a complexidade da pesquisa qualitativa

8
35 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998 ARTIGO ARTICLE A complexidade das relações entre drogas, álcool e violência The complexity of relations between drugs, alcohol, and violence 1 Vice-Presidência de Ambiente, Comunicação e Informação, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4.365, Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil. 2 Instituto Fernades Figueiras, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Rui Barbosa 716, 5 o andar, Rio de Janeiro, RJ 22250-020, Brasil. [email protected] Maria Cecília de Souza Minayo 1 Suely Ferreira Deslandes 2 Abstract This article discuss the complex relations between drugs and violence. Drawing on empirical studies and current forms of discourse, it analyzes conceptual and methodological problems related to the establishment of causal nexuses, risks, and associations. By demonstrat- ing the theoretical and practical difficulties in such associations, it also points to the need for a debate in the field of public health and social policies. The article expresses concern that pro- grams and prevention not be contaminated by fallacies, contributing nothing to an understand- ing of (or action related to) the social issue of drugs. Key words Street Drugs; Alcohol Drinking; Violence; Public Health; Sociology Resumo Este artigo discute as complexas relações existentes entre drogas e violência.Valendo- se de alguns estudos com base empírica e dos discursos correntes, analisa os problemas concei- tuais e metodológicos relacionados ao estabelecimento de nexos causais, riscos e associações. Ao demonstrar as dificuldades teóricas e práticas destas delimitações, aponta também para um de- bate necessário no campo da saúde pública e das políticas sociais. Preocupa-se com que as inter- venções e a prevenção não se contaminem por falácias, que em nada ajudam a compreensão e a ação relativas à problemática social das drogas. Palavras-chave Drogas Ilícitas; Consumo de Bebidas Alcoólicas; Violência; Saúde Pública; So- ciologia

Upload: fernanda-carneiro-leao-goncalves

Post on 18-Nov-2014

749 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

 

TRANSCRIPT

Page 1: A Complexidade da Pesquisa Qualitativa

35

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998

ARTIGO ARTICLE

A complexidade das relações entre drogas,álcool e violência

The complexity of relations between drugs,alcohol, and violence

1 Vice-Presidência deAmbiente, Comunicação e Informação, FundaçãoOswaldo Cruz. Av. Brasil4.365, Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil.2 Instituto Fernades Figueiras,Fundação Oswaldo Cruz.Av. Rui Barbosa 716,5o andar, Rio de Janeiro, RJ22250-020, [email protected]

Maria Cecília de Souza Minayo 1

Suely Ferreira Deslandes 2

Abstract This article discuss the complex relations between drugs and violence. Drawing onempirical studies and current forms of discourse, it analyzes conceptual and methodologicalproblems related to the establishment of causal nexuses, risks, and associations. By demonstrat-ing the theoretical and practical difficulties in such associations, it also points to the need for adebate in the field of public health and social policies. The article expresses concern that pro-grams and prevention not be contaminated by fallacies, contributing nothing to an understand-ing of (or action related to) the social issue of drugs.Key words Street Drugs; Alcohol Drinking; Violence; Public Health; Sociology

Resumo Este artigo discute as complexas relações existentes entre drogas e violência. Valendo-se de alguns estudos com base empírica e dos discursos correntes, analisa os problemas concei-tuais e metodológicos relacionados ao estabelecimento de nexos causais, riscos e associações. Aodemonstrar as dificuldades teóricas e práticas destas delimitações, aponta também para um de-bate necessário no campo da saúde pública e das políticas sociais. Preocupa-se com que as inter-venções e a prevenção não se contaminem por falácias, que em nada ajudam a compreensão e aação relativas à problemática social das drogas.Palavras-chave Drogas Ilícitas; Consumo de Bebidas Alcoólicas; Violência; Saúde Pública; So-ciologia

Page 2: A Complexidade da Pesquisa Qualitativa

MINAYO, M. C. S & DESLANDES, S. F.36

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998

Introdução

Neste artigo, buscaremos levantar questõesmetodológicas para a investigação, a preven-ção e a intervenção da saúde pública na articu-lação entre drogas e violência. Trata-se de umaarticulação complexa, pouco analisada, cujosúnicos parâmetros para afirmações, na atuali-dade, são apenas os de associação empírica. Eé com base em alguns dados empíricos que le-vantaremos os problemas interpretativos dian-te desse tema desafiador para cientistas so-ciais, politicólogos, criminólogos e cidadãosmilitantes.

