a ceia secreta - javier sierra

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A Ceia Secreta Javier Sierra I - Exórdio Na Idade Média e no Renascimento, a Europa ainda conservava intacta sua capacidade de entender símbolos e ícones ancestrais. As pessoas sabiam quando e como interpretar um capitel, uma expressão num quadro ou um prodígio na estrada, apesar de só a minoria ter aprendido a ler e a escrever. Com a chegada do racionalismo se perdeu aquela capacidade de interpretação e, com ela, boa parte da riqueza legada por nossos antepassados. Este livro acolhe muitos desses símbolos da forma como foram concebidos. Mas também pretende devolver nossa capacidade de compreendê-los e nos beneficiarmos de sua infinita sabedoria. Não me lembro de adivinhação mais obscura e perigosa do que aquela que me acometeu naquele Ano — novo de 1497, enquanto os Estados pontifícios observavam como o ducado de Ludovico, o Mouro, estremecia de dor.

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A Ceia Secreta

Javier Sierra

I -  Exórdio

Na Idade Média e no Renascimento, a Europa ainda conservava intacta sua capacidade de entender símbolos e ícones ancestrais. As pessoas sabiam quando e como interpretar um capitel, uma expressão num quadro ou um prodígio na estrada, apesar de só a minoria ter aprendido a ler e a escrever.Com a chegada do racionalismo se perdeu aquela capacidade de interpretação e, com ela, boa parte da riqueza legada por nossos antepassados.Este livro acolhe muitos desses símbolos da forma como foram concebidos. Mas também pretende devolver nossa capacidade de compreendê-los e nos beneficiarmos de sua infinita sabedoria.Não me lembro de adivinhação mais obscura e perigosa do que aquela que me acometeu naquele Ano — novo de 1497, enquanto os Estados pontifícios observavam como o ducado de Ludovico, o Mouro, estremecia de dor.O mundo era então um lugar hostil, furta-cor, um inferno de areias movediças em que quinze séculos de cultura e fé ameaçavam ruir sob a avalancha de novas idéias importadas do Oriente. Da noite para o dia a Grécia de Platão, o Egito de Cleópatra ou as extravagâncias da China exploradas por Marco Polo mereciam mais louvores do que nossa própria história bíblica.Aqueles foram dias agitados para a cristandade. Tínhamos um papa simoníaco - um diabo espanhol coroado sob o nome de Alexandre VI que comprara descaradamente a tiara no último conclave -, príncipes subjugados pela beleza do paganismo e a maré de turcos armados até os dentes à espera de uma boa oportunidade para invadir o Mediterrâneo ocidental e converter todo mundo

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ao islamismo. Bem se poderia dizer que nossa fé jamais estivera tão indefesa em seus quase mil e quinhentos anos de história.E ali se encontrava este servo de Deus que vos escreve - examinando com cuidado um século de mudanças, uma época em que o mundo alargava diariamente suas fronteiras e exigia de nós um esforço de adaptação sem precedentes. Era como se a cada dia a Terra se fizesse maior, forçando-nos a uma atualização permanente dos conhecimentos geográficos. Nós, clérigos, já intuíamos que deveríamos tomar providências para pregar a um mundo povoado por milhões de almas que jamais ouviram falar de Cristo, e os mais céticos previam um período de caos iminente, provocado pela chegada de nova horda de pagãos.

Apesar de tudo, foram anos excitantes. Anos que contemplo com certa saudade em minha velhice, neste exílio que me devora pouco a pouco a saúde e as recordações. Minhas mãos já quase não reagem, a vista fraqueja, o ofuscante Sol do sul do Egito turva minha mente e só nas horas que precedem a primeira luz da manhã sou capaz de organizar meus pensamentos e refletir sobre a espécie de destino que me trouxe até aqui. Um destino a que nem Platão, nem Alexandre VI, nem os pagãos são alheios.Mas não apressarei os acontecimentos.Basta dizer que agora, enfim, estou sozinho. Não sobrou nenhum dos secretários que tive um dia, e hoje apenas Abdul, um jovem que não fala minha língua e acredita que sou um santarrão excêntrico que veio morrer em sua terra, atende às minhas necessidades mais elementares. Vivo mal, isolado nesta antiga tumba escavada na rocha, rodeado por poeira e areia, ameaçado por escorpiões e quase sem movimento nas duas pernas. Todos os dias o fiel Abdul deixa neste cubículo um pastelão ázimo e o que por sorte sobra em sua casa. É como o corvo que durante sessenta anos carregou no bico trinta gramas de pão a Paulo, o Eremita, que morreu com mais de cem anos nestas mesmas terras. À diferença daquele pássaro de bom agouro, Abdul sorri quando me entrega o pão, sem saber mais o que fazer. É suficiente. Para alguém que pecou tanto como eu, qualquer deferência se converte em prêmio inesperado do Criador.

