a compra de votos bruno speck

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OPINIÃO PÚBLICA, Campinas, Vol.IX, Nº 1, 2003, pp.148-169 A compra de votos – uma aproximação empírica Bruno Wilhelm Speck Departamento de Ciência Política Universidade Estadual de Campinas Resumo O artigo aborda o fenômeno da compra de votos no contexto histórico e apresenta dados de um levantamento empírico realizado através de uma pesquisa de opinião após as eleições municipais no Brasil no ano 2000. São discutidas questões relacionadas ao significado da compra de votos no conjunto das questões ligadas à lisura do processo eleitoral. O texto aborda também os problemas enfrentados na pesquisa em função do assunto abordado e soluções metodológicas encontradas. Palavras-chave: eleições, corrupção eleitoral, voto, justiça eleitoral, representação política Abstract The author presents the results of a national survey on vote buying during the local elections in Braszil in 2000. In his analysis he places vote buying into the broader historical perspective of electoral and other forms of manipulation and corruption. Specific methodological questions of surveys on such critical questions like fraude and corruption are discussed Keywords: elections, electoral corruption, vote, electoral justice, political representation

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O artigo aborda o fenômeno da compra de votos no contexto histórico e apresenta dados de um levantamentoempírico realizado através de uma pesquisa de opinião após as eleições municipais no Brasil no ano 2000. Sãodiscutidas questões relacionadas ao significado da compra de votos no conjunto das questões ligadas à lisura doprocesso eleitoral. O texto aborda também os problemas enfrentados na pesquisa em função do assuntoabordado e soluções metodológicas encontradas.

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  • OPINIO PBLICA, Campinas, Vol.IX, N 1, 2003, pp.148-169

    A compra de votos uma aproximao emprica

    Bruno Wilhelm Speck Departamento de Cincia Poltica

    Universidade Estadual de Campinas

    Resumo O artigo aborda o fenmeno da compra de votos no contexto histrico e apresenta dados de um levantamento emprico realizado atravs de uma pesquisa de opinio aps as eleies municipais no Brasil no ano 2000. So discutidas questes relacionadas ao significado da compra de votos no conjunto das questes ligadas lisura do processo eleitoral. O texto aborda tambm os problemas enfrentados na pesquisa em funo do assunto abordado e solues metodolgicas encontradas. Palavras-chave: eleies, corrupo eleitoral, voto, justia eleitoral, representao poltica Abstract The author presents the results of a national survey on vote buying during the local elections in Braszil in 2000. In his analysis he places vote buying into the broader historical perspective of electoral and other forms of manipulation and corruption. Specific methodological questions of surveys on such critical questions like fraude and corruption are discussed Keywords: elections, electoral corruption, vote, electoral justice, political representation

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    Introduo

    Como os eleitores escolhem os seus candidatos em eleies? Esta pergunta intriga cientistas polticos h meio sculo (Campbell, 1960) e desafia, em tempos de eleio, os consultores das campanhas eleitorais. Os profissionais da rea tendem a concordar que o eleitorado segue um conjunto de motivaes na escolha da preferncia poltica. Existem diferentes tipos de votos, como o voto ideolgico, o voto pessoal ou o voto circunstancial (Grandi, 1992, p.29). Dentro deste raciocnio, somente uma pequena parcela do eleitorado seguiria convices polticas na escolha do candidato. Uma grande parte dos eleitores apoiaria candidatos que possuem sua confiana pessoal, principalmente em eleies locais. Ao contrrio destes compromissos de longo prazo, denominados votos ideolgicos e votos pessoais, um terceiro grupo estaria disposto a decidir seu voto espontaneamente, em funo de diversos motivos ligados forma como candidatos e programas so apresentados. Sobre esta parcela do eleitorado, indeciso e voltil, a arte de apresentar contedos e pessoas na mdia, o marketing poltico, teria um grande impacto.

    interessante notar que aqui, como em outros modelos similares, no consta o voto comprado, uma modalidade do comportamento eleitoral presente em vrios pases. No caso do Brasil, denncias veiculadas pela imprensa, casos investigados pela Justia Eleitoral e iniciativas da sociedade civil para combater o fenmeno da compra de votos so testemunhos de que esta prtica um fator relevante para uma parte do eleitorado na definio do seu candidato. compreensvel que os consultores no incorporem esta modalidade nos seus manuais, no entanto, surpreende que as cincias sociais tenham dedicado pouca ateno ao fenmeno. As referncias internacionais predominam sobre as anlises brasileiras desta prtica1. O presente texto aborda este segmento das construes tericas sobre o clientelismo eleitoral de forma sucinta. Estas consideraes conceituais e uma retrospectiva histrica destinam-se ao preparo do terreno para a anlise e a interpretao dos dados empricos.

    O fenmeno da compra de votos um assunto relevante na poltica contempornea? A prpria legislao eleitoral reconhece a existncia do problema proibindo explicitamente a compra de votos2. No entanto, segundo as constataes

    1 Recentemente, s um texto de Avelino Filho (1994) discute a ocorrncia do clientelismo eleitoral no Brasil luz da literatura terica. 2 O Cdigo Eleitoral de 1965 (Lei 4.737) identifica como propaganda ilcita aquela que implica em oferecimento, promessa ou solicitao de dinheiro, ddiva, rifa, sorteio ou vantagem de qualquer natureza (Art. 243, V) e determina pena de recluso de at 4 anos e o pagamento de 5 a 15 dias-multa (Art. 299). A mesma pena prevista em caso de coao ou ameaa para que o eleitor vote ou deixe de votar em determinado candidato (Art. 301). A legislao tambm cobe a compra de votos atravs de favores administrativos, prevendo uma pena de deteno de at 6 meses e o pagamento de 60 a 100 dias-multa (Art. 300). As condutas vetadas esto especificadas na Lei Eleitoral de 1997 (Art. 73 a 78).

