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A cidade nas fronteiras do legal e ilegal ARGVMENTVM Editora ARGVMENTVM A cidade nas fronteiras do legal e ilegal Vera da Silva Telles Vera da Silva Telles “Durante dez anos, em diálogo intenso com uma equipe de jovens pesquisadores, Vera Telles interrogou as tramas, as dobras e os percursos que formam a tessitura de São Paulo. O pressuposto era de que a cidade havia mudado; e, para en- tender essa mudança, seria preciso produzir descrições sig- nificativas, flagrar cenas capazes de pôr em evidência certas linhas pouco visíveis da dinâmica urbana. Iniciou-se assim um trabalho cumulativo, de clara inspiração antropológica, com um apelo forte em direção a uma etnografia “experi- mental” – uma etnografia capaz de inventar seus próprios parâmetros no ato mesmo da investigação; capaz de cons- truir experimentalmente seu próprio objeto, como relembra a autora em diversos momentos. Uma imagem surpreenden- te de São Paulo se desenha a partir daí. Mas não só. Emerge também um objeto “cidade”, construído graças aos parâme- tros que a pesquisa ajudou a revelar. (...)” Angelina Peralva Socióloga, professora da Universidade de Toulouse Le Mirail, França Paulo, ao longo dos anos 1990 e 2000, de um vasto mercado informal de bens de consumo e serviços orientados para o mundo popular favoreceu a ex- pansão de oportunidades não assalariadas de tra- balho – trabalho autônomo, conta própria. (...) O terceiro parâmetro em torno do qual o livro se organiza remete à maneira pela qual a globalização transformou a vida urbana – através da financeiri- zação do consumo popular, com a generalização do uso dos cartões de crédito, mesmo entre os seg- mentos mais pauperizados, e com a consequente generalização do endividamento, conforme mos- tra a pesquisa de Claudia Sciré. Como não reco- nhecer nesse fenômeno a marca da indústria fi- nanceira – a “financial industry”, como se designa o mercado financeiro no mundo anglo-saxônico – com seus produtos adaptados aos mais diversos tipos de público, inclusive os mais pobres? O quarto parâmetro é provavelmente o mais im- portante, posto que também o mais transversal: refere-se ao “embaralhamento” – e a expressão é particularmente oportuna neste caso – das fron- teiras da legalidade. Do trabalhador honesto que, nas horas vagas, enrola papelotes de cocaína para melhorar a renda no fim do mês ao comerciante que altera o preço dos produtos conforme sejam, ou não, faturados, a cidade que Vera Telles nos dá a ver transita descomplexada entre práticas legais e ilegais, lícitas e ilícitas. (...) A importância desses cruzamentos entre o legal e o ilegal, entre o lícito e o ilícito na caracterização da vida urbana paulistana corre o risco de dar ao leitor uma imagem negativa e desesperada da ci- dade. Tanto mais que o livro resgata uma literatu- ra que acompanhou a autora ao longo desses dez anos e com a qual ela dialogou. Vera Telles flagra uma dinâmica de mudança, en- tre o que desaparece e o que se reconstrói. O pro- cesso é desconcertante, às vezes violento, mas a esperança vem da história. É ela que anuncia dias melhores no nosso caminhar. Angelina Peralva Socióloga, professora da Universidade de Toulouse Le Mirail, França Durante dez anos, em diálogo intenso com uma equipe de jovens pesquisadores, Vera Telles inter- rogou as tramas, as dobras e os percursos que for- mam a tessitura de São Paulo. O pressuposto era de que a cidade havia mudado; e, para entender essa mudança, seria preciso produzir descrições significativas, flagrar cenas capazes de pôr em evi- dência certas linhas pouco visíveis da dinâmica urbana. Iniciou-se assim um trabalho cumulativo, de clara inspiração antropológica, com um apelo forte em direção a uma etnografia “experimental” – uma etnografia capaz de inventar seus próprios parâmetros no ato mesmo da investigação; capaz de construir experimentalmente seu próprio obje- to, como relembra a autora em diversos momen- tos. Uma imagem surpreendente de São Paulo se desenha a partir daí. Mas não só. Emerge também um objeto “cidade”, construído graças aos parâme- tros que a pesquisa ajudou a revelar. Primeiro parâmetro, a mobilidade. Sua impor- tância atual sinaliza o fim da “cidade fordista” – metáfora através da qual se designou um mundo urbano-industrial organizado em torno do traba- lho assalariado, em torno da relação binária casa- trabalho, da ordenação hierárquica dos territórios e dos efeitos de segregação que dali derivavam. Tais clivagens se “embaralharam”. Circular na ci- dade (e alhures) é uma resposta aos tempos que correm, em que competências novas e especiais – transitar em meios sociais heterogêneos, cavar oportunidades, construir redes de sociabilidade e espaços de iniciativa – são estratégias de sobrevi- vência e participação requeridas dos pobres, como dos ricos. No mundo popular, a mobilidade é uma característica geracional: ela define a experiência de uma juventude que já não hesita em atravessar as fronteiras de seu meio social de origem, pre- mida pelas novas e precárias formas de trabalho (muito diferentes das que conheceram seus pais), e também marcada pelas possibilidades de acesso a novos equipamentos urbanos. O segundo parâmetro para o qual o livro aponta é o da relevância do consumo do ponto de vista do reordenamento da vida urbana. O tema em pauta não é o da sedução inerente às chamadas “socieda- des de consumo” – é sim, mais bem, o do impacto econômico dos mercados de consumo popular e o da importância que eles adquirem no contexto da mundialização. A progressiva expansão em São

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A cidade nas fronteiras do legal e ilegal

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era da Silva Telles

Vera da Silva Telles

“Durante dez anos, em diálogo intenso com uma equipe de jovens pesquisadores, Vera Telles interrogou as tramas, as dobras e os percursos que formam a tessitura de São Paulo. O pressuposto era de que a cidade havia mudado; e, para en-tender essa mudança, seria preciso produzir descrições sig-nifi cativas, fl agrar cenas capazes de pôr em evidência certas linhas pouco visíveis da dinâmica urbana. Iniciou-se assim um trabalho cumulativo, de clara inspiração antropológica, com um apelo forte em direção a uma etnografi a “experi-mental” – uma etnografi a capaz de inventar seus próprios parâmetros no ato mesmo da investigação; capaz de cons-truir experimentalmente seu próprio objeto, como relembra a autora em diversos momentos. Uma imagem surpreenden-te de São Paulo se desenha a partir daí. Mas não só. Emerge também um objeto “cidade”, construído graças aos parâme-tros que a pesquisa ajudou a revelar. (...)”

Angelina PeralvaSocióloga, professora da

Universidade de Toulouse Le Mirail, França

Paulo, ao longo dos anos 1990 e 2000, de um vasto mercado informal de bens de consumo e serviços orientados para o mundo popular favoreceu a ex-pansão de oportunidades não assalariadas de tra-balho – trabalho autônomo, conta própria. (...)

O terceiro parâmetro em torno do qual o livro se organiza remete à maneira pela qual a globalização transformou a vida urbana – através da fi nanceiri-zação do consumo popular, com a generalização do uso dos cartões de crédito, mesmo entre os seg-mentos mais pauperizados, e com a consequente generalização do endividamento, conforme mos-tra a pesquisa de Claudia Sciré. Como não reco-nhecer nesse fenômeno a marca da indústria fi -nanceira – a “fi nancial industry”, como se designa o mercado fi nanceiro no mundo anglo-saxônico– com seus produtos adaptados aos mais diversostipos de público, inclusive os mais pobres?

O quarto parâmetro é provavelmente o mais im-portante, posto que também o mais transversal: refere-se ao “embaralhamento” – e a expressão é particularmente oportuna neste caso – das fron-teiras da legalidade. Do trabalhador honesto que, nas horas vagas, enrola papelotes de cocaína para melhorar a renda no fi m do mês ao comerciante que altera o preço dos produtos conforme sejam, ou não, faturados, a cidade que Vera Telles nos dá a ver transita descomplexada entre práticas legais e ilegais, lícitas e ilícitas. (...)

A importância desses cruzamentos entre o legal e o ilegal, entre o lícito e o ilícito na caracterizaçãoda vida urbana paulistana corre o risco de dar ao leitor uma imagem negativa e desesperada da ci-dade. Tanto mais que o livro resgata uma literatu-ra que acompanhou a autora ao longo desses dez anos e com a qual ela dialogou.

Vera Telles fl agra uma dinâmica de mudança, en-tre o que desaparece e o que se reconstrói. O pro-cesso é desconcertante, às vezes violento, mas a esperança vem da história. É ela que anuncia dias melhores no nosso caminhar.

Angelina PeralvaSocióloga, professora da

Universidade de Toulouse Le Mirail, França

Durante dez anos, em diálogo intenso com uma equipe de jovens pesquisadores, Vera Telles inter-rogou as tramas, as dobras e os percursos que for-mam a tessitura de São Paulo. O pressuposto era de que a cidade havia mudado; e, para entender essa mudança, seria preciso produzir descrições signifi cativas, fl agrar cenas capazes de pôr em evi-dência certas linhas pouco visíveis da dinâmica urbana. Iniciou-se assim um trabalho cumulativo, de clara inspiração antropológica, com um apelo forte em direção a uma etnografi a “experimental” – uma etnografi a capaz de inventar seus própriosparâmetros no ato mesmo da investigação; capaz de construir experimentalmente seu próprio obje-to, como relembra a autora em diversos momen-tos. Uma imagem surpreendente de São Paulo se desenha a partir daí. Mas não só. Emerge também um objeto “cidade”, construído graças aos parâme-tros que a pesquisa ajudou a revelar.

Primeiro parâmetro, a mobilidade. Sua impor-tância atual sinaliza o fi m da “cidade fordista” – metáfora através da qual se designou um mundo urbano-industrial organizado em torno do traba-lho assalariado, em torno da relação binária casa-trabalho, da ordenação hierárquica dos territórios e dos efeitos de segregação que dali derivavam. Tais clivagens se “embaralharam”. Circular na ci-dade (e alhures) é uma resposta aos tempos que correm, em que competências novas e especiais – transitar em meios sociais heterogêneos, cavaroportunidades, construir redes de sociabilidade e espaços de iniciativa – são estratégias de sobrevi-vência e participação requeridas dos pobres, como dos ricos. No mundo popular, a mobilidade é uma característica geracional: ela defi ne a experiência de uma juventude que já não hesita em atravessar as fronteiras de seu meio social de origem, pre-mida pelas novas e precárias formas de trabalho (muito diferentes das que conheceram seus pais), e também marcada pelas possibilidades de acesso a novos equipamentos urbanos.

O segundo parâmetro para o qual o livro aponta é o da relevância do consumo do ponto de vista doreordenamento da vida urbana. O tema em pauta não é o da sedução inerente às chamadas “socieda-des de consumo” – é sim, mais bem, o do impacto econômico dos mercados de consumo popular e o da importância que eles adquirem no contextoda mundialização. A progressiva expansão em São

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ARGVMENTVMBelo Horizonte

2010

A cidade nas fronteiras do legal e ilegal

Vera da Silva Telles

O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para a formação de recursos humanos.

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Todos os direitos reservados à ARGVMENTVM Editora Ltda.

© Vera da Silva Telles

As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seu autor e não expressam necessariamente a posição da editora.

ARGVMENTVMEditora Ltda.

Rua dos Caetés, 530 sala 1113 – CentroBelo Horizonte. MG. Brasil

Telefax: (31) 3212 9444www.argvmentvmeditora.com.br

CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE | SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVRO, RJ

.

CONSELHO EDITORIAL

COLEÇÃO SOCIEDADE & CULTURA

Elisa Pereira Reis | UFRJ

Leopoldo Waizbort | USP

Renan Springer de Freitas | UFMG

Ruben George Oliven | UFRGS

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Sumário

Apresentação .........................................................................................7

Introdução ............................................................................................9

PRIMEIRA PARTE

Experimentações

CAPÍTULO 1

A cidade e suas questões .....................................................................55

Interrogando realidades urbanas em mutação ..................................... 68

Pontos de infl exão, questões em discussão ............................................72

CAPÍTULO 2

Perspectivas descritivas ........................................................................81

A cidade em perspectiva: seguindo os fl uxos das mobilidades urbanas ... 86

Deslocamentos: a produção do espaço ................................................. 86Confl itos e disputas no e pelo espaço ....................................... 88Temporalidades urbanas ......................................................... 89O tempo político da cidade ...................................................... 90

Percursos: trabalho e as tramas da cidade ........................................... 93Modulações: os fl uxos urbanos entre espaços, territórios e cidade .......... 96

Histórias de um perueiro ....................................................... 100Histórias de um motoqueiro ................................................... 103

Reatando pontos e linhas: os elos perdidos da política .........................106

CAPÍTULO 3

Deslocamentos: percursos e experiência urbana ...................................109

Trabalho e cidade: relações redefi nidas .............................................111

Personagens urbanos e seus percursos ..............................................121

O cenário: nas franjas da “cidade global” ...........................................122A cartografi a dos empregos ............................................................... 123Os tortuosos caminhos das melhorias urbanas .................................... 124O Xerife ......................................................................................... 125

Diferenças de tempos, diferenças de geração .....................................127O patriarca Genésio e sua extensa família ......................................... 128

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Trabalho, moradia e os tempos da cidade .......................................... 128Na virada dos tempos ....................................................................... 132

Os jovens empreendedores: nos circuitos faiscantes dos serviços globalizados ....................................................... 132O trabalhador precário: no circuito fechado das agências de trabalho temporário ...................................... 136O segurança: nos circuitos da segurança privada, onde todos os fi os se cruzam ............................................ 140

SEGUNDA PARTE

Deslocando o ponto da crítica

CAPÍTULO 4

Tramas da cidade: fronteiras incertas do informal, ilegal, ilícito .......... 147

CAPÍTULO 5

Nas dobras do legal e ilegal: ilegalismos e jogos de poder ...................169

Nas fronteiras incertas do informal, ilegal e ilícito ..............................172

Formas contemporâneas de produção e circulação de riquezas ............ 174

Dinâmicas urbanas redefi nidas .........................................................183

A gestão diferencial dos ilegalismos ...................................................187

Comércio informal e mercadorias políticas ......................................... 190A periferia é o lugar onde há “ou o acerto ou a morte,

mas não a prisão” ....................................................................... 194

CAPÍTULO 6

Ilegalismos e a gestão (em disputa) da ordem ......................................203

Primeiro momento, anos 1980: o mundo do trabalho e os justiceiros ....219

Segundo momento, anos 1990: a erosão do mundo do trabalho e os “matadores” ...............................................................................234

Terceiro momento, anos 2000: novos ilegalismos e o trafi cante ........... 244

Nem conclusões nem considerações fi nais ............................................259

Bibliografi a.......................................................................................261

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Apresentação

Uma experimentação, é isto o que se vai encontrar ao longo das páginas deste livro. Não é uma coletânea de textos cuja articulação seria preciso arquitetar pelas vias de alguma unidade teórica exterior ao andamento de cada um, ao modo como cada qual foi produzido, às questões que moveram a sua escritura. Na verdade, o fi o que os articula, todos eles, internamente e em diálogo uns com outros, é essa experimentação cujos sentidos se tenta esclarecer na introdução e, assim eu espero, explicita-se na própria escritura que tenta seguir, desdobrar e também deslocar as questões que não estavam previamente dadas, mas foram se formulando conforme seguíamos as pistas que a pesquisa nos entregava. Experi-mentação como prática de pesquisa, como forma de produção de conhecimento, também como experiência de pensamento. Não diria que isso seja uma “tese” a ser demonstrada. É uma aposta, uma tomada de posição e um exercício de pesquisa, também de escritura.

A pesquisa que esteve na origem deste livro foi lançada em 2001. Uma pesquisa qualitativa, de forte conteúdo etnográfi co, realizada em duas regiões da periferia paulista. Em seu ponto de partida, uma dupla inquietação. Um mundo urbano muito alterado em relação às décadas passadas e que implodia as categorias e re-ferências pelas quais se discutiam a cidade e seus problemas, a “questão urbana”. Mas também um mundo urbano que encenava problemas e dramas sociais que pareciam transbordar os modos como os temas da exclusão social, segregação urbana, pobreza e vulnerabilidade social eram postos, eram tipifi cados e pauta-vam a pesquisa acadêmica. Era preciso prospectar as linhas que se conjugavam nas tramas da cidade e construir outros parâmetros descritivos para colocar em perspectiva (e sob perspectiva crítica) realidades urbanas em mutação. Essa a questão que conduz a primeira parte desse trabalho.

A pesquisa prolongou-se por oito anos, porém não diria que tenha chegado a um ponto fi nal. Abriu-se a um leque de questões que pautam, agora, no momento em que estas linhas estão sendo escritas, um programa de investigação empírica e teórica que apenas se inicia. As inquietações de antes persistem, porém, no seu foco, está a teia de ilegalismos, novos, velhos ou redefi nidos que também tecem as tramas da cidade. No início, achados de pesquisa que preenchiam os nossos diários de campo. E a percepção de que estávamos frente a realidades que não mais poderiam ser discutidas (e descritas) nos termos consagrados nos estudos urbanos, os descompassos entre a cidade legal e ilegal, cifra de uma “modernidade incompleta” para evocar um tema que já foi alvo de discussões e polêmicas, por vezes ácidas, em décadas passadas. O mesmo se poderia se dizer em relação ao desde sempre expansivo mercado informal, agora inteiramente redefi nido e reconfi gurado, pois conectado aos circuitos transnacionais de uma economia globalizada. No centro dinâmico da vida urbana da muito moderna

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São Paulo dos anos 2000, uma transitividade entre o informal, o ilegal e o ilícito. Nas suas dobras, jogos de poder e relações de força nos quais se tem uma chave de inteligibilidade da violência que atravessa a experiência urbana. E que se desdobra no que o fi lósofo Agamben chama de “estados de exceção”, práticas e situações instauradas no centro da vida política (e da normalidade democrática), fazendo estender uma zona de indeterminação entre a lei e a não-lei, terrenos de fronteiras incertas e sempre deslocantes que produzem as fi guras do homo sacer, vida matável, em situações entrelaçadas nas circunstâncias de vida e trabalho dos que habitam ou transitam nesses lugares. Porém, essa a questão que se coloca em discussão na segunda parte: esses espaços de exceção não são lugares vazios, é aí que se fazem a experiência da lei, do Estado, da autoridade, da ordem e seu inverso. Campos de disputa, campos de experiência, talvez se possa dizer, no sentido que Thompson dá a esse termo. Acontecimentos, fatos, experiências que se processam no centro dinâmico da São Paulo globalizada, talvez se tenha aí pistas a serem seguidas se quisermos formular questões que se abram aos problemas postos em nossa atualidade.

Em sua primeira fase, lançada em 2001, a pesquisa contou com a parceria com Robert Cabanes que esteve presente, todos esses anos, nessa prospecção das tramas da cidade, contando com as condições as mais favoráveis propiciadas por um Convênio CNPq-IRD. A partir de 2007, um programa de cooperação franco-brasileiro (Convênio Capes-Cofecub), coordenado em conjunto com An-gelina Peralva, foi especialmente importante para colocar a situação brasileira sob um jogo ampliado de referências, em sintonia com processos semelhantes em curso nos chamados países do Norte (e outros lugares do planeta), o que altera o modo de discutir as questões postas, sobretudo, na segunda parte desse texto. Um jogo de referências que permite circunscrever o plano de atualidade em que as realidades descritas se inscrevem.

A pesquisa realizada em conjunto com Robert Cabanes resultou em um livro, “Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios” (Humanitas, 2006). Três de seus capítulos foram retrabalhados e incorporados na primeira parte desse texto. Na segunda parte, o capítulo 4 é uma versão bastante ampliada de artigo publicado em 2007. 1 O capítulo 5, em sua primeira parte, recupera artigo publicado em 20092 e segue com um texto inteiramente novo. O capítulo 6 foi especialmente produzido para compor esse trabalho.

1 Telles, Vera S. Transitando na linha de sombra, tecendo as tramas da cidade. In: Oliveira, Francisco & Rizek, Cibele S. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007.2 Telles, Vera S. Ilegalismos urbanos e a Cidade. Novos Estudos, Cebrap, v.84, 2009.

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Introdução

São Paulo, como outras tantas grandes cidades do planeta, apresenta um cenário no qual ganham forma e evidência tangível as transformações que, nas últimas décadas, afetaram Estado, economia e sociedade. Em seus espaços e artefatos estão cifrados os modos de circulação e distribuição da riqueza (desi-guais, mais do que nunca), as mutações do trabalho e das formas de emprego (e as legiões de sobrantes do mercado de trabalho), a revolução tecnológica e os serviços de ponta (e as fortalezas globalizadas da cidade), os grandes equi-pamentos de consumo e os circuitos de ampliados do mercado (e a privatização de espaços e serviços urbanos). Acompanhando tudo isso, a economia informal, desde sempre presente na cidade (e no país) expande-se por meio de novas arti-culações entre a tradicional economia de sobrevivência, os mercados locais, que se espalham pelas regiões, mesmo as mais distantes da cidade, e os circuitos globalizados da economia. Trata-se aqui de novas conexões e de uma escala de redefi nições inteiramente em fase com o mundo globalizado, que redesenham espaços e territórios urbanos nas trilhas de redes de subcontratação que chegam aos pontos extremos das periferias pelas vias de uma meada inextricável de in-termediários e intermediações que reativam o trabalho a domicílio e redefi nem o chamado trabalho autônomo, ao mesmo tempo em que os mercados locais são, também eles, redefi nidos na junção das circunstâncias da chamada economia popular com máfi as locais e comércio clandestino de bens lícitos ou ilícitos de procedência variada. Se é verdade que a cidade oferece todos os ingredientes que alimentam os discursos e o imaginário da “cidade global”, com seus artefatos sempre presentes e sempre iguais em todas as grandes metrópoles do planeta, também é verdade que a vida social é atravessada por um universo crescente de ilegalismos que passa pelos circuitos da expansiva economia (e cidade) informal, o chamado comércio de bens ilícitos e o tráfi co de drogas (e seus fl uxos globa-lizados), com suas sabidas (e mal conhecidas) capilaridades nas redes sociais e nas práticas urbanas.

É nesse cenário contrastado que crescem a pobreza, o desemprego e a pre-cariedade urbana. Também a violência, quer dizer, a morte violenta, “morte matada”, como se diz em linguagem popular. Em termos técnicos, na lingua-gem jurídica e policial: homicídios. E a tragédia concentra-se nas periferias da cidade. Não é o caso de falar de números e cifras. Por ora, basta dizer que os pesquisadores acostumados a comparações internacionais não hesitam em dizer que, ao longo dos anos 1990, as cifras chegaram a patamares equivalen-tes aos de regiões ou países em situação de guerra civil ou confl agração letal. Mas, como bem sabemos, todo cuidado é pouco quando de trata de lidar com as proximidades da pobreza e da violência, sobretudo nesses tempos em que nossa velha e persistente, nunca superada, criminalização da pobreza vem sendo

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reatualizada sob formas renovadas, algumas sutis, outras nem tanto, na maior parte dos casos aberta e declarada. Esse é um terreno minado, carregado de pressuposições e lugares-comuns que estabelecem a equação fácil e rápida entre pobreza, desemprego, exclusão, criminalidade e morte violenta, equação que alimenta a obsessão securitária que, também ela, compõe o cenário urbano atual, da mesma forma como alimenta os dispositivos gestionários que mobilizam representantes políticos, operadores sociais, voluntários, agentes comunitários e também a pesquisa acadêmica.

O fato é que não é coisa simples entender o que acontece por esse lado da cidade de São Paulo (não só nela), pois também aqui, no lado pobre (e expansivo) dessas recomposições, o mundo social está também muito alterado. Ponto e contraponto de uma mesma realidade, os capitais globalizados transbordam as fortalezas globais concentradas no moderníssimo e riquíssimo quadrante sudoeste da cidade, fazem expandir os circuitos do consumo de bens materiais e simbólicos que atingem os mercados de consumo popular. Mesmo nas regiões mais distantes da cidade, os circuitos do mercado e os grandes equipamentos de consumo compõem a paisagem urbana. São fl uxos socioeconômicos poderosos que redesenham os espaços urba-nos, redefi nem as dinâmicas locais, redistribuem bloqueios e possibilidades, criam novas clivagens e afetam a economia doméstica, provocando mudanças importantes nas dinâmicas familiares, nas formas de sociabilidade e redes sociais, nas práticas urbanas e seus circuitos. Por outro lado, ao mesmo tempo e no mesmo passo em que ganhou forma a versão brasileira das “metamorfoses da questão social”, os pro-gramas sociais se multiplicaram pelas periferias afora e em torno deles proliferam associações ditas comunitárias que tratam de se converter à lógica gestionária do chamado empreendedorismo social, se credenciar como “parceiras” dos poderes públicos locais e disputar recursos em fundações privadas (e a chamada fi lantropia empresarial) e agências multilaterais, isso em interação com miríades de práticas associativas e ao lado dos movimentos de moradia e suas articulações políticas, partidos e seus agenciamentos locais, igrejas evangélicas (também proliferantes) e suas comunidades de fi éis e, claro, a quase onipresença de ONGs vinculadas a circuitos e redes de natureza diversa e extensão variada. É aí que se vê delinear um mundo social perpassado por toda sorte de ambivalências, entre formas velhas e novas de clientelismo e reinvenções políticas, convergências e disputas, práticas solidárias e acertos (ou desacertos) com máfi as locais e o tráfi co de drogas. É um feixe de mediações em escalas variadas que desenham um mundo social a anos-luz das imagens de desolação das periferias de trinta anos. Seria mesmo possível fazer um longo inventário de microcenas desses territórios atravessados por lógicas e circuitos que transbordam, por tudo e por todos os lados, as fronteiras do que é tomado com muita frequência por “universo da pobreza”. Tudo ao contrário do que é muitas vezes sugerido pelos estudos sobre a pobreza urbana. E, sobretudo, inteiramente ao revés das fi gurações – construídas pelas políticas ditas de inserção social – de uma pobreza encapsulada em suas “comunidades” de referência e nas carências da vida.

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Se as evidências são tangíveis, nem por isso é coisa simples decifrar a di-nâmica dessas transformações. É bem verdade que o ponto de clivagem das novas realidades urbanas em relação às décadas passadas já foi vasculhado por uma extensa agenda de estudos urbanos. Em sintonia com debates então em curso em várias regiões e países do planeta, a pauta dos debates contemplou as relações entre cidade e os fl uxos globalizados do capital, produção do espaço e fi nanceirização da economia, reconfi gurações espaciais e segregação urbana, economia urbana e a nova geografi a da pobreza, reestruturação econômica e vulnerabilidade social. As pesquisas multiplicaram-se sob diversas abordagens teóricas, diferentes procedimentos e escalas de observação, várias medidas da cidade e seus problemas. No entanto, ainda pouco se sabe sobre o modo os pro-cessos em curso redefi nem a dinâmica societária, a ordem das relações sociais e suas hierarquias, as mediações sociais e o jogo dos atores, as práticas urbanas e os usos da cidade. Vistas por esse lado, as realidades urbanas apresentam – e ainda apresentam – desafi os consideráveis. As referências gerais sobre emprego e desemprego, sobre transformações socialdemográfi cas e formas de segregação urbana esclarecem pouco sobre confi gurações societárias que fi zeram emba-ralhar as clivagens sociais e espaciais próprias da “cidade fordista” com suas polaridades bem demarcadas entre centro e periferia, entre trabalho e moradia, entre mercado formal e mercado informal.

Seria quase trivial dizer que está tudo muito alterado em relação às déca-das anteriores. O que antes foi dito e escrito sobre a cidade e seus problemas, a “questão urbana”, parece ter sido esvaziado de sua capacidade descritiva e potência crítica em um mundo que fez revirar de alto a baixo a solo social das questões então em debate. Foi sob esse prisma que, no capítulo I, “A cidade e suas questões”, foi revisitado o debate que corria nos anos 1980. Não como documento de uma época que já se foi e que pode, quando muito, interessar ao inventário bibliográfi co ou revisão histórica exigidos pelos protocolos acadêmicos. Ao contrário, o feixe de referências e coordenadas que pautavam esse debate pode ajudar a refl etir sobre a diferença dos tempos. As relações entre cidade, trabalho e Estado (e a questão nacional) defi niam as coordenadas de um debate que fazia do urbano um ponto de condensação de um conjunto de questões que falavam do país, de sua história e suas destinações possíveis. A cidade – a cidade como questão – aparecia como cifra pela qual o país era tematizado e em torno dela organizava-se um jogo de referências que dava sentido às polêmicas, debates e embates sobre a história, percursos e destinações possíveis da sociedade brasi-leira. Trabalho e reprodução social, classes e confl ito social, contradições urbanas e Estado eram noções (e pares conceituais) que se articulavam e se compunham em proposições formuladas nas pesquisas e ensaios que tratavam da moradia popular e reprodução do capital, entre desigualdades urbanas e relações de classe, entre migração e pobreza urbana, entre reprodução social e Estado. Modos de descrever e fi gurar a ordem das coisas, que era também um modo de identifi car e nomear seus campos de força e horizontes de possíveis.

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Na virada dos tempos (década de 1990), o espaço conceitual (e crítico) em que essas referências circulavam foi desativado, talvez tragado pele vórtice de transformações que fi zeram cortar os nexos que articulavam esses pares concei-tuais, que trouxeram questões que escapavam por todos os lados desses feixes de referência e que fi zeram erodir ou encolher os horizontes de possíveis que alimentavam as apostas políticas que pulsavam em todo esse debate. Isso que se convencionou chamar de desregulação neoliberal em tempos de globalização, fi nanceirização da economia e revolução tecnológica fez por desestabilizar as referências e parâmetros pelos quais pensar a cidade (e o país) e suas questões, ao mesmo tempo em que as realidades urbanas modifi cavam-se em ritmo muito acelerado. Se as conexões que antes articulavam trabalho, cidade e política foram desfeitas é como se, depois, cada um desses termos passasse a polarizar outros feixes de questões e compor outras relações que escapam do espaço conceitual no qual o debate dos anos 1980 se processava. É desse ponto de clivagem que partimos. Se antes a questão urbana era defi nida sob a perspectiva (e promessa) do progresso, da mudança social e do desenvolvimento (anos 60/70) e, depois, da construção democrática e da universalização dos direitos (anos 80), agora os horizontes estão mais encolhidos, o debate é em grande parte conjugado no presente imediato das urgências do momento, o problemas urbanos tendem a deslizar e a se confundir com os problemas da gestão urbana e a pesquisa social parece em grande parte pautada pelos imperativos de um pragmatismo gestionário das políticas sociais voltadas às versões brasileiras dos quartiers diffi ciles.

É essa diferença dos tempos que lança a interrogação quanto ao plano de referência a partir do qual descrever e colocar em perspectiva (e sob perspectiva crítica) a nossa complicação atual. Este o duplo desafi o: a construção de parâ-metros críticos implica ao mesmo tempo a construção de parâmetros descritivos para colocar em perspectiva realidades urbanas em mutação. Esta a questão que se tentou enfrentar ao longo deste livro.

Entre as tipifi cações (fi cções?) das chamadas “populações em situação de risco” e as análises gerais, o outro lado dos debates atuais, sobre economia urbana e a “cidade global”, há todo um entramado social que resta a conhecer, que não cabe em modelos polares de análise pautados pelas noções de dualização social, que escapa às categorias utilizadas para a caracterização da pobreza urbana e que transborda por todos os lados do perímetro estreito dos “pontos críticos” de vulnerabilidade social identifi cados por indicadores sociais. As tramas da cidade: este, o foco da pesquisa que esteve na origem deste livro.

A pesquisa benefi ciou-se de um programa de cooperação franco-brasileira (IRD-CNPq) e é grandemente devedora da parceria de Robert Cabanes (IRD), que se lançou no trabalho de campo junto com uma equipe de jovens pesqui-sadores, todos eles alunos de graduação e pós-graduandos do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. Essa pesquisa resultou em uma publicação coletiva (Telles & Cabanes, 2006). Alguns de seus capítulos foram retrabalhados e incorporados na primeira parte deste livro (capítulos 1, 2 e 3).

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Quanto ao mais, tudo o que aqui será apresentado alimenta-se desse empreen-dimento de pesquisa, não apenas do que foi exposto nessa publicação conjunta, mas também ou sobretudo dos desdobramentos dessa pesquisa levados a efeito por esse coletivo de jovens pesquisadores cujas questões e achados de pesquisa foram, tanto quanto as minhas próprias, sempre e isso desde o início, discutidas conjuntamente.

Lançada em 2001, essa foi uma pesquisa movida por essa interrogação ao mesmo tempo empírica e teórica lançada pelos desafi os postos pela virada dos tempos – um trabalho de investigação que, no seu próprio andamento, fosse capaz de fornecer os elementos para se construir o plano de referência a partir do qual colocar em perspectiva essas realidades urbanas redefi nidas no curso dos últimos anos.

Optamos por um percurso exploratório. À distância de explicações gerais sobre a “cidade e sua crise” e também de categorias prévias ou tipifi cações dos pobres urbanos e excluídos do mercado de trabalho, tentamos ler essas mudanças a partir das trajetórias urbanas de indivíduos e suas famílias. É sob esse prisma que tentamos conhecer algo das tramas sociais que confi guram espaços urbanos. A pesquisa está longe de oferecer um panorama geral da cidade e suas transfor-mações recentes, e nem foi esse o objetivo. Mas nem por isso essas trajetórias podem ser tomadas como ilustração ou demonstração de algo já sabido e dito como exclusão social ou segregação urbana. No curso de suas vidas, indivíduos e suas famílias atravessam espaços sociais diversos, transitam entre códigos diferentes, seus percursos passam através de diversas fronteiras e são esses traçados que podem nos informar sobre a tessitura do mundo urbano, seus bloqueios e seus pontos de tensão, mas também os campos de gravitação da experiência urbana nesse cenário tão modifi cado. Entre os deslocamentos espaciais e expedientes mobilizados para o acesso à moradia, os percursos do trabalho e suas infl exões recentes, os agenciamentos da vida cotidiana e os circuitos que articulam moradia e a cidade, seus espaços e serviços, essas trajetórias são pontuadas por situações que podem ser vistas como pontos de condensação de práticas, mediações e mediadores nos quais estão cifrados os processos em curso.

É um outro modo de interrogar essas realidades, que não parte de defi nições prévias e muitas vezes modelares de exclusão social, de segregação urbana ou de pobreza e que, no mais das vezes, deixam escapar a rede de relações e práticas que conformam um espaço social. Ao seguir os traçados dos percursos urbanos de indivíduos e suas famílias, é a própria cidade que vai se perfi lando. Não como contexto dado, geral e homogêneo, em função do qual situar “casos” e explicá-los em suas determinações. São múltiplos os perfi s da cidade que vão se delineando nos contextos variados nos quais se inscrevem os atores e o jogo tenso (e por vezes confl itivo) de suas relações. Situadas em seus contextos de referência e nos territórios traçados pelos percursos individuais e coletivos, essas trajetórias operam como prismas pelos quais o mundo urbano vai ganhando forma em suas diferentes modulações. São elas, essas trajetórias, que nos orientaram

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nessa prospecção de realidades em mutação, abrindo-se a novas questões e novas interrogações que se colocam no andamento dessa “construção exploratória do objeto” de que fala Bernard Lepetit (1996).

A perspectiva descritiva que as trajetórias urbanas propiciam é questão tratada no capítulo dois, que leva justamente este título, “Perspectivas descritivas”. Uma descrição da cidade, seguindo as trilhas das trajetórias urbanas. Um modo de descrever o urbano colocando em foco a trama das mediações e conexões que articulam e ao mesmo tempo transbordam campos de práticas nas suas formas estabelecidas (trabalho, moradia, consumo e serviços, etc.), estabelecendo zonas de contiguidade e criando passagens onde não se esperava que acontecessem. Não contextos ou circunstâncias de localização, mas algo que é constitutivo de situações que traçam o seu próprio território feito de práticas, circuitos de deslocamentos, zonas de contiguidade e conexões com outros pontos de referência que conformam o social nas suas fronteiras ou limiares, bloqueios e possibilidades.

No seu conjunto, na contraposição entre histórias e percursos diversos, são as modulações da cidade (e história urbana) que vão se perfi lando nas diferentes confi gurações de espaço-tempo traçadas por essas histórias. Como pode ser visto no capítulo três, “Deslocamentos: percursos e experiência urbana”, os diferentes perfi s da cidade podem se projetar a partir de um mesmo local ou de uma mesma família. E é isso que nos pode oferecer uma chave para apreender as dinâmicas urbanas que defi nem as condições de acesso à cidade e seus espaços, a trama dos atores, as modalidades de apropriação dos espaços e seus recursos. É jus-tamente nessas tramas da cidade que se aloja a complicação atual e que será preciso, por isso mesmo, auscultar. É nessas tramas que os lances da vida são jogados, é aí que se processam as exclusões, as fraturas, os bloqueios. Também as capturas na hoje extensa e multifacetada malha de ilegalismos que perpassam a cidade inteira e que operam, também elas, nas dobras do legal-ilegal, como outras tantas formas de junção e conjugação da trama social. Aí também os elos perdidos da política, tragados que foram pelo princípio gestionário que trata das “pontas”, da dita governança econômica e, de outro lado, da gestão do social e administração de suas urgências. No meio, isto é, em tudo o que importa, não existe o vazio que expressões como a de exclusão social podem sugerir, porém os fi os que tecem a tapeçaria do mundo social, as tramas da cidade e nas quais estão em jogo os sentidos da vida e das formas de vida.

Menos uma tese, mais uma experimentação. É assim que eu defi niria o que o leitor vai encontrar ao longo destas páginas. Mais interessante do que apre-sentar as conclusões (se é que existem), o que importa são os percursos pelos quais se tentou armar um campo de investigação, as questões que surgiram e as perguntas que, no andamento desse trabalho, redirecionaram a pesquisa, tanto quanto os parâmetros teóricos para lidar com as questões que se impuseram nesse percurso de prospecção dos mundos urbanos.

Mas, então, talvez seja o caso de explicitar o que aqui se entende por expe-rimentação e prospecção dos mundos urbanos. Que se diga, desde logo: não

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se trata de um trabalho prévio, as preliminares, fase preparatória do que quer que seja e que venha se apresentar, depois, como principal ou conclusivo. É um modo de produção de conhecimento. E uma escolha que deriva, em grande medida, do viés pelo qual se tentou apreender as linhas de força que atravessam e conformam os mundos urbanos: seguir as mobilidades urbanas, perseguir os traços das trajetórias de homens e mulheres nos espaços da cidade.

Mobilidades urbanas: como bem nota Jacques Brun (1993), as relações entre cidade e mobilidade – de mercadorias, de capitais, de informações, de ideias, de comportamentos e sobretudo de pessoas – é um tema clássico nos estudos sobre o urbano. Desde os fundadores da Escola de Chicago, seguindo linha-gens teóricas diversas e sob abordagens também diferenciadas, as mobilidades urbanas e os deslocamentos espaciais, ocupacionais e habitacionais foram to-mados e assim pesquisados como cifra para o entendimento das transformações urbanas, de suas linhas de ruptura e de fratura, mas também de recomposições e convergências, processos multifacetados por onde diferenciações sociais vão se desenhando, ganhando forma e materialidade nos espaços das cidades pes-quisadas (cf. Grafmayer, 1995; Grafmayer e Joseph, 1979). No correr dos anos 1990, a questão ganhou um renovado interesse no contexto de transformações urbanas que se seguiam em ritmo acelerado, alterando tempos e espaços da experiência social, redefi nindo escalas de distância e proximidade, alterando práticas sociais e seus circuitos, modalidades de acesso à cidade e seus espaços. O estudo das mobilidades urbana foi relançado como perspectiva que prometia superar muitas das limitações da noções, categorias e parâmetros estabelecidos para medir e caracterizar a segregação urbana, já que transbordados por uma complexidade inédita das realidades que estavam a exigir abordagens aptas a captar movimentos e deslocamentos, práticas e jogos redefi nidos de atores que desfaziam os parâmetros conhecidos da “cidade fordista” com seus espaços, tempos e ritmos defi nidos nas binaridades bem estabelecidas entre trabalho e moradia, centro e periferia, produção e reprodução (cf. Brun, 1993; Levy e Dureau, 2002, Bonnet & Desjeux, 2000).

Mais recentemente, os processos de globalização colocaram a questão da mobilidade no centro de um empreendimento ao mesmo tempo teórico e empírico para dar conta das transformações que reviraram de alto a baixo as cidades (e sociedades). Não por acaso, a noção (ou metáfora, em alguns casos) de fl uxos vem sendo mobilizada para caracterizar essa intensa e ampla mobilidade de capitais, mercadorias e trabalho, informações e imagens, tecnologias e técnicas (Lasch & Urry, 1994; Hannerz, 1996; Appadurai, 1996; Castells, 1999), que atravessa todas as regiões do planeta, ignorando fronteiras nacionais, criando relações de transversalidades entre povos e culturas, mercados e economias, formas de vida e práticas sociais. Alain Tarrius (2000) propõe o “paradigma da mobilidade” como perspectiva descritiva e analítica para apreender a trama de relações sociais urdidas nos pontos de entrecruzamento de mudanças que afetam espaços econômicos, normas sociais e racionalidades políticas. John Urry

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(2000) faz um verdadeiro manifesto pela sociologia dos fl uidos em contraposição a análises baseadas em unidades estáticas e lugares fi xos próprios da sociologia clássica. Outros vão chamar a atenção para o fato de que os deslocamentos de bens, mercadorias, informações e de pessoas são fortemente mediados por redes sociotécnicas e novas tecnologias (Latour,1994; Appadurai,1986). Appadurai sugere que a combinação de novas formas de mobilidade e novas tecnologias de comunicação afeta a imaginação social e aciona as diversas fi guras do que o autor chama de “mundos imaginados” (no lugar das comunidades imaginadas de Benedict Anderson). Hannerz (1996), por sua vez, vai enfatizar a cerrada trama de interconectividade entre espaços e territórios, que perpassa as formas cotidianas de vida e os diferentes espaços de interação, o que afeta os próprios sentidos de local e localidades, bem como os dispositivos de pesquisa capazes de identifi car esse jogo variado de escalas e mediações que perpassam os mundos sociais, questão também discutida por Appadurai (e outros).

São registros diferentes pelos quais a mobilidade é colocada no centro da indagação sobre a cidade e suas mutações, cada qual se abrindo ao feixe de questões postas pelo tempo em que foram formuladas e as temporalidades pró-prias das cidades em seus contextos de referência. Certamente, a discussão hoje está muito distante das ênfases dos pesquisadores que, no início do século XX, debruçavam-se sobre uma dinâmica urbana então em constituição, fervilhando na Chicago do começo do século, formulando suas questões sob o ponto de vista da especifi cidade do urbano, da urbanidade e do cosmopolitismo, opostos globalmente e estruturalmente ao rural e às características (certamente ideali-zadas) próprias do vilarejo. No debate contemporâneo essas questões perderam pertinência. Não por acaso vem-se chamando a atenção para a implosão das bina-ridades clássicas das ciências do social e do urbano, tais como centro-periferia, tradição e modernidade, atraso e progresso, ao mesmo tempo em que a escala e a dinâmica dos atuais deslocamentos humanos não podem mais ser vistos nos termos clássicos dos estudos de migração e modernização (cf. Appadurai, 1996; Tarrius, 2000): migrantes, refugiados, populações deslocadas, trabalha-dores em movimento por entre regiões e localidades – movimentos que afetam a tessitura das tradicionais comunidades de referência, tanto do ponto de vista dessas populações-em-movimento quanto no registro do modo como são redefi -nidas para as populações sedentárias. Deslocamentos e formas de mobilidade, cada qual impulsionado por feixes singulares de circunstâncias e causalidades (porém, com ressonâncias entre uns e outros): travessia de fronteiras, ocupação de regiões limítrofes, deslocamentos de trabalho e trabalhadores seguindo os fl uxos dos capitais e das redes de extensão variada por onde opera o chamado capitalismo fl exível, ao mesmo tempo em que o traçado desses deslocamentos tem impactos consideráveis sobre a reconfi guração dos espaços urbanos e a morfologia das cidades.

O inventário dessa discussão, bem como das polêmicas nela inscritas, poderia ir longe. Por ora, importa tão-somente chamar a atenção para algumas questões

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importantes para bem situar o andamento deste livro e os sentidos da pesquisa exploratória aqui proposta.

De partida, é importante dizer: a questão da mobilidade não diz respeito a um tema ou um objeto que viria se justapor como complemento ou acréscimo a outros previamente defi nidos no campo empírico das ciências sociais. Tampouco poderia ser defi nida como um contexto geral (a globalização) a partir do qual situar as realidades estudadas. É um plano de referência que redefi ne o quadro descritivo (e analítico) das situações investigadas, colocando em mira a teia de conexões e mediações que as atravessavam. Em outros termos, é um plano de referência que (re)defi ne o modo de construção de nossos objetos e nossas questões de pesquisa.

A questão da mobilidade inscreve-se em um espaço conceitual que mobiliza as noções conexas de circulação e de acessibilidade – acesso (e seus bloqueios) a espaços, serviços, artefatos, bens e produtos que a cidade oferece e faz cir-cular de formas desiguais e assimétricas nos espaços urbanos. É um modo de pensar a cidade (e seus problemas) a partir de referências outras em relação ao que fi cou consagrado por uma certa linhagem de estudos urbanos e pela qual a cidade é vista sob o ângulo exclusivo da habitação e seu entorno imediato, dito comunitário ou dos problemas locais a serem geridos de forma efi caz por pro-gramas localizados. A cidade é feita de cruzamentos e passagens, é atravessada por experiências que se fazem justamente nos limiares de universos distintos, de seus pontos de conexão e das redes sociotécnicas que os atravessam e articulam em um mesmo plano de atualidade. É isso que introduz a questão da circulação, da mobilidade e da acessibilidade como prisma para a problematização da ci-dade e suas questões. Como diz Isaac Joseph (1998: 92), pensar a cidade como domínio da circulação e do acessível (e seus bloqueios) é, de partida, “dizer que ela é tudo, menos o lugar de formação de uma comunidade”. Apreender os bairros, em particular os chamados bairros desfavorecidos, diz Joseph, a partir da cidade é pensá-los no plural, “situados em um plano de consistência que lhes autoriza a permanecer urbanos”, já que atravessados por uma teia de redes e circuitos em escalas diversas, pontos de conexão entre territórios diversos, transversalidades de experiências feitas em seus limiares e nos quais pulsa a vida urbana e seus problemas.

A questão proposta por Joseph é especialmente interessante, sobretudo pelo contexto polêmico em que foi formulada: um modo de pensar a cidade e suas questões que “signifi ca forçosamente um ponto crítico em relação a um vetor da fi losofi a do habitar ancorada na experiência da proximidade e do mundo à mão” e que está hoje “no coração de práticas gestionárias que buscam corrigir um défi cit de urbanidade” sob o primado de lógicas normativas e concepções securitárias, também redutoras, enfatiza Joseph, do local posto como lugar por excelência de formação de identidades e inserção social (cf. Joseph, 1998: 92-93). Em outros termos: a questão da mobilidade defi ne um plano de referência que permite situar criticamente os dispositivos gestionários muitas vezes apresentados

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como exemplos virtuosos de “cidadania local”. No entanto, mais interessante e mais fecundo do que entrar em polêmicas (no mais das vezes inócuas), está justamente no parâmetro descritivo ou um dispositivo cognitivo que permita deslocar a perspectiva pela qual compor e ordenar os fatos, mostrar conexões e feixes de relações que não se deixariam ver sob o prisma da “comunidade”. Outros modos de descrever as coisas, permitindo a partir daí colocar uma ordem de questões que não podem ser resolvidas nos termos habituais, abrindo por isso mesmo a fenda a partir da qual exercitar a imaginação crítica. É justamen-te nesse sentido que aqui se diz que a construção de parâmetros descritivos é também a construção de parâmetros críticos. Não estou segura de termos sido bem sucedidos nessa empreitada. Mas é uma aposta.

Um plano de referência e um espaço conceitual, a questão da mobilidade supõe (e exige) uma estratégia descritiva voltada aos pontos de conexão e inter-secção dos circuitos entrelaçados ou superpostos que fazem a trama urbana. Isso signifi ca dizer que o entendimento das dinâmicas locais supõe (e exige) seguir – e seguir no sentido literal, empiricamente – as linhas entrelaçadas que compõem o social, porém transbordam amplamente o perímetro local, justa-mente porque fazem o traçado de redes superpostas, de escalas variadas, que atravessam e defi nem (ou redefi nem) cada situação, colocando-as ao mesmo tempo em ressonância com outras situações de tempo e espaço. Concretamente, a questão das mobilidades impõe uma certa modalidade de pesquisa: algo como a traçabilidade das práticas, suas mediações e conexões, a partir de “postos de observação” ancorados em situações defi nidas.

Tomemos um exemplo: nos pontos extremos da periferia leste da cidade de São Paulo, o tradicional e hoje renovado trabalho a domicílio. Sob uma certa perspectiva, exemplo paradigmático da atividade de sobrevivência própria ao mundo da pobreza com todas as limitações e vulnerabilidades que lhe são defi ni-doras nos pontos de junção entre precariedade (ou exclusão) social e segregação urbana. No entanto, basta seguir o traçado dos produtos e pessoas que uma outra topografi a urbana e social seja desenhada. A partir daí é possível desenrolar os fi os dos circuitos variados do chamado mercado informal e, em suas conexões, os jogos de poder e relações de força de que dependem essa circulação ampliada de produtos pelas vias de redes de subcontratação que chegam aos pontos extremos das periferias urbanas. Primeiro, claro está, há os intermediários que fazem a conexão com os polos globalizados da economia e também com os negócios “obscuros” em que se misturam máfi as locais, os empresários do contrabando e outros ilícitos, tudo isso ativando o hoje expansivo e rendoso comércio de produtos falsifi cados ou simplesmente “desviados”. No entanto, há também associações comunitárias ditas fi lantrópicas que se transformam em agenciadoras de redes locais de subcontratação em uma peculiar mistura de apelo solidário, clientelismo e jogos de poder nas disputas locais, tudo isso redefi nido na medida em que é mobilizado por redes de subcontratação que são acionadas, sabe-se lá porque e por quem e de modo muito obscuro, pois nunca se sabe ao certo de onde vem a

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encomenda, muito menos quem paga pelo trabalho feito e para onde vai o produto realizado. Atravessando tudo isso, nos mesmos espaços e nos mesmos territórios, os fl uxos da migração clandestina trazem para os fundos da periferia leste da cidade os bolivianos, agora personagens conhecidos da paisagem urbana, que vivem e trabalham em condições mais do que penosas, já que em boa medida são cativos dos coreanos que muito frequentemente agenciam a migração e estão muitíssimo bem instalados no centro da cidade: é daqui que saem as encomen-das que vão circular pelas redes informais de subcontratação, mobilizando bolivianos e, mais, boa parte do trabalho a domicilio nessas regiões distantes da cidade, ativando os circuitos da produção têxtil que, no caso da zona leste da cidade, se alimenta da história urbana da região e reatualiza a importância do “centro velho” (Brás, Bom Retiro), onde estão instaladas as confecções, onde se entrelaçam todos esses fi os, abertos e subterrâneos ou clandestinos, e são igualmente urdidas as vinculações com um mercado inteiramente integrado ao capital globalizado. Essas questões foram trabalhadas por Carlos Freire (2008). No início, “apenas” uma pesquisa sobre trajetórias ocupacionais de moradores instalados no extremo leste da cidade e seus deslocamentos urbanos ao longo de seus percursos de trabalho. Teria sido mais um e apenas um estudo sobre trabalho precário e pobreza, se não houvesse essa prospecção que buscou seguir o traçado das pessoas e dos produtos, bem como os agenciamentos territorialmente situados que permitem essa articulação entre o trabalho informal e os circuitos ampliados de economias transnacionais.

É essa teia de mediações e esse jogo de escalas entrecruzadas que podemos desdobrar a partir de qualquer um dos pontos de venda do hoje proliferante comércio ambulante, seguindo a traçabilidade dos produtos que circulam nos centros de comércio popular e que fazem circular produtos de origens variadas, quase sempre duvidosas, pondo em ação agenciamentos locais e territorializados (verdadeiros dispositivos comerciais) que fazem a articulação entre o informal e os circuitos ilegais das economias transnacionais (contrabando, pirataria, falsifi -cações): pontos de ancoramento de um capitalismo que, como diz Alain Tarrius (2007), mobiliza os “pobres” como clientes, como consumidores e operadores ou passadores que garantem a circulação e distribuição de mercadorias que, sem esses circuitos nas fronteiras porosas do legal e ilegal, quando não ilícito, não chegariam aos recantos mais pobres das várias regiões do planeta. Disso temos as evidências na expansão mais do que considerável dos mercados de consumo popular, que apresentam uma densidade notável no centro da cidade, mas que se expandem igualmente nos bairros periféricos em mercados locais que se apoiam em uma trama variada tecida nas fronteiras incertas do informal, do ilegal e do ilícito. Aqui, todas as situações podem ser encontradas lado a lado, num total embaralhamento do legal e do ilegal, do lícito e do ilícito, do formal e do informal: aí os produtos circulam por meio de acordos nem sempre fáceis de serem mantidos entre organizações mafi osas, gente ligada ao tráfi co de drogas, comerciantes pobres, intermediários dos coreanos (e de outros tantos), além

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dos técnicos das subprefeituras que tentam fazer valer as regulações ofi ciais, tudo isso misturado com pressões, corrupção, acertos obscuros e histórias de morte. Mas é lá mesmo que circulam produtos de procedência conhecida, des-conhecida, duvidosa ou simplesmente ilícita, e também o “excedente”, se é que é possível falar nesses termos, das famílias engajadas no trabalho a domicílio e que se viram como podem para bem aproveitar o tempo que lhes sobra entre os ritmos descontínuos e incertos da produção sob encomenda. Voltaremos a isso no capítulo 5.

Mudando de registro, agora o lado formal-legal das reconfi gurações sócio-urbanas recentes, o mesmo exercício pode ser feito a partir das práticas de consumo de famílias pauperizadas. Essa foi a pesquisa realizada por Claudia Sciré (2009) em uma favela situada na periferia sul da cidade. Seria mais um e apenas um estudo sobre a pobreza e estratégias de sobrevivência, não fosse um dispositivo de pesquisa que buscou rastrear as práticas e seus circuitos, as mediações e as conexões pelas quais a economia domestica se redefi ne em função das condições de acesso aos grandes equipamentos de consumo que hoje recortam de ponta a ponta os espaços urbanos, também as periferias da cidade. Não se trata simplesmente da proximidade física dos hipermercados, shopping centers e lojas de departamento que hoje disputam os chamados mercados po-pulares, as ditas classes C e D. A hoje celebrada explosão do consumo popular não teria sido possível sem a generalização dos cartões de crédito em suas várias modalidades e foi justamente esse o foco da pesquisa realizada. Mais do que um assunto interessante, na verdade o rastreamento desse artefato e seus usos permitiu à pesquisadora deslindar o modo como a lógica da dívida e as práticas de endividamento sucessivo (transferido para a fatura do mês seguinte) alteram os modos de organização da vida familiar, bem como afetam os circuitos da so-ciabilidade e da solidariedade intrapares, com os cartões circulando na teia de préstimos e contra-préstimos: uns emprestam nome e cartões para outros com o “nome sujo” na praça ou para ajudar a aquisição de bens para além dos patama-res de renda defi nidos pelo salário e, ao fi nal, uns e outros se veem enredados no esforço por inventar expedientes para negociar a dívida, transferir para o mês seguinte, usando um cartão para cobrir a dívida de um outro, um cartão próprio ou cartão emprestado, uma dívida que se paga com outra dívida. Algo como uma fi nanceirização do tradicional (tornado arcaico) “fi ado”, também dos jogos da reciprocidade popular. Ao fazer a traçabilidade desse artefato urbano que são os cartões de crédito, vamos encontrar os fi os que articulam esses jogos sociais redefi nidos, os equipamentos de consumo, as fi nanceiras, os dispositivos de crédito, também os procedimentos de gestão da dívida, dito “negociação da dívida”, mas que não fazem mais do que tornar os indivíduos, dito os “clientes”, cativos do fl uxo fi nanceiro que não pode ser interrompido. Gestão da dívida que, pelo lado das famílias, desdobra-se em expedientes mobilizados, também nas fronteiras incertas entre o legal e ilegal, lícito e ilícito, pelos quais a dívida vai se transferindo de um ponto a outro, até entrar, por vezes, em ponto de com-

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bustão. Aqui, a partir de uma situação que poderia ser tomada como exemplar das condições de pobreza e vulnerabilidade social, perfi la-se toda uma outra dimensão da cidade, os registros tangíveis da modernização urbana que, nos últimos anos, se fez acompanhar pela proliferação dos grandes equipamentos de consumo (em suas relações com o capital fi nanceiro) que redefi nem a lógica de produção de espaços urbanos (o que já foi amplamente debatido pela litera-tura especializada), mas que também afetam dinâmicas sociais e seus pontos de fricção, reconfi gurações societárias que fi cariam ilegíveis sob o parâmetro comunitário que impera em larga medida nos estudos sobre pobreza urbana. Essas questões serão retomadas no capítulo 3, “Deslocamentos: percursos e experiência urbana”.

Poderíamos multiplicar os exemplos. Outros serão discutidos ao longo destas páginas. A rigor, não se trata de exemplos ou de casos interessantes. São situ-ações nas quais feixes variados de relações e conexões estão consteladas. Em cada qual, jogos situados de escala. Cada situação é atravessada por processos transversais nas trilhas muito concretas das diversas formas de conexão e inter-conectividade, seja pelas mediações sociotécnicas e seus artefatos (os cartões de crédito, por exemplo, para fi car apenas no caso aqui comentado), seja pelas redes socioeconômicas, aí incluindo os circuitos obscuros dos mercados informais, o tráfi co de drogas e o comércio de bens ilícitos. Colocadas lado a lado, elas se comunicam pela transversalidade das questões postas em cada uma, fazendo perfi lar realidades urbanas contrastadas apreendidas a partir de suas diversas angulações, jogo de perspectivas lançadas sob diversos prismas.

Se é verdade que o cenário urbano vem sendo alterado em ritmos muito ace-lerados, os vetores dessas mudanças operam em situações de tempo e espaço. Processos situados, portanto. E agenciados por um jogo multiforme de atores, de redes sociais e mediações de escalas também variadas. Por isso mesmo, só podem ser bem compreendidos nessas constelações situadas. Este o pressuposto que orienta nosso trabalho: não se trata de partir de objetos ou entidades so-ciais tal como se convencionou defi nir de acordo com os protocolos científi cos das ciências sociais (o trabalho, a família, a moradia), mas, sim, de situações e confi gurações sociais a serem tomadas como “cenas descritivas”, que permitam seguir o traçado dessa constelação de processos e práticas, suas mediações e conexões. E, no contraponto entre cenas descritivas diferentes, a transversalidade das questões que se colocam.

A partir de cada situação, tal como “postos de observação”, é possível apre-ender os perfi s contrastados da cidade, fazendo a traçabilidade das práticas, seus circuitos e mediações. É um experimento de pesquisa que pode nos abrir uma senda para identifi car, seguir os traços e traçados dos ordenamentos sociais que vêm sendo tramados nos tempos que correm. É nesse sentido que se assume como hipótese teórico-metodólógica a exigência de uma etnografi a experimental, tomando como referência cenas descritivas a partir das quais seguir as pistas de ordenamentos sociais emergentes.

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Não se trata de um suposto “trabalho preliminar”, tal como uma aproximação prévia dos terrenos de pesquisa e que, depois, desaparece na elaboração de um corpo teórico-conceitual bem delimitado (na melhor das hipóteses, é registrado nos anexos metodológicos da publicação fi nal). A experimentação como prática de pesquisa e de produção de conhecimento está na contracorrente desses modos convencionais que primaram (e ainda persistem) nas ciências sociais, e segue ao revés das classifi cações estabelecidas, de entidades já feitas e procedimentos habituais do saber (cf. Rabinow, 1999). Nos termos de Appadurai (1996), trata-se da exigência de uma abordagem capaz de abrir-se a uma interrogação sobre essas confi gurações complexas e sobrepostas, seus modos de operação, suas causalidades e suas contingências, captando fl uxos e incertezas, ao contrário e ao revés das antigas imagens de ordem, de estabilidade e sistematicidade próprias das teorias sociais convencionais. A prática da experimentação acompanha a etnografi a multi-situada proposta por George Marcus (1995), buscando as co-nexões, as associações, modos de conjugação de tempos e espaços diversos – é preciso seguir as pistas, diz Marcus, os traços dessas conexões: fazer a traça-bilidade desses movimentos diversos e que estão cifrados nas várias situações investigadas. Não por acaso, a etnografi a experimental como prática de pesquisa e prática de produção de conhecimento opera em um espaço conceitual no qual circulam termos como redes, trilhas, conjunções, conexões e conectores.

Já é lugar-comum dizer que as teorias e categorias convencionais de análise não dão conta das novas realidades. Mas, então, será preciso levar isso a sério e saber tirar consequências. Não se trata de inventar novas teorias e muito menos domesticar essas realidades em alguma matriz explicativa geral. Trata-se, antes e sobretudo, de fazer da investigação uma experiência de conhecimento capaz de deslocar o campo do já-dito, para formular novas questões e novos problemas. Ao invés de dar um salto nas alturas e se agarrar em alguma teoria ou conceito geral, prospectar as linhas de força dessas realidades em mutação. Mais do que um conceito, a cidade é um campo de práticas, diz Roncayolo (1978). Essa é uma sugestão forte a ser seguida e que coloca o plano no qual uma investigação pode se dar, fazendo surgir feixes de questões que permitam modifi car proble-mas previamente colocados – a “questão urbana” não existe como tal (defi nição prévia ou noção modelar), porém é confi gurada no andamento mesmo dessa prospecção como questões (sempre parciais) e interrogações (sempre reabertas) que vão se colocando nessa “construção exploratória do objeto” de que fala Lepetit (2001). É com essa perspectiva que buscamos seguir, prospectar, as mobilidades urbanas, seus espaços e territórios.

* * *

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Esse trabalho de prospecção dos mundos urbanos abriu-se a uma série de questões que, na sequência, terminaram por pautar frentes de investigação não previstas no início, porém que desdobram achados de pesquisa que foram, no correr dos anos, preenchendo nossos diários de campo. Essas as questões a serem tratadas na segunda parte deste livro.

O ponto de partida foram as evidências de uma expansiva trama de ilegalis-mos novos, velhos ou redefi nidos, que passam pelos circuitos da hoje expansiva economia (e cidade) informal, o comércio de bens ilegais, o tráfi co de drogas e suas capilaridades nas redes sociais e práticas urbanas. Bem sabemos que ilegalismos urbanos não são propriamente uma novidade. São algo que acompa-nha a história de nossas cidades, item quase obrigatório nos estudos urbanos, já foram tematizados por uma extensa e importante literatura, para não falar das circunstâncias históricas que presidiram o desde sempre expansivo mercado informal. No entanto, o que nos parece merecer uma interrogação mais detida são as mediações e as conexões pelas quais esses ilegalismos vêm sendo urdi-dos no cenário urbano. São outras as conexões, outras as mediações, também outra a escala em que os problemas se colocam. Ao seguir o traçado desses ilegalismos vemos perfi lar-se mundos urbanos alterados e redefi nidos por formas contemporâneas de produção e circulação de riquezas, que ativam os diversos circuitos da economia informal, que mobilizam o trabalho sem forma, para usar a expressão de Francisco de Oliveira, e se processam nas fronteiras incertas do informal, do ilegal, também do ilícito.

É nesse cenário que vêm ganhando forma as fi guras contemporâneas do trabalhador urbano que transita nas fronteiras porosas do legal e ilegal, formal e informal, lançando mão de forma descontínua e intermitente das oportunida-des legais e ilegais que coexistem e se superpõem nos mercados de trabalho, ao mesmo tempo em que se expande uma zona cinzenta que torna incertas e indeter-minadas as diferenças entre o trabalho precário, expedientes de sobrevivência e atividades ilegais. Assim, por exemplo, não é incomum encontrar a fi gura de um trabalhador, homem ou mulher, que trabalha durante o dia (trabalho precário ou não, formal ou não) e, à noite, em meio a proximidades e cumplicidades tecidas em meio a histórias familiares e jogos das reciprocidades locais, pode se dispor de modo episódico (ou não) a enrolar papelotes de cocaína a serem vendidos no ponto de droga instalado em seu bairro, sem por isso se considerar (e ser visto) comprometido com o “mundo do crime”. Ou então, nos fi ns de semana, com-plementa seu parco salário capitaneando um ponto de venda de CDs piratas e, vez ou outra, tenta a sorte vendendo algum produto de origem duvidosa (sobre a qual convém não perguntar) que lhe chegou às mãos por gente próxima, ou que circulou e foi negociado nessa espécie de “balcão de oportunidades” (Ruggiero, 2000) que são as biroscas onde todos se encontram, onde as informações cir-culam, as oportunidades aparecem em meio às conversas corriqueiras de todos os dias. Situações como essas não são eventuais, nada episódicas, muito menos anedóticas. São as fi guras contemporâneas do trabalhador urbano que segue

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os percursos dessas “mobilidades laterais” entre o formal e informal, legal e ilegal, para usar os termos de Ruggiero e South (1997), ao descrever situações parecidas que hoje se alojam no centro dinâmico das economias urbanas também dos chamados países do Norte (cf. capítulo 5).

É sempre possível dizer que nada disso é novidade em nossas cidades, que isso que está aqui sendo nomeado como “mobilidade lateral” nada mais é do que a reposição da “viração” própria das desde sempre conhecidas situações de pobreza. No entanto, se há, hoje, a reatualização de uma história de longa duração, há também um deslocamento considerável da ordem das coisas. Isso que foi considerado evidência das incompletudes de nossa modernidade, a “ex-ceção do subdesenvolvimento”, como diz Francisco de Oliveira (2003), não apenas transformou-se em regra (está aí para fi car, sem a superação prometida pelo “progresso”), como se projetou na ponta de um capitalismo que mobiliza e aciona a reprodução ampliada do “trabalho sem forma”,

ao mesmo tempo em

que fez generalizar os circuitos ilegais de uma economia globalizada nas sendas abertas pela liberalização fi nanceira, a abertura dos mercados e encolhimento dos controles estatais (Naim, 2006), em um tal intrincamento entre o ofi cial e o paralelo, entre o legal e o ilegal, o lícito e o ilícito que essas binaridades perdem sentido e tornam obsoletas as controvérsias clássicas em torno do formal e o informal (Botte, 2004; Bayart, 2004). O fato é que as relações incertas entre o legal e ilegal, formal e informal, lícito e ilícito constituem um fenômeno transver-sal na experiência contemporânea, também nos chamados países do Norte. São vários os autores que vêm chamando a atenção para essa transitividade entre o informal, o ilegal e o ilícito, com uma preocupação, mais ou menos explicitada, em distinguir a natureza da transgressão que se opera no âmbito da economia informal ou, então, que defi ne as atividades ilícitas ou criminosas, como o tráfi co de drogas, armas e seres humanos.1

Nas nossas cidades, em particular no caso de São Paulo, essa teia variada de ilegalismos vem se processando no interior e nos meandros de um cenário urbano que, em muitos sentidos, desativa todo um jogo de associações pelo qual se convencionou tratar esses temas, em suas relações com a pobreza, privações sociais, carências urbanas, ausência do Estado, ou seja: o registro do que falta, do que falha, do que não se completa. E é isso que coloca a exigência de mudança de registro e deslocamento do jogo de referências para descrever essas situações e situar o plano de atualidade em que elas se inscrevem. A questão está longe de ser trivial, e tampouco haverá de ser resolvida na base de algum torneio teórico abstrato para enquadrar (explicar?) as novas realidades. Ainda temos, assim me parece, que saber tirar consequências da desativação do horizonte

1 Essa é questão central de um projeto realizado em parceria com pesquisadores da Uni-versidade de Toulouse Le Mirail (Acordo Capes-Cofecub, 2007-2011). Essas formulações e também as questões tratadas no capítulo 5 são grandemente devedoras da interlocução com Angelina Peralva, com quem partilho a coordenação desse projeto.

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histórico e do espaço conceitual no qual essas questões foram antes tratadas, em grande medida a partir da referência normativa dos direitos, a expectativa de uma cidadania salarial e as promessas de uma “modernidade incompleta”, o problema enunciado nas primeiras páginas desta introdução, que será tratado no capítulo 1 e retomado no capítulo 4. Nos termos de Francisco de Oliveira, a “exceção se tornou a regra” e está no cerne da “era da indeterminação”, ponto de clivagem em relação às décadas anteriores em que o trabalho (isto é, as rela-ções de trabalho, relações de classe) estruturava um campo político de confl itos que dava a medida e pautava a “era das invenções” (Oliveira, 2007). E é isso propriamente que coloca a importância de se construir os parâmetros descritivos para pôr em perspectiva (e sob perspectiva crítica) as redefi nições dos mundos sociais que vêm se processando nessa virada dos tempos. Não se trata de um apego cego ou uma volta à empiria bruta, à falta de uma teoria que nos conforte em nossas certezas. Descrição não é uma transcrição da realidade, muito menos um inventário ou coleção de casos interessantes. É um trabalho de construção que passa pelo modo como se estabelecem ou se fazem ver conexões e relações que, antes, sob um outro jogo de perspectivas, não faziam parte da cartografi a social ou, então, dos critérios de pertinência e relevância postos pelas perguntas que se endereçavam ao mundo. Hoje, porém, são outras as perguntas e talvez sejam estas que ainda têm que ser mais bem formuladas.

Se, como diz Francisco de Oliveira, a exceção tornou-se a regra, o trabalho sem forma e essa trama multifacetada de ilegalismos estão no coração do ca-pitalismo contemporâneo, então é caso de se perguntar pelo modo como esses processos redesenham os mundos urbanos e redefi nem ordenamentos sociais. Mais concretamente: o modo como esses ilegalismos redefi nem as tramas urbanas, as relações sociais e relações de poder em situações variadas.

Essa é uma discussão de fôlego, que vai além do que foi possível realizar no andamento de pesquisas ainda em curso. Entretanto, há pistas a seguir. E estas nos foram dadas pelos percursos cruzados dos personagens urbanos cujas trajetórias tratamos de seguir. Os indivíduos e suas famílias transitam nas tênues fronteiras do legal e ilegal, sabem lidar com os códigos de ambos os lados, sabem jogar com as diversas identidades que remetem a esses universos superpostos da vida social. Mas sabem, sobretudo, exercitar uma especial “arte do contornamento” dos riscos alojados justamente nessas fronteiras porosas: o pesado jogo de chantagem e extorsão das “forças da ordem” e a violência da polícia sempre presente nesses percursos, também a eventualidade de algum desarranjo nos acertos instáveis com os empresários do ilícito, e não apenas com o tráfi co de drogas. Concretamente: os jogos de poder e relações de força se processam nas dobras do legal e ilegal. Isso muda inteiramente o modo de descrever as “mobilidades laterais” e permite ver os sentidos políticos incrustados nessas versões atualizadas da “viração po-pular” que perde, assim, essa espécie de leveza entre liberada e esperta muitas vezes associada à cultura popular ou então à “dialética da malandragem”, para lembrar aqui a fórmula famosa de Antonio Candido.

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Para colocar em outro registro e adiantando questões trabalhadas no capítulo 5: se queremos entender o lugar desse feixe variado de ilegalismos no tecido urbano, será importante se deter sobre essa transitividade entre o legal e ilegal que parece, hoje, estar no centro das dinâmicas urbanas de nossas cidades. Se há porosidade entre o formal e informal, legal e ilegal, isso não quer dizer in-diferenciação entre uns e outros. Leis, codifi cações e regras formais têm efeitos de poder, circunscrevem campos de força e é em relação a elas que essa transi-tividade de pessoas, bens e mercadorias precisa ser situada. E, a rigor, descrita. Não se trata de universos paralelos, muito menos de oposição entre o formal e informal, legal e ilegal. Na verdade, é nas suas dobras que se circunscrevem jogos de poder, relações de força e campos de disputa. São campos de força que se deslocam, se redefi nem e se refazem conforme a vigência de formas variadas de controle e também, ou sobretudo, dos critérios, procedimentos e dispositivos de incriminação dessas práticas e atividades, oscilando entre a tolerância, a transgressão consentida e a repressão conforme contextos, microconjunturas políticas e relações de poder que se confi guram em cada qual.

Aqui, a noção de “gestão diferencial dos ilegalismos” pode nos ajudar a bem situar a questão. Ao cunhar essa noção em Vigiar e punir (1975), Foucault desloca a discussão da tautológica e estéril binaridade legal-ilegal, para colocar no centro da investigação os modos como as leis operam, não para coibir ou suprimir os ilegalismos, porém para diferenciá-los internamente, “riscar os limites de tolerância, dar terreno para alguns, fazer pressão sobre outros, excluir uma parte, tornar útil outra, neutralizar estes, tirar proveito daqueles” (Foucault, 2006: 227). Os ilegalismos, diz Foucault em outro texto, não são imperfeições ou lacunas na aplicação das leis, contêm uma positividade que faz parte do funcionamento do social, eles compõem os jogos de poder e se distribuem con-forme se diferenciam “os espaços protegidos e aproveitáveis em que a lei pode ser violada, outros em que pode ser ignorada, outros, enfi m, em que as infrações são sancionadas”. As leis, diz Foucault, “não são feitas para impedir tal ou qual comportamento, mas para diferenciar as maneiras de contornar a própria lei” (Foucault, 1994: 716). Mas é justamente nesses torneios da lei que as questões se confi guram. É isso que está sendo aqui visado ao se chamar a atenção para o que acontece nas dobras do legal-ilegal. Não se trata de reter ou se ater a essa binaridade como chave explicativa, mas de seguir, prospectar seus efeitos, o modo como os jogos de poder se confi guram nesses espaços: a distribuição diferenciada dos controles e, em torno deles, os agenciamentos práticos que se curvam ou que escapam aos dispositivos de poder implicados nessas categorias e codifi cações. E é isso que se pode seguir – e etnografar – seja no registro dos ilegalismos difusos inscritos nas “mobilidades laterais” do trabalhador urbano, tal como muito rapidamente indicado acima; seja no registro dos meandros dos mercados informais que pulsam no centro dinâmico da economia urbana de nossas cidades, como sugerido páginas atrás; seja ainda nos circuitos do tráfi co de drogas que fi zeram multiplicar os pontos de venda por toda a extensão das

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periferias urbanas. São essas as três situações que serão descritas e discutidas na segunda parte deste livro.

Por ora, interessa indicar duas ordens de questões que, assim nos parece, estão no fulcro dos ordenamentos sociais tecidos nesses meandros das tramas urbanas e que pautam, em boa medida, a discussão a ser feita nos três últimos capítulos:

Primeira: os percursos urbanos e as situações em que estão constelados esses feixes de ilegalismos são pontuados por jogos de poder e relações de força que se processam nas dobras do legal-ilegal. No âmbito dos mercados informais, desde um modesto ponto de venda de CDs piratas ao pulsante comércio informal no centro da cidade, há outras tantas redes que perpassam essas atividades, que se compõem e interagem com os circuitos econômicos por onde produtos e pessoas circulam, redes que passam por dentro das instâncias ofi ciais-legais e fazem circular as mercadorias políticas, nos termos propostos por Michel Misse (2006), também elas ilegais, e das quais dependem os modos de funcionamento desses mercados, estando no cerne de suas formas de regulação. É o custo político das transações informais, diz Misse, justamente porque elas operam por fora ou ao revés das normas ofi ciais-legais. Mercadorias políticas, quer dizer: corrupção, acertos na partilha dos ganhos, subornos, compra de proteção e práticas de extor-são que podem ser mais ou menos ferozes conforme as microconjuturas políticas, interesses em jogo, alianças feitas ou desfeitas, sempre no limiar de soluções violentas, entre repressão aberta e histórias de morte. Fiscais da prefeitura, ges-tores urbanos, operadores políticos, vereadores e suas máquinas políticas, agentes policiais operam justamente nas dobras do legal-ilegal pelas vias das “ligações perigosas”, como diz Misse, entre os mercados informais e os mercados políticos, também ilegais, nos quais se transacionam as mercadorias políticas, que parasi-tam aqueles e condicionam grandemente o modo como estes se organizam e se distribuem nos espaços urbanos. São práticas que se movem entre as instâncias formais-legais e os procedimentos extralegais; são as “forças da ordem” e seus representantes que fazem uso de suas prerrogativas legais, a autoridade que o Estado lhes confere, para acionar dispositivos não-legais, deslizando entre acertos negociados, o arbítrio, chantagem, expropriação e violência aberta. A rigor, isso também toma parte e é constitutivo desse deslocamento das fronteiras do legal-ilegal que acompanha as formas contemporâneas de produção e circulação de riquezas. Em outros termos: uma ampla zona cinzenta que torna indeterminadas as diferenças entre o legal e extralegal, entre o dentro da lei e o fora da lei. Mas é por isso também que essas práticas entram em ressonância e se comunicam, transversalmente ou diretamente, com o jogo igualmente pesado e igualmente violento dos empresários do ilícito, procedimentos mafi osos postos em ação para o controle dos pontos de venda ou para as operações pesadas do contrabando, para os agenciamentos da migração clandestina (bolivianos, chineses, outros), controles dos circuitos de distribuição, etc.

Quanto ao mercado varejista das drogas ilícitas, é impossível compreender seus modos de funcionamento sem levar em conta as “ligações perigosas” com

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os mercados de proteção acionados pelas forças policiais. Essa é questão que já foi esmiuçada empiricamente e teoricamente por Michel Misse (2006) em seus estudos sobre os mercados da droga no Rio de Janeiro. Porém, se a situação do Rio de Janeiro já é bastante conhecida, no caso de São Paulo ainda há muito a se fazer, os estudos apenas começam. Porém é algo que se pode fl agrar e acom-panhar por meio da observação etnográfi ca de um ponto de droga instalado em um bairro de periferia. O pagamento regular da proteção policial faz parte das rotinas do negócio local. São práticas corriqueiras, mas não banais, com seus procedimentos, seus tempos, seus lugares, protocolos, a cenografi a como as coisas acontecem. Equilíbrios instáveis que, muito frequentemente, desandam na prática aberta de extorsão: espancamentos, chantagem sobre uns e outros, ameaça de prisão, verdadeiros sequestros com a exigência de preços exorbitantes para o resgate. No alvo estão os “meninos da droga”. Porém, não só: qualquer um que, nesse trânsito nas fronteiras embaçadas do legal e ilegal, possa oferecer algum pretexto para pressão, chantagem, ameaça de prisão. Sob a pressão do espan-camento e, sobretudo, ameaça do infeliz ser levado à Delegacia para ser lavrado um Boletim do Ocorrências, nas negociações do preço do resgate, como se diz, cada um “vale quanto pesa”: se é fi gura importante ou não nos negócios locais, se tem ou não passagem pela polícia, se tem relações valiosas ou não no “mundo do crime” ou, simplesmente, quando se trata dos garotos, se a situação ameaça afetar as famílias e o delicado jogo das reciprocidades vicinais. Isso também faz parte das rotinas, não apenas do ponto de droga: isso compõe a vida de um bairro de periferia, faz parte dos cenários locais, circula no repertório popular, alimenta as histórias, está, enfi m, incrustado na ordem das coisas, nas formas de vida. O que não quer dizer que tudo seja banal ou que esteja banalizado: uma peculiar experiência com a lei que termina por embaralhar e inverter os critérios que defi nem os sentidos de ordem e o seu avesso.

Quando as coisas saem dos eixos (acertos desestabilizados pelas razões as mais variadas), essas práticas assumem as formas mais violentas: chantagem, extorsão, invasão, mortes, extermínios. O epicentro é a “biqueira”, ponto de venda de drogas, mas a zona de arbítrio se expande e afeta todo o entorno. A cena é conhecida: sob o pretexto de “caça aos bandidos”, sucedem-se as batidas poli-ciais, invasão de domicílios, espancamentos, abusos de autoridade, expropriação, também as mortes, execuções sumárias, extermínios. Violência extralegal: aqui, nesse registro, não se trata propriamente de porosidade do legal-ilegal, não se trata de fronteiras incertas entre o informal, o ilegal, o ilícito. Mas da suspensão dessas fronteiras na própria medida em que fi ca desativada a diferença entre a lei e a transgressão da lei. E isso signifi ca dizer que é a própria diferença entre a lei e o crime que se embaralha e, no limite, vem a ser, ela própria, anulada. É isso que permite acionar uma espécie de licença para matar, sem que isso seja considerado um crime. É isso o que está posto e exposto nessas situações que se repetem nas periferias urbanas. É isso o que está posto e exposto nessa expressão que acompanha os registros policiais – “resistência seguida de morte”:

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uma categoria que não tem existência legal, mas que é aceita no processamento judicial, que opera como uma espécie de autorização para matar, avalizada pe-las instâncias estatais, também judiciais, invertendo tudo e suspendendo todas as diferenças, de tal modo que toda e qualquer execução vira outra coisa e o crime é atribuído à vítima em supostas “guerras de quadrilha”, “troca de tiros”, “resistência à prisão”.

Aqui se está no cerne do que Agamben defi ne como estado de exceção. Nas suas confi gurações contemporâneas, práticas e situações instauradas no centro da vida política (e da normalidade democrática), fazendo estender uma zona de indeterminação entre a lei e a não-lei, terrenos de fronteiras incertas e sempre deslocantes nas quais todos e qualquer um se transformam em vida matável, homo sacer (Agamben, 2002). Poderes de soberania que se multiplicam e se desdobram nessas pontas em que a presença do Estado, as forças da ordem afetam as vidas e as formas de vida. É algo que pode ser visto, fl agrado e, como propõem Das e Poole (2004), etnografado, tratado de um ponto de vista antropológico, sob o prisma de suas condições de operação prática, cotidiana, seguindo os modos de operação das forças da ordem, seus movimentos, seus tempos, seus procedi-mentos, também seus rituais e a cenografi a que arma em torno de seus modos de intervenção. É nessas situações e nesses contextos práticos que se pode bem compreender as conexões internas entre lei e exceção. Na formulação precisa de Das e Poole, são práticas que articulam simultaneamente o dentro e o fora da lei, mas que não podem ser entendidas nos termos de lei e transgressão da lei pois é a própria lei que está em questão, os seus modos de operação. Nos termos de Agamben: a lei é aplicada nos modos de sua desativação e é isso propriamente que defi ne os poderes de soberania. Nos termos de Das e Poole, sob o prisma das condições práticas sob as quais isso se processa: produção das “margens” que não correspondem a defi nições territoriais, periferia ou territórios da po-breza, pois elas se deslocam, se fazem e refazem conforme mudam os alvos, as conveniências, o foco das atenções dos representantes da ordem, em condições concretas de tempo e espaço. Margens: não se trata de um fora do Estado e da lei, lugar de anomia, desordem, estado de natureza. São espaços produzidos pelos modos como as forças da ordem operam nesses lugares, práticas que produzem as fi guras do homo sacer em situações entrelaçadas nas circunstâncias de vida e trabalho dos que habitam esses lugares. No entanto, são também lugares em que a presença do Estado circunscreve um campo de práticas e de contracondutas, no qual os sujeitos fazem (e elaboram) a experiência da lei, da autoridade, da ordem e seu inverso, em interação com outros modos de regulação, microrregulações, poderíamos dizer, ancoradas nas condições práticas da vida social.

A noção de margem proposta por Das e Poole é especialmente interessante, ainda mais para nós, etnógrafos do urbano, pois afeta diretamente o modo como se constroem os nossos campos de pesquisa, o critério de pertinência etnográfi ca, a defi nição daquilo que interessa e é pertinente ao estudo etnográfi co ou, então, para usar os termos de Paul Veyne, o modo como se arma a trama descritiva,

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o cruzamento de linhas múltiplas e itinerários possíveis para colocar em cena a interação entre as pessoas, as coisas, as circunstâncias materiais, os acasos, feixes de relações que produzem os acontecimentos descritos (cf. Veyne,1998). As questões discutidas pelas autoras, coordenadoras de um livro que leva o su-gestivo título de Anthropology in the margins of the State, serão tratadas no último capítulo. Por ora, vale dizer que a noção de margem é sobretudo importante pela perspectiva que abre para descrever e discutir a “exceção que se tornou a regra”, para retomar aqui a formulação famosa de Benjamin e que Agamben atualiza em seu O Poder Soberano e a vida nua, e que, muito concretamente, está posta nas dobras do legal-ilegal, que foi aqui o nosso ponto de partida.

Aqui entramos em uma segunda ordem de questões: esses lugares produzidos como “margem” são estratégicos para o entendimento dos ordenamentos sociais urdidos nas fronteiras porosas do informal, do ilegal e ilícito, que, retomando o argumento de partida, estão no centro da experiência contemporânea, aqui e alhures. Nas situações extremas da “vida nua”, extremas, porém frequentes, tão frequentes quanto as formas violentas de intervenção policial nesses lugares, explicita-se o que está contido, de modo latente ou aberto, nos meandros dos mercados informais. Também nos ilegalismos difusos que se pode apreender no mundo social e que está crivado nas “mobilidades laterais” das fi guras contem-porâneas do trabalhador urbano que transita nas fronteiras incertas do formal e informal, legal e ilegal, também o ilícito. É o que está contido nos jogos de poder e relações de força que se processam nessas dobraduras da vida urbana, dobras do legal e ilegal. Mas isso também signifi ca dizer que esses espaços de exceção não são espaços vazios; é justamente aí, poderíamos então dizer, que as fronteiras do Estado estão em disputa, os sentidos de lei, de justiça, de ordem e seu avesso.

Nos centros do comércio popular, nas dobras do legal-ilegal, como mostra Carlos Freire (2009), estrutura-se um campo de forças, envolvendo uma meada de atores (ambulantes, lojistas, associações de classe, sindicatos, políticos, fi s-cais, gestores urbanos, forças policiais) em uma disputa, sempre reaberta, entre negociações e confl itos acirrados, pelas vias de procedimentos públicos e outros tantos obscuros, mafi osos ou não, em torno dos modos de apropriação da riqueza circulante e da gestão dos espaços urbanos e suas regulações. Mas essa é também uma disputa em torno das fronteiras do permitido e proibido, dos protocolos dos mercados de proteção, bem como dos limites do tolerável nas práticas de extorsão (cf. Freire, 2009). Não seria arriscado dizer que, nesses campos de disputa, são as próprias fronteiras da economia que estão se redefi nindo nos meandros (em disputa) dos mercados informais (cf. capítulo 5). Quanto aos mercados de drogas e suas capilaridades nas periferias urbanas, nos campos de gravitação que se estruturam em torno das miríades de pontos de venda instalados nesses bairros, é a própria gestão da ordem que parece estar em disputa, nos pontos de junção (e fricção) da lei (e seus modos de operação) e outros modos de regulação que perpassam os ilegalismos e estão ancorados nas formas de vida: protocolos,

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códigos, procedimentos que operam não à margem da lei, são ativados justamente nesses pontos nervosos, campos de força que gravitam em torno dos modos de operação da lei nos seus pontos de incidência nas circunstâncias da vida. Aqui, nesse registro, como será visto no capítulo 6, trata-se de uma gestão da ordem que se desdobra em uma gestão dos limiares da vida e da morte: pois é disso que se trata nesses espaços produzidos como “margem”, espaços de exceção, pontuados e ritmados pela experiência da morte-matada (ou sua ameaça), a violência policial e a violência implicada nos (des)acertos internos ao “mundo do crime”, cujos nexos e ressonâncias mútuas ainda precisam ser deslindados. O enigma da recente redução dos homicídios nas periferias urbanas, depois de décadas seguidas de índices altíssimos, está todo cifrado nisso e essa é a pista que se tentará seguir no último capítulo.

São dois registros que se comunicam, até porque estão cifrados nos percursos dos trabalhadores urbanos nos meandros dos mercados informais e ilegais. E estes nos oferecem um prisma especialmente interessante para apreender as tramas sociais tecidas nas dobraduras da vida urbana. É possível descrever es-ses percursos a partir dos sinais de algo como os “ardis de uma de inteligência prática” (Vernant & Detiènne, 1974), inventados, maquinados, para lidar com as circunstâncias mutantes e incertas nas fronteiras porosas do legal e ilegal. Os indivíduos também transitam entre o dentro e fora do Estado, maquinam artifícios nas fronteiras incertas do legal-ilegal, agenciam contracondutas, nego-ciam regras, limites, protocolos para lidar com as incertezas e os riscos alojados nessas dobraduras da vida urbana. Não é coisa simples transitar nesses terre-nos: como mostra Daniel Hirata (2010), é preciso astúcias, artifícios, senso de oportunidade para lidar com fi scais da prefeitura, negociar os acertos com as forças da ordem, evitar a prisão, contornar os riscos de morte, garantir acordos dos quais dependem esses negócios (não apenas os ilícitos), fazer alianças de circunstâncias, tecer lealdades, discernir quem merece e não merece confi ança. Trata-se aqui, como bem enfatiza Hirata, de um feixe de códigos, de procedimen-tos e protocolos, não normativos, não categoriais, sempre situacionais, práticos, relacionais e dos quais depende a passagem por essas fronteiras incertas, ao mesmo tempo em que, em cada situação, se negociam, se defi nem e redefi nem os critérios do “certo” e do “errado”, do justo e injusto, os parâmetros do aceitável e os limites do tolerável. Nos termos propostos por Hirata, formas de conduta e contracondutas das quais depende essa arte de “sobreviver na adversidade” – essa expressão circula e faz parte do repertório popular, não tem nada a ver com estratégias de sobrevivência de que tratam os estudos de pobreza. Não se trata simplesmente de sobreviver e levar a vida. Trata-se, sobretudo, de contornar as duas ameaças muito concretas que se colocam em suas vidas. De um lado, o risco da morte violenta: esse é um dado de seus mundos de vida. Ao falar de seus percursos, os indivíduos, sobretudo os mais jovens, fazem uma verdadeira contabilidade dos mortos, pessoas próximas, amigos de infância, vizinhos de rua, também parceiros nos meandros da vida urbana. Isso também faz parte do

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repertório popular e também faz a marcação dos tempos de uma história urbana local. Gente que foi morta pela polícia, isto é: execuções. Ou, então, que se viu cativa do “condomínio do diabo” de que fala Alba Zaluar (1983), entre os (des)acertos nos assuntos do “crime” e a lógica da vingança. De outro lado, o risco de despencar na condição de “pobre-de-tudo”, a depender da caridade de uns e outros ou da assistência social. Porém, isso signifi ca dizer que, entre a morte violenta e a pobreza cativa dos dispositivos gestionários, há um socius que vai sendo tecido justamente em uma experiência que se faz, não à margem da lei, mas nos pontos de fricção com os agenciamentos de poder e as forças da ordem alojadas nas dobras do legal-ilegal, formal-informal.

Os rastros desses ordenamentos são deixados justamente por esse personagem que, na falta de um termo melhor, nomeamos “passador” (cf. capítulo 4), aquele que sabe transitar por essas fronteiras incertas e “sobreviver na adversidade”. Uma fi gura cujo sentido se explicita no seu contraponto com outros dois persona-gens urbanos, o “pobre-coitado” (ou o “zé-povinho”, termo que circula no repertó-rio popular) e o “bandido”, cativo de um círculo fechado desenhado entre o jogo pesado da policia e o “condomínio do diabo”. No ponto e contraponto desses três personagens, desenha-se algo da nervura desses ordenamentos sociais. Não se está aqui propondo uma tipologia, muito menos uma categorização das situações sociais, até porque a experiência social não cabe nem se fi xa nessas defi nições. Empiricamente, há uma transitividade entre essas fi guras sociais aqui construídas como personagens urbanos que, por isso mesmo, por essa transitividade, nos ajudam a deslindar essa meada de fi os entrecruzados e a descrever, pelo jogo de perspectiva que se abre a partir de cada um deles, as situações sociais nas quais está cifrado um socius que ainda precisa ser bem entendido.

* * *

Nestas últimas páginas, aqui a título de introdução, retomam-se questões tratadas, por vezes literalmente, nos três últimos capítulos. Em cada qual, essas questões foram trabalhadas em contextos defi nidos de discussão. Em cada qual, inquietações e perguntas elaboradas no andamento da pesquisa, conforme os achados de pesquisa nos afetavam e conduziam essa experimentação ao mesmo tempo empírica e teórica. Em cada qual, momentos diferentes dessa prospecção dos mundos urbanos, seguindo as pistas de ordenamentos urdidos nas tramas da cidade, esses terrenos incertos entre a lei e a exceção e que estão, hoje, no cerne da cena contemporânea.

O capítulo 4, “Tramas da cidade: fronteiras incertas do informal, ilegal e ilícito”, é uma versão revista de um artigo elaborado para compor uma publicação com resultados de pesquisas realizadas no âmbito do Cenedic (cf. Oliveira & Rizek, 2007). Escrito, em sua primeira versão, no início de 2006, em diálogo

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com questões propostas por Francisco de Oliveira, núcleo desse projeto comum, é um texto de passagem, em vários sentidos. Foi nesse texto que se tentou uma primeira aproximação desses terrenos incertos entre o informal, o ilegal e o ilícito, tal como nos foi possível apreender em nossos campos de pesquisa e com os quais se tentou trabalhar nas três cenas descritivas apresentadas na sua segunda parte e aqui mantidas com pouquíssimas alterações.

