a coletânea de trabalhos do artista inglê ç ariny … · uma guerra com spray ... invisíveis na...

1
7 Pensar A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 24 DE NOVEMBRO DE 2012 6 Pensar A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 24 DE NOVEMBRO DE 2012 ESPECIALISTA ANALISA A ARTE ADOTADA POR BANKSY PARA ESPALHAR HUMOR, SARCASMO E CRÍTICAS PELAS RUAS arte por JOANA QUIROGA UMA GUERRA COM SPRAY A coletânea de trabalhos do artista inglês Banksy, publicada originalmente em 2005, ganha nova versão e soma forças ao movimento da arte urbana, com suas críticas estampadas nos muros DIVULGAÇÃO C hega finalmente ao Brasil “Guerra e Spray”, coletâ- nea dos trabalhos do acla- mado artista inglês Bank- sy. O lançamento da edi- tora Intrínseca é uma ver- são do sucesso “Wall and Piece”, pu- blicado originalmente em 2005, livro recheado do sarcasmo, crítica e pro- vocação traduzidos em estênceis, ins- talações, pinturas e slogans que o ar- tista já espalhou por todo o mundo. De identidade misteriosa – não se sabe nem sequer se ele é um indivíduo ou um coletivo –, Banksy mune-se de nossa desatenção crônica para lançar bombas de escárnio imagéticas que atin- gem com precisão e perspicácia os va- lores e atitudes que basilam o modo como vivemos atualmente, tornan- do-nos imediatamente vítimas de nossa própria piada. De policiais beijando-se em Londres, orangotangos pedindo pra voltar para casa no zoológico de Ber- celona, a uma criança que foge voando com balões no muro da Cisjordânia – construído por Israel a fim de se afastar dos territórios palestinos –, Banksy des- trincha as particularidades de cada um desses locais até encontrar aquilo que é comum a todos e, por essa razão, suas imagens têm um poder ímpar de co- municação. Porém, apesar de dedicar-se a diagnosticar e implodir as conivências e disparates da sociedade de consumo – contra a qual faz guerra com seu spray –, Banksy tornou-se mais um produto, dos mais rentáveis no mercado de arte. Nesse contexto, a publicação de “Guerra e Spray” vem coroar um > fato: o “grafite” é a última moda. Nos leilões de arte ele causa frenesi, estampado em inúmeras peças publi- citárias, ele é cool, na capa de discos da cantora pop Madonna, legitimado como a celebridade do momento. Mas se quisermos acessar o real valor da obra de artistas como Banksy, temos que investigar aquilo que es- capa ao culto em torno de sua per- sonalidade e do “grafite”. A força de ambos se perderá, e “Guerra e Spray” será somente mais um enfeite de mesa de centro, se o seu conteúdo não servir de convite para pensarmos o que tal artista pretende comunicar, e o que representa o movimento ao qual ele está inserido. Assim, se aceitarem este convite – meu e de Banksy – aco- modem-se em seus assentos, porque queremos incomodar todo o resto. Banksy e o graffiti Comecemos com as próprias pala- vras. O termo “grafite” não existe. Artistas como Banksy inserem-se no movimento da “arte urbana”, que con- grega inúmeras expressividades que fazem uso do espaço público para ex- por suas obras, e que, nos últimos anos, tem sido exponencialmente valoriza- da, levando alguns desses artistas a terem seus trabalhos comercializados. E se quisermos entender algo da con- testação comunicada por Banksy, te- remos que sair da análise de uma vertente estética – como o é a “arte urbana”, dito genericamente –, e re- lacioná-lo ao movimento de contra- cultura nascido há mais de 30 anos nos subúrbios de Nova York: o graffiti. O graffiti – palavra apropriada do italiano para nomear o ato de marcar no muro, e que, portanto, pode ser expandida até a pré-história –, originou-se de um grupo de jovens que, exprimidos e invisíveis na grande metrópole, co- meçaram a ilicitamente