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A cidadania sob a perspectiva da administração pública gerencial e do paradigma do cliente Gisláne Ferreira Barbosa (Instituto Federal do Tocantins) [email protected] Leandro Ferreira da Silva (Ministério Público do Estado do Tocantins) [email protected] Resumo: A cidadania é um tema atemporal. Desde a idade antiga se fala em cidadão, entretanto, houve uma grande evolução no significado do termo, que foi cunhada através de um longo processo de ressignificação. Nessa dinâmica histórica constituída de reinos, guerras, revoluções e de novas ideais trazidas por grandes pensadores, observa-se, em regra, uma relação bipolar entre o Estado, constituído em suas mais diversas formas, e o povo também estruturado de forma diversificada. Essa relação é fortemente influenciada pelo modelo de administração pública adotado pelo Estado em cada momento da história. O objetivo deste artigo é apresentar como o Estado se organizou ao longo da história na promoção da cidadania, bem como apresenta o papel do Estado (atual) sob a perspectiva da administração gerencial, tendo como pano de fundo o paradigma do cliente para responder às demandas da sociedade. Para tanto, foi realizada revisões na bibliografia sobre os temas referentes à cidadania e a administração pública. Palavras-chave: cidadania, administração pública, paradigma do cliente. Citizenship in the perspective of new public management and client paradigm Abstract Citizenship is a timeless theme from the old age it comes to citizen, however, truth be told, there was a great evolution in the meaning of the term, which was coined by a long process of reframing. In this historical dynamics composed of kingdoms, wars, revolutions, and new ideas brought by great thinkers, there is, as a rule, a bipolar relationship between the state, constituted in its various forms and the people also structured in a diversified manner. The aim of this paper and draw a parallel between citizenship and the way the state is organized starting from a perspective of general management with the background of the client paradigm. Key-words: Citizenship, public management, client paradigm. 1. Introdução Após a redemocratização do Brasil e a promulgação da Constituição Federal de 1988, também denominada de Constituição Cidadã, intensificaram-se as discussões sobre o papel da cidadania e, simultaneamente, de como o Estado deveria se organizar administrativamente diante desse novo arcabouço de direitos e deveres positivados pelos constituintes. A (re)construção da cidadania, é uma temática que perpassa a história da humanidade, metamorfoseando-se à medida que o mundo evoluía e que os processos administrativos se

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A cidadania sob a perspectiva da administração pública gerencial e doparadigma do cliente

Gisláne Ferreira Barbosa (Instituto Federal do Tocantins) [email protected] Ferreira da Silva (Ministério Público do Estado do Tocantins) [email protected]

Resumo:A cidadania é um tema atemporal. Desde a idade antiga se fala em cidadão, entretanto, houve umagrande evolução no significado do termo, que foi cunhada através de um longo processo deressignificação. Nessa dinâmica histórica constituída de reinos, guerras, revoluções e de novas ideaistrazidas por grandes pensadores, observa-se, em regra, uma relação bipolar entre o Estado, constituídoem suas mais diversas formas, e o povo também estruturado de forma diversificada. Essa relação éfortemente influenciada pelo modelo de administração pública adotado pelo Estado em cada momentoda história. O objetivo deste artigo é apresentar como o Estado se organizou ao longo da história napromoção da cidadania, bem como apresenta o papel do Estado (atual) sob a perspectiva daadministração gerencial, tendo como pano de fundo o paradigma do cliente para responder àsdemandas da sociedade. Para tanto, foi realizada revisões na bibliografia sobre os temas referentes àcidadania e a administração pública.Palavras-chave: cidadania, administração pública, paradigma do cliente.