O ponto de partida foram os sinais que recolhíamos em nosso trabalho de campo de um mundo social que parecia (e parece) escapar das formas conhecidas de interpelação política, dos celebradíssimos fóruns públicos de participação popular e suas supostas virtudes democráticas, também dos programas sociais que se multiplicam nas periferias urbanas, com suas promessas de redenção dos males da dita exclusão social. Um campo social que parecia (e parece) vazar ou transbordar desses dispositivos políticos, mas que nem por isso correspondia às imagens correntes de anomia e desorganização social, pois nos sugeria diagramas variados de relações e formas sociais que passavam por essas mediações formais, porém transbordavam suas regulações e colocavam uma ordem de questões que nos pareciam implodir a gramática política conhecida. Foi esse o nosso ponto de partida. Já tínhamos em mira esse feixe variado de ilegalismos entrelaçados nas práticas urbanas e suas mediações, circuitos e redes sociais. Uma questão que evoca o tema reiterado nos estudos urbanos, a contraposição de “cidade legal” e “cidade ilegal”, mas era isso que nos parecia deslocado. Era uma outra ordem de problemas que essas realidades pareciam colocar: uma crescente e ampliada zona de indiferenciação entre o legal e o ilegal, entre o direito e a força, entre a norma e a exceção. Eram realidades que também nos ofereciam um prisma pelo qual situar criticamente a retórica dos direitos, cidadania, participação popular, essa tríade de noções que, desde meados dos anos 1990, passou a compor a lin-guagem e a agenda dos programas sociais nas periferias urbanas: noções agora esvaziadas de seu sentido político, declinadas em uma gramática gestionária que arma algo como um jogo de faz-de-conta com a exposição dos casos “edifi cantes” e “boas práticas” premiadas e celebradas em fóruns internacionais. Uma verda-deira implosão semântica do léxico dos direitos, como disse Paulo Arantes (2000) ao rastrear os usos proliferantes dessas noções, direitos e cidadania, em meio à virada neoliberal dos anos 1990, do marketing social das empresas, passando pelas ONGs, também as organizações fi lantrópicas tradicionais até o muito mo-derno “empreendedorismo social”. Por todos os lados, uma afi rmação ritualística e protocolar da exigência ética da cidadania, mas que apenas confunde política e bons sentimentos, embaralha as diferenças entre direito e ajuda humanitária, entre direito e fi lantropia, ao mesmo tempo em que se confi guram novas formas de gestão do social voltadas à administração das urgências das chamadas popu-lações em situação de risco, noção esta que, como será visto nesse capítulo, não é inocente em seus pressupostos e suas consequências.

Na primeira parte desse capítulo, tentou-se identifi car, ao menos assinalar, a erosão do espaço político e o espaço conceitual nos quais se especifi cava o sentido

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político, polêmico e crítico das noções de direito, cidadania e espaço público. Uma erosão que se fez acompanhar de novas formas de gestão do social que, nos termos de Francisco de Oliveira (2003), não são mais do que a administra-ção da exceção. Mais do que mudanças na conformação das políticas sociais, não seria arriscado dizer que se trata de uma outra “invenção do social”, para evocar aqui o título do livro de Donzelot (1984), que se faz no sentido contrário (ou em outras direções) ao percurso discutido pelo autor ao tratar do diagrama de relações e confl itos que desaguaram na moderna questão social, tal como fi gurada e objetivada no correr do século XX. Não por acaso, os autores que vêm lidando com esses temas evocam o termo pós-social (referência a Donzelot) ou pós-disciplinar (referência a Foucault) para discutir as confi gurações políticas e sociais que ganharam forma a partir da virada neoliberal dos anos 1980. Parte dessa discussão será recuperada, não com o objetivo de esgotar um tema que, em si mesmo, exigiria uma discussão à parte, mas para indicar alguns traços que nos ajudam a pensar as reconfi gurações sociais dos últimos tempos, nas quais esses novos agenciamentos políticos, sob um lógica gestionária, também têm o seu lugar. Como diz Frederic Gros (2006), é uma confi guração na qual o indivíduo não comparece como sujeito de direitos, mas como um indivíduo atravessado por situações de “vulnerabilidade” associadas aos “riscos” (pobreza, doença, crime, violência...), as quais exigem “uma vigilância constante de sistemas e de homens” e que acionam a lógica da “intervenção”. Diferente da política (e seus protocolos de discussão, negociação, deliberação e representação), a intervenção é regida pelos critérios ditos técnicos de competência dos especialistas e é acio-nada para restaurar uma ordem ameaçada, restabelecer harmonias rompidas, reparar disfunções, encontrar soluções efi cazes.

Pois bem, nossas perguntas foram formuladas justamente na fenda aberta entre essa retórica e o teatro político postos em ação pelos dispositivos gestionários que pontilham as periferias da cidade (não são fi cções, fazem parte da ordem das coisas; deparávamos o tempo todo com esses modos de intervenção social) e ordenamentos sociais que vinham se fazendo, seguindo os vetores de mudanças recentes, linhas de força que pareciam transbordar essas formas de gestão do social e por onde parecia se constelar uma experiência social (e urbana) que também não respondia ou correspondia às formas conhecidas de interpelação política. E era isso, esses ordenamentos, que interessava perscrutar. Era isso que colocava a pergunta sobre os parâmetros a partir dos quais tratar das formas sociais que vinham se constelando nas fronteiras incertas do formal e informal, do legal e ilegal, também do ilícito, pontuadas pela experiência recorrente da morte violenta e da truculência nos modos de operação das forças da ordem, sobretudo a polícia, mas não apenas ela. Aqui, um comentário necessário: esses jogos de poder e relações de força, que identifi camos nas dobras do legal-ilegal, entram em ressonância e se comunicam com outras dimensões dos ilegalismos que atravessam a cidade e se constelam nos espaços urbanos, nas regiões de ocupação e moradia precária que, ao longo dos anos 1990, se expandiram por

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toda a mancha urbana, também permeadas de situações de tensão e confl ito em torno dos litígios de terra, políticas de remoção, práticas truculentas que acom-panham as chamadas “reintegrações de posse”, enfi m, tudo isso que compõe o que a literatura especializada chamou de “cidade ilegal”. Esse foi tema tratado na pesquisa original (cf. Telles & Alves, 2006; Alves, 2007) e que compunha o leque de questões que nos movia e que lançava a interrogação sobre o jogo de referência a partir do qual situar realidades as quais não mais poderiam ser tratadas sob o prisma das mazelas de uma “modernidade incompleta” e que pautara em grande medida os debates nas décadas anteriores.

Esse capítulo estrutura-se em três andamentos. Primeiro: em diálogo com as questões propostas por Francisco de Oliveira, trabalhando os registros (alguns deles) da erosão do campo político (e espaço conceitual) dos direitos e cidada-nia (tal como rapidamente indicado acima), um esforço no sentido de deslocar o jogo de perspectivas para lidar com essas situações. Aqui nos movimentamos no espaço conceitual em que se situam as noções de estado de exceção e vida nua, tal como formuladas por Agamben. Não se trata, longe disso, de “aplicar” uma teoria ou de enquadrar essas realidades e “explicar” o que quer seja. Se essas noções são importantes é porque nos ajudam a formular nossas próprias questões, oferecem um jogo de referências que permitem traçar o plano em que os problemas podem ser formulados e lançados como questões orientadoras nessa prospecção dos mundos urbanos redesenhados nos últimos tempos. Em outros termos: um plano em que os problemas podem se colocar ou uma encruzilhada deles que exige um trabalho de elaboração teórica por nossa própria conta e risco, em diálogo com a experiência do próprio trabalho de campo. Como diz Foucault, os conceitos funcionam como “caixa de ferramentas”, um seu uso não-categorial; eles nos orientam na formulação de nossas próprias questões a partir de um certo crivo, perspectiva pela qual essas questões podem ser postas como algo no qual ressoam os problemas de nossa atualidade. Na verdade, essa é uma inquietação que comanda, de ponta a ponta, o modo como, nos três últimos capítulos, tentou-se trabalhar o material empírico que tínhamos à mão. É por isso que essa segunda parte leva como título a formulação da questão que se tentou enfrentar nesse capítulo: deslocando o ponto da crítica.

O crivo pelo qual se tentou seguir na prospecção dos mundos urbanos foram as situações de exceção engendradas nesses terrenos incertos entre o ilegal, o informal e o ilícito. Mais do que um tema interessante entre outros em uma agenda de pesquisa, a aposta é que esses terrenos de exceção, justamente porque estão no coração da vida contemporânea, aqui e alhures, podem nos oferecer os elementos para pensar e formular os desafi os atuais. É aí que se joga a partida entre a vida nua, quer dizer: vida matável; e as formas de vida, quer dizer: pos-sibilidades e potências de vida. De alguma forma, e também por nossa própria conta e risco, acolhemos a sugestão de Agamben quando diz que “é a partir desses terrenos incertos e sem nome, dessas ásperas zonas de indiferença, que deverão ser pensadas as vias e os modos de uma nova política” (2003: 189).

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Não estou nada segura de que um “nova política” seja possível, muito menos acerca do que ela poderia ser. Porém, a questão é interessante pela própria indeterminação de seu sentido, algo como uma fenda aberta para apreender as linhas de fuga que atravessam o atual estado de coisas.

Segundo: no que diz respeito aos ilegalismos urbanos, tal como vêm se per-fi lando nos circuitos dos mercados informais e ilegais, tratou-se de situá-los em um outro jogo de escala e sob uma perspectiva ampliada, pertinente às confi -gurações do capitalismo contemporâneo. Um outro registro da exigência de um deslocamento de parâmetros: não mais essa espécie de buraco negro a indicar os avatares, bloqueios e impasses de uma modernidade incompleta ou, para usar os termos de Francisco de Oliveira (2007), a “exceção do subdesenvolvimento”. É aqui que ganha pertinência a pergunta sobre os ordenamentos sociais que vêm sendo urdidos nas dobras do mundo atual. É essa a pergunta que os autores comentados nesse capítulo (e outros, como será visto no capítulo seguinte) se fazem quando se propõem a prospectar – e descrever – os feixes das conexões e suas redes em escalas variadas que se fazem nas fronteiras incertas do formal e informal, do legal e do ilegal, para apreender o modo como Estado, economia e sociedade se redefi nem entre a implosão de suas formas canônicas e a confi gu-ração de novos diagramas de relações e de domínio, também de formas sociais e de confl ito entre grupos sociais e atores (outros jogos de atores) que também dão os sinais de uma experimentação histórica a ser seguida de perto.

Terceiro: mais do que simplesmente dizer e postular que “tudo mudou”, é preciso saber mostrar como esses processos operam em contextos situados. Não se trata de “demonstrar” uma tese geral, entregar provas e seus certifi cados de verdade. Aqui se está no cerne do que antes foi proposto como etnografi a experimental. Em seu ponto de mira, as conexões e as mediações pelas quais se processam os deslocamentos das fronteiras do informal, do ilegal e do ilí-cito. Também os agenciamentos práticos ancorados nas circunstâncias da vida cotidiana, por meio dos quais os indivíduos transitam nessas fronteiras poro-sas, mas que também operam como conectores dessas linhas cruzadas que tecem o mundo urbano. Assim, em uma primeira cena descritiva, a meada de intermediários e os dispositivos situados territorialmente que viabilizam essa ampla circulação de pessoas e produtos que seguem as trilhas das redes de subcontratação, tal como foi descrito páginas atrás. Ou então, segunda cena, as circunstâncias da moradia precária em que o acesso a serviços ou a disputa em áreas de ocupação mobiliza um jogo de atores no qual se fazem presentes indivíduos e suas famílias, agentes públicos, lideranças comunitárias, ONGs e associações de fi liação diversa, inclusive a chamada fi lantropia empresarial. Mas também os chefes locais do tráfi co de drogas e dos negócios ilícitos: é com eles que é preciso negociar, fazer acordos, chegar a entendimentos, no mínimo para garantir a proteção para realizar o trabalho esperado, e também para agenciar os modos como os serviços serão realizados e distribuídos na região. Em uma terceira cena, é um programa de distribuição de cestas básicas que é, todo ele,

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agenciado pelos chefes locais do tráfi co de drogas, que se encarregam de arti-cular toda uma rede de colaboradores e aliados, entre comerciantes e perueiros, clandestinos ou não, além do uso, digamos assim, “solidário” do “excedente” dos negócios ilícitos locais.

Nessas cenas, poderíamos multiplicá-las, encontramos todos os ingredientes que compõem a agenda das pesquisas e propostas de “boas práticas” para uma boa e virtuosa gestão da vida local: solidariedade intrapares, capital social e rede social. Está tudo aí, não falta nada. Todos os elementos pelos quais se constrói a fi cção comunitária que está, hoje, no coração das formas contemporâneas de gestão social, a rigor, o biopoder de que fala Foucault (2004) e é por ele identi-fi cado no centro da governamentalidade liberal: gestão das populações, gestão das vidas, administração de suas urgências. Porém, como diz Bruno Latour (1994: 115), se o assunto são as redes, não se trata de escolher entre o “local” e o “global”, para reter os termos da moda, pois “as redes não são, por natureza, nem locais nem globais, são mais ou menos longas, mais ou menos conectadas”. E envolvem “boas conexões” e “más conexões”. Quer dizer: o problema todo está em saber e compreender o modo como os vínculos e conexões operam, já que, sempre situados, se fazem na composição e conjugação entre circunstâncias, fatos, coisas e atores. É aí nessas intersecções que as coisas circulam, que os fatos são produzidos, que tramas de relações e de poder são construídas. É exatamente aí que se torna perceptível a pulsação do mundo urbano. É por aí que passam as linhas de força pelas quais o estado de coisas atual se confi gura e se transforma. É também aí que se alojam os pontos de fricção dos ordenamentos sociais que vêm se desenhando ou já se constelaram na virada dos tempos.

Texto de passagem, no seu conjunto, esse capítulo apresenta uma primeira aproximação de questões que terminaram por pautar todo um programa de pes-quisa. Alguns de seus resultados são apresentados na sequência. No capítulo 5, “Nas dobras do legal-ilegal: ilegalismos e jogos de poder”, tentou-se especifi car o lugar desse feixe variado de ilegalismos no tecido urbano. Aqui, a noção-chave que nos orienta nessa discussão (e descrições) é a de gestão diferencial dos ile-galismos (Foucault). Páginas atrás já se adiantou a discussão desenvolvida nesse capítulo. Vale acrescentar algumas questões que esclarecem o modo como se propõe trabalhar com essa noção. Ilegalismos: nos termos propostos por Foucault, não se trata de um certo tipo de transgressão, mas de um conjunto de atividades de diferenciação, categorização, hierarquização postas em ação por dispositivos que fi xam e isolam suas formas e “tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral de sujeições” (2004: 226). É importante reter essa diferença entre ilegalismos e modos de objetivação (a “delinquência” é uma delas, tal como o fi lósofo discute em Vigiar e punir), os pontos de incidência das clivagens produzidas e seus efeitos, assim como os campos de gravitação de práticas, de disputas, de confl itos e jogos de poder. É o que permite colocar em perspectiva, em um mesmo plano de referência, essas transgressões múltiplas, sem dissolvê-las sob um nome comum ou em um amálgama confuso e indiferenciado.

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Como diz Lascoume (1996), “ilegalismos” é um instrumento de análise que, aqui, no uso que se está fazendo da noção, permite rastrear essa transitividade entre o ilegal, o informal e o ilícito, que foi aqui o nosso ponto de partida, sem se deixar cativo, digamos assim, dos objetos e campos de objetivação postos, no que diz respeito aos temas aqui tratados pela economia, pela sociologia do trabalho, também pela sociologia urbana (o problema do formal-informal) ou pela criminologia (crime e delinquência). Mas é também o que permite colocar em um mesmo plano de referência as formas de controle e poder que se dife-renciam, que também assumem dimensões territorializadas conforme as formas e distribuição diferenciadas dos ilegalismos nos espaços urbanos. Formas de controle que oscilam entre a transgressão consentida, o jogo pesado de chan-tagem e extorsão implicado na transação das mercadorias políticas, a violência extralegal e a prisão (isto é, um dispositivo legal) que parece recair sobretudo sobre uma criminalidade urbana difusa, avulsa, desterritorializada e que vem abarrotando os dispositivos carcerários, resultado do endurecimento penal dos últimos anos. Em seus vários registros, a gestão diferencial dos ilegalismos nos ajuda a traçar as linhas que desenham a cartografi a do social e situar seus pontos de fricção, também suas transversalidades, os “vasos comunicantes”, como diz Rafael Godoi (2009), nesses lugares em que a experiência com a lei e as forças da ordem abre-se a uma disputa sobre os sentidos de ordem e seu avesso.

Se é nesse espaço conceitual que se situam as questões postas nesse capítulo, do ponto de vista empírico e histórico o esforço vai no sentido de situar esses ilegalismos no cenário atual, no cerne das formas contemporâneas de produção e circulação de riquezas, os quais têm impactos consideráveis nas dinâmicas urbanas, também nos chamados países do Norte. Em um primeiro momento, tratou-se de seguir as pistas que diversos autores nos entregam em suas pesquisas realizadas nas fronteiras europeias e que interessam na medida em que oferecem um repertório ampliado de referências pertinentes ao cenário contemporâneo. São essas as referências mobilizadas para situar e descrever a situação brasilei-ra a partir de três cenas descritivas. Em cada qual, jogos situados de escalas. Confi gurações diferentes dos campos de força nos quais e através do quais os ilegalismos fazem o traçado da vida urbana. Primeiro, os ilegalismos difusos inscritos nas “mobilidades laterais” das fi guras contemporâneas do trabalhador urbano: é a cena descritiva que abre esse capítulo. Depois, os circuitos entrela-çados no comércio informal e que fazem ver os ilegalismos pulsando no centro nervoso da economia urbana da cidade. Por último, o cenário é a periferia pau-lista, onde todos esses fi os se enredam, também no varejo da droga, um plano crivado pela clivagem entre ilegalismos e crime.

No capítulo 6, “Ilegalismos e a gestão (em disputa) a ordem”, retomam-se e desdobram-se questões discutidas na última cena descritiva acima indicada. Nosso “posto de observação” é um bairro de periferia. O ponto de partida da discussão é a redução acentuada (e impressionante) das taxas de homicídio na Grande São Paulo a partir do início dos anos 2000, depois de duas décadas

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seguidas de curvas ascendentes, com picos altíssimos no fi nal da década de 1990. Mais especifi camente: as evidências de que, em torno do mercado varejista de droga que, desde o início dessa década, estruturou-se mais amplamente na cidade, sob o controle da organização criminosa que leva o nome de Primeiro Comando da Capital, o PCC, ganharam forma modos de regulação, mediação e arbitragem das desavenças e disputas internas aos “negócios do crime”, os quais buscam estancar as soluções violentas. Um conjunto de práticas, códigos, protocolos e procedimentos que são sempre situacionais, com modulações que variam conforme a extensão do problema, a gravidade do assunto, as relações e comprometimentos envolvidos. São mecanismos de arbitragem. O chamado “debate” é uma de suas formas, a mais importante. No início, um mecanismo posto em prática na resolução das desavenças internas aos “negócios do crime” e às organizações criminosas. Surgiu, primeiro, no universo carcerário (também aí se deu a diminuição das mortes violentas), transborda, depois, para os bairros das periferias da cidade e, em pouco tempo, coisa de poucos anos, passou a ser acionado para a regulação de microconfl itos cotidianos: de brigas de vizinhos a disputas em torno da distribuição de lotes em áreas de ocupação, pequenos delitos locais e miríades de situações próprias à vida desses bairros. O “debate” passou a ser referência que compõe o repertório popular. Não poucas vezes, são os próprios moradores que procuram o “patrão” da “biqueira” local para arbitrar litígios e desacertos cotidianos, o que ele pode fazer ou não, a depender das circunstâncias e das implicações envolvidas. Às vezes, no caso de assuntos me-nores e localizados, basta a presença do “patrão” da “fi rma”, que intervém para “trocar uma ideia”, outra expressão que também circula no “mundo do crime” e fora dele, por todo o bairro, modulação mais informal e de circunstância do “debate” para a regulação e arbitragem de confl itos locais.

Isso está registrado em nossos diários de campo, nossos e de todos os pes-quisadores que, nesses anos, fi zeram seu trabalho de campo nessas regiões (cf. Feltran, 2009): qualquer morador diz e repete com convicção: “agora, não pode matar”. Contraponto com o tempo, pouco tempo antes, em que ao falar de suas trajetórias, homens e mulheres (mais os homens que as mulheres) faziam uma verdadeira contabilidade dos mortos: “morreram todos” era a expressão que então circulava. É coisa de poucos anos: essa diferença também está registrada em nossos diários de campo. E é daí que se parte para fazer a discussão.

Não é objetivo desse capítulo entrar na polêmica sobre indicadores e fatores que explicariam as evoluções recentes das taxas de homicídios. Entre muitas outras, a “hipótese PCC” também circula nessas discussões. E se esta interessa, é porque em torno dela se pode lançar três ordens de questões.

Primeiro: desde que sem se deixar tomar pela fantasmagoria (que também circula nesse debate) de um monstro tentacular que impõe seu domínio pelo terror, é preciso deslindar esse ancoramento do PCC nas tramas sociais das pe-riferias paulistas. Mais precisamente, esse o fulcro do que se pretende discutir: o que está em jogo nessa espécie de gestão da ordem que parece passar por

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mediações, protocolos e códigos distantes (porém, não à margem) da normativi-dade legal-formal. É nesse ponto que as questões assinaladas páginas atrás serão trabalhadas: uma gestão da ordem que parece se fazer pelas vias de agencia-mentos práticos nas dobraduras da vida social, quer dizer: nos pontos em que se entrelaçam as forças da lei (e seus modos de operação), os ilegalismos (e nesse caso, a clivagem entre ilegalismos difusos e o crime) e as microrregulações da vida cotidiana. Isso não é de agora, está presente na história urbana, ao menos tal como pudemos apreender nos percursos cruzados dos personagens urbanos, cujas histórias tratamos de reconstruir. O ponto importante a ser enfatizado e que será trabalhado ao longo desse capítulo: se há uma novidade no acontecimento PCC, é preciso situá-la nesse plano, nos pontos em que esse acontecimento se comunica com uma experiência que vem de antes e que faz parte da história urbana dessa cidade, quiçá de outras.

Segundo: será importante se deter na lógica que parece reger a “pacifi cação” desses territórios, pois é isso que pode nos dar as pistas para compreender o que está em jogo nessas formas de gestão (em disputa) da ordem. Começando pela hipótese mais evidente, quase óbvia: as razões instrumentais próprias desse mais do que rendoso mercado em uma situação de controle do PCC sobre o fornecimento da droga, o que parece ter refreado a disputa de territórios. Mas o mercado, também o mercado de bens ilícitos, não é uma entidade abstrata. O seu funcionamento supõe e ao mesmo tempo engendra uma trama complexa de relações, interações e intercâmbios sociais, redes sociais, também redes e rela-ções de poder. Sob esse prisma, as coisas fi cam menos evidentes e nada óbvias. Em torno de um ponto de droga, a “biqueira”, estrutura-se um muito instável equilíbrio entre, de um lado, o jogo de poder posto pela compra de proteção e a extorsão policial, a mercadoria política, como diz Michel Misse, de que de-pende o funcionamento do negócio e faz parte de seus modos de regulação. De outro lado (e ao mesmo tempo), as circunstâncias da sociabilidade local, entre o respeito às regras da reciprocidade da vida cotidiana, o cálculo refl etido para garantir a cumplicidade dos moradores contra as investidas da polícia e também a estratégia para controle de território ante grupos rivais. O fato é que as micror-regulações dos negócios locais da droga confundem-se, em muitos sentidos, com a gestão e arbitragem de problemas, desavenças, confl itos cotidianos. Brigas de vizinho, confl itos de família, adolescentes desabusados, barulho excessivo nas horas tardias da noite, em suma, qualquer coisa que possa chamar a atenção da polícia ou provocar a hostilidade e má vontade dos moradores, situação delicada e perigosa, pois é sempre assim que surgem as temidas denúncias anônimas que acionam a intervenção da polícia. Como diz Daniel Hirata (2010), a “biqueira” funciona como uma espécie de caixa de ressonância de tudo o que acontece no bairro e é por isso que termina por se tornar um lugar estratégico para a gestão da ordem local.

Esse é um cenário também atravessado por redes superpostas e embara-lhadas de pessoas, trocas, produtos, bens que circulam nas fronteiras incertas

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do informal e o ilegal, entre expedientes de sobrevivência, o trabalho irregu-lar, pequenos empreendimentos locais e negócios ilegais vinculados ou não (ou não necessariamente) a organizações criminosas. E esse é o outro ponto a ser considerado: essa gestão dos negócios locais, na sua interface com as tramas cotidianas de bairro, tangencia esse feixe de ilegalismos que também interagem com as redes da sociabilidade local. São práticas e redes sociais que atravessam e compõem a vida de um bairro de periferia. E criam outras tantas zonas de fricção que, também elas, precisam ser bem agenciadas para evitar complica-ções com a população local e, sobretudo, evitar ocorrências indesejáveis com a polícia. Esse o outro vetor de regulação dos negócios locais da droga e que se desdobra na gestão dos confl itos e tensões que podem também desembocar em soluções de sangue. Como bem nota Daniel Hirata (2010), é nesse plano que é possível entender a construção social do mercado dos bens ilícitos: em torno de uma “biqueira”, um feixe de relações em que se articulam os mercados de proteção, as microrregulações da vida cotidiana e esse feixe de ilegalismos que estão, hoje, no coração do mundo urbano. E é nesse plano que se pode entender o ponto de incidência do PCC e suas capilaridades nas tramas da cidade.

Terceiro: ainda resta entender a lógica interna desse conjunto de práticas re-gidas pelo imperativo de estancar as soluções violentas. Concretamente: estancar a morte violenta. Estancar, quer dizer: algo que está latente e sempre no limiar de surgir e se desdobrar em ciclos de vingança que podem ser devastadores, quase irrefreáveis. Como diz um de nossos entrevistados, “bandido formado”, como ele mesmo se defi ne, longo percurso na pequena criminalidade urbana, muitos anos de cadeia e, depois, “gerente” da “biqueira” local: “se você mata...e não era para o cara morrer, aí você também vai morrer, é a guerra”. Essa “pa-cifi cação”, portanto, precisa ser situada em relação a esse longo ciclo de mortes violentas das décadas anteriores. É isso, a rigor, que ainda tem que ser mais bem entendido. Mas, então, é de interesse recuperar algo da história urbana recente, tendo em mira o que parece ter acontecido nessas décadas, ao menos em alguns bairros (ou muitos) da periferia paulista. Esta é uma questão de pesquisa, pistas (algumas) que tratamos de seguir em nosso trabalho de campo.

Aqui, nesse ponto, recupera-se a questão discutida no capítulo dois, a im-portância de se reter a cidade como plano de referência. Não se trata de defi nir o “contexto” a partir do qual situar e explicar por derivação de supostas cau-salidades gerais o que pode ter acontecido nesses lugares. Trata-se de fazer ver conexões e mediações por onde se processa a experiência urbana e que fi cam inteiramente fora de mira se se atém ao objeto já posto e já codifi cado como crime, criminosos e violência, e seus indicadores. Retomando uma questão apresentada páginas atrás: uma experiência que se processa nas dobras do legal-ilegal, as relações de poder e força que se processam nesses pontos de fricção da lei e seus modos de operação. Nos termos de Michel Misse (2007), referência importante nessa discussão: os “excessos de poder” implicados nos modos de incriminação postos em ação pelas forças policiais, que se desdobram no uso

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dos procedimentos extralegais (mercados de proteção, práticas de extorsão) e da violência letal (execuções) e que estão no cerne do que o autor chama de “acumulação social da violência”. Nos termos de Das e Poole (2004): produção das “margens”, espaços de exceção, mas espaços que se produzem nos pontos de intersecção entre os modos de operação das forças da ordem e outros modos de regulação ancorados nas circunstâncias práticas de vida, em seus imperativos de sobrevivência, necessidades de segurança, sentidos de ordem e justiça. Essa é uma chave possível para conferir inteligibilidade a uma experiência urbana que se processa entre a violência policial e a “morte-matada” (e sua ameaça) desencadeada nos pontos incertos de clivagem entre os ilegalismos difusos e o crime. É nesse registro que se podem apreender mecanismos de uma gestão da ordem que não se faz à margem da lei e do Estado, que não poderia, por isso mesmo, ser tão somente tributada ou reduzida a algo como cultura e tradições populares. Talvez uma economia moral nos termos propostos por Thompson (1979), ativada nesses campos de gravitação da experiência urbana, campos de força engendrados nesses pontos de incidência da lei (seus modos de operação), os ilegalismos e as formas de vida. Com modulações diferentes, conforme tempos e contextos urbanos que se modifi caram no correr das três ultimas décadas, este é um prisma que se abre a partir das pistas que nos foram entregues pelos percursos dos personagens urbanos cujas histórias procuramos reconstituir.

É nesse plano que se podem apreender as formas de uma gestão local da ordem, sempre refeita e sempre desestabilizada pelos ciclos de violência acionados pela lógica da vingança que escapa e vaza dos agenciamentos e microrregulações locais. Essa a lógica de vingança que parece ter sido estancada pelos procedi-mentos postos em ação pelo PCC: mecanismos de resolução de desavenças e disputas não apenas internas à organização criminosa e aos negócios da droga, mas esses pontos de fricção que se multiplicam ou tendem a se multiplicar na própria medida em que os ilegalismos se redefi nem, se expandem e se ramifi cam no mundo urbano dos anos 2000.

Que se diga, desde logo: esse capítulo não é sobre o PCC, tampouco sobre o mercado de drogas ilícitas. Se um e outro entram no ponto de mira de nossas descrições, é porque são hoje fatos incontornáveis do mundo urbano. Para escla-recer o andamento desse capítulo, talvez sejam importantes algumas observações prévias sobre o modo como essa pesquisa foi feita.

Em 2001, quando iniciávamos o trabalho de campo, uma das regiões esco-lhidas para a pesquisa foi o Distrito do Jardim São Luiz, periferia sul da cidade.2 No correr das décadas, essa região sempre compareceu nos primeiros lugares no ranking dos lugares mais violentos da cidade, quer dizer: no ranking de mortes violentas, homicídios. Nas entrevistas que então fazíamos e nas observações que preenchiam os nossos diários de campo, era frequente o comentário: “o

2 Uma outra equipe deslocou-se para o extremo leste da cidade, Guaianazes e Cidade Tiradentes.

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problema da região está na rua Y do bairro X”, é lá que as mortes acontecem, é lá que está o problema. Depois de ouvir inúmeras histórias, fi cções ou fatos, pouco importa, fi cou claro que era para lá mesmo que deveríamos nos dirigir. Não porque estivéssemos interessados no tema da violência, que não era e nunca foi nosso tema de pesquisa. Mas havia algo como uma lenda-negra desse bairro e quisemos saber do que se tratava. O “mistério da rua Y”, isso até parecia título de romance policial: foi assim que chegamos ao lugar. Pela intermediação do chefe do Centro de Saúde da região, fomos apresentados a uma importante liderança comunitária. Ela morava (e mora) precisamente lá, na rua Y do bairro X. E foi aí, precisamente aí, que a pesquisa começou. Não é irrelevante contar como fomos apresentados: “a professora da USP e seus alunos” estão fazendo uma pesquisa e ouviram dizer, “todo mundo” diz isso, que “tudo de ruim” que acontece na região é por conta da rua Y do Bairro X. Isso funcionou como um “abre-te, Sésamo”. A resposta: “nunca ninguém veio aqui para saber a nossa opinião”. Em pouco tempo já estávamos em campo, fazendo entrevistas, obser-vando, preenchendo os nossos diários de campo. Como em outras regiões em que fazíamos a pesquisa, histórias de vida e trajetórias urbanas.

Logo fi camos conhecidos por conta dessa estranha e inaudita disposição para ouvir histórias e conversar sobre elas. Foi exatamente por isso que, de uma certa feita, fomos procurados por um rapaz de 25 anos, aliás genro dessa senhora que nos acolhia, ex-preso, na verdade, foragido: muitos anos de Carandiru, outros tantos em outras unidades prisionais. Fazia poucas semanas, pouco mais de um mês, que ele voltara ao bairro. Evidentemente afetado pela experiência na prisão, era sobre isso que ele queria conversar – ele queria contar a sua história. Pois essa história nos ofereceu quase que um roteiro de pesquisa. Ou o script de um enredo de aventuras, aventuras bandidas. É a história de um trabalhador (com carteira assinada, bom salário, futuro promissor) que se viu em meio a um enre-do de vingança familiar (1995) e que terminou por se envolver em uma guerra sangrenta, muito sangrenta, entre duas gangues rivais; virou “bandido”, foi preso, amargou longos anos de prisão, fugiu (2001) e, depois de um tempo de rumo incerto, transformou-se em “patrão” do ponto de venda de drogas no local (2004). As datas indicadas são importantes, pois dão a marcação dos tempos urbanos, tal como, aos poucos, pudemos apreender nesse bairro, conforme prosseguíamos na pesquisa. Pois tratamos de seguir o roteiro ou o script dessa história. O seu perso-nagem principal funcionou como nosso “embaixador” no “mundo bandido”: outros também quiseram contar suas histórias, várias. Ao mesmo tempo, entrevistas, muitas, com moradores e suas famílias, alguns antigos, outros recém-chegados no bairro, além das conversas “à toa”, micro-histórias de bairro, a observação etnográfi ca e os nossos diários de campo. No seu conjunto, um entrelaçado de histórias bandidas e não-bandidas que nos entregaram elementos para reconstituir a história urbana local, desde os anos 1980. E por essa via, os elementos, para situar o ponto de clivagem dos anos 2000, que têm como epicentro o ponto de droga instalado no miolo desse bairro, nos primeiros anos da década.

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O fato é que os tempos urbanos desse bairro são também (não só) marcados, ritmados, por histórias de violência. Isso está posto na história local, também nas biografi as dos moradores comuns. Histórias de justiceiros e chacinas (anos 1980); histórias de “matadores” (expressão nativa, próxima, mas não idêntica, a “pistoleiros”), mortes encomendadas e o mercado de execuções, guerra entre gangues de bairro, disputa de territórios, soluções violentas para desavenças locais (anos 1990), tudo isso permeado e também ritmado pela violência poli-cial. Nesse capítulo, porém, o objetivo não é fazer o inventário das formas de criminalidade urbana, muito menos oferecer explicações para a violência urbana. Mas seguimos os rastros das “histórias bandidas”: histórias de justiceiros (anos 1980), matadores (anos 1990) e trafi cantes (anos 2000), os três personagens urbanos que comparecem nas cenas descritivas armadas nesse capítulo. Cada qual faz a marcação de temporalidades distintas e, sendo assim, talvez nos aju-de a compreender as infl exões e deslocamentos da história urbana recente, em compasso com evoluções da economia, sociedade e cidade. Cada qual resulta de arranjos urbanos e contextos de criminalidade, cuja singularidade interessa entender. Em torno de cada um desses personagens, confi guram-se determina-das relações com as forças da ordem e com os moradores, estas ancoradas nas microrregulações locais. Esse o ponto que se tentará trabalhar ao longo dessas páginas: agenciamentos distintos que, nas suas diferenças, nos informam algo sobre uma gestão da ordem local que se faz nos pontos de intersecção da lei, dos ilegalismos e das formas de vida.

Não estou segura de que tenhamos deslindado o “mistério da rua Y”, prova-velmente não: ainda há muito a ser pesquisado, as lacunas são grandes e esse capítulo apresenta apenas o que foi possível trabalhar com o material de uma pesquisa que está longe de ser concluída. Sobretudo o longo (e espantoso) ciclo de mortes violentas nos anos 1990 persiste como uma caixa-preta a ser ainda aberta. E esse é, na verdade, o ponto cego das discussões correntes sobre a queda dos homicídios no início dos 2000: os especialistas acompanham as os-cilações dos indicadores, esgrimam suas hipóteses e apresentam as razões de circunstância, sem que se indague sobre as causalidades e circunstâncias que presidiram as curvas ascendentes de homicídios nas décadas anteriores, em particular nos anos 1990.3 É uma questão de pesquisa. No que nos diz respeito, tratamos de rastrear algumas pistas que nos foram entregues pelo trabalho de campo. Mas outras, muitas outras, ainda precisam ser trabalhadas. Esse capítulo

3 Essa questão esteve no centro das discussões no seminário “Crime, violência e cidade”, realizado em maio de 2009, como parte de um programa de cooperação franco-brasileiro (Capes-Cofecub), envolvendo pesquisadores da USP, Unicamp, do Núcleo de Estudos da Violência, NEV e, pelo lado francês, da Universidade de Toulouse Le Mirail e o CADIS. Os comentários de Michel Wierviorka (Cadis) foram especialmente incisivos nesse ponto cego das discussões. Uma primeiríssima e muito provisória versão desse capítulo foi apre-sentada nesse seminário. E ainda será preciso mais trabalho empírico e teórico para dar conta dessas questões.

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pode e deve ser lido como uma primeira aproximação, e suas lacunas, que são várias, estão ainda à espera de serem enfrentadas no curso de uma pesquisa ainda em andamento.4

Enfi m, não deslindamos o “mistério da rua Y”, mas não hesitaria em dizer que, nessa pesquisa exploratória, nos foram entregues elementos para se pensar as questões em jogo na “pacifi cação” desses territórios, a partir do que pudemos acompanhar no até então muito mal-afamado Bairro X. Não deixa de ser interes-sante notar: é justamente na “famosa rua Y” que os “debates” são realizados. Como bem nota Daniel Hirata (2010) na etnografi a de alguns deles, é na rua Y que se realizam os debates não apenas para os assuntos do local, mas de toda a região próxima. Tanto assim que, na linguagem nativa, quer dizer, linguagem bandida, a rua Y é chamada de “o forinho”, corruptela do diminutivo de fórum. A expressão também circula no repertório dos moradores locais. Antes, um epicentro das histórias de morte da região. Depois, o epicentro de seus modos de regulação (cf. Hirata, 2010).

Mas, então, é de interesse se deter na mecânica interna desse modo de arbi-tragem que leva o nome de “debate”. Adiantando descrições apresentadas nesse capítulo: é uma espécie de tribunal no qual se vai tentar encontrar soluções não para quaisquer confl itos e desavenças, mas para aqueles que podem desencadear desfechos violentos ou que estão no limiar de soluções de morte. Armada a cena do debate, as partes envolvidas são chamadas a dar sua palavra para esclarecer, justifi car, apresentar suas razões e, se for o caso, se desculpar. No debate estão sempre em jogo soluções de vida e de morte. O que vale é o poder da palavra. É um jogo (mais parece duelo) de provas – provas da palavra, da palavra empe-nhada, do argumento bem posto e aceito (ou não) em suas razões. O mediador é a fi gura central: uma fi gura do PCC, quase sempre de fora do bairro, que poucas pessoas conhecem, mas que impõe respeito porque é ele quem conduz os trabalhos e encaminha a deliberação fi nal. O debate sempre acontece com a presença dos patrões da “biqueira”. Pode se prolongar por vários dias, com data e hora marcadas e, conforme os casos e a gravidade do problema, outras pessoas das relações próximas dos envolvidos são chamadas, também patrões das “biqueiras” vizinhas e, sempre, outras fi guras do PCC, dentro e fora das prisões em comunicação por meio de seus celulares. O resultado pode ser um acordo ou alguma forma de punição: um “corretivo” (quer dizer: uma boa surra, que pode ser, mas nem sempre, bastante atroz), a expulsão do bairro, proibição

4 A pesquisa foi realizada em dupla, Daniel Hirata e eu. Por circunstâncias de momento, esse texto não pôde ser escrito a quatro mãos. As questões aqui discutidas foram elaboradas nessa parceria de pesquisa ao longo de quase oito anos de trabalho de campo. Em sua última parte, o texto incorpora um artigo escrito conjuntamente (Telles & Hirata, 2007) e é amplamente municiado por questões tratadas por Hirata em sua tese de doutorado (Hirata, 2010). Se méritos houver nesse texto, todos eles devem ser partilhados. As imperfeições são de minha inteira responsabilidade.

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de vender drogas na região, outras. Ou então, a morte – condenação sumária e irrevogável (cf. Hirata, 2010).

Essas são situações das quais os moradores não tomam parte, mas os rumores sempre correm por todos os lados. E todos comentam: foi-se o tempo em que os justiceiros aterrorizavam os jovens desabusados da região; em que o “mata-mata” entre grupos rivais transformava o bairro em um verdadeiro campo de guerra que podia prolongar-se por meses seguidos; no qual morria gente quase todos os dias por conta de desacertos quaisquer ou simplesmente desafetos entre uns e outros; em que a polícia aparecia também quase todos os dias, barbarizando os moradores, sobretudo, os mais jovens, e as execuções também compunham o dia a dia do bairro, e de todos os outros.

Na cena desses debates, como parece evidente, exercita-se uma modalidade do poder soberano: “poder matar, deixar viver”. É isso o que está posto nos protocolos e procedimentos que regem o jogo regulado do exercício da palavra das partes envolvidas e a deliberação fi nal. Mas, então, seria possível dizer que se está presenciando algo como poderes de soberania em disputa. Talvez seja isso o que esteja em jogo nesses espaços produzidos como margem. Se há uma “pacifi cação” relativa desses territórios, ela também precisa ser coloca-da em perspectiva e em relação com as modalidades de operação das forças da ordem que continuam presentes, marcando e demarcando esses territórios como espaços de exceção. Os procedimentos extralegais da polícia continuam operantes, com seus mercados de proteção e práticas de extorsão. A violência extralegal persiste, as “mortes seguidas de morte” têm aumentado nos últimos anos, continuam alimentando as listas de mortes violentas, o que pode chegar a extremos, como aconteceu após as ações do PCC na cidade de São Paulo, em maio de 2006: 493 execuções pela Policia Militar em uma semana, mais de mil nos meses seguintes. E há evidências de um recrudescimento dos grupos de extermínio, que nunca deixaram de existir, mas que parecem ter voltado à ativa, e de modo bastante virulento, após 2006, conforme relatório do Human Rights Watch publicado em dezembro de 2009.

No bairro X, os mercados de proteção e práticas de extorsão persistem, tanto quanto as suas oscilações, que seguem os imponderáveis das microconjunturas políticas e dos rearranjos internos às forças policiais e equipes que dividem entre si (e disputam) essa preciosa fonte de renda e poder. A “biqueira” local (e o entorno imediato) tem sido relativamente preservada (até quando?) das formas mais truculentas da ação policial. Talvez uma cartografi a das execuções policiais (se é que isso é possível) pudesse esclarecer a lógica que preside a escolha de lugares e vítimas, acordos desfeitos em alguns casos, revides e vinganças em outros e também, quem sabe, a distribuição desigual da presença e força do PCC nesses espaços.

Poderes de soberania em disputa: é uma pista possível a ser trabalhada. Se isso for pertinente, então também será preciso qualifi car melhor a questão. Pois um não replica o outro, o PCC e seus debates não são o decalque das formas

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do Estado. Não se trata, como muitas vezes se diz, da aplicação tirânica de um corpo fechado de normas, regras, leis imperativas emanadas de um corpo cen-tral. O PCC e seus “debates” não são uma replicação das formas verticalizadas do Estado. Não operam como Estado paralelo: mais do que um equívoco, seria uma forma de des-conhecimento insistir nessa tecla que muitas vezes se repete quando o assunto vem à baila. São outras as lógicas. Mas tampouco se avançaria, insistindo em encontrar a chave explicativa nos modos de funcionamento interno da organização, até porque esta é mais porosa e mais modular (não modelar) do que se supõe, muito distante dos modelos da máfi a e congêneres com suas estruturas piramidais, fechadas, hierarquias e lugares normativamente fi xados. Na formulação precisa de Fernando Salla (2009: 9), analisar a força ou fraqueza dos grupos criminosos exigiria perguntar não apenas por suas características internas, não apenas pela natureza das atividades criminosas que eles dominam, “mas também pelas transações que são capazes de estabelecer no domínio de seus negócios com as forças da lei, pelas relações que costuram com as comunidades onde atuam e ainda pelas transações que atravessam o sistema prisional”.

É sempre possível ponderar que tudo isso é muito instável e é o caso de se perguntar – e todos se perguntam, também os trafi cantes e moradores locais – o que poderá acontecer quando e se o PCC perder o controle do mercado de drogas em São Paulo. No horizonte dessa pergunta está a situação do Rio de Janeiro e as sangrentas disputas entre “comandos” rivais. Mas isso são espe-culações. Porém, mesmo na hipótese de que essa situação não se mantenha, é preciso também reconhecer que isso já produziu efeitos, fatos e acontecimentos que compõem e se compõem com a dinâmica urbana de São Paulo. E não é nada irrelevante lembrar que são fatos e acontecimentos que se processam no coração de uma metrópole, hoje, amplamente celebrada por sua modernidade globalizada. Ramifi cam-se pelos meandros dos ilegalismos engendrados no centro dinâmico da cidade, e do mundo contemporâneo. Os sentidos de lei, de justiça, de ordem (e seu inverso) em disputa: talvez seja nisso que se possa apreender o que está em jogo nesses espaços produzidos como espaços de exceção e que estão no cerne dos modos de funcionamento do Estado, nessas pontas em que sua presença afeta as vidas e as formas de vida.

Nem conclusões, nem considerações fi nais: apenas perguntas as quais, tam-bém elas, ainda têm que ser mais bem formuladas. E são essas que importam, pois são elas que podem nos lançar para além do círculo fechado do presente imediato. Talvez seja essa a experimentação – e o trabalho do pensamento como experimentação – a que somos levados ao seguir os traços dos ilegalismos nos meandros do mundo urbano atual.

* * *

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Este trabalho não teria sido possível sem um coletivo de pesquisa e os inter-locutores que nos acompanharam desde o início. Mais do que os agradecimentos de praxe, o reconhecimento do lugar de cada um nesse percurso. Antes de mais nada, a Robert Cabanes (IRD, França), com quem partilhei a coordenação da pesquisa que esteve na origem desse trabalho. Com ele aprendemos a arte do detalhe, a importância de se deter nos microeventos de que são feitas as traje-tórias de homens e mulheres. Pesquisador incansável, é ainda dotado de um especialíssimo talento em abrir frentes de pesquisa, a curiosidade fecunda em seguir os achados de pesquisa, aberto, sempre, ao imprevisto do trabalho de campo. Sem isso, teria sido impossível a pesquisa exploratória sobre a qual tanto foi dito nesta introdução. E isso foi mais do que importante na formação de um coletivo de pesquisa, constituído, no início, por jovens estudantes (bolsistas de Iniciação Científi ca e pós-graduandos) que se tornaram pesquisadores experientes e, hoje, nossos parceiros de pesquisa.

O projeto inicial foi desenvolvido em grande medida nos quadros do Cenedic. A interlocução com Francisco de Oliveira acompanhou todo esse percurso. Com ele aprendemos a importância da imaginação crítica e a tarefa da crítica nesses tempos em que a política parece ter deslizado para a gestão das urgências, da “exceção que se tornou a regra”. A crise da política (e a erosão de suas media-ções), foco de suas refl exões, é questão presente nas linhas e entrelinhas desse texto, tanto quanto esteve presente, também nas linhas e entrelinhas, no livro cuja coordenação partilhei com Robert Cabanes. Cibele Saliba Rizek acompa-nhou passo a passo essa pesquisa, e também as pesquisas que, depois, foram desenvolvidas pelos jovens pesquisadores como pós-graduandos. No encontro de questões e inquietações comuns, apreendemos muito sobre os sentidos da cidade e suas fi gurações, sobre a indeterminação dos tempos que correm e reordenamentos sociais cujas lógicas tratamos de perscrutar.

Reafi rmando uma interlocução já de longa data, foram várias as oportunidades de discutir nossas questões com Lúcio Kowarick. Também vários os momentos em que, trabalhando juntos nos pontos de convergência de nossas respectivas pesquisas, pudemos ver confi rmada a questão que Lúcio sempre e desde há muito nos apresenta: a cidade como espaço de luta, mesmo ou, sobretudo, nos registros mais agudos desse “viver em risco” que conforma a vida urbana e que ele sabe tão bem pesquisar e lançar ao debate.

Com Angelina Peralva, mais do que uma interlocução fecunda, a parceria em um projeto comum (Acordo Capes-Cofecub) foi decisiva para o giro de pers-pectivas a fi m de lidar com os ilegalismos urbanos, tema central da segunda parte deste livro. A possibilidade que se abriu para pensar essas questões sob outros prismas, “postos de observação” instalados nos chamados países do Nor-te, e suas fronteiras. Outras questões em jogo, outros campos polêmicos, outros tantos desafi os, outros repertórios de referências empíricas e teóricas. Colocar minhas próprias questões em discussão com interlocutores muito distantes das nossas linhagens e campos polêmicos foi um exercício especialmente fecundo.

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Por sua vez, aqui, em suas várias, e uma delas prolongada, “missões de pesqui-sa”, para usar o termo técnico desses convênios, Angelina não deixou intacto o nosso coletivo de pesquisa. Junto com os jovens pesquisadores, lançou-se nos meandros do comércio informal e nos ajudou a calibrar a pesquisa em sintonia com situações parecidas, hoje recorrentes do outro lado do Atlântico. Sobretu-do, amiga e parceira, é uma convivência que me confi rmou a possibilidade de se tocar uma pesquisa, formar coletivos, juntar e agregar pessoas (nisso, o seu talento é impressionante) com base em relações fundadas na reciprocidade, na generosidade. E, sobretudo, no imenso prazer que a prática do conhecimento e da descoberta pode nos propiciar, coisa rara e preciosa nesses tempos em que im-pera essa espécie de empreendedorismo acadêmico que nos enreda numa gestão pragmática, quando não burocrática, de nossas agendas, o que só faz enterrar e sufocar o trabalho de refl exão e o exercício da imaginação criadora.

Esse projeto conjunto me permitiu estreitar os laços com Sérgio Adorno, parceiro no convênio Capes-Cofecub e interlocutor constante e importante no andamento de nossas pesquisas. Junto com Angelina, a montagem e encaminha-mento do seminário “Crime, violência e cidade” (maio 2009) foi um momento importante nesse percurso. Momento de cruzamento de pesquisas diferentes, com seus respectivos enfoques, abordagens, ênfases, questões formuladas sob prismas diversos. Sobretudo, um momento que consolidou um espaço de in-terlocução feito dos pontos de encontro de nossas respectivas perspectivas de pesquisa. E que nos ofereceu um repertório de questões que nos ajudaram a lidar com problemas para os quais estávamos (ainda estamos) pouco municia-dos. Afi nal, ao lidarmos com os ilegalismos urbanos, entramos em um terreno em que se colocam os problemas da violência, do crime, da prisão, da polícia, das políticas de segurança. Para mim, para nós, foi e tem sido especialmente valiosa a possibilidade de abrir essa interlocução com os colegas do Núcleo de Estudos da Violência.

Fernando Salla, um encontro especialíssimo. Com sua inteligência aguda, seu domínio notável desses assuntos espinhosos e, sobretudo, a generosidade com que dialoga, acolhe as questões que se lhe apresentam, interage e se dispõe a uma elaboração conjunta feita dessa interlocução; a tudo isso este livro é muito devedor. Com Alessandra Teixeira aprendi muitíssimo sobre a lógica da exceção incrustada nos dispositivos penais e nas políticas de segurança e, por essa via, abriu-se todo um leque de questões importantes para entender as situações com as quais nos deparávamos no trabalho de campo. Com Fernando e Alessandra, montamos um grupo de discussão, também junto com Marcos Alvarez, outro parceiro no convênio Capes-Cofecub, jogando na roda de nossas discussões as infl exões atuais das políticas de controle social. Mais Daniel Hirata, Rafael Godoi, Fernanda Matsuda, cada qual trazendo as questões de suas respectivas pesquisas. É um coletivo que se reúne apenas pelo prazer da discussão conjun-ta e pela certeza de um espaço fecundo no cruzamento de nossas respectivas questões, também competências adquiridas em campos muito diferentes de

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pesquisa. Várias das questões apresentadas nos dois últimos capítulos deste trabalho trazem as marcas dessas discussões.

Por iniciativa de Hélène Rivière D’Arc, amiga de longa data, desde as mi-nhas primeiras passagens por Paris, nos circuitos que me foram abertos pela parceria com Robert Cabanes, veio-me a oportunidade de compor um programa de pesquisa, sediado em Paris (ANR-AIRD), sob a coordenação de Christian Azaïs e Marielle Pepin-Lahalleur, agregando um amplo coletivo de pesquisadores que desenvolvem seus respectivos trabalhos de campo na Cidade do México, em Buenos Aires, Caracas e também em São Paulo. Tive a oportunidade de discutir algumas das questões aqui tratadas em um seminário realizado na Cidade do México (em julho 2009), uma interlocução valiosa pelos vínculos construídos com os colegas e pela troca e intercâmbio de achados de pesquisa e perspectivas analíticas pertinentes ao lugar dos ilegalismos urbanos na dinâmica de nossas cidades. A participação nesse programa de pesquisa desdobrou-se em um convênio USP-IRD, permitindo a alocação de recursos no trabalho de campo, em particular na pesquisa sobre o comércio informal, levada a efeito por Carlos Freire.

Finalmente, o coletivo de pesquisa sem o qual nada disso teria acontecido. Com Daniel Hirata, presente desde o seu início, uma parceria contínua de pesquisa, sobretudo no empenho partilhado em deslindar o “mistério da rua Y”. As questões apresentadas na segunda parte deste livro foram elaboradas no andamento dessa pesquisa e dessa parceria. Infi ndáveis discussões quando voltávamos do trabalho de campo, a troca de nossos diários de campo e de achados de pesquisa, leituras conjuntas de textos de referência. Escrevemos um artigo juntos. Boa parte do que é apresentado nos últimos capítulos é resultado dessa convivência de pesquisa. Outra boa parte é devedora das questões que Daniel trabalhou em sua tese de doutorado. Rafael Godoi, e sua pesquisa sobre os “vasos comunicantes” entre o bairro e a prisão, tratou de ir atrás de achados de pesquisa que preenchiam os nossos diários de campo e, com isso, abriu uma frente de investigação sobre essa outra faceta das fronteiras porosas do legal e ilegal, importante, também ela, para entender as dinâmicas urbanas locais. Carlos Freire, por sua vez, enveredou pelos meandros do comércio informal. O seu talento de pesquisador e a acuidade das questões que formulou no andamento de sua pesquisa foram especialmente importantes para o tratamento que aqui se deu sobre o tema. Claudia Sciré nos fez conhecer melhor a outra face da cidade, o seu lado formal-legal, porém pelas vias das práticas de endividamento que sustentam o hoje celebrado consumo popular e que entram em ressonância com o que acontece nesses terrenos incertos entre o informal, o ilegal e o ilícito.

Todas as nossas questões de pesquisa foram discutidas conjuntamente. Desse coletivo também participam Eliane Alves, com sua pesquisa sobre os ilegalismos que atravessam a produção dos espaços urbanos; José César de Magalhães, com suas refl exões sobre a lógica que parece presidir as novas formas de gestão do social. Do entrecruzamento das várias questões de pesquisa e desse empenho

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partilhado, desde o início, o livro que ora se apresenta, oriundo de minha tese de livre-docência, é imensamente devedor.

Parte da pesquisa aqui apresentada contou com auxílio à pesquisa do CNPq. Mas, desde o seu início, esse coletivo não teria se mantido sem as bolsas de iniciação científi ca, de mestrado e doutorado. Também a bolsa que me coube e o adicional que lhe é indexado permitiram condições mais favoráveis para o andamento da pesquisa. A esta instituição, o meu agradecimento. Ao programa AIRD-ANR, o agradecimento por recursos de pesquisa e apoio de que pudemos desfrutar nos dois últimos anos.

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PRIMEIRA PARTE

Experimentações

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CAPÍTULO 1

A cidade e suas questões

Em 1982, um artigo que levava o título de “O Estado e o urbano” lançou um ponto de tensionamento nos debates que corriam na época. Nesse artigo, Francisco de Oliveira traçava as linhas de um diagrama de relações que faziam da cidade o cenário de um confl ito cujo epicentro era o próprio Estado (Oliveira, 1982).

Para

lembrar o título de outro artigo publicado alguns anos antes, em 1978, era um dia-grama de relações que articulava “acumulação monopolista, Estado e urbanização” e defi nia a “nova qualidade do confl ito de classes” (1978: 65-76). A cidade era o seu cenário. E o urbano, o solo tecido no ponto de infl exão de uma intervenção estatal que redefi nia as relações entre campo e cidade, que regulamentava as relações entre capital e trabalho e articulava produção industrial e acumulação ampliada do capital (Oliveira, 1978). Nesse agenciamento das relações entre eco-nomia, cidade e espaço nacional, afi rmava-se a potência do Estado na articulação geral da economia – o Estado “defi nia-se como potência de acumulação do capital privado”, defi nia-se, por isso mesmo como “lugar onde se arbitra a distribuição do excedente social” (1978: 53). A face política disso, continua o autor, foi o desman-che do poder político das classes trabalhadoras no pós-64 e a reiterada anulação das vozes das classes populares. Nas cidades, todo esse processo ganhava forma, estava corporifi cado nos seus espaços, pulsava na nova estrutura de classes que aí se materializava e explodia na pobreza urbana, na massa crescente de traba-lhadores pobres que se viravam por sua própria conta e risco nas periferias que então se expandiam e nas mil faces do problema urbano,

da poluição ao caos dos transportes urbanos, inevitavelmente criado pelo seu oposto, o automóvel, a dramática repetição da questão habitacional popular e a monótona repetição das soluções milagrosas, de que o fracasso da experi-ência do BNH parece não ter servido de imunização contra a retórica fácil; o aumento exponencial da insegurança do morador urbano, da criminalidade, da multiplicação coelheira do banditismo urbano, das chagas sociais expressas numa urbanização que se faz sem água e esgoto, a promiscuidade urbana que converte doenças geralmente consideradas não-epidêmicas em epidemias que ameaçam converter-se em catástrofes, como o recente exemplo da meningite e agora da encefalite; o descontrole do uso do solo urbano, em que a especula-ção imobiliária atua desenfreadamente [...], o recente fenômeno dos guetos de ricos que se isolam e se autarquizam nos faraônicos conjuntos “Ilhas do Sul”, “Portais do Morumbi”, “Moradas das Torres do Sol” [...], que são o oposto dos guetos dos pobres, expressos na multidunária formação de vilas e jardins como se apelidam os bairros pobres de São Paulo. (Oliveira, 1978: 68)

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Essa “fenomenologia urbana”, descrita com força e contundência no artigo de 1978, parece ecoar nos problemas urbanos atuais, não fosse o aumento brutal de escala; tudo agora, mais de três décadas depois, elevado à enésima potência. Porém, acontece que, hoje, o problema urbano não é o mesmo de antes. Na época, já dizia o autor que “o problema urbano não é essa fenomenologia em que se compraz a tecnocracia, buscando solucionar exatamente o que só vê na aparência; por baixo, à maneira dos rios subterrâneos, corre uma articulação global que confere unidade ao todo e, por isso, e não por outra razão, a imagem é a mesma nos mil pedaços” (1978: 68). Agora, com a distância dos anos e para refl etir sobre a diferença dos tempos, poderíamos dizer que essa diferença está cifrada no campo de gravitação em que o problema urbano então se confi gurava, que permitia que os seus “mil pedaços” entrassem em ressonância e que fornecia o feixe de referências de um debate que tomava a cidade como questão.

O texto de 1982 (e também o de 1978) pode ser visto, hoje, como a inscrição polêmica de um campo de debate que vinha se armando e se fi rmando naqueles anos. A cidade como questão era defi nida com base em um conjunto cruzado de proposições que circulavam entre os fóruns do debate acadêmico e do debate político. Produção e consumo, trabalho e reprodução social, exploração e espolia-ção urbana, classes e confl ito social, contradições urbanas e Estado eram noções – e pares conceituais – que circulavam, se articulavam e se compunham em proposições formuladas nas pesquisas e ensaios que então tratavam da moradia popular e dos processos de periferização urbana, que discutiam as relações en-tre a autoconstrução da moradia e a reprodução do capital, entre desigualdades urbanas e relações de classe, entre migração e pobreza urbana, entre reprodução social e Estado. No correr dos anos 80, esse conjunto de proposições defi niu um espaço conceitual que se redefi nia em sintonia com os ventos políticos da época. Essas proposições foram metabolizadas nos então proliferantes estudos sobre mo-vimentos sociais e, no andamento do debate, os deslocamentos de ênfases foram grandes, das versões mais deterministas da noção de “contradição urbana” (ênfase nas “estruturas”) até a tematização das dimensões culturais, da “experiência de classe”, as identidades e subjetivações, passando pelas questões da cidadania e da participação política, da importância do jogo dos atores na dinâmica política, as imbricações entre espaços institucionais e a dinâmica “vinda de baixo”.1 Esse debate tinha variações internas importantes e apresentava modulações conforme as linhagens teóricas, tradições disciplinares e o modo como uns e outros tra-balhavam paradigmas teóricos distintos em sintonia com as mudanças nos ares dos tempos por aqui e alhures. A polêmica também era grande e por vezes feroz, sobretudo no que diz respeito à natureza e ao sentido político dos movimentos sociais (cf. Paoli, 1995). O que importa aqui dizer é que variações, modulações e dissonâncias, polêmicas e divergências, tudo isso “fazia sentido”.

1 Para uma ótima avaliação desses deslocamentos, cf. Kowarick (2000) e, também, Valla-dares e Freire-Medeiros (2002).

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Visto de agora, poderíamos dizer que tudo isso, esse jogo cruzado e polêmico de referências, se processava num plano de consistência que permitia que as proposições circulassem e a polêmica se estruturasse em um jogo de coordena-das que fazia com que fatos, eventos e processos fossem fi gurados, tematizados e formulados como questões pertinentes.

É esse jogo de referências e coordenadas que seria interessante aqui reter. Não como documento de uma época que já se foi e que pode, quando muito, interessar ao inventário bibliográfi co ou à revisão histórica ensinada aos jovens estudantes nos seus primeiros anos de universidade. Pois é essa mesma distância que nos provoca a inquietação quanto aos parâmetros ou ao plano de referência a partir do qual descrever e colocar em perspectiva a nossa complicação atual.

Para bem situar as coisas, ainda há uma outra questão a ser colocada. A consistência e a pulsação polêmica desse campo de debate davam-se no ponto de cruzamento entre uma experiência histórica, que vinha então sendo reinter-pretada, e um horizonte de expectativas (cf. Koselleck, 1990) quanto aos futuros possíveis do país. Esse debate recolhia um movimento crítico que vinha da dé-cada anterior e dava mais um lance na reinterpretação do país, de sua história e de suas possibilidades. Aliás, é esse movimento crítico que defi ne o andamento do texto aqui comentado. Nas linhas que traçam a maior parte de “O Estado e o Urbano”, o autor reatualiza o percurso da “crítica à razão dualista”, título de artigo lançado dez anos antes (Oliveira, 1972). Em 1972, anos de chumbo da ditadura militar, a inteligência crítica do país estava investida da exigência de rever e revisitar explicações e interpretações sobre as infl exões e rupturas da história recente, o ponto de clivagem representado pelo Golpe Militar de 1964 e elucidar os percursos e destinações da economia e sociedade brasileiras. A inscrição polêmica de Francisco de Oliveira nesse debate foi importante e ecoou por toda a década. Ao fazer a “crítica à razão dualista”, ao mostrar a simbiose do “arcaico” e “moderno”, do formal e do informal e o modo como essas relações eram tecidas, postas e repostas na lógica mesma da acumulação capitalista, o autor defi nia um plano de referência que projetava as fi guras do “atraso” – a urbanização caótica, o terciário inchado, a economia de subsistência, o trabalho informal, a pobreza que se espalhava por todos os lados – no centro mesmo da moderna economia urbana e do confl ito de classes.

Era um debate em marcha, um campo de debate no qual as proposições de uns entravam em ressonância com outros, e as referências circulavam em inscrições polêmicas sobre o país, as cidades, a economia e as derivações da modernização brasileira. Claro, a questão tinha muitas faces, os temas eram vários e as pro-blemáticas também. Mas, aqui, o que interessa é situar o lugar do “urbano” – o urbano como questão – no andamento das coisas.

Em 1975, a publicação de São Paulo, crescimento e pobreza, resultado de um estudo promovido pela Pontifícia Comissão de Justiça e Paz, dava eco a esse debate e fazia circular amplamente, para além dos circuitos especializados e estritamente acadêmicos, um conjunto de proposições que estabelecia as relações entre acumu-

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lação e pobreza, que desmontava o “mito da marginalidade” associado à pobreza urbana e que lançava as noções de periferia e de urbanização periférica que, nos anos seguintes, orientariam a descrição dos problemas urbanos das grandes cidades (Kowarick e Brandt, 1975). Em 1979, Lúcio Kowarick cunhou a expressão “espoliação urbana”, que circulou amplamente nesses debates, como referência que dava forma e sentido aos problemas urbanos nas suas relações com a “supe-rexploração do trabalho” própria ao “capitalismo periférico” (Kowarick, 1979). Nesse livro, Kowarick reatualiza o trabalho crítico anterior (1975), e o problema da pobreza e segregação urbana aí comparece como questão que desloca os ter-mos então propostos pelas teorias da modernização e da marginalidade urbana, para situá-las no centro das “contradições urbanas” do capitalismo moderno. E é esse movimento crítico que estava cifrado nas pesquisas e estudos sobre um amplo leque de problemas que então confi guravam a “questão urbana”. A impor-tância que, nesses anos, ganhava o tema da autoconstrução da moradia popular é especialmente esclarecedora: longe de ser apenas a constatação de práticas e fatos recorrentes nas nossas cidades, a autoconstrução aparecia como evidência – e era construída como evidência – que permitia fi gurar as relações entre o “arcaico” e o “moderno”, entre o formal e o informal, de tal modo que práticas e tradições populares da auto-ajuda operavam como um prisma que esclarecia as relações entre a superexploração da força de trabalho e as formas selvagens de urbanização ou, então, para colocar nos termos do debate, aquilo que então se convencionou chamar de urbanização por expansão de periferias.2

Mas, então, isso signifi ca dizer que, se havia um espaço conceitual que defi nia a consistência desse campo de debate, não é porque aí se formulavam categorias e noções mais adequadas ao estado de coisas, mas pelo plano de referência que

2 A questão já havia sido formulada por Francisco de Oliveira, em 1972, em sua “crítica à razão dualista” e será retomada por quase todos os estudos desse período sobre a moradia popular. Vale lembrar a passagem famosa: “uma não-insignifi cante porcentagem das re-sidências das classes trabalhadoras foi construída pelos próprios proprietários, utilizando dias de folga, fi ns de semana e formas de cooperação como o mutirão. Ora, a habitação, bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não-pago, isto é, supertrabalho. Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, pois o seu resultado – a casa – refl ete-se numa baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho – de que os gastos com habitação são um componente importante – e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de economia natural dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho. [...] a expansão do capitalismo no Brasil se dá introdu-zindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a reprodução das relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para fi ns de expansão do próprio novo”(Oliveira, 1972: 32).

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atravessava esse debate e que fazia do urbano e da cidade o ponto de condensação de um conjunto de questões que falava do país, de sua história e suas destinações possíveis. Os rumos possíveis da sociedade brasileira era a questão que atravessava todo esse debate e defi nia a pulsação polêmica de proposições que reabriam a interrogação sobre as relações entre desenvolvimento capitalista, modernização e modernidade. A cidade – a cidade como questão – aparecia como uma cifra pela qual o país era tematizado e, em torno dela, organizava-se um jogo de referências que dava sentido às polêmicas, divergências, debates e embates sobre a história, percursos e destinações da sociedade brasileira.3

Talvez seja possível dizer, seguindo nas trilhas de Roberto Schwarz (1999: 156), que esses anos testemunhavam mais um capítulo (o último?) de um debate que fazia da “defasagem entre as aspirações da modernidade e a experiência efetiva do país um tópico obrigatório”, um debate que mobilizava a imaginação crítica na aposta de que seria possível superar as mazelas da sociedade e trazer as maiorias, desde sempre relegadas às fímbrias da modernização capitalista, ao universo de uma cidadania ampliada. Pois bem, essa aposta foi perdida. Ao menos, foram desestabilizados os termos em que foi formulada. É a questão que o próprio Schwarz lança ao debate em um artigo de 1993: como pensar o país quando a norma civilizada na qual, desde sempre, o país se espelhou, apenas nos promete, nesses tempos de capitalismo globalizado, uma modernização que não cria o emprego e a cidadania prometidos, mas que engendra o seu avesso na lógica de um mercado que desqualifi ca – e descarta – povos e populações que não têm como se adaptar à velocidade das mudanças e às atuais exigências da competitividade econômica? Como pensar o país se “o aspecto da modernização que nos coube, assim como a outros, for o desmanche ora em curso, fora e dentro de nós?” (Schwarz, 1993: 156).

Na outra ponta, o que se desfez como horizonte histórico e referência crítica foi a própria noção de superação, noção fundante dos debates que percorriam as décadas anteriores. É esse o sentido polêmico da questão que, novamente, em 2003, Francisco de Oliveira trouxe ao debate público ao usar a imagem do ornitorrinco para descrever o país:4 um monstrengo feito de pedaços desconjunta-dos, diferenças, defasagens, descompassos, desigualdades, que, não sendo mais

3 É um debate que, como mostra Cibele Rizek (2003), vem de antes, é contemporâneo à própria formação da sociologia, fundando “um modo de pensar o país e seus processos de transformação a partir da cidade” e suas relações com a industrialização e a moder-nização. 4 “Como é o ornitorrinco? Altamente urbanizado, pouca força de trabalho e população no campo, dunque nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agrobusiness. Um setor industrial da Segunda Revolução Industrial completo, avançando, tatibitate, pela terceira revolução, a moleculardigital ou informática. Uma estrutura de serviços muito diversifi ca-da numa ponta, quando ligados aos estratos de altas rendas, a rigor, mais ostensivamente perdulário que sofi sticado; noutra, extremamente primitivo, ligado exatamente ao consumo dos estratos pobres. [...]” (Oliveira, 2003:132-133).

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atravessados por uma virtualidade de futuro, não mais articulados internamente por uma “dialética dos contrários”, fi cam onde estão, um neoatraso, como diz Roberto Schwarz em seu comentário, fatos irrevogáveis de nossa realidade, sem solução e sem superação possível no cenário do capitalismo globalizado e de uma revolução tecnológica que aprofunda e torna irreversível o abismo entre os países. Escrito em diálogo tenso com o texto de 1972, também ajuda a marcar a diferença dos tempos que o separam do texto de 1982 comentado no início. Nos vinte anos que se passaram, muita coisa aconteceu e muita coisa mudou neste país. A democracia e as instituições democráticas se consolidaram e o jogo político seguiu, mal ou bem, com tropeços e complicações, as regras da normali-dade democrática. Mas, seguindo os pontos polêmicos do autor, as conexões que articulavam o “Estado e o urbano” foram cortadas ou viradas pelo avesso sob a lógica de um duplo desmanche, por cima e por baixo, a rigor, modulações de um mesmo movimento: a autonomização dos mercados em tempos de fi nanceirização da economia e revolução tecnológica desfaz a sociabilidade plasmada no trabalho, ao mesmo tempo em que retira autonomia do Estado – “o Estado se funcionaliza como máquina de arrecadação para tornar o excedente disponível para o capital”, diz Francisco de Oliveira. Quanto às políticas sociais, desconectadas (e impotentes para tanto) de um projeto de mudar a distribuição de renda, “transformam-se em antipolíticas de funcionalização da pobreza” (2003: 11). O que antes era perce-bido como exceção, singularidade de um movimento histórico que, esperava-se, haveria de alcançar algum patamar de normalidade, transforma-se em regra – as desigualdades abissais, a pobreza urbana, o desemprego, o “trabalho sem forma” das multidões de ambulantes que ocupam os espaços da cidade, bem, tudo isso está aí para fi car. É a “administração da exceção”, diz Francisco de Oliveira em um artigo que leva o título “O Estado e a exceção: ou o Estado de exceção”.5

As questões propostas pelo autor vão muito além do que está sendo comentado nestas notas.6 Entretanto, o que interessa aqui é apenas reter o sentido do petardo crítico lançado ao debate. Se a equação que se estabelecia entre trabalho, direitos e cidadania foi quebrada, se o movimento histórico que lhe dava plausibilidade foi interrompido, se a “hipótese superadora”, para usar os termos de Schwarz,7 foi

5 Esse texto foi apresentado como conferência de abertura de um fórum acadêmico de pesquisa urbana, em 2003, e pode ser considerado uma prévia do que viria a ser o Orni-torrinco, publicado nesse mesmo ano (esse bicho esquisito e desconjuntado já comparece aí como fi gura do estado atual do país)6 Uma discussão, em várias vozes e sob aspecto diversos, das teses de Chico de Oliveira pode ser encontrada nos vários artigos que compõem uma coletânea voltada ao debate da obra do autor (Cf. Risek e Romão, 2006). Vale também dizer que parte dos argumentos que, aqui, vêm sendo desenvolvidos retomam questões que tive a oportunidade de desenvolver em um artigo que compõe esta mesma coletânea (Cf. Telles, 2006).7 Hoje, diz Schwarz (1999: 58), o “naufrágio da hipótese superadora” aparece como o “destino da maior parte da humanidade”, não sendo neste sentido uma experiência se-cundária.

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erodida, então com quais parâmetros, ou a partir de quais parâmetros, colocar sob perspectiva crítica o atual estado de coisas? Como discernir as linhas de força que permitam reabrir essa potência de confrontar o presente e ampliar o horizonte dos possíveis, essa mesma potência (e essa aposta) que, de alguma forma, está (estava) contida na ideia de superação? A questão está longe de ser simples. A rigor, é o próprio problema que ainda precisa ser formulado e bem posto. E isso, claro está, não é coisa que se resolva assim de uma penada, e certamente não vai ser qualquer contorcionismo teórico que haverá de abrir caminhos.

Para reatar a discussão do início, o que vale aqui reter é a desestabilização das referências e parâmetros pelos quais pensar o país e, reatando pontos e linhas, a cidade e suas questões. Isso que se convencionou chamar de desregulação neoliberal em tempos de globalização, fi nanceirização da economia e revolução tecnológica, pode ser lido como a desmontagem do diagrama de referências que conferia sentido, dava ressonância e qualifi cava a potência política das “mil faces” do problema urbano. O que antes foi dito e escrito sobre a cidade e seus proble-mas, a “questão urbana”, parece ter sido esvaziado de sua capacidade descritiva e potência crítica em um mundo que fez revirar de alto a baixo o solo social das questões então em debate.

E é por esse lado que seria interessante retomar a questão. É por esse lado que cobra interesse o confronto dos tempos e das pulsações dos debates que os atravessam ou atravessavam. Pois é isso que pode nos dar uma medida – medida inquietante – do estilhaçamento da inteligência crítica nesses últimos anos. Não se trata apenas de constatar a indigência dos debates recentes, em grande parte conjugados no presente imediato. Isso seria trivial, além de correr o risco de um julgamento excessivo e injusto com uns e outros. O problema é mais de fundo.

O problema está nas nossas difi culdades de discernir o que anda acontecen-do nos tempos que correm e perscrutar as linhas de força que os atravessam. Na voragem de transformações que se superpõem em velocidade cada vez mais acelerada, o passado parece se esvanecer como referência trabalhada na ex-periência social, ao mesmo tempo em que o futuro torna-se indiscernível, e o horizonte dos possíveis parece devorado pela imprevisibilidade e aleatoriedade de fatos, acontecimentos e circunstâncias que parecem operar apenas no “tempo real” do mercado e seus imperativos (ou idiossincrasias). É como se vivêssemos um presente inteiramente capturado pelas urgências do momento, e não nos restasse muito mais do que a sua gestão cotidiana, sem conseguir escapar do círculo de giz traçado entre a denúncia estéril e o pragmatismo, quando não a razão cínica, que apenas afi rma o que está posto, de tal forma que parece nada nos restar senão gerir o que nos é dado a viver no presente imediato. Hoje, a cidade parece armar o palco de algo como uma cacofonia, que, em um certo sentido, também traduz no plano do pensamento ou da inteligência crítica o esfacelamento das referências cognitivas e normativas que permitiam pautar o debate e suas polêmicas internas. Parece que se perderam de vez as conexões que articulam o econômico, o político, o urbano e social: a economia é coisa que

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parece transitar defi nitivamente em outra galáxia de referências, a política passa a se reduzir ao problema da gestão das urgências de um presente imediato e o urbano parece se desconectar de vez com a política, para ser confi nado às formas diversas, velhas e novas, de gestão da pobreza. Quanto ao mais, face à erosão de referências futuras e em nome das urgências do presente, o campo fi ca aberto para um pragmatismo “bem fundado” que se apoia na pesquisa acadêmica para propor programas sociais aos “excluídos” do mercado de trabalho. Na prática, esse deslocamento (e esvaziamento) do espaço crítico termina por reatualizar o que Topalov (1994) defi ne como “epistemologia da fi lantropia”, que fragmenta a análise social na descrição cientifi camente fundada de cada grupo social (as várias fi guras dos “excluídos”) alvo de políticas focalizadas. Nesse registro, a refl exão (e a prática) fi ca inteiramente cativa do diagrama liberal nas formas possíveis de “gestão da pobreza”. Um campo político encapsulado na gestão do presente imediato, sem abertura para outros possíveis. Mas, com isso, é o próprio espaço da crítica que se esvai. Sem a abertura que exige a imaginação para o discernimento das virtualidades contidas no real, possibilidades de outros modos de fazer a experiência do mundo, só resta a constatação – “então tá, é isso aí”. E a repetição, o clichê – apenas a afi rmação do que está posto. Um real reduzido ao possível e um futuro rebatido no presente imediato.

* * *

Essa foi a marca dos anos 1990, talvez melhor dizer: da virada dos tempos. Como bem sabemos, o abalo sísmico provocado pelas mudanças do capitalismo contemporâneo atingiu os países e regiões do planeta em ritmos e intensidades diferentes. As defasagens de tempo são consideráveis e as diferenças das confi -gurações sociais e políticas que assumiram nos diversos locais, também. Mas, no turbilhão das transformações, o deslocamento e desestabilização das referências foi geral. Como diz François Hartog (2003), as desilusões das promessas liber-tárias dos anos 1960, a crise do Estado Previdência, o aumento do desemprego e o reaparecimento brutal da pobreza nas cidades do Primeiro Mundo parecem ter sido os lances que abriram as primeiras fi ssuras em um “regime de historici-dade” no qual o futuro era fi gurado como um tempo que haveria de ser ou que poderia ser (ao menos imaginado) como melhor do que o presente. Não mais o tempo das promessas de que se alimentava a política, e também a crítica social.8

8 Bom historiador que é, o autor chama a atenção e descreve ao longo de seu livro todas as censuras e críticas endereçadas à noção de progresso que, desde as primeiras décadas do século XX e, sobretudo, a partir da segunda guerra mundial, tratavam de problematizar os desencantos do mundo moderno, a barbárie e a violência que acompanharam o andamento da história recente. Porém, argumenta Hartog, todas essas críticas de alguma forma ainda

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Fecha-se, diz o autor, lançando mão da hermenêutica histórica de Koselleck, um tempo em que o presente era tematizado na relação tensa entre campos de experiência e horizontes de expectativas. Mas aí é o próprio presente que se transforma, devorado pelo “tempo real” do capitalismo contemporâneo sob os imperativos do “just-in-time” da produção fl exível, da fi nanceirização da econo-mia e da revolução tecnológica. Presenteísmo: um outro regime de historicidade, “regimes de temporalité du présent” (2003: 125-126). Para Zaki Laidi (1998), também inspirado em Koselleck, um presente doravante cortado do passado que não mais tem como ser atualizado na própria medida (e na velocidade) com que suas soluções se tornam inoperantes, ao mesmo tempo em que o futuro tampouco aparece como referência capaz de mobilizar expectativas. Nessa temporalidade conjugada apenas e tão-somente no presente imediato, entramos na “era das urgências”. A “urgência” tornou-se a unidade de medida do tempo que rege discursos e práticas de todos os atores:9 gestão “efi caz” do presente imediato por oposição às promessas incertas, aleatórias, improváveis de um futuro indiscernível. Gestão dos “riscos” de um social não mais declinado na gramática dos direitos e garantias sociais, de que a proliferação de dispositivos de ajuda social e a ati-vação do discurso humanitário são evidências tangíveis. Primado das urgências – econômicas, militares, humanitárias, sociais, ecológicas, em todas uma lógica que parece mimetizar e desdobrar a lógica da fi nanceirização do capitalismo

estavam mergulhadas em uma certa confi guração do tempo: um certo regime de histori-cidade, isto é, em modos de relação com o tempo – modos de relação do presente com o passado e o futuro. Se esse regime de historicidade aparece, agora, profundamente alterado, os sinais dessa mudança também vêm de mais longe, mas ganham uma confi guração hoje identifi cável no que o autor vai chamar de presenteísmo. Seus primeiros sinais ganham evidência nos anos 1970, anos de uma funda infl exão no andamento acelerado da história do pós-guerra: anos de ouro do planejamento, das grandes construções e reconstruções nacionais (o que inclui sistema de relações de trabalho e a montagem dos serviços públicos), modernização das estruturas estatais, tudo isso no cenário de guerra fria, competição pela partilha imperialista do mundo e corrida armamentista. Tempos da modernização, enfi m. E que, para nós, tem correspondências evidentes com o que foi convencionado chamar de ciclo desenvolvimentista. Para o bem ou para o mal, era o que dava plausibilidade à noção de progresso. E este, pela sua forte aderência, no imaginário social, era também o que conferia vigor e sentido à uma crítica que, de alguma forma, tematizava as “promessas não cumpridas da modernidade”, para lembrar aqui a fórmula famosa de Harbemas. 9 Como diz François Ost (1999: 279), referindo-se às questões discutidas por Zadi Laidi, “agora que não parecemos não estar mais em condições de formular projetos, de traçar perspectivas ou de rearticular promessas, apenas nos resta ajustar dia a dia as opções que resultam de nossos compromissos, estes também frágeis e instáveis. Na falta de um futuro mobilizador e de exterioridade simbólica, apenas nos resta renegociar entre nós, na imanência de nossas relações imediatas, as fi guras provisórias do bem comum sempre rediscutidos. Na impossibilidade de tornar credíveis expectativas portadoras de sentido, a urgência nos fornece agora uma legitimação de substituição na qual nossas sociedades procedurais são obrigadas a se acomodar”.

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contemporâneo (cf. Calhoun, 2004). E é isso que ativa dispositivos de exceção que derrogam práticas, normas e direitos estabelecidos em nome dos supostos imperativos dos fatos supostamente imediatos e supostamente urgentes a apelar o pragmatismo da gestão efi caz, senha para que o princípio gestionário termine por se impor e erodir o campo da política na lógica, como diz François Ost (1999), de uma “derrogação permanente”, de tal modo que, no limite, é o não-direito que penetra nos procedimentos e agenciamentos institucionais.

Em 1995, Robert Castel já acusava os efeitos desestabilizadores da erosão das expectativas sociais mobilizadas pela noção (ou imaginário) do progresso, ao descrever as situações de precariedade social e de “individualismo negativo” que acompanharam a desmontagem da mediação pública dos direitos sociais. Naqueles anos, no cenário francês, já estavam em curso as tendências de uma refi lantropização da pobreza, agenciamentos locais de programas sociais voltados aos ditos excluídos, “remetendo a arranjos particulares o que as regulações cole-tivas não podem mais comandar” (1998: 472). Na mira do autor, estava a erosão da própria “questão social”, transfi gurada no registro de “problemas sociais” a serem geridos tecnicamente ou tratados pelas formas renovadas da fi lantropia – “administração do social”, diz Castel, que reativa a lógica da assistência tradicional que se imaginava enterrada de vez pela vigência dos modernos direitos sociais. Em 1996, Rosanvallon e Fitoussi faziam um diagnóstico em tudo convergente com as questões tratadas por Castel, ao chamar a atenção para o deslizamento da questão social nas fi guras de problemas sociais que apelam aos “bons sentimen-tos” da compaixão e solicitude perante os “excluídos”, em uma perversa confusão entre política e bons sentimentos – “o desenvolvimento da ideologia humanitária sobre as ruínas da política tradicional corresponde ao mesmo movimento” (1996: 21). É nessa mesma fi gura do “excluído” que os autores identifi cavam os sinais inquietantes de uma demissão da política, ao sugerir uma dualização da socieda-de que deixa na penumbra os processos societários geradores de precarização e vulnerabilidade social, e que termina por reativar “a visão mais arcaica do social” como lugar de disfunções e patologias que reclamam a intervenção compensatória das políticas sociais sempre seletivas e sempre focalizadas nos segmentos mais vulneráveis da população.

Em 1999, Jacques Donzelot lançava mão da noção de secessão para falar da “nova questão urbana” que seguia a desativação do campo político e do horizonte utópico das lutas urbanas dos anos 1960 e 1970. Alimentava-se das ruínas do “urbanismo funcional” e da desintegração da sociedade industrial, tangíveis na degradação dos bairros operários e da habitação social.10 E desdobra-se nas

10 “Concebidos para a residência de populações atraídas à cidade pelos empregos indus-triais, esses ‘quartiers’ consagravam sua integração na sociedade pelo trabalho. A habitação social recompensava uma estabilidade no emprego e uma docilidade no trabalho, para as quais contribuíam as instituições públicas (escolas, centros sociais, policia, etc.). Agora, a habitação social mais do que recompensar a estabilidade no emprego, termina por afastar

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evidências do “urbanismo afi nitário” de uma elite que se dessolidariza com os destinos comuns da cidade (e da sociedade) para se confi nar na exclusividade de suas regiões de moradia, “les villes emergentes”, versão francesa, diz o autor, da peri-urbanização dominante nos Estados Unidos. Longe de ser consensual, a questão lançada por Donzelot abriu-se a controvérsias e polêmicas, não raro atra-vessadas por críticas ácidas e contraposições igualmente agudas, mas a pauta de discussão estava lançada e, no seu centro, a “crise urbana” e seus sentidos. Uma crise que parecia ser não mais uma reposição de uma série de outras tantas que, como mostra Topalov (1991), entre fatos e representações, estiveram na origem das ciências da cidade nos anos fi nais do século XIX.11 Dessa vez, são os próprios saberes da cidade e as ciências do urbano que são abaladas em suas bases: “com infi nitas variantes ou através de múltiplas controvérsias, nossas disciplinas e seus paradigmas se edifi caram sobre uma base comum: o elo estreito entre discurso científi co e o progresso social, entre os saberes sobre a cidade ou o território e um projeto progressista de racionalização” (1991: 28). É esse elo que parece se dissolver e, com isso, é a base desta construção que se desmancha sob “a ofensiva prática e intelectual” das ditas “forças do mercado”,12 desmontando a relação privilegiada que as ciências do urbano (e seus operadores) sempre mantiveram com a política, visando seja ao Estado (projetos, práticas, programas ou utopias associadas ao planejamento urbano), seja ao “povo” muitas vezes visto como portador de uma potência política capaz de transformar o próprio Estado.13

as oportunidades no emprego que, alem de se tornarem instáveis, requer disponibilidade e mobilidade. ....Descendentes diretos da classe operária ou migrantes recentes, os mo-radores dessas zonas estão marcados pelo fracasso. Vivem dos recursos da ajuda social e dos tráfi cos mais ou menos ilegais [...] Toda concepção do ‘bairro operário’ se encontra subvertida pelos efeitos da desindustrialização (Donzelot, 1999: 104).11 “A cada época, os especialistas da cidade e do território podem, de fato, mobilizar sem risco uma terminologia da ‘crise’ paa enunciar a urgência de uma ‘questão urbana’” (Topalov, 1991: 28).12 “[...] diria que tudo se passa como se um longo período histórico estivesse em vias de ter-minar. A ofensiva prática e intelectual das forças que denominamos de ‘mercado’ conseguiu, de fato, destruir, tijolo por tijolo, uma casa que compreendia muitas moradias. Entre seus construtores e habitantes existe aqueles que, a partir das últimas décadas do século XIX, têm por ofício decifrar a ordem escondida sob a desordem urbana e demandar uma intervenção consciente da sociedade sobre o curso ‘natural’ das coisas” (Topalov, 1991: 29).13 “Ora, acontece que o povo lhe escapa. Assim, hoje, na europa ocidental, as explosões sociais se produzem justamente nos espaços urbanos nascidos de um projeto reformador; os bairros de habitação popular. Em outros lugares, principalmente na América do norte e do sul, malogram as esperanças nos movimentos sociais urbanos. Constata-se sua integração no cotidiano da vida municipal, seu controle pela criminalidade organizada, sua deriva política populista ou simplesmente o retorno das famílias a estratégias individualizadas” (Topalov, 1991: 36).

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Vale a pena reter as questões propostas por Topalov, pois sugerem todo o interesse que pode ter uma refl exão sobre as categorias de análise e o espaço conceitual em que elas circulam. Sabemos muito bem que no campo das ciências humanas, e com as particularidades próprias à sociologia urbana, a crítica às categorias e suas redefi nições é algo que se faz em compasso com a interpretação das mudanças e deslocamentos que se dão no mundo social e ao modo como se formulam as novas exigências interpretativas em diálogo com as questões políticas colocadas, com suas promessas, desencantos ou hesitações – é a dupla hermenêu-tica de que fala Giddens ou, para colocar nos termos de Boltanski, a dimensão refl exiva da experiência social e que defi ne a própria lógica interna das ciências sociais. Mas resta a dúvida se esse trabalho refl exivo chegou a se realizar, se os deslizamentos ou deslocamentos nas óticas descritivas do urbano não foram tragados pelos “ares do tempo”, em boa parte mediados pelas nova demandas da pesquisa social vindas de um perfi l da política social voltada aos “excluídos” e às versões brasileiras dos quartiers diffi ciles. A questão é de interesse e valeria todo um programa de pesquisa. Preteceille (1998), ao discutir os percursos da sociologia urbana francesa, chama a atenção para o fato de que as categorias de análise se modifi cam conforme se alteram as estruturas da cidade, as políticas urbanas, o problema social e suas expressões políticas. É sob essa perspectiva, diz o autor, que é possível situar a interrogação clássica, constitutiva da sociologia urbana, sobre a divisão social da cidade e que vai ser formulada e fi gurada de formas diferentes conforme as conjunturas históricas e contextos intelectuais. E é sob essa perspectiva que se deve situar os temas recorrentes nos anos 1990 da fragmentação urbana e dualização social. Trabalho crítico e refl exivo em torno das categorias de análise, essa é a sugestão forte das proposições de Preteceille, buscando os nexos que articulam as referências que circulam entre a pesquisa acadêmica e suas matrizes intelectuais (mutantes conforme os momentos e as modas), as políticas urbanas e seus operadores políticos, os atores sociais e as confi gurações do confl ito social em cada momento. Uma história dos conceitos, como sugere Koselleck, lembrando que estes são sobretudo categorias práticas que circunscrevem as disputas e polêmicas que dão a cifra de um presente confi gurado na tensão entre “campos de experiência” e “horizontes de expectativas”.

Quanto à questão da segregação urbana, tema quase onipresente nos debates sobre o urbano, Jacques Brun (1994) nota que essa é uma noção de “conteúdo semântico extensivo”, que varia conforme as conjunturas e a escala de pertinência dos problemas em pauta, sem chegar a ganhar o estatuto de um conceito claro, oscilando entre uma acepção descritiva e empírica, e a conotação moral (de de-núncia). Daí o risco, sempre presente, de deslizar do descritivo para o explicativo, sem que se explicite a ordem das relações e dos processos em pauta. Como diz Grafmayer (1994: 86), “noção multiforme, sensível tanto aos contextos históricos como às modas intelectuais, a segregação é ao mesmo tempo uma categoria de análise e uma categoria prática, pré-noção carregada de implícitos e instrumentos de medida, objeto de discussão entre especialistas e tema de debates públicos”.

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A pluralidade de usos e a polissemia de sentidos interna ao conceito precisam ser vistas, diz ainda o autor, em relação com os deslocamentos do campo de perti-nência dos problemas que, a cada conjuntura intelectual e histórica, se pretende descrever e explicar. Por isso mesmo, a temática da segregação urbana opera como um revelador particularmente efi caz das modalidades pelas quais a história interna das ciências sociais se articula com a demanda pública e também com os temas, obsessões e fi cções que mobilizam o debate público e a cena mediática”.14

Está aí uma discussão necessária, ainda a ser feita.15 Por enquanto, vale di-zer que essa é uma discussão que poderia nos dar mais elementos para refl etir sobre a diferença dos tempos. Se o espaço conceitual de antes foi esvaziado, suas questões também foram esvaziadas de potência crítica: foi desativado o plano de referência que defi nia a direção das perguntas e questões, conferia intensidade crítica e polêmica aos debates. Arriscando um pouco mais: não se trata, talvez, de um esvaziamento conceitual, mas de um outro agenciamento das palavras e as coisas em outros polos de gravitação das questões.

