a clonagem de seres humanos e suas implicaÇÕes …arquivo.fmu.br/prodisc/direito/acsn.pdf · 3.2....

42
UniFMU CURSO DE DIREITO A CLONAGEM DE SERES HUMANOS E SUAS IMPLICAÇÕES NO DIREITO DE FAMÍLIA E PROPRIEDADE INTELECTUAL AMAURY CORRÊA DA SILVA NETO – RA 473.158-0 Turma: 0315A1 Telefone de contato: (11) 3262-0485 Orientador: Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti UniFMU CURSO DE DIREITO

Upload: phamcong

Post on 08-Nov-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UniFMU

CURSO DE DIREITO

A CLONAGEM DE SERES HUMANOS E SUAS

IMPLICAÇÕES NO DIREITO DE FAMÍLIA E

PROPRIEDADE INTELECTUAL

AMAURY CORRÊA DA SILVA NETO – RA 473.158-0 Turma: 0315A1

Telefone de contato: (11) 3262-0485

Orientador: Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti

UniFMU

CURSO DE DIREITO

2

A CLONAGEM DE SERES HUMANOS E SUAS

IMPLICAÇÕES NO DIREITO DE FAMÍLIA E

PROPRIEDADE INTELECTUAL

AMAURY CORRÊA DA SILVA NETO – RA 473.158-0 Turma: 0315A1

Monografia apresentada ao Curso de Direito da UniFMU como requisitoparcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a orientação daProfª Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti

São Paulo, 12 de fevereiro de 2.004

AVALIAÇÃO DA MONOGRAFIA

3

(A SER PREENCHIDO QUANDO FOR DEFINIDA A BANCAEXAMINADORA)

Espaço paradedicatór ias

4

SINOPSE

5

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO: O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO...........................................xx

1.1.delimitação e justificação do tema......................................................................xx

2. ASPECTOS CIENTÍFICOS DA CLONAGEM: UMA BREVEABORDAGEM.............................................................................................................xx

3.1. introdução...........................................................................................................xx

3.2. as novas técnicas de reprodução humana e os direitos reprodutivos.................xx

3.3. definição de clonagem.........................................................................................xx

3.4. inseminação humana...........................................................................................xx

3.5. clonagem humana...............................................................................................xx

3.6. visão legal da clonagem humana........................................................................xx

6

3. AS RELAÇÕES DE PARENTESCO ENTRE CLONES......................................xx

4.1. enfoque normativo...............................................................................................xx

4.2. critérios para caracterização do parentesco......................................................xx

4.3 filiação e clonagem..............................................................................................xx

4. CLONAGEM E PROPRIEDADE INTELECTUAL..............................................xx

5.1. conceitos importantes no direito de propriedade intelectual..............................xx

5.2. clonagem e patentes............................................................................................xx

5.3. clones e organismos modificados geneticamente................................................xx

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÃO.....................................................xx

6. BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................xx

1. INTRODUÇÃO: O ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

DELIMITAÇÃO E JUSTIFICAÇÃO DO TEMA

Sem dúvida o tema que mais atrai atenções atualmente é a clonagem,

impulsionada por uma vasta literatura de ficção científica que acompanha e

antecede a própria discussão científica da matéria. Inúmeros escritores buscaram

antecipar profeticamente alguns dos desenvolvimentos científicos biomédicos

mais recentes, dentre os quais podemos citar Júlio Verne, Aldous Huxley,

George Orwell etc. De fato estes literatos desde longa data têm gasto muitas

laudas para descrever um mundo onde a clonagem seria um fato corriqueiro e de

certa forma incorporado à relações sociais cotidianas. Talvez a clonagem tenha

mesmo surgido antes na imaginação dos escritores para somente depois se tornar

7

teoria científica e finalmente uma realidade. Obras como “Admirável Mundo

Novo” de Aldous Huxley, “1984” de George Orwell, já prenunciavam técnicas

de fertilização in vitro e clonagem, bem como os efeitos maléficos que estas

descobertas poderiam acarretar para a humanidade. Na sociedade descrita por

Huxley não existem relações sexuais e todos são concebidos através de

inseminação artificial (isso muitas décadas antes que esta técnica fosse

aperfeiçoada). Não há afeto entre as pessoas, pois não são criados laços

familiares, já que todos são educados em instituições e não no seio de uma

família. É um prenúncio sombrio, mas não há como negar a visão arguta de

Huxley ao antever um mundo destituído de sentimentos e compaixão.

Por outro lado , as questões levantadas na presente monografia de forma alguma

pretendem representar obstáculos ao desenvolvimento natural da ciência. Com

efeito, pretendemos discutir a clonagem sob outro aspecto pouco debatido nos

meios científicos e jurídicos, qual seja as implicações que tal técnica irá provocar

nas relações de família e de propriedade intelectual. Pretendemos avançar além

dos limites circunscritos do debate ético e moral que hoje associa-se à clonagem.

Tais discussões transcorrem tão somente no campo ético-filosófico, e poucas

vezes abordam os problemas relacionadas à filiação, sucessão de bens, contratos,

patentes, etc que têm implicação direta com a clonagem.

As questões éticas sobre o banimento da clonagem ou restrições para utilização

de tais técnicas de manipulação genética são obviamente de crucial importância

8

para a sociedade, porém entendemos que mesmo venha a ser permitida ou banida

dos diversos ordenamentos jurídicos, ainda assim, não podemos nos esquivar do

debate acerca dos eventuais efeitos que tais técnicas de replicação de genes

poderão refletir nas relações sociais e jurídicas.

Oportuna a menção ao pensamento do Professor Ronald Chester, da New

England School of Law: “Is states (or indeed countries) ban whole-body human

cloning and/or criminalise it as a form of reproduction, their legislatures will lose

their opportunity to regulate it. The technology will likely move “off shore” or

“undercover”. 1

Portanto, ainda que os diversos ordenamentos jurídicos venham a disciplinar a

clonagem proibindo-a ou sendo permitida em situações específicas e sob

rigoroso controle, não devemos olvidar que a mente humana é pródiga e a

natureza do homem o conduz inevitavelmente à burla da norma jurídica no afã

de atingir patamares superiores de conhecimento.

O presente trabalho tem por finalidade entender como a clonagem poderia ter

implicações profundas no Direito de Família e de Propriedade Intelectutal,

notadamente no campo das relações de parentesco e patentes.