Como a maioria dos estudiosos, considera-mos que há muita mistificação em torno daquestão das drogas, exercendo ao mesmo tem-po fascínio e provocando medo. Isso fica evi-dente em vários trabalhos, como os de Bastos(1995); Garcia (1996); Musa (1996) e outros quemostram os efeitos paradoxais das drogas, ca-pazes de proporcionar desde êxtases prazero-sos a estados de depressão, de viabilizar a in-serção em grupos sociais e de conduzir a situa-ções de exclusão social.

Neste trabalho, partimos de alguns pressu-postos que consideramos importantes paradiscutirmos a questão. Assim, iniciamos nossareflexão alertando para a necessidade de seconsiderar: a) a diferença entre dependênciae uso recreacional e ocasional; (b) o erro deapontar o usuário como um dependente po-tencial; (c) as diferenças entre os vários tiposde drogas e os danos que provocam, como é ocaso da maconha, cocaína, cocaína injetável,heroína, crack e outras; (d) o entendimento douso de drogas como um fenômeno histórico-cultural com implicações médicas, políticas, re-ligiosas e econômicas; (e) a distinção entre dro-gas legais e ilegais e o aparecimento de subs-tâncias sintéticas.

Da mesma forma, no contexto da saúde, sa-be-se que a violência social, em virtude de suasconseqüências, enquadra-se na categoria Cau-sas Externas (códigos: E-800 a E-999 na 9a Re-visão e V01 a Y98 na 10a Revisão), no sistema deClassificação Internacional das Doenças (CID);tal categoria abrange uma longa lista de even-tos que podem ser resumidos como homicí-dios, suicídios e acidentes em geral. Com-preende-se que essa classificação nem de lon-ge consegue dar conta da dimensão e comple-xidade da violência, um fenômeno polissêmi-co, de explicação contraditória, mas permitetrabalhar com indicadores capazes de infor-mar e subsidiar ações políticas e sociais.

Em relação ao tema das interações entreviolência e drogas, neste trabalho apresenta-

mos: (a) alguns dados empíricos; (b) discussãoatual sobre mudanças resultantes do uso des-sas substâncias nas funções cognitivas, nos es-tados emocionais, nas alterações hormonais efisiológicas que podem motivar a violência; (c)discussão do mercado de drogas ilegais e o au-mento da violência; (d) problemas interpretati-vos e de método de investigação.

Alguns dados empíricos

Os primeiros dados apresentados foram retira-dos de uma pesquisa ainda inédita (Deslandes,1997) do Centro Latino-Americano de Estudossobre Violência e Saúde – Jorge Careli (Claves/-Ensp/Fiocruz), realizada nos Hospitais MiguelCouto (HMMC) e Salgado Filho (HMSF), a qualteve como um dos objetivos caracterizar o pe-so da violência no atendimento da emergênciahospitalar. Em vista da pergunta feita ao pa-ciente ou socorrista: “O evento (violento) envol-veu o uso de drogas?”, os dados permitiram vis-lumbrar que: dos 2.736 atendimentos por to-das as causas externas realizados em maio de1996 no Miguel Couto, 343 (13%) envolveram ouso de drogas. No Salgado Filho, de 2.192 aten-dimentos ocorridos em junho de 1996, 295(12,6%) tiveram alguma droga relacionada àsua ocorrência.

Nos casos em que foi identificado o consu-mo de algum tipo de droga, o álcool configu-rou-se como o mais freqüentemente consumi-do: 88% (HMSF) e 90,7% (HMMC). O consumode álcool associado com outras drogas (cocaí-na, maconha e outros) foi declarado em 3,2%dos casos no Miguel Couto e em 0,7% dos ca-sos no Salgado Filho.

Das 176 agressões atendidas no HMMC,33% envolveram o uso de drogas; no HMSF,das 188 agressões, 37% tiveram essa relação.Tais dados apontam para o fato de que umaem cada três agressões envolveu o consumode drogas.

Nos casos de acidentes de trânsito (colisõese outros acidentes entre veículos automotores),situações em que são precárias as informaçõessobre a questão, 149 (HMMC) e 143 (HMSF),40,5% e 33% respectivamente, envolveram ouso de drogas. Quanto aos atropelamentos, dos158 atendidos no Miguel Couto, em 22,8% hou-ve a presença do consumo de alguma droga, omesmo ocorrendo com os 143 (16,4%) socorri-dos no Salgado Filho.

Obviamente, os dados aqui expostos devemser relativizados. Correspondem a uma formade expressão (emergência hospitalar) e a ape-nas um mês de rotina.