Antes as questões urbanas eram defi nidas sob a perspectiva (e promessa) do progresso, da mudança social e desenvolvimento (anos 1960/70) e, depois, da construção democrática e dos direitos sociais como cifra de uma modernidade pretendida como projeto (anos 80). Agora, os horizontes estão mais encolhidos, o debate em grande parte é conjugado no presente imediato das urgências do momento, e o problema da pobreza urbana tende a deslizar e, no limite, a se confundir com os problemas da “gestão urbana”. Não por acaso o debate sobre os “problemas sociais” plasmados nas cidades termina por mobilizar uma outra fi leira de noções que compõem hoje a agenda da pesquisa urbana – gover-nabilidade, governança, capital social, redes sociais e outros tantos que talvez pudéssemos inventariar para averiguar o modo como essas referências circulam entre pesquisadores e centros de pesquisa, operadores políticos e formuladores de políticas sociais, ONGs, agências multilaterais e agências de fi nanciamento de programas sociais.

Tudo isso é um tanto apressado, reconheça-se. As redefi nições e deslocamentos no campo da pesquisa acadêmica é algo também a ser bem entendido, mas essa é uma outra discussão que vai além do que se propõe e se tem condições de fazer

14 No prefácio a esse livro voltado a uma avaliação do lugar e sentidos da noção de segregação nas várias ciências do urbano no contexto francês, Marcel Roncayolo (1994: 17), comentando as imprecisões e deslizamentos de seus usos, chama a atenção para a importância de uma “história das palavras”, uma “história epistemológica” que contemple tanto a organização da pesquisa, como a prática e mesmo a “ideologia do conhecimento. Ademais, diz ainda o autor, “as condições de difusão das técnicas, dos métodos e de suas implicações conceituais, não são uma questão trivial e a cidade (e não apenas a segregação especial) é, deste ponto de vista, um bom terreno de experiência”.15 Essas são questões que se abrem a um fecundo campo de investigação ainda pouco usual no ambiente intelectual brasileiro. Por isso mesmo, vale registrar todo o interesse de livro recente de Livia Valladares (2005) sobre a “invenção da favela”.

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aqui. Se a questão foi aqui lançada, é apenas e tão-somente porque nos ajuda a melhor situar a ordem de problemas que temos pela frente.

Pois é essa diferença dos tempos que lança a interrogação quanto ao plano de referência a partir do qual descrever e colocar em perspectiva (e sob perspectiva crítica) os processos em andamento. Questão nada trivial. Pois em torno das “zo-nas de turbulência” pelas quais essas mudanças se processaram, as realidades urbanas também se modifi caram (e vem se modifi cando), e isso em ritmo também muito acelerado. E são essas linhas de força que será preciso prospectar.

Talvez tenhamos que fazer um percurso mais exploratório. Prospectar os deslocamentos que reconfi guram e redesenham nossas realidades urbanas para, nas suas dobras, chegar a identifi car e formular o feixe de questões que exige a imaginação crítica para apreender os campos de força que atravessam essas realidades.

Interrogando realidades urbanas em mutação

O debate sobre as recomposições urbanas sob o impacto das transformações recentes no capitalismo contemporâneo foi aberto nos anos 1990, prolongando-se pela década seguinte. A literatura é vastíssima. Em que pesem variações temáticas, diferenças interpretativas, divergências e polêmicas de ressonâncias variadas, é um campo de debate em que se tratou de deslindar as vias pelas quais as lógicas da produção fl exível, da fi nanceirização da economia e do papel do terciário de ponta alteraram a anterior organização da “cidade fordista”, produzindo rearti-culações dos territórios por onde circulam capitais, bens, mercadorias, serviços e também populações em situações diversas de emprego, desemprego e exclusão do mercado de trabalho. Quanto à cidade de São Paulo e sua região metropolitana, já temos à disposição um volume considerável de informações e pesquisas que mostram a sua redefi nida (e reafi rmada) centralidade nas dinâmicas nacional e regional, e seu lugar nos circuitos globalizados da economia (cf. Martoni, 1999; Marques e Torres, 2000). Pelo lado das atuais reconfi gurações socioespaciais, as pesquisas abriram o debate sobre as forças operantes na produção do espaço, os novos padrões de segregação urbana, sobre a nova geografi a da pobreza ur-bana e da vulnerabilidade social (cf. Taschner e Bogus, 2000; Caldeira, 2000; Torres e Marques, 2001). No entanto, ainda pouco se sabe do modo como os processos em curso redefi nem e interagem com a dinâmica societária, a ordem das relações sociais e suas hierarquias, as práticas sociais e os usos da cidade, as novas clivagens e diferenciações que defi nem bloqueios ou acessos diferen-ciados aos seus serviços e espaços. Ainda será preciso decifrar o modo como as atuais reconfi gurações econômicas e espaciais redesenham o mundo social e seus circuitos, os campos de práticas e relações de força. Vistas por esse ângulo, as realidades urbanas apresentam desafi os consideráveis. As referências gerais sobre

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emprego e desemprego, transformações sociodemográfi cas e formas de segregação urbana esclarecem pouco sobre confi gurações societárias que embaralham as antigas clivagens sociais e espaciais próprias da “cidade fordista”, com as suas polaridades bem referenciadas entre centro e periferia, entre trabalho e moradia, entre mercado formal e mercado informal.

De um lado, é o caso de se perguntar de que modo as novas realidades do trabalho (e do não-trabalho) redesenham os espaços urbanos e seus territórios e re-defi nem práticas sociais e os circuitos que articulam moradia, trabalho e serviços. As circunstâncias do desemprego prolongado, do trabalho intermitente e incerto ou do não-trabalho redefi nem tempos e espaços da experiência social, desfazem ou refazem em outros termos o jogo de referências traçadas entre trabalho e moradia e que pautam ritmos cotidianos e tempos sociais. Alteram, poderíamos dizer, a própria experiência urbana, seguindo os circuitos descentrados dos “territórios da precariedade”. É um outro traçado urbano, seguindo a nova geografi a dos empregos e as novas polaridades e segmentações entre os reduzidos e seletivos empregos estáveis e as miríades de empregos precários que se proliferam nas fronteiras pouco nítidas entre o mercado formal e informal, entre os circuitos da economia globalizada e os contextos locais das tradicionais “atividades de sobrevivência”, também elas em expansão e também elas redefi nidas por suas conexões com as redes de subcontratação ou, então, com os circuitos locais de consumo e circulação de bens.

Por outro lado, ponto e contraponto de uma mesma realidade, os capitais globalizados transbordam as fortalezas globais concentradas no moderníssimo e riquíssimo quadrante sudoeste da cidade e fazem expandir os circuitos do consumo de bens materiais e simbólicos que atingem os mercados de consumo popular. Shopping centers e grandes supermercados se multiplicaram no correr da década e desenharam um grande arco que chega até as periferias mais distantes da cidade, alterando o mercado de terras e valores imobiliários, provocando redistribuições demográfi cas e deslocamentos populacionais, mas também redefi nindo as dinâ-micas locais do tradicional mercado informal e da economia popular. O fato é que esses grandes equipamentos de consumo já compõem a paisagem urbana, redefi nem circuitos e práticas urbanas, alteram escalas de distância e proximidade e operam como referências de tempos/espaços cotidianos.

Finalmente, o universo popular das periferias pobres da cidade é também ele redesenhado por um intrincado e multifacetado jogo de atores. Isso que a litera-tura vem designando como novo associativismo popular poderia (ou deveria) ser visto como um campo muito variado de práticas que mobilizam redes e circuitos muito diferentes na sua história interna, nas suas extensões, na natureza de suas vinculações e implicações nas dinâmicas locais: “entidades sociais” e suas parce-rias com os poderes locais para a implementação de programas sociais diversos; ONGs com suas vinculações em redes de extensões variadas; partidos políticos e seus agenciamentos locais; movimentos de moradia e suas articulações políticas; associações comunitárias ancoradas na história local; igrejas e congregações

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evangélicas que vêm se proliferando pelas periferias da cidade com práticas associativas em torno de suas comunidades de fi éis.

Se é evidente o aprofundamento de desigualdades e distâncias sociais, também é verdade que os modelos polares de análise pautados pelas noções de dualização social não dão conta das novas realidades, se é que não produzem uma imagem desfocada do mundo social. Poderíamos dizer que estamos frente não a dualiza-ções, mas, sim, à disjunção ou dessimetria (essa sim problemática), sobretudo no que diz respeito aos jovens dos bairros pauperizados da cidade, entre integração econômica, integração política e integração cultural (Hammouche, 1998). É nessa disjunção que se tem o registro das dimensões societárias das atuais mudanças no mercado de trabalho (e suas exclusões), mudanças que interagem (em relações de convergência, tensões ou descompassos) com uma crescente e diversifi cada rede de integração nos circuitos dos bens culturais e simbólicos, ao mesmo tempo em que a sociedade de consumo (e a lógica do mercado) parece se estender por todos os cantos, atingindo territórios tradicionalmente considerados como lugares paradigmáticos da “pobreza desvalida” (Valladares, 1999). É ainda uma sociedade atravessada por processos societários inéditos e novas formas de sociabilidade, de subjetivação e construção de identidades (Cabanes, 2002), além de novos padrões de mobilidade e acesso aos espaços urbanos e seus serviços, e também as ambivalentes redes sociais tecidas entre a dinâmica familiar, os espaços de lazer e consumo, o hoje crescente mundo das ilegalismos entre formas diversas de criminalidade e o tráfi co de drogas.

São as linhas de força dessas mudanças que ainda será preciso compreender. À distância de defi nições prévias ou diagnósticos estabelecidos sobre as evoluções recentes da cidade, optamos por um percurso mais exploratório. Buscamos ler essas mudanças a partir da trajetória de indivíduos e suas famílias: seus deslo-camentos espaciais em busca da moradia, seus percursos ocupacionais e suas infl exões nas circunstâncias do desemprego e precarização do trabalho, as práticas cotidianas que articulam espaços de moradia e a cidade, seus espaços e serviços. É por esse prisma que tentamos conhecer algo das tramas sociais que confi guram espaços urbanos. A pesquisa está longe de oferecer um panorama geral sobre a cidade e suas transformações recentes, nem é esse o nosso propósito. Mas nem por isso essas trajetórias podem ser tomadas como ilustração ou demonstração de algo já sabido e dito como “exclusão social” ou “segregação urbana”. Através das práticas, dos eventos, das infl exões e destinações que singularizam essas trajetórias, é possível apreender os movimentos e as tensões do campo social. No curso de suas vidas, indivíduos e suas famílias atravessam espaços sociais diversos, seus percursos passam por diversas fronteiras, e são esses traçados que podem nos informar sobre a tessitura do mundo urbano, seus bloqueios, suas fraturas, pontos de tensão.

É um modo de levar a sério que as diversas linhas de força (e suas zonas de turbulência) das mudanças recentes estão também traçando outros ordenamentos sociais que desfazem, deslocam, redefi nem referências e mediações da trama

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social, tempos e espaços da experiência urbana, práticas urbanas, seus circuitos e deslocamentos. As trajetórias e cenas urbanas em que elas transcorrem podem oferecer indicações sobre as lógicas e dinâmicas societárias em curso.

Três ordens de questões orientam esta investigação:Questão empírica: é nesse cenário contrastado que crescem a pobreza, o

desemprego e a precariedade urbana. E também a violência. Morre-se e mata-se muito na cidade de São Paulo (e não só nela). A tragédia concentra-se nas regiões periféricas da cidade. Mas, como nos ensina Alba Zaluar (2004), se quisermos entender alguma coisa do que acontece nessas regiões, será preciso investigar a linha de sombra que perpassa a cidade inteira, em que se articulam a sedução encantatória do moderno mercado de consumo e o bloqueio de chances promis-soras no mercado de trabalho, as práticas ilícitas que atravessam a dita economia informal (e não só, como bem sabemos) e os circuitos do tráfi co de drogas, com suas capilaridades nas práticas cotidianas e nas tramas da sociabilidade popular. “Viver em risco” é a forte expressão que Lucio Kowarick (2000, 2009) propõe ao analisar a vulnerabilidade socioeconômica e civil do Brasil urbano atual, mas que também sinaliza processos e circunstâncias que estão longe de se deixarem capturar por indicadores e tipifi cações ou defi nições categoriais de “pobres” e “excluídos”. Daí a exigência de construção de parâmetros descritivos para colo-car em perspectiva realidades urbanas em mutação. Uma abordagem que abra uma senda investigativa ao revés das ênfases hoje predominantes nos estudos de pobreza, grandemente pautados por tipifi cações e categoriais de políticas sociais voltadas às versões brasileiras dos quartiers diffi ciles. Entre as tipifi cações (fi cções?) das chamadas “populações em situações de risco” e as análises gerais, o outro polo dos debates atuais, sobre economia urbana e a “cidade global”, é todo um entramado desse mundo que resta a conhecer. É nesse terreno que um estudo sobre trajetórias e mobilidades urbanas pode se mostrar fecundo, à distância de expilações gerais sobre a “cidade e sua crise” e também de defi nições categoriais ou identitárias das populações urbanas.

Questão política: ao mesmo tempo em que se faz (ainda se faz) a celebração das virtudes democráticas dos chamados fóruns públicos de participação, ao mesmo tempo em que se faz a celebração (talvez, sobretudo) das virtudes políticas dos dispositivos ditos comunitários para a solução dos dramas locais, é o caso de se perguntar por um campo social que parece escapar, por todos os lados, dessas for-mas e modos de interpelação política. É o caso de interrogar os sinais e evidências de uma ampliada e crescente zona de indiferenciação entre o legal e o ilegal, entre o direito e o não-direito, entre a norma e a exceção, projetando uma inquietante linha de sombra no conjunto da vida urbana, zona de indiferenciação que cria situações cada vez mais frequentes, que desfazem formas de vida e transformam todos e cada um potencialmente em “vida matável” (Agamben, 2002). Para usar os termos de Michel Agier (1999, 2002), entre a “cidade global” ou a “cidade genérica”, com seus artefatos iguais em todas as grandes metrópoles do planeta e os extremos da “cidade nua” (e a gestão da pura sobrevivência biológica dos que

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perderam tudo o que constitui uma forma de vida), há uma zona incerta, que não se reduz às fronteiras físicas (se é que estas existem) do que chamamos periferia, pois passa por todo o entramado da vida social, pelas práticas e suas mediações, pelos circuitos da vida urbana e as conexões que se fazem nas dobraduras da vida social. São questões que se impuseram no centro de nossas pesquisas e que defi nem, por isso mesmo, um horizonte de indagações sobre os ordenamentos sociais que vem sendo urdidos nas tramas da cidade. As trajetórias urbanas são pontuadas e demarcadas por situações que podem ser vistas como espaços de condensação de práticas, mediações e mediadores que armam como que micro-cenas descritivas em que esses processos podem ser fl agrados.

Questão teórico-metodológica: já é lugar comum dizer que as teorias e catego-rias convencionais de análise não dão conta das novas realidades. Mas, então, será preciso levar isso a sério e saber tirar consequências. Não se trata de inventar novas teorias e muito menos domesticar essas realidades em alguma matriz explicativa geral. Trata-se, antes e sobretudo, de fazer da investigação uma experiência de conhecimento capaz de deslocar o campo do já-dito, para formular novas questões e novos problemas. Ao invés de dar um salto nas alturas e se agarrar em alguma teoria ou conceito geral, prospectar as linhas de força dessas realidades em mu-tação. Mais do que um conceito, a cidade é um campo de práticas, diz Roncayolo (1978). Essa é uma sugestão forte a ser seguida e que coloca o plano no qual uma investigação pode se dar, fazendo surgir feixes de questões que permitam modifi car problemas previamente colocados – a “questão urbana” não existe como tal (defi nição prévia ou noção modelar), mas é confi gurada no andamento mesmo dessa prospecção como questões (sempre parciais) e interrogações (sempre reabertas) que vão se colocando nessa “construção exploratória do objeto” de que fala Lepetit (2001). É com essa perspectiva que buscamos seguir, prospectar, as mobilidades urbanas, seus espaços e territórios.

Pontos de infl exão, questões em discussão

Para bem situar as coisas, será interessante reatar com o começo e partir do diagrama de referências e relações que armaram o cenário urbano como questão nos anos 1980. Pois, se o que importa é decifrar processos e práticas, então é também preciso dizer que estes só se deixam ver nos deslocamentos e pontos de infl exão que vão compondo as realidades urbanas, nas questões e novos proble-mas que surgem – as “zonas de turbulência” que marcam os pontos de infl exão, abrindo-se a outras confi gurações a serem decifradas.

Então, começando pelo começo. Já no fi nal dos anos 1980, o sinal de alarme foi dado. Em 1991, ao fazer o balanço de “cinquenta anos de urbanização”, Vil-mar Faria (1991) acusava a difi culdade de situar o sentido das evoluções urbanas nas décadas anteriores. Eram tempos incertos, atravessados pelas difi culdades

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econômicas (crise, hiperinfl ação) e atribulações políticas (governo Collor), mas eram sobretudo anos que já traziam as marcas das mudanças do capitalismo contemporâneo. Quais os parâmetros, qual a medida para avaliar e colocar em perspectiva essas evoluções? Durante décadas, lembra Faria, a refl exão sobre a sociedade urbana fundiu-se e confundiu-se com a “refl exão sobre os processos de mudança social que caracterizavam a constituição de uma sociedade urbano-industrial – pobre e de consumo, heterogênea e desigual – na periferia da econo-mia mundial crescentemente internacionalizada” (1991: 99). E durante décadas as transformações urbanas foram pensadas a partir de uma projeção de futuro formulada seja nos termos da modernização e progresso, seja nos termos do desen-volvimento autônomo, da reforma ou revolução, mas que ordenava processos e dados das realidades urbanas do ponto de vista dos obstáculos ou entraves estruturais a serem superados por alternativas políticas capazes de acelerar ou redirecionar processos sociais. Pois bem, nota Faria, chegamos ao fi nal dos anos 80 sem poder avalizar as esperanças de que essas teorias se alimentavam. Além de terem perdi-do a “força aglutinadora”16 de outros tempos, as mudanças recentes no país e no mundo deslocaram a ordem das evidências que pareciam dar-lhes plausibilidade. O problema, diz Faria, é: se esses modelos teóricos perderam vigência, se suas promessas perderam plausibilidade, com o seu esvaziamento também se perdeu “um fi o condutor, um parâmetro, uma medida” para análises prospectivas.

A questão é interessante sobretudo pelo momento em que foi formulada. No início dos anos 90, trazia embutida uma pergunta sobre as destinações possíveis de uma transformação que, no correr das décadas, revirou o país de alto a baixo. É certo que, nesses anos, foram plasmadas as fundas desigualdades regionais, urbanas e sociais que caracterizam a sociedade brasileira, bem como os traços conhecidos da pobreza urbana concentrada nas periferias das grandes cidades. Mas também é verdade que tudo isso foi processado no bojo de um vigoroso ciclo de integração urbana – é esse o andamento do texto de Faria. Essas décadas foram caracterizadas por deslocamentos espaciais consideráveis (fl uxos migra-tórios), pela construção de uma estrutura urbana ampla e diferenciada (apesar de muito segmentada e desigual internamente), pela formação de um mercado de trabalho unifi cado e a “contínua incorporação de massas de trabalhadores às relações sociais de caráter mercantil e, mais especifi camente, às relações de

16 “Amalgamadas muitas vezes de forma contraditória pelo jogo político das forças sociais – e sem que aí faltasse a força aglutinadora do sentimento nacionalista e terceiro-mundista – essas visões de mundo davam eco aos ‘projetos de desenvolvimento’ das elites hegemônicas ‘modernizantes’ e substância à análise crítica e à prática política das contra-elites. O Brasil, eterno país do futuro, urbano, industrial e desenvolvido – se possível socialista – podia ser pensado e ‘projetado’. [...] Mesmo quando a internacionalização da economia integrou o país de forma dinâmica na expansão capitalista do pós-guerra, o confronto político dos interesses contemplados e postergados por essa integração deu substância teórico-ideológica à política e alimentou de esperanças a análise social e, portanto, a análise prospectiva dos problemas urbanos” (Faria, 1991: 99).

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assalariamento da força de trabalho”.17 No fi nal da década de 1980 já havia sinais de infl exão nesse processo. E as evidências vinham da interrupção do ciclo histórico de mobilidade social ascendente. A questão veio a público através de um artigo de Pastore publicado em 1993 e teve ressonâncias importantes nos debates daqueles anos. Pastore mostrava, então, que, em comparação com a década de 1970, diminuía a proporção de indivíduos que subiram na escala social e, pela primeira vez, desde que essas informações vinham sendo obtidas, aumentou a proporção dos que desceram na pirâmide social. Esse é um fenômeno novo na história social brasileira, diz Pastore. E para Faria, em artigo de 1992 sobre a conjuntura social brasileira, “talvez pela primeira vez no passado recente segmentos e gerações têm a dura experiência da mobilidade bloqueada [...] e as implicações dessa infl exão nas expectativas constituem uma das principais dimensões do problema social na presente conjuntura” (1992: 113).

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Dez anos depois, o que eram sinais de um ponto de infl exão confi rmou-se e desdobrou-se no novo cenário social das grandes cidades. Nesses dez anos, como se sabe, o país entrou em compasso com o capitalismo contemporâneo – abertura dos mercados aos capitais globalizados, reestruturação produtiva, novas tecnologias, mudanças nas práticas gerenciais, fl exibilização do contrato de trabalho e, para dizer tudo isso de uma só vez: a implosão da chamada “norma fordista”, com os efeitos conhecidos no aumento do desemprego de longa duração, na precarização do trabalho, nos contingentes crescentes de sobrantes do mercado de trabalho. O assalariamento recuou de forma contínua ao longo da década, e os novos padrões de funcionamento do mercado de trabalho trouxeram a quebra de uma estrutura ocupacional que, mal ou bem, durante décadas permitiu a integração de amplos contingentes de uma força de trabalho pouco ou nada qualifi cada, interrompendo o ciclo histórico de mobilidade ocupacional e social. Na melhor das hipóteses, resta o que a literatura especializada chama de mobilidade circular, e o resultado é a tendência a uma crescente polarização no mercado de trabalho e o aprofundamento das desigualdades sociais (Comin, 2003). O mais importante, porém, são os deslo-camentos, que foram consideráveis: da indústria para os serviços, do assalariamento para o trabalho informal, do emprego para o desemprego, do mercado para uma nebulosa de situações em que transitam os sobrantes entre as atividades domésticas e a chamada economia de sobrevivência, mas sempre com o selo de uma pauperi-zação crescente. E se o assim chamado mercado informal aumenta (mais de 50% da população ativa na Região Metropolitana de São Paulo, entre assalariados sem carteira de trabalho e o chamado emprego autônomo), também aí os deslocamentos

17 “A expansão capitalista no Brasil [...] teve força dinâmica sufi ciente para criar um volume considerável de novos empregos na indústria de transformação, nos transportes, na produção de energia e com outras atividades correlatas, na construção civil, nas telecomunicações e no comércio moderno, nos serviços de intermediação fi nanceira e de apoio às atividades produtivas, na administração pública direta e indireta e nos serviços sociais, desenvolvendo as ocupações modernas e diferenciando a estrutura social urbana” (Faria, 1991: 104).

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foram importantes. Como mostra Álvaro Comin (2003), há evidências de que os capitais conectados nos circuitos da economia globalizada tendem a capturar os nichos em que tradicionalmente operavam parcelas importantes dos segmentos informais urbanos nos interstícios da economia urbana. Sendo assim, a simbiose do tradicional-moderno tratada por Francisco de Oliveira no início dos anos 70 foi, também ela, cortada, essas atividades sendo empurradas para fora dos circuitos centrais da economia, compondo o cenário da pobreza urbana e, na avaliação de Comin, acenando com “a barbárie típica que já se incorporou sistemicamente à vida de nossas sociedades, nos centros e também nas periferias”.18

Na face urbana das mudanças, as infl exões também foram consideráveis – e é sobretudo por esse lado que se pretende, aqui, seguir a discussão. A mobilidade social medida por referência aos deslocamentos na hierarquia das ocupações, funções e profi ssões é apenas um lado ou uma das dimensões do que Maurizio Gribaudi (1987) nomeou como “ciclo de integração urbana”: deslocamentos es-paciais, integração no mercado de trabalho urbano-industrial, acesso à moradia e aos serviços urbanos compuseram os eixos em torno dos quais esse movimento se realizou.

Para colocar nos termos do debate dos anos 1980, eram eixos que desenhavam um espaço social no qual se processavam as “contradições urbanas”, no qual se expressava “o novo caráter do confl ito de classes”, e a “espoliação urbana” ganhava tradução política nos “novos movimentos sociais” com suas reivindica-ções por equipamentos e serviços de consumo coletivo nas distantes e precárias periferias das grandes cidades. Mas, então, isso signifi ca dizer que a mobilidade social sinalizava um movimento de integração urbana em que se entrecruzam percursos ocupacionais e trajetórias espaciais (habitacionais). E também uma relação política com a cidade (cf. Gribaudi, 1987). A maioria dos que fi zeram os grandes deslocamentos em direção à cidade nos anos 1960 e 1970 foram os

18 “Uma parcela importante dos segmentos informais urbanos, que estruturavam sua repro-dução de baixa capitalização de setores como o comércio e a construção civil, e também em certas franjas mais periféricas das cadeias industriais, foram sendo deslocadas destes nichos exatamente pelo fato de que aos poucos capitais mais volumosos foram penetrando estas atividades. [...] Paralelamente, a expansão das redes supermercadistas, de moda e vestuário, o enorme desenvolvimento do mercado imobiliário (apoiado na modernização das técnicas de produção de edifi cação, cada vez mais intensivas de capital e menos de trabalho), os enormes ganhos de produtividade dos setores produtores de bens de consumo (que ao reduzirem substancialmente seus preços tornaram improdutivos certos serviços de reciclagem e conserto de roupas, calçados e eletrodomésticos mais comezinho), a expansão das redes de serviços pós-consumo (grandes concessionárias de automóveis, revendas e postos autorizados de manutenção de máquinas e equipamentos) e mesmo a disseminação de formas mais modernas e capitalizadas de prestação de serviços como alimentação (cadeias de fast-food), limpeza e cuidados pessoais (redes de lavanderias e cabeleireiros), certamente operam no sentido de reduzir os interstícios nos quais as modalidades de auto-ocupação encontram sua forma de reprodução ou pelo menos tendem a afastá-los dos circuitos centrais, mais dinâmicos, para a periferia” (2003: 142).

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agentes da chamada urbanização por expansão de periferias, experimentaram a autoconstrução da moradia mobilizando esforços familiares e a solidariedade intrapares, organizaram-se em associações locais e reivindicaram melhorias ur-banas. Pelo lado do trabalho, parte deles se integrou nos núcleos dinâmicos da economia e formou as bases da organização e movimentação sindical que tanto marcaram a década de 1980. É essa dinâmica que foi tematizada nos debates que corriam naqueles anos, de tal maneira que poderíamos mesmo dizer que os termos desse debate traduziam em seu próprio registro um espaço social cons-truído nas linhas que entrelaçavam trabalho, cidade e política.

E é por esse lado que também podemos falar de uma ruptura do diagrama de relações que defi niam a pulsação histórica e política desse espaço social. Por certo, produção e reprodução social, exploração do trabalho e espoliação urbana são pares conceituais que dizem respeito a processos sociais efeitos a serem vistos sob o prisma da análise sociológica. O problema não é bem uma questão de categorias e das teorias que lhes dão fundamento. O problema está no plano de consistência que conferia potência crítica às descrições das realidades urbanas do período – é isso que parece ter se esvaziado, de tal maneira que essas categorias deixam de ser operantes para colocar em perspectiva e sob perspectiva crítica a dinâmica urbana que se desenhou a partir dos anos 1990. Para colocar em outros termos: parecem não ser mais sufi cientes, ao menos no agenciamento conceitual em que eram mobi-lizadas, para especifi car e qualifi car a “questão urbana” – ou urbano como questão e problema que desafi a a imaginação sociológica (e a invenção política).

Nos anos 1990, a segregação urbana continua operante, e o crescimento peri-férico da cidade continua a acontecer. No entanto, a dinâmica já não é a mesma, os deslocamentos socioespaciais respondem a outras circunstâncias. Em contraste com as décadas passadas, não são mais alimentados pelos fl uxos migratórios que diminuíram no correr da década de 1980 e chegaram a apresentar saldos negati-vos nos anos 90. Respondem a fatores de expulsão que ainda precisam ser mais bem compreendidos, mas que se dão no cruzamento entre as forças operantes no mercado de terras e a especulação imobiliária, a fragilização dos vínculos de trabalho e encolhimento de alternativas de emprego, e outros tantos que vêm de uma história já antiga de ausência ou precariedade de políticas habitacionais. Para usar os termos de Yves Grafmayer (1995), se nas décadas anteriores os deslocamentos espaciais traduziam “trajetórias de inserção”, agora são as “traje-tórias de exclusão” que predominam. Em um cenário urbano muito alterado, e no contraponto de uma diminuição relativa da concentração populacional nas áreas centrais e regiões do seu entorno, a cidade de São Paulo conheceu uma verdadeira explosão demográfi ca em seus pontos mais distantes;19 as ocupações de terra vão

19 Conforme Taschner e Bogus (2001: 31-44), “Nos anos 90, acentuou-se a periferização: entre 1991 e 1996 todos os anéis, com exceção do periférico, apresentaram taxas negati-vas. Assim, a totalidade do crescimento municipal, de quase 200 mil pessoas entre 1991 e 1996, foi devida ao aumento populacional na periferia. O anel periférico foi responsável

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se espalhando em cada pedaço de área livre nas regiões periféricas de assenta-mento já consolidado e fazem a mancha urbana se expandir nas chamadas “zonas de fronteira” e também nas áreas de proteção ambiental, reservas fl orestais ao norte e mananciais ao sul; e pontilhando os grandes eixos desses deslocamentos, os núcleos de favelamento mais do que duplicaram no correr da década. Entre favelas, ocupações de terra, loteamentos irregulares ou clandestinos, estima-se que a “cidade ilegal” atinja mais da metade da população paulistana.20 Essa não é uma situação exclusiva de São Paulo, sabemos (cf. Maricato, 2000, 2001). E tampouco é coisa recente, também sabemos. Porém, ganha confi gurações novas nos anos 90, seja pelas proporções que o problema ganhou, exigindo uma ordem de soluções que desafi a os poderes públicos às voltas com restrições de recursos e a fragilização dos instrumentos de política urbana; seja pela multiplicação de situações de risco social21 ou, então, pela combinação por vezes explosiva, sobre-tudo nas regiões mais distantes da cidade, entre a questão social e os problemas ambientais que a afl igem;22 seja ainda pela constituição de uma zona cinzenta,

por 43% do incremento populacional nos anos 60, por 55% nos anos 70, por 94% entre 1980 e 1991 e por 262% entre 1991 e 1996”. 20 “Cidade clandestina” é o título de uma reportagem da Folha de São Paulo, edição de 22/04/2002, com dados relativos aos loteamentos irregulares no município de São Paulo: “os loteamentos e condomínios clandestinos ocupam um quinto do território de São Paulo. São 338,8 milhões de m² tomados por áreas residenciais e comerciais que não existem legalmente para a prefeitura. Nesse espaço vivem cerca de 3 milhões de pessoas, um terço da população da capital. O tamanho da chamada cidade paralela dentro da São Paulo ofi cial é superior à área urbana de Ribeirão Preto, um dos maiores municípios do interior do Estado”.21 Conforme Marques e Torres (2000), “Em termos concretos, existiam na Região Metropo-litana de São Paulo em 1998 aproximadamente 1,7 milhões de pessoas (10% da população) com rendimento familiar inferior a 2 salários mínimos, ou R$302,00, de acordo com a PNAD-IBGE. [...] Esta grande população miserável tem que habitar as franjas e interstí-cios urbanos mais precários. Neste sentido, a existência de áreas de risco ambiental com péssimos indicadores sociais e sanitários [...] mostra que existe claramente uma periferia da periferia. Essa hiperperiferia implica a condensação e acúmulo num espaço menor de riscos sociais, residenciais e ambientais de diversas origens, genericamente atribuídos ao contexto periférico mais abrangente. Assim, os riscos ambientais e sociais são desigual-mente distribuídos (ou os primeiros são distribuídos sobre os segundos), criando um círculo perverso de pobreza e péssimas condições de vida em locais específi cos (mas nem por isso numericamente desprezíveis). A isso se somam condições praticamente nulas de mobilidade social ascendente. Essas condições, talvez ainda mais graves que as descritas nas “periferias da espoliação urbana” são cercadas por condições médias relativamente elevadas para os padrões periféricos tradicionais, indicando um padrão de segregação mais complexo, mais difícil de conceituar e medir, mas nem, por isso menos injusto”. 22 Como mostra Martins (2003: 174), em São Paulo, as leis de proteção aos mananciais viraram letra morta diante das ocupações que vieram se sucedendo: “essa região protegida registrou, nas duas últimas décadas, um dos maiores índices de crescimento demográfi co

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aliás também em expansão, em que se misturam várias ilegalidades, dos grileiros de terra e imobiliárias fraudulentas, passando por políticos corruptos, “entidades sociais” de atuação duvidosa e, claro, o tráfi co de drogas e as multifacetadas redes mobilizadas no assim chamado comércio ilícito.

Tudo isso tem sido amplamente notado e fartamente documentado por pes-quisas recentes. Aliás, é preciso que se diga: a quantidade e a qualidade da informação hoje disponível são notáveis. Grades complexas de indicadores sociais e sofi sticadas cartografi as urbanas fazem o traçado da pobreza no conjunto da ci-dade, dos pontos críticos de concentração da exclusão territorial e vulnerabilidade social à distribuição desigual dos equipamentos urbanos e serviços sociais. E no seu conjunto vão desenhando os contornos de uma cidade muito desigual, mas também heterogênea, com diferenciações importantes atravessando e compondo os territórios da pobreza. São evidências que vêm alimentando os debates recen-tes sobre os assim chamados novos padrões da segregação urbana. Descobre-se que a cidade é muito mais heterogênea do que se supunha, que seus espaços são atravessados por enormes diferenciações internas, que pobreza e riqueza se distribuem de formas descontínuas, que os novos empreendimentos imobiliários e equipamentos de consumo alteram as escalas de proximidade e distância entre po-bres e ricos, que os investimentos públicos realizados nos últimos anos desenham um espaço que já não corresponde ao continuum centro-periferia enfatizado pelos estudos urbanos dos anos 80 e que, enfi m, somando tudo, se as desigualdades e diferenças existem e aumentaram nos últimos anos, elas se cristalizam em um espaço fragmentado que não cabe nas dualidades supostas nos estudos anteriores (cf. Marques e Bichir, 2001; Torres e Marques, 2000).

O volume das informações impressiona, e a escala das transformações ur-banas recentes também. O universo das evidências empíricas permite hoje o retrato detalhado da distribuição da pobreza nos espaços da cidade, e os recursos técnico-metodológicos hoje disponíveis permitem montar o caleidoscópio urbano a partir da composição de microdados que indicam clivagens e diferenciações das quais mal se suspeitava sob a ação das forças estruturantes da economia e da política. Mas nem por isso essa massa de informações é sufi ciente para discernir as linhas de força que atravessam o atual estado de coisas, e pelas quais essas transformações operam. Da informação ao conhecimento, a distância é grande:

do conjunto da cidade. Neste quadro, a principal questão ambiental urbana é hoje, em São Paulo, antes de tudo, um problema de moradia e de carência ou insufi ciência de política habitacional [...] se a dualidade das condições urbanas edifi cadas, com ilhas de efi ciência, na cidade vem viabilizando, nos anos recentes, o funcionamento dos negócios e empresas da nova economia, as condições ambientais, que são indivisíveis, começam a demonstrar seu limite, chegando a situações críticas que afetam não só a parcela excluída, mas toda a comunidade – das pessoas físicas aos próprios negócios, como é o caso do limite de dis-ponibilidade de água potável, da poluição dos mananciais e redução de sua carga abaixo dos níveis de segurança, das enchentes, da crise da energia elétrica e da proliferação das doenças como a dengue...” .

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há mediações a serem percorridas. E, sobretudo, as evidências da tragédia social (e a grade de seus indicadores) estão longe de defi nir um plano de referência que nos permita colocar em perspectiva essas evoluções, ter uma cifra pela qual problematizar os tempos que correm e reabrir a interrogação sobre a cidade como questão, para além da constatação (e denúncia) dos “problemas sociais” e das recomendações bem fundadas de uma intervenção social direcionada aos pontos mais críticos da realidade urbana.

O fato é que, hoje, sabemos mais e melhor sobre as características da pobreza urbana, sobre o modo como se distribui nos espaços das cidades e as variáveis que compõem sobre as situações de vulnerabilidade social e exclusão territorial. Mas sabemos pouco sobre as dinâmicas, processos e práticas sociais operantes nesse cenário tão modifi cado de nossas cidades. Sabemos mais e melhor sobre a escala dos problemas sociais e os pontos críticos espalhados pela cidade e seus territórios. Mas não sabemos discernir as linhas de força que atravessam essas realidades.

Se a cidade é um campo de práticas, para lembrar aqui novamente a sugestão de Roncayolo (1978), então as evidências empíricas que indicadores e cartografi as nos entregam podem e devem ser entendidos como pontos de cristalização de práticas e processos, como pontos de condensação de tempos sociais e tempora-lidades urbanas, experiência social sedimentada e história incorporada (Bour-dieu) que será preciso reativar para o deciframento dos sentidos e direções das evoluções recentes, das tensões e fricções que atravessam as realidades urbanas. Mas colocar a cidade em perspectiva e como perspectiva signifi ca assumir um certo prisma para exercitar esses postulados básicos da análise sociológica. Não é apenas um contexto, tampouco apenas o solo no qual situar o registro de con-dições de vida e suas mudanças – não é a mesma coisa que espacialização de dados e variáveis. A vida urbana é toda colocada sob o signo da mobilidade, diz Grafmayer (1995). E os fl uxos migratórios, os deslocamentos espaciais e mobi-lidades habitacionais, os percursos ocupacionais e suas infl exões no tempo e no espaço, traduzem na escala dos destinos individuais e coletivos a dinâmica das transformações urbanas.23 Essa pode ser uma via fecunda para uma redescrição das mudanças recentes.

23 “[...] a vida urbana é toda ela colocada sob o signo da mobilidade : migrações, mobilida-des residenciais, os deslocamentos diários impostos pela especialização dos espaços. Estes fatos de mobilidade são portadores de desestabilização de pertencimentos e certezas. Mas são, ao mesmo tempo, os meios e os signos de adaptações mais ou menos bem sucedidas às exigências da condição citadina. Traduzem assim, na escala dos destinos individuais, a ambivalência dos processos de desorganizações/reorganizações que são certamente cons-titutivos de toda vida social, mas que se exacerbam na cidade moderna. Os autores da Escola de Chicago desenvolveram amplamente este tema, dando eco à ideia simmeliana da necessária imbricação, no seio dos processos sociais, de ordem e desordem, de integração e ruptura” (Grafmayer, 1995: 89).

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Sabemos que essa é uma questão defi nidora da sociologia urbana. Desde a Escola de Chicago e seguindo linhagens teóricas diversas, as mobilidades urba-nas e as relações entre os deslocamentos espaciais, ocupacionais e habitacionais foram tomadas e assim pesquisadas por muitos como cifra para o entendimento das transformações urbanas, de suas linhas de ruptura e de fratura, mas também de recomposições e convergências, processos multifacetados por onde diferencia-ções sociais vão se desenhando, ganhando forma e materialidade nos espaços das cidades pesquisadas (cf. Grafmayer, 1995; Grafmayer e Joseph, 1979; Grafmayer e Dansereau, 1998; Gribaudi, 1998). Esse é um prisma de análise que ganha, hoje, no debate contemporâneo, renovado interesse no contexto de transformações que se seguem em ritmo acelerado, alterando tempos e espaços da experiência social, redefi nindo práticas e seus circuitos, desestabilizando referências e iden-tidades coletivas, criando outras tanto junto com novas clivagens sociais e outros “campos de gravitação” da experiência social.

Mas, então, isso também signifi ca dizer que, pelo prisma das mobilidades urbanas e seus pontos de infl exão no tempo e no espaço, é possível reativar questões colocadas em outros contextos e recuperá-las sob outras perspectivas, com outros dados e novas perguntas. E sendo assim, as questões tratadas nos anos 70/80, e comentadas por Vilmar Faria no início dos 90 (a mobilidade social bloqueada), podem ser aqui tomadas não como registro interessante de uma re-ferência bibliográfi ca necessária nos protocolos acadêmicos, mas como questão que se desdobra em outras tantas, que se redefi ne em um outro tempo e outras confi gurações sociais. E talvez seja desse ponto que interessa começar, e tentar puxar as linhas que a partir daí vão se delineando.

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CAPÍTULO 2

Perspectivas descritivas

Mobilidades urbanas: trajetórias habitacionais, percursos ocupacionais, des-locamentos cotidianos nos circuitos que articulam trabalho, moradia e serviços urbanos. Três dimensões entrelaçadas nas trajetórias individuais e familiares. Na defi nição precisa de Grafmayer (2005), na ótica dos atores, essas formas de mobilidade são não apenas interdependentes, mas sobretudo diversas facetas de um processo único de reorganização das condições de existência. Seus eventos precisam, portanto, ser situados nos tempos e espaços em que as histórias se desenrolam. É por essa via que se deixam ver como pontos de condensação de tramas sociais que articulam histórias singulares e destinações coletivas. Tempos biográfi cos organizam trajetórias que individualizam histórias de vida, e estão inscritos em práticas situadas em espaços e nos circuitos urbanos que as colocam em fase com tempos sociais e temporalidades urbanas.

Seguir as mobilidades urbanas não é, portanto, a mesma coisa que fazer a cartografi a física dos deslocamentos demográfi cos. Não é tão simplesmente fazer o traçado linear de seus percursos (pontos de partida, pontos de chegada). Tempos biográfi cos e tempos sociais se articulam na linha de sucessão (das genealogias familiares e suas trajetórias), mas também supõem uma espacialização demar-cada pelas temporalidades urbanas corporifi cadas nos espaços e territórios da cidade.1 Espaço e tempo estão imbricados em cada evento de mobilidade,2 de tal modo que, mais importante do que identifi car os pontos de partida e os pontos de chegada, são esses eventos que precisam ser interrogados: pontos críticos, pontos de infl exão, de mudança e também de entrecruzamento com outras histórias – “zonas de turbulência” em torno das quais ou pelas quais são redefi nidas (des-locamentos, bifurcações) práticas sociais, agenciamentos cotidianos, destinações coletivas. E são esses eventos que nos dão a cifra para apreender os campos de força operantes no mundo urbano, a trama das relações, de práticas, confl itos e tensões, enfi m, a pulsação da vida urbana – a redistribuição de possibilidades, bloqueios, aberturas ou impasses que atravessam e individualizam cada história de vida, mas que também a situam em um plano de atualidade.

1 Como sugere Roncayolo (1997), os tempos e cronologia não sincronizados mas contempo-râneos no presente histórico da cidade: o tempo dos assentamentos, das políticas urbanas, das evoluções da economia, da implantação das redes e serviços urbanos, dos operadores políticos, dos urbanistas, etc. Ver também: Lepetit, (1993, 2001).2 Para uma discussão sobre as relações entre tempo e espaço imbricados nos “fatos de mobilidade”, ver Tarrius (2000, 2003).

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Poderíamos, então, dizer que as mobilidades urbanas são demarcadas e com-passadas por eventos atravessados por três linhas de intensidade. A linha vertical das cronologias, em que os tempos biográfi cos se sucedem em compasso com o tempo social-histórico. No âmbito interno das famílias, a sucessão das gerações com suas linhas de continuidade e rupturas, heranças familiares transmitidas, redefi nidas ou reinterpretadas conforme mudanças nos agenciamentos cotidianos e nas hierarquias internas. A linha horizontal das espacialidades, em que os tempos se efetuam: as práticas urbanas deixam suas marcas no espaço e estas se objetivam, ganham forma e constroem referências que permitem entrecruzamentos com outras histórias, outros percursos, outros eventos que pontilham a história urbana – não a linha das fi liações familiares, mas a das comunicações transversais que fazem conexões com outros pontos de referência do social (e da cidade). Atravessando tudo isso em uma linha perpendicular, os eventos políticos que ganham forma e também operam como referências práticas que compõem os territórios urbanos: a cronologia dos investimentos públicos, os descaminhos da moradia popular, os confl itos sociais e suas derivações, práticas de tutelagem e clientelismo, que vêm de muito tempo e persistem entrelaçadas com as mediações democráticas de representação política, formas de ação coletiva e de solidariedade, que se alimentam de fontes diversas e também vêm de tempos diferentes, aberturas e retrocessos políticos que se sucedem aos calendários eleitorais. Eventos e situações que podem ser tomados como vetores que conectam espaços e territórios com os tempos políticos da cidade.

De partida, é preciso dizer que se está aqui se colocando à distância das ima-gens (e descrições) correntes de uma cidade fragmentada, recortada por enclaves de riqueza, nichos de miséria e territórios de pobreza. Os percursos traçados por indivíduos e famílias nos orientam através de diversas fronteiras, nos indicam as modulações da vida urbana e suas infl exões, suas fi ssuras, tensões, bloqueios, possibilidades. Se existem fraturas, não derivam de uma categorização prévia, mas procedem da prospecção desses percursos, das relações que se entrecruzam e se superpõem nas histórias individuais e os modos como estas vão se conjugando nos tempos e espaços em que transcorrem. Nas palavras de Jacques Revel (1998: 22), seguir o traçado das trajetórias urbanas de indivíduos e famílias signifi ca seguir “a multiplicidade dos espaços e dos tempos, a meada das relações nas quais (um destino particular) se inscreve”. É uma abordagem do social que responde a um “programa de análise das condições da experiência social restituídas na sua máxima complexidade”. Enriquecer o real, diz ainda Revel, um modo de descrever o mundo urbano.

Ao seguir os percursos de indivíduos e famílias, são traçadas as conexões que articulam diversos campos de práticas e fazem a conjugação com outros pontos de referência que conformam o social. Os percursos e seus circuitos fazem, portanto, o traçado de territórios, e são esses territórios que interessa reconstituir. É preciso que se diga que estamos aqui trabalhando com uma noção de território que se distancia das noções mais correntes associadas às comunidades de referência.

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É com um outro plano de referência que estamos aqui trabalhando. Nos eventos biográfi cos de indivíduos e suas famílias, há sempre o registro de práticas e redes sociais mobilizadas nos agenciamentos cotidianos da vida, que passam pela re-lações de proximidade, mas não se reduzem ao seu perímetro. Feitos de práticas e conexões que articulam espaços diversos e dimensões variadas da cidade, os territórios não têm fronteiras fi xas e desenham diagramas muito diferenciados de relações conforme as regiões da cidade e os tempos sociais cifrados em seus espaços. São esses circuitos que as trajetórias urbanas permitem apreender e que interessa compreender: a natureza de suas vinculações, mediações e mediadores, agenciamentos da vida cotidiana que operam como condensação de práticas e relações diversas.

É aí, nessas dobraduras da vida social, que toda a complicação urbana dos tempos que correm pode ser fl agrada; é aí que acontecem as exclusões, as fratu-ras, os bloqueios, e também as capturas na hoje extensa e multicentrada malha de ilegalismos que perpassam a cidade inteira e que operam, também elas, como outras tantas formas de junção e conjugação da trama social. Pontos de junção e conjugação da vida social que operam como campos de gravitação de práticas diversas: seus agenciamentos concretos, sempre situados, sempre territorializa-dos, são atravessados pelas linhas de força das tensões e confl itos, dos acertos e desacertos da vida, das possibilidades e bloqueios, e também dos limiares de outros possíveis.

É um plano de referência que permite colocar a cidade em perspectiva. No plano dos tempos biográfi cos, é toda a pulsação da vida urbana que está cifrada nos espaços e circuitos por onde as histórias transcorrem. Na contraposição entre histórias e percursos diversos, são as modulações da cidade (e história urbana) que vão se perfi lando nas suas diferentes confi gurações de tempo e espaço. E isso implica duas ordem de questões:

Primeiro, uma estratégia descritiva: lançar mão da noção de território supõe operar com a categoria de espaço. Como se sabe, a categoria de espaço lida com a simultaneidade e permite apreender as coisas no plano da contemporaneidade que constitui sua espacialização (Benoist e Merlin, 2001). Daí a exigência des-critiva, diferente do princípio narrativo do tempo: contar uma história, descrever um espaço. Um trabalho descritivo que escapa seja da abstração desencarnada dos números e indicadores, seja da referência exclusiva (e problemática) ao local, espaços ou micro-espaços das “comunidades”. Não se trata de negar a história, muito menos a narrativa daqueles que contam seus percursos e elaboram suas experiências. Trata-se, isso sim, de traçar a simultaneidade de tempos sociais e de tempos biográfi cos distintos. Simultaneidades que permitem traçar a contempora-neidade entre, de um lado, os que falam, com um tom épico e também nostálgico, dos tempos do emprego farto e dos seus percursos na cidade das promessas dos anos 60/70 e, de outro, as gerações mais novas cujas experiências já não podem ser conjugadas no tempo do progresso e das promessas, ou são conjugadas em um outro jogo de referências tecido entre a dureza do desemprego e do trabalho

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incerto, a atração encantatória do moderno mercado de consumo, mas também os novos circuitos de sociabilidade tramados na interface das mudanças operantes no mundo do trabalho e na cidade, e seus espaços. Simultaneidades de tempos e espaços diferenciados: tempos biográfi cos e tempo social sedimentados no que hoje é chamado de periferia consolidada com sua serrada trama de relações sociais, e as regiões mais distantes em que a urbanização ainda se faz em ato, conjugada no tempo presente entre as inseguranças e percalços das ocupações de terra, da precariedade urbana e confl itos sociais pautados por uma truculência cuja des-medida termina por atualizar os tempos de longa duração de nossa história.

É no confronto entre as diversas situações que, tal como num prisma, a cida-de vai se perfi lando nos seus focos de tensão, nos seus campos problemáticos. A questão vai surgindo no entremeio, no momento em que o caleidoscópio gira e faz ver toda a complicação do mundo urbano. Não a “questão urbana”, pois isso suporia uma defi nição prévia e modelar. Mas as diferentes modulações do mundo urbano em cada uma dessas confi gurações. Toda a complicação atual pode ser apreendida aí. Mas é nisso também que a noção de território pode se mostrar operante. Se é preciso a crítica, é no jogo das comparações que ela vai sendo tecida, ou melhor: é nesse jogo de simultaneidades que os parâmetros da crítica podem ser construídos, evitando, na falta de outro ancoramento, o risco sempre presente de fazer dos “tempos fordistas” um modelo normativo a partir do qual tudo o que vem depois só pode aparecer no registro do vazio (“não tem mais”, “não é mais assim”), quando não temperado pelo lamento nostálgico do que poderia ter sido, mas não foi. Porém, o vazio não tem potência. A complica-ção está nas positividades tecidas nas realidades urbanas atuais que traçam as linhas da atualidade.

O que importa é puxar essas linhas (ao menos algumas, ou o que o fôlego da investigação permitir) e, a partir daí, tentar apreender o plano de atualidade que atravessa as histórias e situações as mais contrastadas. A cidade não dissocia, diz Lepetit (2001); ao contrário, faz convergir ao mesmo tempo práticas, hábitos, comportamentos e histórias vindas de outros momentos e de espaços diversos. Vale a citação completa:

[A cidade] não dissocia: ao contrário, faz convergirem, num mesmo momento, os fragmentos de espaços e hábitos vindos de diversos momentos do passado. Ela cruza a mudança mais difusa e mais contínua dos comportamentos citadinos com os ritmos mais sincopados da evolução das formas produtivas [...] Não se trata de colocar lado a lado as formas e os comportamentos, mas de considerar os atores e as modalidades de apropriação. Assim, a questão das temporalidades urbanas é colocada de outro modo. A cidade nunca é absolutamente sincrônica: o tecido urbano, o comportamento dos citadinos, as políticas de planifi cação urbanística, econômica ou social desenvolvem-se segundo cronologias diferen-tes. Mas ao mesmo tempo, a cidade está inteiramente no presente. Ou melhor: ela é inteiramente presentifi cada por atores sociais nos quais se apoia toda a carga temporal. (Lepetit, 2001:141 e 143)

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Segundo, um espaço conceitual: um modo de pensar a cidade (e seus proble-mas) a partir de referências outras em relação ao que fi cou consagrado por uma certa linhagem da sociologia urbana e pela qual a cidade é vista sob o prisma exclusivo da habitação e seu entorno imediato ou comunitário, ou dos problemas locais a serem geridos de forma efi ciente por programas localizados, focalizados. A cidade é feita de cruzamentos e passagens, e é isso que introduz a questão da circulação, da mobilidade e da acessibilidade como prisma para a problematização da cidade e suas questões. Como diz Isaac Joseph (1998: 92-93), pensar a cidade como domínio da circulação e do acessível (e seus bloqueios) é, de partida, “dizer que ela é tudo, menos o lugar de formação de uma comunidade”. Apreender os bairros, notadamente os bairros desfavorecidos “a partir da cidade, é pensá-los no plural justamente porque situados (territórios, redes, comunicações) em um plano de consistência que lhes autoriza a permanecer urbanos”.3

A cidade é feita de cruzamentos: não se trata de imaginários difusos, é questão posta na materialidade de seus artefatos e redes que articulam espaços e territórios, e que os conectam (mas também separam e bloqueiam) com os centros urbanos e as várias centralidades em torno das quais gravita a vida urbana, defi nindo vetores de práticas e deslocamentos cotidianos. Não existe cidade sem centros e subcentros, diz Flávio Villaça (2001), e sem eles a cidade se volatilizaria como o gás que sai de uma garrafa: teríamos vilarejos ou comunidades, não uma ci-dade. Mas é também por isso que, como diz Roncayolo (1997: 241), não haveria sistema urbano “se não houvesse uma infra-estrutura de redes técnicas para suportar as trocas de produtos, de pessoas, de informações, de signos – tudo o que constitui o metabolismo urbano”. Habitação, serviços urbanos e transportes não compõem tão simplesmente os “contextos gerais” que servem para enquadrar práticas sociais e o jogo dos atores. Terreno clássico das lutas urbanas, estas políticas condicionam os circuitos de práticas cotidianas, delimitando tempos, espaços e ritmos das mobilidades urbanas e as formas de acesso ou bloqueios à cidade e seus espaços.

É sob essa perspectiva que a questão da segregação urbana pode ser situada. Nas mobilidades urbanas, nos seus percursos e deslocamentos, temos uma chave

3 Para Joseph (1998: 92-93), em diálogo com o debate francês e sob uma perspectiva forte-mente polêmica, “pensar o espaço das cidades como ordem de circulação e como organização da separação, signifi ca forçosamente submeter à crítica aguda todo um vetor da fi losofi a do habitar ancorada na experiência da proximidade e do mundo à mão. Ora, esta experiência está no coração dos pensamentos da identidade e das práticas gestionárias que procuram corrigir um défi cit de urbanidade pela imposição de identifi cações imaginárias. [...] Concepção securitária de um lugar, mas sobretudo uma concepção redutora e localista da proximidade como sendo o lugar ou o representante representativo do chez-soi”. O alvo da crítica de Joseph são as armadilhas de uma suposta nova cidadania pensada em termos locais. Contra isso, o autor propõe pensar a cultura urbana da circulação e coloca no seu centro a questão da acessibilidade: não se trata, diz o autor, de fazer a apologia da mobilidade e muito menos do nomadismo. A acessibilidade diz respeito a espaços, objetos e serviços.

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para apreender as dinâmicas urbanas que (re)defi nem as condições de acesso à cidade e seus espaços. Seguindo as questões propostas por Flavio Villaça (2001), mobilidades urbanas, deslocamentos espaciais e acessibilidade são fenômenos sociais entrelaçados. Sob esta perspectiva, a noção de segregação urbana defi ne-se em um plano conceitual a ser considerado. Não é a mesma coisa que distribuição da pobreza no espaço, não é um problema afeito apenas ao problema dos “pobres e desvalidos” da cidade e não é questão que se reduz às medidas dirigidas aos pontos (e micropontos) da vulnerabilidade social. Como diz o autor, a noção de segregação diz respeito a uma relação – relação entre localidades e a cidade. Não é uma relação física dada pelas escalas de distância e proximidade, tal como se poderia medir no mapa da cidade. É uma relação social que diz respeito à dinâmica da cidade, aos modos como a riqueza é distribuída (e disputada) e corporifi cada nas suas materialidades, formas e artefatos (Harvey), defi nindo as condições desiguais de acesso a seus espaços, bens e serviços. A questão da acessibilidade, portanto, é fundamental. Como diz Bernard Lepetit (2001: 76), citando Lucien Febvre, o historiador, “na cidade como na natureza, o único problema é o da utilização de suas possibilidades”.

A cidade em perspectiva: seguindo os fl uxos das mobilidades urbanas

Deslocamentos: a produção do espaço

Pelo prisma das mobilidades urbanas e seus territórios, a história passada não se volatiliza nas brumas do tempo a serem recuperadas apenas pelo trabalho da memória (ou pelo balanço bibliográfi co). Ela está corporifi cada e incorporada nos espaços e seus artefatos – traços materiais da vida social que são também vetores e referências de práticas e relações sociais atuais (cf. Grafmayer, 1995, Joseph, 1998).4 O “ciclo de integração urbana” que seguiu entre os anos 70 e até meados dos 80 ganhou forma e materialidade no que a literatura defi ne como “periferia consolidada”. Vistas de hoje, com suas ruas pavimentadas, razoável cobertura de serviços e equipamentos urbanos, mal deixam imaginar o “fi m de mundo” que eram no início dos anos 70 – “aqui era só mato” é a expressão cor-

4 Para David Harvey (1996: 51), mobilizando um outro arsenal teórico e por referência a outras questões, “o conjunto dos processos que se dão no espaço, que eu chamo de urba-nização, produz inúmeros artefatos – uma forma construída, espaços produzidos e sistemas de recursos de qualidades específi cas, organizados em uma confi guração espacial distinta. A ação social subsequente tem que levar em conta tais artefatos na medida em que muitos dos processos sociais (tais como os deslocamentos casa-trabalho) se tornam fi sicamente interligados”.

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rente dos moradores quando narram seus percursos, epopeias urbanas contadas e relembradas como evidências de uma vida que, mal ou bem, foi construída, e assim narrada, sob o signo do “progresso”. Progresso: seta do tempo na qual os acontecimentos – eventos biográfi cos, eventos familiares, eventos urbanos – estão (ou parecem estar) em sincronia com o tempo social da urbanização. Para os que chegaram à segunda metade dos anos 80, a cidade já estava muito distante das promessas da “cidade do progresso” dos anos 70, os percursos urbanos já serão outros, a experiência social não irá mais refazer essa peculiar articulação entre trabalho, moradia e cidade que marcou os “cinquenta anos de urbanização” descritos por Vilmar Faria (1992). Entre as circunstâncias de uma crise econômica prolongada e uma reestruturação produtiva já em curso, de um lado e, de outro, as impossibilidades de refazer o périplo da autoconstrução da moradia nas periferias da cidade, muito provavelmente serão essas populações que irão alimentar o crescimento das favelas e das ocupações de terra nos anos 90. Ainda será preciso conhecer melhor os percursos e trajetos dessas popu-lações. Podemos dizer que, muito provavelmente, aí se tem a convergência dos caminhos cruzados dessas fi guras conhecidas na paisagem urbana, os traba-lhadores pobres – as classes inacabadas, para usar a expressão de Francisco de Oliveira (1981), que vão se virando nas franjas do formal e informal, entre a sucessão de trabalhos incertos e desemprego recorrente. E que têm percursos urbanos também marcados pela sucessão de habitações precárias, despejos de casas alugadas, moradias improvisadas, acolhimento esporádico de familiares, passando por uma sucessão de ocupações temporárias até chegar a estabelecer “casa e família” nos interstícios do mundo urbano, ou nas fronteiras da periferia da cidade. A esses se agregam os que não chegaram a concretizar as promes-sas dos tempos do progresso, que não realizaram o “sonho da casa própria” e que, na mudança dos ventos, sobrantes do mercado de trabalho, vão perfazer as trajetórias de exclusão, para usar os termos de Grafmayer. São esses dife-rentes percursos urbanos e diferentes confi gurações da experiência urbana que escapam aos indicadores sociais que medem e identifi cam os pontos críticos de vulnerabilidade social no espaço da cidade.

Duas gerações, dois ciclos urbanos: os tempos biográfi cos estão, portanto, em compasso com o tempo histórico e as temporalidades inscritas nos espaços e territórios traçados por esses percursos. Essa é uma primeira diferenciação a ser feita, que nos oferece referências importantes para entender a pulsação das tramas sociais inscritas nas diversas situações sociais.

Por outro lado, e esse é o ponto a ser aqui enfatizado, essas histórias são também contemporâneas entre si. Entrecruzam-se na dinâmica da produção dos espaços e territórios: os campos de confl ito que acompanham os deslocamentos espaciais; as temporalidades urbanas inscritas nos equipamentos coletivos; as tramas associativas que articulam dinâmicos locais com os tempos políticos da cidade.

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Confl itos e disputas no e pelo espaço

Esses mesmos territórios que receberam as primeiras gerações em sua epopeia de progresso na “cidade grande” são pontilhados por ocupações que se sucederam em ritmos e intensidades diferentes, daí resultando um verdadeiro mosaico de situações, histórias e trajetórias que se corporifi cam em uma paisagem em que mal se distinguem as fronteiras entre bairros consolidados, áreas de ocupação ou ainda o favelamento que vai se espalhando por todos os lados.

Não se trata tão simplesmente de deslocamentos espaciais. A produção dos espaços passa por um intrincado jogo de atores e campos multifacetados de con-fl itos e tensões. As ocupações podem surgir “da noite para o dia”, como dizem os moradores do entorno, um barraco aqui e outro ali, uma semana depois já um amontoado que vai crescendo ao sabor das direções que o vento imprime aos rumores – “ouvi dizer que estavam invadindo por lá, então eu fui ver e fi quei...”, criando clivagens tensas ou abertamente confl ituosas em um mesmo território de referência. No mais das vezes, arma-se um acirrado campo de disputas pelos usos dos “espaços vazios”, terras públicas ou sem proprietário defi nido, envolvendo moradores, poderes públicos e os “invasores”, e por vezes os chefes locais do narcotráfi co que dominam o “ponto”. São disputas que podem se dar nas formas abertas da negociação, que podem ser resolvidas pela violência e força bruta, ou seguir acordos tecidos nas zonas de sombra do jogo dos interesses inconfessá-veis, para não dizer ilícitos. Mas há também a presença ativa dos movimentos de moradia que se alimentam das heranças das grandes mobilizações dos anos 80, que mobilizam os “recém-chegados, mal alojados” e promovem ocupações em outras paragens da cidade. Atravessando tudo isso, os pontos de cristalização e reatualização dos vários ilegalismos que atravessam a cidade e que são acionados na produção dos espaços urbanos, passando por associações de atuação duvidosa, máfi as locais, grileiros, as malhas da corrupção e do “comércio ilícito”, além de uma nova fi gura que, ao que parece, vem ganhando espaço nos últimos tempos como mediador entre as vários ilegalismos e que vai se especializando na arte de intermediação de compra e venda de terrenos irregulares – uma espécie de grilagem consentida e superposta a várias camadas geológicas de posse ilegal de terras. 5 Pouco entenderemos da “cidade ilegal” que sempre existiu na cidade de São Paulo (e todas as outras grandes cidades brasileiras, é bom que se diga), que cresceu e continuou crescendo nos últimos anos, se não levarmos em conta esse intrincado e tenso jogo de atores que produzem essa mesma ilegalidade. Não se

5 A situação identifi cada por Luciana Correa Lago (1994: 214) no Rio de Janeiro parece que está também se reproduzindo em São Paulo: “[...] já há indícios de que começam a se difundir, nos anos 90, novas formas de aquisição de lotes pelas camadas de baixa renda, em que o loteador passa a ter o papel de gerenciador do processo de ocupação ilegal de uma gleba a ser apropriada por um grupo de pessoas. Há um acordo entre o loteador e os futuros moradores quanto à não-titulação da propriedade e não-cumprimento das exigên-cias urbanísticas”.

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trata de uma fronteira para além do Estado, de suas leis e regulações públicas. Legal e ilegal, formal e informal, lícito e ilícito aí estão imbricados nas práticas, nas tramas sociais, nas disputas ou alianças entre atores diversos, tudo isso con-densado e encenado nos agenciamentos que presidem essas disputas cotidianas (e por vezes ferozes) pelo/no espaço.

Temporalidades urbanas

As temporalidades urbanas estão inscritas nos serviços e equipamentos urbanos que demarcam espaços e territórios, pautam ritmos cotidianos, cir-cunscrevem circuitos das práticas urbanas e estabelecem as conexões (e seus bloqueios) com os espaços da cidade. De partida, a temporalidade própria dos investimentos públicos que recortam territórios, redistribuem os usos de seus espaços, alteram o mercado de terras e também abrem as sendas de novas ocu-pações (e disputas pelo/no espaço) que vão se instalando nos interstícios dessas zonas em mutação.

Seguindo as circunstâncias e tempos acelerados do capital globalizado, os grandes equipamentos de consumo também chegaram lá, redefi nindo os circuitos de que são feitos esses territórios e suas referências. São polos de gravitação das práticas cotidianas. Redefi nições dos espaços e circuitos das práticas urbanas: “antes eu tomava dois ônibus e levava uma hora para encontrar uma lata de leite em pó para as crianças”, lembra uma senhora de 60 anos ao descrever as evoluções urbanas recentes no bairro onde mora. Referências de sociabilidade: práticas que articulam as redes sociais da vizinhança e parentela com os modernos circuitos do consumo e lazer; grupos de jovens e garotos que se encontram nos shopping centers, cada qual organizando seus tempos (e parcos orçamentos) contando com o “programa de fi m semana”. Por certo, práticas de consumo e lazer estabelecem relações entre o “universo da pobreza” e os circuitos do mercado. No entanto, as coisas são mais complicadas e estão longe de validar qualquer celebração fácil das supostas virtudes da moderna sociedade de consumo. Pois esses equipamentos de consumo são fl uxos socioeconômicos poderosos que redesenham os espaços urbanos, redefi nem as dinâmicas locais, redistribuem bloqueios e possibilida-des, criam novas clivagens e afetam a própria economia doméstica interna às famílias e suas redes sociais. A chegada dos grandes equipamentos de consumo desestabiliza ou pode desestabilizar as circunstâncias da economia local: o pobre proprietário do tradicional bar, bazar ou negócio montado na garagem de sua casa, que vê sua clientela encolher – é sempre possível encontrar produtos mais baratos nos grandes supermercados, também mais diversifi cados, além dos “signos de distinção” que acompanham os cartões de crédito que esses estabelecimentos tratam de popularizar. Centros de consumo, é também por lá que se encontram os novos e excludentes empregos, no mais das vezes intermediados por agências de trabalho temporário, empresas terceirizadas e mais uma nebulosa de práticas fraudulentas que mal escondem a conhecida (e proibida) merchandagem de mão-

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de-obra,6 e que vão mobilizando, entre os circuitos urbanos locais, os operadores de caixas registradoras, balconistas, porteiros, faxineiras, empregados para servi-ços variados, e também os seguranças privados. E os cartões de crédito também chegaram lá e, com eles, práticas de endividamento que redefi nem a economia doméstica, tomando o lugar ou deslocando o tradicional “fi ado” que preenchia as páginas das “cadernetas de compra” do também tradicional (e também em extinção) dono de bazar e mercearia “ali-do-lado” ou, então, as regras da pres-tação e contraprestação do jogo das reciprocidades que sempre fi zeram parte da “lógica da viração” tão própria do mundo popular. Mas, então, é o caso também de se perguntar pelas complicações que aí vão se confi gurando, pontos de tensão entre as novas lógicas (e obrigações) mercantis e as circunstâncias do desemprego prolongado, do trabalho precário ou, simplesmente, do não-trabalho.

O tempo político da cidade

Os espaços e territórios são também produzidos nos muito diferenciados dia-gramas de relações e vinculações que atravessam as tramas associativas locais: associações locais (e as assim chamadas entidades sociais) vêm se proliferando desde o início dos anos 90, com suas parcerias e convênios com organismos pú-blicos, conforme ganhou forma e realidade a municipalização das políticas sociais em um contexto de aumento da pobreza e do desemprego prolongado: programas de distribuição de leite e de cesta básica, ou alocações de formatos variados de renda mínima, compõem hoje o elenco dos dispositivos que as famílias acionam para lidar com as urgências da vida, ao mesmo tempo em que são ativadas formas novas e velhas de clientelismo e tutelagem ou, então, de formas nem sempre muito perceptíveis, as linhas tortas ou subterrâneas pelas quais se dá a disputa por recur-sos e poder nos agenciamentos locais. É mais do que frequente encontrar famílias cuja sobrevivência passa em grande medida pelos programas sociais, variados e múltiplos ao mesmo tempo, mobilizando homens e mulheres, adultos e crianças, conforme uns e outros se ajustam (ou não) aos critérios de credenciamento que os qualifi cam como “público-alvo”. Muito concretamente, as alocações de recursos já fazem parte da “viração popular” e, nas suas trajetórias e percursos (que é o nosso assunto, afi nal de contas), fatos e circunstâncias (“eventos de mobilidade”,

6 Foi recorrente em nossas entrevistas na região sul da cidade a referência a uma cooperativa que reúne cerca de 2 a 3 mil (!?) “cooperativados” e que presta os mais diversos serviços, da faxina à segurança privada, nos supermercados da região, lojas de departamento, shopping centers, e também nas casas noturnas e nos bingos que vêm se multiplicando nas grandes avenidas que recortam a região. Não foi possível conferir a informação e saber do que se trata, mas os nossos entrevistados são unânimes na descrição: ganhos baixos e incertos, ausência de direitos e garantias, empregos que surgem e desaparecem conforme a aleatoriedade das demandas e a duração do “contrato”. Claramente, nenhum foi capaz de explicar como são geridos os “contratos de serviços”, e muito menos o volume e destinação dos recursos, a não ser a constatação óbvia de que não são distribuídos entre os “cooperativados”.

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para usar a linguagem técnica), também contam com essas mediações. Também muito concretamente, poderíamos fazer o traçado dessa muito peculiar “metamor-fose da questão social”, de cidadãos reivindicantes a públicos-alvo, enredando-se a partir daí em uma outra teia de relações, em que não faltam desconcertos com critérios que ninguém entende muito bem (aliás, nem mesmo os gestores locais desses programas), que mudam conforme os ares dos tempos e o gestor de plantão ou, então, que simplesmente deixam de existir porque os recursos não existem mais, porque a “entidade social” não renovou o convênio/parceria, porque mu-dou o prefeito e suas prioridades, ou simplesmente porque o centro de interesse e disputa dos operadores políticos foi deslocado para outras paragens. Às vezes, para escapar dessas oscilações no jogo mutante de relações de força, nada mais seguro do que seguir o mais do que sólido caminho das lealdades políticas do velho e persistente clientelismo ou então (ou junto com) a solidariedade ativa do chefe local do narcotráfi co que trata de mobilizar comerciantes, perueiros, amigos e aliados para garantir recursos para as cestas básicas distribuídas por lideranças comunitárias, em autêntica e verdadeira interação com a “economia solidária” que deita raízes nas práticas da autoajuda e solidariedade intrapares, tão presentes no mundo popular. Tudo isso, como se vê, em fi na sintonia com os tempos.

É certo que há também a face moderna e mais globalizada disso tudo. Sobretu-do a partir da segunda metade da década de 90, em um cenário já marcado pelo encolhimento de recursos públicos e aumento da pobreza, e também da violência, as atividades comunitárias e associações de moradores se transformam em ope-radores das formas “modernas” de gestão social – gestão da pobreza. Entramos na “era dos projetos” e das parcerias; é a linguagem do Terceiro Setor alterando a anterior gramática política dos movimentos sociais7

e redefi nindo a paisagem

local, conforme a maior ou menor presença de ONGs com seus projetos, parcerias e vinculações em redes de extensão variada. Na prática, o “velho” e o “novo” se confundem, as fronteiras não são lá muito claras, até porque tudo acontece por vezes nos mesmos espaços e territórios, e os personagens – também não poucas vezes – passam e transitam entre um e outro.8 É verdade que os progra-

7 Uma líder local, antiga e aguerridíssima militante dos movimentos de moradia, que esteve na frente das também aguerridíssimas reivindicações do pedaço onde mora, e que hoje está no comando de uma Associação de Moradores, formada justamente nos agitados anos da década de 1980, assim fala das atuais difi culdades para obter recursos e apoio público para implementar programas sociais no bairro: “passamos a buscar parcerias porque nós somos uma Sociedade de Amigos de Bairro, e isso não signifi ca nada, embora seja de grande valor, mas o pessoal lá fora não enxerga... Eles querem saber de organizações que tenham técnicos, que produzam projetos. Nós não sabemos fazer isso, mas a gente ia buscar quem sabe e que tinha projeto [...] Temos que ter um corpo técnico, um assistente social, uma psicóloga, um gestor de projetos e é caro um profi ssional desses. Dentro da comunidade não tem. A gente sente muita falta. Se tivesse, seria muito maior e faria muito mais [...]”.8 A mesma líder da nota anterior, agora empenhada em transformar sua associação co-munitária em uma organização de formato moderno, quem sabe uma ONG, também se

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mas implementados são muito variados, mais modernos e mais empreendedores, “emancipatórios”, dizem seus operadores; também eles afetam e interagem com as dinâmicas familiares e seus expedientes de vida, mas contam com a mesma aleatoriedade, com a diferença de que os ventos que sopram aí vêm de outros lugares, das agências fi nanciadoras, dos formuladores de programas, de seus avaliadores, etc., etc., etc.

* * *

Produção do espaço urbano: deslocamentos espaciais e disputas pelo espaço; tramas sociais e mediações institucionais; temporalidades urbanas e os tempos políticos da cidade. Poderíamos seguir um longo inventário de microcenas desses territórios atravessados por lógicas e circuitos que transbordam por todos os lados as fronteiras do “universo da pobreza”. Ao contrário do que muitas vezes sugere a literatura que trata do “mundo da pobreza” e, ainda mais, no contrapelo das fi gurações de uma pobreza encapsulada no universo de suas privações e que são construídas pelas atuais políticas ditas de combate à exclusão, esses territórios são atravessados por lógicas distintas. Lógicas do mercado, certamente. Mas também a presença de atores políticos e institucionais situados em circuitos de práticas que, também elas, transbordam e fazem transbordar o perímetro estreito do “mundo da pobreza”, mesmo quando essas práticas se efetivam nos agenciamentos locais de gestão da pobreza e das urgências da vida.

Para retomar os termos dos debates correntes sobre os novos padrões de segregação urbana, se é certo que o modelo centro-periferia não é mais vigente, mais do que os indicadores que medem as distribuições sociodemográfi cas no espaço, são esses múltiplos polos de gravitação das práticas cotidianas que sina-lizam realidades em mutação. É aqui que talvez se esclareça a importância de perseguir as práticas e circuitos das mobilidades e trajetórias urbanas. São elas que nos dão as pistas desses pontos de condensação e de polos de gravitação que defi nem a pulsação dessas dinâmicas urbanas. Situadas em seus contextos de referência e nos territórios traçados pelos percursos individuais e coletivos, essas trajetórias operam como prismas pelos quais o mundo urbano vai ganhando forma em suas diferentes modulações. São essas variações que fazem ver as “zonas de turbulência”, pontos críticos em torno dos quais se dão deslocamentos e infl exões nas histórias individuais e familiares. E também fazem ver os mundos possíveis

empenha para credenciar sua “entidade” perante os órgãos públicos para a distribuição de leite e cestas básicas; também ela aciona os apoios e favorecimentos do novo e velho clientelismo político, e em torno desse mesmo personagem não faltam histórias, rumores, é verdade, sobre práticas pouco visíveis e não dizíveis quanto aos meios e usos dos recursos que mobiliza para colocar em prática seus programas.

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e de possíveis construídos nas diferentes confi gurações sociais tecidas por esses percursos, com suas tensões internas e as linhas de força de suas aberturas, bloqueios, impasses.

Percursos: trabalho e as tramas da cidade

Bifurcações nas destinações de uns e outros: traçados que precisam ser se-guidos para colocar em perspectiva reconfi gurações de mundos sociais. E por aí apreender o drama do desemprego ou do trabalho precário, para além da consta-tação monocórdia da “exclusão social”, mas tal como esses dramas se confi guram em mundos sociais e tramas de relações que escapam dos dados e indicadores que medem as transformações recentes no mercado de trabalho. Assim, por exemplo, a história de um ex-motorista de uma empresa pública de transporte (CMTC) pri-vatizada no início dos anos 1990. Como tantos outros da geração dos que fi zeram o périplo “a caminho da cidade” (anos 1970), instalou-se no que então era uma distante periferia carente de recursos urbanos. Com poucos dias em São Paulo, conseguiu emprego – “naquela época era fácil conseguir emprego, nem precisa procurar, era o emprego que procurava” é a frase comum repetida por muitos ao falar daqueles tempos de “emprego farto”. E logo depois já estava seguindo a carreira de motorista, com todas as garantias e proteções do “emprego fordista”: garantias de estabilidade, salário, convênio médico, direitos sociais. E foi assim que se lançou no empreendimento da construção da casa própria, realizou o “modelo do chefe provedor” e enfrentou “aqueles tempos difíceis”. Tudo seguia nos eixos até o momento em que veio a privatização e a demissão. A partir daí, segue-se uma sucessão de tentativas fracassadas de montar um negócio por conta própria. A aposta no comércio local não vingou. A história dessas tentativas e fra-cassos vai encenando o mundo social tramado pelos estreitos e frágeis circuitos do assim chamado mercado informal: a concorrência dos grandes empreendimentos comerciais que chegaram nesses anos, a pauperização da clientela, a fragilidade dos arranjos improvisados nas malhas das redes sociais locais entre parentes e conhecidos, equilíbrios frágeis rompidos por dívidas que não podem ser pagas, promessas não cumpridas, desacertos entre uns e outros. O ex-motorista entrou em desespero, sumiu de casa e foi encontrado semanas depois dormindo nos bancos da rua do centro da cidade, junto com mendigos e outros infelizes do destino. Voltou para casa e converteu-se a uma igreja evangélica. Quatro anos depois, já no fi nal de 2001, encontramos esse trabalhador fordista que virou um conta-própria fracassado tentando a sorte em um dos programas municipais de “emprego e renda” que levava o sugestivo nome de “Começar de Novo”. Se antes o trabalho o articulava com o mundo urbano e suas regulações (direitos, o 13o salário com o qual conseguiu dar entrada na compra do terreno, o salário certo e o convênio médico que garantiram o tratamento de uma fi lha doente), agora, na virada dos tempos, sua história termina por se re-centrar nos circuitos locais de seu território – sem sucesso nas tentativas do trabalho por conta própria e

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sucesso incerto (muitíssimo incerto) no programa da prefeitura. Seria mais uma história de uma vida que desaba no universo da pobreza (o trabalhador fordista que virou “público alvo” de programas de combate à exclusão), não fosse o jogo das circunstâncias, também elas construídas por uma trajetória que passou pelos fi os dos engajamentos políticos e da militância local, e que levou o nosso ex-motorista a dar outras destinações à sua vida, agora pelos circuitos das redes sociais acionadas por partidos e operadores políticos vinculados aos agenciamentos dos poderes públicos. O ex-motorista fordista virou então um “assessor local”, aliás uma fi gura que começou a se fazer presente e cada vez mais frequente a partir da metade dos anos 1990.

Poderíamos dizer que é a história de um recentramento nos circuitos locais do território, agora pela via das mediações políticas. A partir daí, os percursos do ex-motorista, aliás como muitos outros, vão seguindo as tortuosas, quando não nebulosas, veredas que seguem o eixo verticalizado das máquinas políticas, pas-sando por uma zona cinzenta na qual são pouco discerníveis as diferenças entre partidos e orientações, entre a ação social e clientelismo político – zona cinzenta em que “todos os gatos são pardos”. E que vai alimentando e se alimentando das microrrelações de favor, ao mesmo tempo em que a ação social de uns e de outros fi ca também sujeita (e vulnerável) às disputas de poder e infl uência que marcam a trama política local. As histórias são muitas. Importa notar a construção desse campo de forças que vai como que sorvendo energias e enroscando seus fl uxos em diagramas de relações, capturas, poderíamos dizer, que dizem algo, ou muito, das recomposições sociais e reconfi gurações do jogo de relações que fazem, também elas, os traçados de um território.

Entre uma passagem e outra: a tessitura social construída no entrecruzamento dos percursos sociais, as circunstâncias de vida e contextos de referências. Em cada ponto de virada (o mercado local, os programas sociais da prefeitura, partidos e poderes locais): campos de gravitação no qual convergem histórias diversas. E colocam em evidência – encenam – as forças e relações de forças operantes no mundo urbano e seus territórios: as mutações do trabalho e as redefi nições excludentes dos mercados, certamente; mas também as regulações locais e as disputas em torno da gestão urbana que são também elas sinais dos tempos e sinalizam outros vetores de práticas e redefi nições das dinâmicas locais.

Por certo haveria muito mais a dizer e descrever na história desse ex-motorista, a começar das recomposições internas à história da família, com suas hierarquias redefi nidas, solidariedades familiares reativadas e os percursos traçados pelos fi lhos para fazer face a situações que afetaram a todos – recomposições sociais também operantes no mundo urbano.

Por ora, o que importa é chamar a atenção para a perspectiva descritiva que essas trajetórias permitem. Na história desse ex-motorista, trabalhador fordista que foi pego pela virada dos tempos, temos um percurso ocupacional que seria pouco perceptível se fi cássemos presos a proposições gerais (genéricas?) sobre a “exclusão social”. É certo que tratar do trabalho supõe discutir as questões em

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pauta atualmente: o encolhimento dos empregos e o desemprego, a desmontagem das regulações do trabalho e os percursos do trabalho precário, o trabalho incerto e o estreitamento dos horizontes de futuro. Porém, o que importa é colocar em evidências as práticas e suas mediações e, por essa via, os circuitos e conexões na desigual geometria dos empregos que redefi nem as escalas de distâncias e proximidades entre as regiões da cidade. E nisso, tentar apreender a nervura própria do campo social, que não se deixaria ver se nos mantivéssemos presos às binaridades clássicas na análise do trabalho e do urbano: formal-informal, centro-periferia, emprego-moradia, trabalho-família. Entre esses pontos de re-ferência, arma-se um campo social feito num jogo multicentrado e multifacetado de práticas, mediações e relações de força que tecem, de formas nem sempre evidentes, os campos de possibilidades e também os bloqueios para o acesso e efetivações de possibilidades de trabalho e condições de vida.

É um outro modo de abordagem do trabalho, geralmente tratado seja no terreno da economia, das infl exões no mercado de trabalho e mudanças nas formas de organização de trabalho (o núcleo duro da sociologia do trabalho), seja sob o prisma da cronologia das trajetórias ocupacionais, seja ainda pelo ângulo das referências e experiências que conformam identidades e identifi cações coletivas. Impossí-vel fazer economia dos processos estruturadores do social. Também impossível desconsiderar as sequências cronológicas dos trajetos ocupacionais. Tampouco poderíamos passar por cima da polêmica questão das dimensões estruturadoras do trabalho na conformação de identidades, formas de vida e projetos sociais. No entanto, vista pelo ângulo dos espaços e seus territórios, essa conjugação entre estruturas, tempos e subjetividades arma um campo social que não cabe em linearidades simples.

Se é verdade que o cenário urbano vem sendo alterado sob o impacto de deslocamentos urbanos e recomposições societárias nas condições de trabalho precário e desemprego prolongado, esses processos operam em situações de tem-po e espaço. Processos situados, portanto. E agenciados por meio de uma série multifacetada de mediações e conexões de natureza e extensão variadas. Por isso mesmo, só podem ser bem compreendidos nessas constelações situadas. Se são as cenas descritivas que nos permitem fl agrar o traçado de práticas, mediações e mediadores, são os seus personagens que oferecem os fi os que precisamos seguir.9 É nas linhas traçadas por esses personagens que é possível apreender

9 A inspiração aqui vem de Deleuze e Guatarri (1992: 91), sem a pretensão de fazer jus a tudo o que os autores sugerem ao falar dos personagens sociais: “Simmel e Goffman levaram muito longe o estudo destes tipos que parecem frequentemente instáveis, nos enclaves ou nas margens de uma sociedade: o estrangeiro, o excluído, o migrante, o passante, o autóctone e aquele que retorna a seu país. Não é por gosto de anedota. [...] Parece-nos que o campo social comporta estruturas e funções, mas nem por isso nos informa diretamente sobre certos movimentos que afetam o Socius. Os campos sociais são nós inextrincáveis, em que os três movimentos (territorialização, desterritorialização e reterritorialização) se misturam; é necessário pois para desmisturá-los diagnosticar verdadeiros tipos ou personagens. O

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as práticas urbanas e os vetores policentrados em torno dos quais esse mundo social vai sendo desenhado. Eles nos oferecem os fi os e trilhas que precisamos perseguir para apreender as conexões que tecem os mundos sociais e, a partir daí, chegar não a conclusões fechadas, mas a perguntas e novas questões que abram perspectivas sintonizadas com os possíveis inscritos na realidade dos fatos e circunstâncias.

Modulações: os fl uxos urbanos entre espaços, territórios e cidade

Trabalho, moradia, cidade: trama de relações e mediações que ganham con-fi gurações diferentes conforme as regiões da cidade. Não se trata de diferenças internas à geografi a física da cidade e seus espaços. Tempos, história e condição dos assentamentos nos vários pontos da cidade são uma questão certamente importante, e disso vai depender grandemente a maior ou menor densidade, enraizamento e extensão das redes sociais que estruturam o mundo popular. As diferenças são sobretudo construídas pelas desigualdades das malhas de conexões e acessos que articulam esses pontos com a cidade, e é isso que vai defi nir as diferentes escalas de proximidade e distância: medidas sociais, não-físicas ou geográfi cas. Acessos desiguais e diferenciados aos serviços sociais, aos equipamentos de consumo, aos centros e subcentros da cidade. E, claro, acessos desiguais e diferenciados aos polos de emprego. Em uma palavra, é da segregação urbana que se trata.

Assim, para falar apenas das regiões em que nossa pesquisa foi realizada: no lado sul da cidade, o Distrito do Jardim São Luís se estende por trás da ponta sul do eixo urbano dos espaços globalizados da cidade de São Paulo. Um hipermer-cado (Carrefour) e um majestoso Centro Empresarial, um dos ícones da “cidade global”, marcam limites e limiares entre os dois mundos. O Distrito do Jardim São Luís começou a crescer, se expandir e se espalhar a partir dos anos 70, acom-panhando os fl uxos dos empregos industriais. É um cenário que traduz muito da história da chamada “urbanização periférica”, acompanhada pelos movimentos populares que foram conseguindo, no correr dos anos, as melhorias urbanas. É

comerciante compra um território, mas desterritorializa os produtos em mercadorias, e se reterritoraliza sobre circuitos comerciais. No capitalismo, o capital e a propriedade se desterritorializam, cessam de ser fundiários e se reterritorializam sobre os meios de produ-ção, ao passo que o trabalho, por sua vez, se torna trabalho abstrato reterritorializado no salário:é por isso que Marx não fala somente do capital, do trabalho, mas sente necessidade de traçar verdadeiros tipos psicossociais, antipáticos e simpáticos, O capitalista, O prole-tário [...] Não é sempre fácil escolher os bons tipos num momento dado, numa sociedade dada: assim o escravo liberto como tipo de desterritorialização no império chinês Tchu, fi gura do Excluído, do qual o sinólogo Tokei fez o retrato detalhado. Acreditamos que os tipos psicossociais têm precisamente esse sentido: nas circunstâncias mas insignifi cantes ou mais importantes, tornar perceptíveis as formações de territórios, os vetores de dester-ritorialização, o processo de reterritorialização”.

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um cenário em que transcorrem histórias e trajetórias da geração que chegou em São Paulo nos tempos de oferta abundante de emprego e maiores chances de vida – as referências a isso são constantes: as grandes fábricas de Santo Amaro (Caterpillar, Metal Leve, MWM) fazem parte da memória local e pontuam muitas das biografi as. “Bons empregos”, aquisição da casa própria (muitas vezes em loteamentos clandestinos) e melhorias urbanas (via movimentos populares) com-põem uma história comum, e também as histórias individuais e familiares. Mas essas histórias agora se misturam com todas as outras que acompanharam e vêm acompanhando a chegada das novas levas de moradores desde meados dos anos 80, mais intensamente e mais aceleradamente a partir dos 90. Hoje, a paisagem é a de um incrível empilhamento de casas e construções precárias, e o distrito se transformou num dos maiores pontos de concentração de favelas da cidade de São Paulo. O impacto da reconversão econômica é nítido nessa região, que foi o principal pólo de concentração das indústrias fordistas da cidade. As grandes plantas industriais desapareceram. E os pontos de referência se deslocaram para o lado da modernidade neoliberal e fi nanceira da cidade, que vai pontilhando os limiares da região. De um lado, os shopping centers, que, no correr dos anos 90, partindo do lado mais rico da cidade, foram se espalhando na direção sul. É um amplo arco de centros de consumo frequentados por gente que sai dos bairros da periferia sul da cidade. E do outro lado, direção oeste, as vias de acesso levam ao centro da riqueza globalizada. É por lá que estão os excludentes empregos “modernos”. É tudo relativamente próximo e de acesso também relativamente rápido, apesar dos transtornos do trânsito e da péssima qualidade dos transportes. Para ir direto ao ponto: é por aí que pulsa toda a complicação dos tempos. Não por acaso, foi dessa região que saíram os Racionais MC’s, um dos importantes grupos de rap da cidade, ao menos o que ganhou maior projeção e infl uência entre a garotada pobre e negra da cidade. Nessa região, os fl uxos da pobreza e da riqueza se tangenciam o tempo todo, se entrecruzam nos grandes centros de consumo e nessa especial mistura do legal e ilegal, regular e irregular, lícito e ilícito de que são feitos os circuitos dos empregos, que, do polo “moderno-moderníssimo” da economia, vão se ramifi cando pelas redes de subcontratação e trabalho precário. E também se entrecruzam nas redes do tráfi co de drogas, do crime organizado e das mil formas de “comércio ilícito”.

Do outro lado da cidade, no extremo leste, estão as chamadas “zonas de fronteira”,10 que concentram os piores indicadores de vulnerabilidade social e

10 Conforme Rolnik (2000), “O termo fronteiras é utilizado não somente porque os territórios assim defi nidos localizam-se junto à divisa do Município de São Paulo com os municípios de Itaquaquecetuba, Ferraz de Vasconcelos e Mauá, mas também por serem frentes de crescimento populacional e urbano registrados nas altas taxas da década de 1980 e da primeira metade da década de 1990. [...] De uma maneira geral, os territórios das fron-teiras circunscrevem aproximadamente as áreas dos distritos de Jardim Helena, Itaim Paulista, Vila Curuça, Lajeado, Guaianazes, José Bonifácio, Cidade Tiradentes, Iguatemi e São Rafael. São distritos que estão entre os mais excluídos da cidade apresentando alta

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“exclusão territorial”.11 É uma região que cresceu no correr dos anos 80, uma verdadeira explosão demográfi ca em grande parte induzida pelos programas ha-bitacionais do governo (municipal e estadual). Diferente da região sul, em que os assentamentos foram se processando na lógica privada do mercado, a presença do Estado aqui é inegável. Os grandes conjuntos habitacionais estão lá como evidência inescapável, mas também como evidência de precariedade e formas de segregação igualmente induzidas pelo próprio Estado. São programas habitacionais desco-nectados de políticas urbanas. Nas frestas abertas pelos investimentos públicos, foram-se instalando ocupações e favelas e, no entorno, foram-se espalhando os loteamentos clandestinos e mais um outro tanto de áreas de ocupação.12 Aqui, os grandes equipamentos de consumo não chegam a constituir uma referência das práticas cotidianas e ainda predominam as redes locais de supermercado de porte médio.13 Nessa região distante e precária, é a presença/ausência do Estado que circunscreve polos de referência e campos de força que demarcam tempos e espaços. A começar da paisagem urbana, este amplo espaço dominado pelos

concentração de população com baixa renda, pouca oferta de hospitais, unidades básicas de saúde, creches, empregos, equipamentos e espaços públicos de lazer”. 11 Conforme Rolnik et al. (1999), a exclusão territorial é defi nida pela “privação de direi-tos sociais e aspectos materiais – necessidades básicas, e também ausência de acesso à segurança, justiça, cidadania e representação política”). Em geral, os “territórios excluídos constituíram-se à revelia da presença do Estado – ou de qualquer esfera pública – e portanto desenvolvem-se sem qualquer controle ou assistência. Serviços públicos, quando existentes, são mais precários do que em outras partes da cidade”. 12 “Na década de 1980, Cidade Tiradentes e José Bonifácio, localizados no extremo da Zona Leste, “tiveram os maiores crescimentos populacionais dentre os 96 distritos admi-nistrativos do município. Cidade Tiradentes teve o maior incremento. Sua população saltou de 8.603 habitantes em 1980 para 96.281 em 1991 a uma taxa de crescimento anual um pouco maior do que 100% (101,92%). A cada ano da década de 1980, Cidade Tiradentes dobrava a sua população”. Trata-se de construções com “uma organização espacial frag-mentada em função do seu processo de implantação em fases e do relevo acidentado que caracteriza os extremos da Zona Leste. ... essa fragmentação produz uma série de espaços vazios entre as áreas do conjunto que foi rapidamente ocupada por favelas e loteamentos clandestinos” (Rolnik, 2000).13 Como mostra Raquel Rolnik (2000: 55), no correr dos anos 1990, a zona leste aparece como frente de investimentos privados, articulando capital comercial-fi nanciero em opera-ção associada com o capital imobiliário: “a ação governamental se faz presente através dos investimentos públicos em infraestruturas de saneamento, transporte, drenagem, energia, iluminação, implantação de vias, pavimentação, etc. [...] que criam condições para acolher os investimentos privados”. Mas é um desenvolvimento limitado à lógica mercadológica voltada para os grandes negócios – “trata-se de aproveitar uma oportunidade lucrativa construída pela conjugação de fatores físico-espaciais, econômicos e urbanísticos, com ausência de uma política urbana [...] Porém, nada disso supera a permanência da precariedade nas áreas de fronteira: “esta justaposição da precariedade e dinamismo presente na zona leste reforça o padrão atual de segregação social”.

