ressuscitamos e que escreveu um pouco antes de Simondon um livro que se chama “Les différents modes d’existence”, que é o único livro de fato realmente conectado ao meu projeto. Mas Simondon é importante porque é um dos únicos a desenvolver uma filosofia da técnica séria. É inacreditável, quando vemos o caráter absolutamente comum das técnicas, a extraordinária fraqueza da filosofia da técnica. Somos sempre levados a Heidegger e seu martelo... Quando pensamos na importância das técnicas!

AL – Em seus artigos e conferências recentes, o senhor mos-trou a importância dos dados digitais como meio de visualizar as associações. As novas tecnologias digitais serão importantes ferra-mentas para a formação de um conhecimento sobre os atores e sobre as formas atuais de associação. Se isso é verdade, o senhor acredita que as TIC poderiam nos ajudar a melhorar as condições de existên-cia e serem aliadas de Gaia?

BL – Sim, tudo que torna visíveis as conexões, incluindo aquelas entre nossa ação e dos outros, a existência das ciências, o poder de modificar o ponto de vista e permitir a sua transformação. É o “perspectivismo”, para usar a expressão de Viveiros de Castro (2002), prático, na qual as ciências são os melhores exemplos. So-bre o digital, eu não sou como você, especialista. Eu me interesso pelo método digital por uma razão única (e foi por isso que eu criei o “médialab de Science-Po”10): para seguir a intuição de Tarde. Ele tinha uma ideia de microanálise das relações independentes, infra--individuais (não individuais), de fluxo de inovações e de imitações infra-individuais através dos quais não havia evidentemente nenhu-ma estatística (mesmo ele conhecendo muito bem o assunto, já que dirigia um instituto de estatística que foi ridicularizado depois por

10 Sobre o médialab Science-Po ver http://www.medialab.sciences-po.fr/index.php?page=accueil

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Durkheim e outros). É isso que me interessa. Eu não acredito que o digital seja uma revolução, mas isso eu deixo para as pessoas que conhecem muito mais que eu. Por outro lado, em termos de teoria social, o fato de poder enfim vingar a hipótese de Tarde me interessa muito. No médialab, começamos a produzir alguns artigos impor-tantes. É assim que utilizo o digital, além de todos os outros aspectos que me interessam também: “O que é um livro digital?” etc.

Você me falou de uma escola no Brasil que dá aos alunos uni-formes com um pequeno chip RFID que nos faz saber se eles estão na escola ou não. O sistema envia diretamente uma mensagem SMS a seus pais dizendo “Eric não chegou no colégio, ele saiu mais cedo, ele matou a aula”... Aqui se deve fazer distinção entre os elementos que muitas pessoas estudam, que são os elementos de dominação absolutamente clássicos, surveillance society e o interesse que isso representa.

Eu tenho um (caso) que me interessa muito. É a difusão, qua-se em todos os hotéis do mundo, nos banheiros, onde a funcionária de limpeza dobra o papel higiênico na forma de um triângulo. Isso não existia quando éramos jovens, mas se espalhou pelo intermédio de um gabinete de conselho do grupo Accor (para informar se a limpeza fora ou não realizada). Esse gênero de fato epidemiológico, diríamos, microindividual, seria impossível de ser estudado antes. A vantagem do digital para mim é que muitos temas e assuntos ga-nham grande importância. Eles são agora capturáveis e calculáveis.

A meu ver, a vantagem principal é que temos dados. Os soci-ólogos têm agora dados que para as pessoas de ciências exatas são legíveis. E isso muda completamente a conversa. Quando você vê um geógrafo, um geólogo etc. com os dados (como aqueles que co-meçamos a obter no médialab), mesmo que eles tenham os precon-ceitos os mais absurdos em relação ao social e sobre a sociologia, eles compreendem alguma coisa. Visualmente há uma compatibi-lidade quase estética entre os seus dados e os dos outros. É muito importante, porque os dados entram cada vez mais no “Big Data”.

E é aqui que podemos colocar sua pergunta sobre Gaia. Ne-cessitamos de modos de representação. E é aí que voltamos ao “par-lamento das coisas”. O objetivo da cartografia de controvérsias é ser um instrumento para equipar aqueles que estão no parlamento

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virtual. Não é porque ele é virtual que ele não existe! As cartografias de controvérsias mostram que esses parlamentos virtuais podem ser agrupados nos blogs, na imprensa, na literatura científica etc. E é aqui que podemos desenvolver o consórcio de controvérsias. Isso é muito importante para a democracia.