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    da Comisso Brasileira de Justia e Paz (CBJP), no tem sido possvel cobi-la de forma eficiente. O engajamento da CBJP, rgo da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil, no assunto da corrupo eleitoral iniciou-se com as eleies municipais de 1996. Naquele ano a CNBB defendeu na Campanha Fraternidade e Poltica o uso consciente do voto como ferramenta para influenciar os rumos da poltica. O voto consciente foi confrontado com a prtica da compra de votos, que a CNBB identificou como uma das maiores distores da democracia brasileira. A organizao elaborou nos anos seguintes um amplo diagnstico do problema e uma proposta para modificar a legislao, tornando a sua aplicao mais fcil e mais rpida (vide Cmara dos Deputados, 1999). Durante o ano de 1999 o processo de mobilizao da sociedade para encaminhar o projeto ao Congresso Nacional resultou na coleta de mais de um milho de assinaturas. Como resultado, o projeto tramitou em tempo recorde no Congresso, sendo aprovada a Lei 9.840/99, que passou a vigorar a partir das eleies municipais de outubro de 2000. Esta modificao do Cdigo Eleitoral tornou a coibio da prtica de compra de votos pela justia eleitoral brasileira mais factvel3. O grito de alerta de um rgo respeitado como a Igreja catlica chamou a ateno da sociedade para a atualidade do problema da compra de votos. grande, porm a dificuldade em diagnosticar a extenso deste problema. Levantamentos; qualitativos durante a mobilizao confirmaram o panorama das trocas materiais nas quais se baseia a compra de votos, abrangendo remdios, sapatos, materiais de construo, iluminao para uma rua, um alvar para a construo, material escolar e inmeros outros itens que poderiam constar numa cesta das necessidades bsicas da populao brasileira. Na academia, a antropologia poltica dedica-se recentemente ao estudo das eleies, revelando o enraizamento de prticas como a negociao do voto no tecido social brasileiro. Mas apesar destas investidas no terreno da ilustrao e da anlise qualitativa, ainda no havia diagnstico preciso sobre a extenso da prtica da compra de votos no Brasil contemporneo.

    A realizao de uma pesquisa emprica, baseada em um survey nacional entre os eleitores, representa um passo importante para descrever mais claramente a extenso do fenmeno. A quantificao um aspecto relevante no diagnstico do problema, complementando a anlise qualitativa. Comparaes de subgrupos permitem identificar a presena de vrias modalidades da compra de votos e identificar a localizao geogrfica e social destas prticas. Futuramente, o

    3 As principais modificaes ocorridas atravs da Lei 9.840 de 1999 foram a introduo da cassao do registro do candidato como pena para a compra de votos ou a concesso de favores administrativos para influenciar o eleitor. Alm disso, o eleitor envolvido em esquemas deste tipo poder ser inocentado pela justia, tornando-o assim mais facilmente testemunha contra os candidatos envolvidos.

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    levantamento abre a possibilidade de comparar sries histricas e avaliar o sucesso de polticas voltadas para o controle da compra de votos de forma crtica.

    O levantamento aqui apresentado foi projetado pela ONG Transparncia Brasil e implementado pelo Ibope entre eleitores em maro de 20014. Ele retrata a situao nas eleies municipais do ano de 2000, j sob a vigncia da nova legislao. Contudo, antes, de apresentar os resultados necessrio abordar o fenmeno de uma forma mais sistemtica, situando a compra de votos em um contexto mais amplo da lisura do processo eleitoral.

    Dimenses da lisura do processo eleitoral

    A manipulao das eleies populares foi uma prtica comum na transio para os regimes de democracia representantiva. Com a conquista dos princpios da soberania popular e do sufrgio universal, o processo eleitoral ganhou um peso sensvel na evoluo poltica. Afinal, seria este mecanismo que definiria a distribuio do poder poltico em regimes representativos, substituindo princpios como a hereditariedade ou a usurpao do poder. Mas, via de regra, as noes da liberdade de escolha, da competio eleitoral e da administrao isenta, associadas noo de eleies, ainda estavam longe de descrever o contexto social e poltico no qual os processos eleitorais se realizavam. Nas democracias emergentes, as possibilidades de manipulao das eleies populares so mltiplas. A competio poltica muitas vezes restringe-se a uma disputa entre elites concorrentes, que possuem um controle amplo sobre segmentos inteiros do eleitorado. Mas ao mesmo tempo, os atores polticos desenvolvem um senso crtico aguado para detectar as deficincias do processo eleitoral em todas as suas variaes. Estas incluem o uso da mquina governamental para favorecer candidatos, a influncia ilcita do poder econmico sobre as eleies ou manipulaes referente administrao das eleies. A garantia da lisura do processo eleitoral um desafio universal para a consolidao dos regimes democrticos. Mas a fraude, a manipulao e a corrupo eleitoral tm uma colorao especfica, dependendo do contexto poltico e histrico. Para fins de anlise, trato separadamente questes especficas como a imparcialidade da administrao das eleies, o papel do poder econmico no financiamento das campanhas e a independncia do eleitor na manifestao do seu voto.

    4 O perodo de campo foi de 15 a 20 de maro de 2001. O universo pesquisado foi de eleitores brasileiros de 16 anos ou mais. A amostra foi elaborada com quotas proporcionais em funo das variveis sexo, idade, instruo, ocupao e localizao geogrfica. Foram realizadas 2000 entrevistas. O intervalo de confiana estimado de 95%, a margem de erro de 2,2 pontos percentuais para mais ou para menos sobre os resultados. A pesquisa fez parte de um levantamento mais amplo sobre vrios assuntos polticos e administrativos (IBOPE OPP 023).