Citizenship in the perspective of new public management and clientparadigm

AbstractCitizenship is a timeless theme from the old age it comes to citizen, however, truth be told, there was agreat evolution in the meaning of the term, which was coined by a long process of reframing. In thishistorical dynamics composed of kingdoms, wars, revolutions, and new ideas brought by greatthinkers, there is, as a rule, a bipolar relationship between the state, constituted in its various forms andthe people also structured in a diversified manner. The aim of this paper and draw a parallel betweencitizenship and the way the state is organized starting from a perspective of general management withthe background of the client paradigm.Key-words: Citizenship, public management, client paradigm.

1. Introdução

Após a redemocratização do Brasil e a promulgação da Constituição Federal de 1988, tambémdenominada de Constituição Cidadã, intensificaram-se as discussões sobre o papel dacidadania e, simultaneamente, de como o Estado deveria se organizar administrativamentediante desse novo arcabouço de direitos e deveres positivados pelos constituintes.

A (re)construção da cidadania, é uma temática que perpassa a história da humanidade,metamorfoseando-se à medida que o mundo evoluía e que os processos administrativos se

desenvolviam. Nesse longo caminho formas de governo foram implementadas, a própriademocracia se reinventou, e, principalmente no final do século XX início do XXI, com aconsolidação das ciências administrativas, os processos gerenciais progrediramexponencialmente impactando sobremaneira as organizações públicas e a forma como estastratam aqueles que são o destino dos seus serviços e produtos.

Diante do exposto acima, é importante, então, refletir sobre a cidadania, sobre seu significado,sua evolução histórica e suas perspectivas. Assim, o presente artigo faz uma apresentação decomo o Estado se organizou ao longo da história na promoção da cidadania, bem comoapresenta o papel do Estado atual sob a perspectiva da administração gerencial, tendo comopano de fundo o paradigma do cliente para responder às demandas da sociedade.

O artigo está estruturado em mais 4 seções, além dessa introdução. Na seção seguinteapresenta-se, de forma breve uma historiografia da construção da cidadania no mundo, e emseguida uma apresentação de como está sendo construído esse processo no Brasil. Na seção 4tem- se uma caracterização da cidadania sob a perspectiva da Administração PúblicaGerencial e do Paradigma do Cliente e por fim, algumas considerações finais.

2. Cidadania na história

O paradigma do cliente está intrinsecamente relacionado ao tema cidadania, pois, nosprimórdios da história não se falava em cidadão-cliente, mas apenas em cidadão, porém, éclaro, que este conceito sofreu diversas interpretações no seu significado ao longo dosséculos, Baracho (1994, p.1) assevera que a palavra “cidadania provém do latim civitatem quesignifica cidade”, expressão que remete às cidades-estados antigas; tipo de organização a queé atribuído, pela maioria dos historiadores, o conceito tradicional de cidadania. Nesta fase acidadania se restringia à participação política de determinadas classes sociais. Cidadão era oque morava na cidade e participava de seus negócios.

Na Grécia antiga, a cidadania era confundida com a origem do indivíduo, pois somente algunspoderiam usufruir e exercer direitos, evidentemente se tratava de uma pequena camada dasociedade, dominada por um regime aristocrático. Poucos eram os privilegiados que detinhamessa honra, normalmente era o membro masculino da comunidade, que poderia se dedicar àsdiscussões e gerir a polis, as cidades gregas.

No que tange à Roma antiga Pinski afirma o seguinte“A cidadania romana, por esta razão, era atributo dos homens livres.No entanto, poucos homens livres considerar-se-iam cidadãos. EmRoma, havia três distintas classes sociais, qual sejam, os patrícios(descendentes dos povos fundadores), os plebeus (descendentes dospovos itálicos, estrangeiros) e os escravos (prisioneiros de guerra eaqueles que alcançavam esta posição por dívida). Havia também osclientes, que eram homens livres, mas dependentes de umaristocrata. Os clientes tinham uma relação de fidelidade com umpatrício, patrono a quem deviam serviços e apoios diversos e de quemrecebiam terra e proteção” (PINSKY, 2003, p. 50) Grifei

Percebe-se que a cidadania romana, em regra, era restrita aos patrícios descendentes dosfundadores, que formavam a nobreza de sangue e hereditária, tornando-se um grupopraticamente inacessível. Que por sua vez tinham ascensão aos cargos públicos e aos demaisbenefícios da participação social efetiva, direitos civis, políticos e religiosos.