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Mas além da solidão, também a mágoa terminou por corroer minha alma. Causa-me pena que Abdul não saiba o motivo que me trouxe à sua aldeia. Não saberia explicar a ele por sinais. Tampouco nunca poderá ler estas linhas e, ainda no caso remoto que as encontre depois de minha morte e as venda a algum cameleiro, duvido que sirvam para algo mais do que avivar uma fogueira nas frias noites do deserto. Aqui ninguém entende latim ou qualquer língua românica. E cada vez que Abdul me encontra diante destes papéis encolhe os ombros, sem ação, ciente de estar perdendo algo importante.Essa idéia me mortifica dia a dia. A certeza íntima de que nenhum cristão jamais lerá estas páginas atordoa minha lucidez e enche meus olhos de lágrimas. Quando acabar de redigi-las, pedirei que as enterrem com meus despojos, esperando que o Anjo da Morte se lembre de  recolhe   Ias e as leve ao Pai Eterno quando se celebrar o julgamento de minha alma. Triste é a história: os maiores segredos são os que nunca vêm à luz.O meu segredo sobreviverá?Duvido.Aqui, nas cavernas chamadas Yabal al-Tarif, a poucos passos deste grande Nilo que abençoa com suas águas um deserto inóspito e vazio, apenas rogo a Deus que me dê tempo suficiente para justificar por escrito meus atos. Estou tão afastado dos privilégios que tive um dia em Roma que ainda que o novo papa me perdoasse sei que já não seria capaz de retornar ao aprisco de Deus. Não suportaria deixar de escutar os longínquos lamentos dos almuadens em seus minaretes, e a saudade desta terra que me acolheu com tanta generosidade torturaria meus últimos dias.Meu consolo é organizar aqueles fatos da maneira como aconteceram. Vivi alguns deles em minha própria carne. De outros, em compensação, tive notícia muito tempo depois de ocorridos. No entanto, postos uns depois dos outros, darão a você, hipotético leitor, uma idéia da magnitude da adivinhação que alterou minha existência.Não. Não posso dar mais as costas ao destino. E agora que refleti sobre tudo o que meus olhos viram, vejo-me na obrigação de contar... ainda que não sirva a ninguém.  E sta adivinhação se originou na noite de 2 de janeiro de 1497, longe, muito longe do Egito. Aquele inverno de há quatro decênios foi o mais frio lembrado

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pelas crônicas. Nevara copiosamente e toda a Lombardia estava coberta por uma espessa capa branca. Os conventos de Santo Ambrósio, São Lourenço e Santo Eustórgio, e até o cume da catedral, desapareceram no nevoeiro. As carretas de lenha eram a única coisa que se movia nas ruas, e metade de Milão dormia envolta num silêncio que parecia instalado ali há séculos.Aconteceu às onze da noite do segundo dia do ano. Um grito de mulher, dilacerador, rompeu a gelada paz do castelo dos Sforza. Ao grito se seguiu um soluço, e a eles os agudos prantos das carpideiras do palácio. O último estertor da sereníssima Beatrice d'Este, uma jovem na flor da vida, a bela mulher do duque de Milão, destruíra para sempre os sonhos de glória do reino. Santo Deus. A duquesa morreu com os olhos bem abertos. Furiosa. Maldizendo Cristo e todos os santos por levá-la tão cedo para seu lado e agarrada com força às roupas de seu horrorizado confessor.Sim. Ali definitivamente começou tudo.Eu tinha quarenta e cinco anos quando li pela primeira vez o relatório do que ocorreu naquele dia. Era um relato assustador. Betânia, segundo o hábito, o solicitara por conduto secretissimus ao capelão da corte do Mouro, e ele, sem perder um só dia, o enviara a Roma com toda a pressa. Os ouvidos e os olhos dos Estados pontifícios funcionavam assim. Eram rápidos e eficazes como os de nenhum outro país. E muito antes que chegasse ao escritório diplomático do Santo Padre o anúncio oficial da morte da princesa nossos irmãos tinham já todos os detalhes em seu poder.Naquela época, minha responsabilidade dentro da complexa estrutura da Betânia era a de assessor do mestre geral da Ordem de São Domingos. Nossa organização sobrevivia dentro das margens estreitas da confidencialidade. Numa época marcada por intrigas palacianas, assassínio com veneno e traições de família, a Igreja necessitava de um serviço de informações que lhe permitisse saber onde podia pisar. Éramos uma ordem secreta, fiel apenas ao papa e à cabeça visível dos dominicanos. Por isso, quase ninguém, do lado de fora, ouvira falar de nós. Nós nos escondíamos por trás da ampla capa da Secretaria de Chaves dos Estados pontifícios, órgão neutro, à margem, de pouca presença pública e competência limitada. No entanto, da porta para dentro funcionávamos como uma congregado de segredos. Era uma espécie de comissão permanente para o exame de assuntos governamentais que permitia

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ao santo padre se adiantar aos movimentos de seus múltiplos inimigos. Qualquer notícia, por pequena que fosse e pudesse afetar o status quo da Igreja, passava imediatamente por nossas mãos, era avaliada e transmitida à autoridade pertinente. Era nossa única missão.Nessa situação tive acesso ao relatório da morte de nossa adversária, donna Beatrice d'Este. Ainda me lembro da cara dos irmãos comemorando a notícia. Ignorantes. Pensavam que a natureza nos poupara o trabalho de ter de matá-la. Suas mentes eram simples assim. Funcionavam a golpes de cadafalso, de condenação do Santo Ofício ou de matador de aluguel. Mas esse não era o meu caso. À diferença deles, eu não estava tão seguro de que a morte da duquesa de Milão significava o fim de um longo encadeamento de irregularidades, conspirações e ameaças contra a fé que pareciam se esconder na corte do Mouro e foram comunicadas há meses à nossa rede de informações.De fato, bastava mencionar seu nome em algum dos cabidos gerais de Betânia para que os boatos dominassem o restante da reunião. Todos a conheciam. Todos sabiam de suas atividades pouco cristãs, mas ninguém jamais se atrevera a denunciá-la. Era tal o temor que donna Beatrice inspirava em Roma que sequer o relatório recebido do capelão do duque - que era além disso fiel abade de nosso mosteiro de Santa Maria delle Grazie - se pronunciava a respeito de suas andanças pouco ortodoxas. Coube a frei Vicenzo Bandello, reputado teólogo e sábio dirigente dos dominicanos milaneses, descrever o sucedido, mantendo-se afastado de questões políticas que pudessem comprometê-lo.Tampouco ninguém em Roma o recriminou pela prudência.Segundo o relatório assinado pelo abade Bandello, tudo estava calmo até a véspera da tragédia. Antes desse momento, a jovem Beatrice tinha tudo: marido poderoso, vitalidade transbordante e um bebê prestes a nascer que logo perpetuaria o nobre sobrenome do pai. Ébria de felicidade, passara a última tarde dançando de sala em sala, divertindo-se com sua dama de companhia favorita no palácio Rochetta. A duquesa viveria livre das preocupações de qualquer mãe em seus territórios. Sequer amamentaria o bebê para não estragar os seios pequenos e delicados; uma ama escolhida com cuidado se encarregaria de cuidar do crescimento da criatura, de seus primeiros passos e