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    Administrao imparcial: A questo da administrao imparcial do processo eleitoral diz respeito clareza e transparncia das regras, bem como sua implementao neutra na competio eleitoral. Para este objetivo a independncia da instncia que organiza o processo eleitoral pode ser crucial. Como mostra o estudo de Sadek (1995), o Brasil avanou bastante no sculo XX em relao s questes da lisura do processo de administrao das eleies. Duas etapas decisivas foram a criao da Justia Eleitoral em 1932 e a introduo do voto eletrnico entre 1996 e 2000. A primeira foi o divisor de guas entre a administrao de eleies viciadas pela ingerncia poltica e uma instncia independente para organizar e implementar o processo eleitoral. A recente informatizao do processo eleitoral eliminou a questo pendente de fraudes na apurao e totalizao dos votos. Devido ao grande nmero de eleitores no Brasil e s particularidades do sistema eleitoral, o desafio para uma administrao eficiente e imparcial do processo eleitoral em todas as suas etapas grande (vide Tabela 1). No ciclo eleitoral de 1998 e 2000 quase 400.000 candidatos disputaram os votos de mais de 100 milhes de eleitores em todas as trs esferas da federao5. No que concerne independncia da administrao do processo eleitoral, o Brasil atingiu um estgio bastante maduro, baseado em um modelo institucional consolidado e em tcnicas modernas que garantem eficincia e lisura.

    5 Diversos fatores contribuem para o elevado nmero de vagas e candidatos em cada eleio no Brasil. Primeiro, com eleies diretas para o legislativo e o chefe do executivo, realizadas nas trs esferas do governo municipal, estadual e federal o nmero de vagas a serem preenchidas enorme. Segundo, o sistema eleitoral permite adicionalmente um grande nmero de candidatos para cada vaga. E finalmente, o sistema eleitoral brasileiro junta as eleies para cargos executivos e legislativos como tambm concentra as eleies estaduais e municipais. Desta forma todas as eleies podem ser realizadas em somente duas datas.

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    Tabela 1: Candidatos a cargos eleitorais no ciclo eleitoral 1998/2000 no Brasil

    Ano Eleies estaduais e

    federais 2000 Eleies municipais

    1998

    Vereador 367.344

    Prefeito 15.016

    Deputado

    estadual 10.668

    Governador 151

    Deputado federal 3.417

    Senador 167

    Presidente 12

    TOTAL 382.360 14.415

    Papel do financiamento: Outro grande tema vinculado questo da lisura eleitoral diz respeito ao papel dos recursos financeiros no processo da competio eleitoral. Na teoria da democracia representativa, as eleies restringem-se competio pelos votos dos eleitores. Na prtica, o processo de comunicao entre candidatos e eleitores envolve recursos considerveis e a competio eleitoral passa a ser tambm uma competio pelo apoio material campanha para suprir esta demanda. A lisura do processo eleitoral em relao ao financiamento das campanhas um tema recorrente em todas as democracias modernas. Irregularidades nesta rea marcam as eleies nos Estados Unidos, Alemanha, Frana, Itlia, Japo, Israel. Tanto nas democracias consolidadas como naquelas recentemente constitudas, a discusso sobre o financiamento de campanhas eleitorais envolve freqentemente a questo do cumprimento das normas em vigor. Mas, a adequao destas normas questionada em conseqncia das irregularidades e, por vezes, a legislao sofre reformas mais ou menos drsticas. O Brasil no foge a esta regra. Aps um perodo de razovel imutabilidade durante a Repblica Populista e o Regime Militar, a redemocratizao trouxe vrias alteraes da legislao do financiamento de partidos e eleies. Um dos catalisadores foi o escndalo que envolveu o tesoureiro de campanha do Presidente Collor, Paulo Csar Farias, em 1992. A Comisso Parlamentar de Inqurito, instalada para investigar as acusaes, iniciou um debate sobre a legislao, que naquela poca no permitia doaes de pessoas jurdicas. A legislao foi modificada, permitindo agora as doaes de empresas dentro de certos limites e posteriormente ampliando o financiamento pblico das campanhas. No entanto, as

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    irregularidades posteriores fizeram com que o debate sobre o financiamento adequado (campanhas eleitorais) e partidos permanecesse atual at hoje. Independncia do eleitor: Um terceiro assunto relacionado integridade das eleies a prtica da compra de votos. A compra de votos obviamente no consta de nenhum dos manuais de campanha eleitoral. Para alguns, a troca do voto por materiais de construo, por remdios ou mesmo por dinheiro um fenmeno em extino, sem relevncia prtica ou peso numrico. Para outros, ela um dos grandes fatores para a distoro do processo eleitoral. Mas a questo no era debatida com base em levantamentos empricos quantitativos, comparveis ao aqui apresentado. Antes de comentar os nmeros da pesquisa projetada pela Transparncia Brasil e realizada pelo IBOPE Instituto Brasileiro de Opinio Pblica e Estatstica, faz-se necessria uma avaliao do significado da compra do voto, bem como uma pequena retrospectiva histrica do fenmeno no Brasil.

    Retrospectiva e Sistematizao Segundo Scott (1971), a compra de votos um fenmeno intermedirio e transitrio na sucessiva implementao de sistemas de governo representativo em muitos pases. Devemos distinguir trs etapas: primeiro, o voto sob chantagem ou extorso; segundo, o voto negociado ou comprado e terceiro, o voto como manifestao de crdito ou reprovao de candidatos e representantes polticos. O voto imposto: Em muitos pases, os novos eleitores no momento da ampliao do sufrgio no estavam material ou culturalmente livres para optar, no sentido moderno da palavra, em relao a assuntos polticos. As relaes de dependncia socioeconmica de grande parte da populao em relao aos donos dos latifndios e das fbricas eram evidentes e a comunicao direta entre candidatos e eleitores ainda era tnue. Como o voto inicialmente era declarado em aberto, o patro exercia controle total sobre o eleitor, e a possibilidade de repreenso era real. Assim, o voto era imposto grande parte da populao por estas elites.