escrever seus nomes por toda Nova York. Eles to- mavam posse de cada centímetro da cidade, negando-se a respeitar os li- mites, físicos e abstratos, que ela lhes impunha. Por essa razão, graffiti, dito propriamente, refere-se ao ato de al- guém voluntarimente fazer uso dos espaços da cidade para deixar algum tipo de marca, de maneira necessa- riamente avessa a qualquer fronteira coercitiva externa à própria ação. Disso decorre algo muito impor- tante: se dissermos que gostamos de graffiti – e que alguém da notoriedade de Banksy é um artista de graffiti – deveremos estar cientes de que se trata de uma manifestação que é, muito provavelmente, ilícita e ilegal. Essa observação nem por um instante deve ser usada para desqualificar o graffiti – ou dizer que Banksy não possa ser chamado de um artista do graffiti pelo fato de comercializar suas obras. Mui- to pelo contrário, ela auxilia a nos esgueirarmos também pelas vielas des- sa contracultura e reconhecer as pistas de sua verdadeira força, e fazê-la valer ainda mais. Cidade grafitada Uma das citações de “Guerra e Spray” diz: “Imagine uma cidade em que o graffiti não é ilegal, uma cidade em que qualquer um pode desenhar onde quiser. Onde cada rua seja inundada de milhões de cores e frases curtas. Onde esperar no ponto de ônibus não seja uma coisa chata. Uma cidade para a qual todos foram con- vidados, não apenas as autoridades e os figurões dos grandes empreendimentos. Imagine uma cidade como essa e não encoste na parede – a tinta está fresca”. Assim como Banksy, são incontáveis as pessoas que por todo o mundo estão transgredindo furtivamente os espaços si- tiados, literais e figurados, para concretizar essa cidade imaginária. Aqui no Brasil, por exemplo, temos a vertente do graffiti denominada “pi- chação”, em que prédios altissímos são escalados para poder pintar o topo da cidade. Estabelecido por lei como crime no ano passado – o que o separou do “grafite”, que segundo o texto consiste na pintura artística e previamente au- torizada, cisão que não ocorre em ne- nhum outro lugar do mundo –, não são poucos os riscos assumidos que a sua realização representa: além de prisão, graves acidentes ou morte e a violência de policial e civil fazem parte do possível preço a ser pago. Diante disso, cabe-nos, no mínimo, a curiosidade: o que faz com que alguém corra tantos perigos para “somente” pintar seu nome na cidade? Se encararmos com franqueza essa simples pergunta, ela servirá como óculos de raio-x para ver a cidade que há por debaixo desta que habitamos, e que Bank- sy e todos aqueles que escrevem graffiti querem trazer à superfície. As cores, traços, nomes e desenhos desvelarão de- talhes que, no automatismo da cidade, talvez nunca tenhamos notado. E é neles que reside o valor da arte de Banksy – e de tantos outros – e não nas cifras da fama que tanto se alardeia. Trata-se de uma “guerra” que não pode ser capitalizada. Com essas tochas de spray, são inú- meros os pontos obscuros de nosso tem- po que o grafitti está iluminando. Na cidade que o graffiti pinta – que nada tem de imaginária –, conceitos aparentemen- te óbvios como o uso dos espaços, pro- priedade e liberdade, transformam-se nas bombas de um campo minado que guardamos logo abaixo de nossos pés, e que veremos explodir caso conti- nuemos a não questioná-los. A obra de Banksy é carregada de sarcasmo, crítica e provocação: “Pode rir agora, mas um dia estaremos no comando” > Guerra e Spray Banksy Editora Intrínseca, 240 páginas, tradução de Rogério Durst, R$ 49,90. ARINY BIANCHI/DIVULGAÇÃO O graffiti, palavra apropriada do italiano para nomear o ato de marcar no muro, está mais perto do que se imagina, como neste galpão da Av. Fernando Ferrari, em Vitória