AL – Falávamos ontem de Gaia no Pelourinho e o senhor me disse que o Brasil teria um papel importante na fase atual dessa controvérsia da vida do planeta. Qual é sua opinião sobre o papel mundial do Brasil?

BL – Se o Brasil ou a Índia não ocuparem os seus papéis, começaremos muito mal. Não podemos esperar nada nem da China e nem da América...

AL – Mas por que deveria vir dos BRICS11?

BL – Os BRICS são muito importantes nesse assunto (eu não incluo a Rússia)... O Brasil e a Índia têm divindades. Essas coisas não poderiam vir de outros povos que não os que possuam divinda-des porque sem elas é re-naturalização, ecologia. E a naturalização não faz nada avançar. Já passamos por isso. Sabemos que não fun-ciona. Isso não dá ingredientes políticos. Discutíamos com Eduardo (Viveiros de Castro) sobre a questão energética. Existe hoje a ten-tação de dizer que não é a economia e sim a energia que é o mais importante. A meu ver isso não muda nada, sendo uma nova natu-ralização pela energia, tendo o mesmo defeito da naturalização pela economia. A repolitização dos elementos precisa passar pelas di-vindades. E é aqui que Gaia me interessa, por mobilizar as paixões, provavelmente da ordem daquelas que foram mobilizadas pelas re-ligiões. Isso não quer dizer que se trata de um movimento religioso.

Gaia é um conceito científico. É preciso que ele continue como um conceito científico. Gaia é acusada de ser New Age e, a meu ver, talvez seja realmente New Age. Não se deve mais evitar o caráter New Age. Por todos esses elementos de mistura entre ciência,

11 Acrônimo para os países “emergentes” no atual cenário mundial: Brasil, Russia, India, China e África do Sul.

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New Age, religião etc. é que o Brasil está bem posicionado – fora o fato de haver a floresta amazônica que é gigantesca! A Índia tam-bém, pela mesma razão. Não pelas reservas naturais que não existem mais, mas porque eles são confrontados com questões de sobrevi-vência. São os confrontados com questões de sobrevivência que têm o repertório para inventar novas conexões. Não são os americanos, porque os americanos estão em denial completo e, além disso, eles são relativamente protegidos (dizem os climatologistas) das trans-formações mais importantes. Os europeus estão, como sempre, e nesse momento, atrasados, mesmo se moralmente eles afirmem que estão na frente. Eu não digo que o Brasil vai inventar o culto por Gaia! Mas é uma hipótese interessante. Existe algo muito grande, muito perturbador. As apostas são enormes, porque há pessoas que estão redefinindo a política em torno dessas questões.

André Holanda (AH) – Existe outro problema aqui. As ima-gens de Gaia se multiplicam. Na Bolívia, o senhor falou isso durante sua conferência, ela é “Pacha Mama”. Penso que, provavelmente, “Pacha Mama” não seja facilmente traduzida pelos cientistas, pelos americanos...

BL – Sim, é um conceito completamente híbrido. Mas é in-teressante, porque ele é jurídico. O momento a partir do qual ele se tornou jurídico é um momento interessante.

AH – Sim, jurídico, mas não estou certo que os cientistas este-jam de acordo com a definição jurídica, nem que essa definição seja comunicável. Então, eu penso que existe um perigo: o problema da multiplicação do cosmos, de Gaia.

BL – Sim, mas essa é – felizmente, talvez – a característica de todas as reflexões sobre Gaia. Ela não é unificada, ela não é unifican-te. Não é uma divindade que une. São máquinas a compor e não a unificar. Não me parece problemático que haja uma multiplicidade. Por exemplo, o momento interessante para Pacha Mama é quando o Supremo Tribunal efetivamente condena uma companhia por ter causado prejuízo a um rio. Nesse caso, ninguém estará de acordo,

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porque em Direito nunca estamos em acordo. Mas mudamos o ponto de vista, estamos no “perspectivismo” e isso se torna muito interes-sante. O problema dessas entidades como Gaia é quando as conside-ramos unificadoras. É o problema dos ecologistas. Eles imaginam que a cada vez que eles apelam para a natureza, as pessoas devem estar de acordo. Mas quando apelamos para a natureza, pouf!, as di-vergências aumentam: como a política brasileira sobre os OGM12, o etanol nos carros... É o acordo que é o problema, não a diversidade. Política não é o acordo. Política é discordância.