Nas afirmações de Bernades (1995, p.27) “o Direito Romano regulamentava as diferençasentre cidadão e não-cidadãos. O Direito Civil regulava a vida do cidadão, enquanto aoestrangeiro se aplicava o Direitos das gentes”. A distinção era simples: considerava-seestrangeiro quem não era cidadão. Não obstante, já era tendência de Roma, desde o fim daRepública, estender uma paulatina cidadania a todos seus súditos à medida que expandia seusdomínios.

No período medievo a temática da cidadania mostrou-se enfraquecida especialmente pelafragmentação de poder e pela ruralização da população, que devido às dificuldades trazidaspelo contexto e pela autonomia concedida aos senhores feudais, não possibilitava o exercíciode direitos.

Para Marshall (1967, p.64) “na sociedade medieval, o status era o que possibilitava adistinção de classes, assim como se tornava a medida de desigualdade”. Desta forma, por nãohaver um código uniforme de direitos e deveres que regulasse a participação na sociedade detodas as pessoas, sejam elas nobres, plebeus, livres e servos, inexistia, por consequência, umprincípio de igualdade, que se contrastaria com a desigualdade de classes.

Por outro lado, diz Moisés (2005, p. 71), que “na baixa idade média os camponeses deixaramo feudo e voltaram às cidades, especialmente por causa da autonomia de certas cidades, o queas transformou em lugares sem igual para a prática da liberdade”. Desta forma, o burgo1

projeta-se como a polis da antiguidade clássica, e o burguês como a representação do cidadão,sendo a cidade o seu ambiente apropriado. Para Bonavides (2003) a decadência e o fim dofeudalismo vieram naturalmente com a formação dos Estados Nacionais. A sociedade, emboraainda organizada em nobreza, clero e povo, vê o poder retornar às mãos do rei e o nascimentodo Estado unitário ou centralizador. Nas colocações de Vieira (2000) a incompatibilidadeentre a monarquia absoluta e a cidadania (de inspiração greco-romana e sua liberdade civil),obrigou os pensadores modernos a redefinir o que seria sua própria cidadania. Nessemomento ampliou-se a discussão quanto aos direitos e deveres inerentes àqueles que seriamsujeitos das liberdades.

Movidos pela chama de filósofos como Locke e Rousseau que defenderam a democracialiberal, distante do direito divino e que tinha por base a razão. Ideais que muito influenciaramas lutas políticas da época, transformaram-se em alicerce para os movimentos deindependência de colônias americanas e de revoluções como a Francesa e a Inglesa.Entretanto, neste período, diante do fato de que a sociedade ideal apontava desigualdadessociais, a cidadania também foi tolhida, de certa forma, de seu sentido mais amplo. Orenascimento permitiu a construção das bases para o nascimento da moderna cidadania, empleno século XVIII, enquanto se deflagrava as Revoluções Estadunidense, de 1776, eFrancesa, de 1789, que inseriram no contexto mundial um novo tipo de Estado, comformatação liberal, carregando consigo os ideais de liberdade e igualdade e embora tivessemuma origem burguesa auxiliaram na busca pela inclusão social. Aliado a tudo istodespontavam as lutas sociais. A cidadania passa, por fim, a manter íntima vinculação com orelacionamento entre a sociedade política e seus membros. Nas palavras de Barbalet (1989,p.13) “o esforço teórico do iluminismo é facilmente explicado tendo em vista o pensamentopolítico contextualizado, influenciando, as grandes revoluções da época”. A combalidacidadania da Idade Média adentra a Idade Moderna com uma roupagem nova. Adquirir a

1fortaleza ou sítio fortificado, ocupado por uma guarnição militar e pelos civis necessários a sua manutenção, que, em caso de ataque inimigo, servia de abrigo às populações que viviam fora de suas muralhas. Wikipédia acesso 03/02/16

cidadania não mais estava fincada na ideia de pertencer à comunidade, como na Grécia antiga,sua concessão significava o exercício dos direitos.