Desviando assim a discussão do campo puramente ético para o aspectos

tangenciais ao Direito Civil restará a questão: mesmo que a clonagem venha a

1 CHESTER, Ronald. Cloning of Human Reproduction: One American Perspective, in The Sidney Law Review,pág. 320, setembro 2001

9

ser banida como deveremos nos portar perante um ser clonado? Quais direitos

deverão lhe ser assegurados? Se a clonagem for banida em alguns países, mas

permitida em outras, o Direito Internacional deverá reconhecer a aplicação do

mesmo estatuto de direitos dos seres originados através de reprodução sexuada

aos seres clonados? A eles serão reconhecidos direitos de sucessão? Quem serão

seus pais? O clone seria uma pessoa perante o Direito Civil? Como seria

individualizado? Realmente a quantidade de dúvidas é imensa para ser tratada no

presente estudo.

Por essa razão os aspectos éticos e morais que circundam a temática acerca da

clonagem serão estudados tão somente de forma perfunctória.

Nesse sentido, no âmbito da ética, em especial da Bioética2, importante ressaltar

que o "Relatório Belmont"3 (The Belmont Report: Ethical Guidelines for the

Protection of Human Subjects. Washington: DHEW Publications (OS) 78-0012),

publicado em 1978, utilizou como referencial para as suas considerações éticas,

a respeito da adequação das pesquisas realizadas em seres humanos, três

princípios básicos:

1. o respeito às pessoas (relacionado ao conceito de dignidade humana);

2 O Prof. JOAQUIM CLOTET em interessante artigo intitulado "A Bioética : uma ética aplicada em destaque"afirma que : "Partindo do conceito de ética aplicada, como aproximação dos princípios da ética num caso ouproblema específico, a Bioética poderia ser definida, brevemente, como a abordagem dos problemas éticosocasionada pelo avanço extraordinário das ciências biológicas, bioquímicas e médicas. (...)" (Clotet, J. "Abioética: uma ética aplicada em destaque" in A saúde como desafio ético, Anais do I Seminário Internacional deFilosofia e Saúde, Florianópolis 1994, p. 115 a 129)3 No "Belmont Report" foi, pela primeira vez, estabelecido o uso sistemático de princípios ( a saber "respeito àspessoas", "beneficência" e "justiça") na abordagem de dilemas bioéticos

10

2. a beneficência(maximizar o bem e minimizar o mal - no contexto da atuação

do profissional médico é agir sempre em favor do paciente) ; e

3. a justiça (isonomia).

Não obstante as restrições éticas que circundam a clonagem, a realidade mostra-

se mais vigorosa do que a disciplina legal, e a possibilidade de surgimento de

uma legião de seres originados mediante técnicas de clonagem é palpável.

Mesmos sendo proibida a clonagem que destinação conferir aos seres clonados?

Eles deveriam ser eliminados da sociedade? Postos simplesmente em campos de

concentração, por exemplo? Se estivéssemos diante de um ato jurídico típico,

disciplinado pelo Direito Civil, cuja validade está sendo discutida; facilmente

obteríamos a resposta: se o ato é proibido então ele será nulo ou anulável de

pleno direito, na forma da lei. Mas será possível anularmos ou decretarmos a

nulidade de um ser criado a partir de clonagem, seria possível eliminar do

universo jurídico este ser, ainda que ele seja integrante da raça humana?

Se de por um lado as novas tecnologias ligadas à manipulação do DNA

(combinação de genes) prometem alcançarmos um modo melhor de vida, com

menos doenças, com seres humanos mais resistentes; de outro existem

problemas que precisarão ser enfrentados e cuja análise nos trazem medos e

inquietações, pois colocam em foco valores religiosos, culturais, sociais e

econômicos e por este motivo devemos submeter a clonagem a um adequado

11

tratamento jurídico, para, ao menos, oferecer alguma segurança social face às

conseqüências que poderiam causar.

Certamente a clonagem nos remete à necessidade de um monitoramento e

reflexão a respeito dos avanços tecnológicos engenharia genética. Tal reflexão

buscará minimizar os riscos para as gerações futuras. No entanto, este

monitoramento não deve ser direcionado de maneira a impedir qualquer

discussão sobre clonagem como certos setores da sociedade poderiam querer,

notadamente aqueles ligados às diversas religiões, que nem sequer admitem

discutir e entender tal fenômeno.

O presente trabalho procura, dessa forma, indo além da reflexão ética e moral

que essas novas descobertas representam, pensar uma série de possíveis

implicações e possíveis soluções para a questão da clonagem quanto aos

aspectos do Direito de Família e Propriedade Intelectual.

Se há evidente carência de códigos éticos privados, sem o poder coercitivo do

direito positivo, elaborados e obedecidos pelos pesquisadores e cientistas

envolvidos com clonagem no âmbito das suas respectivas especialidades, quando

analisamos as normas jurídicas de fundo estatal logo iremos perceber que estas

praticamente são totalmente inexistentes quanto aos efeitos da clonagem e do

tratamento a ser dado aos seres originados a partir de tais técnicas.

É também necessário pontuar o momento histórico em que vivemos, ou seja,

admitir o fim da chamada "saga industrial" caracterizada pelas descobertas

12

ligadas à física e à química, momento em que os cientistas e engenheiros foram

elevados ao status de autoridades, com a divisão do átomo, a criação da bomba

atômica, a chegada do Homem à lua etc. A era Industrial durou cinco séculos e

termina com uma sociedade rodeada de problemas, tais como a diminuição das

fontes de energia, o aquecimento da biosfera, as mudanças climáticas e a

poluição.

Devemos então partir para questões práticas a respeito das novas descobertas na

área de biociência. A possibilidade de corporações globais, institutos de pesquisa

e governos deterem patentes de genes que compõem a raça humana, células,

órgãos e tecidos do corpo humano, proporcionar-lhes-ia o poder de ditar as

regras pelas quais toda a sociedade e as gerações futuras seguiriam.

2. ASPECTOS CIENTÍFICOS DA CLONAGEM: UMA BREVE

ABORDAGEM

2.1. INTRODUÇÃO

Durante a década de 50, graças aos trabalhos de dois grandes geneticistas,

WATSON e CRICK, foi possível desvendar a estrutura do DNA, o material

genético primordial de todo ser humano. Desde então os avanços na área da

genética foram espantosos e em curto espaço de tempo foi possível o

13

desenvolvimento de técnicas de manipulação do material genético e de

fertilização humana em laboratório.

