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A charge como memória da democracia e da cidadania A charge como memória da democracia e da cidadania A charge como memória da democracia e da cidadania A charge como memória da democracia e da cidadania Tereza Sibaldeli Sabo Rosana Steinke Resumo Este artigo é resultado de uma proposta metodológica no uso de charges como objeto de estudo na reflexão sobre a construção democrática da sociedade brasileira, no período de 1937 a 2007. Partindo de uma discussão sobre democracia e cidadania na atualidade busca-se reconhecer a historicidade da criação chargística e os elementos significativos que estabelecem diálogo com os fatos históricos nela impressa. O uso de charge na prática pedagógica, na disciplina de História, demonstra um recurso atrativo ao público-alvo, neste caso o 3º ano do Ensino Médio, pelo caráter risível desta ilustração para a construção de conhecimento histórico. A abordagem deste tema permitiu ao aluno o reconhecimento das interpretações e representações dos fatos sociais e políticos inseridos na produção e publicação de charges nos diversos meios impressos da mídia. Palavras-chaves: democracia . cidadania. charge. memória. Abstract This article is the result f a methodological proposal with the use of charge as object of study reflecting Brazilian society democratical construction from 1937 to 2007. Beginning from discussion about democracy and citizenship at the

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A charge como memória da democracia e da cidadaniaA charge como memória da democracia e da cidadaniaA charge como memória da democracia e da cidadaniaA charge como memória da democracia e da cidadania

Tereza Sibaldeli Sabo

Rosana Steinke

Resumo

Este artigo é resultado de uma proposta metodológica no uso de charges como

objeto de estudo na reflexão sobre a construção democrática da sociedade

brasileira, no período de 1937 a 2007. Partindo de uma discussão sobre

democracia e cidadania na atualidade busca-se reconhecer a historicidade da

criação chargística e os elementos significativos que estabelecem diálogo com

os fatos históricos nela impressa. O uso de charge na prática pedagógica, na

disciplina de História, demonstra um recurso atrativo ao público-alvo, neste

caso o 3º ano do Ensino Médio, pelo caráter risível desta ilustração para a

construção de conhecimento histórico. A abordagem deste tema permitiu ao

aluno o reconhecimento das interpretações e representações dos fatos sociais

e políticos inseridos na produção e publicação de charges nos diversos meios

impressos da mídia.

Palavras-chaves: democracia . cidadania. charge. memória.

Abstract

This article is the result f a methodological proposal with the use of charge as

object of study reflecting Brazilian society democratical construction from 1937

to 2007. Beginning from discussion about democracy and citizenship at the

Page 2: A charge como memória da democracia e da cidadaniaA charge ... · O uso de charge na prática pedagógica, na ... Fazemos parte de uma mesma espécie, ... temos substituído uma

present time, we aim recognize the historical of charge creation and the

significant elements the establish dialogue with historical facts printed on it. The

use of charge in pedagogical pratics, in history subject, shows an attractive

recourse, in this case, for high school on 3rd grader students because the

illustration characteristics in constructions of their historical knowledge. This

approach allows the students the recognition of interpretation of interpretation

and representation of politicals and social facts in production and publications of

several printed midia forms.

Key words: democracy. citizenship. charge. conscience

Introdução

A recente historiografia apresenta um universo rico e variado de fontes de

pesquisa, com a presença de novas tecnologias, se utilizando de uma

variedade de fontes que podem ser trabalhadas a partir de publicações da

imprensa, análise de letras de músicas, a iconografia de modo geral (mapas,

fotografias, filmes, obras de arte). Tais documentos permitem estudos sobre o

comportamento e códigos culturais, auxiliando significativamente na

abordagem reflexiva e crítica da sociedade moderna. O uso de tais

documentos, ao serem disponibilizados ao professor, podem contribuir nas

práticas pedagógicas da escola, especialmente na disciplina de História,

oportunizando um aprendizado mais significativo aos alunos.

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A sala de aula, no presente trabalho, é o foco da ação pedagógica, por meio do

uso de charge. Ao eleger a temática a Memória da Cidadania Escancarada

pelo Riso, juntou-se a pesquisa de fontes elaborada ao longo do PDE com a

produção de trabalho visual e escrito feito pelos alunos.