    H diversas formas de coero eleitoral, baseadas no entrelaamento de relaes sociais desiguais com o comportamento eleitoral. No Brasil, as crticas fraude e coero eleitoral tornaram-se mais evidentes com a instalao do regime republicano. A figura do Jeca Tat criada por Monteiro Lobato em 1919 contrasta exatamente os ideais dos fundadores da Primeira Repblica com a realidade do voto alienado. O eleitor descrito como alienado e instrumentalizado no processo eleitoral. Mais tarde, Vitor Nunes Leal descreveria a insero deste fenmeno do voto alienado no sistema poltico nacional em seu clssico Coronelismo, enxada e voto em 1949. O coronelismo, que diz respeito s relaes entre o poder local e o

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    sistema poltico estadual, tem como pressuposto o controle total do chefe poltico sobre os currais eleitorais, bem como sobre a implementao administrativa da eleio. Num pequeno estudo, Telarolli (1982) descreveu vrias modalidades destas prticas de manipulao da eleio durante a Primeira Repblica. Estas incluam a influncia do governo no alistamento dos eleitores, que permitia tanto a excluso de eleitores que votariam em candidatos da oposio como tambm a incluso de eleitores fantasmas. O momento da votao tambm oferecia margem para manipulao. Freqentemente, o local de votao era instalado em casas particulares, o voto era aberto (para evitar fraudes!) e, como se estes constrangimentos ainda no bastassem, os eleitores eram aterrorizados pela Fora Pblica ou por pistoleiros particulares. Uma ltima possibilidade de manipulao concretizava-se na apurao dos resultados, nos processos da totalizao dos votos e da diplomao dos eleitos. Como a totalizao era demorada, estendendo-se por dias ou semanas, os resultados poderiam ser adequados no caminho, num processo matemtico das chamadas contas a chegar, garantindo determinado resultado final. Finalmente, existia ainda a possibilidade do no reconhecimento de candidatos oposicionistas que, porventura, conseguissem driblar todas estas barreiras e ganhar os votos suficientes para eleger-se. Este procedimento freqentemente praticado pela comisso, formada pelo Legislativo anterior, que formalmente diplomava os eleitos, era denominado degola. Fica evidente que a administrao deste processo nas mos de representantes do situacionismo no permitia um alto grau de competitividade nas eleies. Est claro tambm que nesta constelao do voto imposto pela elite e da manipulao generalizada da administrao do processo eleitoral no havia necessidade de comprar voto. O jogo poltico limitava-se a disputas entre as elites. O voto negociado: No o caso aqui de analisar as prticas do mandonismo local, o coronelismo e outras modalidades deste fenmeno na literatura. Mas h uma transio decisiva de voto alienado para o voto negociado. Na medida em que as relaes de dependncia socioeconmica entre eleitor e patro enfraquecem e com a garantia do segredo eleitoral, a posio do eleitor no processo poltico passa por uma transformao. A instrumentalizao do eleitor no processo eleitoral, tanto pela elite local como pelos candidatos, passa de uma fase de imposio e coero social para outra fase da seduo material. E no horizonte surge um papel completamente novo para o eleitor na medida em que ele se torna mais informado e emancipado atravs dos meios de comunicao de massa.

    A nova relao entre eleitor e candidato baseia-se em um sistema de trocas em condies assimtricas, tanto em relao aos atores envolvidos como aos objetos negociados. H um grande desnvel de poder entre a elite poltica e a massa dos eleitores e o recurso do poder poltico negociado por vantagens

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    materiais imediatas aos eleitores. As variedades socioculturais deste voto negociado so muitas, mas sob um ngulo de sistematizao, trs dimenses da compra de voto so importantes: a primeira delas refere-se ao nmero de eleitores envolvidos nas transaes de troca. A negociao individual com eleitores complementada pelas transaes com grupos e organizaes, como moradores de uma mesma rua, igrejas ou clubes. A segunda dimenso refere-se ao objeto da troca. Alm de benefcios materiais, como bens e dinheiro, o apoio eleitoral a um candidato poder ser negociado em funo de compensaes no materiais como empregos, favores administrativos e influncia poltica atravs de cargos. A origem de grande parte destes benefcios no se encontra mais nos recursos privados do candidato, mas sim no abuso de recursos do poder pblico. A terceira dimenso refere-se ao momento de compensao. H um contnuo, abrangendo vantagens imediatas at trocas envolvendo compromissos futuros. O posicionamento de uma transao concreta em relao a estas trs dimenses exerce um impacto sobre a caracterizao da compra de votos. Quanto mais individual a negociao, quanto mais material a compensao e mais imediata a troca, mais evidente ser a compra de votos. Confiana e censura pelo voto: Todavia, na medida em que a troca se baseia em negociaes coletivas, em valores no materiais e em compromissos de longo prazo, esta relao de troca se descaracteriza. Surge uma outra relao mais complexa, que se aproxima do modelo representativo onde eleitores utilizam o voto para atribuir confiana ou retirar apoio ao representante poltico. Enquanto na eleio baseada na troca, o compromisso do candidato com o eleitor tende a limitar-se ao curto espao de tempo da campanha eleitoral, na eleio que atribui ou retira crdito a um representante, a relao de confiana e crtica pelo eleitor refere-se a todo o perodo do mandato. O candidato que compra o voto se livra do compromisso posterior de prestar contas sobre a sua atuao poltica. Ao contrrio, o voto de confiana do eleitor nega qualquer condicionamento especfico, reservando-se o direito de acompanhar criticamente a atuao do representante, de forma integral e permanente.

    A compra de voto, hoje

    A compra de voto ainda uma realidade nas eleies brasileiras. A observao emprica confirma que as eleies so caracterizadas por uma intensa negociao de bens materiais, favores administrativos, e promessa de cargos. Sendo uma prtica antiga, ela ocorre dentro de determinados padres recorrentes. Pode ser organizada por integrantes da prpria mquina de campanha do candidato (distribuio de cestas e bens pelo candidato), por correligionrios

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    independentes que, com recursos prprios ou de terceiros, conseguem comprar votos para um candidato (por exemplo mdicos que do atendimento gratuito) ou por cabos eleitorais, que profissionalizaram a negociao dos votos. Estes ltimos esto geralmente ligados a um representante poltico municipal, e atuam como uma espcie de intermedirio permanente de servios pblicos e outros favores. A dificuldade da interface entre a administrao e o cidado e o carter opaco dos rgos pblicos so a base para este facilitador que, ao contrrio dos outros agentes, atua no s no perodo eleitoral mas de forma permanente, mesmo em anos em que no h eleies.