No final da década de 1970 podemos acompanhar o nascimento de bebês de

proveta, vale dizer o óvulo era fertilizado por meio do espermatozóide fora do

útero materno em laboratório e implantado no ventre de uma mulher que

providenciaria a gestação do embrião. Em 20 de julho de 1978, nascia Louise

Joy Brown, no General Hospital, na cidade de Oldham (Inglaterra), graças ao

trabalho dos doutores Steptoe e Edwards, que vinham se dedicando à pesquisa há

mais de quinze anos4.

2.2. AS NOVAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO HUMANA E OS DIREITOS

REPRODUTIVOS

Examinaremos, a partir de agora, a temática das novas técnicas de reprodução

humana sobre o prisma jurídico-constitucional. São essas técnicas direitos

constitucionalmente garantidos? Quais as características desses direitos, se

realmente assim são considerados? Devemos, no entanto, para uma compreensão

melhor de problema tão intrincado, olhar para o passado e fazer a reconstrução

dos direitos fundamentais, tendo como marco as gerações de direitos, elaborada

de forma magnífica por Norberto Bobbio.

4 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações Artificiais e o Direito: Aspectos Médicos, religiosos, psicológicos,éticos e jurídicos. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 19 a 20.

14

Segundo esse autor, os direitos humanos ou fundamentais podem ser agrupados

em gerações sucessivas e complementares, gerações essas surgidas em íntima

relação com o grau de evolução do Estado. Os direitos de primeira geração

surgiram na primeira fase do Estado Moderno, o Estado de Direito. Eram direitos

de liberdade, igualdade e segurança basicamente. Num contexto político em que

se entendia que o indivíduo era tanto mais livre quanto menos o Estado

interviesse em sua vida particular, constituíam-se esses direitos uma garantia

contra os abusos do poder estatal. Era o período do liberalismo econômico,

refletido no pensamento do "laissez-faire, laissez-passer", que acabou por

influenciar a esfera política, gerando o que se denominou de Estado Mínimo.

Mas, devido a grandes modificações sociais, políticas, econômicas e culturais, o

Estado foi obrigado a intervir no domínio econômico. Passou a regular a

atividade econômica, a intervir sempre para minorar as desigualdades nas

relações entre os indivíduos. Surge, então, o Estado de Bem-Estar Social e, com

ele, os direitos de segunda geração, não considerados como superiores em

relação aos de primeira, mas complementares, englobando aqueles e lançando

uma nova interpretação em relação a eles. São os direitos relativos ao trabalho,

saúde, transporte, etc.

O Estado de Bem-Estar conseguiu por muito tempo garantir um mínimo de

igualdade entre seus membros. Mas, em decorrência de crises econômicas e até

mesmo crises internas nos Estados de Bem-Estar, esse modelo começa a

15

apresentar problemas. Passa-se a elaborar um novo modelo de Estado,

denominado de Estado Democrático de Direito, uma nova alternativa para a

resolução dos problemas que o Estado Social não havia conseguido resolver5.

É nesse novo paradigma estatal que surgem os direitos ao meio ambiente

equilibrado, consumidor, patrimônio histórico, direitos reprodutivos, material

genético etc. Esse modelo estatal caracteriza-se principalmente pela reconstrução

de conceitos como cidadania e soberania. Essas noções são baseadas na idéia de

ação comunicativa racionalmente fundada no seio da sociedade, ou seja, são

conceitos que devem ser construídos pelas pessoas no seu dia a dia, através da

comunicação e do diálogo e não simplesmente normatizados pelo Estado através

da positivação6.

Ressalte-se que no paradigma do Estado Democrático de Direito há uma grande

inovação nos conceitos de público e privado. O público não se confunde mais

com o estatal; é agora o próprio espaço social, onde se desenvolvem as ações

comunicativas. É nesse contexto que se devem entender os direitos reprodutivos,

dentre eles podendo-se destacar o direito à integridade do material genético, o

direito a ter filhos e de deixar descendentes, a própria sacralidade do corpo com

a proibição do comércio de partes do corpo humano (art. 199, parágrafo 4º da

Constituição Federal).

5 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos[L´età dei diritti]. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 4ª reimpressão,Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992, p. 49 a 67.

16

2.3. DEFINIÇÃO DE CLONAGEM

A clonagem é uma espécie de manipulação de genes. Trata-se, portanto de uma

técnica de engenharia genética que pretende alterar ou transferir parcelas do

patrimônio hereditário de um organismo vivo a outro.

Outras formas de manipulação genética têm por escopo realizar não uma simples

“cópia” de outro ser, mas combinações novas de genes para provocar, através de

uma reprodução assistida, a concepção de uma pessoa com caracteres diferentes

daqueles que forneceram o material genético, como simples alteração genética

ou para corrigir alguma enfermidade congênita. O que difere ambos é o

patrimônio genético produzido através de tais técnicas: na primeira o patrimônio

genético é idêntico, ao passo que na segunda técnica nova recombinação de

genes faz surgir um ser com patrimônio genético diferente do indivíduo que

doou os genes. Com efeito, a biologia nos indica dois caminhos para a

reprodução de um novo ser: reprodução sexuada e reprodução assexuada.

Na reprodução sexuada um embrião poderá surgir através de duas formas:

através da união do óvulo com o espermatozóide, mediante ato de cópula, e

assim a fecundação denominar-se-á in vivo, ou através de fecundação in vitro,

fora do útero materno, em laboratório com condições ideais para tal operação, e

somente após a união do óvulo com o espermatozóide este é reimplantado no

6 HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. [Moralbewusstsein und kommunikativesHandeln]. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Editora Tempo Brasileiro, Biblioteca Tempo Universitário, nº84, Rio de Janeiro, 1989. 235p.

17

útero da mulher que forneceu o óvulo ou no útero de uma terceira pessoa, caso a

pessoa fornecedora do óvulo não tenha condições de gerar o embrião.

A reprodução por clonagem prescinde da fecundação, e por esta razão é descrita

como reprodução assexuada. A célula que dará origem ao ser não é fecundada

por um óvulo e por um espermatozóide, mas sim reproduzida mediante a

substituição do núcleo da célula. Após tal operação a célula “copiada” é

implantada no útero.

Uma célula clonada produzida por meio de reprodução assexuada pode ser

obtida através dois métodos7:

a) Partenogênese induzida, que consiste em colocar o núcleo de uma

espermatogônia, (celular precursora do espermatozóide), com 46 cromossomos

(o espermatozóide possui 23 cromossomos), num óvulo humano desnucleado.