3. Cidadania no Brasil

Segundo Carvalho (2002) tratar da cidadania no contexto brasileiro leva-nos a uma reflexãode como o processo de colonização do Brasil se deu de forma a enraizar na população umsenso de desprezo por valores sociais e normas de relação com o Estado, que ora se impunhaàqueles que até então viviam a seu modo e, que estavam à margem de todo um contextoeuropeu de discussões sobre o tema2. Esse desprezo por questões e valores sociais foiconstruído pela abordagem utilizada pelos colonizadores que aqui chegaram, este ambienteteve como o fator mais negativo para a cidadania a escravidão

A escravidão, especialmente, se constituiu como uma das principais características dasociedade brasileira nos primeiros anos da colonização. “Pelo que se depreende a escravidãopenetrava em todas as classes, em todos os lugares, em todos os níveis da sociedade: asociedade colonial era escravista de alto a baixo”. (CARVALHO, 2002, p. 16).

O que se percebe é que mesmo com as mudanças ocorridas no velho mundo, com a chegadada modernidade e posteriormente da idade contemporânea, o Brasil se manteve com umaestrutura absolutista, principalmente com a vinda da família real para a Colônia, restando aopovo, submeter-se como súditos da coroa esperando desta alguma benevolência. Nessesentido Carvalho (2002, p. 51) afirma que “não podendo haver comunidade de cidadãos emEstado absolutista, nem comunidade humana em plantação escravista, o que restava datradição comunitária eram apelos, quase sempre ignorados, em favor de um tratamentobenevolente dos súditos e dos escravos”.

Note-se nas palavras de Luca (2005) que a cidadania não figurava como resultado da lutapolítica, antes dependia da benemerência do Estado, ou seja, através da proximidade com opoder e da troca de favores asseguravam o acesso a alguns direitos.

“A consequente ausência do Estado como aplicador das leis emoderador das relações sociais fazia que o cidadão comum ourecorresse à proteção dos grandes proprietários, ou ficava àmercê do arbítrio dos mais fortes, redundando-se na falta deum poder que pudesse ser chamado de público, que pudesse sera garantia da igualdade de todos perante a lei, que pudesse ser agarantia dos direitos civis”. (CARVALHO, 2002, p 22/23)Grifei

Com o advento da independência

“Implantou-se um governo ao estilo das monarquiasconstitucionais e representativas europeias. Mas não se tocouna escravidão, apesar da pressão inglesa para aboli-la ou, pelomenos, para interromper o tráfico de escravos. Com todo o seuliberalismo, a Constituição ignorou a escravidão, como se elanão existisse. Aliás, como vimos, nem a revolta Republicana de1817 ousou propor a libertação dos escravos. Assim, apesar deconstituir um avanço no que se refere aos direitos políticos, aindependência, feita com a manutenção da escravidão, trazia

2 Os povos que se encontravam no Brasil antes do descobrimento possuíam suas próprias normas sociais, econômicas e religiosas.

em si grandes limitações aos direitos civis.” (CARVALHO,2002, p.28)

Aqueles que foram considerados cidadãos “eram as mesmas pessoas que tinham vivido os três séculos decolonização nas condições que já foram descritas. Mais de 85%eram analfabetos, incapazes de ler um jornal, um decreto dogoverno, um alvará da justiça, uma postura municipal. Entre osanalfabetos incluíam-se muitos dos grandes proprietáriosrurais. Mais de 90% da população vivia em áreas rurais, sob ocontrole ou a influência dos grandes proprietários. Nas cidades,muitos votantes eram funcionários públicos controlados pelogoverno”. (CARVALHO, 2002, p.32)

