a cidade sou eu - o urbanismo do século xxi

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Rosane Azevedo de Araujo

A CIDADE SOU EU?O Urbanismo do Sculo XXI

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Urbanismo PROURB da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro / UFRJ. Orientadora: Profa. Dra. Denise B. Pinheiro Machado

Rio de Janeiro 2007

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Araujo, Rosane Azevedo de, A Cidade sou eu? : o urbanismo do sculo XXI/ Rosane Azevedo de Araujo. Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2007. 232 f. : il. 30 cm. Orientadora: Denise B. Pinheiro Machado. Tese (doutorado) UFRJ/PROURB/Programa de PsGraduao em Urbanismo, 2007. Referncias bibliogrficas: p.210-222. 1. Urbanismo. 2. Arquitetura. I. Machado, Denise B. Pinheiro. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de PsGraduao em Urbanismo. III. Ttulo. CDD 711

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A CIDADE SOU EU?O Urbanismo do Sculo XXI Rosane Azevedo de Araujo Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Urbanismo / PROURB da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo / FAU da Universidade Federal do Rio de Janeiro / UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno de Grau de Doutor em Urbanismo. Defendida e aprovada em 13 de novembro de 2007 por:

____________________________________________ Profa. Dra. Denise B. Pinheiro Machado Orientadora PROURB-FAU-UFRJ

____________________________________________ Profa. Dra. Lcia Maria S Antunes Costa PROURB-FAU-UFRJ

____________________________________________ Profa. Dra. Rosngela Lunardelli Cavallazzi PROURB-FAU-UFRJ

____________________________________________ Profa. Dra. Ana Clara Torres Ribeiro IPPUR-FAU-UFRJ

____________________________________________ Prof. Dr. Aristides Ledesma Alonso UERJ-FACHA

Rio de Janeiro 2007

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AGRADECIMENTOS Profa. Dra.Denise B. Pinheiro Machado, pela orientao e acolhida generosas. Por suscitar e incentivar o esprito de investigao e pesquisa. Por sua incansvel determinao em transformar, cada vez mais, o PROURB num plo de excelncia em Urbanismo. Ao Dr. MD Magno, autor da teoria que possibilitou a elaborao desta tese, e que nos serve de ferramenta para entendimento do mundo contemporneo. profa. Dra.Rachel Coutinho Marques da Silva, pelas excelentes aulas de cidade contempornea, pelo contato produtivo e acolhedor no decorrer do curso, e por ter participado da banca de qualificao desta tese. profa. Dra. Lcia Maria S Antunes Costa, pelas preciosas contribuies diretas e indiretas a esta tese, por ter participado da banca de qualificao, e por apoiar descobertas de novos conhecimentos nos alunos e pesquisadores. A todos os professores e funcionrios do PROURB, que formam esta comunidade de estudo e pesquisa, da qual tenho satisfao de fazer parte. profa. Dra. Adriana talo, in memoriam, por ter delicadamente se disponibilizado a ser interlocutora desta tese, pela participao na banca de qualificao, e por seu auxlio como especialista em filosofia. Pela lembrana da voz grave, o olhar atento e o sorriso esclarecedor. Ao prof. Dr. Aristides Alonso, porto amigo, colaborador e interlocutor desta e de outras teses. Ao prof. Dr. Potiguara Mendes da Silveira Jr., que, com sua amizade incansvel, muito me incentivou a cumprir prazos e cronograma desta tese. Ao prof. Dr. Pedro Daluz Moreira, pela inesgotvel gentileza na parceria deste curso, pela interlocuo e companheirismo nas questes urbansticas. profa. Dra. Nelma Medeiros e profa. Patrcia Netto pela colaborao e interlocuo nesta tese. Ao grupo Novamente, pela escuta de minhas questes da tese. Ao Dr. Srgio Lamaro, pela reviso de textos. Ao Sr. Octvio Fernandes de Araujo, meu pai, por tudo e pelos incentivo e apoio permanentes. Ao Sr. Carlos Fernandes de Araujo, por sua compreenso quanto a minha necessidade de concentrao para finalizar esta tese. A Jos Augusto Dantas, pelo estmulo. Isadora e Manoela Azevedo de Araujo Dantas, pelo incentivo, e por compreenderem que os verdadeiros vnculos so construdos a cada dia.

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Porque Liberdade no a de ser qualquer e outra Pessoa, mas a de ser essa nica e absoluta cidade, essa absoluticidade que mais ningum o como s eu o sou, embora nela aprisionado: cidadela da singularidade, UniCidade. (MD MAGNO, 2006)

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RESUMO

ARAUJO, Rosane Azevedo de. A Cidade Sou Eu?: O Urbanismo do Sculo XXI. Rio de Janeiro, 2007. Tese (Doutorado em Urbanismo) Programa de Ps-Graduao em Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Atualmente, existem tantos novos conceitos de Cidade quanto novos parmetros para analislos. Dadas a permeabilidade e a diluio das fronteiras decorrentes da difuso tecnolgica ocorrida nas ltimas dcadas, podemos afirmar que todo cidado agora um cosmopolita, e que o urbanismo se tornou o Orbanismo, pois, potencialmente, o mundo nossa cidade. Este trabalho toma as articulaes tericas da Nova Psicanlise e aplica ao Urbanismo no intuito de desenvolver a hiptese de que no h distncia que permita circunscrever separadamente Eu e Cidade, pois o processo de exploso semntica e conceitual da idia de cidade correlato ao de descentralizao e fragmentao da noo de eu. O trabalho resenha conceitos de cidade trazidos por vrios autores da segunda metade do sc. XX; apresenta algumas variaes do conceito de Eu desde Descartes at sua confluncia na noo de Rede; e aplica os raciocnios de plo, foco e franja para concluir apontando um conceito de cidade abrangido, em ultima instncia, pelo conceito de Eu = Pessoa da Nova Psicanlise. A cidade que cada um co-extensiva a seu modo urbano de insero no mundo.

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ABSTRACTARAUJO, Rosane Azevedo de. The City is Me?: The Twenty First Century Urbanism. Rio de Janeiro, 2007. Thesis (Doctorate in Urbanism) Programa de Ps-Graduao em Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

We have nowadays as many new concepts of City as many parameters to analyse them. Given the permeability and the dissolution of boundaries due to the technological diffusion of the last decades, we can say that every citizen is now a cosmopolitan, and that Urbanism became Orbanism. This can be said because the world is potentially our city. The present thesis applies some conceptions of New Psychoanalysis to Urbanism in order to develop the hypothesis: there is no longer a distance between Me and the City. The semantical and the conceptual explosions of the citys idea correspond to the decentralization and fragmentation of the notion of Me. This thesis reports the citys conceptions of many authors; displays some variations of the conception of Me since Descartes until its confluence to the notion of Network; and applies the reasoning of pole, focus and fringe to point towards a conception of City embraced by New Psychoanalysis proposition Me = Person. The city each one is is co-extensive to ones own urban way of insertion in the world.

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SUMRIOINTRODUO, 11 1 SOBRE CONCEITO, 27 1.1 O conceito de Cidade, 32 1.2 A cidade, 34 2 RECONCEITUANDO A CIDADE, 37 2.1 A cidade informacional, 39 2.2 A videocidade, 44 2.3 A metpole, 45 2.4 As megacidades, 46 2.5 A cidade global, 47 2.6 A cibercidade, 47 2.7 A e-topia, 48 2.8 A cidade nodal, 51 2.9 A cidade dos Bits, 53 2.10 A ecstacity, 66 2.11 Outros conceitos de cidade, 72 3 O URBANISMO EM ESTADO FLUIDO, 75 3.1 Breve introduo topologia, 77 3.2 Uma forma que cria sua mutao permanente, 80 3.3 O Orbanismo do sculo XXI, 85 4 RECONCEITUANDO EU, 89 4.1 Ren Descartes, 90 4.1.1 Filosofia cartesiana e a questo do fundamento, 90 4.1.2 Sujeito como fundamento: Eu-substncia, 91 4.1.3 Sujeito como conscincia em primeira pessoa, 93 4.1.4 Sujeito da reflexo, 94 4.1.5 O Eu cartesiano: Eu-sujeito, 95 4.2 Emmanuel Kant, 96 4.2.1 A revoluo copernicana e o projeto crtico, 97

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4.2.2 O sujeito transcendental kantiano, 98 4.3 Sigmund Freud, 100 4.3.1 Freud e a psicanlise, 100 4.3.2 Inconsciente e conscincia: a tpica freudiana, 103 4.3.3 Eu: das Ich, 108 4.4 O pensamento sistmico de Ludwig von Bertalanffy, 109 4.5 O pensamento sistmico de Maturana e Varela: o conceito de autopoiesis, 117 4.5.1 Unidade, clausura e acoplamento, 118 4.5.2 O conhecimento humano, 126 4.6 O rizoma de Gilles Deleuze e Flix Guattari, 129 4.7 A ecologia cognitiva de Pierre Lvy, 131 4.7.1 Os engates do espao-tempo, 133 4.7.2 Virtualizaes, 139 4.8 Redes complexas, 146 4.8.1 Redes aleatrias, 147 4.8.2 Redes sem escala, 149 4.9 Quadro Resumido, 152 4.10 Consideraes, 154 5 O CONCEITO DE PESSOA SEGUNDO A NOVA PSICANLISE, 159 5.1 A equivalncia Eu = Pessoa, 161 5.2 Pessoa = Formaes Primrias + Formaes Secundrias + Formao Originria, 167 5.2.1 Formaes Primrias, 167 5.2.2 Formaes Secundrias, 170 5.2.3 Formao Originria, 172 5.3 Pessoas so IdioFormaes do nosso caso, 174 5.3.1 Haver, 175 5.3.2 A Pessoa existe na ordem do Ser e h na ordem do Haver, 177 5.4 Pessoa Plo com Foco, Franja e Fundo, 179 5.5 Definies negativas de Eu = Pessoa, 183

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6 A CIDADE SOU EU, 189 6.1 A cidade sou eu: plo, foco, franja, 193 6.2 O plo urbano em foco e franja, 196 7 CONCLUSO, 203 REFERNCIAS, 210 ANEXO 1 - Pequeno glossrio de alguns conceitos da Nova Psicanlise, 223 ANEXO 2 - Breve explanao do conceito de Pessoa e do Personalismo, 231

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INTRODUOH que definir um novo urbanismo, que no se fundar na fantasia gmea da ordem e da onipotncia. O novo urbanismo colocar em cena a incerteza (...) Um urbanismo capaz de reinventar o espao psicolgico (...) Dado que est fora de controle, o urbano vai converter-se em um novo campo para a imaginao. Este urbanismo redefinido no ser apenas uma profisso, mas uma maneira de pensar, cuja ideologia consistir na aceitao do que existe.