Não obstante, o número de cromossomos não corresponderia ao da célula

original e dessa forma eventual ser criado a partir de tal método poderia possuir

características inesperadas e indesejáveis, tais como defeitos genéticos ou

aberrações.

b) Transferência de núcleo, que consiste na utilização de uma célula-ovo ou

zigoto, substituindo seu núcleo pelo de uma célula somática, tirada via de regra

de um embrião, gerando um indivíduo com caracteres genotípicos daquele que

7 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito, pág. 444

18

doou o núcleo, ou um óvulo não fecundado. Tal técnica foi utilizada para a

criação da ovelha Dolly.

No Brasil, a Lei de Biossegurança (Lei no. 8.974/95) em seu artigo 8o, inciso II,

III e IV veda as manipulações genéticas de células germinativas; qualquer

intervenção em material genético humano in vitro e in vivo exceto para fins

terapêuticos; experimentos de clonagem e a manipulação de embriões humanos

para servir de material biológico disponível8.

A legislação brasileira em vigor apenas permite estudos e experiências que

visem "a análise molecular do genoma humano para seqüênciação total ou

mapeamento genético com a finalidade de identificar a função dos genes que

integram o cromossomo humano, atendendo a um programa especifico de saúde

e diagnóstico genético que assegure o direito à identidade, esclareça conflitos

relativos à filiação, reconstruindo laços parentais com base em técnicas de

identificação pessoal por meio de ADN, e solucione delitos, podendo até mesmo

levar à criação de um banco de dados genéticos".9

Convém, no entanto destacar que tramitam no Congresso Nacional diversos

projetos de lei tratando de temas específicos como clonagem de seres humanos,

produtos transgênicos, sendo certo que internamente o Brasil ainda não fixou

uma diretriz jurídica sobre tais matérias.

8 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo : Saraiva, 2001. p.402.9 DINIZ, Maria Helena, Op. cit. p.403.

19

A partir da possibilidade de reprodução assistida surgiram experiências de

tecnologia genética envolvendo embriões humanos. Com a fertilização in vitro e

o congelamento de embriões humanos, surge uma nova modalidade de vida,

independente, com o papel de auxiliar na resolução dos problemas de

infertilidade humana.

Essa nova técnica para criação de ser humano em laboratório, mediante a

manipulação dos componentes genéticos de fecundação, tendo em vista a

continuidade da espécie humana, entusiasmou a engenharia genética,

provocando grandes desafios para a ciência jurídica, que deve impor limitações

legais e estabelecer normas sobre responsabilidade civil por dano moral e

patrimonial, pelos graves problemas ético-juridicos.

Ideal seria a cominação das experiências genéticas com a problemática ético-

juridica, de forma a minimizar os perigos criados com a fertilização in vitro, a

gestação por conta de desconhecidos e a inseminação artificial, ante os possíveis

riscos de origem física e psíquica para a descendência; e que se unificasse a

concepção à um ato de amor, não convertendo-o em um ato artificial de

laboratório.

2.4. INSEMINAÇÃO HUMANA

Ter-se-á a inseminação artificial quando o casal não puder procriar, por haver

obstáculo à ascensão de elementos fertilizantes pelo ato sexual, como

esterilidade, deficiência na ejaculação, malformação congênita, pseudo-

20

hermafroditismo, escassez de espermatozóides, obstrução do colo uterino,

doenças hereditárias etc. Será homóloga se o sêmen inoculo na mulher for do

próprio marido ou companheiro, e heteróloga se o material fecundante for de

terceiro, que é o doador10.

As pesquisas nos campos da biologia, da fisiologia, da psicologia e da

psicanálise tomaram vulto e - com a utilização de técnicas novas e cada vez mais

sofisticadas - revolveram e puseram a nu o corpo e a psique do ser humano. O

ritmo acelerado e sem restrições do progresso, no que tange às ciências da

matéria, irá colocar o ser humano em face de suas próprias origens e diante da

possibilidade, cada vez mais concreta e próxima, de controlá-las.

A inseminação artificial, a fecundação in vitro e a engenharia genética são

estágios conseqüentes de uma revolução biológica cujo produto final poderá, se

nenhuma providência for adequadamente adotada, ser o desenvolvimento do

embrião em sede extracorpórea (útero artificial). As tecnologias para a

reprodução humana tornam-se cada vez mais ultrapassadas em menos tempo.

E se vier a ser atingida a fase última - o filho de proveta fabricado, em série, em

laboratório - o homem ficará reduzido à condição de mero instrumento de um

Estado totalitário, pleno e eficiente, no qual terá "uma existência absolutamente

programada, minuciosamente pormenorizada, que eliminará valores

extraordinariamente importantes da pessoa, como a capacidade de improvisação,

10 DINIZ, Maria Helena. Op. cit. p.455.

21

de admirar-se, de poder enfrentar o inesperado, de viver com espontaneidade, de

manter-se receptivo ao novo".

2.5. CLONAGEM HUMANA

O tema em questão é, no mínimo, instigante. Esta nova era de lidar com

fronteiras científicas, até então sequer vislumbradas, nem mesmo pelos mais

antigos visionários. Quando Mendel levou a cabo suas pesquisas com plantas, as

quais dariam início à Genética como ciência, ou seja, ao estudo das leis da

hereditariedade e das propriedades das partículas por ela responsáveis,

certamente não imaginou que suas pesquisas poderiam inspirar a engenharia

genética, isto é, à interferência do homem nas estruturas e processos naturais de

perpetuação dos seres vivos.

É dispensável lembrar que a intervenção humana na reprodução já é uma

realidade. A idéia de clonagem não é recente. Essas técnicas vêm sendo

empregadas na engenharia agrônoma desde a década de 60, visando o comércio

de plantas. Após bem-sucedidas realizações nos domínios do reino vegetal, os

cientistas passaram a realizar as mesmas experiências com animais. Com

animais as primeiras pesquisas foram desenvolvidas, em 1962, por Gurdon, em

sapos. Na década de 80 tentou-se, em Houston, inseminar vacas com embriões

22

clonados, mas sem sucesso. A primeira clonagem bem sucedida de um mamífero

ocorreu em 1988, com o rato, pelos cientistas Kal Hillmensee e Peter Hoppe11.

Até a criação de Dolly pela equipe do embriologista Ian Wilmut, do Instituto

Roslin, situado em Edimburgo, na Escócia, ainda não se havia conseguido, de

forma assexuada e artificialmente, em setembro de 1996 nasceu Dolly, uma

cópia perfeita de um ovino adulto, tendo como única diferença a idade12. Porém,

quando o tema alcança os seres humanos, afigura-se, de maneira preocupante, a

aplicação da técnica da clonagem.