Umas das grandes possibilidades apresentadas pelo uso da charge em sala de

aula está no fato de chamar a atenção dos alunos pela própria linguagem

artística que exibe; outro fator que merece ser mencionado é seu conteúdo

crítico, com inúmeras abordagens sobre a política nacional, estabelecendo

relações de intertextualidade, evocando conhecimentos específicos da

linguagem e do período histórico a ser analisado.

No recorte temático a que se propõe este trabalho, a investigação histórica

destaca o processo de democracia e cidadania num determinado período da

história do Brasil, com a intencionalidade de enfatizar o processo histórico

deste objeto de estudo, ajudando na compreensão da relação

passado/presente, suas limitações e interações com outras fontes para a

construção da consciência crítica.

A intenção é buscar orientar o uso da charge na compreensão e análise de

determinados fatos e leituras do mesmo. Buscou-se a percepção da História,

no trabalho desenvolvido com os alunos, como sujeitos de seu próprio tempo,

buscando despertar a consciência crítica destes. A execução das referidas

atividades ocorreu na XI Mostra Interdisciplinar, do Colégio Estadual Unidade

Polo, na turma do 3º Ano A do Ensino Médio.

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Princípios de Democracia e Cidadania

A sociedade brasileira nas últimas décadas do século XX, vivenciou a abertura

política e a ampliação da democracia. Tais aspectos foram construídos também

com avanços e recuos, ora buscando a ruptura com o advento da República,

ora aliando-se às práticas ideológicas forjadas em períodos ditatoriais. Neste

contexto histórico, acreditamos que a função social da escola é auxiliar a

conceituar e fundamentar democracia e cidadania, conceitos estes apregoados

nas sociedades atuais pelo compromisso de promoção dos valores

humanísticos.

Então, iniciamos nossas atividades nos indagando sobre qual modelo

democrático se pretende validar neste momento? As referências de

democracia e cidadania utilizadas pelos teóricos políticos da modernidade

dispõem dos mais variados conceitos, principalmente quando analisados na

perspectiva de nações modernas, como a brasileira, que vivenciou períodos

instáveis na sua história recente, onde a democracia apoiou-se fragilmente

apenas na esfera da participação política, intercalada por períodos de ditadura

ou governos populistas.

O conceito de democracia política que resguarda a participação da população

adulta das nações não é a condição final para a consolidação da igualdade de

direitos do cidadão brasileiro. O trabalho de conceituação e fundamentação de

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cidadania não é fácil e rápido ao analisar os resultados da pesquisa realizada

pelo CPDOC³, em 1997. Conforme aponta Carvalho (2002), em Cidadania na

Encruzilhada, na primeira tabela (Concepção de consciência de cidadania de

direitos individuais) o percentual de 56,7% dos entrevistados não souberam

responder ou não sabiam os tipos de direitos do cidadão. Na terceira tabela

(Confiabilidade dos brasileiros), 30% de confiabilidade e 46% de pouca

confiabilidade; já na quarta tabela (Deveres dos brasileiros), observa-se que

55,7% não sabiam ou não responderam.

Estes dados representam uma sociedade que ainda não incorporou, nem

vivenciou a cultura cidadã de forma plena e demonstra um estranhamento

quando solicitada a sua participação ativa e não burocrática, como no período

eleitoral com o voto obrigatório. Não é intenção fundamentar este trabalho na

concepção do cidadão-consumidor, mas sim na compreensão da cidadania que

prioriza o coletivo, com ativismo político e a esfera pública dos debates e

deliberações (ARENDT apud CARVALHO, 2002), a liberdade de imprensa e

associação, a garantia de direitos coletivos, como direitos civis, sociais e a

garantia de justiça. Estas práticas cidadãs apontadas por Carvalho (2002) são

promissoras e tornam-se mais relevantes quanto mais diretamente envolvidas

no cotidiano do cidadão. Este princípio de cidadania representa uma

contemporaneidade fundamental para a construção da justiça social,

preservando os interesses coletivos, com a atuação do Estado com a

sociedade organizada e participativa para

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...numa perspectiva em que a força do primeiro passa a depender do fortalecimento da segunda e em que este novo arranjo constitua a base para redefinir a nação. (CARVALHO, 2002, p. 126)