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assentamentos irregulares é pontilhado por grandes, e alguns imensos, conjuntos habitacionais da CDHU que brotam da terra aqui e ali, demarcando o tempo social (e político) nos espaços urbanos e seus traçados, e nos quais se pode sentir a pulsação de um território feito dessa especial conjugação entre intervenção pública, precariedade urbana e toda a malha das irregularidades, quando não ilegalismos, que se espalham pela região. Nos seus pedaços mais precários, a presença do Estado é evocada o tempo todo exatamente pela sua ausência, pelas difi culdades de acionar os órgãos públicos responsáveis pelas melhorias urbanas que nunca chegam, ou chegam com atraso, ou chegam ainda de modo descom-passado. Cenários que atualizam os idos dos anos 70 (tão presentes nas histórias de nossos personagens da região sul), porém em um tempo/espaço no qual as fi guras do “progresso” urbano não têm mais lugar. Os chamados “programas de emprego e renda” da Prefeitura de São Paulo estão lá para demarcar no espaço que os tempos já são outros, que o urbano e o trabalho já não podem mais ser conjugados no mesmo andamento, que “O Estado e o Urbano”, para lembrar o artigo comentado no capítulo anterior, articulam-se agora em um outro diagrama de relações, não mais as regulações públicas que conformavam e articulavam mercado, espaços nacionais e a cidade, mas as formas de gestão do social e da pobreza: em um momento no qual as dimensões universalistas da cidade foram cortadas para serem, a rigor, desfi guradas nos circuitos do “mercado global” e do falso brilhante do cosmopolitismo mercantilizado dos novos serviços e espaços de consumo, o urbano parece mesmo se enrodilhar e se encapsular nas fi guras da “comunidade” – ao invés da cidadania urbana (negada ou conquistada ou reivin-dicada), os “públicos-alvos” conformados por aqueles que parecem não ter outra existência fora das circunstâncias que os determinam nas suas “carências”.

Neste pedaço da cidade, a distância é um problema sério. As difi culdades dos deslocamentos intra-urbanos são consideráveis, apesar da abertura e expansão de uma linha do metrô, da renovação de uma linha de trem, da ampliação e me-lhoramentos das vias públicas. O acesso aos polos de emprego nas regiões mais centrais da cidade continua difícil e penoso, e mesmo entre as regiões contíguas as conexões são difíceis e demoradas pelas vias indiretas ou então inexistentes das linhas de transportes. Para os que foram pegos pela virada da sorte nesses anos, perderam emprego e moradia em outras paragens, e chegaram em busca de alternativas mais baratas, o isolamento pode ser dilacerante – “aqui é como um exílio”, disse uma de nossas entrevistadas.

A distância não é uma métrica simples entre pontos e localidades distintos no espaço. Circunscreve campos de tensão e problemas que têm sentidos e modu-lações diferentes conforme os tempos de assentamento das famílias, suas redes sociais, recursos e possibilidades construídos em seus percursos de vida. A dis-tância tampouco é um espaço vazio, é algo que vai se especifi cando nas dobras do mundo social, nos pontos de junção entre espaços e que são demarcados por todas as complicações dos meios de transporte e circulação pela cidade.

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Histórias de um perueiro

Se, como diz Bernard Lepetit (2001: 76), na cidade “o único problema é o da utilização de suas possibilidades”, então é importante compreender os modos de articulação entre formas e usos da cidade. Assim é a história de um ex-metalúrgico que virou um próspero perueiro na região. Transitando nas dobras do mundo fordista e das realidades urbanas em mutação, seus percursos tornam percep-tível a formação de territórios. São práticas que informam sobre os movimentos que afetam o mundo social. E tornam perceptíveis os fi os que fazem a trama de campos sociais, que, neste caso, irão como que se densifi car na confi guração de um campo de gravitação em torno do qual ganha forma uma das mais explosivas dimensões da vida urbana na zona leste da cidade, envolvendo usuários, empresas de transportes, poderes públicos e esse novo e poderoso personagem urbano que são os “perueiros”, legais ou clandestinos.

Francisco, 36 anos (em 2001), trabalhava numa grande indústria metalúrgica desde 1984. Era um operário qualifi cado, ajustador e ferramenteiro com forma-ção profi ssional. Em 1993, a fábrica fechou as portas para se instalar no interior de São Paulo. E foi então que Francisco se lançou como perueiro e teve sucesso nesse seu empreendimento. Na verdade, ele começou a “lotar” em 1984, logo que entrou na metalúrgica. O problema de transporte sempre foi grave na região, e foi nessas carências da vida urbana que Francisco foi construindo seus campos de possibilidade. Na época, os lotações eram raros e, como ele diz, “o pessoal daqui não tinha transportes, não tinha ônibus, não tinha asfalto, não tinha nada, era só terrão”. Comprou uma perua e complementava o salário com o transporte dos colegas de trabalho no início e no fi nal da jornada. E nisso foi incentivado por sua ativíssima e muito pragmática esposa.

O casal mora entre Guaianazes e Cidade Tiradentes, em um bairro que apre-senta um dos piores índices sociais da cidade de São Paulo. Não por acaso, foi lá mesmo que a Prefeitura resolveu dar início (2001) a seus programas de “geração de emprego e renda”. Porém, o casal navegava, então, com os ventos da boa sorte: bom salário, carreira profi ssional promissora, casa própria, alguma poupança doméstica amealhada com muita hora-extra e jornadas suplementares nos fi ns de semana. Mas a distância era um problema. Os agenciamentos domésticos eram complicados – tudo longe, tudo difícil: centros de compras, hospital, centros de saúde, creche. Quando ainda trabalhava, Lindalva, a esposa, fazia um percurso para ela também penoso. Era vendedora no centro da cidade, no Brás, e depois um pouco mais ao norte da cidade. Tomava o trem que fazia a ligação do extremo leste ao centro da cidade: desgaste do tempo de percurso e também do empurra-empurra dos trens sempre superlotados – “eu preferia estar madrugando do que pegar aquele inferno de trem esmagando as pessoas”. Depois, quando largou o trabalho para cuidar dos fi lhos pequenos, fi cava em casa e, então, observava: como ela, todos os moradores da região dependiam do comércio e serviços que só existiam no centro de Guaianazes: mercados, correios, banco, comércio. Nessa

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época, “ir para o centro” queria dizer ir até a estação de trem em torno da qual esse comércio cresceu. Acontece que não havia nenhuma linha de ônibus direta do bairro que cobrisse o percurso. E foi então que surgiu a ideia. Compraram uma perua e começaram a “lotar”. Foi uma iniciativa e um empreendimento do-mésticos. Cobriam o trajeto do bairro até Guaianazes. E Francisco, por sua vez, transportava os colegas da empresa – “era quando o pessoal saía do trabalho, eu fi cava com a perua, saía de madrugada, dava duas ou três viagens; à tarde eu continuava trabalhando. Naquela época eram poucas as peruas – aqui, só tinha eu e mais um cara que também trabalhava lá”.

Em 1993, a fábrica fechou as portas, vieram as demissões. E foi então que Francisco se lançou e se fi rmou como perueiro. E isso terminou por projetá-lo no olho do furacão dos acirrados confl itos que, hoje, opõem proprietários de linhas de ônibus, usuários, poderes municipais e, claro, os próprios perueiros, também eles, em instáveis relações de aliança e confl ito entre clandestinos e legalizados. Não há como não ver nisso tudo as formas como circunstâncias e meios foram se conjugando para a erosão, em ato, ao vivo, das regulações públicas que até então davam a pauta e o tom das reivindicações em torno do universal direito de ir e vir. Sinais de um fundo deslocamento dos confl itos urbanos. Antes, juntamente com outras tantas demandas, os transportes públicos compunham uma pauta de reivindicações com inegável dimensão universalizante – poderíamos mesmo dizer que o “universal direito à cidade” era a linha de intensidade que atravessava os então “novos movimentos sociais urbanos” cantados em prosa e verso nos debates dos anos 80.

Nessa virada dos tempos em que a política deslizou e se desfi gurou nos termos da “governança urbana”, os confl itos urbanos parecem enrodilhados numa quase impossível gestão desse emaranhado de relações, interesses e forças em oposi-ção, tudo isso no cenário explosivo de uma cidade ingovernável. Francisco é um perueiro bem-sucedido: com suas três ou quatro peruas, que cobrem percursos rendosos, sua história (ou a história que ele conta) mal deixa ver o outro lado, nada edifi cante, de uma história que é também feita (ou sobretudo feita) de uma disputa feroz, por vezes mortal, nas tramas das relações mafi osas que controlam o hoje expansivo negócio do dito transporte alternativo.

Assim, um outro lado dessa história, contada por uma perueira não tão bem-sucedida, na verdade, uma perueira proletária: trabalha como motorista ou co-bradora, e também como fi scal nos pontos das peruas. Celeste, 28 anos, mora com seu marido e fi lhos em uma casa alugada, incrustada no meio da imensidão dos conjuntos habitacionais de Cidade Tiradentes. Mora lá desde pequena e, desde pequena, acompanhou as aventuras dos perueiros que então começavam a se fazer presentes na região, ainda em meados dos anos 80. Celeste sempre “lotou”, desde os 14 anos – por gosto e paixão, diz ela. Desde cedo, quando ainda era garota, fez amizades e conhecimentos com gente da região. E foi assim que começou a acompanhar os perueiros quando ainda tinha 10 anos. Depois, começou a trabalhar para eles – “então, a gente sempre teve essa amizade;

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quando faltava um perueiro ou quando precisava de uma ajuda, eles ligavam e diziam – ‘dá pra você fazer uma viagem para mim? Dá para você cobrar pra mim’; sempre foi assim, então a gente não é fi xo, é como se fosse um quebra-galho... ou para cobrir aquele perueiro que não veio ou aquele que não estava dando nada. Entendeu? É assim...”.

Celeste conta muitas histórias dos perueiros da região. Viu surgirem as primei-ras peruas e acompanhou todos os lances de uma história cheia de confl itos com os poderes públicos, com as empresas de ônibus, e também entre eles próprios. Ela conta que, na época, só havia três linhas de ônibus para cobrir uma região vasta, mais do que vasta. Surgiu a primeira perua: “foi um senhor que fundou a lotação... ele comprou a primeira perua, daí foi chamando um outro e mais um outro que tinha perua, foram entrando, entrando, então foi se juntando o grupo, e o grupo se tornou o dono do ponto... Depois, se alguém quisesse entrar, tinha que pagar para comprar a vaga, para poder rodar. É assim, tem que pagar para poder trabalhar”. O sistema funciona bem, diz Celeste, “mas existe uma máfi a”. É assim que ela descreve as coisas: “o dono da linha é o chefão; o fi scal é o fi -lho; o fi scal também; o outro fi lho tem perua, o sobrinho também... então é uma máfi a. Entendeu?”.

Ao longo dos anos, a geografi a do poder foi se alterando. O chefão morreu, foi morto há alguns anos: “mataram ele por causa da linha... queriam fi car com a linha, tomaram a linha dele. Entendeu?”. Entendemos. Apesar de ser difícil saber (mas podemos imaginar) como se dão as disputas pelo “ponto” e o jogo de forças das relações mafi osas, que, também sabemos ou podemos imaginar, não são apenas locais, estendem-se por toda a região. Celeste também descreve em detalhes como a coisa funciona. E é dos clandestinos que ela fala, gente que sabe muito bem burlar a fi scalização e se organiza um bocado para isso: “eles se comunicam por rádio e têm os repórteres-motoqueiros [sic] que saem com os rádios, vão atrás das viaturas [de polícia] e vão avisando – ‘olha, a viatura está em tal lugar, está entrando em tal avenida, e então todo mundo some’”. Os “motoqueiros-repórteres” se espalham pelas avenidas e instalam seus postos de observação nos principais pontos de circulação.

Celeste defende com convicção o direito de lotar, fala mal dos motoristas de ônibus, elogia o serviço dos perueiros e não poupa críticas à Prefeitura, que “quer tirar o ganha-pão” do pessoal que vive das peruas. Comenta que os perueiros são muito unidos e muito organizados. Não hesitam em quebrar os ônibus e interditar as avenidas quando se percebem lesados ou ameaçados: “são unidos mesmo e eles vão quebrar, não perdoam não, porque eles falam assim: se podem apreender nosso carro e deixar a gente sem o ganha-pão pra sustentar nossos fi lhos, eles podem também fi car sem carro... então eles quebram, tacam fogo em ônibus, dão pedrada, quem estiver dentro leva tudo pedrada. E esse é o perigo”. Podem ser também bastante solidários entre si, tampouco hesitam na ofensiva de iniciativas quando o assunto é defender o seu direito a circular pelas avenidas da cidade. Assim foi no caso de um acidente no trânsito: uma perua que se chocou com um

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caminhão. Morreram cinco. Acontece, explica Celeste, que a tragédia ocorreu em um cruzamento perigoso, em uma das principais avenidas que cortam a re-gião – “há muito tempo estávamos pedindo pra colocar sinalização”. Aconteceu o desastre: “nós, os perueiros, ajudamos quem estava machucado, pagamos o enterro das pessoas que não tinham condições. E, depois que acabou o enterro, nós fomos pra avenida, interditamos o trânsito, colocamos uma fi leira de pneus no meio da rua misturados com pau, madeira e tudo, e tocamos fogo pra chamar atenção, pra ver se eles colocavam a sinalização. Até hoje não tem essa sinalização. Entendeu? Lá não tem sinalização nenhuma, não tem faixa pra pedestre... é um retão, quem pega aquilo ali puxa 120 a 140 km/hora. Entendeu?”.

Os perueiros estão em todos os lugares. Também nas periferias da zona sul da cidade. O comentário frequente nos rumores ventilados pelas regiões da cidade, que a mídia vez por outra também trata de divulgar, é que as relações com as redes do tráfi co de drogas são mais do que episódicas, que os interesses e circunstâncias se cruzam e entrecruzam em nós inextrincáveis, tudo misturado nessa linha de sombra que atravessa os circuitos do mundo social. É verdade que, depois (2002-2003), a Prefeitura marcou alguns tentos nesse jogo complicado: negociou com empresas de transportes e perueiros a partilha das linhas principais e secundárias que servem a cidade e avançou na regulamentação do transporte alternativo. Os perueiros “legais” ganharam espaço (algum espaço, ao menos) em relação aos clandestinos. Mas a imprensa tem noticiado: o jeito encontrado para fi car em dia com a lei tem sido, frequentemente, a formação de cooperativas de trabalhadores. Nesse caso, os perueiros fi caram em fase e em compasso com a modernidade neoliberal: as cooperativas, várias delas, mal escondem a prática conhecida de fraude trabalhista, e os valores que deveriam ser partilhados cooperativamente desaparecem por vias que ninguém sabe quais são, viram fumaça...

Histórias de um motoqueiro

As histórias também circulam pelo Distrito do Jardim São Luís. Aqui, no entanto, mais do que os perueiros, são os motoboys que podem ser tomados como personagens urbanos que esclarecem um tanto dos fi os intrincados que constituem e atravessam os territórios urbanos. Se os perueiros encenam a conjugação de circunstâncias que fazem da distância um problema e um nó inextrincável de relações tramadas nesse jogo de luz e sombra em tempos de erosão das (desde sempre) frágeis regulações públicas da cidade, os motoqueiros, aqui nesse outro pedaço da cidade, fazem ver os pontos de combustão desse entramado de relações urdido nas “ligações perigosas” desses fl uxos de riqueza e de pobreza que se tangenciam e se entrecruzam o tempo todo.

É possível encontrá-los em bandos circulando pelas ruas e avenidas que cor-tam a região. E é frequente encontrá-los limpando e lustrando suas máquinas nas portas de suas casas. Trabalham para as inúmeras empresas de serviços terceirizados que atendem os luminosos circuitos da riqueza globalizada. Ou sim-

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plesmente navegam nas ondas dos serviços terceirizados que vão se espalhando por todos os lados. “Quem tem moto está com a faca e o queijo na mão”, disse um de nossos entrevistados, ao comentar as difi culdades do emprego. Com a moto, vai-se virando como pode, nem que seja para fazer um bico ou outro como entregador de pizza. E, tendo uma moto, são maiores as chances (chances?) de ser chamado por alguma agência de emprego ou de serviços terceirizados para cobrir a demanda das empresas que circundam a região – “tenho um monte de colegas que se viram, alguns têm moto, os que não têm fi ca mais difícil, é mais fácil com a moto”. A moto opera também como “objeto de desejo” para muitos desses jovens. São capazes de “fazer qualquer coisa” para adquirir uma, nem que seja pelas vias certas ou tortas do endividamento. Até arriscar um emprego “seguro” para tentar a “sorte” (e o azar) em nome dessa espécie de ícone moder-no que junta sonhos de consumo, símbolos de distinção (e marca de virilidade, talvez) e esperanças de emprego:

Aí eu tinha um pensamento. Era época que começou motoboy pra lá, motoboy pra cá, e eu sempre gostei de moto, aí eu comecei pôr na minha cabeça que eu tinha que trabalhar de motoboy. E o que aconteceu? [...] eu queria ser motoboy, eu queria comprar uma moto, e foi a época que o meu cunhado tinha acabado de comprar uma moto, então de vez em quando eu andava de moto, então meu sonho era moto.

[...] eu sempre gostei de andar de moto [...] e a gente escutava falar... eu tinha amigos que ‘tava começando de motoboy “ah, eu ganho vinte reais a cada hora”, então, se eu faço dez horas num dia, eu ganho quatrocentos reais”. [...] Quando começou a febre porque tinha pouco e ganhava-se bem, né; então, como eu gostava de andar de moto e era uma chance de ganhar bem, associei uma coisa a outra e coloquei aquilo na cabeça: “não, eu quero ganhar bem e eu quero andar de moto”. Aí não deu certo [...].

“Aí não deu certo”: Mariano (24 anos, em 2001) queria porque queria uma moto e trabalhar como motoqueiro. Largou o emprego que tinha (de offi ce-boy, com carteira de trabalho assinada, em uma metalúrgica em Santo Amaro). Mas era véspera de Natal e, a essas alturas, já tinha pulverizado suas parcas economias com compras e mais compras nos centros de consumo da região. Não sobrara nada para a moto – “saí desse emprego, fi quei sem moto, fi quei sem nada”. Há outras histórias, muitas delas longe de conter esse tom de leveza e graça com que Mariano fala de seus frustrados “sonhos de grandeza”.

Assim é a história de Arnaldo (22 anos, em 2001), fi lho de um ex-metalúrgico, que, nos agitados anos da década de 1980, esteve na linha de frente das mobili-zações operárias do período. Arnaldo bem que tentou seguir o exemplo do pai e conseguir um emprego industrial. Porém, os tempos já são outros e, de demissão em demissão, só lhe resta mesmo a moto como alternativa para os bicos que encon-tra pelo caminho. Além do mais, é apaixonado por motos, seu assunto preferido,

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e é sempre possível encontrá-lo nas imediações de sua casa junto com os amigos, todos motoqueiros, lustrando as máquinas e se preparando para saírem juntos, em bando, para alguma “balada” na região. Houve um tempo em que Arnaldo acreditava que a moto haveria de lhe abrir as portas do mercado de trabalho. Não deu muito certo. Em 1998, começou a trabalhar de motoboy na ContaFácil, empresa terceirizada que presta serviços para a Sabesp: enviar aviso de atraso de pagamento nas contas de água – “você vai na casa da pessoa, a pessoa tem três contas atrasadas e você vai lá entregar o aviso de corte; a pessoa tem uma semana para pagar, se não pagar, vai outra pessoa lá, fecha o registro e lacra o registro”. Ficou apenas um ano e saiu em 1999. Saiu porque era muito perigoso, além de não ter carteira assinada, tampouco oferecer alternativas promissoras. A descrição de Arnaldo é precisa: sem registrar em carteira, a empresa exige que o funcionário tenha sua própria moto. O máximo que garantem é um convênio com uma ofi cina de peças – “[...] se a moto quebra, vai lá, pega a peça e paga no outro mês [...] não tem registro em carteira e, se tem acidente, aí você fi ca ferrado”.

Além do risco de acidentes de trânsito, o perigo maior está na própria natureza do serviço. Tinha que circular nas regiões onde as pessoas não pagam contas de água, ou seja: no fundo mais pobre da periferia da cidade. E não poucas vezes, nesse percurso, o motoqueiro voltava a pé, sem a moto: “era muito perigoso... trabalhava com moto, ia em muita periferia... tem um vizinho que trabalha lá, já roubaram a moto dele [...] tenho dois colegas que trabalhavam lá, os dois já perderam moto... é mais periferia, favela, pro lado do Capão, tudo área perigosa. Parque Santo Antônio, Jangadeiro, Capão, Jacira... o pior lugar era o Jacira... esse colega meu roubaram a moto lá no Jacira”. Perspectivas de futuro? Nenhuma, diz Arnaldo e diz com fi rmeza: é trabalho para os que já não conseguem mesmo outra coisa na vida: “a maioria é cara que já teve passagem na polícia, não consegue outro emprego e daí tem que apelar para isso aí. É cara que já foi preso... não dá futuro, não dá nada, acho que não”.

O trajeto de um motoqueiro é mais do que eloquente para se pensar o modo como a experiência do trabalho abre-se ou desenrola-se nas múltiplas facetas da experiência urbana. É como se esse trajeto também percorresse a linha de intensidade que atravessa os vários mundos sociais que se sobrepõem e compõem a realidade urbana: a empresa pública de saneamento urbano, as novas formas de gestão e as práticas da terceirização, os insolváveis em tempos de “verdade tarifária” imposta pela lógica triunfante do mercado, a pobreza da periferia, e mais a legião dos que foram pegos pela “maldição do destino” e não mais conseguem emprego em canto nenhum, tudo isso misturado com as energias mobilizadas por esse objeto do desejo que são as motos, e que vão também constelando referências importantes na sociabilidade cotidiana dos jovens nessa região.

As histórias que circulam são também muito confusas, tão confusas que pare-cem dar plausibilidade aos rumores e suspeitas de que as empresas de motoboys, assim como os perueiros, são hoje “frente de investimento” do dinheiro sujo. E, ao que parece, essas empresas estão se proliferando nessa região situada nas franjas

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das “cidade global”. A história de Fernanda, 20 anos (em 2001), diz alguma coisa disso. Seu irmão tentou se lançar em uma empresa de motoboys. Não foi bem-sucedido e, em pouco tempo, estava enterrado em dívidas. Porém, a garota ajudava o irmão e “ganhou experiência”, como se diz. Depois, a sorte do destino a levou para um escritório imobiliário no Centro Empresarial, que fi ca ali, na fronteira do Jardim São Luís, portal da “cidade global”. Era secretária e sua tarefa era lidar com as empresas de motoboy. Saiu-se tão bem que foi chamada por um motoboy bem-sucedido, que queria montar uma empresa própria em Itapecerica da Serra, município da Grande São Paulo contíguo à periferia sul da cidade e não muito distante da região em que tudo isso estava então acontecendo. O rapaz trabalhava então numa empresa que “era bem falada, eu conhecia a maioria dos funcionários, eles iam direto falar comigo... aí eu falei ‘tudo bem’”. Daí para frente é uma sucessão de promessas não cumpridas, pagamentos não efetuados, cobran-ças de dívidas atrasadas, enquanto o dinheiro sumia por meandros inexplicados (inexplicáveis, talvez). É uma história muito confusa. Fernanda conta que os planos não eram modestos: montar a parte operacional em São Paulo, com motoboys, perua e ônibus. E, em Itapecerica, o plano era montar pacotes turísticos para as escolas. O rapaz falava em promover excursões até Barretos, no interior de São Paulo. Fernanda logo se põe a campo e pede para o irmão providenciar o mate-rial gráfi co necessário para a divulgação – cartazes, cartões de visita, envelopes com logotipo. Nesse meio tempo, a família toda de Fernanda já estava envolvida nesse negócio. A mãe foi chamada para fazer a faxina do escritório, a irmã foi contratada como secretária e havia ainda uma amiga do bairro que ajudava nos serviços internos. Ninguém recebeu pagamento. Os motoqueiros, mais de vinte, tampouco. E passaram a se recusar a trabalhar enquanto o pagamento não fosse efetuado – “ele nem aparecia na fi rma com medo dos motoboys”.

Reatando pontos e linhas: os elos perdidos da política

Fernanda é uma garota com secundário completo e muito empreendedora. Tem uma família muito articulada, mora em um bairro com uma super-densa malha de relações sociais, tudo também muito organizado, muito ativo, muito solidário. Em uma palavra: é uma garota portadora de um vasto capital social, para usar aqui uma expressão corrente no jargão sociológico. Afi nal, foi assim que conseguiu o emprego que poucos conseguem, no Centro Empresarial de São Paulo. Apesar da pouca idade, a trajetória ocupacional de Fernanda é no-tável, uma sucessão razoável de empregos, todos eles obtidos através da trama de relações por onde circulam informações e as “boas recomendações”. Mas é uma trajetória também notável pela instabilidade e vulnerabilidade, sempre nas fronteiras entre o mercado formal e informal – arbitrariedades várias, demissões sucessivas, salários atrasados, direitos desrespeitados. Bem, nada a estranhar,

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afi nal redes e capital social não deixam de repor as circunstâncias de circuitos empobrecidos de uma região igualmente empobrecida e que acionam empregos precários de um mercado de trabalho, com o perdão da tautologia, precariza-do. A empreendedora Fernanda bem que chegou perto de escapar das tramas da precariedade quando, mobilizando seu capital social, teve acesso a um dos ícones da modernidade globalizada e conseguiu o promissor emprego no Centro Empresarial. Porém, foi esse mesmo capital social que o rapaz da empresa de motoboys tratou de mobilizar para o seu fraudulento negócio. Em pouco tempo, a única coisa que esse capital social acumulado lhe rendeu foram muitas dívidas (contas de telefone e água atrasadas em razão de um salário que nunca foi pago), compromissos não respeitados (o irmão empenhou o próprio nome para conseguir a impressão dos cartazes), além de muitos sustos, o pior deles quando apareceu no escritório um “cliente” encolerizado para cobrar a “sua parte”, de arma na mão, impropérios na boca e ameaça de barbarizar o local. Porém, o moço das motos a essas alturas já tinha se evaporado com os dividendos expropriados do capital social alheio, e ninguém sabia por onde andava.

A empreendedora Fernanda é vizinha do jovem motoqueiro em um bairro que poderia constar do rol dos casos exemplares de capital social e redes sociais atuantes. E tudo pode parecer muito edifi cante, se o parâmetro for a “comunida-de”, a “cidadania local” e o “empreendedorismo social” – tudo isso está lá. No entanto, como diz Bruno Latour (2000), se o assunto são as redes, é preciso ver que as redes “são mais ou menos longas, mais ou menos conectadas”. E também envolvem “boas conexões” e “más conexões”. Quer dizer: o problema todo está em saber e compreender o modo como os vínculos e conexões operam, já que, sempre situados, se fazem na conjugação entre atores, circunstâncias, fatos e ar-tefatos. É aí que se torna perceptível a pulsação do mundo urbano. É isso o que essas histórias permitem perceber. E é por isso que o perueiro, o motoqueiro e a moça empreendedora comparecem aqui como personagens urbanos que fazem ver os traçados que constroem os territórios, em suas relações com a cidade e suas dimensões.

Mas isso ainda abre uma outra questão: com exceção talvez do perueiro bem-sucedido, os personagens aqui comentados colocam outras questões. Afi nal, onde situar cada um deles? São pobres infelizes da sorte? Excluídos? Se não, faz algum sentido dizer que são então “incluídos”? São personagens que fazem os seus percursos nas tramas do mundo social. E essas categorias (e binaridades) fi cam estreitas demais para colocar em perspectiva as questões que essas histórias nos abrem. Os campos de força e toda a complicação dos tempos que correm estão exatamente nos pontos de conexão dessas tramas que fazem a tapeçaria do mundo social.

Esses personagens escapam às categorias habituais que pautam os debates recentes. Não correspondem à fi gura canônica do trabalhador regular, tampouco à do mercado informal, e muito menos às tipifi cações correntes dos “pobres” e “excluídos”, público-alvo dos programas ditos de inserção social. No entanto, seus

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percursos fazem ver a teia de relações e campos de força que estruturam o mundo social, mas que se esvanecem sob os termos correntes do debate atual.

É aqui também que se aloja o desafi o da invenção política, essa mesma que nos tempos atuais foi tragada pelo princípio gestionário que trata das “pontas”, do lado vitorioso da boa governança econômica e, do outro lado, a gestão do social. E no meio, quer dizer, em tudo o que importa, não existe o vazio que expressões como a de “exclusão social” podem sugerir, porém os fi os que tecem o campo de uma experiência urbana ainda a ser bem entendida. Mas, então, essas trajetórias e os personagens urbanos que nos permitem traçá-las nas cenas e cenários nas quais essas histórias transcorrem também nos dão pistas para pensar os elos perdidos da política na trama social de que é (são) feita(s) a(s) cidade(s).

Riobaldo, que tem a sabedoria dos grandes contadores de história, sabe do que fala quando diz que a vida é um rodamoinho e que o demo está nas ruas. Ele sabe do que fala quando diz que o real não está no começo, nem no fi nal, mas no meio da travessia.

“Digo: o real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.

São as veredas que fazem o Grande Sertão

(Grande Sertão: veredas, Guimarães Rosa)

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CAPÍTULO 3

Deslocamentos: percursos e experiência urbana

Os efeitos excludentes das mutações do trabalho sob o impacto da reestrutu-ração produtiva em tempos de revolução tecnológica e globalização da economia já foram matéria de uma vasta literatura sobre o tema. No entanto, ainda pouco se sabe sobre as confi gurações societárias urdidas nas dobras dessas transforma-ções. Entre, de um lado, os artefatos da “cidade global” sob o foco dos debates entre urbanistas e pesquisadores da economia urbana e, de outro, os “pobres” e “excluídos” tipifi cados como público-alvo das políticas ditas de inserção social, há todo um entramado social que resta conhecer. E é isso justamente que situa o terreno em que ganha pertinência relançar a discussão sobre os sentidos e os lugares do trabalho na tessitura do mundo social. Se o trabalho não mais estrutura as promessas de progresso social, se os coletivos “de classe” foram desfeitos sob as injunções do trabalho precário, se direitos e sindicatos não mais operam como referências para as maiorias, se tudo isso mostra que os “tempos fordistas” já se foram, o trabalho não deixa de ser uma dimensão estruturante da vida social.

Mas é isso também que abre a interrogação sobre as novas confi gurações sociais nas quais essa experiência se processa. Não se trata tão-somente da ampliação do mercado informal e do aumento das hostes dos excluídos do mercado de traba-lho. Concretamente, e aqui seguimos as pistas de Francisco de Oliveira (2003), a chamada fl exibilização do contrato de trabalho signifi ca uma informalização que penetrou todas as ocupações e redefi ne por inteiro as relações de classe. É o trabalho “sem forma” que se expandiu no núcleo do que antes era chamado de “mercado organizado” e, com isso, como enfatiza o autor, as relações entre classe, representação e política foram para o espaço. Na base desse processo está o salto nas alturas da produtividade do trabalho em tempos de revolução tecnológica e fi nanceirização da economia, de tal modo que o processo de valorização se descola dos dispositivos do trabalho concreto, já não depende da quantidade e dos tempos do trabalho da produção fordista (está para além da medida) e termina por implo-dir todas as distinções conhecidas: tempo do trabalho e tempo do não-trabalho, trabalho e consumo; as diferenças das ocupações perdem relevância do ponto de vista desse movimento da valorização do capital, ao mesmo tempo em que foi para os ares a divisão entre trabalhadores ativos e o que antes era chamado de exército industrial de reserva. É o trabalho abstrato levado a extremos, “trabalho abstrato virtual”, que captura, mobiliza e transforma processos sociais e as atividades as mais disparatadas em sobrevalor. Quebra-se o vínculo entre trabalho, empresa e produção da riqueza e são outros os agenciamentos pelos quais a riqueza se

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produz e circula nos espaços de valorização do capital: para seguir as situações comentadas por Francisco de Oliveira, a maquinaria abstrata de produção de valor é acionada a cada vez que se utilizam os caixas eletrônicos dos bancos ou quando, no recinto privado da vida doméstica, se acessam serviços e produtos pela Internet; são as formas de entretenimento, lazer, gostos e estilos de vida que movimentam um capital que faz do “nome da marca” o principal esteio de sua valorização, ao mesmo tempo em que joga na mais radical irrelevância social miríades de trabalhadores espalhados pelas redes de subcontratação no mundo inteiro, submetidos ao trabalho precário, incerto, mal pago e degradado. É uma gente sujeita aos espaços físico-sociais do trabalho concreto, mas que desaparece sob a pirotecnia do marketing e do espetáculo cultural (Fontenelle, 2002). Zarifi an (2003) fala de uma “economia de serviços” que não tem nada a ver com as divisões conhecidas de setores de produção, que a rigor transborda por todos os lados e torna irrelevantes essas mesmas divisões, pois diz respeito à trama de relações materiais e imateriais entre produção e consumo – publicidade, efeitos de marca, ações de marketing, cartões de fi delidade e tudo o mais que acompanha o produto ou o serviço vendido/consumido, de tal forma que os consumidores terminam por participar da formação do valor, apesar de não entrarem em nenhuma contabi-lidade e em nenhum instrumento de gestão. Outros vão lançar mão da noção de “trabalho imaterial” para discutir essas atividades que não são codifi cadas como trabalho, que tentam fi xar normas culturais, modas, gostos e padrões de consumo, que capturam e organizam os “tempos da vida”, e não mais apenas os “tempos do trabalho”, tornando cada vez mais difícil diferenciar tempo do trabalho e tempo da reprodução (cf. Lazzarato, 1992; Aspe et al., 1996).

São mutações de fundo. Mas, então, é preciso reconhecer que isso muda tudo nas relações entre trabalho e cidade. Os pares conceituais que antes pautavam o debate sobre a “questão urbana” – produção e reprodução da força de trabalho, exploração e espoliação urbana, contradições urbanas e confl ito de classe – fi cam deslocados em um cenário em que as formas do trabalho implodem, seja no regis-tro de um trabalho que se descola dos dispositivos do trabalho concreto; seja no registro do trabalho precário, intermitente, descontínuo e que torna inoperantes as diferenças entre o formal e informal; seja ainda no registro das multidões dos sobrantes que se viram como podem, transitando entre as improvisações da vida cotidiana, expedientes diversos nas franjas do mercado de trabalho e as miríades de programas sociais voltados aos “excluídos” – nesse caso, é a diferença entre trabalho e reprodução social que fi ca esfumaçada.

Por outro lado, esse constante entra-e-sai do mercado em meio aos diversos expedientes de trabalho precário termina por alterar as referências que pautavam e ritmavam a vida social. Se é verdade que a desconexão entre trabalho e empresa já faz parte da paisagem social, isso também signifi ca que os tempos da vida e os tempos do trabalho tendem a se articular sob novas formas, não mais contidas nas relações que antes articulavam emprego e moradia, trabalho e família, trabalho e não-trabalho (cf. Bessin, 1999). Eram binaridades que pautavam os ritmos da

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vida social, tendo por referência as regularidades e os disciplinamentos impostos pelas formas de emprego (cf. Supiot, 1994; 1999). Mas, então, será necessário se desvencilhar dessas binaridades, assim como a do formal-informal, para apreender a nervura própria do campo social, que não se deixaria ver se nos mantivéssemos presos a elas na análise do trabalho e do urbano.

É uma situação que está a exigir um giro em nossas categorias, de modo a cons-truir um plano de referência que permita colocar em perspectiva e fi gurar esses processos, recolocar os problemas, pôr outros tantos e perceber, nas dobras das redefi nições e desagregações do “mundo fordista”, outros diagramas de relações, campos de força que também circunscrevem os pontos de tensão, resistências ou linhas de fuga pelas quais perceber a pulsação do mundo social.

Mas, então, será preciso mudar o foco das atenções. Talvez seja preciso um deslocamento do jogo de referências para re-situar o trabalho no mundo social. Não tanto as verticalidades que construíram o trabalho nas formas conhecidas (e suas regulações centralizadas), mas os vetores horizontalizados de relações que articulam trabalho, a cidade e seus espaços, outros agenciamentos sociais e, também, outros eixos em torno dos quais desigualdades, controles e dominação se processam, afetam formas de vida e os sentidos da vida (cf. Zarifi an, 2000).

Também é o caso de se perguntar de que modo as novas realidades do tra-balho (e do não-trabalho) redesenham mundos sociais, as relações de força e campos de práticas que fazem a tessitura da cidade e seus espaços. Ainda: de que modo são redefi nidas práticas sociais e as mediações que conformam uma experiência social sob outro diagrama de relações e outro jogo de referências. As circunstâncias variadas do trabalho precário e intermitente redefi nem tempos e espaços da experiência social (cf. Sennet, 2000). Alteram, poderíamos dizer, a própria experiência urbana, seguindo os circuitos descentrados dos “territórios da precariedade” (cf. Le Marchand, 2004).

Talvez seja, então, o caso de prospectar os pontos de clivagem dessas novas realidades seguindo as práticas (e suas mediações) nesses circuitos redefi nidos do mundo social. Pontos de clivagem que podem ser apreendidos nos deslocamentos da experiência social e que cavam fundo a diferença entre as gerações. Essa pode ser uma via de entrada para a descrição desse mundo social redefi nido. Na virada dos anos 1990, início dos 2000, a diferença entre as gerações tinha a peculiaridade de coincidir com mudanças no mundo do trabalho e nas dinâmicas urbanas.

Trabalho e cidade: relações redefi nidas

Seguir os traçados das mudanças (e conturbações) do mundo urbano signi-fi ca levar a sério processos e práticas que só se deixam ver nos deslocamentos e nos pontos de infl exão, de entrelaçamento, e bifurcações que vão compondo as realidades urbanas. Se no capítulo anterior foram comentados os deslocamentos

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nos espaços urbanos e nos percursos ocupacionais, estes também se processam no interior das famílias – na linha vertical da sucessão ou linhagens familiares, para lembrar a questão discutida páginas atrás. A diferença entre as gerações é um crivo que permite ver e fi gurar outras dimensões e outras facetas das recon-fi gurações urbanas (e sociais) engendradas nesses anos.

Para as primeiras gerações, a virada dos tempos signifi cou a desestabilização dos andaimes do mundo em uma situação que bloqueia perspectivas de vida, que invalida práticas conhecidas e descredencia saberes acumulados, “formas de ser e de fazer”, como diria Bourdieu, e os colocam em uma espécie de errância em que fi cam embaralhadas as fronteiras entre o trabalho, a viração própria do mercado informal e a condição de “pobre”, público-alvo de políticas sociais. São fi guras que podem esclarecer os sentidos da erosão do “mundo fordista” e encontram paralelos nas situações descritas em A Miséria do Mundo (Bourdieu, 1997) ou, então, na “decomposição da classe operária” discutida por Pialoux e Beaud (2003). Mesmo que nem tudo possa ser descrito sob o signo da tragédia pessoal daqueles cujas vidas desabam ladeira abaixo, e mesmo para aqueles que ainda conseguem se manter nos seus empregos e sobreviver à “desestabilização dos estáveis” (Castel, 1999), o tempo do progresso e de suas promessas esgotou-se – “naquele tempo bastava a experiência, agora é tudo mais difícil”. Quanto ao futuro, “agora é contar com a sorte”. Incertezas que se instalam no centro mesmo de um projeto de vida que se alimentava das promessas de um futuro mais promissor para os fi lhos – “fi zemos até agora tudo o que foi possível, agora é com eles”. O futuro dos fi lhos? “Não sei, ninguém sabe... só Deus sabe”. Incertezas quanto às possibilidades de um emprego promissor. Mas, também, incertezas sobre os destinos da prole, o receio de que entrem no “mau caminho” ou, então, de serem atingidos pela violência de todos os dias – “eles saem e a gente nunca sabe se eles voltarão para casa com vida”.

Para os mais jovens, sobretudo para os que já nasceram na cidade, a situação ganha outras confi gurações e tem outros sentidos. Suas histórias já não podem ser compassadas pelas venturas e desventuras da epopeia do progresso que estrutura a narrativa da geração de seus pais. As circunstâncias atuais do mercado de tra-balho não signifi cam uma degradação de condições que foram melhores ou mais promissoras em outros tempos; já entraram num mundo revirado, em que trabalho precário e desemprego compõem um estado de coisas com o qual têm que lidar, e estruturam o solo de uma experiência de trabalho em tudo diferente da geração anterior. A experiência da urbanização (e a relação com a cidade) não se faz mais nas referências da passagem campo-cidade e na marcação dos eventos que davam o compasso do “progresso” na cidade. Para eles, o “progresso” já chegou e está constelado nas características de uma sociedade de consumo tão ampla quanto excludente, recortada por serviços e equipamentos urbanos que chegam até os pontos mais distantes das periferias das cidades, atravessada por um ethos do consumidor que se alastra até os segmentos urbanos mais pobres, valendo-se do progressivo endividamento das famílias por meio da generalização dos cartões de

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crédito e extensão dos procedimentos de crédito ao consumidor. Enfi m, tudo isso já marcava os anos 80,1 porém foi potenciado, acelerado e redefi nido no correr da década de 1990, sob a lógica fi nanceirizada dos capitais globalizados que capturam espaços urbanos, atividades econômicas e seus circuitos.

Sabe-se que é sobre os mais jovens que recai todo o peso do desemprego e do encolhimento das alternativas de um trabalho mais estável e promissor. É em torno deles que se cristalizam de maneira mais evidente as diversas formas de trabalho precário – trabalho temporário, terceirizado ou cooperativado, muito frequentemente mediadas por agências de emprego e prestadoras de serviços. E é em torno de suas fi guras que se entrecruzam os fi os de um mundo social que se reconfi gura nas dobras do “mundo fordista” que se desfaz. Para Pialloux e Beaud (2003), a “decomposição da classe operária” não tem a ver apenas com a dissolução dos coletivos do trabalho, mas também com a “ruptura na sucessão das gerações”. A experiência do trabalho incerto e descontínuo, as esperanças frustradas de um emprego regular e a impossibilidade de um outro futuro que não seja o círculo fechado tramado entre o trabalho precário e o desemprego, tudo isso terminou por alterar as relações com o trabalho, com o emprego, com o sindicalismo e a política. E desdobrou-se na erosão das referências “de classe” a partir das quais as identidades eram defi nidas e os critérios de reconhecimento de si e dos outros eram construídos.

Essas são questões importantes e que precisam ser perseguidas para entender as dinâmicas societárias reconfi guradas no correr desses processos. Mas con-têm ou podem conter uma armadilha quando a discussão toma como parâmetro exclusivo a experiência prévia construída nos “bons tempos” da norma fordista. O risco aí é fazer uma descrição em negativo, que termina por falar sempre do mesmo (o trabalho fordista), apenas com os sinais invertidos. O problema não é tanto cair nas trampas da idealização de algo que não tem por que ser celebrado (essa é a crítica mais fácil de ser feita, e já foi feita por muitos), mas de fi car aprisionado num jogo de referências que não permite apreender os sentidos da experiência social que vem se desenhando. A diferença dos tempos e a ruptura das gerações é algo que precisa ser bem entendido, não para fazer a comparação ponto a ponto (era assim, não é mais), mas para situar os deslocamentos e bifur-cações de uma experiência social que vai se fazendo em um outro diagrama de relações e referências que redefi nem espaços e territórios. Situação que exige um trabalho de deciframento do social capaz de fl agrar campos de força que se

1 Como mostra Vilmar Faria (1992: 107), a expansão da sociedade de consumo no Brasil urbano deu-se em grande parte através de uma agressiva política de crédito direto ao consumidor, a absorção do ethos do consumidor também entre os segmentos urbanos mais pobres e o progressivo endividamento das famílias: “tornou-se mais fácil endividar-se para adquirir, à vista e no dia-a-dia, um litro de leite ou um quilo de carne. Por isso e apesar de tudo o mercado de bens de consumo expandiu-se para além dos limites impostos pela rígida distribuição de renda e pelos salários baixos”.

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desenharam no traçado das reconfi gurações do mundo social e, quem sabe, polos de gravitação por onde experiências diversas e talvez disparatadas se articulem ou, pelo menos, convirjam e se entrecruzem em torno de outras referências e novas constelações de sentido.

Por certo, será importante compreender as mutações do trabalho e de seus signifi cados, o modo como isso afeta formas de subjetivação, padrões de socia-bilidade, critérios de reconhecimento, relações com o tempo e projetos de vida (Sennet, 1998; Bessin, 1999). Porém, ainda sabemos pouco sobre a experiência do trabalho (e da cidade) dessas novas gerações. Mesmo supondo que o trabalho (e os locais de trabalho) tenha perdido o anterior poder de gravitação como locus de investimento subjetivo, nem por isso deixa de ser um mediador importante na experiência social. Então, talvez possamos seguir nesse empreendimento explo-ratório e tentar identifi car as linhas de intensidade que atravessam os percursos dos mais jovens, um outro diagrama de referências que articula moradia, trabalho e cidade.

* * *

O fato é que, ao perseguir os trajetos e percursos dos mais jovens, desenha-se um outro perfi l da cidade. Ou melhor: é um ângulo pelo qual a cidade vai se perfi lando com todas as ambivalências e complicações que recobrem os tempos atuais. Os percursos dos mais jovens (entre os 20 e 30 anos, pouco mais, pouco menos) fazem ver o outro lado da modernização neoliberal dos anos 90: os gran-des equipamentos de consumo pontilhando os espaços em um grande arco que chega próximo aos bairros mais distantes da periferia.

Em que pese tudo o que se tem dito sobre fragmentação urbana e dualização social, o fato é que esses circuitos globalizados se constituíram como polos de gravitação importantes para as novas gerações que se lançam no mercado de trabalho e na vida urbana de uma maneira geral. Os shopping centers, que se mul-tiplicaram nos últimos anos e se espalham pelas diferentes regiões da cidade, são referências urbanas importantes – é por lá que circulam os jovens das periferias pobres da cidade. E eles não se contentam com suas versões mais empobrecidas, quando não um tanto mal ajambradas, dos shopping centers de periferia. Quando as escalas de distância e proximidade permitem, sobretudo nas periferias que se estendem por trás das fronteiras da “cidade global” (a periferia sul da cidade), esses jovens não se intimidam com os brilhos faiscantes dos centros de consumo e lazer da classe média enriquecida e branchée nos modernos circuitos do mercado cultural. É por lá mesmo que eles circulam, em bandos, com grupos de amigos ou com suas famílias.

Os grandes equipamentos de consumo e seus circuitos são referências ur-banas importantes também porque são fontes de emprego. No mínimo, isso nos

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obrigaria a levar a sério a sugestão de Saskia Sassen (1998) de que entender as novas realidades urbanas exige que se desvencilhe do que a autora defi ne como “narrativas da exclusão”: uma descrição das cidades globais – ou dos espaços globalizados – que tem como única referência os winners dos altos circuitos do capital.2 Não por acaso, vale lembrar, no mesmo passo em que esses equipamentos se espalharam pela cidade, também fi zeram proliferar o igualmente muitíssimo moderno trabalho temporário mediado por agências de emprego conectadas a empresas terceirizadas de prestação de serviços. E são também por esses cir-cuitos que os mais jovens fazem seus percursos, sempre descontínuos e sempre instáveis, no mercado de trabalho. E por esses circuitos fazem uma experiência da cidade tensionada entre a brutalidade das desigualdades (velhas e novas), a sedução encantatória do moderno mercado de consumo, mas também o jogo de possibilidades e bloqueios para o acesso a uma vida urbana ampliada.

Eis o ponto que coloca as novas gerações no centro nevrálgico desse mundo social que vem se confi gurando. São jovens que se lançam no mundo em um momento em que o encolhimento dos empregos e a precarização do trabalho acontecem ao mesmo tempo e no mesmo passo em que os circuitos da vida urbana se ampliam e se diversifi cam.

Isso nos abre um outro feixe de questões que precisariam ser mais bem trabalhadas. Nesse mundo social redefi nido, a experiência do trabalho (e do não-trabalho) entrelaça-se com a experiência da própria cidade. Porém, se é assim, então será importante escapar dessa clivagem que atravessa o debate contemporâneo entre, de um lado, a economia urbana, a “cidade global” e os winners dos circuitos globalizados do mercado e, de outro, a “exclusão social”, os territórios da pobreza e o mundo dos perdedores. O que se trata de ver aqui são as relações entre cidade e trabalho. Relações que não podem mais ser vistas

2 “... na avaliação predominante, os conceitos fundamentais de globalização, economia da informação e telemática sugerem que o lugar não importa mais e que o único tipo de trabalhador que conta é o profi ssional com sólida formação” (Sassen, 1998: 16). Com isso, fi cam fora da história da globalização atividades e tipos de trabalhadores tão vitais quanto as fi nanças e telecomunicações globais. Ademais, “[...] focalizar o trabalho que está por detrás das funções de comando, a produção no complexo das fi nanças e da prestação de serviços e os mercados tem o efeito de incorporar os recursos materiais subjacentes à globalização e toda a infra-estrutura de empregos e de trabalhadores que não são vistos como pertencentes ao setor corporativo da economia: secretárias, faxineiros, caminhoneiros que entregam software, a variedade de técnicos e de empregados que trabalham em consertos e todos os empregos que tem que ver com a manutenção, pinturas e reforma das construções onde aquele setor se localiza”. Há, portanto, uma multiplicidade de economias envolvidas na constituição da denominada economia global. Trata-se de reconhecer “tipos de atividades, trabalhadores e empresas que jamais estiveram instalados no centro da economia ou que foram desalojados desse centro por ocasião da reestruturação ocorrida nos anos oitenta e, em consequência, foram desvalorizados em um sistema que dá um peso excessivo a uma concepção estreita do que é o centro da economia. A globalização portanto pode ser encarada como um processo que envolve múltiplas economias e culturas relativas ao trabalho (1998: 158).

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nos termos do debate dos anos 80, mas que, por isso mesmo, precisam ser re-colocadas se quisermos também escapar de uma visão empobrecida do mundo social reduzido às suas supostas binaridades.

E é a própria experiência das novas gerações e seus circuitos, no nervo exposto das complicações atuais, que nos dá as pistas para tentar um giro no modo de descrever o mundo social. Pois são essas mesmas experiências que tornam no mínimo problemáticas as visões que hoje prevalecem de uma cidade fragmentada entre enclaves fortifi cados e globalizados, de um lado, e, de outro, o mundo da pobreza confi nado nos bairros também pobres espalhados pelas periferias da cidade. As evidências imediatas sustentam ou podem sustentar essa visão das coisas, porém podemos nos perguntar se essa não é uma medida estreita demais, que se fi xa em certos pontos de cristalização dos fl uxos da riqueza e fl uxos da pobreza, que, vistos de um outro parâmetro, transbordam por todos os lados essas defi nições socioespaciais.

Não se trata, que se diga desde logo, de contrapor à “cidade dos muros”, para lembrar a expressão cunhada por Teresa Caldeira (2001), uma suposta (e falsa) democratização da “nova sociedade do consumo”. A questão é outra. E o que estamos aqui sugerindo é um outro modo de fi gurar e descrever esse mundo social. Mas, então, será preciso também recolocar o lugar dos grandes equipamentos de consumo nesse mundo atravessado pelos circuitos globalizados do capital. Sair de sua fi guração como lugares paradigmáticos da “sociedade do consumo”. E tomá-los por aquilo que são no movimento mesmo de valorização do capital.3

Pois nesses tempos globalizados, seguindo os movimentos acelerados de dester-ritorialização do capital, a riqueza social (o sobrevalor, é bom dizer) também se corporifi ca (e circula por entre os) nos espaços da cidade, pedaços globalizados que vão cortando e recortando o mundo urbano:4 as fortalezas globais concen-tradas no côté pós-moderno da cidade e as formas predatórias e excludentes de apropriação privada do solo urbano (cf. Fix, 2001); os grandes equipamentos de consumo e lazer que se concentram nesses mesmos espaços, mas se espalham num grande arco que chega até mesmo às periferias da cidade, também cortando

3 As relações entre acumulação capitalista, espaço e os “artefatos urbanos” é questão especialmente discutida por David Harvey (1994) 4 Como diz Veltz (1996: .XX), “as grandes cidades [são] uma formidável máquina de ace-leração dos fl uxos, que ligam os ritmos do consumo e dos modos de vida aos da produção e dos capitais, limitando a incerteza ao garantir às empresas as possibilidades as mais amplas de externalização dos riscos (por exemplo, pelo uso massivo da subcontratação) e acesso aos mercados mais fl exíveis de trabalho mais qualifi cado. Braudel caracterizava as cidades como transformadores elétricos que aumentam as tensões, precipitando as trocas. Será preciso então se espantar que, na economia moderna da rapidez, estas tiram das cidades o essencial de seu crescimento? Mas essas formidáveis tensões temporais estão também na origem das desigualdades as mais radicais e que se concentram nas megaci-dades, expressando a ‘telescopage’ entre esta precipitação e a ausência de perspectiva de uma ampla parcela da população”.

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e recortando o mundo da pobreza; da cultura transformada em mercadoria às chamadas intervenções urbanas, pelas quais a cidade passa a ser ela própria ge-rida e consumida como mercadoria (cf. Arantes, 2000); tudo isso e mais alguma coisa, ao mesmo tempo em que segue, numa extensão sem limite, a mercantili-zação de tudo e todos. As empresas de bens e serviços desenvolveram, no correr desses anos, efi cazes procedimentos para aproveitar as “potencialidades” desse enorme e expansivo mercado popular: afi nal, os pobres também consomem e a fi nanceirização dos orçamentos domésticos, por meio dos cartões de crédito que se popularizam, instala o pobre consumo dos pobres, um consumo pingado, de pouco em pouco, nos circuitos acelerados do capital fi nanceiro (cf. Sciré, 2009). O fato é que qualquer um que circule pelos bairros das periferias mais pobres haverá de encontrar a parafernália do consumo moderno e pós-moderno e have-rá de encontrar o morador pobre desses lugares mais-do-que-pobres exibindo, junto com a fatura de uma dívida sempre adiada, as versões populares (ou nem tanto) de cartões de crédito, ou os cartões de compra dos grandes equipamentos de consumo que chegaram por lá: é a fi nanceirização do popular fi ado. Eis aí os “sujeitos monetários sem mercado”, para usar a expressão cunhada por Kurtz (1992). Ou o “homem endividado”, essa fi gura da “sociedade do controle”, como diz Deleuze (1992), que vem substituindo o “homem confi nado” da sociedade disciplinar descrita por Foucault.

É o caso de se interrogar pelas “afi nidades eletivas”, para lembrar a formulação weberiana, entre o “trabalho sem qualidade” descrito por Sennet e a lógica do endividamento. Não mais projetos de aquisições futuras com base no princípio da previdência no bom uso do orçamento doméstico, o salário e o cálculo da poupança possível mês a mês. Nos termos de Weber, os disciplinamentos morais da ética do trabalho e sua consonância com a racionalidade própria do moderno trabalho industrial ou, para colocar em outra chave teórica, com a sociedade disciplinar discutida por Foucault. Agora, o consumo descola-se do trabalho e a lógica é outra, não a lógica da poupança, mas o cálculo da “capacidade de endi-vidamento”, a qual é ditada, como bem sabemos, pelas operadoras dos cartões de crédito pelas vias de procedimentos que faz cada um se enredar em um dívida sem fi m, negociada e renegociada a cada momento, com a possibilidade de ela se estender indefi nidamente no tempo. É todo um jogo social que se declina no presente imediato, tanto quanto a viração própria dos mercados informais e do trabalho precário: o que vale não é mais um projeto articulado à persistência do trabalho, mas a lógica do ganho (diferente do salário) que se faz em meio às oportunidades que surgem (e desaparecem) com a mesma aleatoriedade dos jogos de azar, aliás da mesma maneira como funciona o cassino do mercado fi nanceiro. Que se diga: como também acontece com os ganhos fi nanceiros, do ponto de vista da dívida (e dos acertos e expedientes inventados para lidar com ela), a origem do dinheiro não tem nenhuma importância, pouco importa se foi o salário ou os ganhos incertos na viração dos mercados informais, de origem honesta ou duvidosa.

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Como diz Cláudia Sciré (2009), a pobreza, também ela, foi fi nanceirizada. A lógica da dívida altera modos de organização da vida familiar. E afeta os circuitos da sociabilidade e da solidariedade intra-pares, com os cartões circulando na teia de préstimos e contrapréstimos: uns emprestam nome e cartões para outros com o “nome sujo” na praça ou para ajudar a aquisição de bens além dos limites disponíveis em seus respectivos cartões e, ao fi nal, uns e outros se veem enreda-dos no esforço por inventar expedientes para negociar a divida, transferi-la para o mês seguinte, usando um cartão para cobrir a dívida de um outro, um cartão próprio ou cartão emprestado, uma dívida que se paga com outra dívida, em uma forma peculiar de fi nanceirização das jogos da reciprocidade popular. Ao fazer a traçabilidade desse artefato urbano que são os cartões de crédito, vamos encontrar os fi os que articulam esses jogos sociais redefi nidos, os equipamentos de consumo, as fi nanceiras, e mais todos os expedientes mobilizados, também nas fronteiras incertas entre o legal e ilegal, lícito e ilícito, regidos pela lógica da dívida que vai se transferindo de um ponto a outro, até entrar, por vezes, em ponto de combustão.

É bem verdade, diz Deleuze (1992: 224), que o capitalismo mantém em escalas sempre crescentes a extrema miséria das maiorias, povos e populações “pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confi namento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas”.

No entanto, para usar a linguagem do fi lósofo em outros

textos, os “fl uxos urbanos”, liberados pela subtração dos dispositivos do trabalho, circulam e encontram outros agenciamentos e pontos de cristalização de que é evidência este promissor e expansivo mercado que é o tráfi co de drogas, aliás, também ele globalizado e conectado nos circuitos desterritorializados do capital fi nanceiro. Nada mais eloquente do que o retrato desenhado por Alba Zaluar (1996: 55-59) de um garoto metido no tráfi co de drogas no Rio de Janeiro: o menino favelado “com uma AR-15 ou metralhadora UZI, considerados símbolos de sua virilidade e a fonte de grande poder local, com um boné inspirado no movimento negro da América do Norte, ouvindo música funk, cheirando cocaína produzida na Colômbia, ansiando por um tênis Nike do último tipo e um carro do ano”.

Isso não se explica, diz Zaluar, e com razão, pelos níveis de salário

mínimo ou pelo desemprego, e muito menos pelo peso das camadas geológicas da tradição ou resquícios da violência costumeira do sertão, como muitas vezes se diz: “entender como o ilícito e o ilegal se enraizaram no setor informal para comandar um exército de desempregados e sócios menores é fundamental”, até porque tudo isso põe em movimento bens materiais e monetários que entram na circulação de mercadorias do mundo capitalista.

Entre a brutalidade da destituição dos miseráveis e os brilhos faiscantes desse capitalismo pós-moderno, entre o futuro sempre adiado (como a dívida, deixada para o dia seguinte, para um dia qualquer...) e o também muito pós-moderno presente imediato do garoto do tráfi co em que tudo isso se conjuga no verso-e-reverso do capitalismo contemporâneo, há um entramado de linhas que

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se cruzam e entrelaçam, que atravessam e transbordam os domínios estritos da pobreza e da riqueza (esses que oferecem as evidências imediatas de uma cidade fragmentada ou dualizada, apartada) e vão montando um socius que ainda será preciso conhecer melhor.

Pelo lado do trabalho, são também esses e outros traçados que vão redese-nhando o mundo social e a paisagem urbana. É o que acontece nos circuitos descontínuos do trabalho precário, temporário ou subcontratado. Passando pelos polos descentrados no tecido urbano, vão serpenteando os pontos em que a riqueza se cristaliza nos espaços da cidade com as redes de subcontratação e agências de trabalho temporário, ao mesmo tempo em que esses mesmos circuitos da riqueza alimentam as conhecidas atividades de sobrevivência do dito mercado informal, reativam o velho conhecido trabalho em domicílio de antanho e passam por mil formas de práticas ilícitas que se espalham por todos os lados.

Mas, então, retomando um ponto deixado solto mais atrás, é o caso de se in-terrogar pelos modos como a experiência das desigualdades vem se processando, junto com a vivência dos bloqueios a possibilidades de vida em um tempo que celebra o desempenho, a performance e o sucesso como medidas (aliás, inefáveis) de autonomia individual.5 Se não é mais remetida às confi gurações coletivas de classe, seria possível arriscar a dizer que essa experiência vem sendo confi gurada nos espaços da cidade e seus circuitos. A imagem do garoto do tráfi co é eloquente nesse sentido. No seu contraponto, o fenômeno rap é algo mais do que um fenô-meno cultural interessante em nossas cidades. Como bem nota Maria Rita Khel (2000: 212), as músicas dos Racionais MC’s são a expressão de uma recusa do presente, resistência ao presente, sem nenhuma transcendência. Um presente imediato, afi rmado no “ter atitude”, para usar a expressão dos “manos”. Recusa e denúncia do mundo reluzente do consumo. Recusa também do mundo do crime. Resistência ao presente pelo ato de permanecer vivo, “contrariando a estatística”.6 E declarar o seu lugar: “essa porra é um campo minado/quantas vezes eu pensei em me jogar daqui/ mas aí, minha área é tudo o que eu tenho/a minha vida é aqui e eu não consigo sair/ é muito fácil fugir, mas eu não vou/ não vou trair quem eu fui, quem eu sou”, eis o trecho de uma de suas músicas. Resistência ao presente, “atitude” de afi rmação que desencadeia princípios horizontalizados de identifi cação, que acena talvez para “devires minoritários” (Deleuze) que escapam

5 Como bem nota Eheremberg (1991), a autonomia não é mais pensada como recusa às subordinações de um mundo disciplinar (cf. os movimentos culturais dos anos 60), mas é agora fi gurada à imagem e semelhança da empresa, e o seu princípio é a concorrência e competição. Da atual celebração do esporte transformado em espetáculo de massa à projeção do empresário bem-sucedido (aliás, também mediatizado e transformado em celebridade) como padrão moral a ser seguido, passando pelo consumo, eis as fi guras do “novo individualismo” que vem se confi gurando desde meados dos anos 80.6 “[...] permaneço vivo, eu sigo a mística, 27 anos contrariando a estatística... eu sou apenas um rapaz latino-americano apoiado por mais de cinquenta mil manos”.

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dos axiomas que capturam energias sociais e afi rmam outras possibilidades de vida, outras maneiras de problematizar a existência.

O fato é que os grupos de rap são uma referência importante nas periferias da cidade. Suas apresentações e as letras de suas músicas metabolizam a vivência da pobreza periférica, mas em uma cifra em tudo e por tudo além do perímetro estreito do “mundo da pobreza” – não por acaso, são também eles um fenômeno globalizado, falam não para a “comunidade”, falam para o “mundo” ou por essa outra globalização feita por baixo, nas linhas e fl uxos que escapam dos “aparelhos de captura” do capitalismo contemporâneo. Isso valeria, por certo, uma discussão à parte. Mas se vale arriscar em uma seara além de nossas competências, é porque esses grupos compõem as realidades das periferias urbanas.

Como diz um de nossos entrevistados (falaremos dele mais à frente),

periferia a gente fala assim, é mais pessoas humildes, que não têm condições de se divertir, ter bom estudo, isso e aquilo, fazer uma faculdade… um diver-timento, não tem condições de ir no shopping comprar uma roupa de marca… aquela música dos Racionais diz tudo… Pra mim, periferia é isso aí.

Esse é o depoimento de um rapaz de 30 anos, que mora em um bairro na periferia sul da cidade. Ele entrou na vida adulta já em um mundo revirado, que não encontra alternativas fora do trabalho precário (agências de trabalho tempo-rário), amarga períodos prolongados de desemprego e viveu a virada dos tempos também pelo outro lado, o da violência que em poucos anos dizimou quase todos os seus amigos de infância e adolescência. Também “contrariou a estatística”. Apesar disso tudo, afi rma sua identifi cação com o lugar, diz que é lá mesmo que quer fi car depois do casamento:

[...] só quem mora aqui mesmo é quem sabe contar a história do bairro… pe-riferia é um lugar até gostoso de se divertir, tem gente que fala que não, mas periferia é periferia mesmo.

Mas o que é então a periferia? [foi a pergunta]

Periferia? Aquela música dos Racionais diz tudo… periferia é isso aí.

Do outro lado da cidade, no fundo da zona leste, em uma área de ocupação recente e condições incrivelmente precárias de vida, é assim que um jovem de 20 anos fala de sua paixão pelo rap: “é a minha religião”, diz ele. A princípio, “ouvia só por ouvir”, até perceber que a música tinha a ver com ele, “com o seu dia a dia”, “com o cotidiano da periferia”. Para ele, não faz diferença se o grupo Racionais MC’s é da zona sul, pois “periferia é periferia em qualquer lugar, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, qualquer lugar…”. O rapaz associa o seu gosto pelo rap e o recente interesse pela política: “as duas coisas se complementam”, diz ele, “tem tudo a ver a ideologia do rap com a do PT”. Ambos são movidos, segundo ele, pelo “ideário da igualdade”.

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Personagens urbanos e seus percursos

A experiência das novas gerações e seus circuitos, no nervo exposto das com-plicações atuais, nos dá as pistas para tentar outra descrição do mundo social. É sob essa perspectiva que tratamos de seguir os percursos dessas novas gerações. São situações traçadas pelos circuitos das trajetórias de seus personagens. Perso-nagens urbanos, podemos dizer. Em seus contextos de referência, essas trajetórias operam como prismas pelos quais o mundo urbano vai ganhando forma em suas diferentes modulações. São esses personagens que tornam práticas urbanas e vetores policentrados perceptíveis, em torno dos quais esse mundo social vem se desenhando.

O cenário: uma região situada na periferia sul da cidade de São Paulo, que começou a se expandir a partir dos anos de 1970, acompanhando os fl uxos dos empregos industriais. Nessa região, que foi o polo industrial da “cidade fordis-ta”, são nítidos os sinais da reconversão produtiva, bem como as recomposições urbano-espaciais da década de 1990, sob o impacto do muito próximo e rico quadrante da modernização globalizada da cidade. É o cenário descrito no capí-tulo anterior. As entrevistas foram realizadas entre 2001 e 2002. Um momento especialmente interessante para fl agrar a virada dos tempos. Pelo lado urbano, os grandes equipamentos de consumo, o uso generalizado dos cartões de crédito, o consumo da parafernália eletrônica moderna-moderníssima, o que inclui o uso dos celulares, tudo isso ainda era uma relativa novidade. Os sinais da moder-nização urbana misturavam-se com a dureza do desemprego prolongado e as incertezas do trabalho precário. E também a violência que dizimava sobretudo os mais jovens.

A virada dos tempos está cifrada nas infl exões e nas circunstâncias de vida dos que, tendo chegado a São Paulo nos anos de 1970 ou no início dos 1980, fi zeram um percurso pelos empregos fabris, chegaram às então distantes e deso-ladas periferias da cidade, realizaram o “sonho da casa própria” pelas vias da autoconstrução da moradia, se viram às voltas com loteamentos clandestinos e se envolveram nas lutas sociais do período. Ou então se instalaram precariamente no que haveria de se transformar, vinte anos depois, em uma grande favela, na qual, e como contraponto da épica dos movimentos sociais, o clientelismo velho de guerra se faz presente e operante nas dobras e redobras dos vários ilegalismos de que é feito o mundo social.

Para essas famílias, a diferença dos tempos coincide com a diferença das gerações e são sobretudo os jovens personagens dessas histórias que podem informar-nos alguma coisa sobre os vetores e as linhas de força que deslocam os polos de gravitação da geração anterior (entre o trabalho e as melhorias urbanas locais), e redefi nem campos sociais. Seguindo as trilhas dos mais jovens vão se delineando os perfi s ambivalentes da modernidade globalizada: uma experiência social que se confi gura nos limiares e nas passagens entre mundos distintos, entre

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o universo empobrecido da periferia e os shopping centers, os lugares prestigiosos de consumo e lazer (referências urbanas inescapáveis para essa geração), os baixos empregos do terciário moderno e os circuitos do trabalho precário que tangenciam os fl uxos da riqueza plasmados nos espaços urbanos. São esses limiares e essas passagens (e seus bloqueios) que precisam ser bem compreendidos e bem situados, pois é aqui que se arma uma teia de relações (e tensões) que via de regra escapa às defi nições modelares de exclusão social e de segregação urbana.

São esses percursos, da segunda ou terceira geração, que nos fazem perceber as conexões entre trabalho e experiência urbana. Não mais as referências que ordenavam a experiência social dos tempos do “trabalho fordista” da primeira geração. Não mais as mediações do trabalho regulado, dos direitos trabalhistas e sindicatos, que ritmavam os tempos da vida e os articulavam com os tempos políticos da cidade. Nem por isso o trabalho, mesmo precário e descontínuo, incerto e de futuro mais incerto ainda, deixa de ser um poderoso conector com o mundo social. Outra experiência de trabalho, outra experiência urbana. Outro diagrama de referências e relações que redefi ne os agenciamentos da vida e das formas de vida, e nos quais e pelos quais é possível apreender a nervura própria desse campo social redefi nido.

O cenário: nas franjas da “cidade global”

No miolo do Distrito do Jardim São Luiz estende-se um longo e grande arco de três favelas. Não é coisa fácil discernir suas fronteiras, se é que elas existem para além dos marcos ofi ciais da Prefeitura. Por convenção iremos chamar de favela Cruzeiro o cenário em que transcorrem os percursos de nossos personagens.

É uma favela contígua a um bairro que esteve no centro dos movimentos pela regularização dos loteamentos clandestinos (nos anos 1970) e, depois, das reivindicações por melhorias urbanas que agitaram a década de 1980. Modu-lações de uma história urbana e da história de toda uma geração. Em ambos os lugares, são evidentes os sinais de um mundo operário que se desfez no correr dos anos 1990. Porém, isso ganhou confi gurações diferentes aqui e lá. Na Vila Marinalva,7 havia a conjugação entre o “sonho da casa própria” (e os loteamentos clandestinos), a passagem pelo trabalho regulado (tempos fordistas) e um campo de forças em torno do qual gravitaram as comunidades eclesiais de base, a ala progressista da Igreja Católica, a esquerda clandestina e, depois, o Partido dos Trabalhadores. Na favela Cruzeiro, é uma história tecida em outra constelação de relações, simultânea à primeira, não menos estruturadora de nossa história

7 Os nomes de lugares e pessoas são todos fi ctícios, com exceção do Distrito do Jardim São Luiz, cujo nome foi mantido. Cenário e personagens de Vila Marinalva foram tratados em Telles e Cabanes (2007, capitulo 3).

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recente, porém que passa por uma peculiar conjugação entre todas as ilegalidades e irregularidades de que é feita a vida interna de uma favela e as intrincadas redes do clientelismo político que disso se alimenta o tempo todo.

A cartografi a dos empregos

Numa rua paralela à favela, estão instaladas algumas fabriquetas de peças e componentes de automóveis e eletrodomésticos. Chegaram entre meados da década de 1970 e a metade dos anos 80. Como se pode imaginar, parte consi-derável de seus trabalhadores é morador da Cruzeiro. Adalto, 45 anos, trabalha por lá desde 1983. Antes, trabalhou na indústria de bicicletas Monark. Foi o seu primeiro emprego em São Paulo, em 1978. A Monark é uma referência constante nas histórias dos moradores da favela Cruzeiro. Muitos passaram por lá – “aqui, quase todo mundo da Cruzeiro começou trabalhando na Monark... um trabalhava e avisava que a fi rma ia pegar funcionário, avisava e o outro ia”. A Monark fi ca na Avenida das Nações Unidas (Marginal Pinheiros), não muito longe do lugar onde está atualmente o hipermercado Carrefour. Está instalada na região desde 1951. Não é demorado chegar até lá: apenas um ônibus, não mais do que trinta minutos de deslocamento. Como lembra Adalto, “quando era de manhã só via neguinho indo para o mesmo lado. Já pegava o ônibus e ia todo mundo”. Estão aí as coordenadas de um universo operário. Parte considerável de nossos entrevistados passou pela Monark. Podemos supor que a conformação dessa geração não independe das redes familiares e de sociabilidade que foram se estruturando conforme as famílias se instalam na favela. As redes familiares são acionadas nas estratégias de migração – funcionam como referência e acolhem os recém-chegados, além de garantir a solidariedade nas situações difíceis. Também redes que operam como canais de passagem para o mercado de trabalho. Uns conseguem empregos para outros, avisam quando aparecem oportunidades. E foi assim que muitos passaram pelo trabalho na Monark:

Eu lembro que, quando eu casei, eu morava de aluguel no Jardim São Luís e todo mundo da casa trabalhava na Monark. Aí, eu fui trabalhar também junto com eles, eu ia todo dia com eles, voltava junto com eles (Lucila, 46 anos).

Eram os tempos das grandes plantas industriais e do emprego farto, que se distribuíam entre Santo Amaro e Socorro, polo industrial dos “tempos fordistas”. Vinte anos depois, a cartografi a dos empregos (ou do desemprego) mudou muito. O eixo dos empregos deslocou-se para um estreito circuito próximo à favela – “agora fi cou o pessoal todo trabalhando por conta, outro meio de vida”. Ou para as fabriquetas ao lado – “agora o pessoal trabalha mais aqui pertinho”. Mas a favela Cruzeiro está muito próxima, nas franjas dos modernos circuitos dos serviços que passam pelo Distrito do Jardim São Luís: é por lá que transitam os mais jovens, sobretudo eles, mas não apenas.

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Os tortuosos caminhos das melhorias urbanas

Os primeiros moradores chegaram no início dos anos 1970. O adensamento da favela acelerou-se no correr da década de 1990. Conforme cresceu a favela, também cresceu a infl uência e poder de Lino, um personagem quase onipresente em tudo o que acontece nesse território. Ele atua como uma espécie de árbitro da “compra e venda” dos terrenos, quando não opera como um verdadeiro grileiro local. É poderoso. Por isso, acostumamo-nos a falar dele como “o Xerife”: além dos assuntos de posse, é ele quem arbitra a distribuição das ligações clandestinas de água e de energia elétrica, mantém o controle da distribuição de cestas básicas doadas pelo Governo do Estado e é o conduto que liga o poder institucional às redes do clientelismo político local. Tudo passa por ele.

Os dados são imprecisos, porém, de acordo com um levantamento improvisado feito pela associação de moradores, a favela Cruzeiro tinha, em 2001, cerca de 200 famílias. Barracos, a maior parte de alvenaria. As ruelas e veredas estão todas cobertas de cimento. Coisa do Xerife, que, através de um acerto com um amigo, conseguiu que o cimento velho de uma construtora fosse jogado na favela. Em 1982, chegaram as redes de água e eletricidade. Chegaram e, junto com elas, foi-se armando uma outra rede, uma intrincada rede de ilegalismos pelos quais também as relações de poder foram se estruturando. A presença do Estado ia como que se dobrando na face interna da favela para lançar os vetores a partir dos quais o traçado dos ilegalismos segue o fl uxo das ligações clandestinas de água e luz. Junto com isso, um diagrama das relações e hierarquias de poder, seguindo as gambiarras de luz e o fl uxo da água desviada das casas que ganharam seus próprios relógios de medição. As redes de eletricidade só atingem as casas que dão para a rua principal. Dai são puxadas as ligações clandestinas, mas é o Xerife que controla e arbitra a sua distribuição, e também os pagamentos. Quanto à água, são apenas três medidores coletivos. É quase desnecessário dizer que um deles está instalado na casa do Xerife. É daí que a água é desviada para atender as famílias que moram mais próximo do núcleo interno da favela.

A Associação de moradores foi fundada em 1984. Esteve sob o comando do Xerife até 2001, quando ele perdeu as eleições para um grupo de moradores alinhados (embora não muito convictamente) com o PT. O Xerife era malufi sta. Se não por convicção, por interesse – e dos fortes. O Xerife era cabo eleitoral e não perdia nenhuma oportunidade para aproveitar (e se aproveitar) das redes de infl uência acionadas com as máquinas partidárias, políticos locais e “conhecidos” dentro da máquina estatal e municipal. Era o principal articulador dos moradores com os poderes públicos para a solução de litígios em torno das redes urbanas de serviços. Os programas sociais promovidos pela Prefeitura passavam por ele, até porque eram implementados através da associação de moradores. Assim, por exemplo, o programa do leite, invenção, aliás, da gestão Maluf (1992-1996), que passou a programa estadual. O Xerife sempre controlou o credenciamento das famílias. Quando perdeu as eleições, um de seus trunfos era boicotar a

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informação e fazer o possível para impedir que a associação desse seguimento ao programa.

O poder do Xerife aumentou no correr das duas gestões malufi stas. Perdeu as eleições em 2001, porém a roda da vida continuou girando. O Xerife montou outra Associação. É uma mistura de grilagem com movimento de moradia. Lino tratava de identifi car áreas que poderiam ser loteadas, fazia o levantamento de todas as irregularidades do “pedaço” e... ocupava. Quer dizer: é isso o que ele dizia que pretendia fazer. O Xerife era bem relacionado com a polícia, sempre foi. Fazia parte do Conselho Municipal de Segurança, o Conseg. Com isso, acreditava que haveria de conseguir o respaldo necessário para suas operações, evitando complicações com a polícia. A ocupação acabaria sendo uma grande encenação que terminaria com a venda do terreno a um preço muito mais baixo do que o de mercado. Dessa forma, conseguiria os terrenos e, de quebra, o apoio dos futuros moradores. Os planos do Xerife? Candidatar-se a vereador a partir da base de apoio que esperava construir com os “condomínios de periferia”.

O Xerife

Lino, o Xerife, tem 53 anos (em 2001). Mora na região mais interna da favela com a esposa Dalva (45 anos) e a sogra. Seus dois fi lhos casaram e moram por perto. A casa de Lino tem todo o jeito de um barraco de favela: sala e cozinha compõem um único cômodo e o banheiro fi ca do lado de fora, compartilhado por quatro pessoas que ocupam dois cômodos contíguos. Porém, estavam lá, à vista de todos, um aparelho novo de DVD, uma TV e um aparelho de som. Tudo o que acontece na favela passa por ele e, ao que parece, também os assuntos, digamos assim, escusos. Era ele quem “tomava conta” do local, agenciando os negócios “duvidosos”, também arbitrando, se é que se pode assim dizer, as desavenças relacionadas ao “mundo do crime”. Ele não hesitava em fazer uma contabilidade superlativa de mortes que ele e os fi lhos teriam encomendado ou nas quais estariam envolvidos de alguma forma. Histórias rocambolescas que mais pareciam tiradas de um faroeste de má qualidade. Certamente havia muito de bravata nisso tudo e todo um jogo de cena para impressionar os jovens e espantados pesquisadores que o entrevistavam.8 Era tudo muito exagerado, porém nem tudo era inventado. Não era possível saber se ele estava diretamente envolvido em atividades crimi-nosas, mas tudo indicava que operava, no mínimo, como interceptador de objetos roubados. A casa do Xerife, bem no miolo da favela, com todas as evidências à mostra para quem quisesse ver, era o ponto de gravitação de atividades (e pes-soas), digamos assim, duvidosas.

A trajetória do Xerife é bastante interessante. Lino nasceu no interior do Ceará (Iguatu) e chegou a São Paulo em 1977. Tinha então 28 anos. “Lá onde a gente

8 Daniel Hirata e José César de Magalhães compunham a equipe de pesquisa, o primeiro como Bolsista de Iniciação Científi ca, o segundo como assistente de pesquisa.

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morava não tinha como sobreviver”, diz. Mas, parece que os motivos foram outros: veio fugido de uma briga pesada que terminara em morte. Chegando a São Paulo, quatro dias depois, começou a trabalhar na metalúrgica Fama, onde fi cou por quatro anos. Segue depois um percurso operário nas indústrias da região de Santo Amaro: Fevap (dois anos), Standard (três anos), Monark (três anos), uma das fabri-quetas ao lado da favela (três anos) e, fi nalmente, a Villares (cinco anos). Entrou na Villares em 1986 e saiu em 1991 por problemas de saúde. Trabalhava na pintura, sem proteção, e terminou por adquirir problemas respiratórios sérios. Foi demitido. Processa a empresa. Estava de licença médica e não poderia ser demitido. Ganhou a causa, porém o litígio ainda estava em aberto quando o entrevistamos (2001): batalha judicial pelo reconhecimento de sua condição de funcionário da empresa e pela sua reintegração na função. Lino sabia que não seria reintegrado, até porque ele fora considerado incapacitado para exercer esse tipo de trabalho. Entretanto, sabia muito bem fazer a conta de quantos salários atrasados a Villares lhe devia. Uma quantidade considerável: salários e encargos trabalhistas correspondentes a nove anos e quatro meses! O único problema era que a Villares não existia mais: fora dividida em três outras empresas e, até então, não tinha sido possível saber qual delas (se é que alguma) havia herdado o patrimônio e as dívidas trabalhistas. Lino tinha um advogado que cuidava disso para ele. Até então, sem sucesso. Mas os recursos dessa indenização entravam nos planos de Lino.

A história recente de Lino é cheia de veredas tortuosas. Quando ganha a causa contra a Villares por demissão indevida, ainda em 1991, recebe uma boa indenização. Pulverizou o dinheiro na compra de um carro, com gastos excessivos e mais 21 dias de viagem para o estado de origem, soltando o dinheiro farto com os familiares – “o tempo que eu passei lá, eles não passaram necessidade”. Em pouco tempo o dinheiro acabou. Depois, não conseguiu mais emprego em indús-tria. Bem que tentou, porém não passava pelo exame médico e, além do mais, o processo contra a Villares constava de sua documentação, o que era um motivo de recusa de emprego. Lino não poderia ter emprego registrado em carteira de trabalho, sob pena de perder os direitos pelos quais estava brigando. Em 2001, trabalhava como zelador em um prédio de apartamentos próximo à favela. Era uma cooperativa que prestava serviço terceirizado para “tudo”: limpeza, segurança, manutenção, portaria. Eram cerca de 2 mil cooperativados:

a gente se inscreve como sócio contribuinte. A gente paga aquela taxa e arruma emprego. Aí, no primeiro salário, desconta os 15 reais e os 36 reais de INSS; do segundo salário em diante, eles só descontam o INSS e, quando a gente sai, a gente recebe o que a gente pagou corrigido. Pode passar 5, 6 anos que a gente recebe, corrige. [A cooperativa existe há dois anos] [...] foi a lei que eles lançaram para acabar com o direito do trabalhador.

Desde muito cedo Lino passou a se dedicar aos assuntos da associação de mo-radores. Lino fazia circular recursos pelas vias dos obscuros canais do clientelismo

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político. Sempre foi cabo eleitoral, principalmente de Paulo Maluf. As estratégias de favorecimento pessoal e práticas clientelísticas eram constitutivas da maneira como Lino encaminhava a política local. Era assim que administrava a distribui-ção de cestas básicas, distribuía presentes de Natal e doações que chegam para a associação, agenciava seus apadrinhados para bicos em campanhas eleitorais. Os esforços para as melhorias urbanas terminaram por se transformar em um espaço de agenciamento pessoal de Lino sobre os moradores. A começar de sua própria casa, espécie de sede de seu poder pessoal: é de lá que muitos moradores puxam as ligações clandestinas e é para ele que pagam as contas de água e luz. Todos os eventos que marcaram a história da favela, desde o cimento nas ruas até a chegada das redes de água e energia, trazem as marcas do poder de Lino, suas redes de infl uência, suas conexões com construtoras, com vereadores, com homens das máquinas políticas dos partidos.

É sempre difícil saber o que é fi cção e bravata, e o que é real nas histórias que conta. Porém, o fato é que, em 2001, Lino era membro do Conseg – o Conselho Comunitário de Segurança, órgão de representação local, espaço de participa-ção democrática e cidadã, como se diz, vinculado ao governo do Estado. É com essa rede de infl uência e proteção que ele contava para se lançar em seu novo empreendimento: negócios com compra e venda de terras. Quer dizer: grilagem. E, a partir daí, lançar-se como vereador nas eleições seguintes.

Há algo mesmo de fascinante na história desse cearense que virou favelado, que se transformou em operário metalúrgico de uma grande empresa paulista, que conhece muito bem e briga pelos seus direitos, que se embrenhou nas tramas do clientelismo político, que transita o tempo todo entre o legal e o ilegal, que é “representante da sociedade civil” no Conseg, que pretende então se tornar grileiro e que quer se lançar como vereador, representante político local. Não é pouca coisa... Não há nada de anedótico em tudo isso. Pois o que temos aí é um personagem que faz ver todas as dobraduras de que é feita a vida social. Muito longe das binaridades, são nelas ou através delas que os fi os que tecem o campo social são perceptíveis, atravessam e compõem a vida interna da favela Cruzeiro (e seus territórios), para colocá-la em sintonia fi na com toda a complicação do mundo social.

Diferenças de tempos, diferenças de geração

O tempo e a passagem do tempo deixam as marcas no território e deslocam suas coordenadas, redefi nem o jogo dos atores e as mediações que compõem os campos de força das disputas locais. São essas marcações que nos dão as pistas das redefi nições da trama do mundo social que veio se redesenhando desde o início da década de 1990. E os fi os que tecem a trama social também passam pelas histórias das famílias. Aqui, nesse registro, é sobretudo a diferença entre

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as gerações que nos dá a cifra da atualidade e de toda a complicação que pode estar contida nos tempos que correm.

O patriarca Genésio e sua extensa família

São moradores antigos, um dos primeiros “invasores” (esse é o termo que eles próprios utilizam – “é tudo invasão”) no fi nal dos anos 70. São cinco famílias que dividem o mesmo terreno. São histórias que se cruzam em torno do núcleo principal, Seu Genésio (70 anos, em 2001) e a esposa, Dona Francisca (69 anos). Genésio é o chefe de uma família numerosa e, sobretudo, muito unida, que não se desliga do núcleo familiar. Casaram-se e ajeitaram-se no terreno da própria favela, com casas bem construídas e bem equipadas. A casa de Seu Genésio dá para a rua principal. Seis cômodos: três quartos, sala, banheiro, cozinha e mais uma garagem na frente, ocupada com dois carros da família, um Santana do falecido marido de uma das fi lhas e um Corsa de outro fi lho casado.

Seu Genésio nasceu em Presidente Prudente (interior paulista) e, em 1952, foi para o Paraná. Casou-se com Dona Francisca e constituiu família. Trabalhava como meeiro, plantando milho, arroz, feijão e café. Em 1978, “perdeu tudo” em decorrência de uma seca. Genésio tinha então 45 anos e veio com a família toda para São Paulo. Venderam o que tinham, colocaram a família em um ônibus e chegaram com seus nove fi lhos – “colocamos tudo num saco, juntamos os fi lhos e viemos! Tudo de ônibus. Chegamos aqui sem nada!”.

A fi lha Lucila, a mais velha, então com 23 anos, já estava em São Paulo. Veio antes para encontrar o marido, que foi o primeiro a desistir da roça para tentar a vida na cidade. Moravam no Jardim São Luís e dividiam uma pensão com dois outros amigos. Seu Genésio e a família chegam um ano depois. Ficam 15 dias em sua casa. Por intermédio de conhecidos do Paraná que já estavam por aqui, fi cam sabendo de um barraco disponível na favela Cruzeiro. Seu Genésio “compra” o que então era uma construção precária de madeira, com apenas dois cômodos. “Fomos fazendo a casa, como um joão-de-barro”, diz Seu Genésio. Todas as economias vindas do trabalho foram jogadas nesse empreendimento, que levou anos a fi o para chegar à situação atual. A família de Seu Genésio permaneceu junta nessa emprei-tada. Os fi lhos casaram, constituíram família e construíram suas próprias casas no mesmo terreno, junto à casa dos pais. Além da importância da rede familiar, havia também a vantagem da oferta de empregos no entorno imediato.

Trabalho, moradia e os tempos da cidade

Alguns meses depois de sua chegada a São Paulo, Seu Genésio conseguiu o que seria o seu primeiro e único emprego ao longo de toda a sua vida na cidade. Por indicação do genro, começa a trabalhar numa metalúrgica de Santo Amaro, emprego que manteve por 19 anos. Os fi lhos também conseguiram, em pouco tempo, emprego em São Paulo. Lucila já trabalhava na Monark (seu primeiro

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emprego na cidade), assim como seu marido e os colegas de pensão. O marido trabalhou lá por dez anos e, Lucila, por dois anos e meio, até o nascimento do primeiro fi lho. Foi essa também a porta de entrada no mercado de trabalho para Adalto e Inês: em pouco tempo já estavam trabalhando na Monark. Com exceção do fi lho mais novo, Jorge (31 anos, em 2001), a estabilidade nos empregos é uma regra para todos os membros da família. Seu Genésio aposentou-se depois de 19 anos na mesma empresa. Lucila, a mais velha, trabalha há oito anos como mensalista numa casa de família no entorno de Santo Amaro. Os outros, depois da Monark, seguiram no emprego fabril, no circuito local das fabriquetas ao lado. Adalto estava então no mesmo emprego havia 17 anos. Lurdes (41 anos), assim como a irmã Lindalva (39 anos), ambas solteiras e morando com os pais, estavam então no mesmo emprego havia muito tempo. Lurdes trabalhava havia 18 anos em uma fabriqueta de peças para máquinas de lavar roupa. O tempo de emprego não valeu melhorias de salário: era uma empresa pequena, com menos de 50 trabalhadores, e ela ganhava R$ 350,00. Então, por que não tentara coisa melhor nos tempos em que o emprego era mais farto? “Fui fi cando porque o em-prego era perto”, Lurdes explicou. Era menos cansativo e o salário mais baixo era compensado pela economia dos gastos de condução.

* * *

São histórias que giram em torno do trabalho e da vida interna da favela. Dois campos de gravitação de suas experiências. Genésio era fi liado ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Se hoje o seu mundo parece quase que encapsulado nas fronteiras da favela e no universo da família, nem sempre foi assim:

No começo eu ia muito na cidade, agora não. No início, a fi rma não tinha con-vênio. Então, logo no primeiro ano comecei a pagar o convênio pelo sindicato, era na época do fi nado Joaquinzão. Lá tinha de tudo, era tudo gratuito, remé-dio, médico, tudo. Então eu ia muito no sindicato. No sábado, quando eu não trabalhava, eu ia no sindicato. Paguei o sindicato até aposentar...

Agora que se aposentou, diz Genésio com um fi no tom de ironia: “eu não vou pra lugar nenhum, só como e durmo...”. Não apenas o patriarca Genésio, mas muitos outros têm suas histórias marcadas pelos tempos do trabalho regulado e do sindicato. Aliás, também Lino, o Xerife. O jogo da troca de favores e as redes de proteção, que o Xerife soube e sabe tão bem manipular, também passou por aí: diz conhecer os personagens da história sindical recente e não são poucas as histórias (ou bravatas) que conta ao relatar como conseguiu apoio, favores e favorecimentos de uns e outros. Além do mais, valendo-se dos “direitos devidos” de uma grande empresa (que não existe mais) – que ele espera e faz de tudo para receber – é que ele defi ne parte de seus mirabolantes planos de futuro.

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Outros seguiram outros fi os, participaram de greves e fi zeram parte, de um jeito ou de outro, da movimentação política do período. Assim, por exemplo, a história de Arivaldo: tinha 16 anos quando chegou a São Paulo, em 1976. Veio de Minas Gerais, acompanhando a mãe, que havia se separado do marido. Foram morar em um cômodo alugado no Jardim Miriam. E logo começou a trabalhar como ajudante em uma ofi cina mecânica de fundo de quintal. O começo de sua história na cidade é turbulento. Depois do Jardim Miriam, moram em vários lu-gares nos arredores da região. Sempre cômodos alugados. Passaram pelo Parque Santo Antônio. Ali foram enganados por um grileiro, que lhes vendeu um terreno irregular na estrada de Itapecerica da Serra. Gastaram todas as economias na compra desse terreno. Sofreram uma ação de reintegração de posse. E perderam tudo. Foi então que se mudaram para a favela Cruzeiro.

Era o ano de 1977. Nesse período, Arivaldo arruma trabalho na construção civil. Depois de trabalhar algum tempo em uma lavanderia, consegue emprego de ajudante de produção na Monark, como tantos outros moradores da favela. Participa das grandes greves operárias do período, e foi nessa época que começou a se aproximar do pessoal, que, pouco tempo depois, estaria alinhado com o PT – “toda vida eu fi z campanha para o PT, mas nunca fui fi liado. Fiz campanha espontânea, eu ia lá, pegava o material e falava ‘vou distribuir’”. A passagem pelas greves operárias foi importante no percurso de Arivaldo e iria infl uenciar seu posicionamento no jogo político interno à favela Cruzeiro. Sempre participou da associação de moradores, sempre alinhado “à esquerda”, sempre em relação tensa quando não de oposição ao Xerife. Apesar da participação nas greves ter lhe custado o emprego na Monark, Arivaldo avalia a experiência de um modo muito positivo:

[...] era bom, não me arrependi de ter feito isso, porque valeu como experiên-cia. Se eu tivesse que fazer novamente, a vida da gente é uma luta mesmo... quando a gente para e olha pra trás, a gente fala que valeu a pena, porque eu tentei fazer as coisas boas e não fi z nada para me envergonhar, que eu possa ter vergonha, porque tentei.