Assim, os brasileiros caminharam sob uma espécie de monarquia parlamentarista até oadvento da abolição da escravatura e, mesmo com a proclamação da República, em 1889, oquadro não se alterou, pois, do ponto de vista da representação política, a Primeira Repúblicanão significou grande mudança, haja vista que a população não havia sido preparada e nemtinha uma experiência política prévia que preparasse os indivíduos para exercer suasobrigações cívicas e obter uma compreensão exata dos seus direitos.

Entretanto, nesse período, grandes mudanças ocorreram, as décadas de 1930 e 1940 foramdivisores de água para as transformações sociais e políticas no Brasil. Grandes avanços noscampos sociais, principalmente nos direitos trabalhistas, foram implementadas, contudo,houve um retrocesso nos direitos políticos, devido à instabilidade na alternância de regimesdemocráticos e autoritários. Por conseguinte a fragilidade da república, em especial, ademocracia, sofreu com regimes autocráticos estabelecidos nesse período. Para Luca (2005)não há dúvidas quanto ao retrocesso, a lenta progressão dos direitos civis e políticos nahistória brasileira, foi ainda mais combalida com a implantação dos regimes ditatoriais (1937-1945) e (1964-1985), apesar de constar formalmente nas constituições os direitos na vida realeram precários para grande maioria da população, muitos deles foram suspensos, sobretudo aliberdade de expressão do pensamento, de organização, as manifestações políticas eramproibidas, o governo legislava por decreto, a censura controlava a imprensa, os carceres seenchiam de inimigos do regime.

Na perspectiva que temos abordado é possível reconhecer que os governos militaresmantiveram alguns direitos, como o voto, apesar de esvaziado de sentido, direitos sociais ecivis, os retrocessos foram claros, e somente começaram ser superados a partir de 1974, aindaque de forma ambígua, houve um processo inicial de redemocratização, que se consolidou nosanos 1980, especialmente com a criação da Assembleia Nacional Constituinte, que depois dequase dois anos de debates e estudos promulgou a Constituição de 1988, reconhecida como aconstituição mais liberal e democrática que o país já teve, merecendo por isso o nome deConstituição Cidadã, CARVALHO (2002). Por trazer no seu cerne direitos e garantias aocidadão, a Constituição de 1988 trouxe uma sensação, quase que inédita, de que podiamexercer a cidadania em um sentido mais amplo.

Neste contexto de redemocratização Naves (2005) afirma que a compreensão do ser cidadãono Brasil de hoje só adquire sentido pleno quando confrontada às transformações sofridas, nasúltimas décadas, pela própria ordem mundial. Quando então se percebe o quanto ainda sepode avançar, Carvalho (2005) diz que, dos direitos que compõem a cidadania, no Brasil sãoainda os civis que apresentam as maiores deficiências em termos de seu conhecimento,

extensão e garantias. A parcela da população que pode contar com a proteção da lei épequena, mesmo nos grandes centros.

Reportamo-nos às palavras de Waldman (2005) que diz que a cidadania é, em geral, avaliadana ótica do cidadão no tocante às possibilidades e potencialidades que este pode ou poderiadesfrutar no seu relacionamento com o Estado e com a sociedade no seu sentido mais amplo.A cidadania associar-se-ia a um modo de vida visceralmente regrado pela existência emcomunidade, evidente na própria origem da palavra, decorrente do latim civitas, isto é, cidade.

À guisa de todo o processo de construção e ressignificação, em síntese pode-se dizer que nosconceitos de (BONAVIDES, MIRANDA e AGRA, 2009) a cidadania teve ampliada suaperspectiva na vida dos indivíduos não sendo apenas o voto sua expressão máxima, mas oacesso a direitos sociais (saúde, educação, segurança, previdência) e econômicos (saláriojusto, emprego) que permitem que o cidadão possa desenvolver todas as suas potencialidades,incluindo a de participar de forma ativa, organizada e consciente, da construção da vidacoletiva no Estado democrático.