Segundo palavras do Ministro Paulo Costa Leite13:

"O primeiro passo dessa reflexão consiste em admitir que a clonagem hoje é

uma realidade. Pertence ao mundo real, seguindo dois métodos como nos ensina

a ciência: no primeiro, provoca-se a cisão das células de um embrião, processo

semelhante àquele que gera, na natureza, gêmeos univitelinos; o resultado serão

dois seres compartilhando a mesma herança genética, porém diferentes de

qualquer outro.

A segunda forma, talvez a mais polêmica por se tratar de reprodução assexuada,

também denominada duplicação, produz um indivíduo pela substituição do

núcleo de um óvulo pelo núcleo de uma célula diplóide retirada de outro ser; o

resultado, como se viu no experimento que gerou a ovelha Dolly, será um

11 DINIZ, Maria Helena, Op. cit. p. 41812 DINIZ, Maria Helena, Op. cit. p. 417-1813 Discurso proferido pelo presidente do STJ na abertura do IV Seminário sobre Clonagem

23

indivíduo não apenas com a mesma herança genética de outro, mas exatamente

igual ao ser que lhe deu origem. Eis aí a diferença essencial entre os dois

métodos: naquele, o novo ser será portador de uma combinação gênica cujo

produto ainda é desconhecido; neste, as características do novo ser não trazem

novidade, pois já é conhecido o adulto que vai originar o clone".

Este tipo de argumento traz a humanidade um questionamento ético sobre a

possibilidade do clone humano. No caso específico da clonagem humana, a

perspectiva ética se torna crucial porque, enquanto os seres capazes de

manifestar sua vontade se fazem ouvir quando chamados a participar de

experimentos, os embriões e os fetos, seres humanos em potencial, ainda não

têm meios de expressão e, por isso acabam sendo tratados como se inanimados

fossem.

Recentemente, foi destaque na imprensa um cientista italiano que anunciou estar

preparado para dar início à primeira duplicação humana ainda neste ano. O seu

projeto envolverá cerca de 200 mulheres nas quais serão inseminados, em média,

três embriões, dos quais deverão nascer somente oito bebês. Espera-se que

apenas três deles saiam sadios do berçário, pois alguns dos clones não

sobreviverão devido a problemas respiratórios e cardíacos nas primeiras horas de

vida e outros viverão com falhas imunológicas graves. Não está descartada a

hipótese de se praticar eutanásia no caso dos bebês que apresentarem problemas

de saúde.

24

Ao demonstrar grande preocupação, não pretendo posicionar-me contra os

avanços da Ciência Genética, mesmo porque não se podem ignorar o seu uso

terapêutico e vantagens para a qualidade da vida humana. Vislumbra-se até a

possibilidade de empregar a técnica da manipulação do núcleo celular para obter

órgãos sadios para transplante. Meu objetivo é fazer uma advertência, como o

fez José Renato Nalini: "se a intensidade dos problemas em que se vê

mergulhada a sociedade humana parece invencível para o esforço individual,

esse é um desafio para a consciência ética"14.

Ausente a ética, surgirão os conflitos de interesse, que trouxeram desarmonia

individual e social. A esta altura, considerando que nem todos os cidadãos terão

o discernimento para agir em prol do bem comum, chega-se à abordagem moral

e legal, cujo caráter é dar limites e garantir a dignidade humana.

2.6. VISÃO LEGAL DA CLONAGEM HUMANA

Até então, discorreu-se sobre os aspectos biológicos das técnicas de reprodução

humana e suas implicações éticas. Tudo isso, com o objetivo de esclarecer

algumas noções.

Neste momento serão examinadas algumas questões intrigantes sobre as novas

técnicas de reprodução humana. É bem de ver que não se tem a pretensão de

esgotar tema tão vasto e complexo. Mas colocar alguns problemas, sempre

balizados pelos princípios constitucionais.

14 LEITE, Paulo Costa. Clonagem Humana

25

Na França, tem-se assentado que só se considera vida humana depois de 14 dias

da fecundação, por ser esse tempo a época aproximada do surgimento do tecido

nervoso. Contudo, esse critério não parece aceitável, pois logicamente um ser

não-humano, não se pode tornar ser humano, da noite para o dia. Aceita-se, pois,

que assim que as duas células sexuais se unem, formando uma só célula, tem

surgimento um ser humano, pelo menos em potencial.

Além da proteção constitucional da vida humana, estabelecida no art. 5º, o

ordenamento jurídico brasileiro ainda cuida, no plano infraconstitucional, da

proteção do nascituro, ou seja, o ser humano que ainda não chegou a nascer. É o

que estabelece, de forma clara e objetiva, o Código Civil, no art. 4º, que dispõe:

"A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe

a salvo desde a concepção os direitos do nascituro".

A Constituição Federal de 1988 fundamenta-se em princípios e valores

essenciais à vida do homem, distinguindo-se, por excelência, o bem estar e a

dignidade da pessoa humana.

3. AS RELAÇÕES DE PARENTESCO ENTRE CLONES

3.1. ENFOQUE NORMATIVO

O conceito de parentesco não é definido expressamente no Direito que se refere

às relações entre os membros de uma família como as decorrentes de

consangüinidade. Tal disposição vem insculpida no artigo 1.593 do Novo

26

Código Civil, que ao abordar o tema das relações de parentesco faz distinção

entre as relações por consangüinidade, denominando-as de naturais, referindo-se

à filiação decorrente da cópula entre um homem e uma mulher, e denominando

de civis as relações de parentesco derivadas de outra origem, como a adoção.

Oportuna as preleções da Profa. Evelyne Shuster, PhD da Universidade de

Pennsyvania sobre os direitos da criança no caso de eventual clonagem:

“Reproductive cloning further creates intratacble problems of filiation, and fails to achieve its

intended goal, i.e. to produce a genetically related son or daughter. For example, if a woman

gives birth to a clone of herself she is the child’s genetic and gestational mother. But she is not

just the child’s mother; she is also the child’s genetic twin sister. . .” 15

Evidente que o conceito de filiação tal como disciplinado na legislação civil

adotou critério vago, incompatível com as inovações trazidas pela ciência

biológica nas últimas décadas. Com efeito, se a filiação natural é para todos os

efeitos legais somente aquela que advém de fecundação sexuada, através da

cópula ou de inseminação artificial, como ficariam as relações de parentesco

originadas entre seres criados através de métodos de reprodução assexuada,

notadamente mediante transferência nuclear? Vale dizer os clones. Poderiam tais

seres serem incluídos no critério de consangüinidade para efeito de definição de

parentesco?