Page 3: A Complexidade da Pesquisa Qualitativa

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998

Cherpitel (1993, 1994), em revisão biblio-gráfica, cita diferentes estudos em emergênciashospitalares americanas os quais comprovamque, das vítimas de agressão, 43% a 51% delastinham o teste de Blood Alcohol Concentration(BAC) positivo. O autor também elenca 11 es-tudos que compararam grupos de pacientesatendidos por evento violento com gruposatendidos por outros motivos. Os resultadosindicam que as vítimas de violências têm pro-babilidade de duas a cinco vezes maior de te-rem o teste de BAC positivo do que as vítimasde outras causas.

McGinnis & Foege (1993) citam estudos on-de se comprova que 40% a 50% das mortesocorridas por acidentes de trânsito nos EEUUem 1990 tiveram o álcool como fator associado.

Ampliando o espectro microrregional, es-tudos de Yunes & Rajs (1994) mostram que, naAmérica Latina, a prevalência do consumo decocaína varia de 1,4% a 6,7% na população de12 a 45 anos. Além disso, entre grupos social-mente marginalizados, o consumo de inalantesé de 3% a 4%. Andrade (1995) cita pesquisa fei-ta em 1993 com estudantes de dez capitais bra-sileiras, a qual aponta que 17,8% destes jovensreconheciam ter consumido drogas ilegais oupsicotrópicos ao menos uma vez na vida. Con-tudo, uma única experiência não conduz aoabuso, o uso de drogas é socialmente aprendi-do e grupalmente mediado (Becker, 1990). To-dos esses dados, porém, exigem aprofunda-mento específico e diferenciado para seremmais bem compreendidos.

Drogas e mudanças bio-psico-sociais quepossibilitam a violência: por um enfoquemais amplo das condutas individuais

As observações teóricas que seguem têm comoreferencial os trabalhos de Fagan (1990, 1993) ede Goldstein (1985, 1989), ambos preocupadoscom o fenômeno em pauta, sua conceitualiza-ção e prevenção.

Enquanto os especialistas concordam quedrogas e álcool freqüentemente têm papel im-portante nas atividades violentas (OPAS, 1993,1994; Yunes & Rajs, 1994), seu papel específiconão está claro, ou seja, é difícil de se determi-nar com precisão: (a) o nexo causal entre essassubstâncias e atos violentos; (b) o status legaldas drogas e as complicações envolvendo tráfi-co e leis que o reprimem; (c) as influências domeio e as características individuais dos usuá-rios de drogas e álcool; (d) a prevalência e ascorrelações precisas entre violência e uso des-sas substâncias. Este estudos mostram como é

DROGAS, ÁLCOOL E VIOLÊNCIA 37

bastante complexa a construção de paradig-mas para investigação nessa área.

Em relação ao primeiro ponto de discussão,vários estudiosos têm concluído que o álcool éa substância mais ligada às mudanças de com-portamento provocadas por efeitos psicofar-macológicos que têm como resultante a violên-cia. E isso, pelo menos provisoriamente, podeser depreendido dos dados apresentados aci-ma. Estudos experimentais (Fagan, 1990, 1993)mostram que o abuso de álcool pode ser res-ponsável pelo aumento da agressividade entreos usuários. Há evidências também de que acocaína, os barbitúricos, as anfetaminas e osesteróides têm propriedades que podem moti-var atitudes, comportamentos e ações violen-tas. Por exemplo, os usuários de cocaína têmproblemas de supressão de atividades neuro-transmissoras, podendo ser vítimas de depres-são, paranóia e irritabilidade (Goldstein, 1989;Musa, 1996). Fatores como peso corporal, tipode metabolismo, processos neuroendócrinos eneuroanatômicos produzem diferenças indivi-duais no uso de drogas e mudança de compor-tamento.

No entanto, apesar de evidências empíri-cas, há muita incerteza quanto às explicaçõescausais. Uma questão que não está suficiente-mente explicada é se a presença de álcool oudrogas nos eventos violentos permite inferirque elas tenham afetado o comportamento daspessoas envolvidas. Noutras palavras, não épossível saber se essas pessoas em estado deabstinência não teriam cometido as mesmastransgressões. Outra questão é o não-discerni-mento entre o uso de drogas como um fatorque, associado a outros, desencadeia compor-tamentos violentos e o uso de drogas como fa-tor causador, porque, na verdade apenas o quenos é possível inferir é a alta proporção de atosviolentos quando o álcool ou as drogas estãopresentes entre os agressores e vítimas, ou emambas as partes.