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de sua alimentação, e madrugaria para levantá-la e lavá-la com água e panos quentes. Ambos - bebê e ama - viveriam em Rochetta, numa peça decorada com empenho por Beatrice. Para ela, a maternidade era um jogo inesperado e benéfico, sem responsabilidade e incertezas.Mas foi exatamente ali, no pequeno paraíso imaginado para seu rebento, que ocorreu a desgraça. Segundo frei Vicenzo, antes do anoitecer em São Basílio, donna Beatrice caiu desmaiada sobre um dos catres do aposento. Ao recuperar os sentidos, sentiu-se mal. A cabeça girava enquanto o estômago lutava por se esvaziar entre ânsias de vômito, longas e estéreis. Sem saber que tipo de indisposição a afligia, ao vômito logo se seguiram fortes contrações no baixo ventre que anunciavam o pior. O filho do Mouro decidira adiantar sua chegada ao mundo sem qualquer previsão. Beatrice, pela primeira vez, assustou-se.Naquele dia os médicos demoraram mais do que o normal para chegar ao palácio. Tiveram de buscar a parteira fora dos muros da cidade, e quando o pessoal necessário para tomar conta da princesa chegou enfim ao seu lado já era tarde. O cordão umbilical que alimentava o futuro Leão Maria Sforza se enredara em torno do frágil pescoço da criança. Pouco a pouco, com a precisão de uma corda, apertou a pequena garganta até asfixiá-lo. Beatrice notou logo que algo ia mal. O filho, que um segundo antes pressionava com força para sair de suas entranhas, deteve-se de repente. Primeiro se agitou com violência e logo, como se o esforço o debilitasse, esmoreceu até expirar. Quando notaram, os médicos escarificaram de lado a lado a mãe, que se retorcia de dor e desespero apertando um pano umedecido em vinagre entre os dentes. Foi inútil. Desesperados, defrontaram-se apenas com um bebê azulado e morto, com os olhinhos claros já quebradiços, enforcado, no seio materno.E foi assim que, alquebrada de dor, sem tempo para aceitar o duro revés imposto pela vida, a própria Beatrice decidiu expirar horas mais tarde.Em seu relatório, o abade Bandello dizia que chegou a tempo de vê-la agonizar. Ensangüentada, com o ventre aberto e mergulhada numa pestilência insuportável, delirava de dor, pedindo aos gritos para se confessar e comungar. Mas, para sorte de nosso irmão, Beatrice d'Este morreu antes de receber qualquer sacramento...E digo bem: para sorte.

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A duquesa tinha apenas vinte e dois anos quando deixou nosso mundo. Betânia sabia que levara uma vida pecaminosa. Desde o tempo de Inocêncio VIII eu próprio tive ocasião de estudar e arquivar muitos documentos a respeito. Os mil olhos da Secretaria de Chaves dos Estados pontifícios conheciam bem a espécie de pessoa que fora a filha do duque de Ferrara. Ali dentro, em nosso quartel-general do monte Aventino, podíamos presumir que nenhum documento importante gerado nas cortes européias era alheio à nossa instituição. Na Casa da Verdade dezenas de leitores examinavam diariamente escritos em todos os idiomas, alguns codificados nas artimanhas mais impensáveis. Nós os decifrávamos, classificávamos por prioridades e os arquivávamos. Mas não todos. Os referentes a Beatrice d'Este levavam tempo ocupando lugar prioritário em nosso trabalho e eram armazenados numa peça a que poucos tínhamos acesso. Eram documentos inequívocos que mostravam uma Beatrice possuída pelo demônio do ocultismo. E, o que era ainda pior, muitos aludiam a ela como a principal incentivadora das artes mágicas na corte do Mouro. Numa terra permeável às heresias mais sinistras, aquele dado deveria ser levado bem em conta. Mas ninguém o levou a tempo.Os dominicanos de Milão - entre eles o padre Bandello - tiveram várias vezes ao alcance provas que demonstravam que tanto donna Beatrice como sua irmã Isabella, em Mântua, colecionavam amuletos e ídolos pagãos, e que ambas tinham veneração excessiva pelos vaticínios de astrólogos e charlatães de toda espécie. E nunca fizeram algo. As influências recebidas por Beatrice foram tão nefastas que a pobre passou os últimos dias convencida de que nossa Santa Madre Igreja se extinguiria em breve. Amiúde dizia que a cúria seria levada de rastros até o Juízo Final e ali, entre arcanjos, santos e homens puros, o Pai Eterno nos condenaria, a todos, sem piedade.Ninguém em Roma conhecia melhor do que eu as atividades da duquesa de Milão. Lendo os relatórios sobre ela aprendi quão enigmáticas podem chegar a ser as mulheres, e descobri o muito que donna Beatrice mudou nos costumes e objetivos de seu poderoso marido em apenas quatro anos de casamento. Sua personalidade chegou a me fascinar. Crédula, entregue a leituras profanas e seduzida por todas as idéias exóticas que circulavam no feudo, sua obsessão era converter Milão na herdeira do antigo esplendor dos Médicis de Florença.