Upload: doannhi

Post on 06-Oct-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

7PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

24 DE NOVEMBRODE 2012

6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,24 DE NOVEMBRODE 2012

ESPECIALISTA ANALISA A ARTE ADOTADA POR BANKSY PARAESPALHAR HUMOR, SARCASMO E CRÍTICAS PELAS RUAS

artepor JOANA QUIROGA

UMA GUERRACOM SPRAY

A coletânea de trabalhos do artista inglês Banksy, publicada originalmente em 2005, ganha nova versão e soma forças ao movimento da arte urbana, com suas críticas estampadas nos muros

DIVULGAÇÃO

Chega finalmente ao Brasil“Guerra e Spray”, coletâ-nea dos trabalhos do acla-mado artista inglês Bank-sy. O lançamento da edi-tora Intrínseca é uma ver-

são do sucesso “Wall and Piece”, pu-blicado originalmente em 2005, livrorecheado do sarcasmo, crítica e pro-vocação traduzidos em estênceis, ins-talações, pinturas e slogans que o ar-tista já espalhou por todo o mundo.

De identidade misteriosa – não sesabe nem sequer se ele é um indivíduoou um coletivo –, Banksy mune-se denossa desatenção crônica para lançarbombas de escárnio imagéticas que atin-gem com precisão e perspicácia os va-lores e atitudes que basilam o modocomo vivemos atualmente, tornan-do-nos imediatamente vítimas de nossaprópria piada. De policiais beijando-seem Londres, orangotangos pedindo pravoltar para casa no zoológico de Ber-celona, a uma criança que foge voandocom balões no muro da Cisjordânia –construído por Israel a fim de se afastardos territórios palestinos –, Banksy des-trincha as particularidades de cada umdesses locais até encontrar aquilo que écomum a todos e, por essa razão, suasimagens têm um poder ímpar de co-municação. Porém, apesar de dedicar-sea diagnosticar e implodir as conivênciase disparates da sociedade de consumo –contra a qual faz guerra com seu spray –,Banksy tornou-se mais um produto, dosmais rentáveis no mercado de arte.Nesse contexto, a publicação de“Guerra e Spray” vem coroar um>

fato: o “grafite” é a última moda.Nos leilões de arte ele causa frenesi,

estampado em inúmeras peças publi-citárias, ele é cool, na capa de discos dacantora pop Madonna, legitimado comoa celebridade do momento.

Mas se quisermos acessar o realvalor da obra de artistas como Banksy,temos que investigar aquilo que es-capa ao culto em torno de sua per-sonalidade e do “grafite”. A força deambos se perderá, e “Guerra e Spray”será somente mais um enfeite de mesade centro, se o seu conteúdo não servirde convite para pensarmos o que talartista pretende comunicar, e o querepresenta o movimento ao qual eleestá inserido. Assim, se aceitarem esteconvite – meu e de Banksy – aco-modem-se em seus assentos, porquequeremos incomodar todo o resto.

Banksy e o graffitiComecemos com as próprias pala-

vras. O termo “grafite” não existe.Artistas como Banksy inserem-se nomovimento da “arte urbana”, que con-grega inúmeras expressividades quefazem uso do espaço público para ex-por suas obras, e que, nos últimos anos,tem sido exponencialmente valoriza-da, levando alguns desses artistas aterem seus trabalhos comercializados.E se quisermos entender algo da con-testação comunicada por Banksy, te-remos que sair da análise de uma

vertente estética – como o é a “arteurbana”, dito genericamente –, e re-lacioná-lo ao movimento de contra-cultura nascido há mais de 30 anos nossubúrbios de Nova York: o graffiti. Ograffiti – palavra apropriada do italianopara nomear o ato de marcar no muro,e que, portanto, pode ser expandida atéa pré-história –, originou-se de umgrupo de jovens que, exprimidos einvisíveis na grande metrópole, co-meçaram a ilicitamente escrever seusnomes por toda Nova York. Eles to-mavam posse de cada centímetro dacidade, negando-se a respeitar os li-mites, físicos e abstratos, que ela lhesimpunha. Por essa razão, graffiti, ditopropriamente, refere-se ao ato de al-guém voluntarimente fazer uso dosespaços da cidade para deixar algumtipo de marca, de maneira necessa-riamente avessa a qualquer fronteiracoercitiva externa à própria ação.