Uma terceira questão vem do fato de queenquanto o álcool e as drogas podem ser causade, resposta a, ou mediadores de uma diversi-dade de comportamentos sociais violentos,pouco se sabe das contribuições dessas subs-tâncias na vitimização. Por exemplo, os usuá-rios dependentes, uma vez que estão sob con-dições sociais de estigmatização, podem aca-bar por desenvolver comportamentos maisagressivos (Boyum & Kleiman, 1995). Por outrolado, quase todas as pesquisas enfatizam oagressor e não a vítima. Poucos estudos anali-sam o envolvimento com álcool ou drogas porparte das vítimas. Wolfang (l958), num estudosobre o perfil dos homicídios nos EEUU, cu-

Page 4: A Complexidade da Pesquisa Qualitativa

MINAYO, M. C. S & DESLANDES, S. F.38

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998

nhou uma expressão “vítima precipitante” paracaracterizar a situação em que a vítima provo-cou primeiro o agressor; o autor notou que, emtais casos, encontrou-se grande quantidade deálcool no sangue delas. Outros pesquisadores,como Coid (1986), mostram que o álcool alteraa percepção das interações sociais, aumentan-do os riscos de desentendimentos para os par-ticipantes nessa situação.

A questão causal torna-se ainda mais com-plexa quando se trata de relações de gênero.Por exemplo, Collins & Messerschimdt (1993),numa pesquisa sobre o assunto, concluíramque as mulheres vítimas de homicídios usavammenos drogas e álcool do que os homens. Ouso de álcool pelo homem (e não de drogas emgeral) apresentou-se como um significativo fa-tor de risco para a violência entre marido e mu-lher, contudo o uso por mulheres não foi de-tectado como um fator de risco nas relações deviolência entre parceiros. Por outro lado, o usode drogas ou álcool pela vítima não apareceucomo um fator de risco para a violência sexual,nem dos homens em relação às mulheres, ouvice-versa. Da mesma forma, as baixas taxas departicipação das mulheres em roubo e outroscomportamentos violentos não podem ser ex-plicadas apenas por diferenças de gênero oumenor ingesta de álcool e drogas.

Outro ponto a considerar é que a variabili-dade dos efeitos provocados por cada tipo desubstância sugerem a contribuição de fatoressócio-culturais e de personalidade. A violênciatem mais chances de ser exercida em determi-nados segmentos, locais e situações específi-cos, sob condições específicas. Alguns barestêm mais brigas que outros, algumas comuni-dades e até alguns casais com mesmo padrãode uso de álcool ou drogas são mais violentosque outros, assim como as pessoas com ummesmo grau de intoxicação têm respostas emo-cionais diferentes. Essas complexidades suge-rem que a violência interpessoal que ocorre sobo efeito de substâncias é contextualizada, ouseja, acontece em locais específicos, sob nor-mas e regras específicas de determinados gru-pos e diante de expectativas que alimentam esão alimentadas dentro desses grupos. Para en-contrar nexo causal entre determinadas subs-tâncias e violência seria necessário saber se oscomportamentos e atitudes violentas ocorre-riam ou não no interior desses segmentos, ca-so a droga e o álcool não estivessem presentes.As evidências empíricas sugerem que drogasilícitas e álcool desempenham importante pa-pel nos contextos onde são usados, porém suaimportância fica em grande medida dependen-te de fatores individuais, sociais e culturais.

Drogas ilegais, mercado e violência

Embora todas as evidências empíricas revelemque é o álcool a substância mais significativana articulação com várias formas de violência,seu status de legalidade torna-o socialmenteaceito e largamente consumido, ainda que setente regular seu uso. Tal questão revela a in-consistência da definição de ‘droga’ e como tal,o conceito é historicamente datado e apoiadoem valores discutíveis (McRae, 1994). Vale lem-brar que, nas situações históricas em que o usodo álcool foi proibido, a maioria das condiçõesde estigmatização e violência também estive-ram presentes nas relações de seu mercadoilegal.

Uma das mais costumeiras associações en-tre drogas e violência num contexto de merca-do ilegal é a chamada ‘motivação econômica’de usuários dependentes. Nesses casos, o cri-me é visto como uma fonte de recursos para acompra de drogas, geralmente cocaína, crack eheroína. Contudo, estudo americano (Boyum& Kleiman, 1995) demonstra que, de todos ospresidiários usuários freqüentes de cocaína ecrack, somente 39% declararam ter cometidocrime para a compra de droga, o que tambémpode ser uma espécie de defesa para minimi-zar a responsabilidade dos atos cometidos.Percebe-se que a motivação econômica é umaexplicação apenas parcial do complexo univer-so que constitui o mercado de drogas.