Depois da Monark, Arivaldo só conseguiu empregos irregulares na construção civil, primeiro para construtoras, depois, como autônomo. Casou-se em 1982. Um ano depois, nasceu o primeiro fi lho. O segundo fi lho ganhou o nome de Nelson Mandela:

Foi homenagem. O Nelson Mandela. Aquele homem, acho que não dá para defi nir. A luta dele! Uma pessoa que é condenada à prisão perpétua, de repente ele consegue ser presidente do próprio país que oprimia ele, então a luta dele serve de inspiração. É impressionante. Vale a pena a perseverança que ele tem. [...] Não libertou só ele, porque a África tem um continente do tamanho que é a África, quando a gente olha no mapa e vê tudo aquilo!

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Diagrama de relações e de referências em torno do trabalho: eram tempos em que o trabalho operava como um poderoso conector das histórias de cada um com uma história coletiva (e seus confl itos), com uma trama mais ampla de relações sociais (e também de composições políticas) e com a cidade.

A conquista das melhorias urbanas na favela: um segundo campo de gravi-tação. Água, luz, esgoto, entre outras melhorias: foco de um contínuo empenho cooperativo dos moradores, entre a invenção de soluções improvisadas, pressões junto à Sabesp, negociações com a Prefeitura. Também aqui se arma um diagrama de relações e referências. É certo que os jogos de poder e hierarquias internas à favela foram grandemente traçados em torno (e pelas) melhorias que conseguiram com o tempo. Confl itos internos não faltaram. Mais do que eventos pontuais da história interna de uma favela, arma-se aí também o diagrama de relações com o entorno, com políticos, com disputas políticas, com órgãos públicos, com as tramas do clientelismo político, com as igrejas locais, com o PT, com agentes sociais, voluntários, militantes comunitários.

Essas questões são importantes de serem notadas. De um lado, são refe-rências que nos permitem ver como a história interna da favela compõem-se com circunstâncias e atores da história social e da história política da cidade. O catalisador desses vetores foi a Associação de Moradores. As coisas sempre passam pela associação: dos programas sociais da Prefeitura aos agenciamentos internos para a solução dos problemas da vida comum. E compõem-se com outras dimensões e outras facetas da história social e da história política, seja quando estas vêm cifradas pelas nebulosas relações de poder e infl uência do poderoso Xerife, seja quando vêm cifradas pelas forças alinhadas à esquerda, seja, ainda ou sobretudo, quando tudo isso se mistura e suas diferenças fi cam indiscerníveis nas dobraduras da vida social.

Trabalho, moradia, política: três polos de referência, abrindo-se a feixes de relações e composições com a vida social, urbana e política. Três polos que se conjugam numa história comum e na confi guração desses territórios. Jogo cruzado de referências que arma a tessitura de um mundo social e permite que as histórias singulares entrem em ressonância no tempo político da cidade.

É por referência a essa confi guração que se têm elementos para entender alguma coisa da virada dos tempos para além da constatação do aumento da pobreza, do desemprego e da violência. Ela ajuda a entender as infl exões que os mais jovens sinalizam. São os jovens personagens dessas histórias que podem nos informar alguma coisa sobre os vetores e linhas de força que desestabilizam campos sociais prévios, ou os redefi nem, deslocam suas fronteiras, abrem-se para outros e também traçam as linhas que desenham as novas fi guras da tragédia social.

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Na virada dos tempos

Os jovens empreendedores: nos circuitos faiscantes dos serviços globalizados

Os percursos da nova geração são muito diferentes daqueles traçados pelos pais. São outros tipos de emprego e, também, outros centros de gravidade. As relações familiares e o apego à família são fortes: todos valorizam a “família unida”, suas histórias e a solidariedade que existe entre todos. Porém, as referências que estruturaram a vida de seus pais já não são as mesmas. Se continuam existindo, não é em torno delas que suas vidas transitam. Seus centros de gravitação já são outros.

Maurício, 22 anos, é fi lho de Lucila, empregada doméstica, ex-metalúrgica da Monark. Seu pai teve uma trajetória contínua no trabalho fabril, apenas in-terrompida por motivos de saúde, quando então passou a trabalhar de motorista em uma agência de empregos. Maurício começou a trabalhar em 1999. Tinha então 16 anos e conseguiu, por indicação de conhecidos dos pais, um emprego de offi ce-boy no Parque Aquático The Waves. Ficou ali apenas seis meses. O parque fechou, foi à falência. No seu lugar foi construído um supermercado Extra e, ao lado, pouco tempo depois, uma das maiores e mais sofi sticadas academias de gi-nástica, a caríssima Unysis. Depois, por intermediação do próprio pai, foi trabalhar também como offi ce-boy numa agência de emprego. Era a agência em que o pai trabalhava como motorista. Progrediu de offi ce-boy para auxiliar administrativo. Depois de dois anos, o serviço caiu, a empresa se afundou em difi culdades fi nan-ceiras e Maurício perde o emprego. Amarga dois anos de desemprego: inúmeras e persistentes tentativas sem sucesso. Quase sempre em lojas de shopping centers, algumas de grifes famosas: “eu queria trabalhar com público, é isso o que eu gosto e, daí, falei – vou me dar bem”. Fez entrevista na Ellus, marca conhecida de jeans, mas a concorrência era muito grande: sessenta pessoas para dez vagas – “todo mundo querendo entrar, pessoal que trabalha, pessoal que estava cursando faculdade, tinha até modelo, sabe?”. Não foi chamado. Continuou procurando por dois anos. Espalhava currículos por onde passava, quase se desesperou. A chance aparece quando uma vizinha o apresenta para a assessora de imprensa de dois cantores populares, famosos no mercado musical: o cantor pop Maurício Manieri e o “forrozeiro” Frank Aguiar. Quando o entrevistamos em 2001, fazia poucos meses que trabalhava lá como auxiliar de escritório. A empresa fi cava no Morumbi, na avenida Giovanni Gronchi. O seu trabalho era atender os tele-fonemas, cuidar das agendas, marcar entrevistas. Acompanhava alguns shows dos cantores pela cidade. Esse emprego jogou Maurício em um mundo social que seria inimaginável para seus pais. Vez por outra, acompanhava os shows, no Olympia, por exemplo, badalada e prestigiosa casa de espetáculos da cidade. Gostava do serviço que fazia:

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Gosto, é bom… Na quinta fui no Olympia, frequento camarins, essas coisas, é legal… viagem é só ela que faz, porque isso sai caro (hotel, avião, etc.), vou junto só quando é preciso. Quanto tiver uma turnê no Rio, vou também – só quando é cidade grande...

Maurício transitava pelo “circuito nobre” da cidade, entre Moema, Pinheiros e Vila Madalena, passando pelo centro e as danceterias conhecidas. Nesses lugares, ele assim dizia, há “tudo quanto é tipo de gente que você pode imaginar, desde garota de programa até milionário, porque fi ca tudo misturado... você nem sabe quem é a pessoa...”. Disse que começou a transitar pelos circuitos badalados da cidade ainda nos tempos em que trabalhava na agência de empregos: fez amigos, conheceu muita gente e, vez por outra, conseguia entrar de graça nas grandes casas de espetáculo da cidade, pelas mãos de “gente conhecida” lá de dentro. Além dos shopping centers, os bares e pontos de encontro no centro da cidade ou, então, nos agitadíssimos bairros de classe média: Moema e Vila Nova Conceição, Pinheiros e Vila Madalena. “Tenho amigos de São Paulo inteiro”, diz Maurício. É bem possível que o rapaz estivesse exagerando um tanto e carregasse nas tintas com que pintava sua experiência nas “baladas” da cidade. Mas, exagero ou não, o fato é que ele já estava mirando para outros lugares e de outros lugares. So-nhava em fazer uma “faculdade de comunicação” e encontrar o seu lugar nesses faiscantes circuitos dos modernos serviços da “cidade global”. Achava que tinha jeito e talento para isso.

Pode ser que nos anos que se seguiram à entrevista (2001), esse sonho dourado não tenha ido longe e que o rapaz tenha batido de frente com as regras mais do que excludentes dos modernos-moderníssimos circuitos globalizados. Porém, os lances da vida já confi guravam um outro jogo de referências e outros prismas pelos quais a cidade se lhe apresentava. Diferente da geração dos seus pais, que valorizam essa espécie de “mundo à mão” que a favela lhes oferece – a família que está por perto, os empregos ali do lado. Para Maurício, na favela tudo é longe e a periferia não tem nada: “na periferia não tem mesmo o que fazer... não tem nada por aqui perto, não tem de jeito nenhum... procura padaria, tem que andar 500 metros. Então é tudo longe, não tem nada... tem que andar bastante para fazer alguma coisa, tem que ir até o centro, tem que ir até a Vila Olímpia”. Os lugares são todos muito perigosos – “tem muita briga, às vezes até sai morte”. Além do mais, é tudo muito feio: “aqui não tem nada, não tem nem paisagem agradável para ver”.

Mas como é circular em Moema e morar aqui?

Você quer saber como eu me sinto quando eu volto para cá? Eu me sinto estra-nho, as pessoas me tratam também de um jeito diferente. Porque aqui as pessoas não tiveram muita oportunidade, tiveram muito menos do que eu, tiveram menos sorte do que eu. Minha mãe sempre foi diarista, meu pai sempre trabalhou, sempre tentaram dar o melhor pra gente; era escola pública, mas ele (o pai)

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incentivava, fi cava em cima. Comecei a trabalhar cedo, comecei a conhecer as pessoas, a aprender bastante. As pessoas aqui, a cultura para eles é nada... fazem curso até a 8a série e acham ótimo. As pessoas acham que tenho muito estudo... tem gente como eu, que estudou e começou a trabalhar desde cedo. Mas a maioria... quando eu digo “não vou nesse lugar porque não é legal”, eles dizem “ah, você é metido, pensa que é rico ...”. Daí foram se afastando.

Nair, 17 anos, prima de Maurício, tampouco tinha Cruzeiro como referência: falava da violência local, avaliava que o pessoal era grosso e mal-educado e, além do mais, achava que os jovens de sua idade pouco se esforçavam para melhorar de vida. Disse conhecer “a favela toda, todo mundo”, mas que não tinha amizade “para sair”. Acompanhava o primo nas baladas noturnas. “Quando eu saio”, diz Nair, “vou lá para o lado dos Jardins, o pessoal lá tem mais educação... não é essas coisas que a gente vê, desse monte de cara, um querendo ser mais homem do que outro”. Assim como Maurício, o mundo que Nair tinha em mira era muito diferente das referências de vida de seus pais.

O pai de Nair é operário metalúrgico. Como seus irmãos e tantos de seus vizinhos da favela, começou seu percurso fabril pela Monark, em 1978, logo que chegou a São Paulo, acompanhando a família. Dois anos depois, conheceu sua futura esposa, também operária da Monark. Ele trabalhava na linha de solda. Três anos depois, sua vista estava comprometida; pediu para ser transferido para outra seção, não foi atendido e achou melhor buscar outros rumos. Pediu para ser mandado embora, recebeu os direitos devidos e amargou oito meses de desemprego. Em 1982, estava trabalhando em uma outra metalúrgica da região. Foi mandado embora em uma onda de demissões. Em 1983, começou a trabalhar uma pequena metalúrgica na rua ao lado da favela. No momento em que o entrevistamos, ainda se mantinha no mesmo emprego, dezoito anos sem interrupções. Ainda nos tempos da Monark, em 1980, formou o time de futebol da favela Cruzeiro e, em 1982, foi eleito presidente do time, o “Clube Cruzeiro”, cargo que ocupou por 12 anos. Em 1983, já estava participando da associação de moradores como diretor esportivo e, dali para frente, continuou e persistiu no seu envolvimento com as melhorias da favela, com a promoção de seu time de futebol e, sobretudo, com a sua própria família.

Como seu pai, Nair é uma trabalhadora, muito jovem trabalhadora, já empe-nhada em construir o seu próprio lugar no mundo. Porém, as suas coordenadas desenhavam um outro universo de referência: o mercado de trabalho já não era o mesmo da época em que seus pais e tios se lançaram na vida. A cidade tampouco era a mesma. Nair começou a trabalhar muito cedo e seus percursos dizem algo dos novos circuitos dos empregos da região: em 1995, aos 11 anos de idade, trabalhava em uma pequena fi rma terceirizada que montava brinquedos para o McDonald’s. Várias meninas da favela Cruzeiro trabalhavam lá. Quem tocava o negócio era a tia de uma vizinha, na garagem de sua própria casa, em uma rua próxima à Rua Giovanni Gronchi, avenida que faz a ligação entre o pauperizado

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Jardim São Luís e o riquíssimo Morumbi. No seu entroncamento estão o Carrefour e, também, como é de esperar, a loja do McDonald’s.

Trabalhava nesse negócio e, nos fi ns de semana, distribuía folhetos de propa-ganda nas ruas. Em 1998, trabalhou seis meses numa empresa que monta canetas para propaganda: era ano eleitoral e havia muito serviço. Depois, em um período em que não conseguia emprego nenhum, resolveu montar, junto com a mãe, um negócio de revenda de roupas. Não deu muito certo. Em 2001, aos 17 anos, conseguiu, por indicação de uma amiga, emprego como atendente na Companhia Atlética, no Shopping Morumbi: lugar de ricos e famosos em busca de “saúde e boa forma”. Para ela, a boa sorte havia chegado. É de lá que Nair esperava alçar voo: estava apenas esperando chegar a maioridade para conseguir empregos mais promissores nas lojas desse luminoso circuito do consumo de alta renda. Apostava no apoio que acreditava que haveria de receber do gerente – “ele gostou do meu trabalho”. E também dos “conhecimentos” que fez de pessoas que trabalhavam como vendedores em lojas de marca nos shopping centers. Nair também pensava em seu futuro: queria aprender inglês, fazer um curso de enfermagem, juntar algum dinheiro nessa profi ssão para então realizar o sonho de uma faculdade de fi sioterapia. Enquanto esperava a boa sorte, Nair acompanhava o primo Maurício em suas andanças pela cidade, entre shopping centers e os bares da Vila Madalena, Pinheiros e Moema.

Os dois primos tinham em mira outros horizontes. Isso não signifi cava a recusa da sociabilidade local. Na verdade, entre os circuitos ampliados da cidade e o mundo local da favela não há propriamente oposição. Coexistem tempos, circuitos e redes distintas dentro do mesmo espaço. São mundos diferentes, mas o domínio dos dois códigos não é excludente e eles transitavam entre um e outro com desen-voltura. Assim, Nair, tão crítica em relação aos seus jovens vizinhos, não deixava de notar seus vínculos locais: as pessoas são solidárias, dizia, “quando tem um problema todos tentam ajudar”. Além do mais, “todo mundo que mora aqui, as minhas amigas cresceram junto comigo, a gente brincou junto, gosto das pessoas... desde quando nasci eu moro aqui, então já acostumei com o pessoal daqui”.

Maurício também dizia ser difícil sair dali, valorizava a família e o apoio que sempre recebera dos pais. Para ele, a sua “boa sorte” não veio por acaso. Falava com admiração do pai, que sempre trabalhou e valorizava a perseverança no trabalho, e da mãe, que batalhou a vida inteira. Além do mais, dizia Maurício, ele se empenhava e se esforçava em melhorar de vida: com o segundo grau completo, queria continuar os estudos; nunca vacilou na procura do emprego e tentava tirar o melhor de si para encontrar um lugar na vida. Enfi m, Maurício é um empreendedor, aliás, como sua prima Nair. É assim que ele se enxergava (e ela também). E, para ambos, é esse o crivo que faz a diferença em relação aos seus amigos de infância e vizinhos. “Também tem gente como eu”, dizia Maurício, “gente que batalha e quer mudar de vida”. Porém, avaliava: “a maioria fi ca onde está, vai se acomodando, não quer saber de nada, não tenta outros voos para suas vidas” e vai se enredando pelos caminhos tortos da vida. Essa é uma clivagem

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complicada, bem sabemos. O ethos empreendedor do individualismo mercantil está todo cifrado aí, também sabemos. Mas é nesse código que ele formulava as esperanças de construir uma vida plausível. É nessa clivagem que está o nervo (um deles) exposto do mundo.

Maurício é um personagem que esclarece algo sobre o modo como a dobra-dura entre os mundos é feita, entre a materialidade da cidade e seus circuitos e a natureza das conexões (e dos conectores) que operam esse jogo de acessos e bloqueios. É aí, nessas dobraduras, que se desenha o drama social. O problema não é bem morar em favela. Maurício tampouco via nisso um obstáculo para entrar nos “circuitos modernos” onde transitava, ou para seguir uma carreira na “área de comunicação”, como ele dizia. No mínimo, isso nos obriga a usar de toda cautela quando lançamos mão das noções em voga de exclusão social. Não se trata de negar ou relativizar o drama social. Mas de tentar defi nir melhor o campo ou o plano em que o problema pode ser confi gurado. Há sempre passagens que podem ser percorridas. Talvez o problema esteja nessas passagens, nos acessos modulados que elas permitem e nos seus bloqueios. Talvez o problema esteja também no modo como as referências, trabalho, moradia e sociabilidade vão se compondo (ou decompondo) na confi guração dos mundos sociais.

Esses jovens personagens, terceira geração da família de Seu Genésio e Dona Francisca, estavam encontrando passagens para o mercado de trabalho, por mais que estas fossem incertas e não necessariamente promissoras. De toda forma, estavam indo. Não é o caso de muitos de seus vizinhos, talvez a maioria deles. Mas por isso mesmo os seus percursos nos ajudam a compor o quadro das com-plicações atuais: o mundo dos serviços e seus circuitos modernos, verdadeiro campo de gravitação (referências, possibilidades, também os bloqueios) em um cenário de encolhimento dos empregos e de trabalho precário.

O trabalhador precário: no circuito fechado das agências de trabalho temporário

Os percursos desses jovens encantados com os circuitos faiscantes da “cida-de global” têm que ser confrontados com outros, com os circuitos desenhados nas franjas da cidade global, que se alimentam da riqueza que aí circula sem conseguir romper o círculo de ferro do trabalho precário. Assim, a história de Jorge, 31 anos, o fi lho mais novo do patriarca Genésio e tio, portanto, dos jovens empreendedores.

O rapaz tem uma história em tudo e por tudo diferente dos irmãos mais ve-lhos. Tem uma trajetória ocupacional errática, não consegue se estabelecer nos empregos e vai seguindo os anos entre períodos de trabalho precário e desem-prego. Começou a trabalhar cedo, aos 13 ou 14 anos, num ferro velho próximo à favela Cruzeiro. Também trabalhou como “catador de bolinha” nas quadras de tênis do Clube Esportivo do Banco do Brasil, ao lado da favela. O emprego mais estável que conseguira foi em uma empresa que fazia tabuleiros e barracas para

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os feirantes da região. Tinha 17 anos e fora registrado em carteira de trabalho quando chegara aos 18 anos. Ao todo, fi cara ali por cinco anos. Aos 23 anos resolveu tentar suas chances, queria trabalhar em empresas metalúrgicas. Era o ano de 1993. Jorge entra no mercado de trabalho num momento em que as coisas já tinham mudado muito. Impossível reproduzir a estável trajetória de trabalho de seus irmãos. Nos anos que se seguiram, Jorge transitou por uma sucessão de trabalhos temporários. Não conseguiu se estabelecer em nenhum lugar. No máximo, por um ano e meio em uma pequena metalúrgica nas proximidades. Depois, não mais do que alguns meses em uma empresa ou outra.

O único traço de continuidade em sua história ocupacional era a intermedia-ção das agências de emprego temporário. Sem agências, “nem adianta insistir”, dizia Jorge. E o único traço comum com seus irmãos mais velhos é a circulação pelo que poderíamos chamar de mercado local. Se no caso dos outros esse raio de circunferência dos empregos foi, em grande parte, demarcado pelas redes sociais por onde circulavam informações, no caso de Jorge a coisa era diferente. Os mais velhos entraram e se estabeleceram no mercado de trabalho em tempos de “emprego farto”. No caso de Maurício, os tempos são outros e a entrada no mercado se faz em boa medida pela intermediação das agências. A primazia do mercado local é imposta pelas próprias agências? Essa é a avaliação do próprio Jorge: as empresas não aceitam quem mora mais longe, pois isso as levaria a um maior ônus legal e obrigatório (vale-transporte) para cobrir despesas com transportes.

As empresas só pegam gente da redondeza?

Diz Jorge: É, na redondeza, que nem em Santo Amaro, tinha uma agência que tava dando... tinha uma fi rma aqui... acho que perto da Cidade Dutra, mas já tava dando preferência pra quem mora mais no local, porque... não quer pagar condução...

[...] eles pagam duas condução, mais de duas eles, não... se você quiser, você tem que pagar do seu bolso. Aí já fi ca complicado, porque o salário é mixaria.

[...] Às vezes a agência dá condução... tudo é a agência que dá... tem fi rma que quer mais gente da redondeza, que nem... tem um mercado aqui na Raposo Tavares, tem duzentas vagas lá... o cara fi ca lá, você conversa, nem adianta você conversar porque eles quer mais pessoas da redondeza mesmo, nem adianta ir lá. Eu mesmo, eu outro dia fui numa agência, tinha uma fi rma aqui no Taboão, a mulher falou: “Você mora onde?”. Eu falei que morava aqui na Estrada de Itapecerica; ela falou: “Ah, pra você já não serve, o pessoal quer gente lá da redondeza mesmo, porque eles não pagam condução”... e não davam benefício nenhum, não davam cesta básica, não davam vale-transporte, e ainda por cima a pessoa tinha que levar marmita...

É verdade que alguns furam o cerco e conseguem emprego. Mas, então, en-tram em um circuito fechado, muito difícil de ser rompido. Assim aconteceu com

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Marcelo, 22 anos, que morava em um bairro ao lado, quase encostado à favela Cruzeiro. Tinha o secundário completo, fi zera curso de informática, um outro curso com o indefi nível nome de “técnicas comerciais” e estava sempre atento a outros tantos que lhe surgissem pela frente. Conseguiu um emprego de caixa no Carre-four. Um trabalho temporário. Até que se saiu bem e conseguiu ser contratado. Mas ponderava, com razão, que caixa de supermercado não é futuro e nem dá futuro para ninguém. No máximo, de caixa a repositor de estoques. Mário espe-rava mais da vida. Foi demitido e se lançou novamente no mercado de trabalho. Porém, como ele dizia, a sua fi cha já estava marcada: uma vez em supermercado, sempre em supermercado – “no que você coloca a experiência de supermercado no currículo, um American Express, uma Xerox, uma fi rma não vai te chamar, o cara da empresa vai te olhar e vai falar, o cara é supermercado, vai trabalhar em supermercado”. Tentou por todos os meios disponíveis outras entradas no mercado de trabalho: apelo a amigos e conhecidos, curricula vitae espalhados por todos os cantos. A resposta era sempre a mesma: as empresas não contratam ninguém a não ser pela intermediação das agências, agências de emprego e agências de trabalho temporário. Depois de algum tempo, foi chamado para trabalhar no Extra (hipermercado, ao lado do Carrefour). “Caí na real”, disse Marcelo, “não tem jeito”, ou isso ou, então, o desemprego. Aceitou o emprego. Quando o encontramos (em 2001), já havia sido promovido a repositor de estoques.

Voltando a Jorge, as luzes faiscantes dos serviços globalizados não faziam parte das suas cogitações. Com seus 30 anos, seus percursos no mundo urbano foram diferentes daqueles dos seus muito jovens sobrinhos. Circulou, sim, pela cidade, mas para comprar discos e CDs nas lojas que se concentram em duas ou três galerias do centro, ponto de encontro das “tribos urbanas” afi cionadas do rap e do hip-hop. Era lá que ele se abastecia para movimentar um animadíssimo grupo de som que formou com amigos nos anos fi nais da década de 1980. Ani-mavam festas particulares no entorno, também em bares da região. Com o tempo, o grupo se desfez. Os bares fecharam as portas e a clientela foi sumindo. Parte dos membros do grupo também sumiu – alguns foram mortos, outros fugiram: “[...] acabou, não tem mais nada... aqui, mataram o colega nosso aí mesmo... aí, acabou com tudo, né, não tem mais nada...”.

Maurício é fi gura de passagem entre as gerações dos irmãos e dos sobrinhos. Mas, então, vale re-situar as referências: Maurício entrou na vida adulta (anos 90) em um mundo já revirado. Viveu a virada dos tempos também pelo outro lado, o da violência que foi, pouco a pouco, dizimando seus amigos e que terminou com o grupo de som que acompanhou por sete anos de sua história recente. Além do grupo de som, também um muito ativo grupo de pagode. O grupo tocava num posto de gasolina na estrada de Itapecerica da Serra e, também, em alguns clu-bes da zona leste da cidade. Chegou a tocar até mesmo em cidades do interior e no litoral paulista. Mas o tempo fechou. Ao lado do posto, os donos de uma padaria, de uma pizzaria e de um restaurante Frango Frito pressionaram para acabar com a festa. Talvez a concorrência, pois as pessoas preferiam a animação

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do pagode. Mas há também histórias confusas de batidas policiais e gente que foi pega com droga, um outro que estava armado. Há relatos de denúncias feitas pelos comerciantes do entorno de que o lugar estaria se tornando um ponto de distribuição de drogas. Em 1997, o grupo de pagode terminou. A violência que começou a campear na região, assim nos foi contado, terminou por assustar as pessoas. Preferiam lugares fechados, mais seguros, como os karaokês que existem nas avenidas que cortam a região. Ao que parece, parte do pessoal do pagode terminou por se enroscar nos caminhos da droga e da criminalidade violenta. As histórias que Genalto (20 anos), vizinho do patriarca Genésio, conta são confusas, talvez haja um bocado de exagero e um outro tanto de fi cção. É preciso tomá-las com precaução. Porém, verdade ou fi cção, traçam as referências que compunham o cenário social, tal como este se confi gurou no fi nal dos anos 1990:

[...] Tocava, tocava eu e (cita o nome de quatro colegas)... Ia bastante gente, aí, de um tempo para cá, os cara que tocavam com a gente começaram a entrar em ideia errada, o outro lá começou a roubar, tomou um tiro na boca e tá preso, ele e o primo dele – roubavam banco mesmo, aí um dia resolveu roubar aí na boca da favela um carro (de entrega) da Souza Cruz (empresa de cigarros). Aí, a casa caiu, foi preso, levou um tiro na boca [...] O outro morreu, ele tava nessas aí, mas ele morreu na boca da favela, do outro lado, na entrada de lá, de treta com os cara, os cara ainda avisaram pra ele “sai fora que os cara vão te matar”, “mata nada”; aí, no outro dia os cara mataram ele – os caras ainda avisaram... ele não acreditava, foi até na quermesse que tava tendo na rua de lá, quando ele desceu, os cara meteu o sangue nele e no irmão dele... Acabou o grupo por causa disso, não dava certo. Ainda tentamos fazer um grupo com os cara daqui de cima, mas não deu certo...

As quermesses e as festas juninas, que haviam sido também animadas e famosas, atraindo gente dos bairros contíguos, também deixaram de acontecer. Eram festas organizadas pela Igreja. Foram se acabando. Por causa da violência, assim disseram. O pessoal fi cava com medo, avaliam. Histórias de gente que foi morta durante a festa (acerto de contas). As festas acabaram, o grupo de pagode se desfez, o grupo de som também. A diversão dos outros tempos acabou e a molecada de hoje em dia, dizia Jorge, não quer mais saber de futebol, só quer mesmo ter uma motinha:

[...] o pessoal que a gente andava antigamente mesmo, a gente era muito unido, hoje em dia você não vê a molecada, hoje em dia a molecada é... mais andar de motinha, isso e aquilo, quer mais saber de moto, isso e aquilo... na nossa época, mesmo quando a gente era mais adolescente, era tudo diferente, tinha campo, a gente gostava de jogar bola, as molecada hoje em dia nem isso liga. [...] É, antigamente na nossa época era muito difícil da gente ter uma motinha, hoje em dia é fácil, hoje você com mil reais você compra uma moto aí, uma moto.

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E para piorar as coisas, não dá mais para voltar tarde da noite para casa. A violência é muita, é tudo muito perigoso:

Naquela época era melhor pra se divertir do que hoje. Porque você podia sair, vamos supor, nove horas, chegar meia noite, uma hora que ninguém mexia com você. Hoje não, se você sai, vamos supor, dez horas da noite, você tem que esperar o dia amanhecer pra você poder vir embora, você não sabe se você vem ou não porque... é muita violência, hoje em dia aí é muito neguinho que anda drogado. Naquela época não, a pessoa ia com intenção de curtir mesmo.

Enfi m, Jorge também “contrariou a estatística”, para evocar o trecho da música dos Racionais MC’s, grupo rap que é uma referência importante nas periferias da cidade e certamente um polo de identifi cação para Jorge, como para tantos outros.

O segurança: nos circuitos da segurança privada, onde todos os fi os se cruzam

Passagem por passagem, nada mais reveladora que aquela realizada por Ge-raldo, 27 anos, segurança em um hotel cinco estrelas na Avenida Luiz Carlos Berrini, coração globalizado da cidade, polo de irradiação do chamado terciário moderno de última geração. Geraldo é o fi lho mais velho do Xerife. Se Lino, o Xerife, deixou-se enredar na vida local da favela, entre expedientes obscuros da vida e as malhas do clientelismo local ao velho estilo, Geraldo aprendeu muito bem a transitar pelos circuitos modernos do mundo social. Como os jovens empre-endedores seus vizinhos, sabia fazer as passagens entre o mundo da favela e os circuitos da “cidade global”. Porém, não deixa de ser curioso notar: um percurso inteiramente enredado nessa nebulosa de relações duvidosas e obscuras tramadas em torno do Xerife, mas que se desdobrava na muito prestigiada atividade de segurança privada nos circuitos nobres da “cidade global”.

Ele começou a trabalhar aos 19 anos. Era o ano de 1993: trabalhou como garçom em um fl at, em Moema. Ficou apenas três meses. Depois, trabalhou por um ano em uma das pequenas fábricas ao lado da favela. Por intermédio de um amigo, conseguiu emprego de fi scal em lojas e circulou em algumas das impor-tantes lojas de departamento e shopping centers da cidade. O trabalho o lançou pelos luminosos circuitos dos serviços modernos. Porém, era um trabalho instável, Geraldo não conseguia se fi xar em canto algum:

[...] eu circulava em vários shoppings; quando cansava de fi car em um, ia pra outra, eu trabalhei cinco meses na Besni, trabalhei uns 4 meses na 24 de Maio, trabalhei um longo tempo na Besni do Jabaquara, depois fui pra C&A; fi z a C&A da 24 de maio, fi quei uns 5 meses, nesta empresa eu fi quei um ano e cinco meses, depois eu fui pra C&A do Interlagos (Shopping).

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A grande virada de sua vida foi o curso de segurança que fez em 1997. O curso para vigilante é intenso: além de defesa pessoal, manuseio de armas, de-fesa pessoal e primeiros socorros, contempla aulas de direitos humanos. É uma profi ssão muito regulada e fi scalizada pela Polícia Federal: além de atestado de antecedentes criminais, sempre reatualizado, é obrigatória a realização de cursos de reciclagem a cada dois anos.9 Através desse curso, Geraldo mudou de patamar: entrou no circuito nobre da segurança privada. Apesar de ser este um emprego muito instável (em geral, está sujeito a todas as inseguranças e também irregularidades das redes de subcontratação) e muitas vezes exaustivo (Geraldo tem que fi car de pé o tempo todo e, além do mais, se mostrar prestativo e gentil com os endinheirados clientes), Geraldo está encontrando aí uma chance de es-capar da viração de todos os dias de muitos de seus vizinhos. Está no “mercado formal”, é um emprego hiper-regulado (pela Polícia Federal) e o trabalho o lança nos luminosos circuitos dos serviços modernos.

Como pudemos fl agrar em outros lugares, o emprego de segurança era vis-to como muito promissor. Como nos disse um jovem, também segurança, que morava no também pauperizado e muito mal-afamado vizinho Parque Santo Antônio, bairro conhecido por seus altíssimos índices de morte violenta, este é “um emprego certo, tem mercado garantido”! Sivaldo, 28 anos, casado, dois fi lhos, também fez um curso de segurança credenciado e regulado pela Policia Federal. Já prestou serviços em agências de alguns dos mais importantes bancos brasileiros, também em lojas dos shopping centers mais sofi sticados do rico e globalizado quadrante sudoeste da cidade. A empresa de segurança para a qual trabalhava não teve seus contratos renovados. Ele perdeu o emprego, mas não fi cou muito tempo parado. Quando o entrevistamos (em 2002), trabalhava em uma empresa que prestava serviços em bingos e casas noturnas. Sivaldo não soube explicar muito bem o estatuto dessa empresa, era muito pouco claro o modo como os serviços eram contratados e remunerados. Muito provavelmente a empresa compunha esse universo amplo e também expansivo, senão dos serviços clandestinos, desses que transitam nas fronteiras incertas do legal e ilegal por conta de expedientes diversos para escapar das regulações ofi ciais que vigoram nos serviços de segurança (cf. Caldeira, 2000).

Sivaldo morava em um Cingapura, conjunto habitacional construído na gestão Maluf na prefeitura de São Paulo, no lugar onde antes existia uma imensa favela que então ocupava parte considerável da paisagem pauperizada do Parque Santo Antônio. Portanto, como Geraldo, Sivaldo nasceu e cresceu em uma favela. Sua família e vizinhos foram desalojados e depois transferidos para o Cingapura, por volta de 1996. Sivaldo começou a trabalhar muito cedo, aos 14 anos. Já havia sido offi ce-boy, ajudante em barraca de feira e nos mercadinhos locais, coletor de lixo, trabalhou em lava-rápido, montara junto com amigos um bar e, depois,

9 Para uma descrição detalhada dos serviços de segurança e seus procedimentos de recru-tamento e treinamento, ver Cubas (2005).

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uma barraca de pastéis, e ainda havia sido cobrador em peruas clandestinas – foi um “bico”, diz ele, que arrumou entre os amigos perueiros, seus vizinhos no Parque Santo Antônio. Não fi cou muito tempo nessa atividade. A perua em que trabalhava foi assaltada, ele achou que o negócio era muito perigoso e queria coisa melhor da vida. Tinha então 23 anos e vendeu o carro que possuía para pagar as mensalidades de curso de segurança. É nesse ramo que pretendia se fi xar e progredir na vida. Perguntamos: Como foi que resolveu ser segurança?

Ah, eu tinha uma vontade de ser segurança, já uma vontade própria, e também pelo fato de ser a área na qual você não fi ca desempregado, é a única. Você se especializa nisso... é o mais viável; onde você for, tem emprego.

Como tantos outros de sua geração, falar dos amigos é fazer a contabilidade das mortes. Dos tempos de infância e adolescência, disse ele, “só salvou dois ou três”. Os outros foram mortos, foram executados ou, então, sumiram pelos caminhos tortos da vida. Sivaldo conhece bem as coisas da vida e talvez seja isso que lhe permitia um notável distanciamento crítico dessa sua “promissora” atividade. É perigoso, dizia Sivaldo. Não apenas porque se está exposto aos riscos próprios da profi ssão. Mas também porque, “do lado de cá”, a coisa não é fácil. Os seguranças são pressionados pela bandidagem, ele nos disse: recebem ofertas de dinheiro, de proteção e a promessas de uma porcentagem na “fi ta”. Um jogo pesado de pressão para que forneçam o “mapa da mina”:

[Eles querem saber tudo] [...] todas as dicas, onde estão as falhas, em que po-sição fi ca cada um, que arma cada um usa, quem é o gerente, onde ele mora, telefone, o percurso dele, quem fi ca nos caixas, quantos vigilantes fi cam na portaria, como que você vai poder falsifi car para facilitar a entrada.

[...] Então como é que fi ca? Tem vigilante que está precisando de dinheiro, que está desesperado, daí eles vão lá, fazem uma reunião na casa do “grandão” lá, passa tudo, eles analisam, fazem uma segunda, terceira reunião, uma quarta e quando eles se sentem preparados, eles falam – vai ser tal dia, está tudo certinho.

E Sivaldo ainda comenta:

Então, na verdade, os caras estão gastando uma puta grana para se proteger e, na verdade, estão dando as dicas do caminho das pedras, do caminho na mina. É isso, é isso porque o dinheiro é a maldição do mundo, porque o ele sabe que pode conseguir mais, ele prefere o dinheiro mais do que a integridade dele ali... acha que, com o dinheiro no bolso, ele é o dono do mundo e acaba perdendo sua integridade ....

Mas, ele avaliava, o esquema de segurança nos bancos, prédios de escritório e nos shopping centers mais ricos e prestigiosos da cidade estava muito sofi sticado

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e poderoso. A entrada nesses domínios havia fi cado muito difícil. Os fl uxos do crime deslocaram-se para os lados mais próximos da periferia pobre da cidade: caixas eletrônicos, supermercados, comércio local ou então os bingos e casas noturnas que se espalham pelas avenidas que cortam esses pedaços periféricos da cidade. Sivaldo sabia do que está falando:

[...] para morrer basta estar vivo, não interessa se trabalha de segurança, seja onde for, tanto na perua quanto lá no bingo. Que nem, geralmente, quem conhece, quem nasceu e cresceu na periferia, sabe que no fi nal do ano são os alvos do crime organizado, para passar um fi nal de ano bom, né? Existe isso. Eles se distanciaram da área bancária, que eu trabalhei na área bancária, eles se distanciaram pelo fato da área bancária estar com uma segurança ótima... então, eles tem que correr para outra coisa. No bingo, eu já soube de fatos... é um alvo, rola muito dinheiro, então é um alvo. Então, nós estamos lá para... não vou dizer para bater de frente com eles, porque eu tenho família, os outros têm família e mesmo no aprendizado do dia a dia na academia a gente aprende que não há necessidade da reação, nós temos que prever antes do acontecimento. Se eles estiverem lá dentro, não há como reagir, é só pegar e pedir a Deus...

Os seguranças privados são personagens inescapáveis de “cidade dos muros” de que fala Teresa Caldeira (2000), fazem parte dos dispositivos de privatização dos espaços públicos (e da cidade), ao mesmo tempo em que são mobilizados em um mercado expansivo, também globalizado, que faz da segurança uma merca-doria vendida sob formas cada vez mais sofi sticadas e variadas. Em torno deles, todos os fi os se cruzam: o mercado, as fortalezas globalizadas da cidade, os cir-cuitos faiscantes dos modernos equipamentos de consumo, também as fronteiras incertas entre o legal e ilegal, lícito e ilícito Também o seu transbordamento para as periferias da cidade: o moderno-moderníssimo trabalho precário, as redes de subcontratação e essa indiferenciação entre o formal e informal, o legal e ilegal que vai seguindo as linhas que fazem as tramas da cidade. O que os nossos per-sonagens aqui nos descrevem e nos fazem ver, em seus percursos, é que essas linhas perpassam as fortalezas globalizadas da cidade, transbordam seus muros ou vazam pelos poros desses muros e, tal como outros tantos fl uxos urbanos, vão também redesenhando os territórios e seus circuitos. Modo muito peculiar pelo qual se estabelece a relação entre trabalho e cidade pelas vias de uma cadeia de mediações e conexões nas quais estão cifradas todas as facetas do mundo urbano atual. Não é preciso lançar mão de nenhum argumento miserabilista para se ter uma medida da tragédia que se constela no mundo...

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SEGUNDA PARTE

Deslocando o ponto da crítica

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CAPÍTULO 4

Tramas da cidade: fronteiras incertas do informal, ilegal, ilícito

Com quais parâmetros colocar em perspectiva e sob perspectiva crítica os ordenamentos sociais urdidos nos últimos anos, na virada dos tempos? Essa é a pergunta que pautou, em grande medida, as questões trabalhadas nos capítulos anteriores. Agora, talvez seja o momento de relançá-la para especifi car melhor as questões em pauta, desdobrar consequências e, sobretudo, defi nir o crivo pelo qual se propõe a descrição das tramas urbanas – a cidade e suas questões. Este capítulo, na verdade, opera como ponto de passagem entre o trabalho exploratório da primeira parte e, na sequência, na segunda parte, também uma experimenta-ção, porém em torno de um foco mais preciso, pertinente à teia dos ilegalismos, velhos, novos ou redefi nidos, tal como vieram se conjugando no correr dos últimos anos. Em um primeiro momento, achados de pesquisa que foram preenchendo nossos diários de campo, conforme prosseguíamos a prospecção das tramas da cidade, seguindo as pistas que nos eram entregues pelas trajetórias urbanas e seus territórios, para evocar questões tratadas no capítulo 2. Agora, nas páginas que seguem, um esforço no sentido de formular as questões teóricas e empíricas que esses ilegalismos sugerem, questões de pesquisa que serão trabalhadas, na última parte deste capítulo, em três cenas descritivas, micro-cenas que lançam as pistas que serão perseguidas nos dois últimos capítulos.

Parâmetro descritivo, parâmetro crítico: afi nal do que se trata? Não se está aqui sinalizando um problema de ordem metodológica ou tão simplesmente a exigência de rigor em uma descrição bem feita da ordem das coisas. A questão coloca-se em outro patamar. Trata-se de uma indagação sobre o jogo de referên-cias que permitam traçar o plano em que os problemas se colocam: o plano em que os problemas podem ser formulados e lançados como questões orientadoras em uma necessária prospecção do mundo social que vem se desenhando nos últimos tempos.

É uma questão que se arma a partir das anotações de pesquisa que vieram se acumulando ao longo de muitos anos de andanças pelas periferias da cidade. Parte delas foi trabalhada nos capítulos anteriores. Outras serão tratadas neste e nos próximos. Mas é também uma inquietação que acolhe a questão que Francisco de Oliveira (2007) nos propõe quando decifra os sentidos da implosão da política e de suas mediações sob a lógica da autonomização dos mercados e fi nanceiriza-ção da economia. A “política numa era de indeterminação” é a expressão forte que traduz esse estado de coisas e o “Estado de exceção”, a categoria analítica que acusa o esfacelamento da política agora transformada na administração das

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urgências: um permanente estado de urgência que derroga as regras dos direitos, implode os contratos, desestabiliza os acordos e, sobretudo, desativa o espaço da política, já que o movimento dos atores perde qualquer previsibilidade em um cenário em que tudo transita para além de qualquer medida que, justamente, deixou de existir. Na formulação precisa de Laymert Garcia dos Santos (2007), em seus comentários aos textos de Francisco de Oliveira, a noção de “exceção permanente”, de evidentes ressonâncias benjaminianas, aparece como categoria política para caracterizar uma situação em que a política foi implodida por todos os lados, deslizando para a gestão das urgências combinada com formas renova-das de coerção. Não é o caso aqui de reconstituir os argumentos de Francisco de Oliveira. Mas, sim, de enfatizar que a potência crítica da questão lançada está no crivo pelo qual situa o ponto de virada dos tempos que correm, colocando-se em fi na sintonia com os problemas de nossa atualidade. Isso tem consequências que ainda será preciso aquilatar. Pois é questão que nos obriga a um deslocamento do ponto da crítica, isto é: deslocamento do plano de referência para que a refl exão critica possa ser exercida. Em outras palavras, a exigência de um outro jogo de referências para descrever nossa atualidade, que permita prospectar as linhas de força pelas quais o estado de coisas atual se confi gura e se transforma, os pontos de fricção dos ordenamentos sociais que vêm se desenhando ou já se constelaram nessa virada dos tempos.

Simplifi cando muitíssimo, trata-se de um deslocamento do terreno em que nos acostumamos a tematizar as “incompletudes” da sociedade brasileira, esse terreno no qual fazia sentido a proposição habermesiana das chamadas promessas não realizadas da modernidade. Nesse terreno, terreno da afi rmação do espaço público democrático e dos direitos em sua vocação universalizante, é que faz (ou fazia) sentido a discussão sobre exclusão social e a promessa de um alargamento do espaço democrático para nele incluir os que dele foram privados.

Em outras palavras: leis e direitos, espaços públicos e democracia defi niam um espaço conceitual a partir do qual os problemas eram defi nidos, as questões eram formuladas, os devires eram diagnosticados e os horizontes de possíveis eram delineados em seus bloqueios e também em suas promessas. Nos anos 1980, como tantos outros leitores de Hannah Arendt e Claude Lefort, estávamos investidos das promessas democráticas que os tempos nos abriam, tratávamos de prospec-tar a força mobilizadora da “linguagem dos direitos” e de trabalhar os sinais de sua potência histórica percebida nos termos de uma sempre renovada “invenção democrática”, para lembrar aqui o título do então famoso (e hoje esquecido) livro de Lefort (1981), um livro que marcou época e deu a pauta para boa parte dos debates que se seguiram naqueles anos. Pois bem, vinte anos depois, no lugar de Claude Lefort é Giorgio Agamben (2001), aliás também fi lósofo, que parece dar a pauta, acusando a virada dos tempos ao lançar um crivo que permite descrever a modernidade – e a nossa atualidade – sob outro jogo de referência.

Estado de exceção e vida nua são noções que compõem um espaço conceitual que circunscreve outra ordem de problemas, mobiliza outras categorias e outras

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referências, joga com outra série de determinações do estado de coisas que con-formam nossa atualidade. Perscrutando o mundo que veio se desenhando desde as décadas fi nais do século XX, Agamben oferece um princípio de inteligibilidade para a chamada crise dos Estados nacionais, a erosão de suas regulações e de seu ordenamento jurídico. É nesse sentido que ele recupera as refl exões de Hannah Arendt (1989) e desdobra suas consequências para o cenário contemporâneo, cinquenta anos depois de ela ter lançado a discussão sobre a “crise do Estado-nação e o fi m dos direitos humanos”: a fi gura que dá a cifra para o entendimento do cenário atual são justamente os refugiados e deslocados em suas múltiplas e proliferantes versões contemporâneas, concentrados nos inúmeros campos de confi namento em várias regiões do planeta e nas bordas das grandes cidades dos países do dito Primeiro Mundo e de todas as outras, em torno dos quais é acionada a lógica das urgências que combina ajuda humanitária e legislação de exceção que, após o 11 de Setembro, ganha a força dos fatos num mundo em que a “exceção se tornou a regra”.

É bem verdade que as relações entre vida nua e poder soberano, entre vida e política, relações que estão no núcleo da construção teórica do fi lósofo, é matéria sujeita a polêmica e envolve uma discussão que vai além do que se pretende aqui fazer. Para a discussão que aqui nos interessa, o que importa é apenas demarcar esse deslocamento do jogo de referência que nos é proposto. Entre Claude Lefort e Giorgio Agamben há mais do que os ventos mutantes dos modismos intelectuais. Há de se refl etir sobre o que se passa entre os dois registros, pois aqui se tem justamente um via para se pensar sobre o que acontece nas dobras desse abalo dos andaimes do mundo sobre o qual nos acostumamos a pensar.

Pois entre um e outro, ou seja, nos vinte anos que separam os dois registros do debate, as noções de leis, direitos, cidadania e espaço público foram esva-ziadas de sua potência crítica. Melhor dizendo: foi esvaziado o espaço concei-tual em que essas noções se compunham e se articulavam em diálogo com as questões que os tempos colocavam e a brecha de futuro que os acontecimentos permitiam vislumbrar e nomear. No correr dos anos 1980, era um debate de múltiplas entradas, mas que construía o solo no qual circulavam as noções de direitos, de cidadania, de espaço público e democracia. Questões inscritas no campo de debate rapidamente inventariado nas primeiras páginas do primeiro capítulo. Naqueles anos, as promessas de uma cidadania ampliada desenhavam algo como uma cartografi a de questões e inquietações, sempre polissêmicas e sempre polêmicas, que conferiam sentido e inteligibilidade aos acontecimentos de um presente vivido, e assim fi gurado, no tensionamento entre o legado de uma história autoritária e excludente e os campos de possíveis que se descortinavam na dinâmica dos confl itos sociais que então se abriam por todos os lados. Talvez seja isso que esclareça o sentido polêmico e crítico das noções de direito e de cidadania na medida em que compunham uma linguagem política que balizava os critérios pelos quais as “misérias do mundo” eram problematizadas e avalia-das nas suas exigências de equidade e justiça. Linguagem política que defi nia a

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gramática do campo dos confl itos que se armava na cena pública brasileira, as noções de direitos e cidadania também se confi guravam como referência pela qual se colocava em perspectiva a história passada e as possibilidades de superação do que então era percebido como entraves e obstruções para a incorporação das maiorias a uma cidadania ampliada.

Desativado o plano de consistência em que essas noções circulavam e fi ncavam seus pontos de referência, elas fi cam desprovidas da potência de se confrontar com uma realidade que escapa e transborda por todos os lados. Disso temos vários registros.

De um lado, tomando a questão sob o ponto de vista formal-político, a defesa do Estado de direito e da democracia não mais especifi ca e diferencia posições. Os dispositivos de exceção instalaram-se no interior da normalidade democrática e, não poucas vezes, é em nome da defesa da democracia e dos direitos que esses dispositivos são acionados no combate aos que são vistos (e assim objetivados, também tipifi cados) como ameaça à sociedade, ao Estado, aos cidadãos. Retomo e desdobro aqui uma questão já enunciada no primeiro capítulo. Como tem sido notado por vários analistas, os dispositivos de exceção começaram a se proliferar no interior do Estado de Direito, já no correr dos anos 1980, talvez um pouco antes (cf. Ost, 1999). Ganharam novas e mais explícitas confi gurações conforme se desenharam as fi guras do “inimigo” a ser combatido, o assim chamado “Crime Organizado” no correr dos anos 1990 (cf. Godefroy, 2007), o “terrorismo” após o 11 de Setembro de 2001,1 dando ressonância a propostas e mudanças introduzidas no ordenamento jurídico de diversos países e que, em nome dos imperativos da segurança, restringem direitos individuais e fazem os dispositivos de exceção se instalarem no interior dos procedimentos formais do ordenamento jurídico dos países. Como bem notam Marta Machado e José Rodrigues (2009: 9), hoje, não há quem se ponha contra o Estado do direito e democracia, em abstrato todos o defendem, sem que isso impeça que muitos estejam “prontos a admitir que o Estado possa grampear telefones sem controle judicial, revistar cidadãos e residências em qualquer circunstância, entre outras ações que restringem ou mesmo suprimem direitos e liberdades”. É na “minúcia institucional” que os dispositivos de exceção se instalam, dizem os autores. Em nome do Estado do direito e da democracia (ou em nome de uma sua defesa abstrata) são mobilizados os imperativos de segurança que acionam mudanças no direito penal as quais tendem a se converter em “mero instrumento de prevenção policial”, tendo em foco não tanto um evento delituoso, mas condutas consideradas perigosas. É um cenário que dá ressonância ao chamado “direito penal para os inimigos”. Na prática, a exclusão de “determinados tipos de pessoas do campo ‘normal’ de imputação de direitos e deveres”, exclusão “da-queles indivíduos que não se portam de modo a oferecer ‘embasamento cognitivo’ sufi ciente de que se comportará conforme o direito” (Machado & Rodrigues, 2009:

1 Para um bom inventário e discussão das medidas de exceção nos EUA e nos países eu-ropeus pós-11 de Setembro, ver Paye (2004).

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6). Como será visto nos próximos capítulos, no caso brasileiro, os chamados “autos de resistência” ou, em outra versão, “resistência seguida de morte” que, desde há muito, tipifi cam os casos de violência policial, sem que isso tenha guarida no ordenamento jurídico, podem ser vistos como modalidades avant la lettre do direito penal do inimigo, uma prática recorrente e sistemática de execuções sumárias e extermínio, “assassinatos em nome da lei”, como disse uma vez um promotor de justiça, sem que isso seja considerado um crime: persistência de procedimentos instaurados sob os regimes militares pós-1964, ecos de uma história de longue durée, mas que, agora, estão em fi na sintonia com os tempos que correm.

Por outro lado, dissociadas do espaço conceitual em que se especifi cava o seu sentido político e polêmico, as noções de direito e cidadania giram no vazio. E viram qualquer outra coisa, uma implosão semântica do léxico dos direitos de cidadania, como disse Paulo Arantes (2000) ao rastrear os usos proliferantes dessas noções, direitos e cidadania, em meio à virada neoliberal dos anos 1990: do marketing social das empresas e do discurso gerencial que passa a prevalecer nos programas sociais, passando pelas ONGs, também as organizações fi lantró-picas tradicionais até o muito moderno “empreendedorismo social”, direitos e cidadania são mobilizadas como noções que terminam por promover uma “visão pacifi cada da vida social” pelo primado de uma regulação moral das relações so-ciais. Por todos os lados, uma afi rmação ritualística e protocolar da exigência ética da cidadania, mas que apenas confunde política e bons sentimentos, embaralha as diferenças entre direito e ajuda humanitária, entre cidadania e fi lantropia, e reativa ou re-atualiza o que Topalov (1994) defi ne como “epistemologia da fi lan-tropia” que fragmenta a análise social na descrição cientifi camente fundada de cada grupo social alvo de políticas focalizadas.2 Se a diferença entre cidadania e fi lantropia fi ca esfumaçada, é também a diferença entre política e gestão que se esfacela quando essas noções são mobilizadas nos dispositivos gestionários que, sob o discurso altissonante do reconhecimento das diferenças e do combate à exclusão, vão se multiplicando por todos os lados, assinalando que entramos de vez na era da “pós-política”, para usar os termos de Slavoj Zizek (2004), quer dizer: dispositivos variados que mobilizam recursos institucionais, jurídicos, so-ciais (e também a pesquisa acadêmica) para identifi car os problemas específi cos de cada grupo, defi nir “públicos-alvo”, propor medidas para corrigir o que não funciona direito, valorizar a “comunidade” e promover o dito “capital social” como anteparo às derivas da exclusão e suas supostas patologias violentas. Uma gestão do social que abre um fosso abismal em relação à “invenção democrática”, para lembrar os termos de Lefort, e está no polo oposto do ato político, que, na formulação aguda de Zizek, não tem nada a ver com a gestão ou administração do que está posto na trama social, pois o que é próprio da política – e do ato político – é justamente modifi car e deslocar os parâmetros do que é considerado possível e desejável na constelação existente.

2 Discuti essas questões em Telles (2004).

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Em outra chave teórica, em um artigo de 1991, Nikolas Rose (2008) já discutia o deslocamento da linguagem da cidadania para o da “comunidade”, contraface do que ele chama de “liberalismo avançado”, a desmontagem das regulações nacionais e a prevalência dos critérios do mercado (competição, privatização, cálculos fi nanceiro, produtividade) nos modos de se exercer o “governo dos ho-mens e das coisas”. São outros os princípios de governamentalidade, termo que Rose recupera de Foucault, “modos de conduzir as condutas” centrados, agora, no comprometimento moral e lealdades de cada um em suas “comunidades” de referência, no incentivo ao “empoderamento” de indivíduos impelidos a assumir as suas responsabilidades locais, apoiados no seu “capital social”: comunidade, capital social, empoderamento compõem uma fi leira de noções que, mais do que mudanças no jargão profi ssional, assinam a gramática política pela qual as questões são problematizadas, como são defi nidas estratégias, programas e tec-nologias de ação. “Comunidade”: não se trata tão simplesmente de um campo de intervenção, mas de um modo de governar os homens, “conduzir as condutas”. Diferente das referências nacionais que defi niam o campo semântico da cidadania, o “governo através da comunidade” mobiliza (e faz agir) o indivíduo empreendedor e comprometido com suas lealdades locais. É também um modo de subjetivação diferente do “cidadão” cujas lealdades e compromissos o remetiam para a esfera do Estado pela mediação dos direitos sociais, dos serviços públicos e das políticas sociais (cf. Rose e Miller, 2008). Temos aqui, diz Rose, os registros da sociedade pós-disciplinar, a “sociedade do controle” (Deleuze) que opera pela modulação das condutas, não mais a fi xação de lugares e posições nos espaços confi nados da disciplina. Mas isso também signifi ca, diz Rose, o estabelecimento de outras clivagens que fazem proliferar dispositivos disciplinares, frequentemente coer-citivos, também penais, voltados aos indivíduos ou zonas sociais vistos (e assim objetivados) como fora das “comunidades de inclusão”, fora do “controle social”, incapazes de assumir suas responsabilidades em relação às suas vidas ou em rela-ção às suas “comunidades”, seja por conta de uma recusa dos padrões esperados de comportamento, seja por falhas, carências, defi ciências a serem tratadas por especialistas na gestão desses microssetores: a gestão da miséria e dos infortúnios, diz Rose, também se tornou uma atividade proliferante, mobilizando recursos, fi nanciamentos, especialistas, pesquisas conforme os indicadores das situações ditas (e assim defi nidas pelas expertises) de risco e vulnerabilidade. Rose desdobra uma questão que Robert Castel já havia lançado em 1983 ao discutir as infl exões nos modos de se conceber (e objetivar) o problema social sob a noção de risco (e seus indicadores) que já começava a pautar os programas de ação sob a égide da governamentalidade liberal nos Estados Unidos, também na França.

Uma outra “microfísica do poder” (Foucault), poderíamos dizer, que se reconfi -gurava em sintonia com a virada neoliberal dos anos 1980 e que já não correspondia aos dispositivos disciplinares em vigor até meados do século XX. Novas tecnologias sociais, diz Castel (1983: 119), que terminam por dissolver a noção de sujeito ou de indivíduo concreto, “colocando em seu lugar uma combinatória de fatores, fa-

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tores de risco”. Não se trata mais do feixe de causalidades sociais implicadas nas disfunções de um indivíduo a ser tratado, cuidado, recuperado pelos dispositivos do serviço social (ou penal, quando se tratava de crime e delinquência). Trata-se, agora, da “construção de fl uxos de população a partir de um conjunto de fatores abstratos suscetíveis de produzir um risco em geral”. Deslocamento de fundo: do tratamento do “indivíduo perigoso” (ou com predisposições perigosas) à gestão efi caz das situações de risco. Diferente do perigo, o risco não está incorporado em um indivíduo ou grupo social determinado. É o efeito de uma combinação de fatores que tornam mais ou menos provável a ocorrência de um evento indesejável, doença, anomalias, comportamentos desviantes a serem minimizados ou evitados. É um cálculo de probabilidades. O foco são as “populações de risco” – ou, como se diz atualmente, “populações em situações de risco” – defi nidas a partir de um feixe abstrato de fatores acessíveis à análise dos especialistas. Em operação, novas formas de controle e vigilância, que não passam mais pela repressão e pelo interven-cionismo assistencial prevalecentes até meados dos anos 1960. Agora, “constata-se o desenvolvimento de modos diferenciais de tratamento das populações, que visam rentabilizar ao máximo o que é rentabilizável e a marginalizar o que não o é”.

Duas consequências, enfatiza Castel. Primeiro: este espaço generalizado dos fatores de risco, por contraposição aos espaços concretos do “perigo” com suas supostas determinações sociais, acarreta uma multiplicação potencialmente infi -nita das possibilidades de intervenção, tanto quanto se prolifera o que pode ser tipifi cado como risco, construído como tal pelo trabalho dos especialistas. É o caso de se perguntar, diz Castel (1983: 126), se “essas orientações não inauguram novas estratégias de gestão de populações próprias às sociedades ditas neolibe-rais”. Segundo: a gestão dos riscos desdobra-se em uma suspeita generalizada, uma suspeita, diz Castel, agora elevada à dignidade científi ca de um cálculo de probabilidades. Para ser suspeito, diz Castel, não é mais necessário o indivíduo manifestar sintomas de anomalia, basta que apresente alguma das características que os especialistas construíram como fatores de risco.

Mais recentemente, Frederic Gros (2006), em outro contexto de discussão, chama a atenção para o fato de que essa é uma confi guração na qual o indivíduo não comparece como sujeito de direitos, mas como um indivíduo atravessado por situações de “vulnerabilidade” associadas a “riscos” (pobreza, doença, crime, violência...) que exigem “uma vigilância contínua de sistemas e de homens” e aciona a lógica da “intervenção”. Diferente da política (e seus protocolos de discussão, deliberação, negociação), a intervenção é regida pelos critérios ditos técnicos de competência dos especialistas e é acionada para restaurar uma ordem ameaçada, restabelecer harmonias rompidas, reparar disfunções, encontrar solu-ções. Intervenção social, intervenção cultural, intervenção sanitária, intervenção humanitária, também intervenção policial e intervenção militar: nas peculiarida-des de cada campo de atuação, é uma mesma lógica, gestão dos riscos, sempre pontual, territorialmente defi nida, porém sempre deslocante, conforme se rede-fi nem os alvos, os focos, os problemas. Modos de gestão das populações, de seus

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fl uxos, de seus movimentos, diz Gros. Concretamente: a lógica da intervenção e da segurança, a gestão dos riscos em suas várias modulações, busca assegurar a fl uidez dos circuitos, o funcionamento dinâmico dos fl uxos de populações, de riquezas, de bens, de mercadorias, de informações, enfi m, dessa mobilidade am-pliada própria dos mercados globalizados, agora liberados dos constrangimentos dos Estados e nações. É isso também que produz uma clivagem transversal ao espaço social, entre esses núcleos de segurança e ordem (as “comunidades”) e uma expansiva zona cinzenta habitada por esses aqueles escapam, se recusam ou estão à margem desses agenciamentos. A gestão dos riscos, intervenção e segurança, cria o seu fora, suas margens, onde imperam “estados de violência” de que os controles mafi osos dos mercados ilícitos são um exemplo, entre outros que se poderia inventariar (cf. Gros, 2006, 2009).

Esses são tópicos que valeriam uma discussão à parte, pertinente às confi gu-rações próprias da sociedade pós-disciplinar ou pós-social, como propõem vários autores, para evocar aqui uma ordem de questões que remetem diretamente ao terreno da sociologia ou, para usar os termos de Bruno Latour (2006), às ciências do social (cf. Foucault, 2004, Rabinow, 1999; Latour, 2006; Strathern, 1996). Isso nos levaria muito longe. Por ora, vale dizer que essa discussão poderia ser declinada em torno de três ordens de questões que dizem diretamente respeito ao que nos interessa aqui discutir:

Primeiro: para lembrar uma questão sempre enfatizada desde o início e ao longo destas páginas, dissolve-se o aparente paradoxo ou descompasso entre a ênfase predominante nos micro-pontos de vulnerabilidade, “populações em situação de risco”, que pautam os programas sociais e, de outro lado, um mundo urbano atravessado por lógicas e circuitos de mobilidade urbana que transbor-dam amplamente o perímetro estreito das “comunidades”. Em termos gerais, é o ângulo pelo qual se pode trabalhar as questões propostas por Frederic Gros. A rigor, estamos aqui no cerne do que Foucault (2004a, 2004b) defi ne como biopolítica, em sua dupla face, a gestão das vidas, governamentalização das condutas e a gestão das populações, de seus fl uxos, de seus deslocamentos, de seus movimentos. É uma questão que Gros redefi ne e atualiza, tendo em mira os tempos atuais. Para trazer a discussão para o terreno dos estudos do urbano, Jacques Donzelot levanta questões interessantes em um artigo que leva o sugestivo título de “Le social de compétition” (2006): diferente do “social de compensação” (direitos sociais, previdência), trata-se agora não mais de fi xar lugares e identidades, mas colocar os indivíduos em movimento, promover a sua capacidade empreendedora, seja em relação aos problemas do emprego, seja os relativos à segurança, seja ainda a moradia – as três políticas analisadas nesse artigo. Modos de governo pelo local apoiado em indicadores, em medidas as mais fi nas e as mais localizadas possíveis, “fabricação de índices que permitem com-parar a situação dos bairros uns em relação aos outros, uma cidade em relação a outras”, para defi nir o “estado dos problemas” em cada lugar. Uma verdadeira “inspectologia da sociedade”, termo que Donzelot retira de Patrick Le Galès, uma

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“arte de governar por instrumentos” de modo a ser possível aos agentes políticos e gestores urbanos uma avaliação de resultados a mais precisa possível, mas que se desdobra em uma espécie de “ativismo febril” nesse empenho de mobilizar a sociedade, colocar indivíduos em movimento. Não se trata mais de “compensar” os malefícios do mercado, mas um modo de “conduzir as condutas” (Foucault) que promove uma recomposição do social em sua proximidade com o econômico sob o signo da competitividade: tornar os indivíduos competitivos, diz Donzelot, ou, para colocar a questão nos termos de Foucault (2004), tornar os indivíduos governáveis sob a égide da racionalidade do mercado.

Segundo: o plano em que o principio gestionário – o governo mediante a “co-munidade” – se compõe com a vida nua, vida matável, nessa reconfi guração do social de que tratam os autores aqui comentados. Leitores atentos de Foucault,3 não eram indiferentes às relações entre a biopolítica e o “fazer viver, deixar morrer” que, depois, fi nal dos anos 1990, seriam retrabalhadas por Agamben ao propor as relações entre soberania e vida nua. De alguma forma, essa a questão que está posta na clivagem transversal ao espaço social introduzida pelo princípio gestionário – governamentalidade neoliberal (cf. Foucault, 2004b) que os autores identifi cam na sociedade pós-disciplinar. Talvez melhor seria dizer: é a questão que essa clivagem nos faz pensar. Formas de gestão do social regidas pelo primado da gestão dos riscos, administração das urgências: clivagens entre indivíduos governáveis, governamentalizados, de um lado e, de outro, os que não se ajustam, se recusam ou são incapazes de se integrarem às “comunidades”. Para esses, como diz Garland (1999, 2001), também em ressonância com essa discussão (e em diálogo com esses autores), restam os rigores da punição, “ini-migos da sociedade” que precisam ser isolados, incapacitados ou segregados e, também, na versão brasileira disso tudo, exterminados. Em nome da urgência e da emergência, o espaço da política é subtraído, tanto quanto é erodido o campo da crítica e o exercício da inteligência crítica (cf. Calhoun, 2004) sob a fi guração de uma cidade, toda ela, pensada e fi gurada sob a lógica de uma gestão dos riscos, pautando programas sociais e também os hoje celebrados projetos de revalorização de espaços urbanos, populares ou centrais.4 Versões atualizadas do “Vigiar e

3 Vale notar: Frederic Gros é um dos responsáveis pela edição dos últimos cursos de Fou-cault recentemente publicados, Le gouvernement de soi et des autres, 1982-1983 (Gallimard, 2008) e Le courage de la verité, 1984 (Gallimard, 2009). Robert Castel, por sua vez, fez parte do grupo, também composto por Jacques Donzelot e François Ewald, que seguia os seminários que Foucault desenvolvia em paralelo ao curso de 1979-1989 (Naissance de la Biopolitique), versando sobre temas relacionados à governamentalidade liberal e neoliberal. Não por acaso, portanto, a questão do liberalismo e, no caso de Castel e Donzelot, também a sociedade pós-disciplinar estiveram no centro dos livros que esses autores publicaram no início dos anos 1980. Cf. Castel, (1983), Ewald (1986), Donzelot (1984).4 Nisso, ao que parece, estamos também em fi na sintonia com a modernidade neoliberal em tempos de exceção, a se considerar o que Vincenzo Ruggiero (2007) descreve acerca do que anda acontecendo na cidade de Londres.

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Punir”, talvez se possa dizer, que nos fazem pensar já estar em operação novas formas de controle que, como diz Garland (1999), combinam a lógica punitiva e a governamentalização das populações em “situação de risco”.

Terceiro. Agora, no registro das questões de pesquisa que nos interessam: ao mesmo tempo em que se faz, hoje, a celebração das virtudes empreendedoras das “comunidades”, ao mesmo tempo em que a assim chamada sociedade civil organizada é conclamada a se mobilizar na solução solidária e cooperativa dos problemas sociais, é o caso de se perguntar sobre um campo social que parece escapar a essa interpelação política, um campo social que vaza ou transborda os dispositivos gestionários que vem se multiplicando por todos os lados. Um campo social que escapa aos princípios gestionários, mas que nem por isso corresponde às imagens correntes de anomia e desorganização social, pois sugere diagramas variados de relações e formas sociais que passam por essas mediações, diga-mos, formais, porém que transbordam suas regulações e colocam uma ordem de questões que implodem a gramática política conhecida. É nesse registro que se pretende dar sequência à discussão.

Volto aqui às minhas anotações de pesquisa, minhas e de toda uma equipe que nesses últimos anos vem prospectando as sinuosas veredas que compõem as tramas da cidade. Esse mundo social redefi nido sobre o qual se falou nos primeiros capítulos, ponto de partida de nossa pesquisa, é atravessado por uma expansiva trama de ilegalismos que se entrelaçam nas práticas urbanas e redes sociais. Como bem sabemos, a produção da chamada “cidade ilegal” não é novidade; já desde bastante tempo é item obrigatório da agenda de estudos urbanos, quanto mais não seja pelas características predatórias da urbanização de nossas cidades, via de regra pela expansão da ocupação irregular do solo urbano, de que o crescimento exponencial do favelamento e das zonas de ocupação no correr dos anos 1990 é evidência gritante. No entanto, o que merece uma interrogação mais detida são as novas mediações e conexões pelas quais esses ilegalismos vêm sendo urdidos no cenário urbano. Na verdade, esse jogo entre o legal e ilegal é hoje feito em termos diferentes do tão debatido descompasso entre a cidade legal e a cidade real. E coloca uma outra ordem de questões, diferente da “legalidade truncada” ou “modernidade incompleta”, termos que pautaram, em grande medida, os debates dos anos 1980. Trata-se, sobretudo, de uma crescente e ampliada zona de indiferenciação entre o legal e ilegal, lícito e o ilícito, entre o direito e o não-direito, entre a norma e a exceção. Zona de indiferenciação que cria situações, cada vez mais frequentes, que desfazem formas de vida e transformam todos e cada um em “vida matável” (Agamben).

É aqui também que o leitor haverá de perceber as razões que me levaram a arriscar as refl exões um tanto apressadas de linhas atrás para situar o interesse das questões propostas por Agamben. Pois, então, é daqui que parto para retomar o fi o da meada e fazer o ponto em torno do que, assim me parece, sugere uma ordem de coisas que transborda as referências estabelecidas.

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As relações entre o formal e o informal, o legal e o ilegal têm sido tema reiterado da refl exão crítica brasileira, e isso de longa data. Em suas várias modulações e formulações teóricas, a tensão ou descompasso entre “Brasil legal” e “Brasil real” nunca deixou de estar na pauta dos debates e ganhou especial densidade teórica nos anos que se seguiram à restauração democrática na década de 1980, quando os debates puseram em foco as ambivalências e os limites da legalidade então recém-construída (cf. O’Donnel, 1993; Santos, 1993). Mas também vale lembrar que esse debate foi em grande medida pautado pela “questão nacional” (o problema da “formação nacional” incompleta) e em seu foco estavam os dilemas nunca superados para a universalização de leis e direitos. Porém, é justamente esse foco de questões que foi deslocado ou sobreposto por outras tantas que precisam ainda ser mais bem qualifi cadas. Se, hoje, há uma re-atualização de uma história de longa duração, há também um deslocamento considerável na ordem das coisas. Não mais essa espécie de buraco negro a indicar os avatares, bloqueios e impasses de uma modernidade incompleta. Adiantando uma questão a ser discutida no próximo capítulo, isso que sempre foi considerado evidência de nossas incompletudes, a “exceção do subdesenvolvimento”, para lembrar aqui as proposições de Francisco de Oliveira, é que passa a estar inteiramente em fase com os rumos de um mundo globalizado que fez generalizar, por todos os lados, os fl uxos das chamadas economias subterrâneas nas fronteiras cada vez mais indefi nidas entre o legal e o ilegal, o formal e o informal (cf. Tarrius, 2003, 2007; Peraldi, 2002). Ou, então, o que Roger Botte (2002, 2004) defi ne como “economias trafi cantes”, que se espalham também por todos os lados nas sendas abertas pela liberalização fi nanceira, pela abertura dos mercados e pelo encolhi-mento dos controles estatais num tal intrincamento entre o ofi cial e o paralelo, o legal e o ilegal, o lícito e o ilícito que essas polaridades perdem qualquer sentido e tornam obsoletas as controvérsias em torno do formal e do informal. Além do mais, é nesses termos – e esse é o ponto – que as economias vêm se estruturando, esse é um dado também estruturante das hoje redefi nidas relações entre Estado, economia e sociedade em tempos de globalização. A rigor, essa indistinção entre o legal e ilegal, o lícito e o ilícito, o ofi cial e o paralelo já compõe o estado de coisas, na justaposição de redes (políticas, econômicas, nacionais e transnacio-nais) e as atividades ilícitas, de tal forma, diz Botte (2002), que se pode afi rmar a existência de uma “generalização macroeconômica do fenômeno do ilícito e do delituoso”. Essa é uma mutação econômica considerável a ser bem entendida, pois abre – esta é sua hipótese – novas sequências históricas a serem prospectadas nos países e nas sociedades.

Jean-François Bayart (2004), por sua vez, seguindo a mesma senda investiga-tiva, dá mais um lance: se é assim (e as circunstâncias e situações que investiga e descreve assim mostram, e espantam o mais avisado dos leitores), então isso

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quer dizer que essa fi gura demonizada – “O Crime Organizado Transnacional” – que vem acionando a obsessão securitária (e os dispositivos de exceção) nos diversos países não existe, quer dizer, sociologicamente esse “objeto” não se sus-tenta. Se quisermos, de verdade, entender alguma coisa, será preciso deslocar o parâmetro e decifrar o jogo dessas relações, conexões, articulações que se fazem nessa indistinção do legal e ilegal, do lícito e ilícito, e fazer aparecer, como forças atuantes e estruturantes, os vários atores e coletivos envolvidos, desde o Estado e suas agências nacionais até as grandes corporações econômicas e suas ramifi cações globalizadas, passando pelo sistema fi nanceiro e pelos fl uxos digi-tais/virtuais de circulação da riqueza, pelas agências transnacionais das quais não escapam as organizações humanitárias que se alimentam das desgraças do mundo e mobilizam os “mercadores do bem”, tudo muito bem sintonizado, aliás, com os fl uxos de circulação de riqueza. Tudo isso, no fi nal das contas, compõe muito concretamente a tal globalização, que, longe de ser uma entidade abstrata, só consegue se efetivar porque tudo isso se ancora nos processos situ-ados em cada lugar, em simbiose com as idiossincrasias de cada país, com sua própria história e com as circunstâncias do jogo político e de suas economias. Concretamente, isso signifi ca que todos os dispositivos (de cunho abertamente repressivo), as medidas legislativas e policiais, hoje proliferantes por todos os lados, para combater “o” crime organizado e “a” insegurança que atemorizam os cidadãos e governos são rigorosamente risíveis (e, aliás, todos sabem disso), pois o ponto em mira mal se confi gura (“não existe”, nesse sentido) em meio a uma nebulosa de relações e comprometimentos que, estes sim, precisariam ser bem compreendidos e debatidos – debatidos publicamente. Mas, então, diz Bayart, a obsessão securitária contra o tal “crime organizado transnacional”, juntamente com a equação habitual, nos países do Norte, entre imigração e insegurança (no Sul, entre pobreza e insegurança), apenas serve para justifi car o reforço dos poderes de polícia e os dispositivos repressivos em detrimento das liberdades; ou seja, “é uma manifestação entre outras dessa banalização do estado de exceção denunciada pelo fi lósofo Giorgio Agamben” (2004: 103).

Essa certamente é uma discussão de fôlego e vai além do que é possível aqui fazer. No entanto, é importante reter essa discussão como referência, pois é nesse horizonte que nossas inquietações precisam ser situadas. Algumas dessas ques-tões (apenas algumas) serão tratadas no próximo capítulo. Por ora, dois pontos a serem marcados:

Primeiro, retomando a questão lançada nas páginas iniciais deste capítulo: o parâmetro descritivo para colocar em perspectiva (e sob perspectiva crítica) as realidades (no caso, as “nossas” realidades) em mutação. Não se trata de descrever “direitinho” as coisas tal como são ou vêm se modifi cando. A questão é outra, mais de fundo, e diz respeito ao modo como construímos nossos “objetos” de in-vestigação, como defi nimos nossas questões, como formulamos as perguntas que nos orientam numa experiência do conhecimento capaz de deslocar o campo do já-dito e prospectar as potências pelas quais a ordem das coisas se confi gura. E é

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isso que está em jogo na tarefa descritiva. É nisso que reside a tarefa da crítica. A questão proposta por Bayart é interessante justamente por isso. Para além do enorme interesse que suas pesquisas suscitam, é o modo como a ordem das coisas é confi gurada, construída e descrita num plano de referência que desloca os ter-mos do que está aí posto como “verdade” e “fato incontestável”. E é nesse mesmo deslocamento que essas verdades e esses fatos incontestáveis se desfazem como tais, na medida em que fatos, coisas, atores se reordenam em um outro diagrama de relações, num outro tabuleiro, em que as peças são postas sob outro jogo de relações. A força da crítica não está na retórica da denúncia da barbárie que hoje se instala no mundo. A potência da crítica se faz num parâmetro descritivo que desloca ou redefi ne a ordem das coisas e suas relações, permitindo, a partir daí, estabelecer uma pauta de questões que não podem mais ser resolvidas nos termos habituais e que abre, portanto, a fenda a partir da qual a imaginação crítica pode se mostrar fecunda. Um outro jogo descritivo. Para usar um termo mais preciso: um outro “dispositivo cognitivo”.5 É disso que depende a possibilidade de romper esse círculo de giz traçado entre a denúncia estéril e o pragmatismo, quando não a razão cínica, que apenas afi rma o que está posto, de tal forma que parece nada nos restar senão gerir o que nos é dado a viver no presente imediato.

Segundo: as questões discutidas por esses autores (e outros) são também importantes para bem situar a complicação brasileira, situá-las num outro jogo de escala e sob uma perspectiva ampliada. É aqui que ganha pertinência a per-gunta sobre a nova ordem que vem sendo urdida nas dobras do mundo atual. É essa a pergunta que esses (e outros) pesquisadores se fazem quando se propõem a prospectar – e descrever – os feixes dessas conexões e suas redes em escalas variadas, que se fazem nas fronteiras indiscerníveis do legal e do ilegal, do lícito e do ilícito, do formal e do informal, do ofi cial e do paralelo, para apreender o modo como Estado, economia e sociedade vão se redesenhando entre a implosão de suas formas canônicas e a confi guração de novos diagramas de relações de poder e de domínio, mas também de formas sociais e de confl ito entre grupos sociais e atores (outros jogos de atores), que também dão os sinais de uma expe-rimentação histórica a ser seguida de perto.

* * *

Com ressonâncias desse debate, nossos objetivos são bem mais modestos e nossa questão remete, sobretudo, ao exercício de uma “etnografi a experimental”

5 Essa foi a expressão lançada por Laymert Garcia dos Santos numa reunião do Cenedic em que essas questões foram discutidas. Agradeço-lhe, e dela me aproprio. Devo ainda dizer que estas linhas devem muitíssimo a essa mesma discussão, com a ressalva de que o jeito desconjuntado e certamente tateante como foram traçadas, como é de praxe dizer, é de minha inteira responsabilidade.

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para tentar fl agrar as novas mediações e conexões pelas quais esses desloca-mentos das fronteiras do legal e do ilegal vêm se processando. Trata-se de partir de situações a serem tomadas como “cenas descritivas” que permitam seguir o traçado dessa constelação de processos e práticas, suas mediações e conexões. E, no contraponto entre cenas descritivas diferentes, a transversalidade das questões que se colocam. É um experimento de pesquisa que pode nos abrir uma senda para identifi car, seguir os traços e traçados dos ordenamentos sociais que vêm sendo tramados nos tempos que correm.

Por ora, no limite destas páginas, uma experimentação que toma como referên-cia algumas cenas que interessam pelo fato de serem situações recorrentes, banais, quase-normais – uma muito peculiar normalidade construída num equilíbrio muito frágil, no fi o da navalha. Situações que se armam em torno do trabalho, da moradia e dos programas sociais que se multiplicam por todos os lados, quer dizer: situações que se constelam em torno de dimensões estruturantes da vida social.

* * *

Uma primeira cena: nos pontos extremos da periferia leste da cidade de São Paulo, o tradicional e hoje renovado trabalho a domicílio, mobilizando famílias e suas redes sociais. A partir daí é possível desenrolar os fi os dos circuitos variados do chamado mercado informal e, em seus pontos de conexão, agenciamentos territorializados, a atuação de coletivos diversos:6 os intermediários que fazem a conexão com os polos globalizados da economia e também com os negócios obscuros de procedência variada; os agentes públicos que tentam (sem sucesso) controlar o uso irregular dos espaços urbanos e o comércio clandestino; as as-sociações comunitárias ditas fi lantrópicas que se transformam em agenciadoras das redes locais de subcontratação numa peculiar mistura de apelo solidário, clientelismo e jogo de poder nas disputas locais, tudo isso redefi nido na medida em que é justamente mobilizado por redes de subcontratação que, também é importante dizer, são acionadas sabe-se lá por quem e de modo muito obscuro, pois nunca se sabe ao certo da onde vem a encomenda, muito menos quem paga pelo trabalho feito e para onde vai o produto realizado. Atravessando tudo isso, nos mesmos espaços e nos mesmos territórios, os fl uxos da migração clandes-tina trazem para os fundos da periferia leste os bolivianos, agora personagens conhecidos da paisagem urbana que vivem e trabalham em condições mais do que penosas, já que em boa medida são cativos dos coreanos que muito frequen-temente agenciam a migração e estão muitíssimo bem instalados no centro da cidade. É dali que saem as encomendas que vão circular pelas redes informais

6 Sigo aqui os achados de pesquisa de Carlos Freire em sua dissertação de mestrado (2008).

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de subcontratação, mobilizando bolivianos e mais boa parte do trabalho a domi-cílio nessas regiões distantes da cidade, ativando os circuitos da produção têxtil que, no caso da zona leste da cidade, se alimenta da história urbana da região e re-atualiza a importância do “centro velho” da cidade (Brás, Bom Retiro), onde estão instaladas as confecções, onde se entrelaçam todos esses fi os, abertos e subterrâneos ou clandestinos, e são igualmente urdidas as vinculações com um mercado em aceleradíssimo processo de integração no capital globalizado.

Essas linhas se desdobram e encontram um ponto (outro ponto) de junção nos lugares de concentração do comércio ambulante, onde todas as situações podem ser encontradas lado a lado, num completo embaralhamento do legal e do ilegal, do lícito e do ilícito, do formal e do informal: ali os produtos circulam por meio de acordos nem sempre fáceis de serem mantidos entre organizações mafi osas, gente ligada ao tráfi co de drogas, comerciantes pobres, intermediários dos coreanos (e de outros tantos), além dos técnicos das subprefeituras que tentam fazer valer as regulações ofi ciais, tudo isso misturado com pressões, histórias de morte, corrupção e acertos obscuros. Porém, é lá mesmo que circulam produtos de procedência conhecida, desconhecida, duvidosa ou simplesmente ilícita, mas também o “excedente”, se é que é possível falar nesses termos, das famílias que se viram como podem para bem aproveitar o tempo que lhes sobra entre os ritmos descontínuos e incertos da produção sob encomenda.

Todas essas linhas se entrecruzam nas famílias, na economia doméstica e nas redes sociais, e aí o jogo da vida vai se fazendo entre outras tantas conexões com outros tantos circuitos que embaralharam ainda mais as fronteiras do legal e do ilegal, do formal e do informal, do lícito e do ilícito.

Assim, em torno das questões da moradia, nossa segunda cena: ocupações de terra nas regiões mais distantes da cidade ou, então, os esforços persistentes de seus moradores para conseguir melhorias urbanas. Situações mais do que normais, mais do que conhecidas, que contêm todos os ingredientes que vão preencher os itens esperados de relatórios da pesquisa social feita sob encomen-da, quando se fala do dito capital social e das vias virtuosas de inserção social. No entanto, é justamente aí que as coisas acontecem: essa normalidade é muito frequentemente feita ou construída por um jogo de atores que mobiliza indivíduos e famílias, agentes públicos e lideranças comunitárias, ONGs e associações de fi liação diversas, inclusive a chamada fi lantropia empresarial.7 Mas também os chefes locais do tráfi co de drogas e dos negócios ilícitos que se espalham por todos os lados. Na verdade, é com eles que é preciso negociar, fazer acordos e chegar a algum entendimento para pôr em prática os serviços sociais, quando não são eles mesmos que vão pesar, quando não decidir, nas disputas em torno dos recursos a serem distribuídos entre associações diversas, sem esquecer, claro está, os acordos para garantir proteção ou, ao menos, a tranquilidade para realizar o trabalho social esperado. Muitas vezes, o mesmo personagem pode transitar

7 Questões trabalhadas por Eliane Alves em sua dissertação de mestrado (2007).

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entre várias identidades: militante local, bom cidadão e representante popular em algum dos inúmeros fóruns da chamada democracia de base, voluntário em uma ONG, mas também intermediário nos negócios ilícitos e no comércio de produtos de origem duvidosa, negociador com o pessoal do tráfi co de drogas, quando não é ele mesmo parte envolvida diretamente na gangue local.

Aliás, personagens como esse terminam por desempenhar um papel impor-tante nas questões locais; justamente por transitar com facilidade entre esses universos que se sobrepõem no mundo urbano, eles sabem lidar com seus códi-gos, conhecem as regras do jogo, sabem dar o lance certo na hora certa e chegar ao que interessa a cada momento. Por outro lado, os chefes locais do tráfi co de drogas ou dos negócios obscuros também podem ser moradores do local: é lá mesmo que nasceram, cresceram, onde conhecem “todo mundo”, construíram laços de amizade e solidariedade e também sabem jogar o jogo das reciproci-dades da vida cotidiana. Seriam como todos os outros, indivíduos comuns como todos os demais, não fosse sua implicação num universo que escapa ao jogo das reciprocidades morais do mundo popular, seja por conta das lealdades mafi osas, seja pelo critério mercantil que se impõe em suas relações com o mundo social (afi nal, estamos falando de um negócio feito de contas e dívidas que precisam ser pagas), seja ainda pelas disputas letais por território (cf. Ferreira, 2006). Como será visto no último capítulo, se existe uma superposição de mundos diversos, se existe aqui um embaralhamento das fronteiras do legal e do ilegal, do formal e do informal, do lícito e do ilícito, há também fricção, tensão, algo como um ponto de fuga que pode, no acaso das coisas da vida, abalar ou desfazer essa muito frágil normalidade conquistada. Como Alba Zaluar já notou mil vezes, e mil vezes bem notado ao discutir a situação no Rio de Janeiro, os padrões de sociabilidade e as regras de reciprocidade que organizam o universo popular podem ser desestabilizadas, quando não erodidas, por disputas, comportamentos, práticas e princípios mafi osos de lealdade que não se restringem ao “negócio do crime”, porém transbordam por todos os lados, até porque tudo isso coloca em cena esse “indivíduo-qualquer-como-todo-mundo” que vive por lá, com família, vizinhos, amigos de infância e conhecidos do bar da esquina.

Situações similares podem ser encontradas – eis a terceira cena – em torno dos programas sociais, mesmo quando se trata de bairros nem tão distantes e nem tão desprovidos de equipamentos urbanos. Na verdade, seria mesmo possível fazer uma antropologia, por exemplo, de um programa de distribuição de cestas básicas, esse muito especial artefato (no sentido de Bruno Latour [2008]) em torno do qual relações sociais são tecidas, conexões são urdidas e redes sociais são acionadas (cf. Telles & Hirata, 2007). Em torno desse artefato, muitos cole-tivos são mobilizados. Antes de mais nada, claro está, as famílias pauperizadas, cujas vidas parecem como que dependuradas nos programas sociais, sem outros meios de sobrevivência: problemas de saúde, de desemprego, de orfandade, de abandono; também a prisão de provedores, pais ou fi lhos, ou, então, a morte violenta dos que foram atingidos por um “mata-mata” desses, como se diz; epi-

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sódios recorrentes que fazem parte da história local (não só local) e que não são de hoje, vêm de longe, em que se misturam a violência policial (e as práticas de extermínio), a ação de matadores e justiceiros, disputas de territórios e acertos de conta. Mas também a liderança comunitária que se encarrega de sua distribuição e que é movida por uma autêntica preocupação solidária e não poupa esforços para solicitar a ajuda de tantos quantos possam mobilizar recursos, quer dizer: doações voluntárias (e incertas) dos comerciantes locais, a prestação (além de incerta, descontínua) de associações fi lantrópicas; também o clientelismo polí-tico “velho de guerra” e, nesse caso, as doações seguem os rumos mutantes dos interesses políticos e o ritmo descompassado do calendário eleitoral. Também os chefes locais do tráfi co de drogas, que, aliás, são ou podem ser amigos de longa data, por vezes parentes e gente da família e que irão, por sua vez, mobilizar comerciantes, perueiros clandestinos ou não, amigos e aliados, em autêntica e verdadeira interação com a “economia solidária” que deita raízes nas práticas da auto-ajuda e da solidariedade intrapares, tão presentes no mundo popular. Tudo isso, como se vê, em fi na sintonia com os tempos.

Como se vê, uma muito modesta e tradicional cesta básica opera aqui como um desses pontos de entrelaçamento de redes que operam em escalas e conexões variadas. Famílias pauperizadas, liderança comunitária, trafi cantes locais, comer-ciantes e perueiros são moradores que partilham a história comum de um mesmo bairro, conhecem as venturas e desventuras de uns e outros. Cada qual, sob maneiras diversas, transita entre um lado e outro, nas fronteiras incertas do legal, do informal e ilícito: famílias cujos fi lhos estão presos ou foram mortos em algum desses trânsitos entre o legal e o ilegal; o trafi cante que já foi um trabalhador no mercado formal de trabalho, um outro que intercala expedientes vários no mercado informal e o negócio da droga ou daquele que tenta consolidar uma pequena loja nas imediações com a expectativa (ou o sonho) de, um dia, sair da vida do crime; o perueiro que já trafi cou drogas em outro momento e resolveu dar um novo rumo para sua vida (ou o contrário); o comerciante cujo fi lho é perueiro e sabe das com-plicações que acompanham seus trajetos na cidade; a liderança comunitária, que já foi uma aguerrida militante dos outrora ativos movimentos de moradia, que nos períodos de eleição se converte em um muito efi caz cabo eleitoral de vereadores locais, que tem um fi lho perueiro e uma fi lha viúva de um rapaz executado pela polícia por razões obscuras, que ganhou respeito e admiração não apenas pelo seu empenho solidário, mas também pela ousadia com que, ao longo dos anos e por vezes seguidas, se interpôs, fi sicamente e com ameaças de denúncia pública, entre a polícia e aquele que, qualquer que fosse a razão, estava ali sendo alvo de violência, espancamento, ameaça de extermínio ou prisão arbitrária.8

O trafi cante local, por sua vez, é também um morador do bairro, um homem como todos os outros, pai de família atento aos assuntos domésticos, solidário com os vizinhos, que joga futebol no time local e leva a vida de “todo mundo”. Em

8 Esse personagem e essas situações voltarão no último capítulo.

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seu envolvimento nos serviços sociais, há uma especial mistura de preocupação solidária, cálculo refl etido para garantir a proteção da população local contra as investidas da polícia e, também, estratégia para o controle de um território sempre em disputa por grupos rivais, além do jogo nem sempre muito sutil de pressão, chantagem e manifestação de poder junto aos aliados e “protegidos” chamados a participar do círculo da solidariedade popular. E tudo funciona muito bem, ou pode funcionar, até o momento em que a roda da fortuna dá mais um giro e os desacertos da vida podem jogar tudo pelos ares, seja os desacertos com a polícia que está sempre presente em um jogo perverso de proteção e extorsão, seja por conta das disputas de território, seja enfi m pelos desafetos entre uns e outros, que terminam por acionar soluções de morte.

Aqui, como também na cena anterior, estão presentes todos os ingredientes que compõem a agenda das pesquisas e propostas de “boas práticas” para uma boa e virtuosa gestão da vida local: solidariedade intrapares, capital social e rede social. Está tudo aí, não falta nada. Tudo certo, tudo errado ou tudo falsifi cado, quando essas noções são mobilizadas para construir a fi cção comunitária e acionar as formas modernas de gestão do social, a rigor o biopoder de que fala Foucault (2004) e é por ele identifi cado no centro mesmo da governamentalidade liberal: gestão das populações, gestão das vidas, administração de suas urgências. Mas acontece que o mundo social não cabe nos dispositivos gestionários, escapa por todos os lados dessas formas de governamentalidade que, para usar os termos de Foucault, tratam de atuar no “meio social” e acionar o dito “capital social” para tornar os indivíduos governáveis sob a égide da racionalidade mercantil. Na verdade, seria mesmo possível dizer que as tensões do mundo se fazem nessa fricção entre os “indivíduos governáveis” e o que escapa dos dispositivos gestio-nários, quer dizer, entre a governamentalidade gestionária e a vida matável. Entre o lado ofi cial-legal da vida social e as crispações da vida nua, vai se tecendo um socius nessa conjugação entre circunstâncias, fatos, coisas e pessoas. É nesses agenciamentos da vida que se torna perceptível a pulsação do mundo urbano. É dessas dobraduras que fazem a trama da cidade que se podem apreender os sentidos da indiferenciação entre o legal e o ilegal, o formal e o informal, o lícito e o ilícito. É daí que se projeta a linha de sombra que perpassa toda a cidade. Os campos de força e toda a complicação dos tempos que correm estão exatamente nos pontos de conexão dessas tramas que fazem a tapeçaria do mundo social.