(KOOLHAAS, 2002: 6) Este trabalho tem como objetivo apresentar um novo conceito de cidade. Ao tomar como tema a hiptese A cidade sou eu, partimos da polissemia do conceito de cidade, que hoje evidenciada por vrios autores. Portanto, no fazemos seno nos filiar s vrias posies tericas que decidiram enfrentar o desafio de repensar o Urbanismo de modo coerente com o risco, a incerteza, mas igualmente com as potencialidades que caracterizam nossa poca. Para tanto, aplicaremos uma teoria psicanaltica ao Urbanismo para definir esse novo conceito de cidade. Como sabemos, os campos de conhecimento j no so concebidos sob fronteiras1, e mais, a prtica de fazer passagem do mtodo de uma disciplina para outro metabase antiga e representa uma histria de sucesso na produo intelectual2. O que nos interessa que, contemporaneamente, dada a permeabilidade dos saberes, possvel fazer a psicanlise explicar o urbanismo e fazer com que o urbanismo explique nossa poca. Inclumos em nosso trabalho resultados das pesquisas de diversos pensadores do campo do urbanismo (ou que contribuem indiretamente para ele) tanto para mostrar o deslizamento conceitual sofrido pela cidade, quanto para evidenciar que compartilhamos do estado inquiridor que configura a atualidade. Quando inclumos pensadores dos campos da filosofia, biologia, cincia da computao, psicanlise, fsica, etc., tivemos a inteno de tanto mostrar o deslizamento tambm sofrido pelo conceito de Eu, e apresentar formas de

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Vide o pensamento sistmico de Bertalanffy, resumido no cap. 4 abaixo. De um lado, explorou o uso generalizado de procedimentos de isomorfismo e, no limite, evidenciou a analogia como instrumento heurstico constitutivo de qualquer conhecimento. 2 A revoluo cientfica no sculo XVIII foi decorrente da juno entre a fsica (descritiva) e a matemtica (pura). Justamente este cruzamento das duas disciplinas proporcionou a revoluo cientfica com o poder de performance nunca antes visto.

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raciocnios mais complexos, quanto deixar claro que compartilhamos da perplexidade caracterstica de uma postura reflexiva, que nos parece resumir o estado geral do pensamento contemporneo. O que h de fundamentalmente comum a tais investigaes, incluindo a nossa, o fato de serem herdeiras da mesma virada de pensamento ocorrida no sc. XX, o qual tornou possvel as tecnologias da comunicao em base micro-eletrnica3. Quem se alinha ao trinmio cidade / sociedade / tecnologia formula o urbanismo a partir de noes e referenciais informao, comunicao, rede, complexidade, digitalizao e seus sucedneos tecnolgicos de grande e pequena escala que s foram possveis graas s conquistas das geraes de pesquisadores e pensadores que, a partir dos anos 1930, ampliaram o problema do conhecimento com base na idia de que conhecer construir, mas que doravante entendida e praticada a partir da indeterminao, da indecidibilidade, e da complexidade. Esta uma linhagem plenamente reconhecida por Manuel Castells, que diz:No cerne da mudana tecnolgica que liberou o poder das redes estava a transformao da informao e das tecnologias da comunicao baseadas na revoluo micro-eletrnica que teve lugar nos anos 1940 e 1950. Essa transformao constituiu a fundao de um novo paradigma tecnolgico, consolidado nos anos 1970, principalmente nos Estados Unidos, e rapidamente difundido atravs do mundo, conduzindo ao que caracterizei, de modo descritivo, como a era da informao (CASTELLS (ed.), 2004: 6).

Entendemos que o conceito de cidade, como qualquer conceito, um produto historicamente construdo. uma ferramenta conceitual que sofre presses de reformulao a cada momento em que grandes transformaes estruturam uma nova poca. Entendemos tambm que um novo urbanismo deve levar em considerao a complexidade e a3

como conceitua Manuel Castells ao buscar definir o que h de especfico na sociedade informacional e do conhecimento que contemporaneamente constitumos. Para o autor, informao e conhecimento so caractersticas das sociedades humanas que variam conforme o espao, o tempo e as culturas, sem que seja possvel distinguir, com as caractersticas citadas, o que h de novo em nossa poca. Donde, o entendimento de que o que de fato novo, tanto tecnolgica quanto socialmente, uma sociedade construda em torno das tecnologias de informao em base micro-eletrnica, s quais acrescento as tecnologias biolgicas baseadas na engenharia gentica, pois tambm se referem decodificao e recodificao da informao na matria viva (CASTELLS (ed.), 2004: 7).

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indeterminao. Seguindo esta linhagem, queremos considerar as inflexes que, da geometria como construto artificial ao computador como pensamento material, permitem compreender que os vinte e cinco sculos que qualificaram a arquitetura como um saber e uma tcnica da permanncia esto cedendo passo a uma arquitetura materialmente lquida (SOLMORALES, 2002: 126), compatvel com a proposio A cidade sou eu. O mundo passou por uma transformao no sc. XX que demonstrou no apenas a ineficcia de qualquer vontade de verdade ou fundamento, como tambm, e sobretudo, o aspecto fluido, lquido, comunicacional, no-linear, artificial do conhecimento e do mundo por ele transformado. Os efeitos no campo do urbanismo so palpveis. A noo de projeto urbano, por exemplo, marcou uma ruptura com as prticas de planejamento urbano comuns do ps-guerra (VIVIANNE, 1998: 62). Buscou-se redefinir a populao habitante, restituindo-lhe o papel de agente e dando lugar ao componente cultural ineliminvel que molda os espaos e suas representaes sociais (CHRISTELLE, 1998: 109, 111). A postura terica e poltica deixa de ser o planejar, a partir de objetivos que incluem exigncias (funes, densidade, gabarito) e meios prvios de atingi-los, lanando-se ao como lidar com situaes aqui e agora para as quais no h parmetros confiveis para alm de sua reelaborao permanente. Nesse sentido, a formulao da idia de projeto urbano a partir do final dos anos 1970, e os debates que suscitou, coincidem com um momento cultural do Ocidente em que se tomava conscincia dos liames de interdependncia que vinculavam os acontecimentos naturais, as intervenes humanas, as motivaes psicolgicas e culturais, com base nos aportes de conhecimentos oriundos da biologia, da ecologia, da ciberntica, da antropologia, da fsica (VIVIANNE, 1998: 98). No final dos anos 90 e incio do novo sculo, as conseqncias desse entendimento comeam a se fazer sentir. sintomtico que autores como Franois Ascher assimilem ao urbanismo as referncias trazidas pelas cincias da complexidade, com suas noes de indeterminao e

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imprevisibilidade, e pela ciberntica, com a idia de feedback (ASCHER, 2001). sintomtico que autores como William Mitchell, Manuel Castells ou Saskia Sassen abordem o problema da cidade a partir das tecnologias digitais, do espao dos fluxos, dos mercados eletrnicos e dos centros transterritoriais constitudos via telemtica. , por fim, sintomtico que essas e outras concepes contemporneas de cidade sejam unnimes em constatar a relatividade das noes de centralidade (poltica, administrativa, financeira, territorial) e sua impostao geogrfica; de organizao (poltica, administrativa, financeira, territorial) e sua funcionalidade vertical; de planejamento e sua implementao causal a priori. Em seu lugar, optam por anlises que levam em conta a incerteza, o risco, a imprevisibilidade, a indeterminao, e a multiplicidade em um mundo globalizado. A postura torna-se reflexiva, no sentido de incluir a reviso constante das prticas sociais luz das informaes que concernem essas prprias prticas, num exame permanente das escolhas possveis, reexaminado-as em funo do que se comea a produzir4. No cerne dos estudos que cruzam cidade, arquitetura, meio-ambiente, sociedade e tecnologia reside um questionamento do que seja artificialidade como construo e natureza como coisa dada; do que seja sociedade e cultura como produo humana e mundo fsico ao qual, sem se confundir com ele, o homem se integra e transforma. Vrios autores contemporneos j diagnosticaram que no h, com efeito, distino de natureza entre o dado

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Um pequeno exemplo desta situao, a notcia que lemos em 28 de setembro de 2007: Nova Zelndia usa wiki para criao de lei pelo cidado ou Wiki da polcia permite que voc escreva a lei onde o departamento de polcia da Nova Zelndia, para criar uma nova lei de polcia que substituir a lei existente que data de 1958, est utilizando como um de seus expedientes para elaborar a lei, a ferramenta wiki, onde os cidados podem editar partes do projeto de lei sugerido ou incluir um totalmente novo -. Para o encarregado de criar a nova lei, o superintendente de polcia do pas, Hamish McCardle, isto talvez seja a extrema democracia. (Esta ferramenta wiki lembra a wikipedia, onde, em tese, as pessoas podem editar, via Internet, textos diversos, que ficam registrados e so acrescidos ou modificados por qualquer outra pessoa. Esta mdia facilmente editada pelos usurios, com ferramentas de linkagem, insero de contedo multimdia, sendo que a resultante um texto completo sobre determinado assunto, que, antes de ficar on line, passa por uma fiscalizao e aprovao dos resultados) Ver texto original em http://futuro.vc/2007/09/28/nova-zelandia-usa-wiki-para-criacao-de-lei-pelos-cidadaos ou http://www.stuff.co.nz/4215797a10.html

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e o construdo, o espontneo e o industrial, o natural e o cultural5. Interessa aqui destacar o aspecto articulatrio que constitui qualquer artefato do mundo, seja ele recortado como um dado fsico, biolgico, cultural ou tecnolgico. Lidamos com formaes6, isto , sistemas de informao (universo, vida, sociedade, ecossistemas, etc.) que se expressam com linguagem prpria, mas que podem ser transcritos um no outro, desde que tenhamos as ferramentas cognitivas adequadas. As formaes variam enormemente em termos de composio, estrutura, comportamento e funo, e exigem protocolos distintos de abordagem e manipulao; as formaes resistem mais ou menos transformao e ao acoplamento com outras; mas guardam uma conectividade e tradutibilidade de base que, em ltima instncia, restam exclusivamente na dependncia de haver conhecimento compatvel para realizar a conexo e a transformao de um arranjo informacional qualquer em outro. O estado atual das discusses do urbanismo, no qual inserimos a hiptese A cidade sou eu, alinha-se, assim, s palavras de Gaston Bachelard:Temos agora menos necessidade de descobrir coisas do que descobrir idias. A experincia se divide. A simplicidade muda de campo. O que simples o macio, o uniforme. O que composto o elemento. A forma elementar se revela polimorfa e cambiante no momento mesmo em que a forma macia tende para o amorfo. E de repente a unidade cintila. O que preciso sacrificar? Nossas grosseiras seguranas pragmticas, ou bem os novos conhecimentos aleatrios e inteis? Nada de hesitaes: preciso passar para o lado em que se pensa a mais, em que se experimenta o mais artificialmente, em que as idias so o menos viscosas, em que a razo gosta de estar em perigo. Se, numa experincia, no pomos em jogo nossa razo, essa experincia no vale a pena ser tentada (BACHELARD, 1972:

8).