Faz-se necessário neste conjunto de conceitos e entendimentos aliar a

democracia política à cidadania, como princípio institucionalizado na prática

política dos cidadãos com um mínimo de condições sociais. Para Weffort

(1992), a consolidação da democracia torna-se impraticável enquanto

permanecerem as estruturas de desigualdade social e a presença ainda visível

dos resquícios de um período ditatorial da sociedade brasileira. A estas

estruturas, também denominadas de apartheid social, juntam-se outras tão

desfavoráveis à construção da democracia e cidadania plena, como a falta de

estruturas institucionais mais atuantes, a formação e atuação das lideranças, a

maior presença e valorização dos movimentos organizados da sociedade e a

exclusão econômica.

Portanto, a resposta para o questionamento inicial sobre o modelo democrático

que se deseja na sociedade brasileira se revela ainda um conceito não

finalizado pela própria sociedade, que busca a compreensão social, histórica e

ideológica das complexas relações e seus fenômenos para interagir

conscientemente.

Nesta reflexão sobre os desafios ora identificados nesta análise, reforça-se a

premissa da organização consciente da sociedade civil. Esta se torna

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protagonista da solução de problemas que direitos sociais pretendem prevenir

e ao mesmo tempo está “mundializada” pela questão ética vigente nas

sociedades modernas (SINGER apud Pinsky, 2005).

Fazemos parte de uma mesma espécie, de uma mesma comunidade, inseparável e indivisível... Nossa liberdade jamais será plenamente vivida, enquanto a liberdade de alguém, nos altiplanos da Bolívia ou nos arrozais do Vietnã, estiver ameaçada ou cercada. (PINSKY e PINSKY, 2005, p. 39) Preciso pegar amanhã o livro da História da cidadania para refazer a referência.

A escola

O trabalho desenvolvido no 3º ano do Ensino Médio na disciplina de História

insere-se no princípio da construção da consciência crítica dos alunos como

fundamento singular da educação pública e democrática. A intervenção

pedagógica, realizada em sala de aula com o uso de charges, permite

considerações significativas quando reconhecida pelas inferências ao

cotidiano, característica da sua constituição ilustrativa ao trazer informações

visual e textual sobre um fato, geralmente político, sugerindo atenção

redobrada ao aluno/leitor. As ações e expressões dos diversos setores na

recente história do Brasil são marcadas por avanços e recuos políticos e

sociais que se apresentam distintamente no objeto-charge.

Na escola pública, do Ensino Básico, está evidenciada a constituição da

sociedade atual, pela sua formação e organização peculiar de instituição social

e ideológica do Estado, com seus diversos sujeitos sociais, professores,

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alunos, direção, equipe pedagógica, técnico-administrativa e de apoio, os pais

e a comunidade escolar.

Este espaço singular, enquanto reflexo da sociedade brasileira contemporânea,

expõe também as fragilidades sociais, políticas, econômicas e culturais desta

mesma sociedade, nos revelando a desigualdade social. Em contraposição,

neste mesmo espaço, concentra-se o conjunto de profissionais da educação

que têm a oportunidade de ocupar o espaço da escola, espaço esse rico de

conhecimento e sujeitos sociais, ainda que muitas vezes apresente dificuldades

e limitações para efetivar o acesso democrático e significativo ao conhecimento

para os alunos.

A fragilidade da escola básica no Brasil está registrada em vários estudos de

educadores e do próprio governo, seu mantenedor e gestor. No processo de

ensino-aprendizagem dos sujeitos professor-aluno é necessário manter diálogo

entre os saberes socialmente construídos e, por isso, constituídos de

significação para os envolvidos neste processo. O espaço escolar às vezes

torna-se estéril quanto a sua função social, problema esse que pode ser

apontado por diferentes motivos, além dos já citados acima, como planos

docentes equivocados, desmotivação dos alunos e a própria dinâmica da

sociedade moderna, que externa valores da sociedade capitalista e seus

contrastes.