    Obviamente, a prtica da compra de votos se depara com a questo prtica de garantir que o eleitor cumpra a contrapartida e vote no candidato indicado. No contexto do voto secreto h basicamente dois tipos de solues: uma mais tcnica e outra mais social. No primeiro caso, o candidato ou seu representante procuram acessar de vrias formas a informao sobre o comportamento eleitoral, detectando assim os traidores6. Com a modernizao do processo de votao, as possibilidades para solues tcnicas tornaram-se mais estreitas. Outra forma de resolver a incerteza quanto ao comportamento do eleitor pela construo de uma relao de confiana, ou de um compromisso moral, compensando desta forma a falta de mecanismos de sano. Como em outros arranjos corruptos, as redes de clientelismo permanentes, baseadas em relaes pessoais a longo prazo (como as do intermedirio profissional) revelam-se mais eficientes contra possveis traies comparadas a arranjos corruptos baseados em uma relao de troca a curto prazo. Assim, os cabos eleitorais geralmente esto convencidos da superioridade do seu trabalho, em termos de eficcia, sobre as investidas meramente monetrias e pr-eleitorais dos organizadores da campanha eleitoral7.

    Desafios para a aproximao emprica ao fenmeno

    Aps estas consideraes histricas e qualitativas resta ainda a dvida, mencionada inicialmente, a respeito do diagnstico quantitativo do fenmeno. A iniciativa de uma anlise emprica do fenmeno da compra de votos, realizada pela Transparncia Brasil e pelo IBOPE, tenta suprir esta lacuna. Esta pesquisa est inserida em um contexto mais amplo de iniciativas no mbito internacional para

    6 Uma das modalidades de controle no passado era o voto de formiguinha. O primeiro eleitor no deposita a cdula eleitoral na urna, mas devolve-a ao intermedirio. Este preenche a cdula e entrega-a ao segundo eleitor que deposita a cdula na urna, devolvendo por sua vez uma cdula vazia ao intermedirio. O ciclo poder ser repetido com todos os eleitores que venderam o seu voto ao intermedirio. Com a urna eletrnica, este e outros mecanismos tornaram-se obsoletos. Mas permanece ainda a possibilidade de verificar nos resultados da seo eleitoral dos respectivos eleitores se os votos esperados apareceram. A margem de erros deste mtodo grande. 7 Estas informaes baseiam-se em uma srie de entrevistas, realizadas pelo autor, com diferentes cabos eleitorais, por ocasio da eleio geral em 1998.

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    diagnosticar empiricamente o fenmeno da corrupo8. Estes estudos cobrem um amplo espectro de abordagens, enfocando objetos to diferentes como valores, percepes ou comportamentos a ele relacionados9. O levantamento do IBOPE cobriu vrios destes aspectos10 mas, os resultados aqui apresentados limitam-se corrupo eleitoral atravs da compra de votos.

    O uso de surveys para pesquisar comportamentos ilcitos um recurso freqentemente empregado na criminologia. As pesquisas sobre as vtimas de determinados crimes so um complemento importante para outros levantamentos de dados aparentemente mais objetivos, mas com falhas inerentes11. No caso da corrupo, um diagnstico a partir de estatsticas oficiais (da Polcia Judiciria, do Ministrio Pblico ou dos Tribunais de Justia), quando disponveis, apresenta as mesmas distores. Na corrupo eleitoral, como em outros arranjos corruptos, todos os envolvidos tm um interesse na troca do voto por benefcios materiais. A parte lesada a comunidade ou o sistema de representao e a incidncia de denncias muito baixa. Os casos investigados limitam-se, na verdade, a poucos acidentes: quando, por descuido, o sigilo sobre a transao no garantido, quando surge um conflito entre os agentes envolvidos, levando um a denunciar o sistema, ou quando esquemas desta natureza so descobertos no decorrer de investigaes na rea. De uma maneira geral, o nmero dos casos de corrupo eleitoral poder ser usado como indicador de vrios fenmenos - como a reprovao social do fenmeno, da confiana nas instituies investigadoras ou da eficincia destes rgos- menos da incidncia do crime em questo.

    Mas a investigao da corrupo eleitoral a partir de surveys tambm apresenta problemas metodolgicos. Mesmo que em condies desiguais, a prtica da compra de votos incrimina todos os envolvidos ou os compromete moralmente. Dificilmente os entrevistados manifestar-se-o de forma aberta pergunta direta sobre eventual venda do voto a um candidato na ltima eleio. Um artifcio para

    8 H uma srie de iniciativas neste sentido. No mbito internacional as mais importantes so o ndice de Percepo da Corrupo, elaborado anualmente pela organizao Transparency Internacional (TI) desde meados de 1995, os diagnsticos de corrupo em determinadas reas de servio pblico, implementados com apoio da Community Information and Epidemiological Technologies (CIET) e desde o final de 1990 os diagnsticos nacionais conduzidos com apoio e sob orientao do WorldBank Institute (WBI) em vrios pases. Iniciativas nacionais importantes foram primeiramente realizadas em 1994 na Austrlia pela Independent Commission Against Corruption (ICAC/NSW). 9 Sobre a apresentao destes diferentes enfoques nas pesquisas atuais vide Speck (2000). 10 O questionrio para a pesquisa apresentada aqui foi elaborado por Cludio Weber Abramo (Secretrio Geral da Transparncia Brasil), Bruno Wilhelm Speck (Unicamp), Johann Graf Lambsdorff (Universidade de Gttingen/Alemanha) e Frederik Galtung (Universidade de Cambridge/UK). Um resumo com todas as perguntas e dos resultados pode ser consultado no site da Transparncia Brasil http://www.transparencia.org.br. 11 A explorao de dados oficiais sobre crimes investigados pelos respectivos rgos pblicos poder subreportar os casos em funo da ausncia de denncias em relao a determinados tipos de crimes. No caso de uma nfase dos rgos de investigao em determinada rea de crime, estes dados podero apresentar um aumento significativo. Ambas as distores ocorrem independente das variaes do crime em si, que constitui o objeto de observao. Na criminologia os dados provenientes de levantamentos de pesquisas de opinio, conhecidos como Crime Victim Surveys, hoje so considerados um complemento importante para um diagnstico sobre a incidncia de determinado crime.