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Este entendimento j foi explicitado por vrios autores: Na obra Modernizao reflexiva, Ulrich Beck, Anthony Giddens e Scott Lash, em unssono, afirmam que o que natural est to intricadamente confundido com o que social que os seres humanos no sabem mais o que natureza e que nada mais pode ser afirmado como tal (BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony e LASH, Scott . Modernizao reflexiva. So Paulo: Editora UNESP, 1995, p. 8). Segundo Manuel Castells, estamos num estgio em que, aps termos suplantado a natureza a ponto de nos obrigar a preserv-la artificialmente como uma forma cultural, a cultura passa a referir-se sobretudo prpria cultura (CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede, op. cit., p. 505). A idia de artifcio espontneo e artifcio industrial, proposta pelo terico e psicanalista MD Magno, outro testemunho do abandono da oposio entre o que natural e artificial, em prol de uma viso topolgica e homogenezante dos fatos do mundo como artifcio. Sobre este tema, ver ARAUJO, Rosane. O urbanismo em estado fluido in A Cidade pelo avesso, 2006. Viana & Mosley. Org. Rachel C. M. da Silva 6 Estamos utilizando um conceito da Nova Psicanlise, que esclarecemos no captulo 5.

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O Urbanismo elaborado a partir de diversos campos do pensamento que so aplicados considerao da cidade. Seus desenvolvimentos e aplicaes so sempre, ou quase sempre, tributrios de campos como a filosofia, a sociologia, a antropologia, etc. Para exemplificar, podemos citar Joseph Rykwert, para quem os urbanistas se dividem em dois grupos: os cronistas dos grandes movimentos da histria aqueles que trabalham na linha de Hegel de Karl Marx a Joseph Alois Schumpeter, at Francis Fukuyama e Jean Baudrillard; e os paladinos do livre mercado (2004: 10-11). Em cada autor, podemos, em ltima instncia, localizar sua fonte de inspirao e doutrina. Mesmo aqueles paladinos do livre mercado conhecem muito bem suas fontes doutrinrias. Em diversos autores contemporneos, encontramos a preocupao com re-situar as cidades no novo contexto mundial. Rem Koolhaas, em seu artigo o que aconteceu com o urbanismo? (2002), diz que a noo de cidade sofreu uma distoro sem precedentes e que a urbanizao generalizada modificou e tornou irreconhecvel a condio urbana. Sol-Morales (2002) leva a noo de cidade para alm de seus prdios e arquiteturas e afirma que, atualmente, lidamos com cidades que mudaram radicalmente em relao aos tempos prindustriais e da cidade grande baseada nos projetos de racionalizao enquanto unidade produtiva. Hoje, a megalpolis, com que Jean Gottman se preocupava na dcada de 1960, e as cidades globais, de que Saskia Sassen trata nos anos 1990, tm caractersticas to diferentes que a contribuio feita pela arquitetura nestes agregados desconcentrados e altamente conectados est sendo repensada em termos completamente novos. Isto, tanto em relao aos parmetros mediante os quais a arquitetura clssica entendia a atividade arquitetnica, quanto em relao aos princpios e mtodos com que a arquitetura moderna procurou repensar as relaes entre uma nova arquitetura e uma nova cidade. A cidade j no se deixa reduzir grande utopia modernista. Os ideais dos pensamentos tayloristas e fordistas aplicados cidade, resultando numa economia de escala,

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programas a longo prazo, projetos de interesse comum e coletivo, repetio e separao das funes urbanas, zoneamentos rgidos e massificao das solues entre outros, j foram devidamente criticados. Ascher7 fez questo, inclusive, de contrapor a cada uma dessas concepes o que seria mais de acordo com nossa poca, anunciando um neo-urbanismo com caractersticas reflexivas, de performance, com flexibilidade, multifuncional, com solues de equipamentos e servios individualizados e uma economia da variedade. O tempo no mais mensurvel somente sob o ponto de vista histrico, cumulativo. Vivemos uma configurao temporal imbricada. Acrescente-se a este raciocnio que a contrao do espao e do tempo depende da velocidade, a qual no acessvel a todos da mesma forma, de modo que o tempo no igual para todos. Do mesmo modo, o conceito de espao se transformou. Utilizamos diariamente um espao no euclidiano: o espao de diversas prticas compartilhadas por cidados passa a estar tambm na eletrnica. O espao um conceito que, como tal, produzido de acordo com os sintomas de uma poca. Ao longo da histria do homem, este conceito se modifica e modifica a viso de mundo8. A concepo de arquitetura e urbanismo est estreitamente vinculada concepo de espao. O espao como suporte material de prticas sociais, adquiriu a caracterstica de poder7

ASCHER, Franois. Les nouveaux principes de lurbanisme: la fin des villes nest pas lordre du jour. Paris: LAube, 2001. 8 A definio de espao sofre contnua modificao ao longo da histria e, por muito tempo, com uma forte influncia das nossas filosofias e religies dualistas, que sempre insistiram em cindir a realidade em matria e esprito. A imagem medieval de mundo pode ser entendida pela explicitao do espao fsico do corpo e o espao imaterial da alma, onde a arquitetura do primeiro era definida pelo plano geomtrico dos planetas e das estrelas e a do segundo era definida pela geografia trplice do Paraso, Inferno e Purgatrio. A partir do final do sc. XVII nossa viso fisicalista vai sedimentando a concepo materialista da realidade e ao longo dos trs ltimos sculos, a realidade passou a ser vista, cada vez mais, como o mundo fsico apenas. Deste modo, no final do sculo XVIII, o monismo estava instalado e pela primeira vez na histria, a humanidade havia produzido uma imagem do mundo puramente fisicalista, um quadro em que mente / esprito / alma no tinham lugar algum. No sculo passado temos a concepo relativstica do espao de Albert Einstein, onde espao e tempo se entretecem num mltiplo quadridimensional, com o tempo se tornando, de fato, mais uma dimenso do espao. Ainda na segunda metade do sc. XX, os fsicos inventam a noo de hiperespao de onze dimenses. Dentro desta conceituao de hiperespao, em ltima anlise no h nada seno espao. O universo de onze dimenses porta quatro grandes dimenses, sendo trs de espao e uma de tempo e sete microscpicas dimenses de espao, todas enroscadas em alguma minscula e complexa forma geomtrica. Atualmente, estamos nos deparando com o espao digital ciberespao. Quando interagimos no ciberespao nossa localizao no pode mais ser definida por coordenadas do espao fsico (Wertheim, 2001: 28, 113, 114, 29 e155).

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se transformar continuamente atravs da flexibilidade de sua utilizao, da simultaneidade de seus usos e significados, da justaposio de informaes. Esta maleabilidade de transformao, efemeridade e transitoriedade confere um carter fluido, movente, indiferenciante para o espao urbano contemporneo. Se considerarmos, tambm, como dado para o entendimento da questo, a utilizao plena do espao virtual que ao mesmo tempo pblico e privado, local e global, atpico e de outra geometria, podemos dizer que a cidade como o local de troca, de comunicao, de interao, de moradia, de trabalho est potencialmente em qualquer lugar. Os espaos e suas funcionalidades esto disseminados por toda parte. Esta subverso dos usos dos espaos e esta multiplicao das possibilidades de conexo constituem uma nova realidade. Isto, sem entrarmos no mrito do j banalizado conceito de cidade virtual que tem sido tema de revista9, livro10 e que designa tanto a Netrpolis a maior metrpole do mundo: a rede que une computadores de todo o globo, quanto as cidades com base na World Wide Web que funcionam como ferramenta poltica para diferentes objetivos urbanos: marketing urbano global, incentivo ao turismo e negcios, comunicao entre cidados e governo local, comrcio, etc.11 Algumas dessas articulaes vm sendo trabalhadas h algum tempo. Na dcada de 1960, McLuhan afirmava queo espao urbano igualmente irrelevante para o telefone, o telgrafo, o rdio e a televiso. O que os urbanistas chamam de escala humana, ao discutir os espaos urbanos, est desligado dessas formas eltricas. As extenses eltricas de ns mesmos simplesmente contornam o espao e o tempo, criando problemas sem precedentes de organizao e envolvimentos humanos (2003: 125).

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La Ville Virtuelle III: espace public/ espace priv. Magazine lectronique n. 22: juin 2005. Edio da revista do Centro de Arte Contempornea de Montreal. http://www.ciac.ca/magazine 10 Lanado pela Agencia Estado quando aconteceu o encontro em Istambul - 1996 da II Conferncia das Naes Unidas sobre Assentamentos Humanos, Habitat II. 11 Stephen Grahan e Simon Mervin. Rumo a Cidade em Tempo Real in Telecommunications and the city: Electronic Spaces, Urban Spaces apud http://www.eesc.sc.usp.br/nomads/tics_arq_urb/cidtempo.doc

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O autor vai mais longe ao definir que os homens passaram a ser nmades e informados e envolvidos num processo social total como nunca e que com a eletricidade temos a extenso do nosso sistema nervoso central globalmente, inter-relacionando instantaneamente toda a experincia humana (idem, p. 401). fato que vivemos uma poca de habitantes de entorno eletrnico. Nossas aes no espao fsico esto associadas as nossas aes no ciberespao. As edificaes esto incorporando sistemas nervosos artificiais, sensores, telas e equipamentos controlados por computador. Diversos sistemas eletrnicos tm um papel cada vez mais importante na resposta da necessidade de seus moradores. Os satlites de comunicao geoestacionrios e os sistemas globais dos satlites LEO (low earth orbit sistema que cobre a Terra uniformemente) cobrem grandes extenses de terra e mar, transformando a superfcie do planeta em um lugar inteligente de cobertura total. Essa proliferao de espaos inteligentes produzir um novo tipo de tecido urbano e reformar radicalmente nossas cidades (MITCHELL, 2001: 74). Nossa suposio que, para um entendimento amplo, capaz de considerar as diferentes contribuies das novas conceituaes de cidade e sua arqui-tectonia, necessrio um deslocamento radical para conceitos de base mais prximos de uma topologia do que de uma geometria euclidiana (com a idealidade e rigidez das formas e as oposies do sistema dentro / fora, esquerdo / direito, etc.). Quando projetamos e construmos um edifcio ou uma avenida, temos obrigatoriamente que estar subditos lgica euclidiana, para que aquela estrutura permanea de p e em funcionamento. Por outro lado, quando queremos entender o funcionamento da sociedade em rede ou da cidade digital ou da cidade informacional, temos obrigatoriamente que estar subditos lgica da topologia, para que aquela estrutura ganhe sentido e permanea em funcionamento.