4. Cidadania sob a perspectiva da Administração Pública Gerencial e do Paradigma doCliente

Todo essa contextualização histórico-conceitual que apresentamos nos tópicos anteriores nosconduziram aos Estados contemporâneos, em especial nos países ocidentais, onde a grandemaioria possui governos democráticos, quer sejam em repúblicas (presidencialistas ouparlamentaristas) ou monarquias (em regra parlamentaristas), a concepção estrutural destesEstados desenvolveu um modelo governamental que é atualmente denominado AdministraçãoPública Gerencial, que tem como uma de suas principais características o foco voltado para ocidadão.

Conforme menciona Abrucio (1997) as implicações do modelo gerencial são objeto dediscussões em diversos países, com a finalidade de mudar estruturas antigas proporcionandoum redirecionamento das atividades para modelos que prestigiem a avaliação de desempenho,novas formas de controlar o orçamento e em especial que moldem os serviços públicos deacordo com as preferências dos consumidores. O gerencialismo foi implantado inicialmenteno Governo da então Primeira-Ministra inglesa Margareth Thatcher em 1979, Santos (2003)destaca que foram implementados programas de eficiência com relatórios de pesquisa eavaliação, criação de agências autônomas, normas de Direito do Cidadão, isso possibilitouserviços públicos mais flexíveis, descentralizados, orientados para o cidadão. Nos anos 1980sob a Presidência de Ronald Reagan os Estados Unidos também aderiram ao enfoquegerencial (POLLITT, 1990 apud ABRUCIO, 1997) aduz que o modelo americano não obtevesucesso em algumas questões como a social e de a pessoal.

Essa nova concepção do Estado, em que se começou a implantar uma administraçãogerencial, é chamada também de Nova Gestão Pública (“New Public Management” ou NPMem inglês). Algumas características básicas formataram o início da administração gerencial,como uma forte orientação para o cidadão e para a obtenção de resultados, estabelecimento deprocesso de confiança nos funcionários públicos, ainda que limitada, porém a Nova GestãoPública não foi concebida pronta, ela passou por diversos processos evolutivos até seestabelecer como algo viável para os Estados. Três grandes momentos foram fundamentaispara essa estruturação, são eles: Managerialism; Consumerism e o Public Service Orientation– PSO. Discorreremos brevemente sobre cada um deles.

4.1 Managerialism

O primeiro impulso da Nova Gestão Pública (NPM) veio com o Managerialism, tambémconhecido como gerencialismo puro. De acordo com Abrucio (1997), a Inglaterra, no governoThatcher, foi um dos primeiros países a adotar os conceitos do NPM. Nesta visão, o cidadão éencarado pelo Estado como contribuinte (financiador do Estado), que deve ter seus recursosgastos de maneira mais consciente.

Rennó (2015) diz que em um primeiro momento, o gerencialismo focou na eficiência,considerando o cidadão como um contribuinte (taxpayers), ou seja, é aquele que financia osistema. Diante deste prisma o cidadão é aquele que paga impostos e seus direitos estão decerta forma vinculados a essa contribuição, pois foi sob a égide da questão financeira, tanto naGrã-Bretanha como nos Estados Unidos, que o modelo gerencial puro foi implantado.

Rennó (2001) afirma que em um primeiro momento, o gerencialismo focou na eficiência,considerando o cidadão como um contribuinte (taxpayers), ou seja, é aquele que financia osistema. Diante deste prisma o cidadão é aquele que paga impostos e seus direitos estão decerta forma vinculados a essa contribuição, pois foi sob a égide da questão financeira, tantonos Estados Unidos como na Grã-Bretanha, que o modelo gerencial puro foi implantado. OManagerialism seria utilizado no setor público, neste contexto, para diminuir os gastos emuma era de escassez e para aumentar a eficiência governamental. Em suma, Pollitt (1990)afirma que o gerencialismo puro tinha como eixo central o conceito de produtividade.