AH – Me interesso bastante pela teoria dos sistemas. Sei que existem diferenças em relação à TAR. Tenho curiosidade de saber como o senhor pensa questões como emergência e complexidade. Na teoria dos sistemas complexos, há a possibilidade das interações, em um nível inferior, conduzir para uma emergência das complexi-dades. Tenho curiosidade para saber como o senhor vê a questão da emergência.

BL – É uma questão muito difícil. Penso que não existe re-almente uma relação entre a teoria das redes e a teoria dos sistemas por causa do problema da sistematicidade dos sistemas, se falamos de sistema no sentido dos anos 1960, da cibernética. Em termos de ator-rede, nos interessamos ao que torna sistemáticas as coisas que não são. Vamos nos interessar aos lugares que vão reparar a sis-tematicidade perdida dos sistemas. Onde um engenheiro formado pela teoria dos sistemas começa a fazer ciclos de retroação e tenta regular a circulação dos carros em Salvador, por exemplo, um pra-ticante da teoria ator-rede vai se colocar a questão de saber em qual escritório, com qual método e com qual teoria o infeliz responsável pelas ruas e avenidas de Salvador organiza a desordem permanente. Isto coloca a análise em uma direção muito diferente, mesmo se a teoria dos sistemas seja muito interessante como teoria prática, com efeitos práticos.

Há um livro admirável sobre Allende (MEDINA, 2012) que foi escrito por um de seus amigos (utilizamos, inclusive, em “Make

12 Sigla para os “Organismos Geneticamente Modificados”.

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Things Public” , [LATOUR e WEIBEL, 2005]). O presidente Al-lende era completamente fascinado pela teoria dos sistemas. Ele construiu uma sala de controle de toda a economia chilena que foi analisada recentemente em um livro notável de um historiador das técnicas. Isso é tipicamente ator-rede. Ele faz parte da teoria dos sistemas (época que produziu Varela, Maturana). Ela é muito produ-tiva. Em biologia trouxe resultados muito interessantes.

Mas é diferente da questão da emergência. Estamos traba-lhando um pouco sobre esta questão no médialab, justamente para tentar mostrar que a noção de emergência, na verdade, é um artefato da crença da sociologia no fato de que há interações individuais. Quando temos interações individuais obtemos um nível superior que não foi previsto. Os especialistas em formigas consideram que a forma do ninho das formigas é uma emergência a partir de um pro-grama que eles imaginam ser aquele das formigas (as formigas são capazes de fazer quatro ou cinco coisas e produzem um elemento de uma extraordinária complexidade). Então, eles dizem que é emer-gente. Mas essa é uma questão muito técnica – muito interessante, mas muito técnica! Eu acredito que podemos prescindir da noção de emergência ao introduzir a noção de mônada. Fizemos um arti-go que está no meu site, se interessar a vocês (LATOUR, 2012b). É uma crítica da noção de emergência.

A noção de emergência foi fundada na ideia de que o primeiro nível é aquele da interação simples. Para mim, é verdadeiro para as formigas, mas não é nem um pouco verdadeiro para os humanos. Para as interações simples, fora alguns casos extremamente raros (as filas e os engarrafamentos), chegamos realmente a fazer os humanos quase tão simples como as formigas. E, mesmo assim, é eviden-temente muito discutível. As interações não são nunca simples. O que chamamos de emergência é uma forma de fazer interpretar uma redução prévia das interações.

Tentamos, com a noção de mônada (que é uma noção de Tar-de e é por isso que nos interessa), ter uma ferramenta que permita dispensar a noção de emergência. Trabalhamos com os biólogos porque, evidentemente, o problema da emergência é um grande tema na biologia: “Como, a partir das células, obtemos efeitos que não são previstos?” É uma questão sociológica. Nós a importamos

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da biologia. O problema é que existem células separadas que depois interagem e formam elementos superiores. O problema é que cada célula possui todas as células. E é o mesmo para a mônada. Portanto, pretendemos sair dessa noção de emergência. O princípio “monado-lógico” é uma alternativa à noção de emergência. Dito isso, pode-mos muito bem utilizar a emergência, mas isso traz inconvenientes em sociologia e tentamos evitar.

AL – A última questão é sobre Salvador, Bahia. Vimos ontem o estado de degradação da cidade, mas também a potência cultural e social de Salvador. Estivemos ontem na missa do Rosário dos Pretos etc. Mas o senhor dizia a todo momento: “É uma cidade estranha”. Qual é sua impressão sobre a cidade, e qual é exatamente esse es-tranhamento?