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O espao topolgico12 suspende a rgida lgica dualista e idealista do espao euclidiano, pois estuda concretamente os aspectos qualitativos das formas espaciais ou de suas leis de conexo. Essa nova mentalidade, em matemtica e alhures, abriu, no sc. XX, um rico campo de investigao, aplicao e metaforizao, ao disponibilizar raciocnios cada vez mais abstratos (no sentido de amplos, refinados e inclusivos) de unilateralidade13, incluso e transformao. Esta indicao j foi feita com muita clareza por Virilio, quando se referiu a uma nova viso de mundo, do tempo, da imediatez, da ubiqidade e da instantaneidade e que isto se expressa na arquitetura com fim da ortogonalidade e com a topologizao da vida (2001: 7). Deste modo, podemos utilizar o raciocnio topolgico como nossa referncia conceitual de espao e base para o entendimento cada vez mais complexo dos conceitos de cidade14 que, daqui por diante no devero se restringir mais geografia ou geometria euclidiana. A topologia adequada para o desenvolvimento do presente estudo porque obedece a um raciocnio lgico no qual a unilateralidade vem substituir a bilateralidade, dissolver a oposio euclidiana e, portanto, incluir a flexibilidade e a mudana sem as rupturas que ocorrem na prtica do dia a dia. Ora, isto um incio para o entendimento da relativizao dos usos e funes to evidentes na cidade contempornea. Possibilita, assim, o entendimento da permeabilidade entre conceitos j considerados antagnicos ou diferentes e que atualmente esto relativizados em decorrncia do uso do espao, da utilizao das tecnologias, da incluso da velocidade como fator determinante da distncia, da hipermobilidade de bens, pessoas e informaes, da ubiqidade gerada pela comunicao distncia em tempo real ou no. Entre diversos outros conceitos, podemos destacar: espao pblico e privado, dentro e12 13

Este tema ser desenvolvido no captulo 3. Importante ratificar que unilateralidade aqui entendida a partir da incluso dos supostos lados constituintes num nico, devido a dissoluo de oposies e acolhimento indiferenciado. 14 Vide os diversos conceitos de cidade onde seus autores no usam mais como referncia principal a geometria euclidiana ou a geografia. Ex.: Cidade Informacional de Manuel Castells, Cidade Global de Saskia Sassen, Videocidade e Cidade Instantnea de Paul Virilio, Cidade de Controle de Michael Hardt, Cidade Digital de William Micthell, Cibercidade de Pierre Lvy, entre inmeros outros.

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fora, perto e longe, global e local, moradia e trabalho, real e virtual, pessoa e cidade. H, portanto, multifuncionalidade, polimorfismo, passagem e reversibilidade nas formas urbanas. caminho, tambm, para demonstrar que no existe fora neste raciocnio e que eu e cidade so partes do mesmo conceito. A reformulao contempornea do conceito de cidade reconhece o valor heurstico de se trabalhar com construes conceituais dentro da perspectiva de que no h hierarquia entre o objeto de estudo como real e sua abordagem como representao. Em outras palavras, entre os fatos e suas descries, no h mais distncia do que entre o que se conhece e o que se constri. Para colocar a questo nos termos estritos do urbanismo: o real da cidade que se tenta alcanar uma prtica desse real, uma prtica da cidade ou ainda a representao ativa: ela no apenas diz a cidade, ela faz a cidade15. incontestvel que, para expressar nossa realidade, no podemos mais recorrer ao conceito de cidade tal como historicamente entendida. Basta ver a quantidade enorme de neologismos utilizados pelos autores contemporneos Ecstacity, cidade nodal, cidade informacional, cidade dos bits, e-topia, metpole, etc. , como tentativa de situar a cidade dentro das modificaes vigentes. Mas evidente que o processo de exploso semntica e conceitual da idia de cidade correlato ao processo de descentralizao e fragmentao da noo de Eu, de ser urbano. Do mesmo modo, basta ver, tambm, a quantidade de novos termos utilizados por autores contemporneos ps-orgnico, ps-humano, ps-biolgico, ciborgue, etc. para situar a noo de homem.

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A primeira frase de Bernard Lepetit e sua citao praticamente literal. Ele a afirma no contexto de seus estudos sobre a cidade do Antigo Regime: Para qualificar a cidade da poca moderna, por muito tempo nos contentamos com uma simples gradao de vocabulrio: a cidade pr-industrial precedia a cidade industrial. A definio implcita era bem negativa e excessivamente carregada de pressupostos. Portanto, parece necessrio substitu-la por um conceito de cidade do Antigo Regime (...). Para isso, preciso integrar as representaes antigas da cidade. De fato, o real da cidade do Antigo Regime que se tenta alcanar como para qualquer outra cidade uma prtica desse real, uma prtica da cidade. E essa prtica, por sua vez, integra um certo nmero de representaes. A segunda frase de Marcel Roncayolo. Ambas as citaes so do artigo Os espelhos da cidade: um debate sobre o discurso dos antigos gegrafos (LEPETIT, 2001: 266-7 e 268).

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Dadas as enormes transformaes em todos os campos, associadas s facilitaes geradas pelas tcnicas, num ambiente planetrio que funciona em rede, para definirmos a cidade, devemos definir o que seja a Pessoa. Sob a perspectiva topolgica, como veremos no decorrer deste trabalho, os lugares constitudos se confundem com as pessoas. Quando pensados mediante sua qualidade de rede de interaes, os lugares se deslocam com o deslocamento das pessoas. Por exemplo, onde fica a sede do governo americano? Se pensarmos exclusivamente na Casa branca, com certeza estaremos nos equivocando, j que ela est onde o presidente dos Estados Unidos, com sua rede poltica, estiver. Quando ele (pessoa fsica e jurdica) se desloca, o centro de poder se desloca com ele, todas as conexes de poder se deslocam junto. Isto se aplica, em diferentes escalas, a qualquer pessoa. Outro bom exemplo desta situao, dado por Manuel Castells, o teletrabalho mvel como modelo de trabalho que est se instalando. Esse modelo considera o trabalhador como nmade, que executa seu trabalho atravs de contato com o escritrio, via telefone celular, internet, fax, enquanto est em viagem, em visita a clientes ou em seu percurso corriqueiro, estabelecendo, assim, o conceito do escritrio em movimento (CASTELLS, 2003: 192). o escritrio (considerado um lugar, espao fsico localizvel geograficamente) que se movimenta com o deslocamento do trabalhador. Isto abre a perspectiva de que podemos pensar que, contemporaneamente, os lugares podem se deslocar com os deslocamentos das pessoas. Neste raciocnio no h excludos, todos so includos. No caso de um cidado com enorme precariedade de condies de subsistncia, podemos dizer que a cidade dele pobre de todo tipo de recurso. O morador da favela da Rocinha, situada geograficamente no bairro de So Conrado, da cidade do Rio de Janeiro, seguramente no participa da mesma cidade dos habitantes do nobre bairro de So Conrado. Ele est geograficamente l, no entanto ele no tem o alcance urbano de sua vizinhana. Acreditamos, pois, poder afirmar, e isto vale para

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qualquer pessoa, que, em se tratando de diferentes escalas, qualquer um est excludo da cidade que se define pelo outro. Partindo de que o conceito de cidade, de urbano, saiu dos lugares geomtricos e geogrficos, e de que preciso definir a pessoa para definir a cidade que ela e vice-versa, buscaremos, para o esclarecimento do Eu em questo e do conceito de Pessoa, e tambm para explicitar os elementos constitutivos de nossa hiptese, entend-los segundo a teoria de base psicanaltica denominada Nova Psicanlise. Em suma, existe correlao entre o entendimento de cidade e o de cidado, assim, preciso definir a pessoa para definir a cidade. Temos uma inseparabilidade entre o ser humano e mundo, inseparabilidade, portanto entre eu e cidade. uma dinmica onde no possvel compreender estes elementos isoladamente: construmos o mundo que nos constri num tempo comum. Nossa trajetria de vida nos faz construir nosso conhecimento de mundo. O que pretendemos elaborar ao longo deste trabalho a idia de que qualquer cidado, qualquer Pessoa, pode dizer A Cidade Sou Eu. Partimos, pois, do duplo objetivo de aprofundar o estudo do Urbanismo e desenvolver o potencial inovador de reflexo com vistas anlise de um novo conceito de cidade, que atualmente ganha uma configurao cada vez mais ntida. Nosso Projeto ser desenvolvido obedecendo a seguinte estrutura: Captulo 1 J que nosso trabalho tem como objetivo elaborar um novo conceito de cidade, este captulo visa: definir o que um conceito; mostrar como emergiu e se sedimentou o conceito de cidade; e fazer a defesa epistemolgica do direito de propor um conceito, pois estamos supondo que no h separao entre realidade e representao simblica; Captulo 2 Discorreremos sobre os diferentes neologismos trazidos por autores contemporneos e suas definies, buscando mostrar que o conceito de cidade est em questo e em processo de relativizao e desmaterializao;

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Captulo 3 Breve explanao das modificaes conceituais de cidade e do momento em que seu entendimento passa por uma grande relativizao. Transposio e analogia do termo de arquitetura fluida, proposta por Sol-Morales, para o urbanismo mediante o raciocnio da Cinta de Moebius. Apresentamos elementos que indicam a passagem do estado slido do urbanismo para o estado fluido e utiliza-se este raciocnio para a introduo do tema A Cidade Sou Eu. Neste captulo fazemos um breve histrico sobre topologia, objetivando introduzir o assunto. Reafirma-se a proposta de tratar no mais do Urbanismo, mas sim de um Orbanismo do sculo XXI; Captulo 4 Expomos sucintamente o pensamento de alguns autores das reas da filosofia, biologia, psicanlise, cincia computacional e fsica com o objetivo de explicitar os diferentes tratamentos e o deslizamento do conceito de Eu, sujeito ou indivduo. Os pensamentos sistmico, em rede e rizomtico, so apresentados para evidenciar formas organizadas de articulaes descentralizadas, imprecisas e aleatrias, para anlise das situaes de mundo; Captulo 5 Apresentao de alguns conceitos da teoria Nova Psicanlise, que serve de suporte para esta tese, para explicar o conceito de Eu = Pessoa, que sustenta a hiptese A Cidade Sou Eu. Na seqncia, a equivalncia Eu = Pessoa ser tomada como ferramenta heurstica de leitura da cidade e da definio de Eu; Captulo 6 Explicitao da hipotese A Cidade Sou Eu mediante a articulao dos conceitos de eu e cidade. Utilizamos tambm os conceitos de plo, foco e franja para o entendimento de urbano. Concluso sntese das principais idias e consideraes finais. Referncias Bibliografia utilizada para a construo deste trabalho.

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Anexo 1 Glossrio de alguns conceitos da Nova Psicanlise, que podem auxiliar o entendimento do captulo 5. Anexo 2 Breve explanao do conceito de Pessoa e do Personalismo, com o objetivo de esclarecer que o conceito de Pessoa que utilizamos diferente daquele trazido pelo Personalismo.