O mais consistente e predizível vínculo en-tre violência e drogas se encontra no fenôme-no do tráfico de drogas ilegais. Este tipo demercado gera ações violentas entre vendedo-res e compradores sob uma quantidade enor-me de pretextos e circunstâncias: roubo do di-nheiro ou da própria droga, disputas em rela-ção a sua qualidade ou quantidade, desacordode preço, disputa de territórios, de tal formaque a violência se torna uma estratégia paradisciplinar o mercado e os subordinados.

O narcotráfico potencializa e torna maiscomplexo o repertório das ações violentas: adelinqüência organizada; aquela agenciada pe-la polícia e pelas instituições de segurança doestado; a violência social dispersa; a promovi-da por grupos de extermínio e também a dasgangs juvenis.

Na medida em que não há recursos legaispara dirimir as disputas, a violência ou a amea-ça de violência são mecanismos para reforçaras regras sociais de troca no mercado ilícito. NoBrasil, o crime organizado floresceu e se insti-tucionalizou a partir da década de 80, espa-lhando o medo, aumentando as estatísticas dehomicídios, e tornando-se uma verdadeira res-

Page 5: A Complexidade da Pesquisa Qualitativa

DROGAS, ÁLCOOL E VIOLÊNCIA 39

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998

posta social, como mercado de trabalho, sobre-tudo para os jovens pobres das periferias e fa-velas, sem expectativas de conseguir empregoformal, e que, então, na ilegalidade, buscamsaciar seus sonhos de consumo, status e reco-nhecimento social. Tomando-se um exemplodos EEUU dos anos 20 e 30, sabe-se que a Má-fia recrutava seus adeptos entre os jovens (ho-mens) de 18 a 25 anos, crianças e imigrantesque viviam nos bairros pobres. Esse grupo derisco continuou a ser o preferido pelos narco-traficantes nas duas últimas décadas. Jovens,pobres de favelas e periferias urbanas, torna-ram-se força de trabalho preferencial para otráfico e, uma vez integrados neste mercado,participam de uma série de relações de reci-procidade social onde favores recebidos e re-tribuídos são regidos por rígido controle dogrupo, a ponto de tornar-se quase impossível asaída espontânea de um membro (Zaluar,1993). Este grupo é selecionado dentro de umcontexto em si violento, com promessas de ga-nhos fáceis e imediatos, numa situação de es-cassez de opções do mercado formal.

Desta forma, ao mesmo tempo em que a si-tuação de violência e drogas reflete a questãodo status legal das substâncias, reflete tambémas chances e oportunidades que a economiaformal deixa de oferecer, circunstância sob aqual o mercado das drogas floresce. Por outrolado, o mercado formal apenas aparentementenão compartilha do comércio ilegal de drogas,pois é de domínio público o envolvimento, emredes nacionais e internacionais, de institui-ções políticas, financeiras e empresariais como capital gerado e em circulação provenientedessa peculiar fonte de riqueza. O comércioilegal também está muitas vezes ligado ao trá-fico de armas, misturando-se constantementea negócios oficiais de importação e exportação(Velho, 1994).

O simples fato de ser legal o acesso ao ál-cool e ilegal em relação a outras drogas, tornadifícil estabelecer os tipos de condições neces-sárias para isolar os efeitos das substâncias es-pecíficas ou de indivíduos e grupos específicos.Por outro lado, como Sá (1994) revela, o Brasiladota uma política de criminalização de certasdrogas, associando-se a visão jurídica (‘caso depolícia’) a uma perspectiva médico-psiquiátri-ca (‘doença mental’). Esta política se auto-re-produz ideologicamente (a imagem do uso dedrogas como crime cria socialmente a figura docriminoso) e materialmente (o sistema produzuma realidade conforme a imagem da qualsurge e a legitima).

O estudo de Bastos (1995) mapeia muitobem as dificuldades que a sociedade tem para

refletir sem preconceitos a questão das drogas,para aceitar a lógica das comunidades dosusuários e entender seu significado na socie-dade. Velho (1994) ressalta a importância de seestudarem os valores presentes nas subcultu-ras ligadas ao uso de drogas ilícitas e enfatizaque estes laços e comportamentos unicamentese tornam anti-sociais e violentos num contex-to de severa marginalização. Zaluar (1993,1994) ressalta o percurso dos jovens dependen-tes (sobretudo os mais pobres) que sofremmúltiplas exclusões: na família, escola, vizi-nhança, até finalmente serem perseguidos pelapolícia como criminosos. A autora alerta que acriminalização, enquanto tentativa de contro-lar o mercado pela lei, além de não ser medidaeficaz, tornou este mercado imune a qualquerforma de controle exterior. Neste processo, aprática de violências atrozes e incontroláveismedeiam e expressam estas relações, favore-cendo um imaginário social do ‘mal absoluto’,fora da medida humana e de seu controle.