Esta contradição vivenciada no espaço escolar e, principalmente, no interior

das salas de aula, demonstra que o aprimoramento das práticas pedagógicas

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em todas as áreas, da formação do profissional da educação, a organização

pedagógica da escola e coerência nas ações do Estado, podem ser as

alternativas para viabilizar o ensino democrático, de qualidade e para todos,

pressuposto de um Estado democrático, centrado na justiça e na cidadania.

O Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, instituído pelo governo

do Estado do Paraná através da Secretaria de Estado da Educação, em

parceria com a Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior

promove uma inovadora experiência pedagógica quanto à Formação

Continuada dos professores, na busca de novos paradigmas na estruturação

das disciplinas escolares e suas práticas pedagógicas. Tal iniciativa pode

colaborar para garantir a escola pública paranaense professores com

preocupações de reflexão sobre os problemas acima ressaltados e

proponentes de práticas que atendam às fragilidades do conhecimento,

explicitados no interior das escolas, conforme os índices escolares

apresentados tanto pelo governo federal quanto estadual.

É neste contexto educativo que o presente trabalho busca referências de

articular, através da narrativa histórica, a utilização da charge como fonte

histórica e como elemento significativo para a compreensão do processo

histórico baseado em intenções, conceitos e consciência das relações de

temporalidade.

O processo de aprendizagem na disciplina de História também está

comprometido diante das fragilidades apontadas anteriormente. Para Marson

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(1990) a crise não é aguda e está relacionada ao efêmero, volátil e descartável,

resultante da sociedade capitalista, obrigatoriamente consumista e dinâmica na

sua sustentação. Portanto, no contexto exemplificado que se encontra a

sociedade brasileira, vislumbramos o aumento e o acesso significativo de

documentos disponíveis para análise do historiador e o exercício da prática do

historiador:

Estamos dentro de um círculo de ferro cujo rompimento não é fácil. Em geral, no afã de cumprir a nossa missão pedagógica, temos substituído uma dada interpretação por outra mais “correta", sem que o vínculo mesmo da dominação seja tocado. Outras soluções deveriam ser tentadas. (MARSON, apud SILVA, 1990, p.41)

Torna-se necessário fortalecer a instituição educacional como espaço legítimo

da produção do conhecimento, através de ações como investimentos

financeiros, recursos humanos cada vez mais qualificados e práticas didáticas

disponibilizadas democraticamente para promoção do conhecimento científico

e crítico aos nossos alunos.

A charge e democratização do conhecimento

Como já foi ressaltado, o uso de charges tem a possibilidade de inserir um

diálogo argumentativo com a presença do humor, por meio da linguagem visual

satírica, texto curto e articulado com as circunstâncias históricas. Tais

documentos estabelecem um diálogo para a investigação histórica e despertam

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a reflexão inicial do aluno, ainda que este possa, num primeiro momento, estar

alheio e não relacioná-la ao seu cotidiano. A compreensão da charge como um

elemento próximo, real e prazeroso pelo leitor-aluno significa o reconhecimento

deste objeto de estudo como uma

Representação humorística, portanto, com aquele esforço inaudito de desmascarar o real, de captar o indizível, de surpreender o engano ilusório dos gestos estáveis... ( SALIBA, 2002, p. 29)

A charge carrega na sua constituição visual o dialogismo (Bakhtin, 1979),

sendo vozes que se inter-relacionam numa ‘batalha social’ presente no embate

da vida cotidiana. A palavra e a imagem são práticas discursivas de natureza

ideológica, revelando idéias da coletividade numa determinada temporalidade.

As charges ocupam um significado expressivo nas lutas presentes nos

movimentos sociais, políticos e culturais da sociedade brasileira gerando

discussões pródigas quanto aos anseios da construção de uma sociedade

democrática e cidadã, desde o século XIX, mas principalmente a partir de 1945

e no final da Segunda Guerra Mundial. Simultaneamente expõe os anteparos

políticos e sociais que limitam a efetivação deste ideal de sociedade.

Na face duplicada de significados apresentados na mídia impressa, a charge

encontra sua especificidade mostrando sua força ao revelar as fissuras de um

contexto (DRIGO e SOUZA, 2006). Assim, muitas vezes expressa a crítica

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individual evidenciando o discurso persuasivo pela posição política que está no

exercício do poder.