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    contornar esta situao a externalizao dos aspectos comprometedores da situao, de forma que o entrevistado possa responder sem constrangimento de ordem moral ou at criminal pergunta sobre a venda do voto. As dvidas em relao veracidade das respostas dadas ficam reduzidas ao nvel normal neste tipo de investigao emprica.

    Um outro problema prtico na pesquisa a definio do fenmeno da corrupo eleitoral. Talvez seja claro o que pode ser considerado compra de voto em casos que envolvem dinheiro ou bens materiais. Mas seguindo a argumentao anteriormente apresentada, a definio perde clareza medida em que nos aproximamos de compromissos de longo prazo, dos benefcios coletivos e dos retornos no materiais. Optamos por um caminho mais seguro, levantando em uma primeira pergunta a proposta de troca do voto por favores administrativos e, na segunda, as propostas de troca do voto por dinheiro.

    Com esta deciso, variaes da compra de voto que deixam mais margem interpretao ficaram excludas do levantamento. So estas a compra de voto por bens materiais, remdios, tijolos, roupa, alimentos e outras formas popularmente conhecidas de compra de voto. difcil enquadrar este amplo leque de benefcios. Alm de bens materiais h cargos, cirurgias ou outros benefcios, vinculados administrao pblica. difcil definir (e transmitir ao entrevistado) a linha divisria entre brindes aceitveis e vantagens negociadas. A dificuldade aumenta em razo de as realidades econmicas dos indivduos serem to diferentes. Desta forma, a definio de um valor absoluto no resolveria o problema, pois o valor subjetivo de uma camiseta pode ser negligencivel para um e representar um valor bsico para outro.

    Outra situao freqente, mas de difcil aferio, a venda coletiva de votos por lideranas em troca de benefcios materiais para associaes, comunidades religiosas, recreativas ou esportivas. Como a negociao do comportamento eleitoral indireta, o eleitor muitas vezes no sabe o motivo do dirigente de sua instituio apoiar a campanha eleitoral de determinado candidato. Uma pesquisa entre os cidados no retrata adequadamente este fenmeno. Esta pesquisa optou pela via mais segura metodologicamente, mas menos inclusiva do ponto de vista do fenmeno da corrupo eleitoral.

    Os resultados da pesquisa apresentada a seguir devem ser observados neste contexto. A pergunta sobre a proposta de um favor administrativo em troca do voto foi respondida positivamente por 10,1% dos entrevistados e 6,6% afirmaram ter recebido uma oferta em dinheiro para vender o seu voto12. No total, 13,9% dos

    12 Todos os nmeros analisados aqui baseiam-se em uma anlise dos casos de respostas vlidas s duas perguntas, excluindo tanto missing values como tambm a opo no sabe/no opinou. A totalizao como todos os outros dados difere ligeiramente dos dados divulgados nos documentos da Transparncia Brasil (www.transparencia.org.br).

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    eleitores receberam uma das duas propostas de negociar o voto13. interessante identificar quais ambientes oferecem mais resistncia ao fenmeno e quais indivduos so mais vulnerveis. H uma srie de idias pr-concebidas sobre o assunto: 1) encontraramos a corrupo eleitoral com mais freqncia entre os eleitores com pouca instruo e de baixa renda e 2) sendo este fenmeno vinculado a determinado contexto socio-poltico, deveria haver uma acentuada diferena entre as reas rurais e urbanas, bem como entre o Norte e o Sul do pas. Os resultados do levantamento realizado s em parte confirmam estas idias. Algumas concepes sobre a compra de voto so francamente errneas. Outras talvez no imaginssemos antes. Uma anlise comparativa dos resultados da pesquisa em diferentes populaes est apresentada a seguir.

    A condio do indivduo

    A concepo popular sobre a corrupo eleitoral que esta incide exclusivamente sobre a populao de baixa renda e de baixo nvel de escolaridade. Um primeiro resultado surpreendente da pesquisa refere-se exatamente influncia modesta da instruo sobre as duas modalidades de compra de voto. No Grfico 1, como nos outros a seguir, o primeiro e o segundo conjunto referem-se proposta de trocar o voto por favores administrativos e por dinheiro. O terceiro conjunto representa o volume total de cidados relatando propostas de compra de voto14. certamente surpreendente que os eleitores, independente do seu grau de escolaridade, sejam igualmente alvos das duas modalidades da compra de votos. Os nmeros para os entrevistados analfabetos at os universitrios esto prximos da mdia nacional de 10,1%. Isto vale tanto para a modalidade do favor administrativo como para a compra por dinheiro. Como a margem de erro da pesquisa de 2,2 pontos percentuais, somente as variaes fora desta margem podem ser consideradas significativas. Os resultados no confirmam as concepes populares sobre o ambiente social do voto negociado. Em ambas as modalidades da negociao do voto, os eleitores com nvel inferior de instruo (incompleta ou primria) so menos visados do que os de instruo superior (ginsio e colegial). Os eleitores com formao universitria recebem significativamente menos propostas

    13 Como h possibilidade do entrevistado responder positivamente ambas as perguntas, estes nmeros no podem ser simplesmente somados para obter um retrato do aliciamento do eleitor nas eleies. 14 Pessoas que relataram pelo menos uma das duas situaes. Como tambm h casos onde ambas as situaes so mencionadas este nmero sempre menor do que a soma das duas situaes individuais.

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    somente na modalidade da compra de voto por dinheiro (2,7%). O terceiro conjunto do grfico confirma que no os eleitores menos instrudos, mas aqueles com maior nvel de formao, so os mais visados pelos compradores de voto.