Obstáculos para a interpretação

Muitos eventos de bebedeira ou de uso de dro-gas não são suficientes para se concluir pelasua articulação direta com a violência. No en-tanto, o álcool está associado à perpetração de50% de todos os homicídios, mais de 30% dossuicídios e tentativas de suicídio, e à grandemaioria dos acidentes de trânsito, conformedados da OPAS (1993). Enquanto, porém, mui-tos poderiam apressadamente concluir pelarelação causal entre drogas e violência, as ta-xas de homicídios são bem baixas se compara-das com as de prevalência de uso de álcool oudrogas.

Isso nos desafia em dois sentidos. O primei-ro é que, se em muitos eventos violentos, en-contra-se alguma associação com o uso de dro-gas ou álcool, não se pode afirmar perempto-riamente que inevitavelmente isso aconteça ouque esta relação seja de causalidade. Em se-gundo lugar, trata-se de uma falácia ecológicaa idéia de que substâncias ilegais e pobreza,por exemplo, são responsáveis por eventos vio-lentos. Essa idéia parte de um determinismobiológico, social e econômico. Por exemplo, seé verdade que existe uma relação entre altas ta-xas de violência e uso de drogas em determina-dos bairros pobres, há grandes diferenças detaxas entre bairros com a mesma situação só-cio-econômica estrutural. Desta forma, há ne-cessidade de se reconhecer a complexidade docontexto social, da dinâmica das comunidadese das normas culturais historicamente cons-

Page 6: A Complexidade da Pesquisa Qualitativa

MINAYO, M. C. S & DESLANDES, S. F.40

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998

truídas e dos fatores de personalidade e indivi-dualidade.

No entanto, negar a linearidade das in-fluências ecológicas não significa cair no outroextremo, que reconhece apenas as diferençasindividuais como explicativas pelo abuso desubstâncias e pela sua articulação com a vio-lência. A falácia individualista sugere que háconexão entre intoxicação por drogas e agres-são física como resultado de personalidade,respostas endócrinas, neuroanatômicas ou ou-tros fatores individuais. Essa argumentaçãodespreza o contexto estrutural, cultural e situa-cional. Por exemplo, a literatura sobre violên-cia doméstica, violência das gangs de jovens,mostra situações culturais problemáticas que ouso de drogas pode acirrar ou não, mas não asconsegue explicar.

Há várias dificuldades em se medir a rela-ção entre violência e drogas. A correlação en-tre uso de substância e violência varia se nósbuscamos medir comportamentos ou efeitos.A correlação de freqüência entre drogas e vio-lência doméstica varia se medirmos eventosgraves ou freqüência de agravos. Do ponto devista metodológico, as definições operacio-nais influenciam nos resultados das pesquisas.Em alguns estudos, ganha-se na compreensãoda magnitude do problema; em outros, bus-ca-se a sua especificidade, perdendo-se a ex-tensão.

Drogas e álcool tanto podem ser usados an-tes como depois dos eventos violentos. Muitasvezes as substâncias são utilizadas como des-culpas para violência, para diminuir a respon-sabilidade pessoal. Outros as usam para sim-plesmente atingirem um estado emocional quelhes facilite cometer crimes. Há aqueles queconsideram o comportamento de beber ouusar drogas como parte da interação grupal.Muitos, ainda, corroborando a análise de Freudem O Mal-Estar da Civilização, usam drogaspara suportar as agruras da vida, como mos-tram também os estudos de Bastos (1995) eGarcia (1996). Ou seja, ambos, álcool e drogasem si, dizem pouco enquanto fatores de riscopara a violência, e essa articulação merece sermais investigada, melhor delineada, buscan-do-se exatamente conhecimentos e práticasque contribuam para a saúde da população.

Por fim, as fontes de dados têm interessesintrínsecos. A fidedignidade das informaçõesdos usuários depende da preocupação que têmcom a utilização que se fará de seus relatos. Asinformações oficiais estão influenciadas porvariáveis organizacionais. As informações dosestudiosos levam a diferentes resultados deacordo com as referências conceituais, bases

de dados e com os agregados populacionais. Asinformações das vítimas são diferentes daque-las recolhidas com os agressores.

Hoje, o caminho que parece mais correto éanalisar o que realmente acontece quando háum evento violento e são usadas drogas. Issoincluiria o esclarecimento dos motivos e inten-ções, conhecer as seqüências e interações queredundaram em violência, bem como dadosdos acontecimentos que precederam e sucede-ram o fato em questão.