BL – Infelizmente minha sociologia é totalmente incapaz de dizer... Há muitas coisas em uma cidade como essa. Eu diria bestei-ras... Não tenho as ferramentas. Tenho as ferramentas, os conceitos, para um pequeno número de coisas, mas não para compreender Sal-vador.

AL – Mas quando o senhor diz: “É uma cidade estranha”...

BL – É uma referência à defasagem entre a potência do di-nheiro que é investido e a imagem da cultura à qual a Bahia pretende estar ligada. Veja, a reputação de Salvador da Bahia no mundo é cultural, ela não é fundada na indústria. E o desinteresse - aparen-temente em todos os casos - dos que constroem os prédios (esse prédio onde estamos me deixou perturbado por sua posição absurda, colocado em uma encosta sem nenhuma compreensão do que é o lugar)... O problema é de posição: onde colocamos os prédios, a forma dos prédios... Mas isso é de uma banalidade… O urbanismo é a grande questão política e ela não é politizada. Vemos o que é ter uma cosmologia sem cosmos. Se tivéssemos alguma ideia do cosmos não construiríamos uma coisa como esta13. Isso é verdade

13 Latour se refere à posição do prédio do hotel Pestana em Salvador.

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em muitas cidades, mas há uma contradição em uma cidade que transmite uma energia de cultura.

AL – E em relação a outras cidades do Brasil que o senhor conheceu, como o Rio de Janeiro. É o mesmo estranhamento?

BL – Eu não sei se posso dizer coisas interessantes sobre isso. O Rio me impressionou. Não podemos fazer qualquer coisa, não podemos destruir as montanhas. Existe algo de extraordinário lá. Mesmo que você seja um canalha, você não pode estragar a nature-za da forma que quiser. Não é possível construir no topo do Pão de Açúcar. Há uma espécie de potência do lugar que protege um pou-co, que dá o deslumbramento permanente, com sua mistura estranha entre floresta e favela, envolvendo os dois. Mas essas são banalida-des de turista. E para que eu pare de falar banalidades é preciso me reconvidar!

AL – Obrigado.

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Apresentação da Coleção

ATOPOS do grego atopoz: lugar atípico, estranho, paradoxal, fora do lugar.

A Coleção ATOPOS tem como objetivo traduzir obras de relevância inter-nacional e publicar importantes estudos que analisem o caráter tecnológico e comunicativo das transformações do mundo contemporâneo.

Comitê científicoAlberto Abruzzese (IULM, Milão)Ciro Marcondes Filho (ECA-USP)Derrick de Kerckhove (U. Toronto)

Gilbertto Prado (ECA-USP)José Bragança de Miranda (U. Nova de Lisboa)

Julliana Cutolo (ATOPOS/ECA-USP)Lúcia Santaella (PUC-SP)Mario Perniola (U. Roma)

Massimo Di Felice (ECA-USP)Michel Maffesoli (Ceaq, Paris-Descartes),

Vinicius A. Pereira (ESPM-RJ / UERJ)

Centro de Pesquisa ATOPOS

O ATOPOS é uma rede internacional formada por pesquisadores de diversas áreas que, em diferentes países, investigam o impacto das tecnologias digitais nos distintos âmbitos da sociedade atual.

Nascido na Universidade de São Paulo (USP), tem como missão a produção de conhecimento transdisciplinar e inovador, assumindo os compromissos de formar pesquisadores, produzir publicações e estender os resultados das investigações através de um diálogo com os mais variados setores da sociedade.

www.atopos.usp.br

Dirigida por Massimo Di Felice

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Dirigida por Massimo Di Felice

Títulos

Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitarMassimo Di Felice

A pele da cultura: investigando a nova realidade eletrônicaDerrick de Kerckhove

Corpo e imagemJosé A. Bragança de Miranda

Crise no castelo da cultura: das estrelas para as telasMoisés de Lemos Martins

A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura André Lemos

Série Ecosofia

Redes digitais e sustentabilidade: as interações com o meio ambiente na era da informaçãoMassimo Di Felice, Julliana Cutolo Torres e Leandro Key Higuchi Yanaze

Série Galileo

Ciborgues indí[email protected]: a presença nativa no ciberespaçoEliete da Silva Pereira

Tecno-pedagogia: os games na formação dos nativos digitais Leandro Key Higuchi Yanaze

Empresas e consumidores em rede: um estudo das práticas colaborativas no BrasilDora Kaufman e Erick Roza

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José Roberto Barreto LinsEditor

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