Vistos pelo ângulo das práticas cotidianas, todos esses fi os se misturam e se entrelaçam nos agenciamentos práticos para lidar com a vida, e com as urgências da vida. Num cenário de incertezas, quando não de aleatoriedade dos lances do destino, essas microcenas podem ser vistas como evidências de práticas e ar-ranjos sociais que, nesse jogo de luz e sombra entre o lícito e o ilícito, são feitos e refeitos numa sempre reaberta negociação da vida e das formas de vida. Por certo, é desse entrelaçado social que o tráfi co de drogas também se alimenta e é por essa via que se podem apreender suas capilaridades nas redes sociais, ao mesmo tempo em que nesses fi os entrecruzados da vida social se confi guram

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situações de violência intrapares nas quais os acertos e os desacertos da vida cotidiana se misturam com lealdades mafi osas e as circunstâncias de disputa de territórios. Por isso mesmo (mas não só) esses arranjos sociais ainda precisam ser mais bem compreendidos.

Indivíduos e suas famílias transitam nessas tênues fronteiras do legal e do legal, sabem muito bem lidar com os códigos de ambos os lados e sabem também, ou sobretudo, lidar com as regras que são construídas para “sobreviver na adver-sidade”. Como mostra Daniel Hirata (2006, 2010), a expressão “sobreviver na adversidade” nada tem a ver com as estratégias de sobrevivência de que tratam os estudos sobre pobreza. É uma expressão que circula no “mundo bandido”. Porém, ao que parece, todos os moradores das periferias da cidade sabem muito bem o que isso quer dizer: saber transitar entre fronteiras diversas, deter-se quando é preciso, avançar quando é possível, fazer o bom uso da palavra certa no momento certo, calar-se quando é o caso. E, sobretudo, saber jogar com as diversas iden-tidades que remetem a esses diversos universos superpostos e embaralhados nas coisas da vida. Em outros termos, como passadores que são entre as fronteiras do mundo social, saber transformar esses diversos territórios em recursos de vida, vias incertas de construção de outros possíveis que lhes permitam escapar seja da morte matada, seja da pobreza extrema.

No entanto, “sobreviver na adversidade” não é coisa fácil. Não é para qualquer um. Nem todos são portadores dessa versão muito peculiar do “saber circula-tório” de que fala Alain Tarrius (2002) ao discutir os percursos dos imigrantes nas fronteiras dos países europeus. Seria possível dizer que essa espécie de ardil popular renovado ganha todo o seu sentido quando se considera a questão nele inscrita. Não se trata simplesmente de sobreviver e levar a vida. Trata-se, sobretudo, de contornar – é uma espécie de arte de contornamento9 – as duas ameaças muito concretas que se colocam em suas vidas, a cada momento, a cada dia. De um lado, o risco da morte violenta. Esse é um dado de seus mundos de vida. Sobretudo entre os mais jovens, fazer a narração de suas vidas é também uma espécie de contabilidade dos mortos, pessoas próximas, amigos de infância, vizinhos de rua, colegas de escola: “Meus amigos? Só sobrou eu mesmo, os outros estão todos mortos”. De outro lado, o risco de cair na situação de dependência da caridade de uns e outros, ou então da assistência social. Quer dizer, saber “sobreviver na adversidade” supõe uma certa habilidade em transitar entre fron-teiras. É isso que pode decidir a vida e os sentidos da vida, escapando dessa dura partida entre a morte matada e a desfi guração da vida para aqueles que viram “pobres de tudo” e se transfi guram em público-alvo dos programas sociais ditos de inserção, que, nas palavras de Francisco de Oliveira (2007), não são mais do que a administração da exceção.

9 Tomo a expressão de Marion Fresia (2004), que, em seu estudo sobre os inusitados per-cursos de jovens refugiados nas fronteiras do Senegal e Mauritânia, levanta questões que têm paralelos interessantíssimos com o que está sendo proposto aqui.

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As cenas descritivas nos permitem fl agrar o traçado de práticas, mediações e mediadores. Porém, são seus personagens que oferecem os fi os que precisamos seguir. É nas linhas traçadas por esses personagens que é possível apreender as nervuras desse socius, sua pulsação, o traçado desse mundo que vem se orde-nando e que ganha forma ou se condensa em torno das fi guras do “bandido”, do “pobre coitado” e desse outro que poderíamos chamar de “passador”, que sabe transitar pelas fronteiras e “sobreviver na adversidade”. Esses três só ganham sentido como ponto e contraponto. E é esse ponto e contraponto que permite ver como potências o que no mundo social justamente aparece muitas vezes “embaçado”, para usar aqui uma expressão corrente entre os jovens – “está tudo embaçado”, dizem eles, e com isso sugerem que nem tudo pode ser dito. É nesse ponto e contraponto que esse mundo urbano pode ser descrito. Tempos atrás, o jogo de referências era outro. Perguntávamos, e era a pergunta que eu própria fazia quando lidava com essas realidades: quais as potências que permitem transformar o “pobre” (personagem) em “cidadão” (o outro personagem)? Ou, então: quais as mediações que permitem traduzir as circunstâncias da vida na medida pública dos direitos e de um mundo comum? Pois, agora, a pergunta é outra. A pergunta que esses personagens estão nos sugerindo é: como escapar da morte matada ou da infelicidade do pobre coitado? É esse o deslocamento que o primado da “vida nua” parece operar. Mas a vida nua não é o vazio, pois é justamente aí que o jogo da vida está sendo jogado e as tramas do mundo estão sendo tecidas.

Mas, então, isso signifi ca dizer que, entre a pobreza cativa dos expedientes gestionários e a violência letal, não há esse vazio social ou esse social escrito em negativo sugerido pelas noções correntes de exclusão social. Entre um e outro, é todo um mundo social que se constrói. Melhor dizendo: entre um e outro as tramas da vida social vão sendo tecidas. No fi o da navalha, é preciso dizer. Mas por isso mesmo é aí que se pode apreender a pulsação do mundo urbano. Não se trata, é bom desde logo evitar a confusão, de algo que acontece às margens, em algum lado de fora, do “lado de lá”. Muitíssimo diferente disso: é um mundo que não está fora, porém no centro mesmo da vida urbana, que vem sendo tecido em torno das dimensões estruturantes da vida social e que ganha forma nos acontecimentos prosaicos do dia a dia. Não é paralelo e não é à parte; o próprio dessa “arte do contornamento” é justamente saber transitar entre fronteiras sociais, lidar com os códigos, jogar com as identidades, passando de um lado (o mundo “ofi cial” dos programas sociais e mediações públicas) e do outro (o “mundo bandido”), e mais por entre todas as outras mediações sociais (a família, o trabalho, a igreja, as associações comunitárias...), um “saber circulatório” que se transforma em recurso para inventar possibilidades de vida e de formas de vida. Também não se trata aqui de reeditar qualquer visão ingênua ou romântica sobre as supostas virtudes do mundo popular. Esse não é um mundo em si virtuoso, não é um mundo povoado por santos e almas angelicais, e a catástrofe, além do mais, instaura-se nessas mesmas constelações sociais. Não é disso que se trata.

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A questão é outra e diz respeito aos fi os que estão tecendo um socius que ainda precisa ser mais bem conhecido. E é isso que nos faz pensar que, em torno dos diversos vetores (e suas zonas de turbulência) das mudanças recentes, vão se formando linhas de força que transbordam as formas estabelecidas de regulação política e escapam às formas conhecidas de interpelação e representação política. Mas são linhas de força que passam por um campo social no qual se constelam formas sociais e se conjugam as tramas da cidade, nos tempos e espaços da expe-riência urbana. Será preciso interrogar esse campo social que vem se constituindo nessas zonas de indiferenciação entre o lícito e o ilícito, entre a norma e a exceção, entre o direito e a força. É aí que se joga a partida entre a vida nua, quer dizer: vida matável; e as formas de vida, quer dizer: possibilidades e potências de vida. É isso o que pulsa, em fi ligrana, nos agenciamentos práticos da vida cotidiana. São nesses pontos de fricção que homens e mulheres negociam a vida e os sentidos da vida. No fi o da navalha. Acolhendo a sugestão de Agamben (2002), é isso o que ainda precisa ser bem entendido se quisermos pensar uma política que esteja à altura desses tempos em que a exceção se transformou em regra.

Essas, as questões que nos orientam nessa prospecção da cidade e das tramas da cidade. São essas questões, algumas delas, que se tentará trabalhar nos dois próximos capítulos.

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CAPÍTULO 5

Nas dobras do legal e ilegal: ilegalismos e jogos de poder

Doralice, 40 anos (em 2001), mora em um bairro da periferia paulista com o marido, o fi lho e mais a mãe, um irmão e um sobrinho. Doralice é diarista. Ganhos parcos e irregulares, não mais do que três casas para cuidar da faxina. Provida de dotes culinários amplamente celebrados pela família, houve um tempo em que resolveu vender pães e broas que ela preparava durante o dia. Vendia à noite, nas proximidades de um hospital, em uma barraca improvisada na perua Kombi do marido. O empreendimento não deu muito certo e, depois de alguns meses, foi desativado.

Mas Doralice é uma mulher batalhadora e não deixa escapar oportunidades para um ganho a mais para sua família. Assim, por exemplo, não hesita quando surge a oportunidade de montar uma banca de CDs piratas em um bairro próximo à sua casa. Um ponto de venda bastante modesto, mas que aciona redes de escalas variadas, a começar pelos garotos de uma favela ao lado, chamados para garantir a venda durante o dia, enquanto ela sai para o seu trabalho de diarista; também as relações de cumplicidade e confi ança na vizinhança e das quais depende a guarda dos produtos contra algum incauto que queria deles se apropriar indevidamente, em algum momento de descuido. Por outro lado, uma cascata confusa de interme-diários que passa pela sociabilidade vicinal, mas que transborda amplamente o perímetro local: um parente próximo fez o contato com o agenciador dos CDs, um tipo obscuro que mantém relações obscuras com um “laboratório” obscuro em que os CDs são copiados e, mais, os agentes que empresariam esse negócio, hoje ampla-mente expansivo e presente em qualquer ponto da cidade. Doralice não consegue reconstruir os percursos que os CDs percorrem até chegar a seu modesto ponto de venda – a partir de certo ponto o circuito fi ca, como se diz nos meios populares, “embaçado”. Afi nal, seguir os traços desse artefato não é tarefa fácil. A rigor, isso defi niria toda uma agenda de pesquisa que haveria de nos conduzir pelos fi os da várias redes superpostas de que é feito o hoje redefi nido mercado informal. Por ora, basta dizer que são redes que passam pelo lado ofi cial, formal e cintilante da indústria cultural, que transbordam para os dispositivos sociotécnicos acionados nas fronteiras incertas do informal e ilegal, para se enredar nos múltiplos circuitos do comércio ambulante por onde circulam produtos de procedência conhecida, desconhecida, duvidosa ou ilícita, para, então, se condensar nas miríades de pontos de venda espalhados pela cidade. E aqui voltamos à Doralice.

Ela conhece muito bem as coisas da vida e sabe que não teria condições de bancar o seu negócio em algum lugar mais disputado e mais rendoso. Perguntamos a ela

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por que não um lugar mais rendoso, já que ela teria acesso ao “fornecedor”, acesso ademais garantido por relações de confi ança, vínculos de proximidade e família. A resposta foi precisa: ela não teria “capital” para pagar a “proteção” (quer dizer: extorsão) dos fi scais ou, então, da polícia e muito menos para compensar as perdas na eventualidade de um “rapa”. Enfi m, Doralice tem capital social, para usar aqui o jargão corrente na linguagem acadêmica, mas não tem capital econômico, menos ainda capital político para lidar com as forças da ordem que parasitam os negócios infomais/ilegais pelo poder de chantagem e da extorsão, defi nindo, em grande me-dida, os modos como esses mercados se organizam e se distribuem nos espaços urbanos (Misse, 2006). Doralice situa com precisão o lugar dos agentes públicos no jogo de circunstâncias inscritas no campo de suas possibilidades. Os traços dessa presença estão lá fi ncados nos agenciamentos que ela mobiliza em seu ponto de venda, outros tantos circuitos que aí se condensam pelas vias das “ligações perigo-sas”, para usar os termos de Michel Misse, por onde a mercadoria política circula (chantagem, extorsão, compra de proteção) em um jogo de relações de poder e de força. Sem cacife político, Doralice teve que se contentar com os ganhos irrisórios de uma banca pobre, instalada em um lugar pobríssimo. Ganhos irrisórios e, além do mais, incertos, pois vez e outra (e muito frequentemente) seus fornecedores ou intermediários desaparecem porque foram presos ou fi caram eles próprios devedores no perverso (e violento) mercado da proteção, ou, então, porque as relações de con-fi ança foram, em algum momento e por razões as mais variadas (traições, disputas, deslealdades), rompidas em algum ponto dessa rede por onde se fazem as conexões entre as pontas mais pobres da cidade e os circuitos de uma riqueza cada vez mais globalizada. Aliás, foi por isso mesmo que ela desistiu do negócio.

Decididamente, Doralice está longe de ser uma empreendedora. O que fazia não era mais do que um “bico”. Mais um entre tantos outros expedientes de que lança mão para lidar com as urgências da vida. Assim, por exemplo, ela não titu-beia, nas horas de aperto, em mobilizar uma espantosa rede que opera o mercado de receitas médicas fraudadas para conseguir o remédio de que depende a vida do marido, e que passa por dentro das farmácias de maior porte da região; expediente, aliás, rendoso para os que inventam (balconistas e farmacêuticos de plantão, com a conivência de fi scais e outros) os artifícios para fazer da compra-e-venda dessas receitas um recurso a mais para complementar os baixíssimos salários pagos no mercado formal de trabalho. Doralice passou a ter tal familiaridade com esse mercado negro de receitas que ela própria, vez e outra, se transforma em uma sua operadora (quer dizer: intermediária), o que lhe rende uns trocados a mais cada vez que uma vizinha afl ita (quase sempre mulheres, raramente homens) vem solicitar seus “conhecimentos” e “boas relações” para resolver um problema de urgência doméstica. Em outro momento qualquer e conforme as circunstâncias, Doralice não encontra nenhuma razão moral para recusar o “serviço” que lhe é proposto por um conhecido próximo e de confi ança, e colocar a encomenda de “farinha” em sua bolsa, entrar em um ônibus, atravessar a cidade e tranquilamente levar a mercadoria a seu destino, trazendo de volta um ganho modesto, mas que

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fará toda a diferença em um orçamento doméstico garantido no dia a dia, sem que por isso ela se considere comprometida com o “mundo do crime”. Como ela diz, “não estou fazendo nada de errado, não roubo, não mato” – ela apenas está se virando como pode, como em tantas outras circunstâncias de sua vida.

Haveria mais a dizer sobre os percursos desta não muito pacata dona de casa. A rigor, há toda uma agenda de pesquisa que poderíamos defi nir a partir de uma situação como essa: seja seguir os produtos, os CDs pirata ou as receitas médicas fraudadas, ou então a droga, para reconstituir, na medida do possível, a cadeia de conexões que defi ne os circuitos por onde trafegam; seja fazer a etnografi a dos agenciamentos práticos acionados nesses pontos de condensação de relações e mediações, tal como essa “história minúscula” permite entrever. Duas vias dife-rentes e complementares que certamente nos permitiriam prospectar os circuitos superpostos de um mundo urbano atravessado por expansiva trama de ilegalismos, novos e velhos, entrelaçados nas práticas urbanas, seus circuitos e redes sociais.

Esse o ponto que interessa, por ora, reter. É nesse ponto que a história de Do-ralice interessa. É um jogo situado de escalas que se superpõem e se entrelaçam nas “mobilidades laterais”, para avançar uma discussão a ser feita nas páginas seguintes, desse personagem urbano, cada vez mais comum em nossas cidades, que transita nas fronteiras borradas entre o informal e o ilegal ao longo de per-cursos descontínuos entre o trabalho incerto e os expedientes de sobrevivência mobilizados conforme o momento e as circunstâncias.

É sempre possível dizer que nada disso é novidade, que apenas repõe o que sempre esteve presente em nossas cidades. No entanto, pouco entenderemos do que vem acontecendo se nos mantivermos presos a um marco descritivo-analítico pautado pelas mazelas de uma modernidade incompleta. Tampouco entenderemos o que se passa se tomarmos situações como essas aqui descritas apenas e tão-somente como caso exemplar da “viração” própria das desde sempre conhecidas situações de pobreza. Na verdade, poderíamos multiplicar os exemplos (voltaremos a eles ao fi nal) e, a partir de cada situação, tal como “postos de observação”, apreender os perfi s de um mundo urbano alterado e redefi nido pelas formas contemporâneas de produção e circulação de riquezas, que ativam os diversos circuitos da dita economia informal, que mobilizam o “trabalho sem forma”, para usar a expressão de Francisco de Oliveira (2003), e se processam nas fronteiras incertas do informal, do ilegal e também do ilícito.1 É esse o plano de atualidade, no qual se inscrevem os percursos incertos de personagens urbanos, como o aqui descrito. E cifra de contemporaneidade, pois entra em ressonância com o que vem acontecendo em outros lugares, também nas cidades dos chamados países do Norte.

1 A redefi nição das relações entre o formal e o informal no capitalismo contemporâneo e, mais particularmente, o lugar redefi nido do informal sob a lógica de um processo de acumulação que exige, mobiliza e aciona a sua reprodução ampliada está hoje no centro de um debate que já conta com uma importante literatura de referência. Para efeito deste capítulo, cf. Portes et al. (1989).

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O fato é que as relações incertas entre o lícito, o ilegal e o ilícito constituem um fenômeno transversal na experiência contemporânea. São vários os autores que vem chamando a atenção para essa transitividade entre o informal, o ilegal e o ilícito, com uma preocupação, mais ou menos explicitada, em distinguir a natureza da transgressão que se opera no âmbito da economia informal ou, então, a que defi ne as atividades ilícitas ou criminosas, como o tráfi co de drogas, armas e seres humanos.2

Bem sabemos que essa transitividade acompanha a história de nossas cida-des, já foi cantada em prosa e verso e tematizada por uma já longa e prestigiosa literatura, para não falar das circunstâncias históricas que presidiram o desde sempre expansivo mercado informal. Mas também é verdade que nos vemos hoje em face do desafi o de construir um espaço conceitual distinto do que vigorava até recentemente e pelo qual a discussão se processava sob o ângulo das chama-das incompletudes da modernidade brasileira. Será preciso colocar a situação brasileira sob um outro jogo de referências. Essa é a preocupação que comanda a primeira parte deste capítulo. Não se trata de fazer um balanço bibliográfi co, tampouco rastrear teorias e questões polêmicas, muito menos oferecer explicações ou marcos conceituais alternativos. Arriscaria dizer que se trata não mais do que um exercício, talvez uma experimentação, a partir das pistas que os autores comentados nos fornecem em suas pesquisas, e são essas que interessam, na medida em que oferecem um repertório ampliado de referências pertinentes ao cenário contemporâneo. Na segunda parte, são essas as referências mobilizadas para situar e descrever a situação brasileira, a partir de dois outros “postos de observação”, com ressonâncias desse primeiro, que nos é oferecido por um mo-desto ponto de venda de CDs pirata: os centros do comércio popular na cidade de São Paulo e, depois, o entramado de ilegalismos difusos e a circulação de bens ilegais e ilícitos que gravitam em torno de um ponto de droga instalado em um bairro da periferia paulista.

Nas fronteiras incertas do informal, ilegal e ilícito3

Em um artigo de 1997, Ruggiero e South lançaram mão da metáfora do ba-zar – “a cidade como bazar” – para descrever as intersecções entre os mercados formais e os mercados informais, ilegais ou ilícitos, tal como se confi guraram, a

2 Este capítulo benefi cia-se em larga medida de um programa de cooperação franco-brasileira com pesquisadores da Universidade de Toulouse Le Mirail (Acordo Capes-Cofecub, 2007-2011). É, sobretudo, devedor da interlocução com Angelina Peralva, com quem partilho a coordenação desse projeto. Textos e documentos de referência estão disponíveis no site www.ffl ch.usp.br/sociologia/pos-graduacao/sites/trajetorias/index.htm.3 Retomo aqui e desdobro em outras direções questões tratadas em um artigo escrito em co-autoria com Daniel Hirata (Cf. Telles & Hirata, 2007).

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partir dos anos de 1980, nas metrópoles dos países centrais do capitalismo con-temporâneo. Com evidente intenção polêmica, a metáfora evoca a alteridade nos traços de “orientalismo” associados ao bazar, para chamar a atenção para o fato de que ele, agora, se encontra incrustado no núcleo das modernas (e ocidentais) economias urbanas. Na mira dos autores está um cenário urbano no qual se ex-pande uma ampla zona cinzenta que torna incertas e indeterminadas as diferenças entre trabalho precário, emprego temporário, expedientes de sobrevivência e atividades ilegais ou delituosas. Nas fronteiras porosas entre o legal e o ilegal, o formal e informal, transitam as fi guras contemporâneas do trabalhador urbano, lançando mão, de forma descontínua e intermitente, das oportunidades legais e ilegais que coexistem e se superpõem nos mercados de trabalho. “Mobilidades laterais”, defi nem os autores, de trabalhadores que oscilam entre empregos mal pagos e atividades ilícitas, entre o desemprego e o pequeno tráfi co de rua, nego-ciando, a cada situação e em cada contexto, os critérios de aceitabilidade moral de suas escolhas. É isso propriamente que caracteriza o bazar metropolitano: a intersecção entre os mercados irregulares e os mercados ilegais, esse embaralha-mento do legal e do ilegal, e o permanente deslocamento de suas fronteiras.

O “bazar metropolitano”, dizem os autores, começou a ganhar forma em mea-dos da década de 1980. No caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, o momento da virada conservadora de governos que fi zeram por desmanchar direitos e garan-tias sociais foi o ponto de arranque da precarização do trabalho e a redefi nição dos mercados urbanos de trabalho. Em termos gerais, anos de reestruturação produtiva e da chamada fl exibilização das relações de trabalho que terminou por esfumaçar as diferenças entre trabalho, desemprego e expedientes de so-brevivência, na própria medida em que o assim chamado informal instala-se no núcleo dinâmico dos processos produtivos e, no mesmo passo, se expande pelas vias de redes de subcontratação e formas diversas de mobilização do trabalho precário, sempre nos limites incertos entre o legal, o ilegal, também entre o ilícito e o delituoso, quando isso envolve o tráfi co de seres humanos direcionado para as miríades de ofi cinas clandestinas que se espalham nesses circuitos produtivos (Ruggiero, 2000).

Esses foram também anos em que as atividades ilícitas mudaram de escala, se internacionalizaram e se reorganizaram sob formas polarizadas entre, de um lado, os empresários do ilícito, em particular do tráfi co de drogas e que, a cada local, irão se conectar com a criminalidade urbana comum, e, de outro, os pequenos vendedores de rua, que operam nas margens da economia da droga e transitam o tempo todo entre a rua e a prisão. Esses são os “trabalhadores precários” da droga, que se multiplicam na medida em que o varejo se expande e se enreda nas dinâmicas urbanas: modulação criminosa do capitalismo pós-fordista, criminalidade just-in-time, defi ne Ruggiero (2000), que responde à variabilidade, às oscilações e às diferentes territorialidades dos mercados. É nesse ponto que as atividades ilícitas, não apenas o tráfi co de drogas, passam a compor as economias urbanas nos pontos de intersecção com os expansivos mercados irregulares, esse terreno incerto em

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que operam as “mobilidades laterais” de trabalhadores que transitam nas fronteiras borradas entre o trabalho, expedientes de sobrevivência e o ilícito.

A questão que comanda esse modo de descrever as cidades contemporâneas tem, na argumentação dos autores, um evidente sentido polêmico. De partida, trata-se de deslocar o tratamento do problema da droga do campo da criminolo-gia, isto é, do primado da “lei e da ordem”, com a reiterada (e exclusiva) ênfase na repressão ao crime. Nesse passo, questionam, ao mesmo tempo, o suposto de patologias criminogênicas associadas a certas regiões da cidade (e segmentos da população urbana) vistas como áreas subtraídas ao mundo da lei e ordem, tal como proposto por certas linhagens da pesquisa social. Com isso, os autores buscam desativar a imagem da droga como o grande desafi o e ameaça à vida urbana e paz social, mostrando justamente as intersecções, convergências e conivências entre as economias legais e ilegais. Ao colocar a ênfase no fato de a economia da droga se organizar como mercado, os autores buscam mostrar a transitividade entre uma e outra, as similaridades em seus modos de organização, também em suas clivagens e discriminações internas, bem como no potencial de violência que pode estar inscrito em seus modos de regulação. É esse o ponto crítico que confere interesse à metáfora do bazar. Como dizem os autores, ao ser aplicada às cidades modernas, o termo faz referência a essa superposição do legal e ilegal, também o ilícito, que atravessa os espaços urbanos, sem delimitações territoriais defi nidas, multiplicando as oportunidades para a circulação de bens e produtos de origem duvidosa, e que são transacionados no jogo multiforme das interações sociais independentemente de serem legais ou ilegais, ou de origem ilícita.

Por certo, as questões propostas pelos autores estão longe de dar conta de uma problemática hoje tratada por uma vastíssima literatura sobre a economia da droga em suas várias dimensões, escalas e formas de territorialização. Mas não é bem esse o ponto que interessa aqui discutir. O que importa, isso sim, é reter o plano em que os autores apresentam suas questões, colocando a cidade – o bazar metropolitano – como plano de referência para situar os mercados ilegais em suas interações com as dinâmicas urbanas. É justamente isso que, assim parece, fez a fortuna desse texto nos debates recentes.

Formas contemporâneas de produção e circulação de riquezas

A noção hoje revisitada4 de “economia de bazar” circula entre pesquisadores às voltas com processos próximos às situações descritas por Ruggiero e South. É isso justamente que sugere o interesse da metáfora do bazar para a descrição das cidades contemporâneas, oferecendo um prisma que coloca a cidade como plano

4 A referência a Clifford Geertz (1979) é passagem quase obrigatória pelos autores que lançam mão, atualmente, da noção de “economia de bazar”.

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de referência para a descrição dos processos em curso. E é isso o que permite colocar em perspectiva (e em diálogo) pesquisas que tratam dos vários circuitos e redes de extensão variada que conformam o que se convencionou chamar de economias subterrâneas nas periferias francesas, na superposição das atividades informais e nos mercados de rua, nos quais os fl uxos de dinheiro, mercadorias, bens de origem ilícita e também drogas se entrecruzam em um complexo sistema de trocas, se inscrevem no jogo das relações sociais e passam a compor as dinâmicas urbanas que transbordam amplamente o perímetro estreito dos chamados quartiers sensibles (cf. Kokoreff, 2004, 2000; Duprez & Kokoreff, 2000; Godefroy, 1999). Ou então, a “segunda grande transformação”, para usar os termos de Palidda (2002), que atinge, por exemplo, os núcleos industriais italianos, transfi gurando a moderna e desenvolvida cidade de Milão, agora atravessada por toda sorte de ilegalismos em que se articulam a migração clandestina, a ampla circulação de produtos da contravenção, do contrabando e da pirataria, vindos sobretudo do sudeste asiático (mas não só) e a nebulosa de relações entre o ilegal, o informal e o ilícito, que acompanham os processos de terceirização produtiva ou deslocal-ização das plantas industriais.

Por outro lado, as pesquisas que tratam do que vem sendo chamado de novas formas migratórias lançam luz sobre um outro vetor de constituição da “economia de bazar”, nas trilhas de outras dimensões das reconfi gurações do capitalismo contemporâneo. No contexto francês, Michel Peraldi (1999, 2002), faz uso dessa noção, com referência ao texto de Ruggiero e South, para tratar das dinâmicas urbanas hoje redefi nidas sob o impacto de formas de circulação de bens e riquezas que seguem os amplos circuitos da migração, por onde se estruturam redes transnacionais de um proliferante comércio ambulante. São redes que atravessam fronteiras, articulam centros comerciais espalhados em vários pontos do planeta e se territorializam sob as diversas modulações do chamado mercado informal em expansão nos centros urbanos do primeiro mundo, em particular nas cidades de fronteira, situadas nos pontos de conexão entre esses vários circuitos – muitas delas ponto de chegada de vagas migratórias anteriores e que agora se redefi nem nessa cartografi a mutante do mundo contemporâneo.

Os circuitos por onde circulam os produtos até chegar aos mercados popu-lares nos centros urbanos fazem o traçado de verdadeiras redes transnacionais de trocas informais nas fronteiras porosas do legal e ilegal, sempre tangenciando os mercados ilícitos (drogas, armas, seres humanos). Ao lado do que se poderia chamar de migração da miséria (a tragédia dos clandestinos sobre os quais tanto se fala), observam-se novas formas migratórias que não visam à instalação nos países de destino, colocando em movimento homens e mulheres que circulam entre países e regiões conforme as circunstâncias e oportunidades de trocas e comércio: as “formigas da mundialização” ou “novos nômades da economia subterrânea”, diz Tarrius (2002); pequenos comerciantes que praticam o que Peraldi (2007) chama de commerce à la valise (quer dizer: os nossos conhecidos “sacoleiros”), envolvidos em dispositivos comerciais transnacionais que articulam

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produtores do Norte e consumidores do Sul. Alguns, ou melhor, multidões deles são independentes, outros operam sob a encomenda de comerciantes bem esta-belecidos nos entrepostos comerciais, algo como atacadistas que mobilizam as “formigas” para o abastecimento dos produtos que serão, depois, negociados em outros tantos locais.5 Populações itinerantes que operam em redes mais ou menos extensas, seguindo “os territórios circulatórios”6 tecidos por laços familiares e de proximidade (núcleos sedentarizados das vagas migratórias anteriores), ancoradas nas várias cidades e localidades por onde passam pessoas e produtos.7

São esses circuitos transnacionais de migração que permitem a circulação de bens e mercadorias que, sem esses novos migrantes, não chegariam aos mercados populares do Norte ou do Sul. Esta é a tese defendida por Alain Tarrius: os grandes atores econômicos da mundialização mobilizam os pobres como consumidores, como clientes e também como passadores, fora das regras ofi ciais e ao largo das convenções comerciais, fazendo os produtos chegarem aos países pobres e às populações pobres dos países ricos. Assim, produtos eletrônicos (fi lmadoras, computadores portáteis, aparelhos de mp3, aparelhos de DVDs, etc.), despejados aos milhares em Dubai, espalham-se pelo Leste europeu e chegam até as peri-ferias alemãs ou francesas graças às coortes de afegãos, iranianos, georgianos e mais todos os “derrotados das guerras” que dizimaram os países caucasianos nos últimos tempos. Esses “novos nômades”, populações “em excesso”, seguem as redes sociais construídas nas trilhas das diásporas anteriores ou recentes8 e são portadores de competências circulatórias (ou seja, saber passar pelas fronteiras, contornar as restrições, os controles e as fi scalizações), transformando-se em atores de amplas transferências internacionais de mercadorias. Essa competência circulatória, sugere Tarrius, ajusta-se ao “projeto de uma mundialização selva-gem, porque ultra-liberal”, isto é, “fazer chegar aos mínimos recantos solváveis do planeta, mercadorias de que esses lugares seriam privados em função das oscilações aleatórias das políticas nacionais”:

5 Por exemplo, sírios búlgaros que passam encomendas para afegãos, deixando a estes todos os riscos das passagens pelas fronteiras nos circuitos que articulam Dubai e o Leste europeu, passando por Istambul. Cf. Tarrius (2007).6 “Território circulatório” é termo cunhado por Alain Tarrius (2007) para se referir às tramas relacionais engendradas pelos e nos circuitos transnacionais dessas populações itinerantes.7 Essas novas formas migratórias é matéria de uma já vasta bibliografi a fundada em pes-quisas que seguem os circuitos dessa itinerância globalizada. Além dos textos já citados, ver Cesari (2002), Dimenescu (2001), Portes (1999).8 Há algo como uma geopolítica plasmada na cartografi a dessas itinerâncias que remete às turbulências que devastaram essas regiões ao longo das últimas décadas, ao lado das restrições cada vez mais ferozes nas fronteiras europeias.

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[...] eis, a titulo de exemplo, as peregrinações de uma câmara de vídeo, de concep-ção nova – grava diretamente no DVD – dotada de boas lentes, e que apareceu no mercado mundial em 2005. Em dezembro desse ano, eram vendidas por 420 euros em Dubai e no Kowait, onde chegavam massivamente, como ‘destino fi nal’, enquanto os distribuidores franceses, alemães e espanhóis as comercializavam por um preço em torno de 1400 euros. Depois de uma passagem furtiva pelas fronteiras dos emirados, graças às coortes de migrantes afegãos, iranianos, caucasianos etc., esses aparelhos eram revendidos por volta de 440 euros em Beirute e em Istambul, e 430 euros em Sofi a [...]. Iremos reencontrar essa mesma câmara, por 460 euros, nas periferias francesas, tendo lá aparecido, como se diz, “caídas do caminhão” [tombé du camion], mas que passaram pela Alemanha por intermédio dos turcos que, por sua vez, as receberam dos afegãos e dos azeris, que seguiram os itinerários que passam por Dubai. Quanto aos fabricantes, eles respeitaram estritamente os acordos do comércio internacional, entregando, como ‘destino fi nal’, centenas de milhares de aparelhos em um Estado que conta com apenas alguns milhares de cidadãos. (Tarrius, 2007: 10)

É de se notar, ainda comenta o autor, o aparente paradoxo de formas de contrabando (é disso que se trata) próprias do mundo pré-capitalista e que são agora mobilizadas a serviço da forma contemporânea do capitalismo. São for-mas variadas de contrabando, mobilizando as “formigas da mundialização”, e a elas se deve ainda acrescentar práticas da falsifi cação e da pirataria que se generalizam por todos os lados, muitas vezes com a conivência ou o incentivo das próprias empresas interessadas em colocar em circulação o “nome da marca”, ampliando ainda mais seus mercados nessa espécie de fronteira de expansão do capital que são os “pobres” e seus hoje proliferantes mercados de consumo, no Norte e no Sul, a Leste e a Oeste do planeta. Sob esta lógica, diz ainda Tarrius, em uma observação carregada de consequências, os migrantes passam da ante-rior submissão ao lugar-cidade à submissão às lógicas comerciais apátridas das grandes empresas mundiais. Por certo, “a exploração não é menos sórdida, mas as modalidades de autonomização do migrante são outras”.

[...] a mobilização dos pobres para passar, para contornar normas e regras, produz novas formas de migração, povoadas por esses pequenos atores transna-cionais. Esses migrantes generalizam mobilidades de formigas que se amplifi -cam, em vez de se esgotar na sempiterna concentração de populações em torno das diversas zonas de atividade industrial, agrícola ou de serviços, campos da miséria. Eles são, ademais, excedentes em relação aos limites das nações por onde atravessam, estão fora do raio de ação das políticas ditas de integração e de igualdade de oportunidades para os recém-chegados, generosas mas pouco efi cientes já há várias décadas para inúmeros estrangeiros. Minoritários, certa-mente, mas notáveis atores das circulações transnacionais, mantendo os vínculos com seus locais e meios de origem, se organizando em redes já mundializadas, eles produzem uma nova forma migratória carregada de sentido para o conjunto das populações e dos Estados. (Tarrius, 2007: 180)

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Se, como sugere Ruggiero (2000), o “bazar metropolitano” se constituiu nas trilhas das mutações do trabalho e da implosão das formas reguladas do emprego, vemos aqui o outro lado, em sintonia com o primeiro, modulações de um mesmo processo de reconfi gurações do capitalismo contemporâneo: modos de circulação de bens e riqueza que ganham forma nessa espécie de comércio globalizado de “sacoleiros” nos territórios circulatórios pelos quais os novos migrantes fazem sua itinerância entre fronteiras e países e que se territorializam nos mercados populares e no comércio de rua, hoje em expansão nos centros urbanos dos países do Norte e do Sul.

Essa é questão também tratada por Michel Peraldi (2002) ao estudar os mercados populares que se constituíram no mediterrâneo francês (Marseille, sobretudo). Atento aos circuitos de bens e pessoas (entre países do Magreb e da Europa) que lá deságuam e, em suas pesquisas mais recentes, seguindo outros percursos e outros mercados que ganharam forma na própria medida do endu-recimento das restrições nas fronteiras francesas,9 Peraldi reforça a hipótese de uma circulação ampla de mercadorias que se viabiliza em função dessas populações circulantes. Versões contemporâneas de uma espécie de capitalismo mercantil, talvez, diz ele, um “capitalismo de párias” (Weber), agora conectado aos movimentos superacelerados de valorização do chamado capitalismo fl exível (e as cascatas transnacionais de subcontratações) sob a égide do capital fi nanceiro e que coloca em circulação volumes inimagináveis de modelos, marcas, tipos e variações de estilo; tudo em rapidíssima rotação e ciclos cada vez mais curtos de obsolescência de produtos mal saídos dos espaços produtivos, que vão se substi-tuindo uns aos outros conforme mudam as preferências, os públicos-alvos, o jogo feroz das concorrências e as disputas de mercados. É esse capitalismo perdulário e predatório que ativa tal comércio circulante. É desse formidável desperdício que esse comércio circulante se alimenta. Na análise de Peraldi, são três as fun-ções desses mercados, entre a itinerância desses comerciantes circulantes e seus modos de territorialização nos centros urbanos: capturar produtos destinados a outros mercados, dando-lhes outras destinações improváveis pelas vias ofi ciais dos mercados; relançar todos os “invendidos” (estoques de falência, produtos com defeito, erros de programação, etc.), drenando esses produtos conforme lógicas de

9 Nos últimos anos, também Istambul ou Dubai e, de lá, outras rotas em direção ao Leste, da Ásia Central ao Sudeste asiático. Em todas essas rotas, perfi la-se um tramado de mercados populares, acompanhados de um proliferante comércio de rua, fazendo circular produtos quase sempre de origem duvidosa (contrabando, falsifi cações, fraude, pirataria). Esses mercados pontilham os centros urbanos nos chamados países do Sul, inclusive nos pobres e combalidos Estados africanos, passando pelos também pobres e também combalidos países do Leste europeu ou da região do Cáucaso. A propósito, vejam-se os vários artigos que compõem a coletânea organizada por Adelkhah e Bayart (2007). Quanto à nossa também combalida América Latina, ainda será preciso ir à busca de pesquisas parecidas, mas há evidências de que processos semelhantes vêm ocorrendo, sob as circunstâncias de tempo e espaço próprias a este lado do Atlântico.

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preferência e de usos locais, que o mercado mundial ignora ou não pode atingir; por fi m, reativar o ciclo interrompido de mercadorias postas fora de circulação nas condições modais do mercado mundial, as chamadas “pontas de estoque” que são relançadas, transformadas e adaptadas aos mercados nos quais passarão a circular (cf. Peraldi, 2007).

Essas redes transnacionais por onde circulam produtos e pessoas criam con-dições para a circulação de produtos que, em outras situações, não chegariam a esses mercados: embargos, interditos, controles que marcam as fronteiras, dife-renciais de renda e riquezas que tornam difícil, quando não impossível, o acesso a esses bens e mercadorias. Em outros termos: tais mercados alimentam-se de obstáculos, interditos e proibições que vigoram para a circulação de mercadorias entre países, além das normas e das legislações que codifi cam os regimes de circu-lação em cada país. Porém, é justamente aí que não só se qualifi ca a competência desses pequenos comerciantes, mas também se especifi ca o sentido do “bazar contemporâneo”, tal como proposto por Peraldi: não tanto a oralidade (acordos informais, regras de confi ança, força da palavra dada) e as tramas relacionais que os caracterizam, mas a capacidade de ultrapassar e contornar as fronteiras e as diferenças que demarcam (e obstam) a circulação entre países. Toda uma trama relacional é acionada e toda uma competência circulatória é ativada justamente nas dobras do legal e do ilegal, nas dobras das fronteiras políticas e desses ter-ritórios circulatórios que as transpassam o tempo todo: suborno nas alfândegas, documentos falsos, negócios escusos com fi scais e policiais, trocas de infl uência, compra de proteção, acertos com condutores de caminhões, etc. É nesse sentido que Peraldi faz uso da noção de “economia de bazar”: um dispositivo comer-cial que coloca em cena comerciantes estabelecidos em seus postos, vendedores ambulantes, “sacoleiros”, consumidores e mais a trama de relações que passam por essa teia de intermediários e mediações, pelas quais os agenciamentos são feitos nas dobras do legal e ilegal, do formal e informal. A cada ponto dessa trama que viabiliza a circulação de mercadorias, esses atores estão em situações relacionais, convocados a negociar constantemente a “aceitabilidade moral de seus comportamentos” em uma situação “que torna possível a coexistência da legalidade e da ilegalidade, e a mudança permanente dos seus limites” nos termos de “negociações, sempre situadas, nas cenas públicas ou privadas condicionadas pelas trocas mercantis” (Peraldi, 1999: 56).10

* * *

10 Como diz Peraldi, e também Tarrius, não haveria mercado nem relações mercantis sem um dispositivo de cafés, bares, restaurantes, casas noturnas ou de jogos, ofi ciais ou clandes-tinos, por onde as informações circulam, por onde são tecidos os engajamentos recíprocos, os acordos informais, redes de confi ança e jogos de reciprocidades.

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Vale dizer que na mira desses autores está, na verdade, um ponto crítico que pauta em grande medida as questões postas em discussão. Eles propõem um campo de discussão que desativa essa espécie de amálgama confuso (e nada inocente) que associa migração, miséria, terrorismo islâmico, fundamentalismo religioso, tráfi co ilícito e “crime organizado”, acionando as obsessões securitárias, as políticas repressivas e a legislação de exceção que vêm se multiplicando no cenário europeu. Ao seguir as pistas dessas itinerâncias de bens e pessoas, eles colocam em evidência os mundos sociais que se desenham nos “territórios cir-culatórios” por onde transitam essas populações com base em uma densa trama relacional, contraponto empírico e crítico aos cenários de miséria e degradação associados ao tráfi co de seres humanos e de legiões de clandestinos mobilizados pelas redes de subcontratação e trabalho precário. Essas pesquisas terminam por traçar uma outra cartografi a do mundo e da mundialização, e oferecem, por isso mesmo, um outro jogo de referências para propor as questões pertinentes ao cenário contemporâneo.11

Muito mais poderia ser dito a respeito dessas pesquisas. Por ora, vale reter algumas questões que ajudam a requalifi car o “bazar contemporâneo” que foi nosso ponto de partida.

Primeiro: se há porosidade nas fronteiras do legal-ilegal, do formal-informal, também é verdade que a passagem não é simples. Como parece evidente nos comentários acima, é justamente nessas dobras que se dão os agenciamentos políticos próprios aos mercados de proteção e às práticas de extorsão (fi scais, polícia, agentes políticos, agentes locais dos poderes públicos, etc.) em suas várias modulações, conforme circunstâncias de tempo e espaço, que também variam conforme se alteram as condições políticas, os rigores repressivos e os critérios de incriminação de bens e produtos em circulação (Tarrius, 2002). Esse fato permite situar em escala ampliada uma questão que Michel Misse já propôs há bastante tempo e sempre volta a insistir como central para o entendimento das dinâmicas urbanas próprias aos mercados informais e ilegais nas cidades brasileiras. Em outros termos: nessa espécie de economia política dos ilegalismos urbanos, os mercados de proteção (e práticas de extorsão) compõem a face política do “bazar contemporâneo”. Como afi rma Misse (2006), o mercado de proteção (com suas conhecidas sequelas violentas) é constitutivo das formas de regulação dos mercados informais e ilegais. Pois, então, fi ca a sugestão de que, hoje, essa é uma ques-tão central nos modos de funcionamento do capitalismo contemporâneo. Peraldi propõe a ousada (e interessante) hipótese de que é justamente nesse ponto que se vem dando a apropriação privada dessa riqueza circulante em escala transnacio-nal, envolvendo esses “representantes da ordem”, responsáveis pelo controle das fronteiras e suas passagens. Embora seja longa, vale a pena a citação:

11 Essa operação crítica é questão discutida em Tarrius (2000).

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O contrabando e as circulações transnacionais de mercadorias não podem se efetuar sem o envolvimento e o apoio diretos dos funcionários do Estado, sobretudo os aduaneiros, que permitem “comprar as rotas” [acheter la route] conforme uma expressão usual em Tanger. O signo mais tangível da regularidade dos lucros do commerce à la valise e de outras formas de contrabando pode ser averiguado diretamente no luxo ostensivo das “vilas” que os aduaneiros argelinos construíram nos bairros ricos de Oran, Tanger ou La Marsa. [...] Esses benefi ciários do comércio transnacional podem ser encontrados, agora, ao lado das classes médias dos países emergentes, nos mesmos bairros em que moram, nas portas das escolas privadas em que seus fi lhos estudam, nas mesmas estações balneárias onde passam as férias, com a particularidade de terem sido formados na dobras do capitalismo mercantil e também das econo-mias rentistas. [...] essas categorias sociais são economicamente estéreis, na medida em que seus modos de enriquecimento, por mais espetaculares que sejam, raramente constituem um princípio de acumulação primitiva capitalista convertida em alguma forma de investimento produtivo [...]. Porém, em geral, suas despesas suntuárias ou estatutárias notadamente sob lógicas patrimoniais (fi lhos, casa, aquisições imobiliárias) abrem espaço para as lógicas especulativas das quais são mais vitimas do que benefi ciárias, deixando o campo livre para a constituição de um capitalismo deslocalizado em campos que eles próprios abriram. A emergência de um capitalismo chinês transnacional nesses terrenos é, hoje, a manifestação mais visível e mais unifi cada da qual será necessário ainda fazer a história e o inventário. (Peraldi, 2007: 109)

Expedientes crapulosos, diz Peraldi, que se alimentam de todos os contro-les e interdições que pesam sobre essas populações circulantes. Mas são esses mesmos interditos, é importante também dizer, que ativam a agenda securitária e as políticas de exceção no cenário europeu, desdobrando-se na redefi nição contínua das formas de controle e suas modalidades operatórias (cf. Adelkhah & Bayart, 2007; Cuttita, 2008). Em outros termos, se as migrações, como bem nota Sassen (1998), é constitutiva da história do capitalismo e é hoje um vetor poderosíssimo dos modos de circulação de riquezas, não é possível deixar de considerar os expedientes que se fazem justamente nas fronteiras-passagens, bem como os deslocamentos e as redefi nições que se processam em função desses agenciamentos político-repressivos, com impactos consideráveis nas regiões de passagem: confl itos, turbulências, violências, controles mafi osos e, sobretudo, o que um autor chamou de “arquipélagos da exceção” que redesenham a cartografi a do mundo contemporâneo (cf. Ramoneda, 2008).

Se há porosidade nos âmbitos formal-informal, legal-ilegal, lícito-ilícito, isso não quer dizer indiferenciação entre uns e outros, pois é justamente nas suas dobras que se dão os agenciamentos políticos (corrupção, extorsão, repressão, violência e as várias modulações dos mercados de proteção, entre outros) que condicionam essa ampla circulação de bens, mercadorias, pessoas e populações itinerantes. Em outros termos, ao contrário do que muitas vezes sugere a metá-

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fora dos fl uxos e dos circuitos, os espaços não são lisos, e são justamente suas asperezas, digamos assim, que interessa averiguar; é justamente aí que se vai constelando a face política do “bazar contemporâneo”. Por outro lado e ao mesmo tempo, as pesquisas aqui comentadas sugerem que é também nessas dobras que se circunscrevem campos de gravitação, para lembrar outra metáfora, dessa vez vinda de Thompson, o historiador, de experiências regidas por uma espécie de “arte do contornamento” que a competência circulatória descrita pelos autores de alguma forma expressa, mas que também poderíamos (e podemos) identifi car como um traço transversal da experiência contemporânea, bastante evidente, aliás, no âmbito de nossas cidades.

Segundo: o tráfi co de drogas está presente e também compõe este amplo cir-cuito transnacional de circulação de bens, mercadorias e pessoas. Não é o caso, nos limites deste capítulo, de se deter nas circunstâncias que, sobretudo no correr dos anos de 1990, fi zeram desses tráfi cos uma proliferante e muitíssima rendosa atividade com impactos consideráveis nas dinâmicas (e economias) urbanas nas cidades e regiões por onde passam e se enraízam. Por enquanto, basta dizer que as redes transnacionais da economia da droga mudaram de escala e amplitude no correr desses anos. São outras modulações dos mesmos processos que ativaram as migrações transnacionais das últimas décadas (cf. Tarrius, 2007), ganhando confi gurações particulares conforme as circunstâncias geopolíticas (mutantes e turbulentas) das regiões produtoras e de passagem (Chouvy & Aureano, 2001). Estruturam-se como verdadeiras economias que se benefi ciam das mutações recentes do capitalismo contemporâneo (produção fl exível, fi nanceirização da economia, tecnologias digitais) nas condições de ultraliberalismo e enfraque-cimento das regulações estatais (Naim, 2006). Vale notar: se é verdade que os circuitos e as redes do comércio circulante transnacional tangenciam e por vezes, sob circunstâncias locais, se articulam com os tráfi cos ilícitos, essas redes não se confundem. Tarrius mostra, sobretudo em suas pesquisas mais recentes (nas rotas do Leste europeu), que não se trata das mesmas redes nem dos mesmos agenciamentos locais. As conexões, os comprometimentos e os modos de regulação (controles mafi osos e violentos no caso das drogas) são outros, as rotas (com seus pontos/locais de passagem) também não são as mesmas, apesar de sua proximi-dade nas vastas regiões, ao Sul e ao Leste, por onde passam.

No entanto, a questão se coloca de outro modo quando vista sob o ângulo das dinâmicas e economias urbanas das regiões em que a economia da droga se instala e se ramifi ca: seja seus impactos nos mercados urbanos de trabalho e a questão das “mobilidades laterais” de que falam Ruggiero e South; seja suas ramifi cações nas economias urbanas em uma nebulosa de relações pelas quais o dinheiro da droga circula e impulsiona os mercados e os empreendimentos legais com impactos consideráveis na economia local, para além do que se poderia de-signar genericamente como operações de lavagem do dinheiro “sujo” (cf. Peraldi, 2008; Guez, 2007); seja, no plano de seus modos de territorialização nas periferias urbanas, seu imbricamento no jogo das relações sociais e na lógica da “viração”

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de todos os dias, que se faz justamente nas fronteiras embaralhadas do legal e ilegal, lícito e ilícito (Kokoreff, 2004); seja, ainda, a redefi nição dos jogos locais de poder e seus modos de regulação na disputa pela apropriação dessa forma nebulosa de riqueza (entre corrupção, formas de clientelismo, acordos mafi osos, violência aberta ou camufl ada) em situações de encolhimento das prerrogativas estatais ou, então, de perda do monopólio da violência legítima, para lembrar aqui a fórmula famosa de Weber (Rivelois, 1996; Chassagne, 2004).

Retomando o ponto de partida: se a noção de “bazar metropolitano” interes-sa, é sobretudo porque oferece um plano de referência que permite situar (mas sem confundi-los em um amálgama confuso) os vetores que hoje atravessam e estruturam as dinâmicas urbanas atuais. São eles as mutações do trabalho (e as redes nebulosas de subcontratação) que tornam incertas as diferenças entre trabalho precário, emprego temporário, expedientes de sobrevivência e ativi-dades ilegais – a zona cinzenta em que operam as “mobilidades laterais” dos trabalhadores urbanos nos principais centros metropolitanos da atualidade. São também as formas de circulação de riqueza que se territorializam nas várias modulações do dito mercado informal e do comércio popular proliferante nos centros urbanos por onde circulam bens e produtos de origem duvidosa entre pirataria, contrabando, falsifi cações ou simplesmente desvio dos circuitos pro-dutivos ofi ciais. Trata-se ainda do mercado dos bens ilícitos (drogas, sobretudo) também conectados em redes transnacionais, com capilaridades nas dinâmicas urbana e que dependem, assim como outros mercados ilegais, em seus modos de territorialização, dos mercados (também ilegais) de proteção – esses também compõem o “bazar metropolitano” na sua face política ou então crapulosa, para lembrar aqui a discussão proposta por Peraldi.

Dinâmicas urbanas redefi nidas

Bem sabemos que, entre nós, o “bazar metropolitano” não é exatamente uma novidade. Esse trânsito entre o informal e o ilegal, quiçá o ilícito, sempre ocorreu em cidades marcadas desde longa data por um expansivo mercado informal, sempre próximo e tangente aos mercados ilícitos que também têm uma história importante de ser, em outro momento, reconstruída (cf. Misse, 2006; Zaluar, 2004). Porém, se há, hoje, a reatualização de uma história de longa duração, há também um des-locamento considerável na ordem das coisas. É também nesse ponto que o “bazar metropolitano” descrito por Ruggiero interessa como referência que permite situar a contemporaneidade e as ressonâncias do que acontece aqui e lá.

Por outro lado, se a situação brasileira tem que ser vista sob o ângulo dos processos transversais que a atravessam, também é importante averiguar os modos de sua territorialização, em interação com contingências locais, história e tradições herdadas, assimetrias e desigualdades que lhes são próprias. Nesse

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plano, a referência ao “bazar contemporâneo” também interessa, na medida em que propõe a escala urbana para a descrição de recomposições, redefi nições e deslocamentos nas relações entre o informal, o ilegal e o ilícito, em suas intera-ções com os circuitos urbanos de circulação de riqueza e as relações de poder inscritas em seus pontos de intersecção.12

Será importante verifi car o modo como as dinâmicas urbanas são redefi nidas por essas novas formas de produção e circulação de riquezas que caracterizam a experiência contemporânea. Trata-se do engendramento de formas urbanas atravessadas por circuitos econômicos em escalas variadas que se superpõem e se entrecruzam nos mercados informais, também eles redefi nidos, pois agora conectados a economias transnacionais que mobilizam os trabalhadores e ati-vam agenciamentos locais informais, também ilegais, para fazer circular bens e mercadorias.

Basta seguir os produtos que circulam nos centros de comércio popular, com a legião de ambulantes que fazem circular mercadorias de origem variada, quase sempre duvidosa, pondo em ação verdadeiros dispositivos comerciais que fazem a articulação entre o informal e os circuitos ilegais de economias transnacionais (contrabando, pirataria, falsifi cações). Com uma densidade notável no centro da cidade, esses mercados de consumo popular se expandem igualmente nas regiões periféricas, desenhando outros tantos pontos de gravitação do comércio informal que se estruturam em uma trama variada de relações tecidas na junção das circunstâncias da chamada economia popular, controles mafi osos de pontos de venda e a circulação de bens lícitos ou ilícitos de procedência variada. São pontos de ancoramento de um capitalismo que, como diz Alain Tarrius, mobiliza os “pobres” como clientes, consumidores e operadores ou passadores, garantindo a circulação e a distribuição de mercadorias que, sem esses circuitos nas fronteiras porosas do legal e ilegal, quando não do ilícito, não chegariam aos recantos mais pobres das várias regiões do planeta.

Um parêntesis, para uma observação, a ser desenvolvida em outro momento: se essa hipótese se sustenta, então é preciso reconhecer que isso torna inoperante e desativa o campo de discussão pautado pela questão da exclusão-inclusão, como categorias descritivo-analíticas. Na verdade, essas multidões de “descartáveis” ou “descartados” dos mercados de trabalho são, elas mesmas, as que estão na mira – são o ponto de mira – do capitalismo contemporâneo. A rigor, arriscando uma formulação ainda imprecisa, há indicações de que a pobreza (no Norte e do Sul) passou a se constituir em uma fronteira de expansão do capital. Nas pesquisas aqui comentadas, temos talvez o registro do lado informal-ilegal do capitalismo contemporâneo. Longe de ser uma “face oculta”, está no centro mesmo das dinâ-micas atuais e se entrelaçam (sob modos a serem prospectados) com o seu lado “ofi cial-legal”, de que é evidência a hoje acirrada disputa pelos mercados populares,

12 Essa é a aposta inscrita nos vários artigos que compõem a coletânea organizada por Kokoreff, Peraldi e Weinberger (2007).

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ditos C e D (no Brasil e em todos os lugares) pelas vias da expansão dos cartões de crédito e formas variadas de endividamento fi nanceiro. Esse é o outro lado dos hoje proliferantes e celebrados mercados populares de consumo, em expansão nos centros urbanos em várias regiões do planeta. Como mostra a pesquisa desenvol-vida por Claudia Sciré (2009), algo como uma fi nanceirização da pobreza, agora também conectada aos fl uxos acelerados de valorização do capital.

Voltando ao ponto que aqui interessa discutir: se bem, é verdade, que o comércio informal existe desde muito tempo em nossas cidades, a mudança de escala e essas redefi nições se deram nos últimos 15 anos, mais intensamente na passagem dos anos 2000, acompanhando os ritmos e as evoluções aceleradíssimas da abertura dos mercados e circuitos transnacionais por onde circulam bens e mercadorias, transpassando fronteiras, regulamentações, restrições nacionais, de que o fenômeno maciço do contrabando e das falsifi cações é o registro visível nos centros urbanos dos países a norte e a sul, leste e oeste do planeta (cf. Peraldi, 2007; Tarrius, 2007; Pinheiro-Machado, 2008).

São reconfi gurações que vem se processando, esse o segundo ponto a ser nota-do, em um cenário urbano muito alterado em relação às décadas passadas. Sinais evidentes de “modernização urbana”, ou o nome que se queira para designar as evoluções recentes da cidade (não só São Paulo, diga-se) e que vêm se processando desde os anos 1990: universalização das redes de saneamento e luz elétrica, atin-gindo mesmo as regiões mais distantes, em que pesem vazios e descontinuidades na produção desses espaços (Marques & Bichir, 2001). O mesmo se pode dizer dos serviços de educação e saúde. De uma maneira geral e ao menos sob esse ponto de vista, há uma melhora, relativa, mas notável, dos indicadores sociais.13 Ainda: multiplicação, nos bairros populares, de programas sociais de escopo variado e, ao lado ou em torno deles, a proliferação de associações ditas comuni-tárias em relações de parceria (ou não) com os poderes públicos, com fundações privadas, com agências multilaterais, tudo isso em interação com miríades de práticas associativas, além da quase onipresença de ONGs vinculadas a circuitos e redes de natureza diversa e extensão variada. Ou seja: um feixe de mediações que desenham um mundo social anos-luz de distância das imagens de desolação das periferias urbanas de 30 anos atrás. E o mais importante: a consolidação da cidade como centro econômico e fi nanceiro de primeira grandeza, com seus es-paços, serviços de ponta e equipamentos conectados nos circuitos globalizados da economia (Marques e Torres, 2000), desdobrando-se na multiplicação de grandes equipamentos de consumo que se distribuem em um grande arco que atinge as regiões as mais distantes das periferias urbanas. A recente articulação desses equipamentos e redes comerciais com o sistema fi nanceiro fez generalizar o uso dos cartões de crédito, compondo o lado formal (e amplamente celebrado) de um consumo popular que se faz sob a lógica do endividamento, também generalizado

13 Remeto o leitor às várias pesquisas, cartografi as e documentos produzidos no âmbito do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), São Paulo: www.centrodametropole.org.br.

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(Sciré, 2009), expandindo-se ao lado dos circuitos do comércio informal que, ao mesmo tempo e no mesmo passo, se espalham por todos os lados.

É nesse cenário que o mercado varejista das drogas ilícitas se estrutura de uma forma mais ampla e mais articulada do que ocorria nas décadas passadas, multiplicando os pontos de venda por toda a extensão das periferias urbanas. Mas isso também signifi ca dizer que a expansão da economia da droga e suas capilaridades nas tramas sociais acompanham a aceleração dos fl uxos de circu-lação de riquezas em um mundo urbano que está longe de validar as imagens correntes que associam drogas e vazio institucional, pobreza extrema, anomia e desorganização social. A entrada das drogas no cenário paulista não é recente. A cocaína, vinda principalmente da Colômbia, entrou maciçamente na cidade nos anos 1990. Porém, diferentemente do que acontecia no Rio de Janeiro nessa mesma época, o varejo e a multiplicação dos pontos de venda se fez de forma gradual, difusa, sem o comando de grupos organizados, sob modos diferenciados e descompassados, conforme circunstâncias locais de cada região da cidade. O ponto de virada deu-se, ao que parece, no início dos anos 2000,14 portanto em um momento em que a potência econômica da cidade se fi rma e se confi rma, acompanhada de uma festiva celebração de sua modernidade globalizada. Há um conjunto de fatos e circunstâncias impossível de reconstituir nos limites destas páginas, uma história interna da economia da droga, os circuitos transnacionais por onde transita, seus modos de territorialização no cenário paulista e suas re-lações com a criminalidade organizada.15 Mas não é esse o ponto que interessa aqui discutir. Mais fecundo para a compreensão dos mundos urbanos que vêm se desenhando nesses anos é um esforço no sentido de colocar em perspectiva a expansão do varejo da droga nas periferias da cidade e essa reconfi guração dos ilegalismos urbanos que acompanham as evoluções recentes da cidade. Pois é nesse plano que o varejo da droga se enreda nas tramas urbanas em que fl uxos de dinheiro, de mercadorias, bens e produtos legais, ilegais ou ilícitos se superpõem e se entrelaçam nas práticas sociais e nos circuitos da sociabilidade popular.

O fato é que essa teia variada de ilegalismos vem se processando no interior e nos meandros de um cenário urbano que, em muitos sentidos, desativa todo

14 É uma história muito recente e que ainda terá que ser mais bem compreendida em seus fatos e circunstâncias. Em linhas gerais, corresponde ao momento em que o chamado Primeiro Comando da Capital (PCC) consolida sua hegemonia no universo carcerário e transborda sua presença para além das prisões, passando a controlar o varejo da droga em São Paulo. A esse respeito, ver Adorno e Salla (2007).15 Essas questões vêm sendo tratadas por uma pesquisa em curso, desenvolvida por An-gelina Peralva (Universidade de Toulouse Le Mirail), Jacqueline Sinhoreto (Universidade Federal de São Carlos) e Fernanda Almeida (doutoranda, Unicamp). Centrada na análise do Relatório da CPI do Narcotráfi co da Câmara dos Deputados, publicado em 2000, essa pesquisa foi lançada no âmbito de um Convênio Capes-Cofecub (cf. nota 5) e está atualmente sendo desenvolvida nos quadros do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) sobre Violência, Democracia e Segurança Cidadã, coordenado por Sergio Adorno (NEV/USP).

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um jogo de associações pelos quais se convencionou tratar desses temas, em suas relações com a pobreza, privações sociais, carências urbanas, ausência do Estado, quer dizer: no registro do que falta, do que falha, do que não se completa. Aqui, retomamos o ponto de partida deste capítulo. É aqui que se situa, mais precisa-mente, a exigência de mudança de registro e deslocamento do jogo de referência para descrever essas situações e situar o plano de atualidade em que se inscrevem. É nesse plano que importa averiguar o modo como esses processos redesenham os mundos urbanos e redefi nem ordenamentos sociais.16 Mais concretamente: o modo como esses ilegalismos redefi nem as tramas urbanas, as relações sociais e relações de poder em situações variadas.

Essa é uma discussão de fôlego, que vai muito além do que se tem condições de fazer neste capítulo. Por ora, o que se pretende é apenas colocar em discussão algumas questões que defi nem, a rigor, todo um programa de investigação em-pírica e teórica,17 mas que, por isso mesmo, talvez sejam importantes de serem aqui lançadas, algo como marcadores do que pode estar em jogo nesses mundos urbanos redefi nidos.

A gestão diferencial dos ilegalismos

A primeira questão diz respeito ao lugar desse feixe variado de ilegalismos no tecido urbano. De partida, será importante se deter sobre essa transitividade entre o legal e ilegal que parece, hoje, estar no centro das dinâmicas urbanas de nossas cidades. Se há porosidade entre o formal e informal, legal e ilegal, isso não quer dizer indiferenciação entre uns e outros. Leis, codifi cações e regras formais têm efeitos de poder, circunscrevem campos de força, e é em relação a elas que essa transitividade de pessoas, bens e mercadorias precisa ser situada.18 E, a rigor, descrita. Não se trata de universos paralelos, muito menos de oposição entre o formal e informal, legal e ilegal. Na verdade, é nas suas dobras que se circuns-crevem jogos de poder, relações de força e campos de disputa. São campos de força que se deslocam, se redefi nem e se refazem conforme a vigência de formas

16 Esse é um campo de pesquisa e uma perspectiva de análise que podem ser encontrados, com variações importantes entre eles, em Ruggiero e Nigel (1997); Peraldi (2002, 2007); Kokoreff et al. (2007); Tarrius (2007). Entre nós, ver Zaluar (2004) e Misse (2006).17 Trata-se de um coletivo de pesquisa sob minha coordenação e que se benefi cia do programa de cooperação franco-brasileiro referido na nota 5. Em particular, no que diz respeito ao comércio informal, a pesquisa em curso também conta com o apoio de um Convenio USP-Aird assinado nos quadros de um programa mais amplo (ANR-Aird, França), envolvendo quatro cidades latino-americanas (México, Caracas, Buenos Aires, São Paulo).18 Para um discussão bem próxima ao que se está aqui propondo, ver Rabossi (2005) e Cunha (2006).

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variadas de controle e também, ou sobretudo, os critérios, procedimentos e dispo-sitivos de incriminação dessas práticas e atividades, oscilando entre a tolerância, a transgressão consentida e a repressão conforme contextos, microconjunturas políticas e as relações de poder que se confi guram em cada qual.19

Nesse ponto será importante recuperar a noção de “gestão diferencial dos ilegalismos” proposta por Foucault. Lembremos: ao cunhar essa noção em Vigiar e Punir (1975), Foucault desloca a discussão da tautológica e estéril binaridade legal-ilegal, para colocar no centro da investigação os modos como as leis operam, não para coibir ou suprimir os ilegalismos, mas para diferenciá-los internamente, “riscar os limites de tolerância, dar terreno para alguns, fazer pressão sobre outros, excluir uma parte, tornar útil outra, neutralizar estes, tirar proveito da-queles” (Foucault, 2006: 227). Na passagem do século XVIII para o século XIX, tratava-se de lidar com uma “nova economia política dos ilegalismos populares”, uma outra distribuição dos ilegalismos que acompanhava as novas formas de produção e circulação de riquezas (a economia urbano-industrial), seus modos de apropriação (o instituto jurídico da propriedade privada) e as polarizações confl ituosas (e explosivas) de classes que desfaziam as cumplicidades anteriores e se desdobravam nas “multidões confusas” que era preciso, então, desfazer e ordenar sob a lógica dos dispositivos disciplinares então em formação.

Ilegalismo:20 não se trata de um certo tipo de transgressão, mas de um conjunto de atividades de diferenciação, categorização, hierarquização postas em ação por dispositivos que fi xam e isolam suas formas e “tendem a organizar a transgressão das leis em uma tática geral de sujeições” (Foucault, 2006). A noção é estratégica na operação crítica realizada por Foucault nesse livro: um deslocamento de pers-pectiva que desmonta, como bem diz Lascoume (1996), categorias de evidência e grades de leitura pré-construídas (nesse caso, as categorias jurídicas penais e a criminologia do século XIX) e, no mesmo passo, faz ver seus efeitos de poder no quadro geral de transgressões múltiplas que acompanhavam as evoluções da socie-dade da época, introduzindo clivagens que permitiriam classifi car as infrações de uma nova forma. Na mira crítica de Foucault estava a produção da delinquência, forma objetivada pelos dispositivos de poder inscritos no sistema carcerário e pela qual a gestão diferencial dos ilegalismos se realizava como parte dos meca-nismos de poder. Se a oposição jurídica ocorre entre legalidade e prática ilegal, diz Foucault, “a oposição estratégica ocorre entre ilegalismos e delinquência”. É nesse deslocamento que Foucault faz ver toda uma redistribuição de práticas, de saberes e relações de poder. E mostra como o corte entre delinquência e outros

19 Questão especialmente trabalhada por Kokoreff (2004) em suas pesquisas sobre os “mundos da droga” no contexto francês. Entre nós, cf. Misse (2007).20 Agradeço a Jorge Villela por ter-me chamado a atenção para a diferença entre ilegalismos e ilegalidade, termo este que consta da tradução brasileira de Vigiar e Punir. Como Acosta (2004) esclarece, o termo “ilegalismo” não foi acolhido pelos dicionários da língua portu-guesa e, em sua forma original, tampouco foi aceito pelos dicionários franceses.

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ilegalismos desloca-se e recompõe-se sob outras modalidades, circunscrevendo, no cenário do século XIX, todo um campo político de lutas, resistências, reações, também inversões e disputas de sentido em um mundo popular crivado pelos dispositivos disciplinares em ação (Foucault, 2006: 237-242).

Não é o caso aqui de refazer todo o argumento de Foucault e seus desdo-bramentos. Por ora, interessa reter essa diferença entre ilegalismos e modos de objetivação, os pontos de incidência das clivagens produzidas e seus efeitos na distribuição das suas multiplicidades, tal como campos de gravitação de práticas, de disputas, de confl itos e jogos de poder. É o que permite colocar em pers-pectiva, em um mesmo plano de referência, essas transgressões múltiplas, sem dissolvê-las sob um nome comum ou em um amálgama confuso e indiferenciado. Ilegalismos: um “instrumento de análise”, como diz Lascoume (1996), que aqui, no uso que se está fazendo da noção, permite rastrear essa transitividade entre o ilegal, o informal, e o ilícito, que foi aqui nosso ponto de partida. Ainda: um plano de referência que permite um trabalho de prospecção do social, sem se deixar cativo, vamos dizer assim, dos objetos ou campos de objetivação postos, no que diz respeito aos temas aqui tratados, pela economia, pela sociologia do trabalho, também pela sociologia urbana (o problema do formal-informal) ou pela criminologia (crime e delinquência).

Os ilegalismos, diz Foucault em outro texto, não são imperfeições ou lacunas nas aplicações das leis. Antes, contêm uma positividade que faz parte do funcionamen-to do social, compõem os jogos de poder e se distribuem conforme se diferenciam “os espaços protegidos e aproveitáveis em que a lei pode ser violada, outros em que ela pode ser ignorada, outros, enfi m, em que as infrações são sancionadas”. As leis, diz Foucault, “não são feitas para impedir tal ou qual comportamento, mas para diferenciar as maneiras de contornar a própria lei” (Foucault, 1994: 716). Porém, é justamente nesses torneios da lei que as questões se confi guram. É isso o que está sendo aqui visado ao se chamar a atenção para o que acontece nas dobras do legal-ilegal. Não se trata de reter ou se ater a essa binaridade como chave explicativa, mas de seguir, prospectar seus efeitos, o modo como os jogos de poder se confi guram nesses espaços, a distribuição diferenciada dos controles e, em torno deles, os agenciamentos práticos que se curvam ou que escapam aos dispositivos de poder implicados nessas categorias e codifi cações.

É isso o que se pode seguir no registro dos ilegalismos difusos inscritos nas mobilidades laterais das fi guras contemporâneas do trabalhador urbano, a cena descritiva que abre esse capítulo. É o que também se pode fl agrar em duas outras cenas descritivas que se pretende, na sequência, discutir. Não são apenas casos ou exemplos interessantes. Mas situações nas quais feixes variados de relações e conexões estão constelados. É por isso que, colocadas lado a lado, elas se comu-nicam pela transversalidade das questões postas em cada uma. Em cada qual, jogos situados de escalas. Confi gurações diferentes dos campos de força nos quais e através do quais os ilegalismos fazem o traçado da vida urbana. Primeiro: os circuitos entrelaçados no comércio informal e que fazem ver os ilegalismos pul-

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sando no centro nervoso da economia urbana da cidade. Segundo: o cenário é a periferia paulista, onde todos esses fi os se enredam, também no varejo da droga, um plano crivado pela clivagem entre ilegalismos e crime.

Comércio informal e mercadorias políticas21

Ruas 25 de Março e Santa Ifi gênia, centro da cidade de São Paulo: outro re-gistro, outra escala, mas é por aqui mesmo que passam os fi os que vão se enredar no ponto de venda de Doralice. Nesses tradicionais centros do comércio popular, há uma espantosa concentração de ambulantes, pequenos comerciantes de produ-tos diversos, lojas de galeria, além de toda uma heterogênea gama de pequenos negócios e serviços que compõem a economia urbana da região. Uma verdadeira multidão ocupa essas ruas, uma massa compacta de homens e mulheres de perfi s variados: consumidores comuns vindos de várias regiões da cidade, também dos bairros periféricos, mesmo os mais distantes; pequenos comerciantes em busca de produtos para abastecer seus negócios, também espalhados por toda a cida-de, também nas periferias urbanas; sacoleiros vindos do interior da cidade e de outros estados e países do Cone Sul, também angolanos que mobilizam, por sua vez, toda uma gama de serviços e expedientes para a travessia do Atlântico e a viabilização das operações de compra e transporte de mercadorias. Na “feira da madrugada”, que acontece na Rua 25 de Março, todos os dias, entre as 3 horas e as 6 horas da manhã, e outras duas no Brás, feiras de ambulantes, de 5 a 7 mil barracas, formam verdadeiros labirintos de corredores estreitos, entulhados de mercadorias de todos os tipos e por onde homens e mulheres circulam e se atropelam com seus enormes sacos de plástico abarrotados de compras. Aqui, a venda é por atacado. A estimativa é de 15 a 20 mil pessoas, diariamente. No entorno próximo, centenas de ônibus estacionados, por volta de 200 por dia, boa parte deles fretada, vindos do interior de São Paulo, do Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais, alguns de estados do Nordeste, outros de países vizinhos, sobretudo Argentina (Freire, 2008). Como se vê, os fl uxos desses diversos tipos de consumi-dores passam por circuitos de uma dinâmica urbana que transborda amplamente o perímetro local. O mesmo se pode dizer das mercadorias em circulação. Enfi m, estamos aqui longe das tradicionais economias de sobrevivência. Mas no núcleo de uma pulsante economia urbana, instalada no centro dinâmico da cidade, inteiramente conectada aos circuitos modernos e globalizados da economia.

Aqui, sigo de perto a pesquisa desenvolvida por Carlos Freire (2008, 2009). Os percursos que os produtos transcorrem até chegar a esses lugares fazem o traçado de circuitos de extensão variada que se estruturam nas fronteiras porosas, por vezes indiscerníveis, de formal e informal, legal e ilegal. São fábricas estabelecidas que

21 Neste tópico, os créditos devem ser partilhados com Carlos Freire, que vem conduzindo a pesquisa sobre a qual me apoio; o tratamento teórico e empírico de Freire foi (e é) central para formulação das questões aqui postas em discussão.

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lançam mão dos ambulantes como estratégia de distribuição fora dos controles e regulações ofi ciais. Podem ser sobras, produtos fora de linha e com defeito ou, então, estratégia para disputar mercado quando não é possível entrar no circuito formal dominado por marcas famosas e altos custos de comercialização. São pequenas ofi cinas, autônomas ou subcontratadas, que pipocam no entorno e nas pontas das periferias em que também se multiplica o trabalho a domicílio sob encomenda e que encontram, uns e outros, nos ambulantes o conduto para o escoamento dos produtos, em alguns casos uma estratégia informal, mas não propriamente ilegal, de distribuição; em outros casos, os produtos seguem percursos mais obscuros (desvio, falsifi cação), junto com um verdadeiro mercado negro de etiquetas de marcas conhecidas.22 Também os sacoleiros que praticam o pequeno contrabando de formiga no trajeto Paraguai-São Paulo (Rabossi, 2005), abastecendo as miríades de pontos de venda distribuídos entre ambulantes e pequenos comerciantes locais que operam, também eles, nas fronteiras incertas do formal e informal. Claro, lá estão os chineses, comerciantes cada vez mais presentes e cada vez mais impor-tantes nesse comércio (Pinheiro-Machado, 2008). Eles dominam amplamente as lojas de galeria, comandando uma ampla distribuição de produtos eletrônicos e mais uma variedade infi nita de produtos, sobretudo peças de vestuário, além de quinquilharias de todos os tipos imagináveis. Dos contêineres desembarcados no porto Santos às lojas de galeria, os produtos passam pelas vias de redes mais longas e mais intrincadas por onde o empreendimento pesado do contrabando se efetiva entre exigências de infraestrutura (transporte e armazenagem), manipulações fi s-cais (fraudes, suborno, corrupção) e dispositivos comerciais locais que acionam o comércio de rua e sua legião de ambulantes para viabilizar a ampla distribuição dessa quantidade incontável de produtos de qualidade mais do que duvidosa, co-pias baratas, falsifi cações mal feitas, ou desses falsos-verdadeiros, como diz Alain Tarrius (2007), ao descrever esse tipo de comércio no Leste Europeu. Ao lado disso tudo, a quase onipresença dos pontos de venda de CDs piratas, nos quais se condensam redes superpostas de escalas variadas que passam pelo contrabando de CDs virgens que chegam aos milhares ao Paraguai, vindos do Sudeste Asiático; laboratórios clandestinos de gravação capitaneados por verdadeiros empresários do negócio ilegal (ao que parece, em sua maioria sob controle de grupos chineses);23 também pequenas produtoras piratas que se abastecem nas lojas estabelecidas formalmente no interior das galerias e que oferecem um verdadeiro kit de gravação (aparelhos, matrizes, fontes, senhas) para quem dispuser de recursos para tanto e tiver a esperteza necessária para o trato do negócio (Freire, 2009).

Aqui, fi ca tudo embaralhado, intrincado, porém é indiferenciado talvez apenas para o consumidor para quem pouco importa a procedência legal ou ilegal do produto transacionado. Voltamos aqui às dobras do legal-ilegal. É justamente nesse ponto

22 Como mostra Carlos Freire (2008), esse é um expediente especialmente presente no hoje muito dinâmico e globalizado circuito das confecções. 23 Conforme informações contidas no relatório da CPI da Pirataria, publicado em 2004.

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que os negócios são feitos, as oportunidades aparecem e a riqueza circula. Afi nal, é um mercado que, a rigor, se alimenta dos controles e interditos legais-formais e que gera uma riqueza que depende justamente dos artifícios inventados e agenciados para contornar restrições, controles, fi scalizações (cf. Tarrius, 2007; Peraldi, 2002, 2007). Como diz Fernando Rabossi em seu estudo sobre os sacoleiros que transi-tam na fronteira com o Paraguai (Ciudad del Este), há uma “articulação particular entre regras e práticas” que precisa ser bem entendida, uma “dinâmica em torno das regras” que é fundamental para se compreender os modos de territorialização desse comércio, a espacialização das trocas e a distribuição das possibilidades e oportunidades desses que fazem da venda de rua uma forma “ganhar a vida” (Rabossi, 2004: 169). Mais concretamente, e esse é o foco da pesquisa de Carlos Freire, nessas dobras do legal-ilegal, são colocados em ação agenciamentos prá-ticos, que operam como pontos de ancoramento de circuitos econômicos variados e sobrepostos, fazem as passagens entre os legal e legal, formal e informal e se desdobram em verdadeiros dispositivos comerciais dos quais depende essa ampla circulação de bens, de mercadorias, de produtos, de pessoas.

Porém, nada disso poderia funcionar sem sua articulação com um outro mer-cado, também ilegal, por onde se transacionam mercadorias políticas, nos termos, como já dissemos, propostos por Michel Misse (2006). Aqui, entram em operação outras tantas redes e atores na interface dos poderes públicos (fi scais, gestores urbanos, vereadores, forças policiais), oscilando entre acordos na partilha dos ganhos, a “compra de facilidades” (suborno, corrupção), troca de favores e clien-telismo, compra de proteção e práticas de extorsão que são mais ou menos ferozes e violentas conforme contextos, conforme micro-conjunturas políticas, conforme o jogo das alianças e, também ou sobretudo, conforme o grau de incriminação que pesa sobre essas atividades (cf. Misse, 2007). Os modos como as mercadorias políticas circulam são constitutivos da regulação desses mercados, compõem, fazem parte e condicionam os agenciamentos práticos que canalizam os fl uxos de mercadorias, e isso é central para o entendimento das dinâmicas políticas inscritas nessas formas de economia urbana que pulsam, hoje, nos centros dinâmicos de nossas cidades, e alhures (Freire, 2008).

Essa a dinâmica política inscrita nos modos de funcionamento desses mer-cados. Mas o mercado não é uma entidade abstrata. É feito de um sistema de trocas, de interações, intercâmbios sociais, relações de poder. Três pontos a serem notados.

Primeiro: os modos pelos quais se transacionam as mercadorias políticas tam-bém circunscrevem as redes por onde a riqueza circula, algo como um excedente derivado das práticas de corrupção e extorsão, apropriado (e expropriado) pelas vidas de expedientes crapulosos e que acionam outros tantos atores e operadores desses mercados.24

24 Essa é questão discutida por Peraldi (2007) no contexto desses comércios nas fronteiras europeias.

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Segundo: é nesse terreno que se armam os jogos políticos que oscilam entre acordos e transações mafi osas, tolerância e repressão, acertos obscuros e confl itos abertos e muito frequentemente estampados nas verdadeiras batalhas campais envolvendo ambulantes, comerciantes, fi scais da prefeitura, gestores urbanos, a polícia. Aqui, no cerne da gestão diferencial dos ilegalismos, para retomar a discussão de páginas atrás, confi gura-se um campo de confl itos e disputas que se deslocam e se diferenciam conforme os modos de territorialização desses mercados e a procedência dos produtos, os interesses envolvidos, conveniências políticas, o cacife político dos atores em cena (cf. Freire, 2008).

Terceiro: no jogo oscilante entre tolerância, transgressão consentida e repressão estabelece-se, na verdade, uma outra clivagem, transversal às territorialidades desses mercados, mas que marca a diferença entre os empresários do ilegal e os vendedores de rua dos quais depende essa ampla e vastíssima circulação de produtos de procedência duvidosa. Gestão diferencial dos riscos, diz Carlos Freire: os empresários dos negócios ilegais, sobretudo do contrabando e da pirataria, acobertados nas fachadas legais de seus empreendimentos incrustados nas lojas estabelecidas nas galerias, acionam dispositivos variados para neutralizar as possibilidades de responsabilização criminal desse comércio ilegal. Para eles, na pior das hipóteses, recaem, para lembrar os termos de Foucault, os delitos de direito (fraude fi scal, sonegação, trapaças variadas).25 Os riscos do contrabando e outras ilicitudes no percurso dessas mercadorias são todos eles transferidos para os vendedores de rua distribuídos nas miríades de pontos de venda espalhados pela cidade e sobre os quais incidem as formas mais ostensivas de controle e repressão (Freire, 2009).

Retomando o fi o da meada: aqui, nesse registro, os torneios da lei, as dobras do legal e ilegal nos quais se alojam relações de poder e jogos de força inscritos na transação das mercadorias políticas e que operam, como Misse bem enfatiza, como uma forma, aliás, mercantilizada de expropriação da soberania do Estado em suas prerrogativas de lei e ordem. É por isso que uma etnografi a desses mer-cados, tal como esta que vem sendo realizada por Carlos Freire, desdobra-se em uma etnografi a política que coloca em mira o Estado visto a partir dessas suas pontas que estão no centro nervoso dessas economias. São os vários agentes, procedimentos, práticas que se movem entre as instâncias formais de regulação política, de regulação econômica, de regulação urbana (tudo isso implicado nesse comércio informal, que passa pelas lojas, que se espalha pelas ruas e se enreda nas dinâmicas urbanas de produção dos espaços) e os procedimentos extrale-

25 De acordo com o relatório da CPI da Pirataria, Law Kin Chong, tido como o maior contrabandista do país, é dono do Shopping 25 de março, tem negócios na Galeria Pagé e no Shopping Oriental, além de outros depósitos de mercadorias que se estendem desta região até o Brás, passando por lojas da Avenida Paulista e Rua Augusta. Foi preso não por contrabando (“não comprovado”), mas por “indícios de corrupção ativa”. A análise desse documento é matéria de pesquisa de Carlos Freire.

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gais, deslizando para o arbítrio, a expropriação, a violência aberta. A rigor, isso também toma parte e é constitutivo desse deslocamento das fronteiras entre legal e ilegal – incerteza, indeterminação, dessas fronteiras – que acompanha essas formas de produção e circulação de riquezas. Mas é aqui também que se constitui um acirrado campo de disputas, envolvendo lojistas, ambulantes, associações, sindicatos, fi scais da prefeitura, forças policiais, gestores urbanos, vereadores e suas bases locais. Negociações difíceis, sempre instáveis e sempre refeitas em torno da gestão desses espaços e a distribuição de seus territórios. No centro dessas disputas, os jogos de força do clientelismo, dos mercados de proteção e práticas de extorsão. E também a negociação em torno dos patamares toleráveis de extorsão.26 São nesses limiares, diz Freire, que se processa a disputa pela apropriação dos excedentes gerados pelo comércio de rua.

É assim no centro da cidade, é assim também nos vários pontos de concentração do comércio popular nas regiões periféricas. Aqui, os produtos circulam por meio de acordos nem sempre fáceis de serem mantidos entre organizações mafi osas, gente ligada ao tráfi co de drogas, comerciantes pobres, intermediários de empresas duvidosas, fi scais de prefeitura, vereadores e suas maquinas partidárias, tudo isso misturado com pressões, corrupção, acertos obscuros e histórias de morte. Aqui e lá, em todos os lugares, uma zona cinzenta feita de alianças, disputas e acertos escusos, tudo isso regido por relações de força que liberam uma violência sempre presente, sob formas latentes, mas potencialmente devastadoras.

A periferia é o lugar onde há “ou o acerto ou a morte, mas não a prisão”27

O cenário é conhecido: redes superpostas e embaralhadas de pessoas, trocas, produtos, bens que circulam nas fronteiras incertas do informal e ilegal, entre expedientes de sobrevivência, o trabalho irregular, pequenos empreendimentos locais e os “negócios do crime” a gravitar em torno dos pontos de venda de dro-gas ilícitas: as tradicionalíssimas ofi cinas de carro, que se multiplicam por toda a periferia, em que se misturam o trabalho informal e a transação de peças de origem duvidosa, em conexão (ou não) com os vários pontos de desmanche de carros roubados, tudo isso alimentando um espantoso mercado popular de peças,

26 Vale a citação completa: “segundo informações dos próprios ambulantes, seriam quatro sindicatos apenas em São Paulo que tem diferentes áreas de predominância na cidade e mais 160 associações de ambulantes, cada qual com uma maneira especifi ca de atuação e suas próprias alianças e bases de apoio. Esses sindicatos e associações negociam diretamente com a prefeitura nas situações de confl ito, organizando manifestações nos casos de confrontos. Eles acabam atuando na gestão dos espaços urbanos que concentram muitos ambulantes, quando não controlam diretamente a ocupação dos pontos. Negociam também os limites tolerados desse mercado de proteção ao promover denuncias contra agentes da autoridade publica quando a extorsão atinge patamares muito elevados” (Freire, 2008: 126).27 Devo a Alessandra Teixeira a recuperação dessa expressão, que compõe o repertório popular que circula nas periferias urbanas.

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motos e automóveis de “segunda mão”; os muito modernos mercados de CDs piratas, produtos falsifi cados ou, então, contrabandeados (dos cigarros vindos do Paraguai, passando por isqueiros vindos sabe-se lá de onde, até os eletrônicos que chegam dos contêineres chineses desembarcados no porto de Santos), fontes de renda para os que agenciam os pontos de venda e alegria sobretudo para os mais jovens (mas não só eles) com seus aparelhos de mp3, celulares modernos, aparelhos de som e DVD; ou, então, o atualíssimo e muito rendoso negócio com caça-níqueis que vem ocupando o lugar do tradicional jogo do bicho, além de, como este, também operar no jogo de luz e sombra entre intermediários obscuros, a compra de proteção policial e os rendimentos generosos para os que alojam e operam essa versão moderna do jogo de azar hoje comum em qualquer birosca de um bairro de periferia.28

É nesse plano que o varejo da droga se enreda nas tramas urbanas em que fl uxos de dinheiro, de mercadorias, de produtos ilegais e ilícitos se superpõem e se entrelaçam nas práticas sociais e nos circuitos da sociabilidade popular (Telles & Hirata, 2007). É nesse plano que as pessoas transitam pelos meandros desses circuitos embaralhados, assim como a prosaica Doralice, que foi aqui o nosso primeiro posto de observação. É nesse plano que os produtos também circulam e as famílias podem exibir, orgulhosas, seus modernos aparelhos de som transa-cionados pelas vias das redes familiares e de vizinhança. Isso para não falar dos celulares, que trocam de mãos o tempo todo, aliás uma rotatividade espantosa (também dos chips), cujo circuito passa pelo comércio informal, pelos “mundos bandidos” e por outros tantos meandros da sociabilidade popular. E é nesse plano também que, digamos assim, os “excedentes” dos negócios da droga também circulam, por exemplo, nas melhorias dos campos de várzea, nos programas sociais, nas festas juninas, nos presentes de fi nal de ano. O jogo aí, como bem sabemos, é mais complicado do que essas aparentes trivialidades do cotidiano de um bairro de periferia. Mas o ponto que interessa aqui enfatizar é que tudo isso vai montando os jogos de vida feitos, afi nal, também dessas trivialidades. Assim, por exemplo, no bairro no qual fazemos os nosso registros de campo, uma certa dona Justina solta vitupérios contra a “biqueira” instalada nas proximidades de sua casa, porém fi ca felicíssima com os ganhos obtidos na barraca de doces que ela montou na festa junina patrocinada pelos “meninos”, revolta-se com a chegada da polícia (“eles não querem deixar a gente trabalhar”) e torce para que o acerto chegue a bom termo (“eles estão fazendo a coisa certa”). Ou, então, as famílias que fi cam satisfeitas com o fato de seus fi lhos passarem horas seguidas, do fi nal do dia às horas tardias da noite, em uma lan house instalada nas proxi-midades (“assim eles não fi cam por aí fazendo besteira”), mas que todos sabem

28 A imprensa já noticiou o lugar do comércio de máquinas de caça-níqueis nas operações de lavagem de dinheiro capitaneadas por redes transnacionais, das quais, como se pode supor, os modestos donos de birosca nas periferias não suspeitam nem poderiam imaginá-las. Cf. Maierovich (24/03/2007).

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que é empreendimento do “patrão” do pedaço. Aliás, é interessantíssimo: aqui, na contramaré dos tempos que correm, é tudo mais-do-que-legal: computadores, programas, equipamentos, nada é pirateado, muito menos de procedência incerta; tudo é comprado nas Casas Bahia, fazendo uso dos programas de fi nanciamento em nome de alguém com “fi cha limpa” na família. Afi nal, eles sabem muito bem que ali teriam (e têm) que lidar com a chantagem e extorsão dos fi scais da prefei-tura e não gostariam de ser pegos por esses “delitos de direitos”. E, sendo assim, lançam também mão dos muitos modernos e fi nanceirizados circuitos formais do comércio popular sobre os quais se falou no início deste capítulo.

Trivialidades. Tudo isso pode, ademais, parecer risível face à truculência de episódios recentes e não tão recentes (e no presente imediato em que estas linhas estão sendo escritas), que tomam a cena do Rio de Janeiro e que também ocorrem, com outras modulações, em São Paulo. Mas essas trivialidades persistem e com-põem uma espécie de quase-normalidade. E é por isso mesmo que elas podem ser tomadas como referência para situar as questões postas nessas transversalidades de que são feitos os ordenamentos sociais e as formas de vida. Pois aqui, nesse plano, as mercadorias políticas também circulam e também compõem os jogos da vida. E isso muda o modo de entender (e descrever) essas quase-banalidades. De um lado, do ponto de vista das práticas sociais e das sociabilidades locais, as clivagens entre ilegalismos difusos e o crime estão longe de serem evidentes. Os sujeitos transitam nesses territórios porosos, seguindo as comunicações laterais e transversais próprias do mundo social e por onde circulam bens, pessoas, também histórias, códigos, repertórios. Porém, e esse é o segundo ponto, a clivagem se im-põe e é posta nos modos como a mercadoria política circula, em um jogo oscilante entre tolerância – ou “vista grossa”, como se diz –, acertos negociados e extorsão, tudo se fazendo também nesse lusco-fusco do legal-ilegal. No caso do varejo da droga, o jogo é mais pesado, como bem sabemos. Aqui, a versão mais truculenta e violenta, e, muito frequentemente, extrema (execuções, extermínios).

As práticas corriqueiras, mas não banais, dos mercados de proteção, com suas rotinas, seus tempos, seus procedimentos, seus lugares, protocolos, a cenografi a como as coisas acontecem, traçam territórios, marcam as fronteiras, introduzem a clivagem, mesmo que tudo isso esteja, no plano dessas trivialidades, esfumaçado. Porém, dona Justina sabe muito bem do que se trata quando os policiais chegam para atrapalhar o negócio de sua barraca na festa junina, às vezes à paisana, às vezes de modo ostensivo, com suas viaturas. Todos sabem do que se trata quando eles rondam o negócio da lan house. Ou a birosca onde “tudo” acontece. Isso para não falar, é claro, dos episódios recorrentes em torno da “biqueira”, mas aqui, diferentemente dos outros casos, não há ambivalência nenhuma a ser desfeita com a presença das “forças da ordem”; faz parte da rotina do próprio negócio. É, entretanto, essa presença rotineira (e os riscos também rotineiros) que fi nca as marcas de que ali é o território do crime.