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Estrutura Geral da Tese Em termos gerais, a estrutura geral desta tese segue o seguinte esquema:

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1 SOBRE CONCEITOTemos que pensar com os conceitos, pois, na maioria das vezes, pensamos que pensamos com as coisas, mas falso. (MAGNO, 2005: 195)

Conceituar atividade intrnseca a todo trabalho de descrever, classificar e fazer previses sobre objetos cognoscveis. Esta , sem dvida, uma definio muito geral, podendo incluir qualquer sinal ou procedimento semntico, referido a qualquer objeto, concreto ou abstrato, particular ou universal (ABBAGNANO, 2003). So tantos os conceitos quanto o so as situaes cognitivas que envolvem algum tipo de nomeao mormente mediante o aparato sinttico e semntico de uma lngua que abstrai, formaliza, discerne, distingue, separa e, s vezes, ope, significaes para fins compreensivos e explicativos. Automvel, cometa, D/deus(es), Estado, homem, vermelho, tristeza, Universo, entropia, quadrado da hipotenusa, mamferos, raiz de 2, nmero pi, infinito, unicrnio, velocidade, classe social, cidade, territrio, espao, tempo (espao-tempo), identidade, valor, desejo, razo, terceiro excludo, renascimento, estes so alguns dos inmeros conceitos que utilizamos como atividade cognitiva bsica de estar no mundo e proceder a sua descrio, classificao, compreenso, explicao, ordenao, transformao, conservao, projeo, produo, modelizao ou simulao. Um conceito usualmente indicado por um nome disponvel no lxico de uma lngua. Assim, quando digo casa essa palavra repertoria um conjunto mais ou menos definido de imagens e casos reconhecveis em um determinado rol de significaes. O conceito, porm, no se reduz ao lxico, pois diversos nomes podem exprimir um mesmo conceito, do mesmo modo que diversos conceitos podem ser expressos pelo mesmo nome, ou ainda, um vocbulo novo pode ser criado para recortar com mais nitidez o raciocnio que se deseja explicitar. Nessa perspectiva, habitao, moradia, residncia ou lar podem ser tomados como equivalentes a casa, assim como o nome casa pode significar, antropolgica e

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historicamente, o espao domstico nas sociedades tradicionais16, o oikos entendido como unidade scio-econmica na cidade sumria (BOUZON, 1998: 21), ou um espao de representao social moralmente crivado, caracterstico da sociedade brasileira como herana do perodo colonial, e construdo na tenso opositiva em relao rua (DA MATTA, 2003), ou ainda a casa tornada rua pela diversidade social que habita e transforma o espao urbano, relativizando a diferena entre pblico (rua) e privado (casa) (SANTOS, 1985). Mas o conceito no apenas uma entidade abstrata identificvel pela presena de um vocbulo, novo ou remanejado17. Sendo um objeto do pensamento que opera graas linguagem e a outros signos, o conceito possui uma funo mediadora que organiza a ordem interna do discurso, sendo, por isso, um fato de compreensibilidade mais geral, passvel de sofrer restries progressivas no sentido de sua definio epistmica. Um conceito tampouco identificvel com as coisas, ainda que guarde relaes de co-pertinncia com a realidade. No tropeo no conceito de casa, que se distingue da casa que posso ver ser demolida. Vale dizer, conceitos tm a propriedade particular de ser entidades abstratas produzidas pelo entendimento humano e que se afastam de produtos da imaginao, percepes ou afeces, todos estados mentais que podem vir a suscitar o trabalho conceitual, mas que no lhe so diretamente correspondentes. H ainda a questo da validade dos conceitos, ou seja, a discusso acerca de seu carter de verdadeiro ou falso, medida que, construindo coerente e sistematicamente explicaes sobre o mundo, um discurso conceitualmente organizado opera por excluso das afirmaes ou princpios que lhe so contrrios. Ficam, assim, distribudos os valores de verdadeiro a afirmao ou princpio includo e falso a afirmao ou princpio excludo.16

o caso do estudo feito por Jean-Pierre Vernant sobre o espao religioso e social grego a partir do pareamento dos deuses Hestia, protetora e smbolo da casa e dos significados correlatos de fixidez, imutabilidade e permanncia, e Hermes, tambm ligado habitao dos homens, mas no sentido de ser um mensageiro e, por isso mesmo, invocar, ao contrrio de Hestia, movimento, passagem, mutao e transio (cf. VERNANT, 1990: 151-191). 17 Seguimos os argumentos de (FAROUKI, 1996), sobretudo o primeiro captulo, dedicado discusso do que conceito (sua natureza e tipologia) e conhecimento, com sua exigncia constitutiva de compreenso e explicao.

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Desde os gregos, operamos com essa regra, conhecida como regra do terceiro excludo: dada uma afirmao A e sua contrria B, elas no podem ser simultaneamente verdadeiras. Mas algo se passa quando nos deparamos com a gama infinita de explicaes coerentes e sistemticas que a humanidade tem sido capaz de forjar. A ttulo de exemplo, consideremos a questo da origem e funcionamento do cosmo. Ela pode ser explicada pela partenognese da Deusa Me Nammu, que gerou An (Cu) e Ki (Terra), segundo o mito sumrio (ELIADE, 1978: 80); ou pelo princpio pr-socrtico do Ilimitado, que d origem a todas as coisas, fonte de onde os seres extraem sua provenincia e onde realizam sua dissoluo18; ou pela iniciativa de Olorum que, segundo os Yorubas, comeou a criao do mundo, confiando seu acabamento e governo a um deus inferior (ELIADE, 1978: 75); ou pelo ato criador de Yahw, divindade suprema dos hebreus, que manifesta seu poder aos homens mediante trovo, relmpago, fumaa, tempestade, fogo ou arco-ris (ELIADE, 1978: 127128); ou pelo princpio da mutao, que se realiza no jogo de alternncia entre yin e yang, entendidos como os fatores constitutivos de toda realidade (JULLIEN, 1997: 30), ou ainda pela teoria gravitacional newtoniana, ampliada e superada pela teoria da relatividade geral einsteiniana. O que essa variedade de testemunhos nos mostra, do ponto de vista do trabalho conceitual? A insuficincia do princpio do terceiro excludo e a correlata necessidade de suspend-lo, como postura e exerccio metodolgicos. Explicaes mticas, cientficas, religiosas, racionais, filosficas, sapienciais, apesar de suas diferentes

especificidades, funcionaram sculos ou milnios a fio nas mais diversas culturas, demonstrando que, do ponto de vista do valor, todas so equivalentes, restando a discutir, se e quando for o caso, sua fora de autoridade e seu poder de performance no que concerne aos

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Esse princpio foi formulado por Anaximandro (c. final do sc. VII incio da segunda metade do sc. VI a. C.), natural da cidade de Mileto, amigo e discpulo de Tales. Cf. REALI, 2004, v. 1: 19-21.

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problemas que lhes podem ser colocados e para os quais podem haver, ou no, encaminhamentos possveis. Uma vez colocada a possibilidade de suspenso dos juzos de validao como postura metodolgica prvia, podemos agora escolher um conjunto conceitual em detrimento de outro. Isso significa operar conceitualmente: empresto validade em sentido amplo: valor de verdade, crena, ideologia, eficcia, adequao, oportunidade a um determinado conjunto e excluo circunstancialmente outros. Procedo fixao, relao e hierarquizao de unidades de sentido, resultando da universos mais ou menos autnomos de significao. Em resumo, o conceito no uma entidade simples, mas um complexo funcional no qual cada doutrina ou conhecimento dispe os elementos como julga mais adequado, verdadeiro ou eficaz. Este universo no pode deixar de produzir algum tipo de clausura, medida que obedece a regras de coerncia interna, que asseguram o necessrio liame entre as noes, distinguindo-se de outros procedimentos de conhecimento. Todavia, o jogo de comparao, escolha e excluso entre conceitos dinmico. A prpria plasticidade da linguagem e da competncia cognitiva humanas encarrega-se de criar pontos de passagem e traduo entre conceitos, facilitando sua apresentao, explicao e transmisso. Alm disso, h campos conceituais que so dedicados a explorar a convertibilidade de saberes e a transitividade de campos de conhecimento, criando um universo de problematizao conceitual que facilita justamente a produo de equivalncias conceituais de valor epistmico19. Como exemplo, temos o livro organizado por Lepetit, onde, para apresentar a transferncia dos modelos de auto-organizao (procedentes da fsica, da qumica, da biologia e da inteligncia artificial) para os estudos urbanos, conta com a contribuio de demgrafos, arquelogos, economistas, ecologistas, gegrafos, historiadores, entre outros. Nesta mesma obra, o organizador estabelece a seguinte distino entre o passado19

o caso, por exemplo, do pensamento sistmico e seus desdobramentos e contigidades, como a ciberntica, as teorias da auto-organizao e da complexidade.

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imediato e o presente: Em contraste com o tempo montono da mecnica clssica e do urbanismo funcionalista, o tempo das teorias da auto-organizao caracteriza-se tanto pelo rumo inesperado de algumas de suas evolues quanto pela complexidade (LEPETIT, 2001: 137). No campo das pesquisas sociais e, mais especificamente, no do urbanismo, tambm nos deparamos com um processo ativo de questionamento conceitual. Problematizam-se definies tradicionais cidade medieval, cidade renascentista, cidade pr-industrial, cidade industrial comprometidas com uma diacronia cmoda e, muitas vezes, alheia pluralidade das representaes sociais que se cruzam na construo e vivncia da cidade. Parte-se do pressuposto de que a representao ativa, e no apenas diz a cidade, mas faz a cidade (LEPETIT, 2001: 268), o que transforma essa ltima em uma espcie de espao mediador e mobilizador do equipamento mental de uma poca, suas crenas, tcnicas, instituies, ordenaes sociais, etc. Buscam-se, portanto, recortes que possibilitem destacar a polissemia e polifonia da cidade, apostando no ganho epistemolgico do estudo de tais noes como esclarecedor para a prpria reflexo acerca das condies contemporneas de modificao do urbano. Nesse sentido, importa destacar o estado atual de indagao acerca das possibilidades de entendimento do espao urbano contemporneo, dada a relativizao dos parmetros de sua definio, parmetros acumulados ao longo de milnios de construo e representao da cidade. Associado a isso, vamos vincular a esta indagao, o fato de que qualquer entendimento resultante da rede que informa e forma uma determinada compreenso da realidade. Desse modo, pretendemos desenvolver raciocnios inclusivos que considerem a multiplicidade de possibilidades que qualquer realidade oferece. Posto isto, como entender cidade hoje? Como apreender a pluralidade de suas representaes? O que mudou?

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1.1 O conceito de CidadeComo Magritte, teremos de dizer, diante do nosso corpus de definies, isto no uma cidade, mas sua apreenso. (LEPETIT, 2001: 246)

Pensemos um pouco sobre a idia de cidade. quase impossvel imaginar a histria da ocupao humana do planeta desvencilhada do processo de urbanizao, j tradicionalmente considerado como equivalente civilizao. Acostumamo-nos a conceber o espao urbano a partir de seus marcos mais imediatamente visveis e tradicionalmente estabelecidos que, com um pouco de flego histrico, vemos remontar ao perodo neoltico: o solo sulcado, o aglomerado de habitaes criando laos de proximidade fsica, a paliada, o tempo social regulado pelo ritmo cclico do trabalho agrcola, regrado, por sua vez, por regularidades ecolgicas de difcil relativizao... E, finalmente, os grupos humanos, dispersos pelo planeta, gerando crianas e as criando, mediante as mais variadas estratgias sociais que domesticam o polimorfismo, politropismo e polivalncia sexuais que tornam a espcie humana to estranhamente criativa. Homens e mulheres tornados socialmente mquinas ventrlocas20 das regras de parentesco, esses inmeros princpios de regulagem da reproduo sexual/social da espcie que articulam a ordem e a desordem social e csmica, unindo, separando, punindo, condenando, coibindo, aterrorizando, seduzindo e criando mitos para as pessoas em suas inseres sociais mais ou menos compulsrias, embora longe de terem, por definitivo, a palavra final sobre a experincia humana. Paisagens sociais, fsicas e geogrficas onde se desenrolaram, por longo perodo, atividades de proteo, defesa e nutrio. Seguindo historiadores como Lewis Mumford, podemos, de acordo com os parmetros clssicos, estabelecer sinteticamente um percurso no qual o conceito de cidade tem sua origem nas referncias herdadas da aldeia neoltica, associada com nascimento e lugar, sangue

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Tomamos a expresso, bem como o raciocnio que lhe subjacente, de GODELIER, 2004:341-344.