Propostas de parâmetros para intervenção e prevenção

Como se pode concluir, é muito complexo o fe-nômeno da violência e sua articulação com asdrogas, exigindo que seja tratado com instru-mentos, conhecimentos e ações que ultrapas-sem a mera representação ou o moralismosimplista.

A atuação dos grupos comunitários em re-lação ao uso de substâncias e violência sugereque o contexto cultural modera e regula into-xicações e ações violentas. Os segmentos e ocontexto influenciam a escolha de substâncias,comportamentos e normas, interpretação dasituação e a probabilidade de aconteceremagressões. É preciso tomar o contexto em con-sideração, sobretudo quando se trata de situa-ções de alto risco. A análise de eventos deve fo-calizar conseqüências das interações compor-tamentais, interações entre substância e pes-soa, interações entre pessoas e pessoas, alémda quantidade de drogas ou álcool consumidose o tempo de uso.

As ações produzidas visando à prevençãoprecisam ser elaboradas incluindo as comuni-dades e suas instituições, os diversos setorespúblicos (Educação, Saúde e Justiça), as em-presas e os meios de comunicação de massa(OSAP, 1991). Posturas, habilidades e alternati-vas de lazer podem ser categorias trabalhadasem ações de prevenção. Tais ações devem serelaboradas levando-se em conta o contexto aque se destinam e questões fundamentais, co-mo o grupo etário, gênero, características indi-viduais, situação social, tipo de comunidade eparticipação em grupos específicos. Uma ati-tude de ‘escuta’, aberta às vivências dos grupose apoiada numa perspectiva pedagógica cen-trada no respeito e atenta às peculiaridades só-cio-culturais são elementos muito importan-tes. Sem dúvida, as ações de prevenção ao abu-so de drogas só alcançarão real efetividade sehouver um investimento significativo e de qua-lidade na educação básica, na melhoria das

Page 7: A Complexidade da Pesquisa Qualitativa

DROGAS, ÁLCOOL E VIOLÊNCIA 41

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998

condições de vida, na oferta de emprego sobre-tudo para jovens de comunidades mais pobres,no reforço cultural de valores que desfavore-çam a drogadição abusiva e na valorização dodiálogo e apoio familiar.

A perspectiva de atuação, seja apoiada navisão de redução de danos, seja na abordagemda prevenção primária (MS, 1997), precisa serrespaldada pelo debate entre cientistas sociaise cientistas naturais, entre organizações nãogovernamentais e representantes das secreta-rias e coordenações de programas de saúde ede outros setores da ação pública, ultrapassan-do preceitos normativistas da conduta dos in-divíduos e preconceitos sociais.

Por outro lado, programas de apoio e trata-mento àqueles já dependentes devem ser in-centivados, disseminados, descentralizados etecnicamente apoiados pela Saúde Pública eoutras áreas competentes. Tais projetos preci-sam estar apoiados numa perspectiva de res-peito à identidade e cidadania do paciente. O

atendimento a estes usuários dependentes nãopode deixar de lado seus direitos como pessoae sujeito. Entende-se que programas de apoioseriam mais eficazes se acompanhados de tra-balho visando mudar as relações entre usuá-rios dependentes, sua família e comunidade.Sá (1994) alerta para o fato de que os principaisproblemas enfrentados pelos usuários não sãodecorrentes do uso da substância, mas aquelesfrutos da marginalização.

É preciso, principalmente, pensar e repen-sar social e politicamente toda a rede de negó-cios que faz das drogas um assunto criminosocomo um dos maiores fatores, hoje, de incre-mento da violência social.

O desafio para a saúde pública, que hoje sepreocupa tanto com o uso abusivo de drogas,quanto com a violência, como fatores de riscopara a qualidade de vida, é conseguir um qua-dro referencial para a reflexão e para a açãoque inclua ao mesmo tempo o individual, o so-cial e o ecológico.

Referências

ANDRADE, A. G., 1995. As drogas mais usadas no Bra-sil e suas conseqüências. In: Drogas, Aids e Socie-dade (Programa Nacional de DST/AIDS, ed.), pp.53-59, Brasília: Ministério da Saúde/ProgramaNacional de DST/AIDS.

BASTOS, F. J., 1995. Ruína e Reconstrução, AIDS e Dro-gas Injetáveis na Cena Contemporânea. Rio de Ja-neiro: Relume-Dumará.

BECKER, H., 1990. How to become a marijuana user.In: Simbolic Interaction ( J. Manis & B. Meltzer,eds.), pp. 411-422, Boston: Allyn & Bacon.