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Creio que foi isso que me alertou. Ainda que a Igreja conseguisse minar pouco a pouco os pilares de tão poderosa família florentina, solapando o apoio dado a pensadores e artistas amigos das coisas heterodoxas, o Vaticano não estava preparado para enfrentar o revivescimento daquelas idéias na grande Milão do norte. As cidades ainda sob a influência dos Médicis, a lembrança da Academia fundada por Cosme, o Velho, para resgatar a sabedoria dos gregos antigos, ou sua proteção sem limite a arquitetos, pintores e escultores, fecundaram tanto a fértil imaginação da princesa Beatrice como a minha. Mas ela a tomou como guia de sua fé e contagiou, com sua venenosa fascinação, o duque.Desde que Alexandre VI chegou ao trono de Pedro, em 1492, enviei mensagens aos meus superiores hierárquicos para preveni-los sobre o que poderia ocorrer ali. Ninguém me ouviu. Milão, tão próxima à fronteira com a França e com uma tradição política tão rebelde em relação a Roma, era a candidata perfeita para albergar uma dissidência importante no seio da Igreja. Betânia tampouco acreditou em mim. E o papa, tíbio com os hereges - um ano depois de tomar a tiara pediu perdão pela perseguição a cabalistas como Pico delia Mirandola -, deixou de ouvir minhas advertências.- Esse frei Agustín Leyre - costumavam dizer de mim os irmãos da Secretaria de Chaves - presta demasiada atenção às mensagens do Augure. Acabará tão maluco como ele. O  Augure. Essa é a peça que falta para armar o quebra-cabeça.Sua presença merece uma explicação. Além de meus avisos ao Santo Pai e às mais altas instâncias da ordem dominicana sobre o rumo erradio do ducado de Milão, existia outra fonte de informação que se somava aos meus temores. Era um testemunho anônimo, bem documentado, que a cada semana enviava à nossa Casa da Verdade minuciosas cartas denunciando a elaboração de uma gigantesca operação mágica nas terras do Mouro.Suas missivas começaram a chegar no outono de 1496, quatro meses antes da morte de donna Beatrice. Eram dirigidas à sede da ordem em Roma, no mosteiro de Santa Maria sopra Minerva, onde eram lidas e guardadas como se fossem obra de um pobre-diabo obcecado pelos presumíveis desvios

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doutrinários da casa Sforza. E não os culpo. Vivíamos tempos de loucos, e as cartas de um visionário tratavam nossos padres superiores sem contemplação.Ou quase todos.Foi o arquivista de nossa casa mãe quem me falou das cartas desse novo profeta, na última reunião geral de Betânia.- Você deveria lê-las - disse. - Só de vê-las pensei em você.- Verdade?Lembro-me dos olhos de coruja do arquivista, pestanejando de emoção.- É curioso: escreveu-as alguém com seus mesmos temores, padre Leyre. Um profeta apocalíptico, culto, bem versado em gramática, como a cristandade não havia visto desde o tempo de frei Tanchelmo de Amberes.Ninguém deu ouvidos àquele diabo anônimo até a manhã em que chegou sua décima quinta carta.Nesse dia, frei Giovanni Gozzoli, meu assistente na Betânia, irrompeu no scriptorium com grande estardalhaço. Agitava no ar uma nova mensagem do Augure, e, alheio aos olhares de reprovação dos monges que ali estudavam, dirigiu seus passos até minha carteira:- Frei Agustín, deve ver isto! Deve ler imediatamente!Nunca vi frei Giovanni tão alterado. O jovem frade passou a nova carta diante de meus olhos e com a voz bem ostensiva sussurrou:- É incrível, padre. In-crí-vel.- O que é incrível, irmão?Gozzoli respirou fundo:- A carta. Esta carta... O Augure... O mestre Torriani me pediu que você a leia de imediato.- O mestre?O piedoso Gioacchino Torriani, trigésimo quinto sucessor de são Domingos de Guzmán na Terra e responsável máximo pela nossa ordem, nunca levara a sério aquelas cartas anônimas. Despachava-as com indiferença e em certa ocasião até me recriminou por dedicar meu tempo a elas. Por que mudou de atitude? Por que me enviou esta nova carta com o pedido de estudá-la logo?- O Augure... - Gozzoli engoliu saliva.-Sim?- O Augure descobriu em que consiste o plano.

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- O plano?A mão de frei Giovanni segurava ainda a mensagem. Tremia pelo   esforço. A carta, de três páginas com o selo de lacre vermelho, desceu suavemente sobre minha mesa.- O plano do Mouro - sussurrou meu secretário, como se descarregasse uma carga pesada. - Não entendeu, frei Agustín? Explica o que pretende realmente fazer em Santa Maria delle Grazie. Quer fazer magia!- Magia? - Eu não saía do meu espanto.- Leia-a.Mergulhei na mensagem ali mesmo. Não havia dúvida de que a carta fora escrita pelo mesmo autor das anteriores: os mesmos altos de página e a caligrafia delatavam o autor.- Leia-a, irmão! - insistiu.Logo compreendi o porquê de tanta insistência. O Augure tornava a revelar algo que ninguém esperava ouvir. Retrocedia há quase sessenta anos, ao tempo do papa Eugênio IV, quando o patriarca de Florença Cosme de Médicis, conhecido como o Velho, decidiu financiar um concílio que poderia ter mudado para sempre o rumo da cristandade. Era uma velha história. Ao que parece. Cosme propiciou um encontro inútil entre delegações diplomáticas díspares, que durou vários anos, com que pretendia conseguir a reunificação da Igreja oriental e a de Roma. Os turcos ameaçavam então estender sua influência sobre o Mediterrâneo e era preciso detê-los de qualquer maneira. O velho banqueiro teve a idéia rara de unir todos os cristãos sob um mesmo templo e mostrar a cara ao inimigo comum com a força da fé. Mas o plano fracassou.Ou não.O que o Augure revelava naquela mensagem é que houve uma agenda secreta por trás do concílio. Um objetivo disfarçado cujos efeitos ainda se sentiam seis decênios depois em Milão. Segundo ele, além das discussões políticas da época, Cosme de Médicis empregou boa parte do tempo em negociar com as delegações vindas da Grécia e Constantinopla a compra de livros antigos, instrumentos ópticos e até manuscritos atribuídos a Platão ou Aristóteles que se acreditava perdidos. Mandou-os traduzir todos, sem exceção, e neles aprendeu coisas surpreendentes. Assim descobriu que já em Atenas