O processo de investigação histórica, a partir da utilização da charge, permite

aos alunos a apropriação de conceitos, de reconhecimento do objeto de

estudo, a análise de sua natureza e a produção da narrativa histórica

contextualizada e argumentada pelo discurso presente na mesma.

A presente investigação histórica busca ainda atender às Diretrizes

Curriculares para o Ensino de História e a Proposta Pedagógica Curricular da

Disciplina de História – Ensino Médio, no que se refere aos fundamentos

teórico-metodológicos desta disciplina.

A memória da cidadania escancarada pelo riso

Em um primeiro momento, este trabalho teve como objetivo um recorte

temático que privilegiasse o conteúdo redemocratização do Brasil - 1978 a

1982 tendo em vista a possibilidade de trabalhar os conceitos de democracia,

ditadura militar, cidadania, os movimentos sociais, políticos e culturais,

principalmente pela proximidade do tempo histórico.

Também se levou em consideração a grande produção de charges neste

momento histórico da sociedade brasileira. A historiografia brasileira, no

referido período, tem material diversificado e rico para a investigação histórica,

sendo a charge um elemento significativo. Com a seleção de análise de uma

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produção de charges que abrangia um período mais longo, optou-se, neste

trabalho, o estudo do período de Getúlio Vargas até o presente momento (1937

A 2007).

A charge revela-se como um traço da história, “na medida que capta o ocorrer

do seu processo no seu acontecer, denunciando faces do poder com sua

linguagem metafórica”, sendo “o humor não um estado de espírito, mas uma

visão de mundo” (SALIBA, 2002). Então, o desenho ilustrativo da charge é uma

“representação humorística com a função de denunciar, satirizar, ridicularizar,

criticar um fato, um personagem real, mantendo viva a memória histórica”

(MIANI,2001).

Tomemos um exemplo:

A charge acima, de Silveira, publicada no O Jornal de Maringá, em 20/11/81,

representa um período econômico e social que a inflação corroía os salários

dos trabalhadores e colocava dois sujeitos sociais, o desempregado e o

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empregado, praticamente na mesma situação de miséria. Ao ser analisada em

sala de aula observou-se as contradições da organização política social do

Brasil. Neste momento ocorreu a desconstrução do discurso ideológico que

sustentou durante décadas os militares no poder, de um lado o argumento do

governo sobre a necessidade de “crescer o bolo” para depois dividi-lo para

promover a igualdade social. Do outro lado, os movimentos sociais se

organizando contra o aumento do custo de vida. Esta mobilização contra o

aumento do custo de vida reuniu milhares de paulistanos em 27 de agosto de

1978 na Praça da Sé, em São Paulo, quando os manifestantes entregam

documentos com 1,3 milhões de assinaturas à Comissão de Justiça e Paz ,

pedindo o congelamento de alimentos, aumento de salários e abono salarial

imediato.

O exagero presente nesta linguagem metafórica e risível mostra o contexto

social brasileiro em um determinado momento e se apresenta ao leitor (alunos

adolescentes) como elemento sedutor na intenção de motivá-lo a investigar,

selecionar, analisar e narrar um conteúdo previamente selecionado. Nesta

perspectiva, Miani nos chama atenção para a charge “como instrumento de

persuasão, intervindo no processo de definições políticas e ideológicas do

receptor, através da sedução do humor...”.

A análise do contexto histórico de um fato na perspectiva da representação

chargística visa romper com o tradicionalismo no uso de documentos e fontes,

superar conceitos pré-elaborados, no senso comum. Tal prática, pode levar o

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aluno a ir formando uma elaboração do conhecimento fundamentado na

percepção

- pesquisa bibliográfica e síntese de leituras referentes;

- organização de seminário para apresentação do tema aos professores da

turma para a 1ª avaliação;

- pertinência teórica e metodológica;

- produção de trabalho escrito com normas pré-estabelecidas

- para finalizar, a exposição do tema para a comunidade escolar.