Ao enfocar a estratégia da eficiência como uma das prioridades o gerencialismo puro acabouimplementando controles e sistemas de medição demasiadamente rígidos e de certo modoineficazes, semelhantes, resguardadas as proporções, em alguns casos à burocraciawerberiana. Essa perspectiva intraorganizacional deixava de considerar o caráter político daadministração pública, o qual foi subestimado na implantação do modelo puro dogerencialismo.

4.2 Consumerism

O que se depreende em Abrucio (1997) é que faltava ao modelo puro era uma visão de que osserviços públicos deveriam ser prestados com qualidade e com foco nas necessidades dos“clientes” e não com base nas necessidades da máquina pública. Esta nova visão não renegouos princípios do gerencialismo puro, mas acrescentou outras variáveis e prioridades. Foi oinício do que se chama de “paradigma do cliente” na administração pública. A preocupaçãodeixou somente de ser com os custos e a produtividade para ser voltada a “fazer melhor” –entregar serviços de qualidade para a sociedade.

A satisfação do cliente vira o foco e a qualidade do serviço a ferramenta principal. Noconsumerism funciona a lógica gerencial da eficiência e da eficácia nos resultadosperseguidos. “É no consumerism que surge o paradigma do cliente na gestão pública”(Abrucio, 1997 p.21). Assim, a partir da implantação da qualidade e da flexibilidade visandoao melhor atendimento possível, o conceito de cliente até então utilizado somente nasempresas é transportado para o setor público. Uma das características deste modelo foi adescentralização do processo decisório, com a ideia de delegar poderes para quem estáefetivamente envolvido na prestação do serviço ao cliente. Pois assim, supunha-se, asdecisões seriam mais rápidas e o próprio cidadão poderia acompanhar o processo decisório ecobrar do agente público que gerencia o processo.

Entretanto as principais críticas direcionadas ao Consumerism vieram exatamente doproblema de se considerar o cidadão um simples cliente, pois apesar de ser uma evolução doque existia antigamente no gerencialismo puro, não se adapta perfeitamente ao realrelacionamento que deve existir entre o Estado e seus cidadãos. O termo cliente traz a noçãode tratamento diferenciado aos que podem apresentar alguma vantagem, à semelhança do queocorre nas atividades privadas, enquanto o Estado deve ser isonômico.

4.3 Public Service Orientation – PSO

Com o PSO, que é a versão atual ou mais moderna da Nova Gestão Pública (ou NPM), entra anoção de tratamento nos serviços públicos não somente como “cliente”, mas como cidadão –uma noção mais ampla do que a de cliente, com direitos e deveres. Ou seja, neste caso, ocidadão não só pode como deve supervisionar a gestão dos recursos públicos e ofuncionamento do Estado como um todo. Os princípios do PSO são temas como a equidade, ajustiça, a transparência, a accountability, bem como a participação popular. (ABRUCIO,1997)

Ampliando o debate iniciado no Consumerism a descentralização das atividades, dos acessosaos órgãos e dos serviços públicos, no PSO não é vista somente como uma maneira demelhorar a prestação daqueles, mas como um meio de possibilitar a participação popular,criando-se uma arena que aumente a participação política dos cidadãos. Desta forma, Rennó(2015), esclarece que se busca trazer o cidadão para dentro da esfera do funcionamento doEstado, de modo que ele possa direcionar a maioria das ações do Estado. Nessa visão, sãointroduzidas duas importantes inovações: uma no campo da descentralização, valorizando-acomo meio de implementação de políticas públicas; outra a partir da mudança do conceito decidadão, que evolui de uma referência individual de mero consumidor de serviços, no segundomodelo, para uma conotação mais coletiva, incluindo seus deveres e direitos.