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acreditavam na imortalidade da alma e sabiam que o céu era responsável por tudo o que se movia na Terra. Entenda-se bem: os atenienses não acreditavam era Deus, mas na influência dos corpos celestes. Segundo aqueles desprezíveis tratados, os astros influíam sobre a matéria graças a um "calor espiritual" semelhante ao que conecta corpo e alma nos seres humanos. Aristóteles falou disso depois de aprender com as crônicas da Idade de Ouro, e Cosme ficou fascinado com suas lições.Segundo o Augure, o velho banqueiro fundou uma academia no estilo das antigas, só para ensinar estes segredos aos artistas. Por culpa daquelas leituras se convencera de que o desenho de obras de arte era uma ciência exata. Um livro confeccionado de acordo com certas chaves atuaria como reflexo das forças cósmicas e poderia ser utilizado para proteger ou destruir quem o possuísse. - O quê? Já se deu conta, frei Agustín? - a pergunta de Gozzoli me tirou do atordoamento. - O Augure diz que a arte pode ser empregada como arma!De fato. Um parágrafo mais abaixo a mensagem falava da força da geometria. O número, a harmonia, o som, eram elementos que podiam ser aplicados a uma obra de arte para que irradiasse influências benéficas ao redor. Pitágoras, um dos gregos defensores da Idade de Ouro que deslumbrou Cosme de Médicis, dizia que "os únicos deuses comprováveis são os números". O Augure amaldiçoava todos.- Uma arma - ciciei. - Uma arma que o Mouro pretende ocultar em Santa Maria delle Grazie.- Exato! - Gozzoli se mostrava ufano. - É justamente o que diz. Não é incrível?Começava a entender o repentino interesse do mestre Torriani em tudo isso. Anos atrás, nosso amado superior geral condenara os trabalhos do pintor Sandro Botticelli por causa de uma suspeita semelhante. Acusou-o de usar imagens inspiradas em cultos pagãos para ilustrar obras da igreja, embora a denúncia encerrasse algo mais. Graças aos informantes de Betânia, Torriani soube que Botticelli, na Villa di Castello da família Médicis, representara a chegada da primavera utilizando uma técnica "mágica". As ninfas que dançavam no quadro foram dispostas como as peças de um gigantesco talismã. Mais tarde Torriani averiguou que Lorenzo di Pierfrancesco, patrão

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de Botticelli, pedira-lhe um amuleto contra o envelhecimento. O quadro era o remédio mágico solicitado. Na realidade, continha todo um tratado contra o passar do tempo que incluía a metade das divindades do Olimpo dançando contra o avanço de Cronos. E pretendiam passar por devota uma obra assim, propondo-a como decoração para uma capela florentina!Nosso mestre geral descobriu a infâmia a tempo. A chave foi dada por uma das ninfas da Primavera, Chloris, pintada com um ramo de trepadeira saindo da boca. Era o símbolo inequívoco da "linguagem verde" dos alquimistas, desses buscadores da eterna juventude absorvidos por idéias espúrias a quem o Santo Ofício perseguia onde quer que surgissem. Mesmo em Betânia jamais conseguimos decifrar os detalhes dessa misteriosa linguagem; bastou a suspeita para que o quadro jamais fosse exibido numa igreja.Mas agora, se o Augure estava certo, a história ameaçava se repetir em Milão.- Diga-me, irmão Giovanni, sabe por que o mestre Torriani me pede para estudar esta mensagem?Meu assistente, que já se sentara numa carteira ao lado e se distraía olhando um livro de horas recém-desenhado, fez cara de quem não entendia a pergunta:- Como? Não chegou ao fim da carta?Voltei a olhar para ela. No último parágrafo, o Augure falava da morte de Beatrice d'Este e do muito que esta ia acelerar a realização do plano mágico do Mouro.- Nada vejo de particular, querido Giovannino - protestei.- Não lhe chama a atenção que cite a morte da duquesa em termos tão explícitos?- E por que deveria citar?O padre Gozzoli bufou:- Porque o Augure datou e enviou esta carta em 30 de dezembro.Dois dias antes do parto desgraçado de donna Beatrice.Jura que escondeu um segredo nesta parede? Marco d'Oggiono esfregava o queixo, perplexo, enquanto olhava de novo o mural que o mestre pintava. Leonardo da Vinci se divertia com aqueles jogos. Quando estava de bom humor, e estava nesse dia, era difícil encontrar nele o famoso pintor, inventor, construtor de instrumentos musicais e engenheiro, favorito do Mouro e