    Em relao renda, devemos igualmente reavaliar algumas idias pr-

    concebidas. Mais uma vez, as incidncias das duas modalidades de compra de voto apresentam uma distribuio relativamente uniforme em quase todas as faixas de renda (Grfico 2). Somente para a ltima categoria dos eleitores - com uma renda familiar de mais de 20 salrios mnimos - observamos uma significativa reduo da incidncia de propostas. A definio da situao socioeconmica pela classificao em classes sociais (Grfico 3) apresenta desvios significativos da mdia somente em algumas categorias. Na classe E os ndices de favores administrativos crescem para 14,4% (mdia 10,1) e na classe A a incidncia de ofertas em dinheiro cai para 2,6% (lembrando que a mdia de 6,6%).

    Grfico 1: Experincia de oferta de compra de voto, por grau de escolaridade. Brasil 2001 (%)

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    10

    15

    20

    Mdia 10,1 6,6 13,9

    Incompleta 9,8 4,1 11,8

    Primrio 8,1 6,8 12,4

    Ginsio 13,9 9 18,7

    Colegial 10,2 7,5 15,3

    Superior 10,1 2,7 10,1

    oferta voto por favor administrativo

    oferta voto por dinheiro

    uma ou ambas as experincias

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    Grfico 2: Experincia de oferta de compra de voto por faixa de renda. Brasil, 2001 (%)

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    5

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    15

    20

    Mdia 10,1 6,6 13,9

    At 1 SM 10,2 7,9 13,6

    1-2 SM 9,8 8 16

    2-5 SM 10,3 7,1 14,6

    5-10 SM 13,3 5,9 15,5

    10-20 SM 8,6 3,5 10,7

    acima 20 SM 4,4 2,2 4,5

    oferta voto por favor administrativo

    oferta voto por dinheiro

    uma ou ambas as experincias

    Grfico 3: Experincia de oferta de compra de voto por classe socioeconmica. Brasil, 2001 (%)

    0

    5

    10

    15

    20

    Mdia 10,1 6,6 13,9

    Classe E 14,4 7,9 17,6

    Classe D 9,4 7,5 14,7

    Classe C 10,2 5,5 12,5

    Classe B 8,1 6,2 12,3

    Classe A 7,9 2,6 10,8

    oferta voto por favor administrativo oferta voto por dinheiro

    uma ou ambas as experincias

  • A compra de votos uma aproximao emprica

    163

    Em relao incidncia das propostas de compra do voto por sexo,

    praticamente no h diferenas entre homens e mulheres (Grfico 4). Um fator que apresenta uma correlao maior com a corrupo eleitoral a idade (Grfico 5). Enquanto os jovens abaixo de 40 anos recebem propostas acima da mdia (no terceiro conjunto 17,5% entre 21 e 30 anos contrastando com a mdia de 13,9%), entre os mais idosos estes nmeros diminuem significativamente. Assim, se a instruo formal fracassa como vacina contra a compra de votos, a experincia de vida um remdio natural mais eficaz.

    Grfico 4: Experincia de oferta de compra de voto por sexo. Brasil, 2001 (%)

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    2

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    Mdia 10,1 6,6 13,9

    Homens 9,5 7,5 14,4

    Mulheres 10,5 5,7 13,5

    oferta voto por favor administrativo oferta voto por dinheiro

    uma ou ambas as experincias

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    O impacto do ambiente

    Se as caractersticas individuais dos eleitores tm um impacto limitado

    sobre as ofertas de compra de voto, qual ser a influncia do ambiente coletivo sobre a compra de voto? H diferenas significativas entre as regies do Brasil ou entre regies do interior e os centros urbanos? Os dados confirmam a concepo popular de que o balco de venda de votos estaria mais presente no interior, nas pequenas cidades, nas regies menos desenvolvidas?

    Considerando as grandes regies, podemos dizer que os nmeros parcialmente confirmam a expectativa de diferenas significativas (Grfico 6). Considerando a modalidade da compra de votos por dinheiro, as regies apresentam um perfil muito distinto: no caso das regies Norte e Centro-Oeste, 13,2% dos eleitores receberam ofertas em dinheiro, o que significa uma incidncia trs vezes maior do que no Sudeste, onde 4,3% receberam a mesma oferta; as regies Nordeste (7,1%) e Sul (7,2%) apresentaram um perfil similar e perto da mdia, resultado que pode ser considerado igualmente surpreendente.

    Grfico 5: Experincia de oferta de compra de voto, por faixa de idade. Brasil, 2001 (%)

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    Mdia 10,1 6,6 13,9

    At 20 anos 11,5 9,9 17,5

    21 at 30 anos 13 9,1 19,1

    31 at 40 anos 11,6 7,6 15,341 at 40 anos 7,9 4,1 8,9

    51 at 60 anos 3,4 1,5 4,6

    oferta voto por favor administrativo

    oferta voto por dinheiro

    uma ou ambas as experincias

  • A compra de votos uma aproximao emprica

    165

    Pelo critrio do favor administrativo como moeda de troca em eleies, a regio Sudeste destaca-se com ndices ligeiramente abaixo das outras regies. H variaes significativas entre o Sudeste (8,6%), o Nordeste (11,8%) e o Sul (11,3%). intrigante que estas duas regies, normalmente consideradas como os dois extremos do desenvolvimento regional, aproximem-se nestes ndices de integridade do processo eleitoral. Outro resultado importante o do Norte/Centro-Oeste, que no apresenta a mesma distoro como na compra de voto por dinheiro, mas idntico mdia nacional.

    Somadas as duas experincias, podemos resumir que um em cada cinco eleitores no Norte/Centro-Oeste recebeu uma proposta para vender o seu voto por dinheiro ou favores administrativos, enquanto no Sudeste esta taxa cai para um em cada 10 eleitores.

    As caractersticas do municpio igualmente influenciam a corrupo eleitoral, sendo que a localizao do municpio exerce impacto menor do que o tamanho. A oferta de dinheiro pelo voto no apresenta variao entre a capital e o interior. A idia que este fenmeno caracterstico do interior no se confirma nos dados da pesquisa. Na modalidade dos servios governamentais condicionados ao voto, o quadro muda ligeiramente. As capitais apresentam uma incidncia menor (7,5%) que a periferia e o interior.