Quando essas práticas assumem as formas mais violentas, chantagem, ex-torsão, invasão, mortes e extermínios nos momentos em que as coisas saem dos

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eixos (acertos desestabilizados pelas razões as mais variadas), o epicentro é a “biqueira”, mas a zona de arbítrio se expande. Relações de força que trans-bordam para todo o entorno. Conhecemos a cena: sob o pretexto de “caça aos bandidos”, sucedem-se as batidas policiais, invasão de domicílios, espancamento, chantagem, extorsão, expropriação, mortes e extermínios. Na prática, um total embaralhamento e inversão dos critérios que defi nem a ordem e seu avesso ou, então, para usar a expressão corrente no universo popular, “o lado certo” e o “lado errado” das coisas da vida. Não se está falando aqui nada de novo. Porém, há aí algumas questões sobre as quais vale se deter. Se a clivagem entre ilegalismos e crime é posta pelos processos de incriminação, essa clivagem é marcada pelos modos como os mercados de proteção e práticas de extorsão se processam. Quer dizer: essa clivagem é sobreposta pela própria ilegalidade (e arbítrio) da mercadoria política (Misse, 2006). Nas suas formas mais violentas, explicita-se o que está inscrito nas suas modalidades mais corriqueiras e bran-das, se é que se pode dizer assim. Aqui, nesse registro, nas suas formas mais violentas, não se trata propriamente de uma porosidade do legal-ilegal, não se trata de fronteiras incertas entre o informal, o ilegal, o ilícito. Mas da suspensão dessas fronteiras na própria medida em que fi ca anulada a diferença entre a lei e a transgressão da lei. A lei é como que desativada. E isso signifi ca dizer que é a própria diferença entre a lei e o crime que se embaralha e, no limite, é ela própria anulada.

Aqui, se está no cerne do que Agamben defi ne como “estado de exceção”. Em suas confi gurações contemporâneas, práticas e situações instauradas no centro da vida política (e de sua normalidade democrática), fazendo estender uma zona de indeterminação entre a lei e não-lei, terrenos de fronteiras incertas e sempre em deslocamento nos quais todos e cada um se transformam em vida matável, homo sacer (Agamben, 2007).29 É o que permite acionar uma espécie de direito de matar, sem que isso seja considerado um crime. É isso o que está posto nessas situações que se repetem nas periferias urbanas. É o que está posto e exposto nessa expressão que acompanha os registros policiais – “resistência seguida de morte”: uma categoria que não tem existência legal, mas que é aceita no processamento judicial, que opera como uma espécie de autorização para

29 Além das situações de desarranjo nos “acertos”, há ainda os episódios recorrentes de intervenção policial-militar, em relação (ou não) com os mercados de proteção. Note-se: os 493 mortos em uma semana como revide da Policia Militar aos ataques do PCC, em maio de 2006. Ainda: o arbítrio e a violência que acompanham a denominada “Operação Saturação”, apresentada como modalidade “moderna” e “inovadora” de uma política de segurança hoje regida pela lógica da intervenção pontual e de “emergência” (imperativos da “urgência”) nos territórios ditos “problemáticos”. “Emergência” e “urgência”, essas noções inefáveis cuja defi nição faz parte do poder discricionário das “forças da lei”, compõem a gramática dos estados/situações de exceção (Agamben, 2007). A propósito, é de interesse as questões propostas por Frederic Gros (2006, 2008), e também por Graig Calhoun (2004). Tratar dessas questões exigiria muito mais espaço do que é possível fazer nestas páginas.

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matar, avalizada pelas próprias instancias estatais, também judiciais, inverten-do tudo e suspendendo todas as diferenças, de tal modo que toda e qualquer execução vira outra coisa, o crime é atribuído à vitima em supostas “guerras de quadrilha”, “troca de tiros”, “resistência à prisão” (Soares, Moura & Afonso, 2009). Mais no Rio de Janeiro do que em São Paulo, essas situações já foram pesquisadas, estudadas e etnografadas. Michel Misse mostrou em seus vários trabalhos, já não de hoje, que são práticas enraizadas em uma história de longue durée que ele tratou de reconstituir e discutir (Misse, 2006). Em termos político-conceituais, trata-se de uma expropriação ou apropriação privada da soberania do Estado, diz Misse. Um Estado que nunca chegou a garantir o monopólio da violência legitima, diz ainda o autor. Em outra chave teórica, talvez se possa reformular a questão, pois se trata do modo como a soberania do Estado se efe-tiva pelo poder de suspender a própria lei (Agamben, 2007). É algo que pode ser visto, fl agrado e, como propõem Das e Poole (2004), etnografado, seguindo os modos de operação das forças do Estado em suas pontas, seus movimentos, seus procedimentos e os tempos pelos quais vai se repondo essa indiferenciação. Produção das margens, dizem as autoras, que não se confundem com um lugar defi nido, periferia ou territórios de pobreza, mas que se deslocam, se fazem e refazem conforme mudam os alvos, as conveniências, o foco das atenções dos representantes dos poderes estatais nessas pontas em que o Estado afeta formas de vida. E circunscreve a própria experiência que os sujeitos fazem (e elaboram) da lei, do Estado, da autoridade, da ordem e seu inverso. De alguma maneira, isso está inscrito no repertório popular que circula nos meandros da vida urbana: “Eles são bandidos piores que bandido assumido”, é o que se diz. Todos dizem e todos têm, ademais, alguma evidência para mostrar e por onde estruturar uma narrativa que fala do embaralhamento desses lugares, da inversão dos sentidos, do lado certo e o lado errado.

Mas é também por isso que esses lugares produzidos como “margem” são es-tratégicos para o entendimento dos ordenamentos sociais urdidos nessas fronteiras porosas do informal, ilegal e ilícito e que, retomando o argumento de partida, está no centro da experiência contemporânea, aqui e alhures. Na sua radicali-dade, explicita-se o que está contido na gestão diferencial dos ilegalismos que se processam nos meandros do comércio popular, que foi aqui o nosso segundo posto de observação. Também nos ilegalismos difusos que se pode apreender no mundo social e que estão crivados nas mobilidades laterais das fi guras con-temporâneas do trabalhador urbano, nosso primeiro posto de observação. Em termos gerais: as dimensões políticas dos ilegalismos urbanos que circunscrevem também campos de experiência. E que ganham confi gurações diversas e próprias aos seus diversos modos de territorialização.

Mas, então, vale perscrutar a lógica de verdade contida no dito popular que abre este tópico: “ou o acordo ou a morte, não a prisão”, é assim na periferia. No jogo oscilante entre tolerâncias, acertos (ou morte) e prisão, defi nem-se as dimen-sões territorializadas da gestão diferencial dos ilegalismos: o dispositivo penal

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(isto é, legal) recai sobretudo sobre uma criminalidade urbana difusa, avulsa, desterritorializada, porém concentrada em regiões não periféricas da cidade.30 É sobretudo essa pequena criminalidade que vem alimentando e abarrotando os dispositivos carcerários, resultado do endurecimento penal dos últimos anos (Teixeira, 2009; Salla, 2007). No Brasil, o aumento da população carcerária mais do que dobrou entre 2000 e 2006. No estado de São Paulo, a situação é ainda mais acentuada: a população carcerária triplicou entre 1994 e 2004, de 31.842 para 108.480 pessoas. Em 1989 eram 28 estabelecimentos prisionais; 144, em 2006 (Salla, 2007).

O chamado encarceramento em massa é um fenômeno geral, também trans-versal aos países a norte e sul do Equador. Aqui, como bem sabemos, isso ganha contornos próprios às versões brasileiras do “vigiar e punir”. É uma discussão que foge ao escopo deste capítulo. Mas esses dados interessam para situar o fato de que indivíduos com passagens pelos dispositivos judiciais-carcerários estão cada vez mais presentes no cenário urbano atual, aqui e alhures.31 A questão está na pauta dos debates atuais (Cf. Wacquant, 2008; Garland, 1999, 2001). É impossível enfrentá-la nos limites deste capítulo. Porém, reatando o fi o da meada, seria possível dizer que as atuais redefi nições das formas de controle afetam esses trabalhadores urbanos que transitam nas fronteiras porosas do legal e ilegal. Quer dizer: afetam os percursos das “mobilidades laterais” que, agora, passam, com uma frequência cada vez maior, também entre a rua e a prisão. É isso o que está posto no campo das possibilidades da prosaica Doralice, mesmo que ela não seja pega pelos dispositivos penais. Mas não deixa de ser espantoso como a teia de suas relações é também feita de gente que foi presa, parentela, conhecidos próximos e vizinhos, aliás também os “contatos” e fornecedores dos quais dependia o seu precário e muito inofensivo negocio de CDs piratas. São histórias que circulam e que compõem o repertório popular, situações que se repetem e que também tecem as tramas dos mundos urbanos em que essas his-tórias minúsculas acontecem.

Isso tudo é matéria de pesquisa. No entanto, se se corre aqui o risco de se passar tão rapidamente, de modo tão ligeiro, por uma questão dessa enverga-dura, é porque não é possível evitá-la. Menos por conta da lógica interna de um

30 Devo a Alessandra Teixeira a formulação dessa questão. Dados e informações sobre esse perfi l da população encarcerada podem ser encontrados em Boiteux (2009).31 Vale a citação: “[Nos Estados Unidos] o encarceramento tornou-se uma instituição social que estrutura as experiências de grupos sociais inteiros. Tornou-se parte do processo de socialização. Cada família, cada domicílio, cada indivíduo em sua vizinhança tem uma experiência pessoal e direta com a prisão – através da esposa, de um fi lho, de um parente, de um vizinho, de um amigo. Encarceramento que deixou de ser o destino de um punhado de indivíduos criminosos, e torna-se uma instituição que ganha forma para amplos setores da população. [...] Temos, hoje, verdadeiras bibliotecas de pesquisas em criminologia sobre o impacto da prisão sobre os indivíduos encarcerados, mas quase nada sobre o seu impacto social nas comunidades e suas vizinhanças” (Garland , 2001: 2).

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argumento e mais, muito mais, por uma imposição de evidências de que não se pode contornar. Faz parte do diário de campo de qualquer pesquisador que circule pelas periferias da cidade a constatação de que é, hoje, quase impossível encontrar uma família que não tenha contato e familiaridade, direta ou indireta (conhecidos, vizinhos, parentes) com a experiência do encarceramento. Isso le-vanta a pergunta sobre o modo como essa experiência afeta práticas cotidianas e os modos de organização da vida familiar: o “jumbo”, apoios, visitas, advogados, busca de recursos e solidariedades. E, junto com isso, a ativação de redes sociais que passam, também elas, por essas fronteiras porosas de legal-ilegal, lícito-ilícito, para mobilizar recursos, suportes, bens, informações de que depende a vida dos parentes aprisionados.

Como Rafael Godoi mostra em sua pesquisa, esses são alguns dos “vasos co-municantes” (existem outros) que constroem os circuitos que conectam bairros e prisões. São práticas que afetam a vida dos presos, tanto quanto as pessoas direta ou indiretamente envolvidas com a prisão. São condutos pelos quais a experiência prisional se difunde no meio urbano (Godoi, 2009), passa a compor o repertório popular, as histórias, os casos, os acontecimentos e suas truculências, também a linguagem e os protocolos que regem o “proceder” no interior das prisões, no “mundo bandido” e nos mundos urbanos onde tudo isso circula (Hirata, 2006). Como diz Fernando Salla (2009:9), as “tramas e os dramas da vida prisional chegam a esses bairros; os códigos, as condutas, também”. De um lado e de outro circulam percepções, comportamentos, experiências de coerções dentro e fora das prisões (Salla, 2009: 9). Temos aí pistas a serem seguidas se quisermos entender o solo em que se ancoram os grupos criminosos, em particular o PCC, sua impor-tância e suas capilaridades no mundo urbano, para além de suas características internas e a natureza dos negócios que eles dominam (Salla, 2009).

Esse, o ponto a ser destacado: o dispositivo carcerário compõe hoje uma refe-rência urbana e redesenha os circuitos da cidade. Em torno dele, nas fronteiras também porosas do fora e dentro de seus muros, há toda uma trama de relações que vai sendo tecida, em um jogo social variado que termina por desativar a binaridade ordem-desordem pela qual os dispositivos disciplinares (aqui, no-vamente Foucault) recortaram e formalizaram as transgressões.32 O fato é que o ex-presidiário (ou o foragido) é hoje um personagem urbano presente (e cada vez mais presente) nas tramas da cidade: seja como operador dos vários ilega-lismos da economia urbanas; seja como componente importante nessa espécie de reprodução ampliada dos mercados ilícitos (e da criminalidade urbana) na própria medida em que se encontra cativo de formas de controle que o mantêm no circuito fechado da “delinquência” – como diz Foucault, uma forma subordinada dos ilegalismos populares; seja ainda porque está presente, o tempo todo, nos agenciamentos da vida cotidiana e nas redes sociais que passam pela família,

32 A questões discutidas por Manuela Cunha (2002) no contexto português têm paralelos notáveis com as situações encontradas nas periferias paulistas.

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pelas relações de vizinhança e por todas as cumplicidades tecidas no jogo das reciprocidades populares.

Personagem presente nesses territórios produzidos como “margem” e, no in-trincamento das relações e circuitos que aí se superpõem, ele é também parte ativa dos ordenamentos sociais que aí também vão se fazendo, nos modos sempre situados, relacionais, contextuais pelo quais os critérios de ordem e seu inverso são negociados, “o lado certo da coisa errada”, como se diz no “mundo bandido” (Hirata, 2006), ou o seu inverso, quando é a própria experiência da lei que faz embaralhar, inverter e reverter os sentidos e direções do “certo” e “errado”. Voltaremos a isso no próximo e último capítulo.

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CAPÍTULO 6

Ilegalismos e a gestão (em disputa) da ordem

Em 2001, quando iniciamos nosso trabalho de campo, ao falar de suas tra-jetórias, homens e mulheres (mais os homens do que as mulheres) faziam uma verdadeira contabilidade dos mortos. Sobretudo os jovens, homens: “os meus amigos? Morreram todos”, amigos de infância, vizinhos, colegas de escola. Leia-se: foram mortos por conta de disputa de gangues de bairro e desacertos em assuntos do crime. Ou foram executados pela Polícia Militar. Quatro ou cinco anos depois, a resposta era outra: “mortes? Isso não tem mais”, “agora, não pode matar”. Esta expressão, “não pode matar”, circulava por todo o bairro (e não apenas ali, como iríamos saber logo mais), era dita e repetida por qualquer morador, com convicção.1 O bairro no qual tomamos nossos registros de campo já foi considerado um dos mais violentos da cidade, compondo com o Jardim Ângela e o Capão Redondo (zona sul) o que foi chamado, nos anos 1990, de triângulo da morte. Nesse bairro que fora, nos anos anteriores, atravessado por verdadeiras guerras entre gangues rivais (falarei delas mais à frente) e muitas mortes, os moradores agora diziam que estava tudo em paz, que não havia mais mortes, não mais o medo, de outrora, de ser atingido por alguma bala perdida, tampouco a insegurança, sobretudo para as mulheres, de transitar pelas ruas escuras durante a noite. No início dos anos 2000, quando o assunto vinha à baila, diferente do que aconteceria alguns anos depois, falava-se do PCC, Primeiro Comando da Capital, sempre à meia-voz ou com alusões vagas, algo como um segredo de polichinelo, mas era disso que se tratava quando falavam da “pacifi cação” da região.

O “patrão” do ponto de venda de drogas instalado no bairro nesses anos, início dos 2000, nos explicava: não podia mais acontecer, como antes, a morte como desfecho de desafetos, desavenças e disputas entre grupos rivais. Agora, ele nos dizia: a morte, apenas para os assuntos muito graves. E, assim mesmo, depois de passar pelo “debate” – uma espécie de tribunal em que as partes en-volvidas são chamadas a dar sua palavra e apresentar suas razões, sempre com a presença dos patrões da “biqueira”, com a intermediação dos homens do PCC, responsáveis pelos negócios na região e, nos casos mais graves, outros “irmãos” do “Partido”, expressão também usada para se referir ao PCC. O debate pode se prolongar por vários dias, com data e hora marcadas e, conforme os casos e a extensão do problema, outras pessoas das relações próximas dos envolvidos são igualmente chamadas a dar sua palavra, também patrões de “biqueiras” vizinhas e, sempre, outras fi guras do PCC, dentro e fora das prisões, em comunicação

1 Gabriel Feltran (2009) também nota e discute a contraposição destas duas expressões: “morreu tudo” e “não pode matar”.

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através de seus celulares. O resultado pode ser um acordo entre as partes en-volvidas, a defi nição de uma forma de restituição nos casos de um “vacilo” de umas das partes nos negócios do crime; pode também resultar em uma forma de punição, um “corretivo”, expulsão do bairro, proibição de vender drogas na região. Ou, então, morte.

“Debate”: expressão e referência que, em curtíssimo tempo, coisa de poucos anos, passou a fazer parte do repertório popular. No início, mecanismo posto em prática na resolução das desavenças internas aos “negócios do crime” e às organizações criminosas. Surge, primeiro, no universo carcerário e transborda, depois, para os bairros das periferias da cidade e, em pouco tempo, passa a ser acionado para a regulação de microconfl itos cotidianos: de brigas de vizinhos a disputas em torno da distribuição de lotes em áreas de ocupação de terra, pas-sando por problemas com adolescentes abusados, pequenos delitos locais, brigas de marido e mulher e miríades de situações próprias da vida nesses bairros. Não poucas vezes, são os moradores mesmos que procuram o “patrão” da “biquei-ra” local para arbitrar litígios e desavenças cotidianas, o que ele pode fazer ou não, a depender das circunstâncias e das implicações envolvidas � cada caso é um caso, como se diz. E cada caso é interessante pelo jogo de relações envolvi-das. Às vezes, nesses assuntos menores, basta a presença do “patrão da fi rma”, que intervém para “trocar uma ideia”, outra expressão que também circula no “mundo bandido” e fora dele, por todo o bairro, modulação mais informal e de circunstância do “debate” para a regulação e arbitragem dos confl itos locais. O resultado pode ser apenas um conselho ou um “aviso” para que o problema não se repita, ou, às vezes, um “corretivo” (uma boa surra); em casos mais graves, a expulsão do bairro. Ao comentar situações como essas na região de Sapopemba (zona leste), em que faz seu trabalho de campo, Gabriel Feltran (2009) nota que, para os moradores, os mecanismos postos em ação pelos “homens do crime” não signifi cam negação da relevância da instância da lei e dos direitos para resolver outras ordens de problemas que afetam suas vidas. Para colocar em outros termos, os indivíduos transitam (ou podem transitar) com desenvoltura entre instâncias legais, fóruns de participação social, acionam os mecanismos instrucionais pre-sentes nos bairros da periferia, sem se furtar a esses agenciamentos locais postos em ação pela “lei do crime”. Voltarei a isso mais à frente.

Por ora, não é sem interesse dizer que nossos primeiros registros de campo foram feitos antes que a informação ganhasse o noticiário da grande imprensa: em 2006, foram divulgados dados ofi ciais que registravam uma impressionante queda nos índices de homicídios na capital e Região Metropolitana de São Paulo, depois de duas décadas de uma curva ascendente, com picos altíssimos ao fi nal dos anos 1990. A informação foi acolhida com destaque pela grande imprensa, escrita e televisiva. E, de imediato, celebrada pelo governo do Estado (gestão Geraldo Alckmin, PSDB) como prova do sucesso de sua política de segurança pública e, sobretudo, prova da efi ciência da polícia no combate ao crime. Do outro lado, como se pode imaginar, o noticiário foi recebido com comentários irônicos

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e sarcásticos, como quem diz: eles falam que foi a polícia, mas nós sabemos que foi a “lei do crime” que conseguiu acabar com a matança dos anos anteriores.

O fato é que a queda dos homicídios na cidade de São Paulo intriga e é motivo de discussão. Renato Lima (2009) mostra dados e gráfi cos que são efetivamente impressionantes. Tomando como referência registros da área de saúde, a taxa de mortalidade por agressão diminuiu de 43,2 casos por 100.000 habitantes em 1999, para 22,0 em 2005. Com isso, “o indicador paulista passou a ser menor do que o nacional (26,2), invertendo a tendência histórica, observada nas séries anuais, desde 1980” (2009: 2). Mais notável ainda é a queda pela metade de homicídios entre homens jovens, de 15 a 24 anos, justamente o grupo etário mais afetado pelos índices altíssimos de mortes violentas nas décadas anteriores. Se os dados são evidentes, o mesmo não se pode dizer dos fatores que explica-riam a queda na taxa dos homicídios. As hipóteses em debate são várias, cada qual indicando dimensões efetivas das evoluções recentes da economia (desem-penho positivo dos mercados de trabalho), da sociedade (mudanças no perfi l sociodemográfi co da população), das instituições (mecanismos de participação social, ONGs, fóruns públicos), da política (papel mais ativo dos municípios) e, também, nas políticas de segurança pública (modernização, reforma gerencial, recursos). Renato Lima faz uma competente exposição de cada uma dessas hipó-teses, chamando a atenção para os seus respectivos defensores (pesquisadores, gestores políticos, agentes policiais), cada qual com suas motivações, razões e ênfases próprias ao seu lugar nesse debate. A “hipótese PCC” também circula nesse debate, apoiada, nas palavras de Lima, em uma percepção difusa nessas áreas de que a hegemonia de uma facção criminosa (o PCC) teria contribuído para regressão das taxas de homicídios ao atuar na mediação de confl itos e na manutenção da ordem, no sentido de “pacifi car” territórios antes dominados por várias quadrilhas ligadas ao tráfi co de drogas. Não deixa de ser curioso notar que Renato Lima associa essa hipótese aos etnógrafos urbanos atentos às formas de sociabilidade da população em áreas de periferias, mas também a “segmen-tos policiais” que, podemos nós acrescentar, estão igualmente atentos ao que acontece nessas regiões, por razões muito diferentes das nossas, pesquisadores do urbano. Segundo relatos de policiais, diz Lima, isso “decorreria do fato de o PCC ter assumido o comércio atacado de drogas ilícitas em São Paulo e imposto aos grupos locais a compra de cotas fi xas de entorpecentes, o que teria refreado a disputa por territórios” (2009: 7).

Não é objetivo deste capítulo discutir a pertinência de cada uma das hipóteses em debate. Deixo isso para os especialistas nessa sempre polêmica e controvertida análise de dados e informações sobre crimes e eventos policiais. Quanto à “hi-pótese PCC” à qual, em princípio, me alinho, apoiada em notas de campo como essas com as quais este capítulo foi aberto, seria possível dizer, no mínimo por prudência metodológica, que isso não explica tudo, que há outros fatores em jogo nas curvas descendentes de mortes violentas, que o confronto dos dados paulistas com os de outros estados e cidades mostra tendências que não poderiam ser ex-

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plicadas pela ação do PCC. Que seja. Mas resta deslindar esse ancoramento do PCC nas tramas sociais das periferias paulistas. Desde que não se deixe tomar pela fantasmagoria (que também circula nesse debate) de um monstro tentacular que impõe o seu domínio pelo terror, fi ca a pergunta acerca das circunstâncias que criam suas condições de possibilidade e, ainda mais: o que está em jogo nessa espécie de gestão da ordem que parece passar por mediações, protocolos e códigos distantes (mas não à margem) da normatividade ofi cial, que se faz em interação com os dispositivos políticos presentes nas periferias urbanas e, também, na vizinhança com os instrumentos de participação social que se multiplicaram nesses últimos anos. Aqui, é importante reter o cenário urbano, anos 2000, descrito no capítulo anterior, para descartar a hipótese fácil e cômoda de tudo explicar pelo atraso, anomia, desorganização social derivada de uma suposta ausência do Estado nessas regiões da cidade.

Por outro lado, a polêmica está aberta entre fatos e hipóteses, sem que, no entanto, se tenha ainda bem compreendido as circunstâncias que presidiram a curva ascendente dos homicídios nas décadas anteriores. Afi nal, o que estava acontecendo nas periferias da cidade nessas décadas, que fatos e processos fo-ram registrados pelas curvas ascendentes (e assustadoras) de mortes violentas? Os crimes violentos da Região Metropolitana de São Paulo cresceram de forma contínua a partir dos anos 1980, atingindo o seu ponto mais alto em 1999 (cf. Lima, 2009). No período, o homicídio foi o delito com as mais altas taxas de cres-cimento médio, com maior incidência nos bairros mais pobres da cidade (Jardim Ângela, Parelheiros, Grajaú, Jardim São Luiz, Capão Redondo).2 Em que pesem as ressalvas dos analistas no uso (e crítica) das fontes (sobretudo quando são registros policiais), as relações entre homicídios e o tráfi co de drogas estão longe de ser evidentes: se existem, estão mescladas e entrelaçadas, e isso é apenas uma suposição, em situações que foram tipifi cadas como “motivos fúteis”, “confl itos interpessoais” ou, então, transgressões menores próprias de uma criminalidade urbana comum e difusa.3 Por certo, nas curvas de homicídio, deve haver, agora como antes, uma combinação intrincada de fatores e circunstâncias igualmente diferenciadas. Mas, por isso mesmo, é de interesse recuperar algo da história

2 Teresa Caldeira faz uma análise detalhada das estatísticas e dados disponíveis sobre o aumento dos crimes violentos nos anos 1980 e 1990. Vale notar: “o crescimento das mortes violentas não é algo exclusivo de São Paulo. As taxas de homicídio cresceram na maioria das regiões metropolitanas durante os anos 1980. Como consequência, no fi nal dos anos 1980, as taxas de homicídio para o Brasil que eram semelhantes às dos Estados Unidos no começo da década, atingiram mais do que o dobro das taxas americanas. A taxa de homicídio nos Estados Unidos é historicamente alta se comparada àquelas da Europa e do Japão” (Caldeira, 2000: x).3 Conforme os dados disponíveis para esse período, as mortes violentas concentram-se no que foi tipifi cado seja como “motivos fúteis”, seja como “confl itos interpessoais”. Isso se confi rma na interessante comparação que Bruno Paes Manso (2005) faz dos dados e categorias utilizadas em três pesquisas diferentes sobre o tema.

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urbana recente, visando ao que parece ter acontecido nessas décadas, ao menos em alguns (ou muitos dos) bairros da periferia paulista. É questão de pesquisa, pistas que tratamos de rastrear em nosso trabalho de campo: há indicações de uma correspondência, sobretudo a partir de meados dos anos 1990, entre os picos na curva dos homicídios e a presença de uma criminalidade comum, difusa, articulada (ou não) a gangues locais, de bairro, efêmeras e fl utuantes, que se articulam (e desarticulam) conforme as circunstâncias, o jogo dos acasos, mas que desencadeiam ciclos devastadores de uma violência acionada por uma mistura intrincada de histórias de vingança, desafetos, desentendimentos, des-lealdades, nem sempre por conta de desacertos nos negócios do crime, porém invariavelmente mesclados com “histórias infames” que atravessam o cotidiano desses (e de quaisquer outros) bairros. Se isso for pertinente, então talvez se tenha aí uma pista para situar a guinada que parece suscitada pela estruturação do mercado de drogas na virada dos anos 2000. É o que se tentará fazer nas páginas que seguem.

De partida, é importante dizer: crime e violência urbana não são meus temas de pesquisa, tampouco tráfi co de drogas, nunca foram. Porém, são questões que se impuseram de maneira incontornável ao longo de meu trabalho de campo, meu e de todo um coletivo de pesquisa que se lançou em uma prospecção das vidas e trajetórias percorridas nas tramas da cidade. É, portanto, pelas transversali-dades que as atravessam que encontramos as pistas para entender algo de uma experiência urbana que é também (não só) uma experiência da violência. Mais concretamente: uma experiência que se faz nos limiares da vida e da morte, entre os riscos de despencar na condição do “pobre de tudo” e da “morte-matada”. É matéria discutida ao fi nal do quarto capítulo. Uma “arte do contornamento”, foi dito nesse capítulo, algo que se exercita nas fronteiras incertas do informal, do ilegal e do ilícito, nos meandros do bazar metropolitano, para retomar a discussão do capítulo anterior – os artifícios e ardis de uma razão prática, como propõe Daniel Hirata (2010), para lidar com os jogos de poder e relações de força constelados nas dobras do legal-ilegal. São essas as questões que se pretende recuperar e desdobrar ao longo deste capítulo: a experiência que se faz nesses limiares incertos da vida urbana passa por algo como uma negociação dos sentidos de ordem e o seu inverso. É nisso que a vida e as formas de vida estão em jogo. Formas de gestão da ordem, que são também uma negociação da vida, dos limiares da vida e da morte: essa a hipótese com que estamos trabalhando. Formas de gestão da ordem sempre refeitas sob confi gurações variadas conforme tempos e espaços, e nas quais é possível apreender as evoluções recentes da cidade.

Nas páginas que seguem, trata-se de seguir as pistas que nos foram entregues pelas “histórias bandidas” e seus personagens, que também compõem as tramas locais de um bairro de periferia, as quais fazem parte da história urbana e têm seu lugar na tessitura das “vidas-de-todos-os-dias”. Recuperando questões do capítulo anterior: histórias e trajetórias que transcorrem nas fronteiras incertas entre ilegalismos difusos e o crime, experiências crivadas pelos feixes de relações

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de poder que se constelam conforme se processa a gestão diferencial dos ilega-lismos nos seus modos situados no tempo e no espaço. E isso muda a maneira de propor as perguntas e descrever as situações. Nesses espaços produzidos como “margem” (noção a ser discutida mais à frente), as formas de operação das forças da ordem circunscrevem a própria experiência que os sujeitos fazem da lei, dos sentidos da ordem e seu inverso. Enunciada no capítulo anterior, essa é a questão que se tentará agora trabalhar.

Devo dizer que não foi sem hesitação que este texto foi elaborado, ainda mais para incluí-lo como capítulo fi nal deste livro. É uma pesquisa em andamento, longe de estar concluída, e que, ademais, exige um esforço de refi namento teórico ainda a ser feito. Um empreendimento arriscado, portanto. Que o leitor tome o que vai ser lido como um roteiro de um trabalho que deverá ser desenvolvido e desdobrado posteriormente. Porém, se assumo o risco é porque achei que valia pena. Talvez seja melhor dizer: foi algo que se impôs quase como um imperativo que me conduziu, uma exigência de avançar, um pouco que seja, no que foi su-gerido, talvez de um modo muito (ou apenas) alusivo, nas linhas fi nais do capítulo anterior. Uma exigência, portanto, posta pelo andamento mesmo da escritura deste livro. Não estou segura de que, ao fi nal destas páginas, essas questões tenham sido respondidas. Mas são pistas a seguir, também uma experimentação, uma tentativa de construir uma trama descritiva que forneça um critério de inteligibilidade a fatos, circunstâncias e histórias que compõem o mundo urbano, ao revés dos termos como essas questões vêm sendo pautadas no debate atual. Aqui, outras ordens de razões que me induziram a enfrentar uma empreitada tão arriscada.

Primeiro: defi nir um plano de referência que permita deslocar o terreno a partir do qual descrever a ordem das coisas e problematizar as questões em pauta. Quer dizer: uma estratégia descritiva que escape aos termos correntes do debate atual, em grande medida polarizado entre o assim chamado Crime Organizado, de um lado, e, de outro, a discussão das chamadas populações em situação de risco, expostas à violência e supostamente cativas das ramifi cações locais do tráfi co de drogas. Um campo de debate que está longe de ser desprovido de pressupostos e consequências. O tráfi co de drogas e o dito Crime Organizado aparecem como entidades fantasmáticas às quais são atribuídas todas e quaisquer mazelas de nossas cidades ou, como sugere Misse (2006: 269), os vários apelidos de um sujeito onipresente e onipotente que responde pelo nome de Violência Urbana (assim mesmo, em maiúsculo) e que unifi ca confl itos, crimes, delitos cotidianos, comportamentos, fatos e eventos os mais disparatados. É nessa fi guração que se constroem os mitos e fi cções de um poder paralelo, versão nativa do “império do mal”, inimigo contra o qual só resta a estratégia da guerra (e extermínio). É o que está posto e exposto em episódios recorrentes e recentes de intervenção policial em territórios ditos problemáticos em nossas cidades. Do outro lado, a fi cção de populações encapsuladas nas ditas “comunidades”, subjugadas ou aterrorizadas, no mínimo ameaçadas, mas destinadas à remissão pela intervenção salvadora de programas sociais que, no entanto, circunscrevem relações de poder regidas

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pela lógica da governamentalização das populações (Foucault, 2004): o governo das populações através das chamadas “comunidades” de referência, diz Nicolas Rose (2008), um modo de “conduzir as condutas” pelas vias de dispositivos gestionários voltados ao que é percebido (e tipifi cado) como “risco” (em suas várias manifestações).

Vimos isso no quarto capítulo. Mas poderíamos, agora, reformular a questão: outras confi gurações da gestão diferencial dos ilegalismos e que, agora como antes, no século XIX discutido por Foucault, também produz saberes (e seus credenciais de objetividade e cientifi cidade), objetos, fatos, medidas e indicadores que pautam debates, defi nem agendas de pesquisa e circunscrevem os campos de intervenção nos territórios ditos problemáticos, construídos como tais (cf. Rose, 2005; Castel, 1983). Acontece que o mundo social não se reduz às confi gurações que podem se constelar em torno desses dispositivos de poder, nas suas duas pontas. É justamente aqui onde se aloja o desafi o de se compreender o modo como as linhas de força transversais aos mundos urbanos, que se conjugam em torno desses dispositivos (não são fi cções, também compõem a ordem das coisas), escapam e se entrelaçam nas tramas sociais e nos agenciamentos práticos da vida social. É também nisso que se explicita, retomando questões discutidas no segundo capítulo, a pertinência de se reter a cidade como perspectiva e plano de referência para situar as questões em pauta. Essa preocupação esteve presente na etnografi a que fi zemos, Daniel Hirata e eu, de um ponto de droga instalado no miolo de um bairro da periferia sul da cidade, seguindo os percursos de um pequeno trafi cante de bairro (cf. Telles & Hirata, 2007).

Segundo ponto: é desse material de pesquisa que o texto que segue se ali-menta, acrescido de outras tantas histórias bandidas cujos percursos nos oferecem algo como um roteiro para a recuperação da história urbana local, desde os anos 1980. Aqui, justiceiros, matadores e trafi cantes comparecem como personagens e são seus itinerários, cruzados e entrelaçados nas circunstâncias da vida co-mum, que oferecem o prisma pelo qual se tentará recompor o feixe de relações e conexões que compõem a história local. Porém, com isso, entra-se em outro campo polêmico, no mínimo problemático, pautado pela mais do que espinhosa questão das relações entre pobreza, crime e violência. Questão que não é de hoje, como bem sabemos. E não é de hoje que Michel Misse, já em seus textos dos anos 1990, chama a atenção para o ponto cego dessa discussão, ou melhor: dos termos pelos quais essa discussão se processa. Vale reter os aspectos principais da argumentação de Misse, pois eles são importantes para explicitar algumas das ênfases do texto que segue, que é, ademais, muito devedor de seus escritos.

Em termos gerais, nota Misse,4 em que pesem as diferenças de matrizes teóricas, ênfases e lógicas argumentativas, a crítica à criminalização da pobreza sempre esteve no centro desses debates (sobretudo, anos 1980-1990). As baterias

4 Refi ro-me aqui ao conjunto de textos agrupados na primeira parte do seu livro Crime e violência no Brasil contemporâneo (2006).

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críticas sempre tiveram e têm em mira as desigualdades sociais, as mazelas da justiça brasileira, o legado autoritário, o défi cit de direitos. Críticas justas, neces-sárias, corretas, politicamente importantes. Porém, diz Misse, são nulas do ponto de vista da compreensão sociológica do problema: não conseguem desmontar e desfazer-se do fantasma da associação entre pobreza e crime, de tal modo que ela sempre volta na fi gura de operadores dessa relação, seja o crime organizado, seja em outras matrizes explicativas, a “revolta” ou alguma outra categoria mediadora para “explicar” uma associação que justamente se tenta negar. Descompasso entre a lógica da denúncia e a lógica da compreensão sociológica, diz Misse.

Mais fundamentalmente, o problema está no jogo de referências mobilizadas nesse debate. Problema teórico-conceitual: a presunção de que todos os confl itos possam ser resolvidos por um operador único, o Estado detentor do monopólio da violência legítima, locus da racionalidade, da legalidade e da universalidade dos princípios. Mas esse é um pressuposto que apenas repõe a questão e faz o fantasma retornar no temor de uma violência potencialmente acionada pelos que estão fora do contrato por conta das desigualdades e exclusões que caracterizam o capitalismo brasileiro. Problema político-normativo: um debate em boa medida regido por uma visão normativa e idealizada da cidadania, da modernidade, da democracia (importante na lógica da denúncia), sem que se considerem as formas concretas pelas quais o poder opera nas situações de classe, “formas de domi-nação que têm sua positividade e não podem ser recalcadas sob a acusação de patologias do atraso” (2006: 50). Mais concretamente: toma-se como referência uma “polícia e um judiciário ideais em uma sociedade que não é ideal (segundo os mesmos parâmetros normativos)”. Nesse caso, “o erro mais comum é supor que a dinâmica da criminalidade depende dos dispositivos de controle social e não de matrizes sociais de contextos causais que incluem esses mesmos dispositivos” (2006: 80). Problema empírico-cognitivo: “crime” é uma categoria jurídica que, tomada como referência analítica, termina por reifi cá-lo (também à violência ur-bana), abstraindo as redes sociais e relações de poder que constituem o espaço urbano, os modos como o poder opera em situações variadas, atravessando as miríades de situações ilegais, do trabalho informal, passando pelas feiras de produtos roubados, os fl anelinhas, a prostituição, os ferros-velhos, os vendedores de ouro, etc. Ao se abstraírem as múltiplas redes sociais da violência cotidiana, próprias do nosso tipo de capitalismo, o agente criminal é singularizado na sua contraposição à ordem, aos valores dominantes e também ao mundo do trabalho, como se este não fosse constituído por contradições internas e atravessado por ilegalidades variadas, desde a “transgressão consentida” dos direitos (cf. Lautier, 1991) até as miríades de situações do assim chamado mercado informal. Nesse registro, diz Misse, o risco é o da patologização do homem violento.

No movimento cuidadoso dos argumentos, Misse opera um deslocamento im-portante do campo da discussão. Com ressonâncias evidentes de Foucault, saímos do terreno da Soberania, do Contrato, do Direito, para perscrutar as relações de poder tal como elas se processam nos contextos situados no tempo e no espaço.

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É nesse terreno que Misse pode tomar a sério a criminalização da pobreza, que é efetiva e contém uma positividade que é preciso averiguar para deslindar esse que é o ponto cego dos debates correntes, ou seja, a relação entre pobreza e crime, sem tomar, porém, essas noções, pobreza e crime, como categorias analíticas, o que não são, nem uma nem outra, assim como violência tampouco é um conceito ou categoria analítica, enfatiza Misse. São os modos como essa criminalização se processa que acionam os fantasmas, constroem o crime como problema e pro-duzem as demandas de segurança pública, repondo e amplifi cando as práticas do que ele defi ne como incriminação preventiva dos tipos sociais vistos e tidos como potencialmente criminosos. Não é o caso de reproduzir todo o argumento, mas de salientar o ponto que nos interessa mais de perto, em vista das questões que serão tratadas mais adiante. O conceito importante aqui é o de “sujeição criminal”, pelo qual Misse põe em relevo a prevalência extralegal dos processos de acusação e incriminação pelos quais o autor é nomeado antes que o evento criminal ocorra e possa ser tipifi cado legalmente como tal: busca-se o sujeito de um crime que ainda não aconteceu. Na tradição inquisitorial discutida por Kant de Lima (1989), essa prática de julgamento antecipado, apropriada pelos poderes de polícia, confere aos agentes policiais um lugar central, “excessos de poder” que se desdobram no uso indiscriminado de procedimentos extralegais, sobretudo a violência extralegal, que não são “desvios” de conduta de gente mal preparada, mas algo que faz parte da lógica que preside as práticas de segurança e está no cerne do que Misse chama de “acumulação social da violência”.

Isso signifi ca dizer que nessas pontas do processo de incriminação abre-se um feixe de relações de poder transversais às miríades de situações ilegais que pontilham os mundos urbanos, do trabalho informal aos mercados de bens ilegais e ilícitos e mais toda a nebulosa de situações nas fronteiras incertas do informal e ilegal, que compõem o bazar metropolitano, para retomar a discussão do ca-pítulo anterior. Concretamente, relações de poder em que o uso indiscriminado da violência é acompanhado pela transação de “mercadorias políticas” que varia entre os “acertos” na partilha dos ganhos, propinas, corrupção, chantagem e extorsão, quer dizer: mercados de proteção, também ilegais, que se sobrepõem às outras ilegalidades e parasitam os mercados informais e ilegais. A transação de mercadorias políticas e os mercados de proteção são tanto mais agressivos quanto maior é a demanda de segurança ativada justamente pelas políticas de criminalização que demarcam essas atividades e que seguem a lógica não da violência legítima e legal do Estado, mas a “lógica do excesso de poder de suas bases sociais de implementação”. Mais do que na “relação estereotipada entre drogas e crimes”, é aí que se aloja o problema da violência, as “ligações perigosas” entre dois mercados ilegais que se sobrepõem.

Este o núcleo nervoso da “acumulação social da violência” que, no caso do Rio de Janeiro estudado por Misse, tem seu ponto de arranque já nos anos 1950, quando aparecem os primeiros sinais do que será chamado de “esquadrão da morte”: a prática sistemática de uma violência extralegal que se desenrola sob

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uma amplíssima margem de tolerância política e apoio explícito de segmentos da população, com modulações próprias aos tempos e conjunturas políticas, da vio-lenta Escuderia Le Cocq, passando pelo carismático justiceiro Tenório Cavalcanti, deputado mais votado nos anos 1960, depois, sob o regime militar, os grupos de extermínio, chegando mais recentemente ao que é genericamente designado como milícias. São grupos de policiais militares que, replicando as táticas do tráfi co de drogas, ocupam e controlam o “território”, impondo, sob ameaça e extorsão, a oferta de segurança em troca de pagamento regular de mensalidades, além da oferta de serviços, todos extralegais – ligações clandestinas de TV, venda de botijões de gás, cobrança de taxas das cooperativas de transporte alternativo, pedágios e tarifas para a proteção (Misse, 2009). Zaluar e Conceição (2007) fazem uma esclarecedora análise das linhas de continuidade, e também das diferenças, das atuais “milícias” em relação a outras modalidades da violência extralegal praticada no Rio de Janeiro ao longo das décadas, o que inclui as prá-ticas de segurança privada, bem como a associação de moradores armados para garantir a proteção local. Diferente destes, está a cobrança do “serviço prestado”. E diferente, ainda, dos grupos de extermínio, a territorialização das milícias e o controle militarizado das áreas ocupadas. Surgem de forma expressiva a partir dos anos 2000 e se desdobram, com variações importantes em cada lugar, a experiência “bem sucedida” da favela Rio das Pedras, que fi cou famosa pela “segurança local” nos anos 1990, mas carregava uma turbulenta experiência de “serviços de proteção” iniciada já nos anos 1970, tempos que fi zeram a fama da chamada “polícia mineira”, o grupo que mantinha o controle estrito, violento e arbitrário da área (cf. Zaluar e Conceição, 2007).

Em 2007, eram 86 favelas sob o controle das milícias formadas por policiais civis, militares, bombeiros, além de guardas penitenciários, ativos ou aposenta-dos. As milícias parecem estar ocupando espaços antes dominados pelo tráfi co de drogas. Na descrição precisa (e impressionante) de Michel Misse (2009: 11): “eles seguem métodos e táticas semelhantes aos dos trafi cantes, organizam, por exemplo, ‘bondes’ (vários carros em comitiva, lotados de homens fortemente armados), invadem a área com 80 ou 100 homens e, depois, a controlam dei-xando 10 ou 15 de seu pessoal lá, partindo para ocupar outras áreas”. Na sua avaliação, esse fenômeno é desdobramento do processo de “acumulação social da violência” no Rio de Janeiro, “o aperfeiçoamento, a transição para formas organizadas desses antigos grupos de extermínio, desses grupos de policiais que transacionavam ‘mercadorias políticas’ com os trafi cantes, participantes dessa economia subterrânea, desse capitalismo subterrâneo, desse ‘capitalismo político’ para usar a expressão de Max Weber” (Misse, 2010: 11).

Terceiro ponto: violência extralegal, privatização da segurança, justiça priva-da, criminalidade violenta, são elementos que compõem a história (e experiência) urbana, já bastante estudada no Rio de Janeiro, a ser ainda muito pesquisada no caso de São Paulo. Lá, como aqui (e outras cidades brasileiras), ela oferece todos os ingredientes que parecem validar a hipótese da “modernidade incompleta”

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em uma sociedade em que o primado da lei, dos direitos, da cidadania não se efetiva no plano da sociedade. Michel Misse oferece uma cunha crítica rigorosa dessa formulação e mostra o des-conhecimento que se produz quando se insiste nas “patologias do atraso”, deixando fora de mira o modo como o poder opera concretamente nesses contextos sociais, as relações de força que se processam pelas vias de uma apropriação privada ou mesmo a expropriação do monopólio da violência legítima que o Estado brasileiro nunca chegou a garantir.

Em outra chave teórica, seria possível se perguntar pela relação entre práticas extralegais e os modos de funcionamento do próprio Estado, algo que se instala no interior das suas funções de ordenamento, algo que nos entregaria o segredo – não o segredo oculto, mas público, exposto, visível – da produção da ordem, da lei, do próprio Estado, e que poderia se constituir como objeto do conhecimento, passível de ser etnografado em contextos situados no tempo e no espaço. Essa é a hipótese ousada de um grupo de antropólogo(a)s reunido(a)s em um seminário que resultou em um livro que leva o sugestivo título de Anthropology in the margins of the State (Das & Poole, 2004). Conjunto de pesquisas desenvolvidas em áreas que poderiam ser tomadas como exemplos paradigmáticos de estados fracassa-dos, fracos, incompletos. Na Colômbia, Peru, Serra Leoa, Chade, África do Sul, Sri Lanka, Índia, as pesquisas foram desenvolvidas em regiões devastadas por guerras, guerrilhas, convulsões internas e crivadas internamente por territórios sob o domínio de autoridades locais que exercitam o poder da justiça privada. Ao invés de supor que sejam formas incompletas ou frustradas de estado, pergunta-se: “acaso não são as formas de ilegalidade, pertencimento parcial e desordem que parecem habitar as margens do estado, o que constitui as condições necessárias para o estado enquanto objeto teórico e político?”

Nossa estratégia analítica e descritiva foi nos distanciarmos da imagem consoli-dada do estado como forma administrativa de organização política racionalizada que tende a debilitar-se ou desarticular-se ao largo de suas margens territoriais e sociais. Ao contrário disso, propusemos aos participantes do seminário que refl etissem acerca de como as práticas e políticas de vida nessas áreas modelam as práticas políticas de regulação e disciplinamento que constituem aquilo que chamamos de “o estado”. (Das & Poole, 2004: 3)

Há uma dupla provocação nessa empreitada. Primeiro: ao propor a antropolo-gia do Estado visto a partir das suas “margens”, desativa-se a partilha moderna, para usar os termos de Bruno Latour (1994), entre as “lógicas sistêmicas”, de um lado, cujo estudo é considerado prerrogativa dos sociólogos e cientistas polí-ticos e, de outro, os “mundos da vida”, cujos códigos culturais seria missão dos antropólogos deslindar, esses pesquisadores que, afi nal, se especializaram em estudar “sociedades sem Estado”, para evocar aqui um campo polêmico interno à antropologia e que as coordenadoras desse livro tratam de bem situar e discutir na introdução. Para nós, etnógrafos do urbano, a questão é importante, pois afeta

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diretamente o modo como são construídos os nossos objetos de pesquisa, o critério de pertinência etnográfi ca, a defi nição daquilo que interessa e é pertinente ao estudo etnográfi co ou, então, para falar como Paul Veyne (1998), o modo como se arma a trama descritiva, cruzamento de linhas múltiplas e itinerários possíveis para colocar em cena a interação entre os homens, as coisas, as circunstâncias, os acasos, feixes de relações que produzem os acontecimentos narrados.

Segundo: é um empreendimento de conhecimento que se desvencilha do mito de fundação do Estado (o Contrato, a Lei) e, nesse caso, é um deslocamento importante do espaço conceitual para lidar com questões pertinentes às relações entre lei, violência e ordem. Como Das e Poole dizem na introdução desse livro, é apenas em referência aos pressupostos da teoria política moderna, que tomam o Estado como lugar da transcendência e monopólio da violência legitima, que se pode falar de incompletude associada às suas “margens”, regiões caracterizadas e tidas como espaço da ausência da lei, selvageria, estado de natureza. A rigor, dizem as autoras, ao tomar como referência esses pressupostos e esse modelo, a formação do estado sempre estará incompleta:

Nesta visão da vida política, o estado é concebido como um projeto sempre incompleto que deve ser constantemente enunciado e imaginado, invocando o selvagem, o vazio, o caos que não apenas se cava por fora dos limites de sua jurisdição, como, ademais, é uma ameaça desde seu interior. Quisemos enfati-zar que, para [os teóricos] fundacionais do estado moderno europeu, o estado sempre está em perigo de perder o domínio sobre a organização racional do governo pela força natural vinda de seu próprio interior. Assim, as demandas de justiça popular sempre foram interpretadas como uma expressão das facetas da natureza humana que não foram domesticadas pela racionalidade. (Das & Poole, 2004: 7)

Esta a provocação e este o deslocamento: ver o estado a partir das “margens”, não como o seu espelho invertido, mas como lugares onde o estado está sendo constantemente refundado nos seus modos de produção de ordem e de lei:

[...] situados sempre nas margens do que se aceita como inquestionável controle do estado, as margens que exploramos neste livro são simultaneamente lugares onde a natureza pode ser imaginada como selvagem e descontrolada e onde o estado está constantemente redefi nindo seus modos de governar e legislar. Esses lugares não são meramente territoriais: são também (e talvez isso seja o seu aspecto mais importante), lugares de práticas nos quais a lei e outras práticas são colonizadas mediante outras formas de regulação que emanam das neces-sidades prementes das populações, com o fi m de assegurar sua sobrevivência política e econômica. (Das & Poole, 2004: 8)

Margens: não são defi nições territoriais, com contornos previamente estabe-lecidos, não são lugares geográfi cos, tampouco uma periferia. São espaços de

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práticas e relações que se deslocam e se redefi nem não à margem do estado, mas justamente conforme as forças deste operam nesses lugares: contextos situados a partir dos quais é possível seguir e etnografar seus modos, seus tempos, procedi-mentos, técnicas e tecnologias de ação. No conjunto das pesquisas apresentadas, comparecem caudilhos e autoridades locais que fazem uso do poder que o estado lhes confere para a prática da justiça privada; o uso da violência extralegal do ofi cial militar que termina por esfumaçar a diferença entre a lei e o terrorista justiciado em nome da ordem; as barreiras policiais que instauram a ambivalên-cia entre proteção e ameaça à vida; os controles arbitrários de documentos em regiões de fronteira que tornam ilegível, indecifrável, a relação entre a regra e a lei. Alguns exemplos aqui pinçados entre outros, retirados da teia fi na de rela-ções e circunstâncias descritas em cada um dos contextos estudados, porém que interessam não apenas porque neles ressoam situações que nos são familiares, mas porque nesses modos de encenar e descrever as situações explicitam-se as questões em pauta nesse livro: “margens”, produção de espaços de incerteza, de indeterminação das fronteiras do legal e do extralegal, o dentro da lei e o fora da lei. Ao invés de se fi xar em espaços-territórios (o Estado e suas periferias), trata-se de seguir os movimentos que produzem essas áreas como margem, espaços que se deslocam e são tangíveis nesses pontos (que também se deslocam como as barreiras policiais) em que os modos de operação das forças estatais repõem essas indeterminações e essas incertezas.

Mas é aqui também, nessas microssituações, que se explicita o espaço concei-tual em que essas questões são lançadas. “Estado de exceção e vida nua”, par de conceitos lançados por Agamben (2002), em sua releitura de Carl Schmitt, através dos quais recupera em outra chave a noção de biopoder proposta por Foucault (1988,1997): essa, a referência que conduz as questões teóricas e empíricas pro-postas pelas autoras. Diferente da meditação fi losófi ca de Agamben, a questão (ou o problema) da soberania é tratada de um ponto de vista antropológico, isto é, sob o prisma de suas condições de operação cotidiana. As autoras fazem, a rigor, uma etnografi a dos modos como os poderes de soberania são exercitados em contextos situados, recompondo as situações e o feixe de relações que se estabelecem em torno de seus modos, procedimentos, técnicas de ação. São nessas circunstâncias e nesses contextos práticos que se torna possível entender as conexões internas entre lei e exceção. São práticas que articulam simultaneamente o dentro e o fora da lei. Práticas que não poderiam ser entendidas nos termos de lei e trans-gressão da lei, pois é justamente essa diferença que é suspensa e desativada nos seus modos concretos de operação, em nome do que é posto e defi nido como urgência e emergência, defi nições estas que dependem de um poder discricio-nário, defi nidor justamente da soberania. Poderes de soberania multiplicados e desdobrados nessas pontas que afetam as vidas e formas de vida. São práticas que produzem as fi guras do homo sacer, vida matável, em situações entrelaçadas nas circunstâncias de vida e trabalho dos que habitam esses lugares. É por isso, dizem as autoras, que os poderes de soberania são também experimentados no

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modo de potencialidade: “sente-se pânico e tem-se o senso do perigo de algo que pode acontecer mesmo quando nada acontece” (2004: 15).

As “margens”, portanto, não são o exterior do Estado, elas se deslocam e estão tanto no interior como fora do Estado. São espaços de exceção, porém “as margens não são inertes”: são espaços de criatividade, dizem as autoras, que poderíamos traduzir como espaços de experimentação nos quais homens e mulheres, indivíduos e coletivos reinventam seus recursos, lançam mão de ele-mentos do próprio Estado, transitam também entre o fora e o dentro do Estado, maquinam artifícios também nas fronteiras incertas do legal e ilegal, negociam regras, limites, protocolos, agenciam contra-condutas, de tal modo que as próprias fronteiras do Estado se estendem ou são refeitas na busca de segurança ou de justiça em suas vidas cotidianas. Esse movimento é o que torna as margens tão centrais para entender o estado, dizem as autoras. As etnografi as dessas práticas são um convite “para repensar os limites entre centro e periferia, o público e o privado, o legal e o ilegal, que também atravessam o coração dos mais frutuosos estados liberais europeus”.

[Uma antropologia das margens] oferece uma perspectiva única para compre-ender o estado, não porque capture práticas exóticas, mas porque sugere que ditas margens são supostos necessários do estado, da mesma forma como a exceção o é para a regra. (Das & Poole, 2004: 4)

* * *

Questões pesadas, de envergadura, além do que será possível tratar com base no material de pesquisa disponível. Não se tem a pretensão de responder ou corresponder a nenhuma delas. Que sejam aqui tomadas como notas de leitura, o equivalente aos nossos diários de campo e tão importantes quanto esses, desde que sejam tomados, uns e outros, e na diferença entre um e outro, cada qual em sua própria lógica, como experiências de conhecimento que desestabiliza o já-dito, já-sabido, que suscita a imaginação e provoca nossa capacidade de pensar para além do que está posto e previamente codifi cado nos termos correntes do debate. O trabalho de campo não entrega a “prova” ou demonstração do que quer que seja, é uma experiência que nos afeta e modifi ca nosso próprio estoque de referências e parâmetros estabelecidos. Como diz Favret-Saada,

[...] aceitar ser afetado supõe ...que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conheci-mento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografi a é possível. (Favret-Saada, 2005: 160)

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Isso signifi ca dizer que, na montagem da trama descritiva (e narrativa) que será apresentada nas páginas que seguem, tratou-se de seguir o modo como essa experiência de campo nos afetou. Justiceiros, matadores, trafi cantes são personagens que povoavam os relatos que nos foram entregues, como também a observação que fi zemos, Daniel Hirata e eu, ao longo dos oito anos de trabalho de campo. Cada qual comparecia em meio a histórias, circunstâncias, casos e acasos que pontilhavam os percursos urbanos de nossos entrevistados. Nos meandros das “histórias minúsculas” que fomos anotando, nos impressionava o exercício de uma gestão da ordem local: agenciamentos práticos nos pontos em que se entrelaçam as forças da lei, os ilegalismos e as microrregulações da vida cotidiana. Uma gestão da ordem que se desdobra em uma gestão dos limiares da vida e da morte: concretamente, os riscos da “morte-matada”. É por esse ângulo que, talvez, se possa entender algo dessa “pacifi cação” (termo enganoso, diga-se) que parece estar se produzindo mediante expedientes como os “deba-tes”, comentados no início deste capítulo. Se há uma novidade no acontecimento PCC, será preciso situá-la nesse plano, nos pontos em que esse acontecimento se comunica com uma experiência que vem de antes e que faz parte da história urbana dessa cidade, quiçá de outras. Essas questões estão no cerne da tese de doutorado de Daniel Hirata (2010). Por circunstâncias de momento, este capí-tulo não pôde ser escrito a quatro mãos. Deveria. Mas, então, mais uma razão para tomá-lo também como um roteiro de um trabalho ainda a ser concluído, em parceria, o que certamente haverá de suprir muitas das lacunas do que é agora apresentado.

A noção de “margem” e a fi leira de questões e conceitos mobilizados em torno dela defi nem aqui, para nós, um plano em que os problemas podem se colocar ou uma encruzilhada deles e que exigem um trabalho de elaboração teórica, por nossa própria conta e risco, em diálogo com a experiência mesma do trabalho de campo. Como diz Foucault, os conceitos funcionam como “caixa de ferramentas”, um seu uso pragmático, não categorial; eles importam na medida em que ajudam a formular nossas próprias questões a partir de um certo crivo, perspectiva, pela qual essas questões podem ser postas como algo no qual ressoam os problemas de nossa atualidade.

As “margens” de que este capítulo trata se produzem no interior de nossas cida-des. Periferias urbanas. Os pontos e linhas aqui seguidos para descrever as tramas da cidade, lembrando aspectos explorados no segundo capítulo, são as pistas e os traços deixados por histórias bandidas: justiceiros, matadores, trafi cantes. No caso do Rio de Janeiro, as relações entre história urbana e formas de criminalidade (e seus “tipos sociais”) já foram vasculhadas por uma vasta e importante literatura. Michel Misse e Alba Zaluar são referências obrigatórias nessas discussões. Para São Paulo, essa é uma pesquisa ainda a ser feita. O que se pretende, a seguir, é lançar alguns elementos para essa discussão, tomando como fi o condutor os personagens urbanos que, em cada contexto, em três tempos distintos, parecem sintetizar as teias de relações que conformam os mundos urbanos.

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Sem que deem conta das múltiplas formas e situações da assim chamada criminalidade urbana, as fi guras dos justiceiros (anos 1980), dos matadores (anos 1990) e dos trafi cantes (anos 2000) aqui interessam como “personagens urbanos” que, em seus percursos e modos de ação, fazem ver uma teia de rela-ções que molda a tessitura do mundo social. À distância dos tipos que ganharam fama e notoriedade no noticiário policial, esses personagens estão encarnados em “homens minúsculos” (Foucault) que interessam justamente pela “miudeza” das circunstâncias, contextos, casos e acasos que envolvem sua ação: é isso justamente que faz desses personagens prismas valiosos pelo qual apreender os mundos urbanos. Daí o interesse em seguir os traços dessas histórias bandidas, desses personagens urbanos que, ao longo deste capítulo, serão colocados em cena. Histórias minúsculas de “homens infames”, diria Foucault, essas “exis-tências destinadas a passar sem deixar rastro” (Foucault, 2003: 207), mas que interessam justamente porque são portadoras de um feixe variado de relações e conexões com o mundo social. Por isso mesmo são formidáveis guias para nos conduzir nessa incerta prospecção do mundo urbano atual.

São percursos que se fazem nas dobras do legal e ilegal, para retomar os termos do capítulo anterior, e é justamente por isso que deixam entrever a teia de relações e jogos de poder que se confi guram nesses pontos nervosos da vida urbana. Mais concretamente: essas histórias bandidas se fazem nas fronteiras incertas entre a lei e o crime. Por isso mesmo, dizem algo dos ordenamentos sociais que se fazem nesses terrenos incertos entre o fora e o dentro da lei, entre a lei e a exceção, indeterminação que se produz justamente no encontro e nas fricções com a lei e seus modos de operação nas situações que afetam as vidas e formas de vida.

Justiceiros, matadores, trafi cantes: cada um deles faz a marcação de tempo-ralidades distintas e, sendo assim, talvez nos ajudem a melhor compreender as infl exões e deslocamentos da história urbana recente, em compasso com evolu-ções da economia, sociedade e cidade. Não se trata de postular uma evolução linear de uma fi gura a outra. Cada qual resulta de arranjos urbanos e contextos de criminalidade, cuja singularidade interessa entender. Em torno desses per-sonagens, confi guram-se determinadas relações com as forças da ordem e com os moradores e as microrregulações. Esse o aspecto importante a destacar, e que se tentará trabalhar nas páginas seguintes: agenciamentos distintos que, em suas diferenças, informam algo sobre uma gestão local da ordem que se faz nos pontos de intersecção da lei, dos ilegalismos e das formas de vida. É isso que interessa perscrutar nas diferenças que singularizam cada um, em seus contextos de referência.

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Primeiro momento, anos 1980: o mundo do trabalho e os justiceiros

O cenário urbano é conhecido: expansão desordenada das periferias da ci-dade em uma mistura intrincada das várias ilegalidades que acompanhavam as ocupações de terra e abertura de loteamentos populares, no mais das vezes na forma de um mercado imobiliário fraudulento e camadas sucessivas de grilagem de terras. Em que pesem os sinais do que, anos depois, na virada dos anos 1990, haveria de ganhar a forma da chamada reestruturação produtiva, essa foi uma década em grande medida regida pela ainda vigente centralidade do trabalho, para evocar um tema que esteve no cerne dos debates de então, mas que por aqui soava algo deslocado. Lembremos: esses foram os anos das grandes mobilizações operárias, do surgimento dos então chamados sindicatos autênticos, formação da CUT e fundação do Partido dos Trabalhadores. Em sua contraparte urbana: os movimentos sociais e as reivindicações associadas aos problemas da moradia popular. Pelo ângulo societário: as expectativas de “progresso” e melhoria de vida projetadas nas possibilidades (incertas) de acesso ao trabalho regular e no “sonho da casa própria” em grande medida viabilizado pelas vias da autoconstrução da moradia nas então muito distantes e muito precárias periferias urbanas.

É nesse cenário que surge a fi gura do justiceiro. E surge nos meandros e cir-cunstâncias da vida nessas regiões situadas nas periferias urbanas. No bairro em que fazemos nossa pesquisa, tentamos saber algo sobre o surgimento e os modos de atuação dos justiceiros. O Bairro X está situado no miolo do Distrito do Jardim São Luis (zona sul) que, nesses anos e na década seguinte, sempre compareceu entre os primeiros lugares no ranking das regiões mais violentas da cidade. São histórias que se confundem com a própria história urbana local. No início dos anos 1980, era um bairro ainda em formação, muitas famílias recém-chegadas, instaladas em moradias precárias, em uma região marcada por assentamentos irregulares, ocupações de terra e duas grandes favelas.

Dona Leonora,5 40 anos (em 2006), evangélica, dois fi lhos adolescentes (16 e 15 anos) chegou ao bairro com a família quando ainda era criança. Tinha 17 anos quando conheceu, enamorou-se e foi morar com Chico. Ele foi um dos três justiceiros que atuavam no bairro. No momento em que a conhecemos, Chico estava cumprindo pena de 20 anos de cadeia. Naquela época, ela diz, eram histórias de molecada do bairro que roubava botijão de gás, roupa estendida no varal, coisas as-sim. Às vezes, se juntavam com garotos do bairro vizinho. Eles roubavam sobretudo (mas não apenas) pessoal novo no bairro, gente que mal tinha se instalado no local. As histórias eram muitas. Gente que era assaltada, sempre, no dia do pagamento, quando voltava para casa com o salário do mês. Um desses, que via o salário ser surrupiado todo mês, “foi se revoltando” e tratou de resolver o problema de uma vez por todas. Arrumou uma arma e, na volta do serviço, deu fi m no rapaz que

5 Esse e todos os demais nomes são fi ctícios.

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o esperava de tocaia em uma esquina. Não retornou mais ao trabalho. Sabia que dali para frente estaria na mira da polícia. Tornou-se justiceiro, o mais afamado e o mais temido da região. Vamos chamá-lo de Joel. A ele, depois, juntou-se outro também procurado pela polícia: era peão na construção civil, revoltou-se com uma desfeita do encarregado e a briga deu em morte. Chico, por sua vez, chegou à região no início dos anos 1980 para escapar de uma ordem de prisão no inte-rior de São Paulo. Acusação: estelionato. Na verdade, um enredado de “histórias infames” e desavenças familiares. Ao que parece, esvaziou a conta bancária do próprio pai como revide ao desgosto familiar que ele vinha provocando por conta de uma amante, aliás, comadre da mãe e amiga íntima da família. Uma história rocambolesca, que não é o caso aqui de reconstituir.

Chico morava no bairro com um cunhado, que o ajudou a arrumar seu primeiro emprego em São Paulo: segurança em uma casa particular na região nobre de Moema, uma mansão, diz Leonora; aliás, um ofício frequente entre esses homens que transitam nas fronteiras incertas do legal e ilegal. Depois, passou a trabalhar como pintor e eletricista. Ele nunca deixou de trabalhar. Porém, a partir de certo momento, começou a andar com os dois outros, principalmente o Justiceiro Joel, que o chamava sempre para acompanhá-lo em suas empreitadas. Por quê? Pergunta inevitável. A resposta não deixa de ser surpreendente: “às vezes, eu fi cava pen-sando assim, essa vida que ele levou, ele se envolveu assim por medo... na época que ele chegou, os caras matavam ladrão, né? [...] acho que ele fi cou com medo de alguém falar alguma coisa, que ele tinha problema com a polícia”. Ele tinha medo que alguém o denunciasse, desconfi ava de gente da própria família ou de desafetos que havia deixado em sua cidade de origem. O problema, diz Leonora, é que naquela época tinha disso, “bandido que vinha de fora, morria”.

Não fi ca claro de quem Chico tinha medo: ou da polícia ou dos justiceiros ou dos dois. Muito provavelmente, essas diferenças não eram mesmo muito cla-ras, nem poderiam ser. Até onde foi possível rastrear as “histórias minúsculas” desses pequenos justiceiros de bairro, não é evidente que agissem sempre e necessariamente por encomenda da polícia. Mas isso, a rigor, nem mesmo era preciso. Na ação dos justiceiros, mais do que a prática da justiça privada, havia algo como uma “violência do Estado por procuração” (Das & Poole, 2004), na qual ressoam os esquadrões da morte dos anos 1970 e, depois, nos anos 1980 e 1990, os grupos de extermínio formados no meio policial, com a participação de policiais ativos, ex-policiais, seguranças privados, também comerciantes locais (cf. Cruz-Neto & Minayo, 1994). Inclusive e sobretudo: as rotinas da “polícia que mata”, para lembrar aqui o título do livro-reportagem de Caco Barcelos (1992). Na região (e em todas as outras) as investidas da muito temida e muito violenta Rota6 compõem a memória dos moradores e deixaram vários rastros nos casos

6 “A Rota – Rondas Ostensivas Tobias Aguiar – é uma divisão especial da polícia militar famosa por ser responsável pela maioria das mortes de civis na região metropolitana de São Paulo [...]. Ela foi organizada em 1969, durante o regime militar, para lutar contra ataques

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sabidos de execuções sumárias, outros tantos de abusos, “esculachos”, como se diz, que acompanhavam as batidas policiais tendo em mira jovens, negros e qualquer um que pudesse parecer suspeito e não apresentasse as provas de sua inocência, quer dizer: naquela época, a sempre exigida carteira de trabalho, esse ambivalente instrumento que, nos termos da “cidadania regulada” discutida por Wanderley Guilherme dos Santos (1979) e ainda vigente naqueles anos, mais do que uma evidência trabalhista, operava como “certidão de nascimento cívico”. Esses também foram os anos que viram surgir as fi guras emblemáticas do policial justiceiro, como o famoso Cabo Bruno, ou então o policial matador, um tipo que agia nos quadros da corporação para levar à frente a caça aos bandidos, “matar para não morrer” como pregava o muito violento, o muito famoso, celebrado e condecorado Conte Lopes, ex-capitão da Rota e depois deputado estadual, com vários mandatos e bastante ativo na Assembleia Legislativa de São Paulo.7

Chacinas e execuções sumárias foram mais do que frequentes nesses anos. Compõem o quadro das mortes violentas na cidade de São Paulo: no período de 1980 a 1996, a ação dos grupos de extermínio resultou em 2000 casos de homi-cídio; entre 1990 e 1996, as vítimas fatais somam 1.595 pessoas (cf. Pinheiro, 1999). Esses são os números de casos conhecidos. Mas podemos supor que haja miríades de outros que não ganharam registro policial, tampouco chegaram às sessões de reportagem e noticiário criminal da grande imprensa. E sob a categoria “chacina” ou, na linguagem mais neutra e insípida dos relatórios policiais, “mortes múltiplas”, aparece tudo misturado (execuções policiais, grupos de extermínio, justiceiros, brigas de gangues locais), pouco se sabendo sobre o que acontece sob a abstração dos números.

Mas é por isso mesmo que essas micro-histórias interessam. Todas elas são perpassadas pelas relações mais do que ambivalentes com as forças policiais. Cumplicidades e tolerâncias com o extermínio dos indesejados, com certeza. Mas também acertos nem sempre fáceis em troca de proteção, muitas vezes uma cota periódica paga em dinheiro, armas ou qualquer coisa que o policial em ação no momento pudesse achar vantajoso. Leonora conta um desses episódios: num dia de semana, a cunhada, o marido e um parceiro estavam em casa, era hora do almoço. Chegam duas viaturas. Traziam um rapaz que havia sido preso horas antes e que dissera ter escondido as armas na casa de Chico. Os policiais entraram com

terroristas, em especial assaltos a bancos. Seus mais de 700 policiais são organizados em grupos de quatro homens munidos com armas de alto poder de fogo, mobilidade e comu-nicação. Depois do fi m da repressão aos opositores políticos do regime militar, a Rota foi direcionada para combater a criminalidade comum (Caldeira, 2000: 168-169).7 Atualmente deputado estadual, Conte Lopes esclarece, em seu site na Internet, que, em 1994, “escreveu o livro Matar ou Morrer, relatando as principais ocorrências de sua vida como policial em resposta ao livro Rota 66 de Caco Barcelos”. Cf. http://contelopes.com.br/biografi a. Sobre Conte Lopes, Cabo Bruno e outros matadores, policiais e justiceiros, ver Silva (2004).

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a brutalidade de sempre, armas em punho, ameaçando todos, inclusive Leonora: “eu quase morri de medo, achei que iam levar todo mundo preso”. Estavam atrás das armas. Vasculharam tudo, reviraram a casa de cima a baixo, pressionaram o marido e o parceiro, ameaçaram levar Leonora presa. As armas do rapaz não estavam lá. Porém, eles acharam dois revólveres. Chico e o parceiro conheciam o homem que estava no comando da operação. E não era a primeira vez que esse tipo de coisa acontecia. Leonora lembra o comentário do marido depois que os policiais foram embora: “esses caras não vão levar ninguém, esses caras querem mesmo é o dinheiro; eles são mais pilantras do que bandido, são mais bandido do que essa molecada aí”.

Um episódio quase banal, mas corriqueiro e recorrente nesses lugares. Um epi-sódio que pode parecer menor quando posto ao lado da espantosa truculência dos casos relatados por Caco Barcelos (1992). No entanto, há duas ordens de questões que histórias como essas nos sugerem. Primeiro: a violência policial não é apenas mais um fator a ser agregado a todos os outros para compor os índices de mortes violentas nessa década e nas seguintes. Ela envolve relações de poder e jogos de força ativados nos seus procedimentos, nos seus movimentos, nos seus modos de operação, que passam a compor as situações em que os acontecimentos se dão. Michel Misse chama a atenção para esse ponto, as “ligações perigosas” incrustadas nos mercados de proteção e práticas de extorsão, a violência aí embutida e que é ativada, por vezes e muito frequentemente, sob formas devastadoras quando os acertos são desestabilizados ou desfeitos por razões as mais variadas.

Mas vale perscrutar a lógica de verdade embutida nessa frase tão comum no repertório popular e que o justiceiro Chico repetiu nesse microacontecimento pró-prio da rotina das vidas bandidas. “Eles são mais bandidos do que a molecada do bairro”, diz o justiceiro Chico, na sua inequívoca posição de um fora da lei. “Eles são bandidos piores do que bandido assumido”, diz uma certa Dona Celeste, 50 anos, mãe de família, que teve sua casa invadida pela polícia: “nunca bandido nenhum invadiu minha casa e a polícia invadiu, quando dei fé eles estavam aqui no meu quintal, derrubando a porta para entrar”. Eles perguntavam: “cadê o dono da casa ao lado?”. Na casa vizinha havia uma turma que tocava pagode, na região. Lá estava cheio de coisas que seriam usadas à noite: bebidas, tira-gosto, doces. Dona Celeste lembra: “eles invadiram, roubaram tudo, comeram tudo, que-braram tudo o que não puderam levar, arrebentaram com tudo, mesas, cadeiras, as portas”. É como eu digo, diz dona Celeste, “eles são bandidos piores do que bandido assumido e sabe por quê?”. Ela mesma lança a pergunta e responde: “O bandido assumido não esconde quem ele é, o policial, sim, esconde a bandidagem dentro dele, embaixo da farda, naquela carteirinha que eles mostram”. É muita covardia, diz ela: “cismam com um cara, jogam dentro da viatura, espancam, espancam e espancam, matam e dizem que foi troca de tiro”.

Não se está aqui falando nada de novo. São situações já mil vezes denunciadas, divulgadas em reportagens de imprensa e diagnosticadas por pesquisadores e especialistas na área. No entanto, vale se deter neste termo – bandido – que opera

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a associação entre o homem da lei e o homem fora da lei, uma associação que mostra não propriamente que são iguais (o policial não é igual ao bandido), mas uma diferença que se desfaz (e se refaz em um outro sentido) em uma situação – e em um espaço – na qual se esfumaça a diferença entre a lei e a transgressão da lei (cf. Das & Poole, 2004).

É por isso que cobra importância a precisa comparação feita pelos dois per-sonagens aqui postos em cena: a polícia não é igual ao bandido, é pior que o bandido: “usa a farda e aquela carteirinha que eles mostram” para acionar procedimentos extralegais. Ao mesmo tempo, dentro e fora da lei. Nesses modos de operação das forças do Estado, ali nas suas pontas, fi ca suspensa a diferen-ça entre o “homem da lei” e o “homem fora da lei”, o cumprimento da lei e a transgressão da lei. Quer dizer: as diferenças entre a lei e o crime são como que anuladas, desativadas na sua efetividade. “O policial é pior que o bandido”: uma associação que não é abstrata, não é metafórica, tampouco algo que se produz no plano das “representações”: é concreto, é prático, é situacional, é pragmático, é performativo, algo que se produz como acontecimento que afeta corpos, vidas e pessoas, e desencadeia efeitos.

É o outro lado da nossa conhecida criminalização da pobreza que, nesses anos e em todos os que seguiram, ganhou formas especialmente truculentas sob a “lógica em uso” (Paixão, 1988) da ação policial que, antes de qualifi car o criminoso e o crime, qualifi ca a pobreza e o crime nas evidências que suscitam a suspeita e fornecem a ordem das razões para a intervenção violenta e, muito frequentemente, letal. Práticas de incriminação antecipada: sujeição criminal, nos termos de Michel Misse (2006). Isso está fartamente documentado no livro de Caco Barcelos. No entanto, o que talvez mereça atenção mais cuidadosa é a contrapartida dessas formas de operação policial. Pois, se as fronteiras entre o trabalhador e o criminoso são tênues sob o prisma da ação policial, isso opera em relações de poder e força que terminam por borrar as diferenças entre o homem da lei e o fora da lei, isto é: entre a lei e o crime. E é justamente isso que faz com que seja colocada em ação uma “licença irrestrita para matar”, sem que isso seja considerado propriamente um crime. “Assassinatos em nome da lei”, diz o desem-bargador Sergio Vernai,8 da 5ª Câmara Criminal de Justiça no Rio de Janeiro, autor do livro que leva esse título, no qual são analisados dezenas de “autos de resistência”9 entre as décadas de 1970 e 1980. Em sua versão paulista, “resis-tência seguida de morte”, como Alessandra Teixeira esclarece, é uma categoria

8 Cf. a entrevista à Revista Caros Amigos, nº 171, outubro 2009.9 A origem da ferramenta jurídica “auto de resistência” está na ordem de serviço N, nº 803, de 2/10/1969, da superintendência da polícia judiciária do antigo estado da Guanabara. O dispositivo reza que, “em caso de resistência [os policiais] poderão usar dos meios necessários para defender-se e/ou vencê-la” e dispensa a lavratura do auto de prisão em fl agrante ou a instauração de inquérito policial nesses casos (Cf. Marcelo Salles, (“Máquina Mortífera”, Revista Caros Amigos, nº 171, outubro 2009, pp. 28-31).

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estranha ao mundo do direito, que, não obstante, aciona a estrutura judicial que acata seu processamento, convertendo a vítima em réu, “conferindo aos agentes repressores do Estado uma espécie de licença irrestrita para matar”, o que evoca o “estado de exceção permanente” de que fala Agamben (Teixeira, 2009).

É o caso de se perguntar até que ponto e sob quais modalidades essa licença para matar se replica e duplica no outro lado, na ação dos justiceiros. Replica-se, duplica-se e multiplica-se, porém o que se passa nesse outro lado não pode ser visto como decalque da violência do Estado. Pois essa multiplicação se faz sob outras lógicas e sob outros imperativos que não a verticalidade do Estado e seus dispositivos de controle e sujeição. Ancora-se nas horizontalidades das formas de vida e nas microrregulações locais. Devo dizer, logo de partida, que isso é matéria de pesquisa, e que está muito além do que tenho condições de fazer neste momento, pois envolve uma prospecção mais fi na dos mundos sociais (em curso, longe de estar concluída) em que tudo isso ocorre. E exige igualmente um trabalho de refi namento teórico também além do que tenho condições de fazer por ora. Mas arrisco, assim mesmo. Uma hipótese de trabalho que, assim me parece, é importante de ser aqui lançada, por duas razões.

De partida, descarta as explicações correntes de que essa violência que per-passa os mundos populares possa ser creditada a concepções de justiça privada enraizadas no fundo de nossa história, uma condição pré-social, estado de natu-reza, signo do atraso, contraface de uma modernidade incompleta. Persistência da “lei do sertão”, em uma população que, naqueles anos, ainda era, em grande medida, de origem migrante recente, que se expressaria justamente na ação dos justiceiros.10 As descrições que os moradores fazem do Justiceiro Joel poderiam validar essas hipóteses: com seu grande chapéu de couro, o sotaque nordestino carregado, olhar enviesado de quem sabe colocar medo nos outros, homem de poucas palavras e pontaria certeira no uso rápido da arma que sempre levava na cinta, além de algo como, assim corre a lenda, lenda negra, um poder de ubi-quidade de alguém que está em lugar nenhum e em todos os lugares ao mesmo tempo, espalhando o terror entre a pequena criminalidade local.

Porém, ao revés de uma suposta situação de anomia e desordem derivada da pobreza em condições de ausência ou precariedade da presença do Estado, é o caso de perguntar – este é o segundo ponto – por ordenamentos sociais que se fazem não às margens do Estado, porém no próprio modo como se realiza a experiência do Estado, justamente nessas pontas em que essa presença afeta formas de vida. E circunscreve um terreno no qual a experiência com a lei e as forças da ordem se constitui na sua intersecção com outros modos de regulação que surgem das circunstâncias de vida dessas populações, também em seus sentidos de justiça, de ordem, inclusive de necessidade de segurança (cf. Das & Poole, 2004). E é isso que permite re-situar a fi gura dos justiceiros. Não se trata

10 Em outro contexto de discussão, essa questão é debatida por Alba Zaluar (2004), ao tratar da violência associada ao tráfi co de drogas no Rio de Janeiro.

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da persistência de concepções tradicionais de ordem e justiça. Se estas existem, são refundadas e ativadas no seu encontro com as forças da lei.

Colocando-se como paladinos da ordem, em defesa do trabalhador e sua família, os justiceiros investiam contra a criminalidade local e contra todos os que eram percebidos como perturbadores da ordem, provocando desassossego entre os moradores. Alguns fi caram conhecidos, ganharam fama e, como foi o caso do Justiceiro Joel, viraram lenda na região, ainda viva, vinte anos depois do início de suas atividades no Bairro X. Porém, ao que parece, esses bairros foram pontilhados pela ação de pequenos justiceiros locais com efeitos que não foram muito além do perímetro mais estreito de suas áreas de moradia, no máximo, nas regiões contíguas.11

Basta ler com atenção os inúmeros casos relatados por Inês Ferreira (2006) em seu estudo a partir de processos judiciais de crimes dolosos ocorridos na periferia sul da cidade de São Paulo. São processos da primeira metade dos anos 1990 nos quais, podemos supor, as histórias que deram em desfechos de sangue deitam raízes na década anterior. A pesquisadora debruçou-se sobre os depoimentos dos réus, das vítimas sobreviventes, das testemunhas de acusação e defesa registra-dos nos autos. Foi isso que lhe permitiu descortinar algo das lógicas sociais que presidem a ação desses homens que, a partir de um fato detonador, passam a atuar como justiceiros locais. São micro-histórias. Um vigilante noturno de um armazém que reúne um grupo de homens para dar fi m aos garotos que estavam “arrepiando” os moradores (assaltos, furtos, estupros). Um marido ultrajado que “pede ajuda” para vingar o estupro de sua mulher por um seu vizinho. O dono do bar revoltado com os garotos que cobravam pedágio para evitar os assaltos que se repetiam ao longo do tempo. E outras tantas histórias parecidas com a do Justiceiro Joel: a reação, “revolta” para usar o termo corrente no repertório popular, contra uma criminalidade local que perturbava e assustava moradores, famílias, pequenos comerciantes. Pequenos casos e acasos que detonam uma história de sangue e marcam o ponto de arranque da carreira do justiceiro.

Alguns agiam sozinhos, outros em associação com parceiros. Às vezes, eram ações esporádicas, episódicas, de homens que mantinham suas atividades normais entre trabalho e família. Outros, como Joel e seus comparsas, converteram-se à condição justiceira. No verso e reverso desses, há também os policiais que se utilizavam de sua autoridade como representantes da lei, quer dizer, das prer-rogativas que lhes foram conferidas pelo poder público para “limpar a área” e oferecer segurança nos seus locais de moradia. As relações com a polícia, assim parece, eram variadas, indo do misto de cumplicidade e tolerância à encomenda (sob pressão e chantagem, podemos supor) de eliminação dos indesejados, o que podia ganhar a forma de ações sistemáticas ou de circunstância, também sob

11 Sobre justiceiros e, depois, matadores, o livro do jornalista Bruno Paes Manso (2005), bem como várias de suas reportagens no jornal Estado de São Paulo, oferece um material importante para a discussão.

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pressão e chantagem. Mas existiam ainda os casos de “convênio com a polícia”, como declara um depoente de um dos processos analisados por Inês Ferreira (2006), policiais que acionavam os justiceiros para eliminar pessoas que haviam sido presas e encaminhadas ao Distrito Policial da área.

Espécie de xerife local, transitando entre a ordem do trabalho e seu avesso, o justiceiro contava com a cumplicidade, quando não o apoio, dos moradores, em um misto de temor, respeito e reconhecimento pelos “serviços prestados”. Além da proteção contra os pequenos bandidos de bairro, também havia a ajuda a uns e outros mais necessitados, arbitragem de litígios entre vizinhos e brigas de família. Inês Ferreira conta o interessantíssimo caso de um justiceiro que arbitrou a separação de um casal e decidiu a partilha dos poucos bens. Há também os relatos de justiceiros que garantem a ligação clandestina de luz ou, então, como em outro caso narrado por Inês Ferreira, que fi zeram a intermediação entre os moradores e a Sabesp ou a Eletropaulo para conseguir a ligação da rede, resolver situações pendentes, negociar dívidas acumuladas. Circunstâncias como essas são, na verdade, frequentes e recorrentes nas periferias da cidade. Deparamos com várias delas ao longo de nosso trabalho de campo, situações que põem em cena fi guras ambivalentes que transitam o tempo todo entre o legal e o extralegal. Depois dos anos 1980, no lugar dos justiceiros, bandidos que “tomavam conta” da área (falaremos disso mais à frente) ou, então, como vimos no capítulo três, as fi guras incertas que transitam entre o trabalho e a família “como todo mundo”, mas que também se envolvem com assuntos “duvidosos”. Mais recentemente, os pequenos trafi cantes de bairro. Trabalhamos isso, Daniel Hirata e eu (2007), em um artigo recente, e a questão será retomada mais à frente. Cada qual, em seus contextos de referência, arbitra, faz a mediação, negocia, agencia as condições da ordem local: arbitragem de desavenças em torno da ocupação de terras, liga-ções clandestinas de luz, mediação com os representantes da ordem em torno de assuntos locais. A presença do Estado se desdobra nesses lugares, seguindo os vetores a partir dos quais os vários ilegalismos urbanos vão se constelando e se multiplicando nessas regiões. Assim como acontece com as gambiarras: onipre-sentes em toda a extensão das periferias urbanas, são puxadas a partir da rede ofi cial instalada nas ruas principais e esses personagens, muito frequentemente, são os seus operadores, agenciam, arbitram, negociam o serviço. Constroem seu poder e prestígio local justamente pela habilidade com que transitam nessas dobras do legal-ilegal. Mais concretamente: pela habilidade com que transitam entre o legal e ilegal, acionando os dispositivos, poderes e artefatos de um lado, que se desdobram, de outro, nos agenciamentos locais por onde os jogos de poder se refazem sob outras modalidades. Essas situações foram comentadas no capítulo quatro. Uma antropologia das gambiarras, para fi car em um só exemplo, pode fornecer um bom roteiro desses percursos sinuosos (cf. Telles & Hirata, 2007).

No caso dos justiceiros, no entanto, esses agenciamentos locais, quando exis-tiam, eram periféricos ou subordinados aos poderes soberanos de que se investiam em sua missão de defesa da ordem em nome do trabalho e da família.

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Do ponto de vista dos moradores, os atos cometidos pelos justiceiros não eram considerados crime, a rigor nem mesmo como violência. Diferente dos “matado-res”, o justiceiro é aquele que não apenas garante a ordem, mas restaura a ordem perturbada pela criminalidade local ou, então, por atos que afetam os sentidos de honra e decência na vida familiar (Ferreira, 2006). Assim também acontecia com o muito violento justiceiro Joel. Ele transitava pelas moradias locais. Era frequentador assíduo da casa de uma aguerrida liderança comunitária que, na época, estava envolvida nos movimentos de moradia que agitavam toda a região: ela participava das comunidades eclesiais de base, estivera à frente de algumas das grandes ocupações organizadas de terra, participava de manifestações e era presença constante na Paróquia que, naqueles anos, acolhia militantes de esquerda e lideranças dos movimentos sociais que fi zeram a fama (a boa fama) da região sul da cidade. Ao mesmo tempo em que a região era agitada pelas grandes mobiliza-ções sociais, os justiceiros faziam seus percursos nos meandros dessas mesmas regiões: um contraponto à épica dos movimentos sociais cantada em prosa e verso por uma prestigiosa literatura que também marcou os anos 1980. Um contraponto não para lançar dúvida sobre os movimentos sociais ou desfazer dessa épica que, também ela, faz ou fazia parte do repertório popular, inclusive da memória dos moradores que se envolveram nessas movimentações. Mas é um contraponto que nos serve de guia para ampliar, digamos assim, a cartografi a do social, seguindo as transversalidades que perpassam os percursos desses personagens urbanos, bandidos e não bandidos, multiplicidades internas a uma vida social que não cabe em categorias fi xas, que transpassam os campos objetivados pelos estudos urbanos – os “movimentos sociais”, “trabalho”, “crime”, que seguem os pontos de conexão de redes que também elas se desdobram em direções várias.

Perguntamos à Leonora: como era a vida de Joel, como ele vivia? Era assim mesmo, diz ela, com o apoio do pessoal do bairro. Almoçava na casa de um, jantava na casa de outro. Não trabalhava, diz Leonora, porém não se envolvia com coisas do crime. Recebia alguma ajuda dos comerciantes, mas não matava por encomenda. É o que ela diz. Podemos supor que as coisas não se passavam bem assim. Mas há uma razão e uma lógica de verdade nisso que Leonora diz e outros confi rmam: é um modo de tipifi cação popular, que faz a diferença entre o justiceiro e o matador, o pistoleiro que mata por encomenda ou, então, que age em nome de seus próprios interesses e não, como os justiceiros, em defesa do trabalhador e sua família. Para ela, é importante insistir nessa diferença, por mais que as diferenças entre um e outro sejam bastante tênues. Joel não era matador, diz Leonora. O marido Chico também não era matador, nunca foi, ela enfatiza. Quando chegavam a um bar, recebiam comida, bebida, não precisavam pagar nada e, quando pediam, ainda recebiam algum dinheiro; se precisassem, o pessoal do bar dava. “Era igual à polícia”, que fazia a mesma coisa, ela comenta quase por acaso, numa frase que é, para nós, importante reter. Como também é importante reter a marcação da diferença entre o justiceiro e o matador. Volta-remos a isso mais à frente.

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As façanhas letais do justiceiro Joel fazem parte da história do bairro. Assim dizem os moradores: qualquer coisa podia ser motivo para fi car na mira: molecada que fazia algazarra na rua, um garoto que voltasse tarde da noite para casa ou que se vestisse de um modo mais extravagante. Quando era algum bandido que estava na mira, não importava quem estivesse no lugar. Podia ser um indivíduo isolado ou vários ao mesmo tempo. Podia acontecer em um bar, em uma casa, em qualquer lugar: chegavam em dois ou três, armados, assustavam e ameaçavam todos os que estivessem no lugar e, depois, eliminavam um a um, no próprio local ou na rua da frente. A lista dos que foram mortos por Joel chega a uma centena, ou mais. Ele pode ser colocado ao lado dos justiceiros mais violentos da cidade de São Paulo, que ganharam fama e o noticiário policial pelas dezenas, em alguns casos centenas, de mortes a eles atribuídas (cf. Manso, 2000, 2005).

Manoel tinha 15 anos naquela época, trabalhava em um lava-rápido e, à noite, ainda fazia “bico” como entregador de pizza.12 Ele lembra:

[...] quem roubava, eles matavam e não tinha hora para matar, podia ser 8 horas da manha, 3 horas da tarde, à noite – e nós convivendo com isso no dia a dia.

[...] vixi, inacreditável as coisas que a gente via... tinha manhã da gente acordar e ter de passar por um, por dois, por três defuntos para ir comprar pão, um corpo aqui, outro corpo ali, outro lá pro outro lado... o negócio era feio demais.

Na mira estavam, sobretudo, os que vinham de fora. Quando era gente do bairro, Joel abria a chance para algum acerto de momento. Manoel viveu um desses episódios: estava na rua com um amigo, quando chegam quatro garotos do bairro, armados, ameaçando barbarizar, roubar e matar. Mas, como diz Manoel, “dizem que Deus, às vezes, põe as coisas no lugar e na hora certa”. O justiceiro Joel estava por perto. Diz Manoel: ele nem precisou puxar a arma, apenas disse “abaixa as armas, vocês não estão vendo que são dois moleques trabalhadores?”. Voltando-se para Manoel, perguntou: “o que você quer que eu faça com eles?”. Resposta: “eu não posso falar nada, se você achar que deve, quem sou eu para dizer que não?”. O justiceiro Joel chamou o pai – “ele tinha afi nidade com o meu velho”. Perguntou ao pai: “o que eu faço com eles, mato todos ou o quê?”. Resposta: “não, deixa viver, só que diz para eles nem olhar feio para o lado do meu fi lho, senão quem vai entrar no meio sou eu, pego um por um”. “Deixa viver”, diz o pai do rapaz. Aprendemos com Foucault que “deixar viver” é o complemento do “poder matar”, próprio do poder soberano: “poder matar e deixar viver”. Porém, à diferença das forças policiais que exercitam, nessas situações e nesses espaços, poderes soberanos como exercício do arbítrio e poder bruto que ameaçam a todos na indistinção das diferenças entre o homem de bem e o homem do crime, a soberania do Justiceiro é exercida em um jogo mais do que ambivalente de ne-

12 Entrevista concedida a Daniel Hirata, em 2004.

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gociação e arbitragem dos limiares da vida e da morte. É nesse aspecto também que ele se põe como contraponto e diferença em relação à polícia.