Disso decorre algo muito impor-tante: se dissermos que gostamos degraffiti – e que alguém da notoriedadede Banksy é um artista de graffiti –deveremos estar cientes de que se tratade uma manifestação que é, muitoprovavelmente, ilícita e ilegal. Essaobservação nem por um instante deveser usada para desqualificar o graffiti –ou dizer que Banksy não possa serchamado de um artista do graffiti pelofato de comercializar suas obras. Mui-to pelo contrário, ela auxilia a nosesgueirarmos também pelas vielas des-

sa contracultura e reconhecer as pistasde sua verdadeira força, e fazê-la valerainda mais.

Cidade grafitadaUma das citações de “Guerra e Spray”

diz: “Imagine uma cidade em que o graffitinão é ilegal, uma cidade em que qualquerum pode desenhar onde quiser. Onde cadarua seja inundada de milhões de cores efrases curtas. Onde esperar no ponto deônibus não seja uma coisa chata. Umacidade para a qual todos foram con-vidados, não apenas as autoridades e osfigurões dos grandes empreendimentos.Imagine uma cidade como essa e nãoencoste na parede – a tinta está fresca”.Assim como Banksy, são incontáveis aspessoas que por todo o mundo estãotransgredindo furtivamente os espaços si-tiados, literais e figurados, para concretizaressa cidade imaginária.

Aqui no Brasil, por exemplo, temos avertente do graffiti denominada “pi-chação”, em que prédios altissímos sãoescalados para poder pintar o topo dacidade. Estabelecido por lei como crimeno ano passado – o que o separou do“grafite”, que segundo o texto consistena pintura artística e previamente au-torizada, cisão que não ocorre em ne-nhum outro lugar do mundo –, não sãopoucos os riscos assumidos que a suarealização representa: além de prisão,graves acidentes ou morte e a violênciade policial e civil fazem parte do possível

preço a ser pago. Diante disso, cabe-nos,no mínimo, a curiosidade: o que faz comque alguém corra tantos perigos para“somente” pintar seu nome na cidade?

Se encararmos com franqueza essasimples pergunta, ela servirá como óculosde raio-x para ver a cidade que há pordebaixo desta que habitamos, e que Bank-sy e todos aqueles que escrevem graffitiquerem trazer à superfície. As cores,traços, nomes e desenhos desvelarão de-talhes que, no automatismo da cidade,talvez nunca tenhamos notado. E é nelesque reside o valor da arte de Banksy – e detantos outros – e não nas cifras da famaque tanto se alardeia. Trata-se de uma“guerra” que não pode ser capitalizada.

Com essas tochas de spray, são inú-meros os pontos obscuros de nosso tem-po que o grafitti está iluminando. Nacidade que o graffiti pinta – que nada temde imaginária –, conceitos aparentemen-te óbvios como o uso dos espaços, pro-priedade e liberdade, transformam-senas bombas de um campo minado queguardamos logo abaixo de nossos pés, eque veremos explodir caso conti-nuemos a não questioná-los.

A obra de Banksy é carregada de sarcasmo, crítica e provocação: “Pode rir agora, mas um dia estaremos no comando”

>

Guerra e SprayBanksy Editora Intrínseca,240 páginas, tradução deRogério Durst, R$ 49,90.

ARINY BIANCHI/DIVULGAÇÃO

O graffiti, palavra apropriada do italiano para nomear o ato de marcar no muro, está mais perto do que se imagina, como neste galpão da Av. Fernando Ferrari, em Vitória

Documento:AGazeta_24_11_2012 1a. SABADO_CP_Pensar_6.PS;Página:1;Formato:(548.22 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:22 de Nov de 2012 17:45:39