3.2. CRITÉRIOS PARA CARACTERIZAÇÃO DO PARENTESCO

15 SHUSTER, Evelyne, My Clone, My Daughter, My Sister: Echoes of Le Petit Prince, palestra apresentada noInternational Symposium on Bioethics and the Rights of the Child, Mônaco, 28-30 de abril 2000.

27

Consangüinidade é expressão dotada de pouca técnica jurídica, pois daria

margem para interpretações que podem restringir o alcance da norma,

considerando como filhos somente aqueles gerados através de fecundação

sexuada. Mas por outro lado consangüinidade também não exclui as ligações

genéticas que unem os progenitores e os seus descendentes. Importante a

compreensão da evolução dos critérios para a caracterização do parentesco,

desde o surgimento da inseminação artificial, e verificarmos se estes critérios

também são válidos para a clonagem.

A partir da década de 60 assistimos ao surgimento de técnicas de inseminação

artifical, onde o óvulo era fecundado pelo espermatozóide fora do útero materno

(in vitro) e depois implantado para ser gerado no ventre de outra mulher. Desde

o surgimento da fertilização fora do útero, os doutrinadores e demais operadores

do direito vêm debatendo a questão da maternidade e paternidade nestas

situações. O Ordenamento jurídico anterior não continha qualquer disposição

legal quanto aos critérios de filiação quando esta estivesse relacionada com

inseminação artifical ou clonagem, sendo tal tarefa relegada à construção

doutrinária e jurisprudencial. Duas correntes surgiram: a) os que entendiam que a

maternidade cabia à mulher que cedeu o óvulo; b) os que defendiam que a

maternidade caberia à mulher em cujo ventre foi gerada a criança.

Com o advento do Novo Código Civil, o legislador passou a fixar como critérios

a consangüinidade, com as ressalvas previstas no artigo 1.597 deste mesmo

28

diploma legal, que no seus incisos III, IV e V passou a tratar de forma expressa

da filiação decorrente de fertilização artificial.

Conclui-se portanto que os artigos 1.593 e 1.597 deverão ser interpretados de

forma conjunta e sistemática, onde a consangüinidade a que se refere o primeiro

dispositivo será destacada e delimitada em conformidade com o que reza o

segundo. De fato o artigo 1.597 refere-se tão somente à inseminação artificial

homóloga e heteróloga, que foi precisamente conceituada por Maria Helena

Diniz16: “Ter-se-á inseminação artificial quando o casal não puder procriar, por

haver obstáculo à ascensão dos elementos fertilizantes pelo ato sexual, como

esterilidade, deficiência na ejaculação, malformação congênita, pseudo-

hermafroditismo, escassez de espermatozóides, obstrução do colo uterino,

doença hereditária etc. Será homóloga se o sêmen inoculado na mulher for do

próprio marido ou companheiro, e heteróloga se o material fecundante for de

terceiro, que é o doador”.

O legislador não tomou qualquer precaução em fixar critérios de paternidade no

caso de reprodução sem material fecundante, vale dizer quando o agente

patrocinador da fecundação doar células de seu organismo para através de

técnicas de clonagem dar origem a outro ser, sem que incorra na fertilização

propriamente dita.

16 DINIZ. Maria Helena, Op. cit. p 478-479

29

Importante destacar que o artigo 1.593 ao indicar a consangüinidade como

elemento caracterizador o faz em relação a qualquer relação de parentesco,

englobando, portanto as relações entre pais e filhos e entre irmãos. Já o artigo

1.597 em seu caput, indica que os critérios estabelecidos pelo legislador referem-

se somente aos casos de filiação.

Diante disso fica afastada completamente a incidência deste dispositivo para

efeitos de fixação de filiação de seres originados por meio de clonagem, quando

utilizada técnica de transferência de núcleo de célula, posto que não haverá

fertilização artificial.

3.3 FILIAÇÃO E CLONAGEM

Conclui-se dessa forma que entre seres clonados a legislação em vigor não

reconhece vínculo de filiação, eis que inexistente, via de regra, a fecundação

neste tipo de reprodução.

Resta, no entanto o artigo 1.593 que trata das outras relações de parentesco por

consangüinidade ou outra origem de natureza civil, como a adoção e o

parentesco por afinidade.

Como já tivemos oportunidade de expressar, o critério de consangüinidade é

demasiado amplo, e dotado de pouca técnica. Consangüinidade tem origem

etimológica da palavra sangue. Neste caso o parentesco entre pais e filhos e entre

irmãos se daria pelo fato de terem todos o mesmo “sangue”. Com é do

30

conhecimento geral o sangue é um tecido existente em todos os seres animais,

não sendo este tecido elemento apto para distinguir o parentesco entre as

pessoas.

O critério que deveria ter sido adotado é o da individuação genética. De fato o

que nos torna únicos é a combinação de genes e não o sangue. Todos os seres

humanos são formados através de genes comuns em todos nós, mas é a diferente

combinação entre eles que nos torna únicos.

Assim, teria laborado em melhor seara o legislador se tivesse escolhido o

elemento genético como informador das relações de parentesco.

Não obstante como no sangue estão presentes células que possuem um standard

de genes, podemos admitir que ao mencionar consangüinidade o legislador na

verdade estava a referir-se aos genes que nele estão contidos. Assim, num

exercício de hermenêutica podermos aceitar como critérios de validação do

parentesco o patrimônio genético de cada indivíduo que é transmitido de geração

para geração. É através do exame dos genes que a paternidade é fixada com

99.99% de certeza, mediante a aplicação de um teste de DNA tão comum hoje

em dia. Não podemos olvidar que antes do advento das técnicas de mapeamento

genético, realmente eram os exames de sangue que permitiam identificar as

relações de parentesco, porém, isto dava margem a incertezas, gerando no campo

do direito uma série de presunções que poderiam revelar a identidade do

indigitados pais. No atual estado de desenvolvimento tecnológico não podemos

31

aceitar que o sangue continue a ser o elemento de identificação do parentesco, se

há outros métodos que conferem uma certeza praticamente absoluta quanto às

relações de parentesco.

Se do ponto de vista biológico as relações entre ascendentes e descendentes é

estabelecida em função do mapeamento genético entre uns e outros, no campo

jurídico está-se a observar uma mudança quanto aos modelos de parentesco a

serem adotados.