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aplaudido em meia Itália. Naquela fria manhã, o mestre tinha o olhar de menino travesso. Mesmo sabendo que contrariava os frades, aproveitara a calma tensa vivida por Milão após a morte da princesa para inspecionar seu trabalho no refeitório dos padres dominicanos. Estava ali em cima, satisfeito entre apóstolos, encarapitado num andaime de seis metros de altura e saltando de tábua em tábua como um cavalo.- Claro que há um segredo! - gritou. Seu riso contagiante ecoou nas abóbadas vazias de Santa Maria delle Grazie. - Basta olhar com atenção minha obra e levar em conta os números. Conte! Conte! - riu.- Mas, mestre...- Está bem - Leonardo sacudiu a cabeça, condescendente, espichando a última sílaba à maneira de protesto. - Vejo que será difícil ensinar você. Por que não pega a Bíblia ali embaixo, junto com a caixa dos pincéis, e lê o capítulo treze de João, a partir do versículo vinte e um? Talvez assim você encontre a iluminação.Marco, um dos jovens e enfeitados discípulos do toscano, correu em busca do livro sagrado. Apanhou-o no peitoril isolado junto à porta e o sopesou. Devia pesar vários quilos. Com esforço, Marco folheou aquele exemplar impresso em Veneza, com capa de couro preto cinzelado em cobre, até que o evangelho de João se abriu diante dele. Era uma   edição bonita, com gravuras florais no alto das páginas, cheia de letras góticas grandes e pretas.- "Dito isto", começou a recitar, "comoveu-se Jesus em seu espírito, e, demonstrando-o, disse: 'Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me entregará.' Os discípulos, pois, olhavam uns para os outros, sem saber de quem Ele falava. Um dos discípulos, aquele que Jesus amava, estava recostado ao peito de Jesus. Simão fez-lhe sinal, dizendo-lhe: 'Pergunta-lhe de quem é que Ele fala'.”- Chega! Está bem! - troou Leonardo, lá no andaime. - Olhe agora aqui e me diga: você ainda não entende meu segredo?O discípulo fez que não com a cabeça. Marco já sabia que o mestre tinha algum truque engatilhado.- Meser Leonardo - e sua recriminação tinha um tom de franca decepção. - Já sei que está trabalhando nesta passagem evangélica. Não me revela nada de novo mandando-me ler a Bíblia. O que eu quero é saber a verdade.

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- A verdade? Que verdade, Marco?- Há boatos na cidade de que o senhor demora em acabar esta obra porque deseja esconder algo importante nela. Substituiu a técnica do afresco por outra nova e mais lenta. Por quê? Vou dizer: porque assim poderá pensar melhor aquilo que deseja transmitir.Leonardo não pestanejou.- Eles conhecem sua preferência pelos mistérios, mestre, e eu tam bém quero conhecê-los todos!... Três anos ao seu lado, preparando mis turas e ajudando suas mãos com os esboços e os desenhos sobre cartão, creio que deveriam me dar alguma vantagem sobre o pessoal de fora, não?- Sim, sim. Mas quem diz todas essas coisas, pode-se saber?- Quem, mestre? Todos! Até os monges desta casa santa param com freqüência seus discípulos e perguntam a eles!- E o que comentam, Marco? - voltou a rugir lá de cima, cada vez mais divertido.- Que seus Doze não são verdadeiros retratos dos apóstolos, como seriam pintados por frei Filippo Lippi ou Crivelli, que refletem as doze constelações do zodíaco, que escondeu nos gestos de suas mãos as notas de uma de suas partituras para o Mouro... Dizem qualquer coisa, mestre.- E você?- Eu?- Sim, sim, você. - Outro sorriso pícaro voltou a iluminar o rosto de Leonardo. - Estando tão perto de mim, trabalhando todos os dias numa sala tão magnífica, a que conclusão você chegou?Marco levantou o olhar até a parede em que o toscano dava alguns retoques com um pincel de cerdas finíssimas. A parede norte acolhia a representação da última ceia mais extraordinária que Marco jamais vira. Ali estava Jesus, presente em carne e osso, no centro exato da composição. Tinha o olhar lânguido e os braços estendidos, como se estudasse de soslaio as reações dos discípulos à revelação que acabara de fazer. Ao seu lado estava João, o amado, que escutava Pedro sussurrando alguma coisa. Apurando os sentidos, quase podia vê-los mover os lábios. Eram tão reais!

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Mas João já não estava encostado no mestre como dizia o evangelho. Dava até a impressão de nunca ter estado. Do outro lado de Cristo, Felipe, o gigante, mantinha-se de pé, afundando as mãos no peito. Parecia interrogar o Messias: "Acaso sou eu o traidor, Senhor?" Ou Tiago, que estufava o peito como se fosse um guarda-costas, jurando lealdade eterna: "Ninguém lhe fará mal enquanto eu estiver por perto", fanfarronava.- E então, Marco? Você ainda não se pronunciou.- Não sei, mestre... - titubeou. - Este seu mural tem algo que me desconcerta. É tão, tão...- Tão?...- Tão próximo, tão humano que me deixa sem palavras.- Muito bem! - aplaudiu Leonardo, secando as mãos no avental. - Está vendo? Sem querer já está mais perto de meu segredo.- Não entendo, mestre.- E talvez não entenda nunca - sorriu. - Mas escute o que vou dizer:tudo na natureza contém algum mistério. As aves nos ocultam as chaves de seu vôo, a água encerra com precaução o porquê de sua força extraordinária... E se conseguirmos que a pintura seja um reflexo dessa natureza, não seria justo incorporar nela essa mesma e enorme capacidade de guardar informação? Cada vez que você admirar uma pintura lembre-se que está entrando na mais sublime das artes. Nunca fique na superfície: penetre na cena, mexa-se entre seus elementos, descubra os ângulos inéditos, fareje o que está nos fundos... e assim você chegará ao verdadeiro significado. Mas advirto: necessita-se conhecimento para isso. Não poucas vezes o que encontramos num mural como este fica longe do que esperávamos encontrar. Dito e feito.  Frei Giovanni cumpriu sem vacilar a segunda parte da missão encomendada pelo mestre geral.Depois de nossa conversa e de me mostrar a última carta do Augure, regressou à casa mãe da ordem, deixando Betânia antes de anoitecer. Torriani ordenou que voltasse para informá-lo de minha reação. Fm especial, queria saber que opinião eu tinha sobre os boatos de graves anomalias nas obras de adaptação de Santa Maria delle Grazie. Meu assistente devia transmitir-lhe minha