BOYUM, D. & KLEIMAN, M. A. R., 1995. Alcohol andother drugs. In: Crime (D. Boyum & M. A. R.Kleiman, eds.), pp. 295-326, California: Institutefor Contemporary Studies Press.

CHERPITEL, C. J., 1993. Alcohol and violence-relatedinjuries: an emergency room studies. Addiction,88:79-88.

CHERPITEL, C. J., 1994. Alcohol and injuries result-ing from violence: a review of emergency roomstudies. Addiction, 89:157-165.

COID, J., 1986. Alcohol, rape and sexual assault. In:Alcohol and Aggression (P. F. Brain, org.), pp. 161-183, London: Croom Helm.

COLLINS, J. & MESSERSCHIMDT, P., 1993. Epidemi-ology of alcohol-related violence. Alcohol, Healthand Research World, 17:93-100

DESLANDES, S. F., 1997. O Impacto da Violência nosServiços de Emergência: Estudo em Hospitais Mu-nicipais do Rio de Janeiro (HMMC e HMSF, 1995-1996). Rio de Janeiro: Centro Latino-Americanode Estudos sobre Violência e Saúde – Jorge Careli,Departamento de Ciências Sociais, Escola Nacio-nal de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.(mimeo.)

FAGAN, J., 1990. Intoxication and aggression. In: Drugsand Crime (M. Tonry & J. Q. Wilson, eds.), pp. 8-43,Chicago: Chicago University Press.

FAGAN, J., 1993. Drugs, alcohol and violence. HealthAffairs, 12:66-79.

GARCIA, S. J., 1996. Implicações Psicossociais do Usode Drogas. Dissertação de Mestrado, Rio de Janei-ro: Escola Nacional de Saúde Pública, FundaçãoOswaldo Cruz.

GOLDSTEIN, P., 1989. Crack and homicide in NewYork City, 1988. A conceptually-based event analy-sis. Contemporary Drugs Problems, 16: 651-687.

GOLDSTEIN, P., 1985. The drugs-violence nexus: atri-partite conceptual framework. Journal of DrugsIssues, 15:493-506.

MS (Ministério da Saúde), 1997. Diretrizes para Proje-tos de Redução de Danos. Documento Preliminar.Brasília: Ministério da Saúde/Programa Nacionalde DST/AIDS. (mimeo.)

Page 8: A Complexidade da Pesquisa Qualitativa

MINAYO, M. C. S & DESLANDES, S. F.42

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998

McGINNIS, J. M. & FOEGE, W. H., 1993. Actual causesof death in the United States. Journal of AmericanMedical Association, 270:2.207-2.212.

McRAE, E., 1994. A importância dos fatores sociocul-turais na compreensão das drogas. In: Drogas eCidadania (A. Zaluar, org.), pp. 31-46, São Paulo:Brasiliense.

MUSA, G., 1996. Alcoolismo e Drogadição na Ado-lescência. Tese de Doutorado, Ribeirão Preto: Fa-culdade de Medicina, Universidade de São Paulo.

OPAS (Organização Panamericana de Saúde), 1993.Resolución XIX: Violência y Salud. Washington:OPAS. (mimeo.)

OPAS (Organização Panamericana de Saúde), 1994.Salud y Violencia:Plan de Acción Regional. Wash-ington: OPAS. (mimeo.)

OSAP (Office for Substance Abuse Prevention), 1991.Prevention Pluss III – Assessing Alcohol and OtherDrugs Prevention Programs at School and Com-munity Level. Atlanta: US Department of Healthand Human Services.

SÁ, D. B. S., 1994. Projeto para uma nova política dedrogas no País. In: Drogas e Cidadania (A. Zaluar,org.), pp. 147-171, São Paulo: Brasiliense.

VELHO, G., 1994. A dimensão cultural e política dosmundos das drogas. In: Drogas e Cidadania (A.Zaluar, org.), pp. 23-29, São Paulo: Brasiliense.

WOLFGANG, M., 1958. Patterns of Criminal Homi-cide. Philadelphia: University of PennsylvaniaPress.

YUNES, J. & RAJS, D., 1994. Mortalidad por causasviolentas. Cadernos de Saúde Pública, 10 (supl.1):88-125.

ZALUAR, A., 1993. A criminalização de drogas e oreencantamento do mal. Revista do Rio de Janei-ro, 1:8-15.

ZALUAR, A., 1994. Introdução. In: Drogas e Cidadania(A. Zaluar, org.), pp. 7-21, São Paulo: Brasiliense.