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e solo. Os componentes das aldeias foram recompostos de modo mais complexo e incorporados pela nova unidade urbana. H cerca de 5.000 anos a.C. algumas aldeias transformaram-se em cidades; a os produtores de alimentos comearam a produzir excedente a fim de manter a populao de especialistas: artesos, mercadores, pescadores, guerreiros, sacerdotes. Com a ascenso da cidade, muitas funes, antes dispersas e desorganizadas, foram reunidas dentro de uma rea limitada, contribuindo para uma considervel expanso tecnolgica (o clculo matemtico, a escrita, a observao astronmica, o calendrio so alguns exemplos). A cidade torna-se uma estrutura equipada para armazenar e transmitir os bens da civilizao, numa quantidade mxima de facilidades num mnimo de espao. Esta concentrao expandiu as capacidades humanas em todas as direes. A cidade mobilizou o potencial humano, efetuou o domnio sobre os transportes e sobre a comunicao entre longas distncias no espao e no tempo, possibilitou enorme inventividade e desenvolvimento acelerado na rea da engenharia, alm do aumento exacerbado da produtividade agrcola. A partir da estabeleceram-se referncias que organizam o modo tradicional de conceber a cidade, presentes em vrias experincias histricas: concepo fsica e geogrfica do espao, reiterando raciocnios de fixao, delimitao, pertencimento e excluso; preponderncia da forma fsica da cidade, convertida na materialidade das ruas, casas, recinto religioso, recinto administrativo, recinto das oficinas, mercado; cidade como local de ponto de encontro, local de proteo, local da troca, local da interao cultural, local da criatividade e evoluo tcnica, receptculo especial destinado a armazenar e transmitir mensagens (MUMFORD, 1991: 114), local de transmisso da herana cultural. As caractersticas principais da cidade como smbolo esttico j estavam configuradas, mesmo que de forma rudimentar, na cidadela, por volta de 2.500 a.C (MUMFORD, 1991: 104). Sua forma variou no tempo e no espao, mas a perenidade de algumas solues

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surpreende. A rua, o quarteiro de casas, o mercado, o recinto religioso e administrativo, o recinto das oficinas so smbolos visveis aos quais ainda estamos habituados a pensar como possibilidade de conceber a cidade.

1.2 A cidadeQue a cidade? Como foi que comeou a existir? Que processos promove? Que funes desempenha? Que finalidades preenche? No h definio que se aplique sozinha a todas as suas manifestaes nem descrio isolada que cubra todas as suas transformaes, desde o ncleo social embrionrio at as complexas formas da sua maturidade e a desintegrao corporal da sua velhice. (MUMFORD, 1961, p.9)

Ora, considerar a cidade considerar o conceito de cidade, no sentido de uma ferramenta conceitual historicamente construda, cujas sucessivas elaboraes sofrem o impacto das transformaes que a prpria histria impe aos agentes sociais de um determinado espao-tempo, que, de retorno, vivenciam a exigncia de elaborar conceitualmente uma reflexo consentnea com os problemas de sua poca. Por sua vez a cidade que hoje se transforma graas ao fluxo de capital e informao, acelerado pelas novas tecnologias, pode ser problematizada como e-topia, metpole ou cibercidade, vocbulos forjados que crivam a questo da relativizao dos parmetros tradicionais identificadores do urbano, como o espao fsico e geogrfico e tempo cronolgico. Dada a contingencialidade de ser nossa a era da sociedade em rede, da cidade global, da metpole, da cidade dos bits, da e-topia, da cidade digital ou instantnea, nosso interesse contribuir para o debate, ampliando suas condies de anlise com a proposio A cidade sou eu. Pensar a cidade contempornea implica a elaborao de um problema e sua formulao conceitual. Trabalhamos com construes conceituais dentro da perspectiva de que no h hierarquia entre o objeto de estudo como real e sua abordagem como representao. Em outras palavras, entre os fatos e suas descries, no h mais distncia do que entre o que se conhece e o que se constri. Para colocar a questo nos termos estritos do

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urbanismo, retomamos a citao de Lepetit: o real da cidade que se tenta alcanar uma prtica desse real, uma prtica da cidade (um modo de lidar com a cidade) (LEPETIT, 2001: 266-267). Ou ainda, podemos lembrar a afirmao de Castells de que no h separao entre realidade e representao simblica21. Nossa tese A Cidade Sou Eu a formulao conceitual de que no h distncia/diferena entre realidade e representao simblica. Se quisermos transpor para estes termos, a cidade que uma pessoa so as suas representaes simblicas. Uma pessoa-cidade um conjunto de representaes simblicas. Assim, por exemplo, com o conceito de territrio, Sol-Morales recorta no apenas a problemtica do sistema de espaos habitados, com sua determinao topogrfica, histrica e social; mas tambm [territrio] como ponto de partida, lugar de encontro da atividade formativa, que ao mesmo tempo a arquitetura e a cidade em qualquer sentido que possamos dar a esses termos (SOL-MORALES, 2002: 24). Partindo da problemtica conceitualmente elaborada como territrio, o autor vai buscar tambm o que as cincias sociais, a geografia, a economia, a antropologia e a sociologia urbanas tm a oferecer como proposies acerca da cidade e da arquitetura contemporneas (SOL-MORALES, 2002: 25-27). Assim tambm A cidade sou eu recorta, como construo conceitual, um campo de articulao e de anlise. Para faz-lo, estabelecer uma grade de relaes conceituais cuja inteligibilidade depende do prprio espao que cria. Mas, se consistisse apenas nisso, restaria um monlogo sem sentido, exerccio, alis, impossvel, pois, se articulamos, j o fazemos inseridos num contexto, visando dialogar com ele. O contexto do qual partimos necessariamente co-participante da formulao do prprio problema apresentado. A

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No contexto em que foi enunciado, Castells nos lembrava que em todas as sociedades, a humanidade tem existido em um ambiente simblico e atuado por meio dele. O que estava em questo era uma certa desmistificao da suposta oposio entre o real e o virtual. O que era esclarecedor na poca em ele escreveu era o fato de que a realidade, como vivida, sempre foi virtual porque sempre percebida por intermdio de smbolos formadores da prtica com algum sentido que escapa sua rigorosa definio semntica (...) Todas as realidades so comunicadas por intermdio de smbolos. E na comunicao interativa humana, independentemente do meio, todos os smbolos so, de certa forma, deslocados em relao ao sentido semntico que lhes so atribudos. De certo modo, toda realidade percebida de maneira virtual (CASTELLS, 1999a: 395. Grifo nosso.)

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proposio A cidade sou eu ganha todo seu sentido dentro dos estudos do urbanismo, que seu interlocutor privilegiado, pois partimos do estado atual de perquirio acerca da cidade contempornea. Do mesmo modo que os demais autores, buscamos ferramentas que sejam eficazes para dar conta de uma problemtica que, no sendo indita, configura-se, contudo, altamente indeterminada e sem parmetros imediatamente visveis, pois estes parmetros foram devidamente desconstrudos pelo prprio processo (de relativizao do conceito de cidade), que exige, agora, nova considerao, para estabelecermos novas ferramentas conceituais.

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2 RECONCEITUANDO A CIDADEMegalpolis, metrpolis, posmetrpolis, cyburbia, expolis, cidade global e um enorme et cetera de neologismos formados a partir dos termos clssicos greco-latinos de polis, urbs, e civitas, parecem ter aberto o caminho para a proposio permanente de novas palavras que permitam denominar uma realidade que se entende que j no igual da cidade histrica (SOLMORALES, 2002: 24).

A noo de limite desapareceu com a urbanizao quase ilimitada: no podemos mais ver uma cidade, nem entrar ou sair dela. Ela se tornou anptica. Isso se deve, de um lado, presena material de uma cidade infinitamente extensvel, e, de outro, ao desaparecimento concomitante das marcas de identificao que repousam na oposio cidade/no cidade (CAUQUELIN, 1996: 34). O lugar, sob a perspectiva da utilizao plena das tecnologias, dissolveu-se como invlucro. A comunicao realiza-se num espao de caractersticas abstratas, que no requerem mais a presena fsica. As comunicaes telefnicas so responsveis por um elo e construram uma espcie de envoltrio virtual (CAUQUELIN, 1996: 34), do qual agora participam todas as formas de comunicao distncia. Qualquer ser humano, de qualquer ponto do planeta, pode participar, como membro ativo, da cidade mundial. O urbano define-se tambm pelo fato de o indivduo ser articulado a uma rede de inter-relacionamentos eletrnicos. A cidade no se reduz mais a seus suportes geo-mtricos e quantitativos, e tampouco s competncias cognitivas desenvolvidas sobre as capacidades de verbalizao da espcie humana. O alcance das realizaes, conjeturas, implementaes tecnolgicas, programas de pesquisa etc. eliminou qualquer possibilidade de indexar a noo de cidade a um critrio qualquer de fronteira (fsica, mental, cultural, tnica, lingstica, financeira ou tecnolgica). Mais do que isso, o deslocamento da noo de cidade acompanha e acompanhado pelo deslocamento sobre aquilo que talvez constitua seu esteio fundamental: a idia de que existiria

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uma realidade humana, de base carbono22, destinada a perpetuar o esquema e a srie casalheterossexual-familiar-reprodutor-cultural-urbano-geogrfico. Em outras palavras, se no perodo neoltico vimos a implantao de um conceito de cidade tomando como referncia o sedentarismo, a geografia, o solo, o tempo cronolgico, a domesticao do homem, o reconhecimento da consanginidade e, conseqentemente, os laos de famlia, de casal heterossexual reprodutor, assistimos atualmente ao estabelecimento de conceitos de cidade nos quais esta base inicial est bastante desconfigurada e relativizada, bem como de outros conceitos que chegam mesmo a desconsiderar esses dados iniciais. Assim, a cidade passa a ser definida a partir de diferentes parmetros, tais como finanas, capacidade informacional e de conexo planetria, ns e redes, densidade demogrfica, virtualizao, experincia sensorial, etc. Por outro lado, contemporaneamente, podemos contrapor a cada uma das referncias de base relacionadas no incio deste pargrafo, um modo de vida diferenciado: a mobilidade exacerbada da vida contempornea devolve ao homem um certo nomadismo, acrescente-se a isto a possibilidade de procriao sem a necessidade da relao sexual, a comunicao distncia, a relativizao do tempo cronolgico e da geografia devido ao uso de tecnologias, os novos parmetros de relaes familiares com parceiros do mesmo sexo, etc. O fato que o conceito de cidade tal como foi historicamente entendido no expressa mais nossa realidade. Basta ver a grande quantidade de neologismos utilizados por autores contemporneos na tentativa de situar as cidades de acordo com as modificaes vigentes. O campo do urbanismo e a conceituao de cidade esto, portanto, em questo. A definio de cidade foi amplamente relativizada, vrios conceitos foram apresentados, procurando, cada um deles, no apenas apreender melhor as especificidades ocasionadas pela interao indissocivel entre espao, tecnologia e sociedade, como tambm incorporar, de22

O carbono est presente em todo organismo vivo. O corpo humano contm grande quantidade de compostos de carbono. Por conta disso, identifica-se a base carbono como constituinte do corpo humano.