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mensagem, clara e simples: se finalmente levassem em conta meus velhos temores e se tomassem como prováveis as revelações do Augure, deviam localizá-lo em Milão e conhecer dele próprio o alcance dos projetos secretos que o duque tinha para aquele convento.Insisti com frei Giovanni:- Em especial, deve-se examinar os trabalhos de Leonardo da Vinci. Em Betânia já sabíamos de sua mania de mascarar idéias heterodoxas em obras de aparência piedosa. Leonardo trabalhou muitos anos em Florença, teve contato com os descendentes de Cosme, o Velho, e, entre todos os artistas que trabalham em Santa Maria, é o mais propenso a participar das idéias do Mouro.Gozzoli acrescentou minha outra grande preocupação ao seu relatório para o mestre Torriani: insisti na necessidade de abrir uma investigação sobre a morte de donna Beatrice. O vaticínio tão preciso do Augure sugeria a existência de algum sinistro plano ocultista, talvez idealizado pelo duque Ludovico ou por seus pérfidos assessores, para estabelecer uma república pagã no coração da Itália. Ainda que não houvesse muito sentido em que o duque mandasse assassinar sua mulher e o filho nonato, a mentalidade dos adeptos das ciências ocultas   percorria amiúde atalhos imprevisíveis. Não era a primeira vez que ouvia falar da necessidade de sacrificar uma vítima notável antes de empreender uma grande obra. Os antigos, esses bárbaros da Idade de Ouro, faziam-no com freqüência.Suponho que minha decisão animou Torriani.O mestre geral avisou o irmão Gozzoli de suas intenções e na manhã seguinte, com a geada ainda caindo sobre Roma, abandonou suas dependências no mosteiro de Santa Maria sopra Minerva disposto a cortar aquele problema pela raiz.Desafiando os acessos nevados da Gidade Eterna, Torriani subiu ao quartel de Betânia em mula e solicitou uma entrevista comigo com a maior brevidade. Ainda ignoro que termos o irmão Gozzoli empregou para informá-lo sobre minhas idéias, mas era evidente que o impressionara. Nunca vi nosso mestre assim: duas bolsas arroxeadas caíam como chumbo de seu olhar cinzento, apagando-o; suas costas pareciam se vergar sob o peso de uma responsabilidade plúmbea, devorando pouco a pouco seu caráter alegre e

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afundando uns ombros que também se enfraqueciam por momentos. Torriani, mentor, guia e velho amigo, consumia o que lhe restava de vida com as marcas de uma decepção gravadas no rosto. E ainda assim, por trás do brilho de seus olhos, percebia-se uma sensação de urgência:- Pode atender um pobre servo de Deus, molhado e doente? - disse logo que me viu no átrio de Betânia.Mentiria se jurasse que não me surpreendeu encontrá-lo ali tão cedo. Ele subira ao nosso alojamento sozinho, sem séquito, com uma manta sobre o hábito e as sandálias cobertas por enormes peles de coelho. Se o superior da Ordem de São Domingos abandonava assim nossa casa mãe e a paróquia, e cruzava a cidade em pleno temporal para se reunir com o responsável por seu serviço de informação, o assunto devia ser gravíssimo. Ainda que seu rosto sombrio convidasse a começar logo a conversa, não me atrevi a perguntar nada. Esperei que retirasse sua manta e consumisse o copo de vinho quente que lhe oferecemos. Subimos ao meu pequeno estúdio, um recinto escuro apinhado de caixas e manuscritos, de onde se descortinava toda Roma, e mal se fechou a porta o padre Torriani confirmou meus temores.- Claro que vim aqui por causa dessas cartas perversas! - protestou, arqueando as sobrancelhas brancas. - E você me pergunta quem creio que seja o autor? Logo você, padre Leyre?Torriani respirou fundo. Sua natureza doentia lutava para se exaltar, enquanto o vinho ia ajustando o tom pouco a pouco. Fora, a neve aumentava gradualmente no vale.- Minha impressão - continuou - é que nosso homem tem de ser alguém do séquito do duque ou, pelo menos, algum irmão do novo convento de Santa Maria delle Grazie. Trata-se de uma pessoa que conhece bem nossos costumes e sabe a quem dirigir as cartas. No entanto...- No entanto?- Veja, padre Leyre: desde que li a carta que lhe enviei ontem quase não consegui pregar o olho. Lá fora há alguém que nos avisa sobre uma grave traição contra a Igreja. O assunto é muito sério, sobretudo se, como temo, nosso informante procede da comunidade de Santa Maria...- Acredita que o Augure é um dominicano, padre?

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- Estou quase seguro. Alguém de dentro, testemunha dos avanços do Mouro, que não se atreve a denunciá-lo por medo de represálias.- E suponho que já estudou a vida desses frades em busca de seu candidato, não é verdade?Torriani sorriu satisfeito:- Todos eles. Sem exceção. A maioria procede de boas famílias lombardas. São religiosos leais ao Mouro e à Igreja, homens pouco da dos a fantasias ou conspirações. Bons dominicanos, em suma. Não posso imaginar quem possa ser o Augure.- Se é que algum deles é o Augure.- Certamente.- Permita-me recordar, mestre Torriani, que a Lombardia sempre foi terra de hereges...O geral da ordem, friorento, conteve um espirro antes de responder:- Isso foi há muito tempo, padre. Muito. Há mais de duzentos anos não resta nem rastro da heresia albigense na região. É certo que aqueles malditos que inspiraram nosso amado São Domingos a criar a Santa Inquisição se refugiaram ali depois da cruzada albigense,* mas todos morreram sem contagiar ninguém com suas idéias.Em 1208, o papa Inocêncio III ordenou a erradicação da heresia albigense, criando uma força militar para exterminar os heterodoxos do Languedoc francês. Embora se aceite que em 1244 foram extintos os últimos hereges no assédio de Montségur, muitos historiadores advertem que famílias inteiras de "homens bons" se refugiaram na Lombardia perto da atual Milão, onde permaneceram durante muito tempo a salvo da perseguição de Roma, perseverando em sua fé original.- E no entanto não se pode descartar a idéia de que sua blasfêmia penetrou na mentalidade dos milaneses. Por que então os milaneses seriam tão abertos a idéias heterodoxas? Por que então o duque aceitaria crenças pagãs se ele mesmo não tivesse crescido num ambiente predisposto a isso? E por que razão - prossegui - um dominicano fiel a Roma haveria de se esconder por trás de umas mensagens sem assinatura, a não ser que ele mesmo participe da heresia que agora denuncia?