Esta proposta de implementação foi adequada às representações sociais dos

alunos que encontraram significado no tema que aqui apresentamos, Memória

da cidadania escancarada pelo riso, abordando o Brasil no período da

democracia e da ditadura, de 1937 a 2007. Após eleição e avaliação do

material a ser utilizado foi feita também uma avaliação sobre sua relevância no

processo ensino-aprendizagem do Ensino Médio e dos alunos que estavam

concluindo o Ensino Básico. Anteriormente, foi elaborado um cd-room

contemplando um texto em linguagem didática contendo a análise de charges,

material didático que está disponível na Biblioteca Escolar e do Professor. O

acesso ao Material Didático – PDE/História (O Bê-a-Bá da Cidadania), criou no

conjunto da turma uma perspectiva ampla e coletiva de análise histórica com o

estudo através de charges.

A charge de Nani foi a primeira a ser apresentada como incentivadora da

análise histórica com o objetivo de contextualizar o tema a ser abordado pelos

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alunos. Esta charge representa dois personagens, o militar e o trabalhador

rural, suas características físicas, a paisagem e o texto. Todos estes elementos

subsidiaram uma primeira análise e se concretizou com outras leituras e

intervenções durante duas aulas. A Ditadura Militar e a submissão são

reconhecidas nesta análise.

Fonte: Nani, O Jornal de Maringá, 01/11/81

A preocupação didática com o uso desta fonte de pesquisa conforma-se com a

preposição de Bittencourt (2005, p.364-5) para a necessidade de “estabelecer

relações com outras fontes, notadamente com textos escritos”... “identificando

como o aluno apreende as imagens e suas representações”. O processo

corresponde a reconstrução do conhecimento adquirido pelo aluno na sua

trajetória de vida e escolar subsidiada também pelas disciplinas de Língua

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Portuguesa e Sociologia para desenvolver um trabalho que sensibilize pela sua

relevância na concretização da percepção da cidadania.

A etapa de sistematização teórica e preparação do seminário a ser

apresentado em Julho/2008 mostrou-se pouco elucidativa e atraente para

alguns alunos, sendo necessária a intervenção dirigida da professora para

estimular a execução de tarefas e manter o cronograma de atividades, afinal

não era a intenção selecionar charges e apresentá-las, mas justificá-las

teoricamente como fonte de análise de um determinado período, e tornar a

oralidade interdisciplinar compatível com a série. Observou-se a rápida solução

adotada pela turma para concluir esta etapa com a organização de três grupos

de estudos:

- ditadura de Vargas e governos populistas (1937 a 1964);

- ditadura militar (1964 a 1985);

- redemocratização do Brasil (1985 a 2007);

- produção de material de apresentação no Data-Show.

Num segundo momento, trabalhou-se um texto elaborado pelos alunos, a partir

das pesquisas e sínteses realizadas, usando como referência a importância da

charge como objeto de estudo. Neste exercício, chama-se a atenção para a

intervenção multidisciplinar dos professores de Língua Portuguesa e

Sociologia.

Nos meses de agosto e setembro os alunos receberam a visita de dois artistas

plásticos que atuam em Campo Mourão. O primeiro foi Pixote, artista plástico,

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referência na comunidade, destaca-se também na criação de charges; o

segundo foi o artista plástico Fernando Nunes, ilustrador de livros, chargista,

ator e publicitário. As palestras cumpriram o objetivo de ilustrar e melhor

esclarecer aos alunos sobre a criação das charges e outras ilustrações. Tal

exercício produziu momentos significativos de participação dos alunos, com

levantamento de hipóteses quanto a criação e o significado da charge.

Percebe-se que houve, por parte dos alunos, o reconhecimento e a valorização

do porquê deste trabalho e como esta turma poderia contribuir para a melhoria

das práticas pedagógicas através de intervenções e não apenas um executor

de tarefas previamente determinadas.

A etapa de construção do trabalho escrito expôs fragilidades no domínio de

regras da escrita e conseqüentemente as dificuldades para a elaboração do

trabalho. A resistência identificada foi entendida pelos alunos como resultado

da “tradição” de apenas um ou dois alunos se responsabilizarem na produção

de texto técnico, quando da participação desta turma em Mostras anteriores.

Detectados tais problemas, retomamos o roteiro inicial da pesquisa produzindo

um trabalho coletivo, que foi analisado por dois professores da turma com a

intenção de orientar a revisão através de uma correção preliminar.