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forma mais adequada, os novos atores, os novos tipos de relaes sociais e os novos usos e funes que surgiram para a cidade. Destacaremos a seguir alguns conceitos contemporneos de cidade, com o duplo objetivo de apresentar, simplificadamente, o entendimento de cada autor a respeito da cidade contempornea e as definies genricas que elaboraram sobre elas. Evidentemente, alguns conceitos sobrepem-se, outros so excludentes, outros inclusivos, outros ainda mais particularizados. A escolha foi aleatria, mas no ingnua, posto que h interesse em identificar cidades conceituadas de modos distintos daqueles que estamos habituados a pensar O segundo objetivo explicitar a enorme preocupao e mobilizao, presentes no nosso campo do urbanismo, para propor conceitos consoantes com as transformaes em curso. nessa corrente que pretendemos nos alinhar com este trabalho. Dentro deste panorama, podemos destacar algumas definies para a cidade contempornea.

2.1 A cidade informacional Em seu livro La ciudad informacional: tecnologas de la informacin, reestructuracin econmica y el proceso urbano-regional (1995), o socilogo Manuel Castells apresenta a tese de que h um processo geral de transformao do espao ocorrendo em todas as sociedades medida que, de modo crescente, estas se articulam num sistema global. O espao de fluxos, forma de articulao espacial do poder e da riqueza do mundo de hoje, ocupa o centro desta transformao. nesse contexto que ele concebe o advento da cidade informacional, a forma social e espacial de cidade da nossa sociedade, do mesmo modo que a cidade industrial constituiu a forma urbana do tipo de sociedade hoje em crise. Trata-se de uma cidade feita tanto do potencial de produtividade quanto da capacidade de destruio, tanto das proezas tecnolgicas quanto das misrias sociais de nosso tempo.

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Para Castells, a dinmica espacial das atividades de informao expressa um novo e complexo modelo organizacional e tecnolgico, caracterizado, simultaneamente, pela persistente centralizao das atividades de alto nvel nos centros financeiros das reas metropolitanas maiores e pela descentralizao dos escritrios de processamento de dados para reas menores e, principalmente, para fora das principais reas metropolitanas. Este complexo desenvolvimento territorial no dominado pela centralizao nem pela descentralizao. Nele, o crucial a relao entre os dois processos justamente estes processos binrios de centralizao e descentralizao simultneas, associados, ambos, s mesmas dinmicas scio-econmicas que explica a complexidade da nova forma social e espacial que a cidade informacional. O fundamental em todos esses espaos seu nvel de inter-relao por meio dos fluxos comunicacionais, nos quais as conexes da rede intraorganizacional constituem as conexes definidoras da nova lgica espacial. Assim, o espao das organizaes na economia informacional cada vez mais um espao de fluxos. O espao de fluxos implica uma lgica organizacional que a-espacial. Mesmo que as organizaes estejam localizadas em lugares especficos e seus componentes sejam dependentes do espao geogrfico, a lgica organizacional decorre essencialmente do espao de fluxos que caracteriza as redes de informao. Os fluxos so estruturados para constituir a dimenso espacial fundamental dos complexos em grande escala do processamento da informao. Essa caracterstica influencia diretamente a configurao que as cidades assumem hoje, visto que os interesses tanto de uma elite local empresarial, quanto de uma classe operria residente local, ou mesmo de um mercado local, estaro constantemente subordinados necessidade de a organizao estar conectada simultaneamente aos mercados financeiros, aos grupos profissionais, s alianas estratgicas no mundo da economia e ao

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potencial para instalar e atualizar a tecnologia necessria, todos dependentes das interaes no espao dos fluxos. A reestruturao do capitalismo constituiu uma fora-chave na remodelao das cidades e regies no final dos anos 70 e durante os anos 80 do sculo XX, quando a produo e o uso das ento Novas Tecnologias da Informao e da Comunicao (NTIC) se juntaram para forjar as relaes entre estas tecnologias e as novas formas e processos espaciais. Essa juno modificou profundamente o sistema scio-econmico emergente, dando lugar complexa gerao de um novo processo urbano-regional, como efeito scio-espacial dos dois macro-processos fundamentais em todas as sociedades capitalistas avanadas a reestruturao e o desenvolvimento informacional. Para Castells, a interao entre tecnologia, sociedade e espao responsvel pela gerao de um novo processo urbano-regional, que serve de base material s nossas vidas nesta era da primazia da informao. O modelo espacial especfico das indstrias de tecnologias da informao ento emergentes resultou de duas caractersticas fundamentais: o carter distintivo de sua matriaprima a informao e a singularidade de seu produto os equipamentos orientados para processos com aplicaes em todo o espectro da atividade humana. Outros fatores a busca de lucro, por exemplo tambm determinaram seu comportamento espacial, mas o que se evidenciou foi o significado tecnolgico mediante o qual o lucro pode ser obtido. Este significado tecnolgico passa a ser o atrativo das novas indstrias que, cada vez mais, se afastam da linha em que as velhas indstrias se situavam. A tecnologia passa a servir como mediadora na relao entre a racionalidade econmica contida na empresa e os atributos de dado espao, o que vai determinar os modelos de localizao e a estrutura espacial da resultante. A produo de tecnologias da informao torna-se ento, de fato, uma ponta de lana para a formao de um novo espao hierrquico de produo que se estende por todo o

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mundo, divide pases e diferencia localizaes com as conexes necessrias lgica econmica e funcional do processo mantida pelas novas formas de comunicao. Este novo espao representado por uma geometria varivel que depende unicamente do sobe-e-desce das empresas, regies e pases no escalo tecnolgico. A relao entre tecnologia e trabalho decisiva na forma assumida pela dinmica urbana. Essa nova relao, estabelecida entre estes dois tpicos e situada na base da transformao da estrutura social urbana, foi chamada de dual. Na nova configurao scioespacial desta cidade dual, as novas tecnologias, embora no constituam o fator causal, so extremamente importantes em virtude de seu papel instrumental no processo de reestruturao do trabalho. Duas cidades so tpicas para o entendimento desta estrutura: Nova Iorque e Los Angeles. Estas duas cidades norte-americanas continham, no final da dcada de 80, a maior parte do crescimento dos empregos altamente remunerados, e, ao mesmo tempo, eram habitadas, majoritariamente, por minorias tnicas incapazes de conseguir estes empregos. Portanto, a dualidade manifestava-se na coexistncia espacial de um grande setor profissional e executivo de classe mdia com uma crescente subclasse urbana. A cidade dual exemplifica bem o emergente e contraditrio desenvolvimento da nova economia informacional e a conflituosa apropriao da cidade central por grupos sociais que, embora constituindo mundos parte em termos de estilos de vida e posio estrutural na sociedade, compartilham do mesmo espao. A cidade dual foi sempre um tema clssico da sociologia urbana. O contraste entre opulncia e pobreza num espao compartilhado sempre interessou os estudiosos. Entretanto, o que j se via no final da dcada de 80 era uma nova forma de dualismo urbano, conectada especificamente ao processo de reestruturao e expanso da economia informal. O que estava em questo era, sobretudo, o desmantelamento de relaes capital-trabalho institucio-

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nalizadas durante o longo processo de formao da sociedade industrial. E mais, a transio de processos de produo industrial para o informacional coincidiu com a ascenso da produo flexvel, que, sob as condies histricas daquele momento, parecia tender a igualar-se s relaes capital-trabalho desinstitucionalizadas. Ocorriam, portanto, processos simultneos de crescimento e declnio de indstrias e empresas, que se davam com maior intensidade nos pontos nodais da geografia econmica, especialmente em grandes reas metropolitanas, onde estava concentrada a maior parte das atividades intensivas de conhecimento. Segundo Castells, uma importante tendncia social ento se destacava: o surgimento histrico do espao de fluxos superando o significado do espao de lugares. Seu efeito nocivo a produo de uma geometria negativa que nega o sentido produtivo especfico de qualquer lugar fora de sua posio numa rede cuja forma muda constantemente em resposta a mensagens de sinais invisveis e cdigos desconhecidos. Isso resultado da separao entre fluxos funcionais e lugares historicamente determinados como duas esferas distintas da experincia humana. As pessoas vivem em lugares e o poder estabelece a sua dominao mediante fluxos. Entre fluxos ahistricos e identidades irredutveis de comunidades locais, as cidades e as regies desaparecem como lugares com significao social. A emergncia do espao de fluxos questiona o significado das cidades e do bem-estar em nossas sociedades, mas, quem sabe, no ser possvel surgir da uma nova estrutura scioespacial, composta de comunidades locais que controlem e dem forma a uma rede de espaos produtivos? Assim, este o voto de Castells, nosso tempo histrico e nosso espao social podero convergir para a integrao de conhecimento e significado numa nova cidade no mais dual ou global, mas informacional.

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2.2 A videocidade Em seu livro O espao crtico e as perspectivas do tempo real (1993), o urbanista Paul Virilio desenvolve o conceito de videocidade, ou cidade sem portas, que aquela em que o espao urbano perde sua realidade geopoltica em benefcio nico de sistemas instantneos de deportao, cuja intensidade tecnolgica perturba incessantemente as estruturas sociais e promove uma concentrao ps-urbana e transnacional. Nossa poca seria a do desenvolvimento das tcnicas (audiovisuais) de persistncia retiniana, em que passamos da esttica do aparecimento progressivo de uma imagem estvel (analgica) esttica do desaparecimento de uma imagem instvel (digital). emergncia de formas e volumes destinados a persistir na durao de seu suporte material (pedra, madeira, terracota, tela, papis, etc.), sucedem imagens cuja persistncia somente retiniana e cuja durao a do tempo de sensibilizao, que escapa nossa conscincia imediata. Assim, na interface da tela, tudo se mostra no imediatismo de uma transmisso instantnea. Portanto, depois das distncias de espao e de tempo, a distnciavelocidade que vem abolir a noo de dimenso fsica. A representao da cidade contempornea no mais determinada pelo cerimonial da abertura das portas, o ritual das procisses, dos desfiles, a sucesso das ruas e avenidas. A arquitetura urbana deve, a partir de agora, relacionar-se com a abertura de um espao-tempo tecnolgico. Unidade de lugar sem unidade de tempo, a cidade desaparece na heterogeneidade do regime de temporalidade das tecnologias avanadas. A forma urbana no mais expressa por uma demarcao qualquer, uma linha divisria entre aqui e alm, e sim pela programao de um horrio no qual a entrada indica apenas um protocolo audiovisual, em que o pblico e os ndices de audincia renovam a acolhida e a recepo do pblico.