    Em relao ao tamanho dos municpios (Grfico 8), h distores significativas nos municpios de menor (menos de 5 mil eleitores) e de maior porte (mais de 500 mil eleitores). Os primeiros so vtimas privilegiadas nas duas modalidades da compra de voto (favor administrativo, 14,6%; dinheiro, 9,7%). No total, 21% dos eleitores nestes municpios recebem propostas para comercializar o voto. Um em cada cinco! No outro extremo, dos grandes centros urbanos, temos incidncias bem menores (favor administrativo, 5,7%; dinheiro, 3,3%). Juntando ambas as experincias, o padro discrepante entre municpios pequenos (21%) e grandes cidades (8,2%) se confirma.

    Os dados referentes aos municpios de porte mdio curiosamente no apresentam uma transio gradual entre os dois extremos municpios - minsculos e das metrpoles. Na medida em que os municpios crescem, a taxa da corrupo eleitoral cai para 10,6% (nas cidades entre 10 e 20 mil eleitores), e aumenta de novo at 19,1% (nas cidades entre 50 a 100 mil eleitores). Com isto, os municpios muito pequenos dividem o recorde de incidncia de fraude eleitoral com cidades de porte mdio.

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    Grfico 6: Experincia de oferta de compra de votos, por regio. Brasil, 2001 (%)

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    30

    Mdia 10,1 6,6 13,9

    Norte/Centro-Oeste 10,2 13,2 19,5

    Nordeste 11,8 7,1 15,8

    Sudeste 8,6 4,3 10,9

    Sul 11,3 7,2 15,4

    oferta voto por favor administrativo

    oferta voto por dinheiro

    uma ou ambas as experincias

    Grfico 7: Experincia de oferta de compra de voto, por localizao do municpio. Brasil, 2001. (%)

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    5

    10

    15

    20

    Mdia 10,1 6,6 13,9

    Capital 7,5 6,3 11,8

    Periferia 10,6 5 13,3

    Interior 11,1 7 15

    oferta voto por favor administrativo oferta voto por dinheiro

    uma ou ambas as experincias

  • A compra de votos uma aproximao emprica

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    Concluses e Conseqncias

    Esta pesquisa agregou elementos importantes ao conhecimento do

    fenmeno da corrupo eleitoral. Colocou em dvida algumas noes a respeito da maior incidncia do fenmeno, como aquelas relacionadas ao papel da educao e da condio econmica, confirmou outras, como desnvel entre as grandes regies, e revelou tendncias talvez menos esperadas, como o papel da idade.

    Quais so as concluses a tirar deste levantamento? A primeira talvez seja reconhecer que a aplicao de pesquisas de opinio para aferir a incidncia de crimes um instrumento vlido tambm para o fenmeno da corrupo eleitoral. O levantamento da Transparncia Brasil representa uma incurso exploratria em um campo virgem, porm de suma importncia para o sistema de representao poltica no Brasil. A lisura do processo eleitoral merece a mesma ateno que outros dados estruturais da cultura poltica, mensurados atravs de pesquisas deste tipo. Outros levantamentos mais abrangentes so necessrios para proporcionar uma noo mais completa das suas vrias modalidades e para monitorar o fenmeno eleitoral15.

    A segunda concluso diz respeito dimenso quantitativa do fenmeno. A compra de votos, uma modalidade da corrupo eleitoral freqentemente

    15 Os levantamentos do Latinobarmetro, realizados anualmente na America Latina, em vrios anos incluram temas ligados corrupo. Mas estes no tm ainda um carter sistemtico. Levantamentos especficos relativos corrupo eleitoral no foram realizados.

    Grfico 8: Experincia de oferta de compra de voto por tamanho do municpio. Brasil, 2001 (%)

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    Mdia 10,1 6,6 13,9

    At 5 mil eleitores 14,6 9,7 21

    5-10 mil eleitores 9,8 5,3 12,7

    10-20 mil eleitores 7,8 4,8 10,6

    20-50 mil eleitores 11,2 7 15

    50-100 mil eleitores 13,5 7,5 19

    oferta voto por favor

    administrativo

    oferta voto por dinheiro

    uma ou ambas as

    experincias

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    comentada na mdia, questiona a legitimidade do sistema representativo. A quantificao, at agora negligenciada, uma ferramenta indispensvel para dar a este problema a devida importncia. Considerando que a pesquisa aferiu s algumas modalidades da compra de voto, o nmero de 13,9%, ou seja, um em cada 7 eleitores declara receber algum tipo de oferta para comercializar o voto, um dado preocupante.

    Uma terceira observao refere-se ao potencial e aos limites de levantamentos deste tipo. Sendo um instrumento importante para o mapeamento dos grupos mais visados e das regies mais atingidas pela corrupo eleitoral, a pesquisa fornece subsdios para orientar tanto o trabalho da justia eleitoral, como tambm as iniciativas preventivas de organizaes da sociedade civil16. Porm, revelam-se tambm os limites deste tipo de mapeamento da vulnerabilidade na orientao de polticas concretas contra a corrupo eleitoral. Somente pesquisas qualitativas complementares podero informar quais as estratgias mais adequadas para combater a corrupo eleitoral. Parece existir um crculo vicioso entre uma administrao pblica opaca, os servios de intermediao oferecidos pelo cabo eleitoral profissional e o legislativo municipal, eleito na base destes favores administrativos. Para identificar os nexos causais nas relaes sociais que caracterizam a corrupo eleitoral, bem como para identificar pontos de apoio e de resistncia para a reforma, a realizao de estudos complementares sobre a corrupo eleitoral de suma importncia. Polticas dirigidas ao controle da corrupo necessitam da identificao dos possveis aliados e adversrios na implementao de projetos de reforma.

    16 No ano eleitoral de 2002 houve pelo menos duas iniciativas neste sentido, que combatem a corrupo eleitoral atravs de campanhas de conscientizao: www.transparencia.org.br/votolimpo e www.votoetico.org.br.

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    Recebido para publicao em novembro de 2002

    Aprovado para publicao em fevereiro de 2003.