Ressaltamos que esta prática de revisão no texto ocorre com nos trabalhos

produzidos por todas as turmas da escola, das 5ªs ao 3ºs. Esta etapa foi

concluída satisfatoriamente conforme os requisitos solicitados pela comissão

organizadora.

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A última etapa deste trabalho foi tornar a nossa pesquisa acessível à

comunidade escolar com a participação de todos os alunos na elaboração do

estande. Este momento consolidou todo o processo com participação criativa

dos alunos. A opção inicial dos alunos era organizar uma oficina de produção

de charges que foi logo descartada porque não tínhamos na turma alguém com

habilidades técnicas para coordenar, então foi sugerido montar painéis com as

charges pesquisadas, enfatizando a história recente do Brasil (1990 a 2007).

Ocorreu a organização de grupos de trabalho para reprodução de charges

pesquisadas, o estudo sobre cada uma delas para serem apresentadas ao

público visitante e a preparação do ambiente para a exposição das charges. O

dia da exposição para a comunidade ocorreu no dia 13 de setembro/2008 com

a turma dividida em três grupos de apresentadores. A apresentação e

exposição do material, com os devidos créditos à qualidade e a participação

dos alunos, recebeu o convite do Diretor da FECILCAM, Carlos Aleixo, para

agendamento da exposição nesta instituição.

Esta atividade desenvolvida no decorrer do ano letivo de 2008 com o 3º ano A,

do Colégio Estadual Unidade Polo, demonstrou que vale ousar, investir e

persistir

“na utilização das diferentes linguagens, pesquisando e fazendo os alunos

pesquisarem. Os resultados têm sido sempre um prazer, mesmo sem atingir todos

os objetivos iniciais, muitas vezes utópicos. Mas é preciso a utopia para trabalhar

como educador” (BITTENCOURT, 2005, p.396).

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As fotos a seguir registram alguns destes momentos da finalização do trabalho

nos dias 12 e 13 de setembro de 2008.

Alunos do 3º Ano A , do Colégio Estadual Unidade Polo de Campo Mourão,

12 e 13 set de 2008, durante a XI Mostra Interdisciplinar

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Considerações Finais

As atividades realizadas com o estudo de charges no ensino de História,

enfatizando o reconhecimento da memória da cidadania brasileira, 1937 a

2007, por meio deste documento, demonstrou-se pertinente ao universo dos

jovens. Tal pertinência se deve a diferentes fatores, como o atrativo visual

deste objeto de estudo que garantiu intervenções teóricas para evidenciar

conceitos, análises temporais e espaciais e um trabalho interdisciplinar da

História, Língua Portuguesa e Sociologia.

A contribuição no processo ensino-aprendizagem foi considerado relevante

pela equipe pedagógica, pelos professores de História, Língua Portuguesa e

Sociologia e pelos próprios alunos. Os envolvidos na execução deste trabalho

expuseram suas considerações positivas e negativas na realização deste

trabalho, sendo as limitações iniciais abrandadas e superadas com atividades

extras, estudos específicos para dominar o conceito de charge, cidadania e

democracia.

A pesquisa proporcionou aos alunos a utilização de diversos materiais

existentes na escola, livros, revistas, jornais, o Laboratório de Informática para

pesquisa em sites específicos, valorizando fontes e recursos até então pouco

utilizados no cotidiano destes alunos.

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A charge ocupou espaço de discussão durante as aulas de História, nas quais

foi abordada a sua criação, veiculação e tom denunciatório de diferentes

momentos políticos. Igualmente foi atribuída à ela o fato de ser um instrumento

de resistência civil aos modelos políticos estabelecidos.

Notas

¹ Professora de História da Rede Pública do Estado do Paraná, Núcleo

Regional de Campo Mourão.

² Professora Rosana Steinke (Orientadora). Graduada em História (UEM),

Mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP) e Doutoranda em História (UFPR).

³ Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea realizou em

parceria com o ISER (Instituto de Estudos da Religião) a pesquisa Cidadania,

Justiça e Violência, entre os anos de 1997 e 1998, com coordenação de José

Murilo de Carvalho.

Referências

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1979.

Page 23: A charge como memória da democracia e da cidadaniaA charge ... · O uso de charge na prática pedagógica, na ... Fazemos parte de uma mesma espécie, ... temos substituído uma

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