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2.3 A metpole Franois Ascher desenvolve o conceito de metpole, ou metapolis, no livro Metapolis: acerca do futuro da cidade (1998). Para o professor do Instituto Francs de Urbanismo, metpole um conjunto de espaos em que a totalidade, ou parte, dos habitantes, das atividades econmicas ou dos territrios est integrada ao funcionamento cotidiano de uma metrpole ou de um conjunto de grandes cidades. Com uma bacia comum de emprego, de residncia e atividades, a metpole composta por espaos heterogneos e no necessariamente contguos, e compreende algumas centenas de milhares de habitantes. Apresentando-se sob formas muito variadas, a metpole constitui-se a partir de metrpoles pr-existentes muito diferentes e integra um conjunto heterogneo de espaos novos e diversos. A metpole engloba as zonas metropolitanas em sentido estrito e, alm disso, os novos espaos surgidos com a metropolizao. So as vastas regies urbanas que aglomeram cidades de todos os tamanhos, nas quais as zonas urbanas e as zonas rurais se interpenetram. Ou seja, metropolizao e metpoles constituem o quadro no qual as foras econmicas, sociais, polticas e culturais atuam e atuaro, de forma durvel. certo que estas foras influenciam as dinmicas metropolitanas e a evoluo das metpoles, mas o prprio desenrolar da urbanizao que configura um contexto do qual elas no podem escapar e, por isso, representa uma espcie de limite influncia dessas foras econmicas. Metpole um espao de mobilidade, no qual as relaes de proximidade em grande parte se dissolvem, pois ela est conectada a mltiplas redes nacionais e internacionais e, por vezes, mantm com territrios distantes relaes mais intensas do que com sua zona envolvente prxima, que j no desempenha um papel de retaguarda territorial.

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2.4 As megacidades Manuel Castells aborda as megacidades no livro A Sociedade em Rede (1999a). Segundo ele, as megacidades podem ser definidas como aglomeraes de grandes dimenses, que concentram o essencial do dinamismo econmico, tecnolgico, social e cultural dos pases. Conectadas entrem si numa escala global, elas estendem-se no espao e formam verdadeiras nebulosas urbanas, nas quais campo, cidade, criatividade e problemas sociais integram-se ao mesmo tempo. So centros de dinamismo econmico, tecnolgico e social em seus pases e em escala global. Forma espacial presente nos diferentes contextos geogrficos e sociais da nova economia global e da sociedade informacional emergente, as megacidades so definidas no apenas por seu tamanho aglomeraes com mais de dez milhes de pessoas , mas tambm por constiturem os ns da economia global e concentrarem as funes superiores direcionais, produtivas e administrativas de todo o planeta. Elas encerram tambm o controle da mdia, a verdadeira poltica do poder e a capacidade simblica de criar e difundir mensagens. Nem todas as megacidades so centros influentes da economia global, muito embora conectem igualmente enormes segmentos da populao humana a esse sistema global. Tambm funcionam como ms para suas hinterlndias isto , o pas inteiro ou a regio onde se localizam e devem ser vistas como uma funo de seu poder gravitacional em direo s principais regies do mundo. Elas articulam a economia global, ligam as redes informacionais e concentram o poder mundial. O fato de estarem fsica e socialmente conectadas com o globo e desconectadas do local que as torna uma nova forma urbana. Em outras palavras, elas esto externamente conectadas a redes globais e a determinados segmentos de seus pases, mas internamente atuam como se estivessem realmente desconectadas das populaes locais.

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2.5 A cidade global A especialista em planejamento urbano Saskia Sassen elabora o seu conceito de cidade global no livro As cidades na economia mundial (1998). Partindo do pressuposto de que, na era econmica atual, existem duas caractersticas distintas a integrao dos sistemas e a disperso geogrfica das atividades econmicas , a autora afirma que esta situao contribuiu significativamente para o papel estratgico desempenhado pelas grandes cidades. As cidades no se tornaram obsoletas. Ao contrrio, alm de continuarem concentrando funes de comando, receberam duas outras funes: 1) so locais de produo ps-industrial para as principais indstrias, para o setor financeiro e para os servios especializados; e 2) so mercados multinacionais, nos quais empresas e governos podem adquirir instrumentos financeiros e servios especializados. Desse modo, as cidades globais funcionam em rede, so centros do comrcio mundial e atividades bancrias e pontos de comando, mercados globais e locais de produo para a economia da informao. Lugares-chave para os servios avanados e para as telecomunicaes necessrias implementao e ao gerenciamento das operaes econmicas globais, elas constituem ns de circulao de recursos e tendem tambm a concentrar as matrizes das empresas, sobretudo daquelas que operam em mais de um pas.

2.6 A cibercidade23 O conceito de cibercidade foi desenvolvido pelo filsofo da cultura virtual contempornea Pierre Lvy, em seu livro Cibercultura (1999). A relao entre a cidade e o ciberespao d-se mediante as articulaes entre o funcionamento urbano e as formas de inteligncia coletiva que se desenvolvem no ciberespao. Trata-se de dois espaos qualitativamente diferentes territrio e inteligncia coletiva, essa ltima tendo como suporte

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Este conceito desenvolvido de modo mais amplo no item A ecologia cognitiva de Pierre Lvy, cap.4.

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o ciberespao que se articulam de tal modo que no h eliminao ou substituio das formas territoriais por um funcionamento ciberespacial, mas sim uma compensao da inrcia e rigidez do primeiro pela articulao realizada em tempo real no segundo. Isso permite que as questes urbanas sejam elaboradas atravs da comunicao interativa e coletiva, possibilitando a colocao simultnea de competncias, recursos e idias. O projeto do ciberespao relacionado inteligncia coletiva visa possibilitar, num sentido mais abrangente, a conscincia do que os grupos humanos fazem em conjunto e lhes dar suporte para a soluo dos problemas conforme uma lgica inclusiva. A perspectiva que todos tenham acesso aos processos de inteligncia coletiva, ao ciberespao, em uma rede capaz de acolher manifestaes individuais e sociais de elaborao dos problemas da cidade, de participao dos cidados afetados diretamente nas diversas deliberaes, de livre acesso aos saberes etc. Em suma, esta articulao possibilita a utilizao do virtual para habitar melhor o territrio, estabelecendo uma democracia eletrnica. Importante verificar que com esses conceitos diferenciados de cidade, comeamos a ter simultaneamente a reconceituao do que seja cidado, pessoa ou habitante desse espao. No caso do Lvy, a cibercidade caracteriza o ciberespao, que o espao dos que habitam todos os meios dos quais interagem. Deste modo, vemos que o habitante da cibercidade tem, entre outras caractersticas, a possibilidade de ubiqidade, e a constatao de que seu corpo no se restringe a sua configurao corprea.

2.7 A e-topia Este conceito foi elaborado por William Mitchell, decano da Escola de Arquitetura e Planejamento Urbano do Massachusetts Institute of Techonology, no livro do mesmo nome (2001). As e-topias so cidades econmicas e ecolgicas que funcionam de maneira mais

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inteligente do que os modelos urbanos familiares e que, contemporaneamente, os esto substituindo. Seus princpios de desenho seguiriam cinco pontos bsicos: (1) a desmaterializao, que consiste na substituio de um servio fsico por um virtual (por exemplo, o sistema eletrnico de banco em casa). Existe um benefcio anlogo quando se separa a informao de seu tradicional substrato material, pois uma mensagem por correio eletrnico que se l na tela no consome papel. Se no produzimos um objeto material, e se utilizamos em seu lugar um equivalente desmaterializado, este nunca se converter em um resduo que precisar ser tratado. (2) a desmobilizao, cuja idia se relaciona com a eficincia incomensuravelmente maior de se movimentar bits do que pessoas e mercadorias. A libertao fica patente na reduo dos percentuais de consumo de combustveis, na menor contaminao, na menor necessidade de espao para infra-estruturas de transporte, nos cortes na fabricao e nos gastos de manuteno de veculos e na reduo do tempo empregado em viagens. (3) a personalizao em massa, que tem a ver com o fato de que se as mquinas da era industrial trouxeram as economias de estandardizao, repetio e produo em massa, as mquinas inteligentes da era da informtica podem garantir economias muito distintas de adaptao inteligente e de personalizao automatizada. Pode-se usar silcio e informtica em grande escala para possibilitar o abastecimento personalizado automtico do que seja estritamente necessrio em um contexto particular. Por exemplo, um sistema personalizado de jornais eletrnicos, impressos em casa, poderia ter o perfil dos interesses do usurio e ser utilizado para selecionar e imprimir s os artigos e anncios com mais probabilidade de ser lidos. (4) o funcionamento inteligente, que se refere atribuio de uma maior inteligncia aos mecanismos e sistemas que necessitam deste recurso, permitindo, assim, a reduo do desperdcio. Por exemplo, um sistema elementar permite acender e apagar as luzes e

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aparelhos de uma casa. Um sistema ligeiramente mais sofisticado troca alguns interruptores por temporizadores, mas caso se pretenda uma eficcia ainda maior, necessrio um sistema que conhea a forma de vida do usurio, que descubra as pautas dinmicas de variao das tarifas eltricas e que faa funcionar, de forma tima, a iluminao, a calefao, o ar condicionado e os eletrodomsticos, seguindo um modelo de previso mantido e atualizado permanentemente. (5) a transformao suave, que se relaciona possibilidade de serem criados bairros e cidades completamente novos, organizados no intuito de tirar proveito das novas oportunidades de desmaterializao, desmobilizao, personalizao em massa e

funcionamento inteligente. Nas zonas mais desenvolvidas, a tarefa primordial ser a de adaptar os edifcios e espaos pblicos existentes para satisfazerem necessidades muito diferentes das que orientaram sua construo original. A nova infra-estrutura ser mais moderada e menos nociva em seus efeitos fsicos. Em muitos casos, a integrao poder acontecer de forma quase invisvel. O espao servido eletronicamente para o trabalho na informao no ter que estar concentrado em grandes reas contguas, como nas reas industriais e comerciais das cidades atuais, e, ao contrrio das instalaes industriais, no afetar negativamente a qualidade das zonas de entorno. Segundo Mitchell, estas seriam as caractersticas das novas cidades inteligentes. No sculo XXI, a condio da urbanidade civilizada pode basear-se menos na acumulao de objetos e mais no fluxo de informao, menos na centralidade geogrfica e mais na conectividade eletrnica, menos no aumento de consumo de recursos escassos e mais em sua gesto inteligente. Poderemos adaptar os lugares existentes s novas necessidades, sem precisar demolir as estruturas fsicas e construir novas. Os lugares fsicos e os virtuais funcionaro de forma interdependente e, em geral, se complementaro mutuamente dentro de

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um modelo de vida urbana em transformao, ao invs de substituirmos uns pelos outros conforme os modelos existentes. evidente que esta transformao engloba o conceito de cidado que passa a participar de mltiplas comunidades, dispersas, superpostas, atravs de distintos meios eletrnicos navegando em lugares pblicos virtuais, participando em reunio preparadas eletronicamente em lugares remotos . O autor afirma que, atualmente, somos habitantes de entornos eletrnicos, em lugar de mero usurios de artefatos informacionais.

2.8 A cidade nodal O conceito de cidade nodal tal como concebido por Kok-Meng Tan24, professor na Universidade Nacional de Singapura tem como base a transformao urbana dos ltimos 30 anos em Singapura, mas tambm pode servir de modelo de desenvolvimento para muitas cidades asiticas, nor