Nas sociedades mais antigas, como a Romana, as relações de filiação entre pais e

filhos eram exclusivamente derivadas do ato copular ou de adoção, sendo que

aos filhos adotivos não eram reconhecidos os mesmos direitos do que aos filhos

tidos como “legítimos”. Nestas sociedades a consangüinidade era o único

elemento de agregação do núcleo familiar, podemos falar então que a

paternidade era tão somente biológica.

O desenvolvimento social fez evoluir a noção de família, surgindo outros

elementos para alicerçar o núcleo familiar como a afinidade, por exemplo.

Assim, a família que antes era constituída somente por pessoas unidas por laços

genéticos, passou também a ser aplicada àquelas pessoas unidas por laços de

afinidade e companheirismo17.

17 MACENA DE LIMA, Taisa Maria, Filiação e Biodireito, Revista Brasileira de Direito de Família, no. 132002, pág. 144.

32

As relações de parentesco entre seres clonados também estão sujeitas a esta

evolução. Podemos assim concluir que as relações de parentesco, mesmo quando

envolvem seres originados através de clonagem, estão sedimentadas em dois

pilares: a) laços biológicos e b) laços de afinidade.

Elida Seguin, aborda a especificamente a questão do parentesco entre seres

clonados, optando pelo reconhecimento da maternidade da mulher em cujo útero

foi gerada a criança: “A determinação da ascendência deve ser pensada no

processo de clonagem, pois os pais de um clone do ponto de vista genético são o

homem e a mulher cujo espermatozóide e óvulo geraram o indivíduo que foi

clonado. A responsável do ponto de vista legal é a mulher em cujo útero o óvulo

foi implantado18.

De fato, o ser clonado é geneticamente uma cópia de outro indivíduo que foi

gerado de por meio de fecundação. É preciso um doador do material genético, e

por essa razão o clone seria irmão do doador do material genético ou filho da

mulher que gestacionou o embrião.

Tal problemática já havia sido enfrentada quando do advento das técnicas de

inseminação artifical que dependiam de uma terceira pessoa em cujo ventre seria

gerada a criança.

18 SEGUIN, Elida, Clonagem – polêmicas e inovações sob a ótica do biodireito, in Revista de Direitos Difusos,abril 2002, pág. 1609.

33

Neste sentido o Novo Código Civil determina a maternidade é definida em favor

da pessoa que forneceu o material genético e não daquela que emprestou o útero

(NCC artigo 1.597).

Tal disposição não conflita com o artigo 1.593 daquele diploma legal posto que

como já abordamos anteriormente a consangüinidade não é critério adequado

para fixação do parentesco, e o mais correto seria interpretar tal dispositivo de

forma a caracterizar os vínculos de parentesco em função do patrimônio genético

entre as pessoas.

4. CLONAGEM E PROPRIEDADE INTELECTUAL

4.1. CONCEITOS IMPORTANTES NO DIREITO DE PROPRIEDADE

INTELECTUAL

Inicialmente cabe uma breve fazer breve introdução sobre os direitos de

propriedade intelectual, para em seguida posicionarmos o tema em relação à

clonagem.

Patente é um título outorgado pelo Poder Público a um inventor para que este

tenha exclusividade na exploração de sua invenção (art. 8o. da Lei 9.279/96),

impedindo que outrem a explore sem sua anuência19.

19 DINIZ, Maria Helena, O Estado Atual do Biodireito, pág. 466 a 467

34

Invenção por sua vez é uma criação intelectual que requer três requisitos (art. 18

da Lei 9.279/96 para ser reconhecida: a) novidade, b) atividade inventiva e c)

aplicação industrial.

4.2. CLONAGEM E PATENTES

Diante destas definições poderiam o material genético clonado ser objeto de

registro perante o Poder Público para gozar dos direitos e privilégios inerentes às

invenções?

A Lei de Propriedade Intelectual brasileira em seu artigo 10o , incisos I e IX

expressamente exclui do âmbito de aplicação do referido diploma legal o ser

vivo, o corpo humano, o genoma, o material genético e processos biológicos

naturais. Assim, escapa da proteção conferida às invenções o mapeamento

genético, o seqüenciamento de genes, material resultante de clonagem etc.

Há que se fazer importante distinção entre descoberta científica e invenção. No

primeiro se trata de conhecimento resultante de estudos e pesquisas que muitas

vezes demoram longos anos para poderem ser concretizados. No segundo há

obviamente trabalho humano, mas este trabalho é voltado para um fim especial,

e não para o conhecimento em si. O conhecimento seria portanto instrumental

para a invenção e não o contrário.

35

De nada adiantaria investir-se tempo na realização de estudos e pesquisas se os

resultados destas pesquisas não pudessem ser compartilhados pela comunidade

científica.

Outrossim, seria inaceitável admitir que determinada pessoa detivesse privilégios

exclusivos sobre o material genético por ela produzido, podendo desta forma

manipular livremente tal material, sob a proteção do direito de propriedade

intelectual. Reconhecer tal possibilidade seria aceitar que o homem pudesse se

apropriar de outro ser humano, reduzindo todos à condição de escravos da

vontade do detentor da patente.

De fato os seres vivos são produtos da natureza e não da vontade do homem. Os

processos de mapeamento genético, clonagem e recombinação de genes são

instrumentos que devem servir ao homem respeitando princípios invioláveis da

condição humana, não sendo aceitável que a natureza possa ser objeto de direitos

exclusivos concedidos a outrem.

Nesse sentido oportuna a lição de Maria Helena Diniz: “A descoberta do gene da

obesidade não poderá ser patenteada,. Nem adquirir valor mercadológico, mas o

remédio inventado com base nele poderá sê-lo. É permitido o uso de gene

humano para obter uma droga patenteável. O gene é um instrumento para a

obtenção de um medicamento e não um fim comercial em si mesmo” 20.

20 DINIZ, Maria Helena, Estado Atual do Biodireito, pág. 468

36

Não obstante poderão ser objeto de patentes os processos biotecnológicos que

utilizem genes ou organismos geneticamente modificados (transgênicos).

Também cabe diferenciar o que venha a ser uma descoberta científica de um

processo tecnológico. Poderíamos imaginar que na base da pirâmide do

conhecimento está a descoberta, o conhecimento, na parte média desta pirâmide

está o processo técnico que utiliza o conhecimento científico adquirido para a

obtenção de uma determinada finalidade que vem a ser a invenção.