Portanto, a visão atual é a de que o Estado deve não só prestar serviços de qualidade e tratarbem seus cidadãos, mas que deve proporcionar meios que possibilitem a cobrança deresultados e a participação destes cidadãos nas políticas públicas, de modo que o cidadãodeixe de ser passivo diante do Estado para uma postura mais ativa.

Assim, o Public Service Orientation tem como uma de suas ideias chave a conjugação entre aaccountability e o binômio justiça/equidade. Para tanto, é preciso que no processo deaprendizado social na esfera pública se consiga uma nova cultura cívica, que congreguepolíticos, funcionários e cidadãos.

Modelo Managerialism

Contribuintes Eficiência

Modelo Consumerism

Clientes Efetividade

Modelo Public Service Oriented (PSO)

Cidadão EquidadeFonte: Rennó (2015)

Figura 1 – Evolução da Administração Gerencial

5. Considerações finais

A partir da organização das sociedades em comunidades, a relação entre os indivíduos e oEstado, bem como as relações horizontais privadas tiveram que passar por diversasadaptações a fim de reger os fluxos do exercício de direitos e deveres que a cada momentofloresciam com o desenvolvimento da humanidade e do surgimento de multiformes relaçõespolíticas, sociais, econômicas e culturais.

Ter cidadania, ser cidadão, ainda hoje é para alguns objeto de desejo, basta pensarmos nosmilhões de refugiados existentes no mundo hodierno. Entretanto, qual é a forma? O que seencontra na substância deste objeto de desejo de muitos? Certamente, não é o conceitosurgido na Grécia e na Roma antigas, enroupado de aristocracia e de hereditariedade, queproporcionavam a segmentação da sociedade, criando escalas inalcançáveis, que asseguravamprivilégios e direitos a poucos e relegavam uma grande maioria a um comportamento servil.Isso não significa, por outro lado, retirar os fundamentos e perder de vista as estruturas, comose deu em parte na idade média, principalmente com a dispersão do poder e das própriascomunidades, ocasionadas pelo avanço do feudalismo.

Certamente as revoluções e o iluminismo trouxeram de volta, de certa forma, as bases quehaviam se enfraquecido. Mas é no Estado contemporâneo que se corporifica a espinha dorsaldo que vem a ser cidadania, imbricando as múltiplas facetas desta relação Estado x cidadãocidadão x Estado, em vias de movimento bilateral, gerando direitos e deveres a ambas aspartes. No Brasil, essa realidade nasce de acordo com o desenvolver da colônia até arepública, mas somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 se solidifica umarcabouço, ainda que programático em grande parte, de direitos e garantias que viabilizam oexercício pleno da cidadania.

Para conformar essa relação que proporciona a cidadania como algo palpável o Estado teveque se reinventar adaptando às realidades sociais à medida que essas se renovavam, osmodelos administrativos acompanharam essa escalada, concedendo bases estruturais queviabilizassem a realização de políticas e o alcance de objetivos que mitigasse as distâncias nasrelações entre o público e o privado, entre o coletivo e o individual.

O modelo de administração utilizado pelos Estados pode proporcionar maior ou menoraproximação do cidadão, o modelo gerencial trouxe novas perspectivas de empoderamentoindividual e coletivo por meio de mecanismos de busca pela eficiência, buscando gastar osrecursos de forma correta para honrar a confiança dos contribuintes, em um segundomomento alcançar maior efetividade, assim, o foco voltou-se para a qualidade do serviço naperspectiva do cliente, a satisfação deste tornou-se o objetivo central das ações do Estado. Noterceiro momento o empoderamento do cidadão avança para um nível de envolvimento deinter-relação quando direitos e deveres são compartilhados, os indivíduos são tratados comequidade, há transparência nos gastos e possibilidade de controles dos programas e projetospor parte da sociedade.

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