Vale se deter nesse contraponto e nessa diferença. De um lado, podem ser vistos como inversão e reversão dos sentidos de lei e de ordem. Polícia, representante do Estado, agente da ordem: nos seus modos de operação, abre-se e explicita-se a ambivalência entre proteção e ameaça. Também entre a ordem e o seu inverso: a previsibilidade (suposta ou imaginada ou idealizada) da ação racional própria da burocracia estatal e a mais radical imprevisibilidade e imponderabilidade do que pode acontecer com a presença policial. Isso se põe muito concretamente no temor e na insegurança face às batidas policiais por parte dos indivíduos que habitam esses lugares. Nos seus modos de operação, essa ambivalência também se desfaz: a proteção se transfi gura em ameaça, a ordem em seu inverso.

Porém, o contraponto e a diferença com a polícia é algo que aparece sob o prisma dos moradores e dos agenciamentos práticos de uma gestão da ordem e de suas microrregulações, e que tem na fi gura dos justiceiros um de seus operadores. Um operador, no entanto, que termina por introduzir, no interior mesmo desses ordenamentos, uma violência que escapa ou transpassa e vaza dessas micror-regulações. Essas microrregulações não são sufi cientes para conter a lógica da vingança que desencadeia ciclos devastadores de revides e mortes sucessivas.

Mas isso só é possível saber quando se muda o registro e se altera o ângulo de visão pelo qual descrever o diagrama das relações entre polícia, justiceiros, matadores e moradores. Rodney, 32 anos, “bandido formado”, como se diz, oito anos de pena cumprida no Carandiru, patrão de um ponto de droga no momento em que o entrevistamos (2005), meteu-se em histórias de crime quando era um garoto de 10 anos (assaltos, arrombamento de casas, roubo de motos). Morava no Bairro X com a família, porém nem ousava fi car muito tempo naquele pedaço, pois o Justiceiro Joel era mesmo motivo de terror para ele e todos os seus parceiros-mirins. Cresceu ouvindo as histórias dos justiceiros da região. Ele deve saber o que diz quando afi rma que essas mortes não fi cavam sem resposta. Podia passar anos, diz ele, mas o parente ou o parceiro vinha atrás. Às vezes, o próprio fi lho, ainda criança quando as coisas aconteceram, “cresce com isso na mente” � “eu vou te falar, eles nunca são esquecidos, entendeu? O fi lho do cara que ele matou está grande, está nessa vida, vai lá e mata ele, com certeza”. Ele conta de um rapaz cujo pai foi morto por Joel: mantém entre seus pertences pessoais uma foto do justiceiro, que ele mostra para quem quiser ver e diz para quem quiser ouvir que está à espera do momento de dar o revide, assim que Joel sair da prisão.

Rodney fala dessa e outras histórias parecidas, de gente que morreu por conta de revides e pactos de vingança. Ele e seu parceiro, que estava presente no momento da entrevista, também patrão do mesmo ponto de droga. A partir de certo momento, não é possível saber ao certo de quem ambos estão falando, de justiceiros ou de matadores. Do lugar a partir do qual falam, são todos igualmente matadores: “matam por maldade”, qualquer coisa pode ser motivo de morte: “eles eram covardes, os caras matavam o outro na rua, parado assim, conversando, ele

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chegava e se ele cismava ...”. O justiceiro-matador é como a polícia, diz Rodney: se alguém mexe com ele, a resposta é essa, vem à bala.

Quanto aos justiceiros, o parceiro Toninho comenta: “aqui no bairro, tem uns velhinhos que ainda lembram deles, que gostavam deles [...] mas eles não sabem de nada, nós sabemos”. E Rodney completa:

Nós que estamos nessa vida do crime, nós sabemos o que está certo e o que está errado. Dentro da lei do crime, porque existe uma lei no crime, o cara pode ser ladrão, pode ser trafi cante, pode ser um 155 [furto], mas tem que ter fi rmeza, tem que ser respeitado e dar respeito, tem que andar pelo certo [...].

[...] se o moleque pisou no meu pé, eu vou lá matar? Não é assim não, tem que ir lá na quebrada, de mente aberta, vamos trocar uma ideia para não aconte-cer o pior, se você mata ele e não era para o cara morrer, aí você também vai morrer, é a guerra.

Rodney e Toninho falam de um outro lugar – eles são “do crime”. É por isso também que eles falam do justiceiro sem interditos e podem dizer, sem hesitar, que a polícia passava, sim, a encomenda de mortes – “os polícias corriam com ele [o Joel], dava aquele bilhetinho – ‘mata fulano’ e daí o cara já era”. Quanto aos comerciantes, eram os justiceiros que os obrigavam a pagar pela “proteção”, os comerciantes tinham medo e pagavam – “se ele tivesse uma padaria, pagava, bancava ele, se não pagasse, ele [o justiceiro] chegava, tirava tudo, matava o dono”.

Eles falam de um outro lugar e de outro tempo, os anos 2000. São trafi can-tes. Cada qual com uma trajetória diferente na “vida do crime”. Um, a pequena criminalidade local. Outro, histórias de vingança familiar, sobrevivente de uma guerra entre gangues rivais, com muitas mortes. Ambos, muitos anos de cadeia. Os dois carregam um currículo com muitas mortes. Não são exatamente sujeitos angelicais. Mas por isso mesmo é interessante perceber o modo como os dois falam e marcam a sua diferença, a diferença dos trafi cantes em relação aos matadores, o que inclui os justiceiros.

Voltaremos a isso mais à frente. Por ora, importa reter a lógica que comanda essa marcação da diferença em relação aos matadores, a lógica da vingança e a certeza da morte que ela carrega, e é isso que comanda, podemos dizer, os sentidos do “certo” e do “errado” que estruturam o modo como ambos falam de justiceiros e matadores. “Andar pelo certo”, “estar no erro”. É importante reter essa questão, pois ela será decisiva para compreender algumas das lógicas em ação no correr dos anos 2000. Porém, antes, será preciso seguir os rastros dos matadores.

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No início dos anos 1990, os justiceiros praticamente desaparecem. Muitos foram mortos, outros foram presos. Ou, então, se transfi guraram no matador. Essa é uma expressão corrente no universo popular e designa um tipo social que mata não mais em defesa da ordem associada ao mundo do trabalho e da família, mas por conta de acertos pessoais associados aos negócios do crime, às vezes mortes encomendadas nas disputas entre quadrilhas rivais, também histórias de vingança, desafetos e “defesa da honra”, misturadas com disputas de território, desencadeando ciclos de uma violência devastadora, os “mata-mata” , como é dito na linguagem popular.

A versão que Leonora constrói para a prisão de seu marido Chico é, nesse sentido, bastante reveladora, tanto do que sugere sobre as tênues fronteiras que separam o justiceiro do matador, quanto pela importância da marcação dessa dife-rença que compõe o repertório popular. O marido-justiceiro, diz ela, foi preso por “trairagem” de um outro, um tipo que atuava como justiceiro, mas que desandou a matar “quem não devia”. Chico “não mexia com trabalhador, esse outro, sim, foi ele que sujou o lugar aqui, andou fazendo coisas que os outros não faziam”. Matou um segurança de uma loja “só para pegar a arma, mas o rapaz era trabalhador”. Foi assim que as coisas começaram, diz ela. Juntou-se com um irmão e acharam que podiam fazer qualquer coisa. Depois que o Justiceiro Joel foi preso (início dos anos 1990), esses dois quiseram fi car donos do “pedaço”. Achavam que os comerciantes tinham que pagar para eles, ameaçavam quem não quisesse pagar, “mexiam com gente que não tinha nada a ver”, exigiam pagamento.

Nessa espécie de tipifi cação popular, o justiceiro se põe contra o crime, não sendo ele mesmo visto como criminoso. O matador parece, ao contrário, sinalizar o outro lado da fronteira. Porém, no jogo das relações e das microssituações, essas diferenças são tênues, a ambivalência impera, os personagens transitam entre uma situação e outra. O justiceiro pode ganhar fama e prestígio nos lugares em que atua, chama a atenção e passa a ser procurado por uns e outros para resol-ver, à bala, desafetos pessoais ou desacertos nos assuntos do crime (cf. Manso, 2005). Aquele que é visto como matador é também alguém que lida com o jogo das reciprocidades populares, garante a “ordem” aqui (contra os furtos, roubos, estupros), promove a “desordem” acolá (cf. Ferreira, 2006). Inês Ferreira comenta a situação em uma favela na zona sul da cidade, na qual um grupo envolvido com tráfi co de drogas, roubo de carga e assalto a bancos tratava de garantir a ordem local, ameaçando com expulsão ou morte os que ousassem praticar alguma forma de delito no local, furtos, roubos, estupros, qualquer sorte de violência ou intimidação aos moradores. Há miríades de histórias como essas, e várias delas também compõem os nossos diários de campo.

São microrregulações. Mas é nesse ponto que a diferença entre justiceiros e matadores também interessa. Os primeiros agem sob a lógica da polaridade entre o mundo da ordem e o mundo do crime, por mais que eles próprios façam por esfumaçar essa diferença. O trabalho (e seus indexadores: a família organizada, o chefe provedor, o bom pai, o bom marido, o bom fi lho) é o operador que faz a

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diferença entre a ordem e seu inverso. Heloisa Fernandes (1992), em seu estudo sobre a trajetória de três justiceiros, quadros subalternos da Polícia Militar, de origem proletária e famílias de migração recente, presos à época em que as en-trevistas foram feitas (1986), mostra que, para eles, o trabalho e a condição de chefe provedor é o operador que introduz a cisão do espaço social entre trabalha-dores e marginais.13 Uma cisão “produtora de uma cena onde os trabalhadores aparecem como ‘zé-povinho’: são os ‘marmiteiros’, os ‘injustiçados’, os ‘coitados’, os que ‘não têm ninguém por eles’, necessitados da defesa autoritária e violenta dos seus ‘justiceiros’” (1986: 50).

No caso dos bandidos, esses que já estão do outro lado, as marcações das fronteiras entre os mundos do crime e os mundos trabalho se fazem sob outros jogos de relações, outros códigos e outros critérios que defi nem as diferenças, mas também convivências possíveis em um espaço social comum, onde trabalha-dores e bandidos transitam e constroem os critérios e procedimentos que regem as relações de proximidade e distanciamento. Nesse ponto, são de especial im-portância as observações de Alba Zaluar (1985) sobre os modos de convivência de trabalhadores e bandidos na Cidade de Deus (Rio de Janeiro), na primeira metade dos anos 1980, quando a antropóloga fez sua pesquisa. Do ponto de vista dos moradores, a construção social da imagem do bandido é permeada por ambivalências. De um lado, a diferença entre a “vida dura do trabalhador” e “a vida curta do bandido”: o mundo bandido é o negativo do mundo do trabalho, é habitado por aqueles que optaram pelo “ganho fácil”, o bandido é aquele que está cativo do “condomínio do diabo” (a lógica inevitável da dívida, da vingança, da morte), está marcado, “tem crime nas costas”, infringiu as leis do país, o nome está na lista da polícia e pode ser preso. Mas o bandido também partilha de uma condição comum de pobreza, privação, humilhação: o revólver na cinta é sinal da “revolta”, termo que circula amplamente no universo popular. As categorias crime e criminoso, diz Zaluar, não são empregadas quando os trabalhadores se referem a esse mundo e às pessoas que o ocupam. A ação de roubar ou de matar “não é julgada abstratamente como ruim, negativa, criminosa”. O bandido “é julgado moralmente segundo as regras locais de reciprocidade e justiça”. E não

13 “Signifi cante vazio, o trabalho vai adquirindo inúmeros signifi cados que vão dando sentido à vida, ao mesmo tempo em que a idealização maciça modela imaginariamente um mundo absolutamente cindido: do lado dos que se sacrifi cam e trabalham, alinham-se não só os trabalhadores, mas os bons pais, bons maridos, bons fi lhos, bons parentes, bons vizinhos e, especialmente, as boas mulheres. Daí o confronto com aqueles que estariam do outro lado, com os que, presumivelmente, não trabalham porque não querem pois são os que ‘não querem saber quem inventou o trabalho’, justifi cando a canalização de uma agressividade maciça a um outro digno de uma suspeita que já não se restringe ao papel de trabalhador, pois deslocam-se em cadeia ao de pai, de marido, de fi lho, de vizinho, de mulher de família, como também, ao de cristão e cidadão. Herdeiro do discurso familiar, é o fi lho preso que sentencia: ‘quando vinha um novato trabalhar comigo, eu ensinava mesmo, ensinava a dis-tinguir o cidadão do marginal, que é o que a PM não ensina” (Fernandes, 1992: 48-49)

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é a ação em si de roubar ou matar que é julgada moralmente má, e sim quem e como ela se exerceu: “se o bandido se meteu ou não com trabalhador no local, ou não envolveu ‘quem não tem nada com essa guerra’, isto é, quem não está nessa trama de vinganças pessoais ou dívidas ressarcidas com trocas de tiros, seus atos não serão julgados como maus, perversos ou covardes” (1985: 163-164). Enfi m, se ele tem “proceder” ou não, para evocar os termos hoje correntes no “mundo bandido” e fora dele e que, podemos supor, não tão recentes como muitas vezes se supõe.

No material de pesquisa colhido por Inês Ferreira, as situações são pareci-das. Trabalhadores e bandidos partilham do mesmo universo social, podem ser parentes, vizinhos, parceiros em jogo de futebol, cresceram juntos, frequentam o mesmo bar. Entre eles, diz Ferreira, vigora um pacto implícito de convivência, um jogo refl etido de distanciamento quando isso envolve os negócios do crime. Os trabalhadores “não querem saber” o que bandidos fazem e como o fazem, e estes procuram não se envolver e, sim, preservar os moradores quando estão às voltas com rixas violentas e desacertos com grupos rivais.

Importante reter esses achados etnográfi cos: as linhas transversais que per-passam os “mundos da ordem” e “os mundos bandidos” é algo que acompanha a história urbana, não são de hoje, nem de ontem, tampouco uma peculiaridade brasileira – fazem parte da história das grandes cidades, aqui e alhures. A rigor, “mundos da ordem”, “mundos bandidos” são termos enganosos, podem sugerir ordens normativas diferentes e separadas, com intersecções eventuais e episódicas. Acontece que não são “mundos” diferentes. Mas um mesmo mundo social, um mesmo ordenamento crivado internamente pelas suas diferenças, atravessado pela multiplicidade de situações que não são fi xas, que se deslocam e se reconfi guram conforme tempos e espaços.14 Ordenamentos que se deslocam e se reconfi guram também conforme as modulações da “gestão diferencial dos ilegalismos”, para evocar aqui as questões discutidas no capítulo anterior. No registro das questões que aqui estão sendo trabalhadas, a clivagem entre ilegalismos e crime.

É isso também que permite re-situar a relação entre “trabalhadores e ban-didos”. A diferença é marcada e demarcada pelo “estigma” do crime, como diz Alba Zaluar, da infração da lei, do nome marcado de alguém procurado pela

14 A história social é fonte valiosa de consulta para discutir essas questões. Ao comentar os trabalhos de Boris Fausto, Sergio Adorno (2008) faz uma ótima resenha dessas discussões e sua importância para o entendimento das relações entre cidade e crime. A pensar: os historiadores, com sua inesgotável atenção aos detalhes, conseguem justamente encontrar conexões, transversalidades, movimentos que, muitas vezes, escapam aos sociólogos regidos por outras obsessões, como a do enquadramento conceitual, que produz uma noção de ordem e normatividade que só pode mesmo existir pelas vias da “purifi cação”, como diria Bruno Latour (1994), abstração ou corte desse amálgama de acasos, casos, ações, lutas, coisas e circunstâncias ativados nas disputas, embates, jogos de força, tal como nos ensina a verve nietzschiana de Foucault, e que, em algum momento, se sedimenta como estratos, estratifi cações, norma e ordem.

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polícia, que pode ser preso. Ou morto. Se há uma outra relação com a população, há também uma outra relação com a polícia, diferente dessa muito peculiar cum-plicidade (travejada de acertos letais) entre as forças da ordem e os justiceiros: um jogo pesadíssimo de chantagem, extorsão e extermínio, que transborda para todo bairro em que essas histórias acontecem.

Entre o “condomínio do diabo” e a “caça aos bandidos”, desencadeia-se uma lógica de violência que transborda amplamente – ou pode transbordar – os agenciamentos locais e as microrregulações nas relações entre trabalhadores e bandidos. Ainda mais quando os assuntos do crime começam a envolver o rendoso negócio das drogas, as disputas de territórios e um pesado pacto das dívidas e cobranças que ultrapassam largamente o perímetro local. É o cenário das balas perdidas, das mortes por engano, do toque de recolher nas áreas em disputa, dos acertos de contas envolvendo assuntos e litígios que estão além desse jogo miúdo das reciprocidades locais. Alba Zaluar (2004) descreveu essas situações no caso do Rio de Janeiro. Do ponto de vista das questões que aqui estão em foco, vale dizer que essas situações fazem com que a experiência da e com a violência mude de patamar. Mas aqui já entramos em um outro momento.

Segundo momento, anos 1990: a erosão do mundo do trabalho e os “matadores”

Cenário urbano: a chamada reconversão produtiva já é evidente na paisagem urbana com o fechamento das grandes plantas industriais que pontilhavam a zona sul cidade (e outras). Efeitos sociais: desemprego de longa duração, trabalho precário, pauperização. Pelo lado urbano: amplos deslocamentos intraurbanos em direção às pontas das periferias urbanas, tendo como resultado uma verdadeira explosão demográfi ca nessas regiões da cidade, na forma de ocupações de terra e o crescimento espantoso do favelamento, uma novidade na história urbana paulista. Também: o recuo dos amplos movimentos sociais da década anterior e das antes combativas Comunidades Eclesiais de Base, sem que por isso se tenha arrefecido a confl ituosidade urbana (confl itos de terra em regiões de ocupação, desapropriação violenta de populações faveladas em regiões de valorização imo-biliária, etc.). Ainda: o “malufi smo” encarnado em duas gestões municipais (oito anos), com efeitos deletérios nas periferias urbanas: mistura de truculência na relação com os movimentos e organizações sociais, clientelismo, tutelagem, rela-ções mafi osas com lideranças locais, além de corrupção sob modulações diversas, acionando diversas ilegalidades e irregularidades nos agenciamentos urbanos locais. O episódio narrado por uma líder comunitária em um bairro contíguo ao Bairro X oferece um retrato contundente da época. Na gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (PT, 1988-1992) foi criado um Centro Comunitário na região. Com a vitória de Maluf, isso foi destruído. No dia seguinte à vitória,

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“eles” chegaram durante uma festa que acontecia no Centro: “vieram em bando, ameaçaram de morte”, com indivíduos apontando armas de fogo para o pessoal que estava lá, a começar da própria entrevistada. Do Centro, só sobrou a carcaça – “eles levaram as portas, janelas, piso, telhas, tudo...”.

Os anos 1990 foram também inaugurados com a “polícia mais dura”, colo-cada na rua pelo governador Orestes Quércia (1988-1991) e fortalecida pelo seu sucessor e ex-secretário de Segurança Publica, Luiz Antonio Fleury (1991-1995). Foi “aberta a temporada de caça aos bandidos”, como disse o novo comandante da Polícia Militar no dia de sua posse, em 1989. Teresa Caldeira (2000: 173 e 180) nota: “na semana que se seguiu a essa declaração, a PM matou quatro pessoas que não tinham antecedentes criminais”. Em 1991, já sob o governo Fleury, a Rota, que havia sido desmobilizada pelo governo Montoro, recebeu novos equipamentos, novos veículos. Teresa Caldeira também nota: “após a cerimônia para incorporar novos veículos e antigos integrantes à corporação no começo de dezembro de 1991, a Rota matou 20 pessoas em uma semana”. Em 1992, o massacre do Carandiru, Casa de Detenção, então a maior prisão de São Paulo, 111 homens executados pela polícia militar.15 Em 1994, o comandante da PM durante o massacre, coronel Ubiratan Guimarães, lançou-se como deputado es-tadual. Junto com outros, compunha a “bancada da segurança”. Ele e Afanásio Jazadi, de partidos diferentes, cuidaram, ambos, de ser identifi cados pelo número 111, o número de mortos no Carandiru. Teresa Caldeira (2000:180) comenta: com isso, “deixaram claro não apenas o tipo de polícia que apoiam, mas quanto espaço existe para endossar pública e diretamente a prática da violência”.

Nesses anos, a violência policial atingiu patamares altíssimos. Reafi rmam-se e acirram-se as questões dos anos 1980. A diferença em relação à década anterior está em um contexto urbano atravessado pela precarização e desestabilização das referências e coordenadas do mundo do trabalho. Situações próximas às descri-tas em A Miséria do Mundo (Bourdieu, 1997): carreiras desfeitas, perspectivas bloqueadas, incerteza quanto ao futuro, ainda mais quando este se refere aos fi lhos. Um metalúrgico desempregado, 38 anos de idade, 15 anos passados em uma das grandes indústrias da região, entrevistado em 1998, assim dizia: “a gente espera o melhor (para os fi lhos), mas, do jeito como vão as coisas, eu não sei, é jogar com a sorte...”. Nos vários depoimentos colhidos na época em que este trabalho de campo foi realizado, impressionava algo como uma proximidade discursiva entre a incerteza do desemprego, a imprevisibilidade da bala perdida (“a gente sai e não sabe se vai voltar vivo”) e imponderabilidade do futuro dos fi lhos (“é jogar com a sorte”).

Para os mais jovens, a questão já se colocava sob outros prismas. Vimos isso no capítulo três. Não é o caso de refazer aqui essa discussão, mas de chamar a atenção para dois pontos. De um lado, reafi rma-se aqui, porém sob outras

15 Teresa Caldeira faz uma cuidadosa reconstituição dos fatos, bem como da cobertura da imprensa, nos dez dias seguintes ao massacre.

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confi gurações, uma questão que Alba Zaluar trabalhou com acuidade no início dos anos 1980: o ponto crítico da passagem para a vida adulta, a recusa de reproduzir o fracasso associado à vida dos pais, as incertezas quanto ao futuro e a percepção das poucas ou nulas recompensas da “vida dura do trabalho”. Nos anos 1990, a prevalência do trabalho precário sem remissão possível, vidas declinadas no presente imediato (cf. Sennet, 2000), de tal maneira que a opção pelo “ganho fácil” se colocava muito concretamente no horizonte desses jovens que se lançaram na vida adulta, nessa década. Aqui, um segundo ponto: esses também foram os anos em que o “bazar metropolitano”, para lembrar a discussão do capítulo anterior, já tomava o centro das dinâmicas urbanas da cidade. E é o caso de se perguntar também pelas relações entre o trabalho precário e a “lógica do ganho” que rege a viração nos mercados informais e que opera, poderíamos dizer, como senha para esse trânsito constante entre legal e ilegal, lícito e ilícito, as mobilidades laterais de que se falou no capítulo anterior.

Isso é matéria de pesquisa. Na verdade, ainda se sabe pouco sobre as cir-cunstâncias que desencadearam um ciclo espantoso de mortes violentas. Diria mesmo que temos aqui uma caixa preta que ainda precisa ser aberta e investigada. Mesmo supondo que, nesses anos, a erosão do mundo do trabalho desdobrou-se nas mobilidades laterais da economia de bazar, que a lógica do ganho própria dos mercados informais opera como senha nesse trânsito entre o informal, o ilegal e o ilícito, isso está longe de oferecer uma explicação para as mortes violentas.

Estive em campo nessa mesma região, em 1995 e em 1998. Em três anos, uma mudança notável no modo como homens e mulheres falavam da violência. Em 1995, víamos confi rmado o que os bons trabalhos de antropologia fl agravam nessas regiões: a violência sempre estava “do lado de lá”, na outra rua, outro bairro, outro pedaço da cidade. Eram discursos lacunares, que projetavam a violência para um outro lado, para “a favela ali do outro lado” ou, então, para um lugar qualquer (“a violência existe em todos os lugares”). Era preciso um cuidadoso esforço de indagação para saber algo da vivência com a violência cotidiana. Em 1998, a violência estruturava a narrativa que as pessoas faziam de suas vidas e circunstâncias de vida, a referência surgia direta, sem que se perguntasse; o registro de seus cotidianos estava inteiramente marcado pela violência de todos os dias: gente morta por bala perdida, gente que morreu não, se sabe por que, no bar ao lado, a contabilidade dos “defuntos” na esquina da casa logo cedo, quando eles saíam para o trabalho. Além do temor de ver seus fi lhos optarem pelo “ganho fácil”, o que introduzia uma sombra em projetos de vida organizados em torno da família organizada (o modelo do chefe provedor, de que fala Alba Zaluar) e das expectativas de progresso projetadas no futuro, agora incerto e imponderável, dos fi lhos (agora, “é jogar com a sorte”).

O fato é que essa década foi acompanhada pelo aumento espantoso das mortes violentas. Entre 1996 e 1999, a taxa de homicídios em São Paulo passou de 48,4 por 100.000 habitantes para 57,2. Um aumento de 18% em apenas três anos. Em algumas regiões da periferia paulista, esses indicadores eram ainda mais altos,

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assustadores: em 1999, no Jardim Ângela, eram 93,6 homicídios por 100.000 habitantes. M’Boi Mirim: 91,5. Jardim São Luiz: 89,3. Brasilândia: 88,1. Cidade Tiradentes: 84,6. Grajaú: 87,2. Guaianazes: 78,7. Capão Redondo: 67,2.16 Em termos absolutos, algumas centenas de mortes violentas por ano em cada distrito. Alguns milhares, no conjunto da cidade de São Paulo. Em sua maioria, jovens adultos, de 16 e 24 anos.

Esses índices são impressionantes, porém pouco dizem das dinâmicas que presidiram o aumento das mortes violentas. Não se tem aqui a menor pretensão de dar conta disso, muito menos de oferecer explicações. Mas não hesitaria em dizer que, nesse terreno, boas etnografi as haveriam de nos ajudar a entender um pouco mais do que se passou nesses anos. No que segue, apenas algumas pistas.

Antes de mais nada, seria possível dizer que essa violência registrada em seus vários indicadores (taxas, gráfi cos e evoluções, classifi cações, tipologias e categorias) se decompõe em situações variadas, diferentes constelações de forças (e relações de força) que carregam, cada qual, dimensões diversas que se comunicam, que entram em ressonância umas com as outras e nas quais pulsam as circunstâncias de nossa história recente.

Há histórias de litígios e confl itos cotidianos que terminam em soluções de sangue. Desenlaces fatais do que é tipifi cado juridicamente como “motivos fú-teis”, mas que, na verdade, colocam em cena pequenos-grandes dramas da vida cotidiana, envolvendo parentes, vizinhos, conhecidos, moradores do entorno ime-diato. Redes intrincadas de relações em que se misturam afetos, proximidades, cumplicidades, acertos entre uns e outros em situações nas quais os acasos e as urgências da vida parecem desestabilizar as regras das reciprocidades esperadas na vida social (cf. Ferreira, 2006).

Acertos de conta e disputa de territórios por pequenos trafi cantes locais: esses foram os anos em que a droga (cocaína) entra massivamente nas periferias da cidade. Porém, diferente do que acontecia no Rio de Janeiro nessa mesma época, a multiplicação de pontos de venda se fez de forma gradual, difusa, sem o comando de grupos organizados que estruturassem o mercado varejista. Os atacadistas vendiam a pequenos trafi cantes de bairro e as “biqueiras” eram montadas aqui e ali, conforme as vontades, oportunidades e as possibilidades de garantir o controle de uma “quebrada” ou outra. O varejo se multiplicou sob modos diferenciados e descompassados conforme circunstâncias locais de cada região da cidade, por vezes de cada bairro (Manso, 2005).

Histórias de gangues e quadrilhas locais: agrupamentos efêmeros e fl utuantes de jovens moradores de uma mesma “quebrada”, que se articulam (e desarticu-lam) conforme circunstâncias, os casos e acasos, mas que podem desencadear ciclos devastadores de uma violência acionada por uma mistura intrincada de histórias de vingança, desafetos, desentendimentos, deslealdades, nem sempre

16 Fonte: PRO-AIM, SIM – Sistema de Informação sobre Mortalidade, Município de São Paulo.

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por conta de acertos do crime, porém sempre mescladas com “histórias infames” (Foucault) que atravessam o cotidiano desses (e de quaisquer outros) bairros. Ao que parece, parte do que, nesses anos, foi tipifi cado como chacina tem a ver com essas histórias (cf. Manso, 2000): histórias de gangues de bairro, que se formam nesse jogo ambivalente e mutante das lealdades e desafetos, entre negócios de crime, desacertos pessoais, códigos de honra e a lógica da vingança.

Os especialistas se empenharam em construir tipologias, categorias e classi-fi cações para defi nir as várias modalidades de crime e medir o peso relativo de cada qual no total das mortes violentas e suas evoluções na sequência dos anos. No entanto, vistas sob outro ângulo, essas categorizações fi cam todas esfumadas. Nas histórias em que esses crimes acontecem, as situações se superpõem, se desdobram umas nas outras, seus personagens transitam entre umas e outras, as pontas de uma história se conectam com outra, os fi os se enroscam em algum outro ponto que dá lugar a mais um outro acontecimento e as clivagens seguem outros critérios que não se encaixam nas categorias estatísticas e tipifi cações jurídico-policiais que defi nem as modalidades de crime e criminosos.

Em seu estudo dos processos de homicídio, Inês Ferreira (2006) nota jus-tamente que essas histórias implodem as tipifi cações. Um auto que poderia ter sido classifi cado como “morte em família” apresenta situações que caberiam em outras tipologias, de “justiceiros” ou “disputas entre criminosos”. Ou, então, o contrário: processos de justiceiros nos quais os fatos estavam, todos eles, mistu-rados com histórias de família e brigas de vizinhos. Depois de algum tempo, diz Ferreira (2006: 28), “tínhamos a sensação de que todas as cópias arquivadas no armário montavam uma cidade e que as testemunhas, réus e vítimas sobrevi-ventes passeavam entre os diversos autos, entravam nas casas uns dos outros, se encontravam nas festas, nas excursões para o litoral, embarcavam nos mesmos ônibus, namoravam-se, casavam-se e matavam-se”.

Em 1995, Toninho, 25 anos, casado e com uma fi lha pequena, era um trabalha-dor com futuro promissor. Carteira de trabalho assinada, promoções à vista, bom salário e benefícios sociais em uma empresa imobiliária na qual exercia a função de plantonista, em plantões de venda espalhados pela cidade de São Paulo. Uma situação decididamente rara em uma época na qual o desemprego assolava a vida dos trabalhadores e suas famílias. Nasceu e cresceu no Bairro X. Mudou-se depois do casamento. No entanto, a família ainda permanecia no local; os pais e a irmã, na época casada com um indivíduo obscuro sobre quem não conseguimos saber muito, apenas que tinha saído da prisão havia pouco tempo, que estava envolvido com uma gangue de bairro e que era um tanto violento. Assim nos foi contada a história: após uma briga de família, a irmã queria se separar e o moço passou a ameaçar a todos, dizendo que voltaria para matar a esposa, pai e mãe, irmãos e mais quem estivesse pela frente. Esse foi o estopim para uma guerra de gangues que se prolongou por mais de cinco meses. Frente à ameaça, Toninho procurou a “rapaziada” do bairro. E o assunto foi resolvido à bala. O que, no início, era uma história de “defesa da família” virou uma guerra entre duas gangues rivais.

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Tentamos reconstituir essa história em seus detalhes. Uma história especialmente interessante, pois com ela pudemos fl agrar as dinâmicas que parecem ter presidido a ação de gangues de bairro que se formavam em torno de episódios como este. Por ora, por economia de texto, interessa apenas marcar alguns pontos que aqui importam para chamar a atenção para a transitividade de seus personagens e a superposição de situações que torna impossível enquadrá-las em uma tipologia pré-defi nida de crimes e criminosos.

Para Toninho, familiares e moradores que acompanharam a história, a “defesa da família” era uma regra de ouro que não podia ser transgredida. Ele não tinha outra saída, diz uma moradora. Era isso ou era a morte de todos, diz Toninho. Foi o argumento que levou a “rapaziada” a sair em sua defesa. Quanto aos “ra-pazes”, eles “tomavam conta” da área. Uma jovem dona-de-casa, na época ainda adolescente, quase criança, lembra de um deles: “ele tinha consideração pelas pessoas, ajudava os moradores, comprava remédio quando alguém fi cava doente”. Ele mantinha um armazém bastante frequentado pelo pessoal do bairro. Nos dias de maior movimento, uma ou outra das garotas do bairro ajudava no balcão, principalmente nos fi ns de semana, quando, então, o balcão se transformava em bar e o programa ia noite adentro, animado por um grupo de pagode formado por gente da região. Um outro mantinha um lava-rápido, ponto de encontro para muitos da mesma idade. Eram todos muito jovens, conhecidos dos moradores, namoravam as garotas do pedaço, frequentavam as famílias. E ajudavam, quando era o caso. Foi assim com Aline, uma garota ainda quase adolescente, não mais que 16 anos, com um fi lho pequeno. Aliás, o pai da criança tinha sumido do pedaço. Ainda antes do nascimento, o rapaz cismou com um outro, achava que estava dando em cima da namorada, foi lá tirar satisfações e o desfecho foi fatal, o outro morreu e ele teve que sair, fugido, do bairro. Se fi casse lá, os “meninos” não iam deixar isso passar, diz Aline, quase por acaso, quando perguntamos pelo pai de seu fi lho, no meio de uma longa entrevista em que ela contava suas próprias histórias e as histórias do Bairro X. A mãe e as irmãs ajudavam a cuidar da criança. Os “meninos” também. Um deles, ela lembra, adorava o molequinho, levava presentes, ajudava com as despesas do dia a dia (fraldas, leite, medicamen-tos). Ninguém perguntava de onde vinha o dinheiro, mas isso não tinha lá muita importância. E, quando surgia uma oportunidade, Aline ainda ganhava algum dinheiro, trabalhando no balcão do armazém nos fi ns de semana.

Cada qual carregava uma história particular, um desses acidentes de percurso que os levaram a tomar rumo nos caminhos tortos da vida: uma briga de bar que deu em história de sangue, a defesa de um parente próximo metido em alguma encrenca, a revolta e o revide contra os que mataram um irmão, família de tra-balhador, pai cobrador de ônibus, tudo certo e, de repente, vai tudo para os ares. Cada um, uma história. Cada história, um ponto de não-retorno. E, conforme os casos e acasos da vida, se juntavam em uma parada comum. Ou, então, para resolver algum assunto mais sério. Era assim que os bandos se formavam. Foi isso o que aconteceu nesse episódio.

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Depois de cinco meses, muitas mortes e a gangue inimiga vencida, Toninho já estava inteiramente envolvido com seus novos parceiros. A guerra havia provocado muitas mortes, ganhou o noticiário policial da época e ele, Toninho, estava com o nome marcado: era procurado pela polícia. Além do mais, fora capturado pela lógica da vingança, cativo do “condomínio do diabo”.

A essas alturas a gangue estava se transformando efetivamente em uma qua-drilha. O que era um bando que se formava conforme casos e acasos das cir-cunstâncias, por entre o jogo de lealdades e cumplicidades de bairro, estava se convertendo aos negócios do crime: coisas de armas e drogas, diz Toninho. O negócio não foi muito longe. Logo depois, Toninho foi preso por conta de uma episódio rocambolesco, impossível de ser reconstituído nos limites destas páginas. Foi um assunto de morte encomendada por um outro grupo bandido. A recom-pensa era generosa: dinheiro, um carro, talvez um apartamento novo. Enfi m, esse trabalhador que virou justiceiro (defesa da família), que virou bandido, também virou um pistoleiro, matador. Foi preso, julgado, condenado, passou seis anos na prisão e fugiu. Tornou-se um foragido. E foi nessa condição que ele retornou ao Bairro X. Era o ano de 2001. Ainda tentou montar um negócio por conta própria. Uma barraca de pastéis, que ele montou junto com a sua jovem e recente esposa, antiga namorada dos tempos da “guerra dos cinco meses”. Levantou, digamos assim, “capital” pelos expedientes bandidos: assalto a caminhões de carga nas avenidas de São Paulo, roubo de caixas eletrônicos. Não conseguiu ir em frente em seu fi rme propósito de levar uma vida certa, mesmo que por vias tortas. A polícia não deixava: o jogo de pressão, chantagem e extorsão foi pesado. Como ele mesmo diz, a polícia conhece muito bem “a mente” de um ex-presidiário, ainda mais um foragido: ele faz qualquer coisa para evitar a volta à prisão. Fechou o negócio, perdeu dinheiro e ainda teve que usar o carro de um cunhado no acerto com a polícia. Depois de um tempo de destino incerto, Toninho transformou-se no patrão de um ponto de droga, uma “biqueira”, instalada no Bairro X nesses anos. Na virada dos tempos, Toninho tornou-se trafi cante.

Os seis anos em que esteve preso o preservaram da sucessão de mortes que devastaram o Bairro X, fi nda a guerra das duas gangues inimigas. Histórias de vingança e desafetos em torno de assuntos menores, misturados com os negócios do crime. É nesse cenário que a fi gura negativa do matador ganha seus contornos mais claros, dilui-se a ambivalência que pode haver nas “histórias minúsculas” dessas vidas bandidas. São assim nomeados esses tipos que estão inteiramente cativos em um ciclo fechado entre, de um lado, histórias de sangue e a lógica da vingança e, de outro, a truculência da ação policial: chantagem, extorsão, extermínio.

Zélio era assaltante de bancos. Especializou-se em assalto a caixas eletrôni-cos. Naqueles anos, havia uma verdadeira onda de caixas eletrônicos não apenas arrombados, mas simplesmente levados embora. Uma operação nada simples, diga-se, que conferira grande prestígio a seus autores. Pois, então, Zélio era um bandido de conceito, conceito elevado na hierarquia de prestígio e fama entre os

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homens do crime. No Bairro X havia uma partilha entre os bandidos de conceito e os matadores. Partilha um tanto quanto embaçada pelas relações de proximi-dade, vizinhança, laços de lealdade e cumplicidade, além do fato de uns e outros transitarem entre um lado e outro, proximidades e afetos de um lado e de outro. Assim nos foi contado: Zélio e seus parceiros tentavam manter distância em relação aos outros, vistos como gente muito violenta. Não foi possível saber quais eram os negócios criminosos desses outros, provavelmente uma mistura de assaltos, furtos, droga, talvez armas. Eram matadores, assim nos foi dito, exatamente nesses termos. Em contraposição, o retrato que nos fi zeram do rapaz era algo próximo ao “bom bandido”: não gostava de usar armas, recusava soluções violentas, era generoso com os seus ganhos (ajuda a uns e outros mais necessitados, presentes, manutenção das despesas de sua família), além de ser “muito educado”.

Zélio foi executado pela polícia. Dois tiros na nuca quando estava em operação, em um assalto a um caixa eletrônico. Dizem: foi “trairagem” e desentendimentos com a polícia em torno do acerto na partilha dos ganhos. Nós estávamos em cam-po quando isso aconteceu. Soubemos do fato através de uma certa Dona Cida, sogra do bandido morto. Na época, era o início do nosso trabalho de campo e foi aos poucos, no andamento de nossa convivência no local, que pudemos saber um pouco mais sobre o que se passava no Bairro X, naquele momento. Dona Cida era quem nos acolhia em nosso trabalho de campo, nos apresentava aos moradores, nos acompanhava em muitas das entrevistas. Era dela que falávamos quando comentamos a convivência dos justiceiros com os moradores. Nos anos 1980, sua casa (assim como outras) era frequentada pelo Justiceiro Joel. Nos anos 1990, assim como ela fazia no caso dos justiceiros, não poucas vezes se metia no meio das desavenças locais para evitar o pior. Micro-histórias muito confusas, impossíveis de serem reconstituídas: histórias de rumores nem sempre fundados, “tudo besteira”, um diz-que-diz em que os negócios do crime misturavam-se com desafetos, desentendimentos pessoais, disputas amorosas, histórias de vingança pessoal ou, então, valentia dos que queriam impor respeito por conta de um assunto qualquer. Eram histórias que se misturavam com as histórias do bairro, com os parentes, com os vizinhos, com os amigos mais próximos, com a própria família. Assim ela conta e outros confi rmam: não poucas vezes, ela interferia, conversava, às vezes se punha na frente, fazia de tudo para proteger um e outro sob ameaça ou jurado de morte, tentava convencer de que as coisas tinham que “andar pelo certo”. Dona Cida se metia no meio das histórias bandidas. Mas também enfrentava a polícia: ali, como em todos os outros lugares, episódios recorrentes de batidas policiais, uso da violência armada, ameaças, espancamento, execução. Quando via alguém sendo pego, levando um “esculacho”, ela se metia na frente, de dedo em riste, falava alto, dizia que iria denunciar. Outras vezes, entrava na viatura na marra, dizendo que iria acompanhar o detido até a delegacia. Ou, então, até o hospital, quando alguém era baleado, às vezes entre a vida e a morte.

Naqueles anos, início dos 2000, Dona Cida já estava distante dos movimentos sociais e articulações políticas da década de 1980. No entanto, continuava a atuar

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como uma liderança comunitária muito ativa na região. Capitaneava programas de distribuição de leite e cestas básicas, organizava as atividades de uma asso-ciação comunitária da qual era uma das fundadoras (ainda nos anos 1980); e era ela quem fazia as articulações dos moradores com vereadores de base local em época de eleição, negociando a agenda de melhorias para o Bairro X (postes de luz, canalização de esgoto a céu aberto, campo de futebol, programas sociais). Dona Cida era um muito efi ciente cabo eleitoral, transitando com desenvoltura pelos corredores e salas da Câmara dos Vereadores.

Dona Cida também participava do Conseg, Conselho Comunitário de Segu-rança, vinculado à Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado.17 Era um jeito, assim ela nos explicou, de contribuir para diminuir a violência policial na região. Depois da execução do Zélio, ela não mais voltou às reuniões. “Fiquei muito decepcionada”, diz ela, “não adiantava para nada”. Dona Cida fi cou muito abalada com a morte do rapaz: ele frequentava a sua casa, era marido de sua fi lha, pai de um bebê de poucos meses e ela tinha-lhe “muito apreço”. Ela dizia e repetia a cada vez que o episódio vinha à baila: “ele não estava rezando missa”, é certo, mas, então, “deveria ter sido preso e julgado, não executado”.

Dona Cida pode ser tomada também como um personagem urbano cujos per-cursos transitam entre o legal e ilegal, também entre as esferas da ação política e os agenciamentos locais feitos de um intrincado de relações que embaralham as fronteiras entre o “os mundos da ordem” e os “mundos bandidos” enredados nas circunstâncias locais por onde também circulam afetos, lealdades, cumpli-cidades construídos em torno dos casos, dos acasos e microacontecimentos que fazem a tessitura da vida cotidiana. Personagens como Dona Cida são comuns nesses lugares. Desempenham um papel importante nesses agenciamentos locais, nos pontos em que se entrelaçam as forças da ordem, os ilegalismos difusos e a clivagem do crime.

Formas de gestão da ordem local. Mas esses são equilíbrios frágeis e incertos por conta de uma violência que transborda essas microrregulações. De um lado,

17 Participam dos CONSEGs (criados por decreto estadual em 1985), o Delegado de Polícia Titular e o Comandante da Polícia Militar (membros natos), no bairro ou município onde cada um deles funciona, além de “representantes dos poderes públicos, das entidade associativas, dos clubes de serviços, da imprensa, de instituições religiosas ou de ensino, organizações de indústria, comércio ou prestação de serviços, bem como outros líderes comunitários que residem, trabalham ou estudam na área de circunscrição do respectivo Conseg”. Assim são defi nidos seus objetivos: “os CONSEGs são grupos de pessoas do mesmo bairro ou município que se reúnem para discutir e analisar, planejar e acompanhar a solução de seus problemas comunitários de segurança, desenvolver campanhas educativas e estreitar laços de entendimento e cooperação entre as várias lideranças locais. Cada Conselho é uma entidade de apoio à Polícia Estadual nas relações comunitárias, e se vincula, por adesão, às diretrizes emanadas da Secretaria de Segurança Pública, por intermédio do Coordenador Estadual dos Conselhos Comunitários de Segurança” (www.conseg.sp.gov.br – acessado em 09/12/2009).

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o campo de tensão e fricção que pode existir na convivência entre trabalhadores e bandidos, para retomar a discussão de páginas atrás, com seus ambivalentes códigos de distância e proximidade. O fi o da navalha no qual parece se estruturar uma ardilosa gestão da ordem local desdobra-se em uma gestão dos assuntos de vida e de morte. Os percursos de Dona Cida podem ser lidos nessa chave, seus re-latos estão sempre permeados por um esforço (no seu caso, incansável) de agenciar os afetos, as lealdades, as cumplicidades, e também as reciprocidades, quando estavam envolvidos os jogos de ajuda mútua, para evitar o desfecho de sangue de desafetos e desentendimentos locais em torno dessa nebulosa de relações nas quais estão enredados os negócios do crime. A fi gura do matador, tal como ele comparece nessa espécie de tipifi cação popular, linguagem nativa como diriam os antropólogos, dá a cifra da lógica de uma violência que transborda e implode esses agenciamentos da ordem local. Há a lógica devastadora da vingança, o “condomínio do diabo”, é certo. Mas ainda será preciso perscrutar mais o que aciona essa lógica, pois nos desacertos nos negócios do crime inscrevem-se jogos pesados de poder implicados nas práticas da extorsão policial, mas também, ao que parece, um verdadeiro mercado de execuções a mando que replicava a violência muito além dessas microrregulações.18

De outro lado, e ao mesmo tempo, o desconcerto de dona Cida com a execução do bandido Zélio e a “decepção” com o Conseg dizem algo dos ordenamentos sociais que se fazem nesse terreno incerto, crivado pela violência policial, a qual desloca os próprios sentidos de lei e de ordem. “Ele devia ter sido preso e jul-gado, não executado”: o que está posto nesse modo de se referir à lei são pontos de fricção que expõem não propriamente os limites da lei (uma lei que não é aplicada), mas a sua torção em práticas de exceção.

Duplo registro de violências que se comunicam e que atravessam, por dentro, as vidas dos homens e mulheres que habitam esses territórios. Este o solo onde se ancoram as práticas e procedimentos pelos quais, nos anos 2000, se tentará frear os ciclos incontroláveis da violência, já sob a dinâmica das reconfi gurações do mercado varejista da droga.

* * *

Na virada dos anos 2000, na cena urbana na qual já atua o trafi cante Toni-nho, o matador ganhará outras designações, sob a lógica de uma outra economia interna aos ilegalismos urbanos, agora regida pelo mercado de drogas ilícitas: o “Coisa” ou “Verme”, aquele que não sabe respeitar “o lado certo da coisa erra-da”, que não segue o “proceder”, cuja defi nição, como diz Daniel Hirata (2010), não é categorial nem moral, é sempre contextual e situacional. São fi guras que sinalizam um limiar que está sempre prestes a ser ultrapassado, acionando ciclos

18 Devo a Fernando Salla essa informação.

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devastadores de violência, os “mata-matas” que acompanharam toda a década de 1990. É também por referência a essa cena que é possível qualifi car o que está inscrito em uma fala que diz: ou se respeita o lado certo da coisa errada ou morremos todos. Gestão dos limites da vida e da morte. No contraponto entre o matador e o trafi cante, talvez, se tenham pistas a seguir (algumas delas) para entender a lógica que passa a presidir essa espécie de pacifi cação dos territórios nos quais o mercado da droga, nos anos 2000, passou a se estruturar. Mas, aqui, entramos no terceiro tempo.

Terceiro momento, anos 2000: novos ilegalismos e o trafi cante

É o cenário urbano descrito no capítulo anterior. Lembrando: modernização urbana e a confi rmação da cidade como centro econômico de primeira grande-za. Ao mesmo tempo e no mesmo passo, a expansão de uma malha intrincada de ilegalismos, acompanhando as novas formas de produção e circulação de riquezas, que se delineia em um comércio informal redefi nido, nas fronteiras porosas do legal-ilegal, de que o contrabando, a pirataria e ilícitos variados são exemplos conhecidos. É nesse cenário que o mercado varejista da droga se orga-niza. Momento em que se dá o transbordamento do PCC para fora das prisões, acompanhando a expansão e maior articulação do varejo da droga nas periferias da cidade. Mas isso também signifi ca dizer: a expansão da economia da droga e suas capilaridades no mundo urbano acompanha a aceleração dos fl uxos de circulação de riqueza, para evocar uma ordem de questões que vai além do que essa formulação um tanto vaga pode sugerir. Seria preciso, portanto, colocar a expansão do varejo da droga em perspectiva com uma trama urbana redesenhada pelas novas fi guras dos mercados informais e ilegais, e seus modos de regulação, quer dizer: os mercados de proteção e práticas de extorsão constitutivos desses mercados. Essa foi a questão tratada no capítulo anterior.

Esses também foram os anos de endurecimento penal e do chamado encar-ceramento em massa. Do lado de dentro, a superlotação explosiva da população carcerária, acirrando ainda mais a catástrofe exposta nas condições sub-humanas e nas opressões variadas impostas aos detentos. Do lado de fora, a experiência carcerária que circula amplamente, que passa por dentro das famílias, pelas redes de parentelas e vizinhanças, e se desdobra nos circuitos da sociabilidade local. Como foi visto no capítulo anterior, a prisão tornou-se uma referência urbana e passou a compor uma cartografi a ampliada dos circuitos populares. Entre um lado e o outro dos muros, os “vasos comunicantes’’, como diz Rafael Godoi (2009), por onde circulam percepções e experiências de coerção dentro e fora das prisões, junto com comportamentos, códigos e condutas (Salla, 2009).

Do lado de dentro, o surgimento das facções criminosas e do PCC é questão mais bem conhecida. O mesmo não se pode dizer do transbordamento da he-

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gemonia do PCC para fora das prisões, acompanhando a maior articulação do mercado varejista da droga no conjunto da cidade, em particular, nas periferias urbanas. Essa é questão de pesquisa e vai muito além do que se propôs aqui fazer. De toda forma, vale dizer que é questão a ser prospectada nos pontos de junção de histórias e cronologias cruzadas, cujos elos ou nexos seria preciso prospectar: a história interna ao PCC e a história das prisões da qual as rebeliões nos dão uma cronologia a ser seguida; os circuitos transnacionais da economia da droga, seus modos de territorialização e articulação com agrupamentos criminosos; a história urbana e suas evoluções recentes. É dessa última, a história urbana, que este capítulo se ocupa, sob um ângulo muito peculiar, seguindo os rastros de seus personagens bandidos.

Aqui, nesse terceiro momento, o nosso posto de observação é a “biqueira” que se instalou, nesses anos, no Bairro X. Reatando o fi o da meada: os percursos do trabalhador que virou bandido, que virou presidiário, depois, foragido e, por fi m, um pequeno trafi cante de bairro.

No momento em que encontramos Toninho, a situação era ainda incerta. Lem-brando o ponto em que o deixamos no último tópico: a extorsão da polícia. Uma microcena que interessa reconstituir, pois ela contém elementos interessantes, pelo que sugere das lógicas que, assim nos parece, presidiram a contenção dos crimes violentos na região, a pacifi cação (relativa) desses territórios.

Toninho disse que a polícia o seguiu por semanas, uma viatura sempre presente nas proximidades de sua casa. Ele foi pego e abriu-se a negociação para o “acerto”. Um procedimento recorrente nessas situações: é dentro da viatura policial que o acerto é feito, sob a ameaça (chantagem) de se levar o detido para a delegacia. Toninho diz que os policiais mostraram que sabiam muito de sua história recente e dos anos anteriores, ainda dos tempos da “guerra dos cinco meses”: nomes, lugares, parceiros, além de detalhes que poucos conheciam. Toninho desconfi ava de “trairagem”. Em um primeiro momento, diz ele, tentou saber alguma coisa, mas outras suspeitas apareceram: um emaranhado de histórias confusas em que os negócios do crime misturam-se com desafetos pessoais, com ecos dos tempos da “guerra dos cinco meses”. Resolveu deixar tudo por isso mesmo, no que foi aconselhado pelos parceiros: “vou falar para vocês, se eu descobrisse, iria ter lá [no Bairro X) tantas mortes como nunca ninguém viu ...”. Quer dizer: a guerra haveria de recomeçar. Naquele momento, foi bloqueada a lógica da vingança que, sempre, abre um ciclo infernal de mortes sucessivas, a guerra como se diz.

Nessa ponderação havia um jogo de circunstâncias que apenas algum tempo depois tivemos condições de entender com mais clareza. O Bairro X era o epi-centro de uma disputa de território que, naqueles meses, estava sendo negociada e arbitrada; desenlaces fatais estavam sendo evitados, mas poderiam acontecer a qualquer momento. É justamente isso, precisamente isso, que estava em jogo na decisão de não saber (ou não confi rmar) quem cometeu a traição em um assunto que afetava os negócios do crime, mas que passava, na verdade, por outras ques-tões. O ponto de venda estava “vago” por conta da morte de muitos (quase todos) e

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a prisão de alguns dos que, nos anos anteriores, tinham o comando dos negócios do crime no Bairro X. Mas havia “os de fora”, que estavam querendo ocupar o lugar. Esse foi assunto de um “debate” que se prolongou por vários dias.

Toninho e seus novos parceiros, todos eles também moradores antigos do bairro, assumem o comando do ponto de droga do bairro. Assim nos foi dito: ou isso ou “o pessoal de fora” tomaria conta. E daí, seria, novamente, a guerra.

Não temos condições de saber sobre os bastidores dessa microcena e os meandros pelos quais o mercado varejista da droga estava, naqueles anos, se estruturando já sob forte infl uência do PCC. Porém, não é irrelevante notar que, no distrito do Jardim São Luis, acompanhando uma tendência evidente no con-junto da cidade de São Paulo, a curva até então ascendente das mortes violentas tem uma fortíssima infl exão para baixo justamente nesses anos, entre 2002 e 2003, despencando de forma acentuada nos anos que se seguiram. Isso ocorre de uma forma geral em quase todos os distritos da cidade de São Paulo. E é uma tendência particularmente nítida (e, nesse sentido, impressionante) justamente nos distritos que apresentavam as taxas mais altas de homicídios:

Taxa Geral de Homicídios (por 100 mil hab) nos Distritos da Cidade de São Paulo

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Parelheiros 106,6 120,8 113,0 80,8 66,7 51,3 35,3 11,2

Cidade Tiradentes 102,9 69,9 50,3 54,4 27,9 20,8 10,0 9,3

Guaianazes 102,7 96,4 117,1 90,3 58,2 27,8 21,9 11,4

São Mateus 91,7 66,4 63,7 57,8 33,3 33,9 37,1 16,0

Jardim Ângela 91,0 110,6 90,7 81,5 56,6 40,8 32,2 18,9

São Rafael 81,8 70,6 62,1 59,3 43,3 24,5 27,7 10,5

Cachoeirinha 88,2 71,2 79,8 62,0 49,0 33,0 46,4 17,3

Grajaú 86,2 107,1 92,2 88,0 69,8 39,5 29,0 15,4

Vila Curuçá 80,0 67,0 64,3 42,5 35,5 38,5 17,5 10,3

Brasilândia 87,5 84,8 60,8 59,7 58,9 44,9 34,7 18,7

Jardim São Luís 84,6 89,2 90,4 77,0 54,1 33,6 29,1 17,4

Ermelino Matarazzo 68,4 49,3 42,6 38,7 32,1 22,8 13,6 3,6

Sapopemba 73,0 61,1 53,8 52,5 27,5 18,1 15,6 8,3

Município de SP 57,3 57,1 51,5 47,3 36,0 25,9 21,4 12,1

Fonte: PRO-AIM/SMS-SP, IBGE e Fundação SEADE

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Não seria arriscado dizer que os picos de homicídios nos primeiros anos de 2000, com variações interessantes a serem prospectadas conforme regiões e distri-tos da cidade, correspondem a disputas violentas pelos pontos do varejo, mas que, depois, nos anos que se seguiram, parecem ter sido desativadas ou, no mínimo, estabilizadas sob formas não violentas ou menos violentas, tal como sugere essa microssituação, aqui descrita. É uma história muito recente e que ainda terá que ser mais bem compreendida. Tudo indica, no entanto, que foi justamente nesses anos que o PCC passou a controlar o mercado varejista da droga, algo que parece ter ocorrido entre 2002 e 2003. Isto é, após a consolidação da hegemonia do PCC no mundo prisional, depois de sangrentas disputas entre facções crimino-sas nas prisões (Dias, 2009). O fato é que há uma clara sintonia, nesses anos, entre a diminuição das mortes violentas nas prisões e fora delas. Nas prisões, a presença do PCC acarretou rearranjos internos consideráveis, acompanhados de procedimentos postos em ação para frear as mortes entre os presos (cf. Marques, 2009; Biondi, 2010). Fora das prisões, os famosos debates e modos de gestão das turbulências confl itivas nos pontos de intersecção dos assuntos do crime e as circunstâncias da vida cotidiana nas periferias da cidade.

Seria possível dizer que isso tem a ver com imperativos próprios da estrutu-ração do varejo da droga, o qual, como todo mercado, tem suas próprias formas de regulação. Mas também se poderia arriscar e dizer – e essa é, na verdade, a hipótese de trabalho com a qual estamos lidando – que, para além das “razões instrumentais”, há também uma gestão da ordem que transborda os “negócios do crime”, na própria medida em que essa pacifi cação afeta os mundos sociais nos quais o varejo da droga se ancora. O mercado, também o de bens ilícitos, não é uma entidade abstrata, regida por uma razão instrumental desencarnada: supõe e, ao mesmo tempo, produz, engendra, uma trama complexa de relações, interações e intercâmbios sociais.

Reatando o fi o da meada: o contraponto entre o “matador” e o trafi cante dá a pista para se entender o que está em jogo nessas práticas, sob uma lógica regida pelo esforço em bloquear, frear, a lógica devastadora do “mata-mata” da década anterior. Vale aqui retomar o ponto deixado em aberto páginas atrás, quando Rodney, o pequeno ladrão que virou trafi cante, comenta a fi gura do matador (e do justiceiro):

“Se você mata ele e não era para o cara morrer, aí você também vai morrer, é a guerra”. Nessa frase, que ouvimos, com variações, muitas vezes, ao longo do trabalho de campo, temos uma chave para compreender a lógica da vingança que é preciso estancar de acordo com as “leis do crime”: o “andar pelo certo”, como se ouve dizer, também de forma recorrente. “Andar pelo certo” diz respeito a um conjunto de códigos e regras não-normativos que defi nem a “atitude” do “homem de proceder” e regem os modos de lidar e se colocar nas situações. Do ângulo de visão dos “homens de proceder”, essa a diferença em relação ao matador (e o justiceiro), que mata por “maldade”, que é “covarde”, que mata apenas porque cismou com um outro. Rodney diz: “não é assim não, tem que ir lá na quebrada,

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de mente aberta, vamos trocar uma ideia para não acontecer o pior...”. Na ver-dade, é mais do que isso, pois envolve um intrincado jogo de relações nas quais os negócios do crime são geridos e arbitrados nos casos de desavenças, descon-fi anças, desacertos (cf. Marques, 2009). Por ora, no contexto das questões aqui discutidas, essa marcação é sufi ciente para indicar a diferença entre o trafi cante e o matador (e o justiceiro) que são, neste texto e no contexto da discussão que aqui vem sendo feita, os personagens urbanos cujos rastros tentamos seguir.

Rodney diz:

[...] eu acho que o crime começou a evoluir, as pessoas começaram a entender o que é certo e o que é errado, e viram o que é o certo... Agora, no crime, hoje em dia, nós cuidamos da área em que nós vivemos. Vamos dizer, nós não deixamos eles [os matadores] virem zoar, a gente tenta ir lá trocar uma ideia com eles, para não morrer.

Nós somos assim. É lógico, até na rua, para não ter esse negócio de pilantragem, do cara que chega e diz “eu vou matar”. Então, é o certo.

Existe uma “lei do crime”, diz Rodney, “é preciso andar pelo certo”. E com-plementa:

[...] agora, se está errado, já sabe, ou desencosta de nós, ou ele vai morrer.

Poderes de soberania agora ativados pelos homens do crime na gestão dos territórios e dos negócios da droga: “poder matar, deixar viver”. Porém, poderes soberanos que passam por mediações, que ativam a teia de relações envolvidas em cada caso. Não é aplicação tirânica de alguma regra pré-defi nida ou puro arbítrio ou capricho de cada um: “vamos lá trocar uma ideia”. Essa expressão, “trocar uma ideia”, circula no mundo bandido, dentro e fora das prisões. O “trocar uma ideia” é sempre situacional, tem modulações variadas, conforme a gravidade do assunto, a natureza das relações e comprometimentos implicados, envolvendo desacertos ou litígios a serem resolvidos sob uma forma de arbitragem, também esta variável. O “debate” é uma delas, a mais importante.

Importante notar: em todas essas ponderações sobre a “lei do crime” e o imperativo de “se correr pelo certo” (do contrário, se morre, “é a guerra”), os nossos entrevistados foram cuidadosos com as palavras. No momento em que as entrevistas foram realizadas (2005), falar e nomear o PCC, ao menos naquela região, era ainda algo que se fazia à meia voz, num tom abaixo no correr da conversa, o cuidado de não dizer (e ser ouvido) o que, talvez, naquele momento, ainda fosse percebido como o que não poderia ser dito. Muito diferente do que aconteceria pouco tempo depois. Mas não é esse o ponto. Pois ambos falam em nome próprio. Quer dizer: falam na ótica da “lei do crime”, e esta é anterior ao PCC e muito anterior à hegemonia que este conquistou no universo carcerário e fora dele, o controle que passou a exercer sobre o mercado varejista da droga em

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São Paulo. Adalton Marques faz uma cuidadosa descrição dos usos desse termo no universo carcerário – usos enquanto substantivo, “o proceder”, usos enquanto adjetivo, “o cara de proceder” – que defi nem, nesse duplo registro, as “regras do convívio”, que são anteriores ao surgimento das facções.

São práticas em grande medida pautadas (e conformadas) pela experiência da prisão: os códigos, os procedimentos, os interditos e o famoso debate, tudo isso aparece, primeiro, nas prisões, e isso ao longo dos anos 1990, sobretudo a partir da segunda metade da década, mais intensamente nos anos 2000. As regras do “proceder” compõem o repertório do “mundo do crime”, desde há muito. Iremos encontrá-las nas situações descritas por Ricardo Ramalho no seu então inovador Mundo do Crime (1979). Os relatos de prisão estão perpassados por elas. O es-pantoso Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes (2001), trinta anos passados atrás das grades, contém um manancial precioso (e impressionante) de informações para se compreender a lógica situacional e relacional (não normativa, não categorial) do proceder, posta em ação em situações que se desenrolam no fi o da navalha, sempre, entre a vida, a morte e também a loucura.

Isso aparece igualmente nos vários relatos que nós próprios obtivemos de experiências carcerárias. Recupero aqui questões que estamos trabalhando, Da-niel Hirata e eu, a partir desse material. Uma trama de relações pautadas pelas regras não escritas do “proceder”: modos de lidar com situações adversas, de se conduzir nas incertezas, de contornar os riscos e não sucumbir face às en-grenagens dessa verdadeira máquina de destruição que é o universo carcerário. Em cada situação, ganham forma os limiares que não podem ser ultrapassados, mas que estão sempre prestes a serem ultrapassados e que são ultrapassados por aqueles que quebram, sucumbem, se deixam capturar pela “maldade” reinante (é “tudo maldade”, eles dizem, sempre) e viraram um “Coisa” ou um “Verme”: o cagueta, o traidor, o dissimulado, o matador de cadeia, o que pratica a covardia, o que não cumpre a palavra empenhada. É assim que são designadas todas essas fi guras que povoam o universo carcerário e que operam como marcadores de um limiar que pode a qualquer momento ser ultrapassado, e que é ultrapassado por aqueles que não sabem respeitar o “lado certo da coisa errada” e que, sendo assim, se tornam operadores das várias violências que ameaçam todos e cada um, capturados eles próprios pelas engrenagens de destruição acionadas no uni-verso carcerário. Como bem nota Fernando Salla (2009), a questão das “vidas sacrifi cáveis”, homo sacer, é central para entender a dinâmica interna das prisões e as mútuas ressonâncias do que acontece dentro e fora de seus muros, mortes perpetradas por forças policiais e por agentes penitenciários, mortes entre os próprios presos, muitas vezes sob formas fortemente ritualizadas, cujo simbolismo e sentidos ainda é preciso entender.

O refl exivo Rodney sempre repetia ao longo de sua entrevista: “era tudo mal-dade”, “você não sabia se ia amanhecer vivo ou morto”:

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[...] você não sabia se ia amanhecer vivo ou morto... você briga com a morte todo o dia, 24 horas, ela sempre quer te pegar... à noite, quando fecha a tranca,você não sabe o que vai acontecer no dia seguinte, você acorda já pen-sando nisso, agradece por estar vivo [...] todo dia, você tem que pensar como você vai sobreviver...

O pragmático Toninho dizia:

Na prisão é tudo incerteza, não dá para saber o que vai acontecer no dia se-guinte... a única certeza lá dentro é que, para sobreviver, você não pode errar... você tem que ter a mente certa para não errar, você vai tirando isso, vai pondo na mente, vai tentado uma solução.

Esses homens estão falando do tempo em que passaram no Carandiru, sete anos um (1994-2001), três anos o outro (1998-2001), além do tempo que pas-saram, um e outro, em outras unidades prisionais. Não se trata aqui de propor explicações, muito menos dar conta das múltiplas dimensões que podem estar contidas no “mundo do crime” e seus códigos internos de funcionamento. Nosso material de pesquisa não é sufi ciente para isso e nem mesmo é esse o foco de nossas prospecções. Mas essas marcações são importantes para situar algumas questões que interessam ao andamento deste capítulo.

Primeiro: as regras do “proceder” não brotam do “mundo do crime”, como se este fosse um universo fechado, mundos paralelos, subterrâneos, à parte. Não há nada de fechado, nem de paralelo ou subterrâneo. É algo que se produz no encontro desses homens com o poder, “homens infames”, como diria Foucault, cuja potência de agir é ativada precisamente nesses pontos em que seus corpos e suas vidas são afetados pelo poder, junto com as paixões, os ódios, os ressentimentos, rancores, as revoltas surdas ou o grito de rebeldia. Quer dizer: essa espécie de razão prática nos modos de lidar com os problemas que se constelam nos limiares da vida e da morte é algo impossível de se compreender sem colocá-los em situação, no modo como essas vidas são afetadas pela máquina de destruição acionada pelo universo carcerário. E é disso que esses homens falam ao descrever as várias situações pelas quais passaram na experiência carcerária. Que seja dito: essas questões de vida e de morte foram eles próprios que pautaram, algo que saía dos relatos que faziam sem que a pergunta fosse feita. E foi isto o que nos afetou, também: o impacto do que, então, nos era relatado na sucessão de episódios tra-vejados pela brutalidade do arbítrio e da violência reinantes nas prisões, o modo como alguns quebravam e sucumbiam (loucura, suicídios), outros se enterravam na droga e viravam matadores de cadeia (os “lagartos”), outros se dobravam e passavam para o outro lado (os traidores ou os “KGB’s”, esses faziam o trabalho de carcereiro), outros, enfi m, que duplicavam a “maldade” nas disputas internas, mortes, estupros, deslealdades, crueldades intrapares. Isso nos impressionava, porém nos impressionava ainda mais a descrição que ambos faziam (e o tom refl exivo com que falavam) dos modos de lidar com essas situações, contornar,

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enfrentar e se por à prova – era nisso que se ia esclarecendo os sentidos práticos do “proceder” e do “homem de proceder”. Ao ouvirmos esses relatos e, depois, ao trabalharmos esse material, pressentíamos que havia nisso tudo uma chave para compreender o que se passava nas prisões, e fora delas. E foi essa a pista que procuramos explorar e que fornece algo como um guia para o que está aqui sendo escrito (e descrito).

Segundo: as regras do proceder parecem cunhadas pela experiência carcerária, porém vazam pelos poros dos muros da prisão, transbordam para fora, circulam e são ativadas nos meandros do universo popular. Bem antes que essas entrevistas fossem realizadas, Daniel Hirata, em seu estudo sobre o futebol de várzea nas periferias paulistas (2006), fl agrou seus modos de operação, sua linguagem em uso, sua gramática e pragmática, sempre em situação, presente nos times e torcidas de futebol, entre os perueiros, nos meandros do comércio informal, nos circuitos da sociabilidade, sobretudo masculina. Modos de “sobreviver na adversidade”, diz Hirata, recuperando uma expressão que tem sua matriz também no universo carcerário19 e que parecia esclarecer algo dos ardis de uma inteligência prática que se declina no presente imediato, uma espécie de arte do contornamento das situações incertas e mutantes, feitas de limiares e riscos com os quais é preciso lidar e perante os quais o “homem de proceder” é posto à prova e confi rmado (ou não) como homem de “atitude”.

“Sobreviver na adversidade” também ganha o nome de “Vida Loka”, termo que circula no mundo bandido e fora dele, ressonâncias e impacto de uma lon-guíssima letra de música dos Racionais MC’s que tem esse título, e que Daniel Hirata (2009) tratou de esmiuçar. Em cada uma das suas passagens, Hirata pôde decifrar os modos sempre situados, sempre contextuais, pelos quais o “homem de proceder” se prova e se mostra na sua diferença e distância em relação ao “Coisa”, ao “Verme”, também em relação ao “zé povinho”, aquele que recua, que se dobra, que se deixa humilhar, que é dissimulado, desleal, que age apenas em proveito próprio, que não merece respeito nem confi ança.

“Vida Loka”: “o drama cotidiano das vidas precárias, incertas, sempre no limiar da vida e da morte, os Racionais chamam de Vida Loka”. É a “Vida Loka”, comenta Hirata, que exige e ativa um certo proceder nas periferias paulistas. Nas várias passagens que compõem essa letra longuíssima, Hirata identifi ca os códigos que parecem reger a arte de “sobreviver na adversidade”: saber circular em um universo incerto no qual motivos corriqueiros podem desencadear desfe-

19 Willian da Silva Lima (2001: 95-96), um dos fundadores do Comando Vermelho, ao comentar o seu surgimento nos anos 1970, diz: “O que eles chamavam de Comando Ver-melho não poderia ser destruído facilmente: não era uma organização, mas, antes de tudo, um comportamento, uma forma de sobreviver na adversidade. O que nos mantinha vivos e unidos não era nem uma hierarquia, nem uma estrutura material, mas sim a afetividade que desenvolvemos uns com os outros nos períodos mais duros das nossas vidas. Como fazer nossos carcereiros (ou mesmo a sociedade) acreditarem nisso?”.

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chos violentos, pequenas histórias que viram assuntos de vida e morte. Lidar e transitar em um mundo feito de realidades fugazes, que mudam a cada instante, a aleatoriedade dos casos e acasos que pontilham os meandros dos mercados informais, nas fronteiras incertas entre o lícito e o ilícito, “espaços nos quais é difícil construir medidas precisas, cálculos exatos e uma razão rigorosa” (Hirata, 2010: 238).20

A hipótese de Daniel Hirata é a de que, mais do que códigos e regras internas aos negócios do crime, o “proceder” diz respeito a formas de conduta ativadas nesses mundos incertos, tecidos na hoje expansiva malha de ilegalismos, nas fronteiras incertas entre o legal e ilegal, lícito e ilícito. Transitar nesses terrenos não é coisa simples: é preciso habilidades, astúcias, artifícios, senso de oportuni-dade para fazer os acertos com a polícia, lidar com os fi scais da prefeitura, evitar a prisão, contornar os riscos de morte, garantir os acordos dos quais dependem esses negócios (não apenas os ilícitos), fazer alianças de circunstância, discernir quem merece ou não merece confi ança.

É isso, diz ainda Hirata, que se pode acompanhar na multiplicidade de situ-ações e relações que se constelam em torno de um ponto de droga nas periferias paulistas. Voltamos ao nosso posto de observação. A “biqueira” instalada no Bairro X. Em torno de uma “biqueira”, se articulam e condensam várias das dimensões que compõem o cenário urbano local. Como diz Hirata, “o mundo da droga não totaliza a realidade das periferias, mas também não é separado do mundo dos cidadãos ordinários” (Hirata, 2010: 230).

De um lado, tramas superpostas de ilegalismos novos, velhos ou redefi nidos pelas quais circulam pessoas, bens e produtos, entre expedientes de sobrevivência, o trabalho irregular, pequenos empreendimentos locais e os negócios do crime, que gravitam em torno do ponto de venda de drogas ilícitas. É o cenário descrito no capítulo anterior. A isso se acrescentam os ilegalismos urbanos que atravessam, desde sempre, as periferias da cidade. Os homens do tráfi co local agenciam as gambiarras nos lugares sem energia elétrica, não poucas vezes mobilizando, sob pagamento, as competências técnicas dos empregados de serviços (terceirizados) de manutenção da rede elétrica. Também: arbitragem nas áreas de ocupação irregular de terras entre famílias já estabelecidas e recém-chegadas; melhorias no campo de várzea, negociadas com os representantes da prefeitura com a mediação do CDM (Conselho de Desportivo Municipal) local; promoção de festas juninas e “acertos” com os representantes da ordem, polícia e fi scais da prefeitura. Situações que descrevemos em um artigo recente (Telles & Hirata, 2007).

Microssituações que se multiplicam e se superpõem, entre os ilegalismos cons-telados na produção dos espaços e as versões locais do “bazar contemporâneo”. Transversal a essas (e outras) situações, está a mercadoria política que circula,

20 Para uma discussão sobre os sentidos dessa inteligência prática em contextos nos quais as regras são incertas e mutantes, e as realidades são indeterminadas e ambíguas, ver Detienne e Vernant (1974).

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sob formas variadas, das propinas mais ou menos generosas, conforme o caso, passando por “acertos” de circunstância até os mercados de proteção e práticas abertas de extorsão.

É isso o que se pode fl agrar nas microrregulações do varejo da droga, suas ressonâncias e capilaridades nas redes sociais nas quais se ancoram e que entre-cruzam com as circunstâncias da vida local. A intrincada gestão dos negócios da “fi rma” conecta-se com as circunstâncias da sociabilidade local, entre o respeito às regras da reciprocidade da vida cotidiana, o cálculo refl etido para garantir a cumplicidade dos moradores contra as investidas da polícia e, também, estratégia para controle de território face aos grupos rivais.

Recupero aqui, de forma condensada (e com outras ênfases) o quadro descrito e as questões discutidas em outro lugar (Telles & Hirata, 2007). As microrregu-lações dos negócios da droga confundem-se, em muitos sentidos, com a gestão e arbitragem de problemas, desavenças, confl itos cotidianos. Brigas de vizinhos, confl itos de família, adolescentes desabusados, barulho excessivo tarde da noite, quer dizer: qualquer coisa que possa chamar a atenção da polícia ou provocar a hostilidade e a má vontade dos moradores; situação delicada e perigosa, pois é sempre assim que surgem as temidas denúncias anônimas que acionam a intervenção da polícia. A “biqueira” funciona ali como uma espécie de caixa de ressonância de tudo o que acontece no bairro � as informações ou rumores circulam por ali, e o patrão e seus “gerentes” conversam, discutem, ponderam e decidem como intervir e arbitrar confl itos corriqueiros e situações difíceis. E, também, para garantir o “lado certo da coisa errada”, quando as situações são provocadas por gente envolvida nos negócios do crime.

Por outro lado, a “biqueira” engendra outras tantas relações no bairro, elas próprias se estruturando em equilíbrios instáveis e sempre passíveis de desandar em tensões, confl itos, desafetos, desentendimentos, disputas e histórias de vin-gança pessoal. É todo um agenciamento das relações locais, também mobilizado para garantir a lealdade dos “funcionários” e a cumplicidade de suas famílias, para arbitrar confl itos que muitas vezes se confundem com desentendimentos pessoais ou desacertos de outros tempos; ou, então, para defi nir os limites que não devem ser ultrapassados, sobretudo, pelos mais jovens, na verdade garotos, quase crianças, quando passam a se sentir importantes e poderosos e criam problemas com os moradores e vizinhança.

Equilíbrios instáveis: estruturam-se entre essa dinâmica local e os igualmente instáveis acordos com a polícia. A rotina do pagamento regular da proteção muito frequentemente desanda na prática aberta da chantagem e extorsão. Espancamen-tos, chantagem sobre uns e outros, ameaças de prisão, verdadeiros sequestros com exigência de um alto preço pelo resgate. No alvo estão os “meninos da droga”. Mas não só: qualquer um que, nesse trânsito pelas fronteiras embaçadas do legal e ilegal, possa oferecer algum pretexto para pressão, chantagens e ameaças de prisão.

O fato é que essa gestão das relações cotidianas tangencia um feixe variado de ilegalismos que também interage com as redes de sociabilidade local nas fronteiras

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incertas entre o informal, o ilegal e o ilícito. Este, um segundo vetor das microrre-gulações dos negócios da droga e que diz respeito às modulações locais do “bazar contemporâneo”: práticas que transitam nas fronteiras borradas entre expedientes de sobrevivência, empreendimentos informais e negócios ilegais, vinculados ou não (e não necessariamente) seja à pequena criminalidade local, seja às redes mobili-zadas por esquemas mais pesados, como é o caso de roubo de carga, seja, ainda, como o próprio varejo da droga, às pontas pobres dos hoje expansivos e rendosos circuitos ilegais de uma economia globalizada. São práticas e redes sociais que atravessam e compõem a vida de um bairro de periferia. E criam outras tantas zonas de fricção que, também elas, precisam ser bem agenciadas para evitar com-plicações com a população local e, sobretudo, evitar ocorrências indesejáveis com a polícia: pequenos confl itos banais que, muitas vezes, se misturam com “histórias infames” da vida privada e que podem ter um desfecho violento; desacertos em torno de esquemas acionados pela pequena criminalidade local e que ameaçam desestabilizar alianças e acordos entre uns e outros; disputas entre grupos que atuam em territórios contíguos, as quais não poucas vezes passam por dentro das relações vicinais e das redes sociais próprias de bairros periféricos, já que seus personagens também transitam nos circuitos da sociabilidade local. Transversal a tudo isso, o pesado jogo de extorsão da polícia, sempre no fi o da navalha de uma guerra iminente, que pode ser acionada justamente pelo curto-circuito continua-mente prestes a explodir em algum ponto dessas redes superpostas e, por vezes, embaralhadas nos agenciamentos do varejo local da droga.

Eis a “Vida Loka” de que fala Hirata ao comentar a letra dos Racionais MC’s. Os acasos e o imponderável à espreita nas dobraduras do legal e ilegal, lícito e ilícito, entre “histórias infames”, disputas e desavenças nos negócios do crime, e o jogo pesado da polícia, oscilando entre acertos, mortes ou prisão. Mais concretamente: são esses pontos de fricção que exigem e ativam o “proceder” para evitar as soluções de sangue, frear a lógica da vingança e os ciclos infernais dos “mata-matas” que acompanharam toda a década de 1990. São nesses pontos que incidem as formas de arbitragem que oscilam entre as modalidades mais informais do “trocar uma ideia” à cenografi a regulada dos debates e seus protocolos de julgamento. Podem ser assuntos internos aos negócios do crime (“trairagens”, deslealdades, acordos não cumpridos), podem ser desavenças ativadas nos pontos de fricção dessas tramas embaralhadas dos ilegalismos, podem ser desafetos que viram contendas perigo-sas, na iminência de soluções de sangue. Das suas modalidades mais informais às mais ritualizadas, dos assuntos menores aos mais graves, o patrão ou gerente da “biqueira” sempre está presente. Conforme os casos, a gravidade do assunto, a amplitude do problema em pauta, o debate pode durar vários dias, pode envolver os patrões de “biqueiras” vizinhas, pessoas de outros bairros, com a participação, sempre, das fi guras do PCC, em contato com outros “irmãos” dentro e fora da prisão, em comunicação através dos seus celulares (cf. Hirata, 2010).

É uma espécie de tribunal em que as partes envolvidas são chamadas a dar sua palavra para esclarecer, justifi car, apresentar suas razões e, se for o caso, se

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desculpar. No debate estão sempre em jogo soluções de vida e de morte. O que vale é o poder da palavra. É um jogo (mais parece duelo) de provas – provas da palavra, da palavra empenhada, do argumento bem posto e aceito (ou não) em suas razões. O mediador é a fi gura central: uma fi gura do PCC, quase sempre de fora do bairro, que poucas pessoas conhecem, mas que impõe respeito porque é ele quem conduz os trabalhos e encaminha a deliberação fi nal. O resultado pode ser um acordo ou alguma forma de punição: um “corretivo”, a expulsão do bairro, proibição de vender drogas na região, outras. Ou, então, a morte – condenação sumária e irrevogável (cf. Hirata, 2010).

* * *

Pacifi cação de territórios? O termo é enganoso. De maneira imediata, é sem-pre possível se perguntar o que poderá acontecer se e quando o PCC perder o monopólio do mercado de drogas em São Paulo. Todos se fazem essa pergunta, também os trafi cantes e os moradores locais, todos com olhos voltados para o Rio de Janeiro e as sangrentas disputas entre “comandos” rivais. Mas isso são especulações, podem ser deixadas para um outro momento.

O termo é enganoso por outras razões. Foi freada a lógica da vingança que desencadeia ciclos devastadores de mortes. Mas a violência policial persiste e compõe o cenário desse mesmo território (e de todos os outros) “pacifi cado”. O mercado de proteção segue com suas rotinas, porém é instável, oscilante, tanto quanto os imponderáveis das microconjunturas políticas e dos rearranjos internos às forças policiais e equipes que dividem entre si (e disputam) essa preciosa fonte de renda e poder. Ali, em todos os lugares, continua vigorando o dito popular, discutido no capítulo anterior, “ou o acerto ou a morte, não a prisão”, assim é a periferia. Após as ações do PCC na cidade de São Paulo, maio de 2006, o Bairro X foi relativamente preservado da sucessão bruta de mortes ocorridas em outros lugares da periferia: 493 mortes em uma semana, perto de 1.000 no correr dos meses seguintes. Talvez uma geografi a dessas mortes possa esclarecer a lógica que presidiu a escolha de lugares e vítimas, acordos desfeitos em alguns lugares, revides, vinganças em outros. No Bairro X, os mercados locais de proteção foram desestabilizados, a chantagem e a extorsão foram pesadas, havia algo próximo à preparação de uma guerra.

Mas, então, será preciso colocar o que acontece nesse bairro (e outros) em perspectiva com o que vem ocorrendo na cidade. A assim chamada “resistência seguida de morte” persiste e tem aumentado nos últimos anos, conforme relatório da Human Rigths Watch, publicado em dezembro de 2009.21 Ainda mais: há

21 “No estado de São Paulo, o número de casos de “resistência seguida de morte”, embora seja menor do que no Rio, também é relativamente alto: durante os últimos cinco anos,

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evidências de um recrudescimento de grupos de extermínio a partir de 2006. De acordo com os casos relatados, a ação desses grupos deu-se como reação, quase imediata, aos ataques do PCC. E a prática persistiu nos meses e anos seguintes. Em muitas dessas mortes, há um modus operandi particular: “homens armados encapuzados chegam em motocicletas ou em carros sem placas, com vidros es-curos e atiram contra as vítimas” (2009: 49). Evidentes indícios de conluio com a polícia: quando chegam ao local, os policiais militares “perturbam a cena do crime”, removem os corpos e outras provas. Desde 2008, surgiram evidências de atuação, em municípios da Grande São Paulo, de um grupo chamado Hi-ghlanders: “o grupo recebeu esse apelido devido à prática horrenda de remover as cabeças de suas vítimas (essa era a prática no fi lme de fi cção com o título de Highlander)” (2009: 51).

Por outro lado, nos últimos anos, de forma mais evidente desde 2008, têm pipocado, em diversas regiões da periferia paulista, protestos de moradores contra a violência policial. Alguns deles, verdadeiros confrontos que resultaram, por sua vez, em intervenção agressiva das forças policiais, com a sequência conhecida de violência física, invasão de domicílios, prisões arbitrárias, espancamentos. Os casos mais conhecidos, amplamente noticiados pela grande imprensa, são o de Paraisó-polis (fevereiro de 2009) e Heliópolis (agosto de 2009), as duas maiores favelas da cidade de São Paulo. Nesse mesmo ano, outros oito casos. Em cada caso, em todos eles, o estopim foi um fato de violência policial: o assassinato de um homem durante uma abordagem policial, em Paraisópolis; uma estudante alvejada por um tiro da Guarda Civil Metropolitana, em Heliópolis; a morte de um mecânico pela Polícia Militar na favela Chica Luiza (zona norte), a execução de um rapaz tido como trafi cante pela polícia, na favela Filhos da Terra (zona norte); a prisão de um jovem autuado por tráfi co de drogas, também a mãe, “por desacato”, na Favela Tiquiatira (zona leste). A novidade nesses casos não é a violência policial em si mesma, mas os sinais de um patamar de tolerância que parece estar se rompendo. Também um padrão de protesto que não é comum no repertório popular paulista e que evoca algo próximo às émeutes francesas, com suas barricadas, fogo em carros e ônibus, enfrentamentos. O que isso signifi ca, é muito cedo para saber; porém, são sinais de uma confl ituosidade que entra em ressonância com protestos e enfrentamentos em torno de desapropriações ou remoções de moradores em regiões de ocupação de terras e favelas, sempre atravessados por uma mistura de procedimentos e ações das forças da ordem que oscilam entre o dentro da lei e o fora da lei, uso dos instrumentos da lei e uso de procedimentos extralegais.

Nesse cenário, nada pacifi cado, vale refl etir sobre um “debate” relatado por Daniel Hirata (2010). Um caso interessantíssimo. A começar do lugar em que

por exemplo, houve mais mortes em supostos episódios de “resistência seguida de morte” no estado de São Paulo (2.176 mortes) do que mortes cometidas pela polícia em toda a África do Sul (1.623), um país com taxas de homicídio superiores a São Paulo”. Human Rights Watch (2009: 6).

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ocorre: uma grande favela paulista bastante urbanizada e sedimentada, coalhada de ONGs, fóruns de participação popular, presença de fundações empresariais e seus programas sociais, exemplos celebrados e premiados de “boas práticas”. Enfi m, um lugar bastante governamentalizado, para evocar as questões lançadas na primeira parte deste capítulo.

Um jovem casal em início de namoro. A notícia chega da prisão: o ex-namorado da garota ameaçava o rapaz de morte, teria dito a amigos que haveria de matar o outro assim que saísse da prisão, o que aconteceria em breve. Os rumores chegaram aos ouvidos dos patrões da “biqueira” local. Entram em contato com o preso vingador, que confi rma suas intenções: “talaricagem [traição] se resolve matando”. O debate foi aberto, com dia e hora marcada, em um apartamento de um conjunto habitacional nas imediações. Presentes: o casal de namorados, os patrões da “biqueira” e o “sintonia” do PCC. Depois de esclarecido o problema, estabelecem o contato com o rapaz preso, tendo a mediação, dentro da prisão, de um outro “irmão” do PCC. Um debate realizado com o uso dos celulares. Cada qual tomou a palavra e esclareceu sua própria versão da história. A garota confi rma que havia terminado o namoro com o outro, antes mesmo de ele ser preso. Os “irmãos” do PCC, dentro e fora da prisão, ponderam e deliberam. O problema todo era saber o que poderia acontecer quando o rapaz saísse da prisão. Perguntam e o namorado ameaçado confi rma que temia por sua vida, apesar do acordo ter sido selado naquele momento. A decisão é ardilosa: a partir daquele preciso momento, o rapaz preso passava a ser responsável pela vida do outro. Qualquer coisa que ocorresse com ele, seria de sua inteira responsabilidade. Mesmo no caso de ocorrer algo sem nenhuma relação com essa história, ele seria condenado sumariamente à morte.

Aqui, nesse caso, todos os fi os se cruzam e se entrelaçam: afetos, histórias cotidianas e o crime; o bairro, a prisão e os vasos comunicantes entre um e outro; a lógica da vingança na qual ecoam as matanças dos outros anos e os artifícios inventados para detê-la. Porém, são esses artifícios ardilosos que merecem atenção: nesse caso, algo como enroscar a morte nela mesma, ameaça de morte contra ameaça de morte, garantia da vida pela ameaça da morte. Gestão dos problemas da vida e de morte.

Um assunto miúdo, uma história minúscula, mas é por isso mesmo que talvez ela nos entregue a chave para ver o que está em jogo na “pacifi cação” desses territórios em um cenário urbano travejado por uma confl ituosidade, aberta ou latente, em torno de procedimentos e formas de violência extralegal. Entre a violência extralegal acionada pela polícia, a face legal da punição e os debates do PCC, talvez se possa arriscar e dizer que, nisso tudo, o que parece estar ocorrendo são poderes de soberania em disputa, ali mesmo onde está em jogo a produção da ordem, portanto, também ela em disputa.

Poderes de soberania em disputa: é uma pista possível a ser trabalhada. Se isso for pertinente, então também será preciso qualifi car melhor a questão. Pois um não replica o outro; o PCC e seus debates não são o decalque das formas do

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Estado.22 Não se trata, como muitas vezes se diz, da aplicação tirânica de um corpo fechado de normas, regras, leis imperativas emanadas de um corpo central. O PCC e seus “debates” não são uma replicação das formas verticalizadas do Estado. Não operam como Estado paralelo: mais do que um equívoco, seria uma forma de des-conhecimento insistir nessa tecla que muitas vezes se repete quando o assunto vem à baila. São outras as lógicas. Mas tampouco se avançaria, insis-tindo em encontrar a chave explicativa nos modos de funcionamento interno da organização, até porque esta é mais porosa e mais modular (não modelar) do que se supõe, muito distante dos modelos da máfi a e congêneres com suas estruturas piramidais, fechadas, hierarquias e lugares normativamente fi xados. Será preciso entender melhor como se dão essas transações com as forças da ordem, com o sistema prisional e com as populações dos bairros em que se fazem presentes (cf. Salla, 2009). Será preciso ainda entender melhor o que está em jogo nessas conexões que parecem se fazer nas dobraduras da vida social.

Mesmo na hipótese de que essa situação não se mantenha, de que o jogo vire na eventualidade do PCC perder o controle sobre o mercado de drogas, é preciso reconhecer que isso já produziu efeitos, fatos e acontecimentos que compõem e se compõem com a dinâmica urbana de São Paulo. E não é nada irrelevante lembrar que são fatos e acontecimentos que se processam no coração de uma metrópole hoje amplamente celebrada por sua modernidade globalizada. Ramifi cam-se pe-los meandros dos ilegalismos engendrados no centro dinâmico da cidade, e do mundo contemporâneo. Os sentidos de ordem (e seu inverso) em disputa: talvez seja nisso que se possa apreender o que está em jogo nesses espaços produzidos como espaços de exceção e que estão no cerne dos modos de funcionamento do Estado, nessas pontas em que sua presença afeta as vidas e as formas de vida.

22 Essa é questão discutida por Marques (2009) e Biondi (2010).

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Nem conclusões nem considerações fi nais

O mapa dos ilegalismos continua a trabalhar sob o modelo da legalidade, diz Deleuze ao comentar o “Vigiar e Punir”. E, com isso, Foucault mostra que “a lei não é um estado de paz nem o resultado de uma guerra ganha: ela é a própria guerra e a estratégia dessa guerra em ato, exatamente como o poder não é uma propriedade adquirida pela classe dominante, mas um exercício atual de sua estratégia” (Deleuze, 1988: 39).

Talvez seja essa uma pista interessante a ser seguida. Algo como reativar o sentido de disputa, luta e confl ito contido nos modos de produção de lei e ordem, esse amálgama de acasos, casos, ações, circunstâncias singulares e acontecimen-tos ativados nas disputas, embates e jogos de força, tal como nos ensina a verve nietzschiana de Foucault e que, em algum momento, se sedimenta como estrato, estratifi cações, lei e ordem. Talvez nisso se possa apreender as linhas de força que atravessam esses embates, surdos ou abertos, o ponto de emergência de aconteci-mentos que redefi nem o que está posto como presente e abrem a fenda pela qual o embate de possíveis (incertos e indeterminados) se põe como atualidade.

Mas, por isso mesmo, é de interesse perscrutar o que acontece nesses territórios incertos. Ao seguir o modo como pessoas, bens, produtos e riquezas circulam nas tênues fronteiras do legal-ilegal, também as histórias, percepções, códigos e repertórios, temos os sinais de demarcações da vida social, diagramas de relações e formas sociais engendradas nessas dobras do legal e ilegal. Em cada situação, em contextos situados, os sinais de uma disputa que desloca, faz e refaz a demarcação entre a lei e o extra-legal, entre justiça e força, entre acordos pac-tuados e violência, entre a ordem e seu avesso. Também os limiares do tolerável e intolerável, esse ponto que estala nas formas abertas de confl ito e que também se pode ouvir nos “rumores de multidão” (Thompson, 1979).

É isso que se inscreve, em fi ligrana, nas formas de vida e nos percursos das “histórias minúsculas” que as atravessam. É o que se explicita nas arenas de disputas e confl itos em as próprias fronteiras da economia estão se redefi nindo nos meandros (também em disputa) dos mercados ditos informais, o bazar me-tropolitano discutido no capítulo cinco. E essa é também uma maneira possível de ver (e descrever) o que acontece nos territórios produzidos como “margem”, tal como fi cou sugerido no capítulo 6. Talvez seja essa a experimentação empírica e teórica que somos levados a fazer ao seguirmos os traços dos ilegalismos nos meandros do mundo urbano atual. Pistas, perguntas, interrogações abertas ou reabertas nessa prospecção que vai lançando os vetores por onde o exercício do pensamento também se faz pelas vias de uma deambulação que segue os pontos e linhas de uma cartografi a não previamente defi nida do social.

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