INVENÇÃO

PROCESSO TECNOLÓGICO

CONHECIMENTO HUMANO

No entanto, se estes processos biotecnológicos venham a apresentar algum grau

de nocividade, violem a dignidade humana ou possam ser utilizados de maneira

que coloquem em risco a saúde e integridade física de outrem, não poderão ser

objeto de registro junto ao Pode Público para efeito de patente.

Por exemplo se determinado astrônomo descobrir uma nova galáxia através de

um processo ótico inovador, ele poderá registrar e obter o direito de propriedade

intelectual sobre este processo (processo tecnológico), mas não poderá impedir

37

que outras pessoas olhem para a galáxia (descoberta científica) recém descoberta

utilizando outro processo ótico.

4.3. CLONES E ORGANISMOS MODIFICADOS GENETICAMENTE

Cabe discutir se regras existentes para patentes de organismos geneticamente

alterados, poderão ser estendidas aos clones. De fato estes são gerados a partir

dos genes copiados de uma célula fornecida por outrem, não são portanto

organismos geneticamente alterados (transgênicos) mas sim “organismos

geneticamente copiados”. Entendemos que as regras aplicáveis aos transgênicos,

no que tange aos direitos de propriedade intelectual poderão ser utilizados no

caso dos clones, posto que em ambas situações discute-se apropriação por parte

de outrem de material genético, pouco importando se este foi copiado ou

alterado. Porém acreditamos também que as restrições para a obtenção de

patentes em relação aos organismos geneticamente alterados deveriam ser

expressamente estendidas aos organismos geneticamente copiados.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÃO

Tivemos oportunidade neste trabalho de analisar os atuais avanços da ciência no

campo genético, especificamente a clonagem, e as possíveis implicações de tais

descobertas nas relações de parentesco e patentes.

38

Buscamos focar somente os aspectos precipuamente normativos do Direito de

Família e de Propriedade Intelectual, sem alusão profunda aos temas éticos e

morais no que concerne à clonagem. Ao analisar a clonagem, partindo do cenário

científico atual, derivamos para o campo jurídico e verificamos que a atual

estrutura normativa não é adequada para tratar do tema, pois baseia-se em

consangüinidade e fertilização, e estes não se aplicam diretamente à clonagem.

Conclui-se portanto, no que tange às relações de parentesco e filiação:

a) o clone poderá ser irmão do indivíduo que doou o material genético;

b) o clone poderá ser filho do indivíduo que doou o material genético;

c) o clone não mantém qualquer relação de parentesco com o indivíduo que

forneceu o material genético;

d) o clone é filho da mulher em cujo ventre ele foi gerado, mas não terá a

paternidade reconhecida.

Os dispositivos legais constantes do Código Civil nos permitem definir que

haverá relação de parentesco entre os clones pela consangüinidade, desde que

através de um exercício exegético, ampliemos tal conceito para abranger as

características genéticas, que são de fato as responsáveis pela formação biológica

do indivíduo.

39

Porém não há definição adequada para caracterizarmos a filiação, eis que a

clonagem ocorre independentemente de fertilização, tratando-se de técnica de

transferência de material genético.

No entanto a falta de norma legal expressa para definição da filiação no caso da

clonagem deverá ser suprida, posto que as normas constitucionais (art. 226 e

seguintes da CF) asseguram às pessoas a sua inserção em ambiente familiar,

sendo dever do Estado promover políticas para garantir que todos tenham uma

família.

O clone não está submetido ao direito de propriedade, posto que este se constitui

de tecido humano, expressamente excluídos do âmbito do Direito de Propriedade

Intelectual, não podendo haver registro de patentes sobre estes. No entanto, o

mesmo não se aplica às técnicas de clonagem, que se constituem num “ modus

faciendi”, podendo neste caso ser reconhecido o direito de propriedade

intelectual, desde que tais técnicas não se sejam consideradas descobertas

científicas.

6. BIBLIOGRAFIA

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. [L´età dei Diritti]. Tradução: Carlos

Nelson Coutinho. 4ª reimpressão, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1992, 217p.

40

BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 5ª edição, Livraria

Del Rey Editora, Belo Horizonte, 1993, 239p.

BOSON, Gerson de Britto Mello. Filosofia do direito. 2.ed., Belo Horizonte :

Del Rey, 1996.

CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional. 6ª edição, Livraria Almedina,

Coimbra, 1993, 1228p.

CHAVES, Antônio. Direito à Vida e ao Próprio Corpo (Intersexualidade,

Transexualidade, Transplantes). 2ª edição, Editora Revista dos Tribunais, São

Paulo, 1994, 389p.

DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 11.ed., Rio de Janeiro : Forense,

1989.

DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo : Saraiva, 1998.

O estado atual do biodireito. São Paulo : Saraiva, 2001.

FERRAZ, Sérgio. Manipulações Biológicas e Princípios Constitucionais: Uma

Introdução. Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1991, 214p.

GONÇALVES, Wilson José. Lições de introdução ao estudo do direito. V.1.

Campo Grande : Ed. UCDB, 2001.

HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo.

[Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln]. Tradução: Guido Antônio de

41

Almeida. Editora Tempo Brasileiro, Biblioteca Tempo Universitário, Rio de

Janeiro, 1989, 236p.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução a ciência do direito –

Temas. Trad. Moisés Nilve. 15.ed., Buenos Aires : Universitária de Buenos

Aires, 1977.

KOLATA, Gina. Os Caminhos Para Dolly.[ The road to Dolly and the path

ahead]. Tradução: Ronaldo Sérgio De Biasi. Editora Campus, Rio de Janeiro,

1998, 262p.

OMMATI, José Emílio Medauar. As novas técnicas de reprodução humana à luz

dos princípios constitucionais.

PASTORE, Karina; FRANÇA, Valéria. Nova Proveta: Técnica Experimental

Permite Gravidez Depois da Menopausa. IN: Revista Veja. Editora Abril. Edição

1519. Ano 30. Nº 43. 29 de outubro de 1997. P. 68.

PASTORE, Karina. A Vida no Freezer: Americana Dá à Luz Gêmeo de Menino

Nascido Há Sete Anos. IN: Revista Veja. Editora Abril. Edição 1535. Ano 31.

Nº 8 . 25 de fevereiro de 1998. P. 40.

PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas Atuais de

Bioética. 3ª edição, Editora Loyola, São Paulo, 1991, 551p.

42

SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito e direito ao próprio corpo: doação de

órgãos, incluindo o estudo da lei n. 9.434/97. Belo Horizonte : Del Rey, 2000.