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- Patranhas, padre Leyre! O Augure não é um albigense. Pelo contrário: preocupa-se em manter a ortodoxia com mais zelo do que o próprio inquisidor geral de Carcassonne.- Esta manhã, antes de você chegar, li outra vez todas as cartas desse indivíduo. O Augure deixa claro seu objetivo desde a primeira carta que nos mandou: deseja que enviemos alguém para deter os planos do Mouro em Santa Maria delle Grazie. É como se o que o duque fez no resto de Milão, as praças, os canais para a navegação interior, as comportas, não importassem... E isso reafirma a sua hipótese.Torriani concordou com deleite.- Mas mestre - eu o contradisse -, antes de atuar deveríamos avaliar se sua petição encerra alguma armadilha.- Como? Você pretende deixar o Augure sozinho apesar das provas que nos ofereceu? Mas se você mesmo há tempo denuncia os desvios doutrinários da falecida mulher do Mouro!- Exatamente. Essa família é esperta. Não será fácil encontrar argumentos contra ela. Digo que devemos exercitar o máximo de prudência antes de dar um passo errado.- Não, padre. Nada disso. Esse homem, seja quem for, pede-nos ajuda e já não podemos negá-la por mais tempo. Além disso, saiba que por intermédio do cardeal Ascânio, irmão do duque, comprovei até os mínimos detalhes que aparecem em seus relatórios. E, creia, todos são exatos.- E se existisse um complô de tal alcance que todas as provas seriam ocultadas com rapidez pelos cúmplices do Mouro.- E então?Torriani abriu a porta do estúdio e desceu a escada até o portão de entrada, sem responder. Foi ao pátio das cavalariças e buscou sua mula, dando por encerrada aquela reunião de urgência. A nevasca continuava ganhando força do lado de fora.- Diga-me, o que pensa fazer? - repeti.- O Mouro previu que dentro de dez dias será celebrado o funeral oficial da duquesa - respondeu por fim. - Chegarão a Milão delegações de todas as partes, e então será fácil se infiltrar em Santa Maria para fazer as investigações destinadas a localizar o Augure. No entanto - acrescentou -, não

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podemos enviar um religioso qualquer. Deve ser alguém com critério, que conheça leis, heresias e códigos secretos. Sua missão será encontrar o Augure, confirmar uma por uma suas afirmações e deter a heresia. O escolhido deve ser um homem desta casa. De Betânia.O mestre lançou um olhar receoso ao caminho que estava a ponto de empreender. Com sorte levaria uma hora para percorrê-lo, e, se a montaria não o jogasse sobre alguma placa de gelo, chegaria em casa ao calor do meio-dia.- O homem que necessitamos - disse como se fosse anunciar algo importante - é você, padre Leyre. Nenhum outro resolveria com maior eficiência este assunto.- Eu? - Aquilo me deixou perplexo. Pronunciara meu nome com um deleite mórbido, enquanto procurava algo nos alforjes da montaria.- Mas o senhor sabe que tenho trabalho aqui, obrigações...- Nenhuma obrigação como esta!E extraindo um grosso feixe de papéis, presos com seu selo pessoal, passou-os para mim com sua última ordem:- Você partirá com rapidez para Milão. Hoje mesmo se for possível.E com isso - olhou o maço de documentos que já estavam nas minhas mãos - identificará nosso informante, averiguará quanta verdade existe por trás deste novo perigo e tratará de corrigi-lo.O mestre apontou o pergaminho que encabeçava o maço. Nele, em letras grandes escritas com tinta vermelha, lia-se a adivinhação que continha a assinatura de nosso informante. Vira-a muitas vezes, encerrava cada uma das cartas do Augure, mas até então não prestara atenção nela.Minha vista quis se nublar ao focalizar aquelas sete linhas e sentir que se converteram em meu principal problema.Diziam:

Óculos éjus dinumera, sednoli voltum àdspicere.In latere nominis mei notam rínvenies.Contemplari et contemplata aliis iradere.

Obedeci, naturalmente. Que outra coisa poderia fazer? Cheguei a Milão depois da noite do dia de Reis. Era uma dessas manhãs de sábado em que o

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brilho da neve cega você e o ar limpo esfria sem piedade suas entranhas. Cavalgara sem descanso para atingir meu destino, dormindo três ou quatro horas em pousadas nauseabundas, entorpecido e úmido por causa de uma viagem de três jornadas na metade do inverno mais cruel de que era capaz de recordar. Mas nada disso importava. Milão, a capital da Lombardia, a sede de intrigas palacianas e disputas territoriais com a França e os condados vizinhos, sobre o que eu tanto estudara, descansava já aos pés de minha montaria.O lugar era impressionante. A cidade dos Sforza, a maior ao sul dos Alpes, tinha o dobro de extensão de Roma; oito grandes portas ladeavam uma muralha impenetrável que rodeava uma urbe de planície redonda que vista do céu devia lembrar o escudo de um guerreiro gigantesco. No entanto, não foram suas defesas que me surpreenderam; aquela era uma cidade nova, limpa, que transmitia uma intensa sensação de ordem. Os cidadãos não urinavam nas esquinas, como em Roma, nem as prostitutas investiam sobre os caminhantes, oferecendo-se. Ali, cada casa, cada prédio público pareciam pensados para uma função suprema. Até sua orgulhosa catedral, de aspecto frágil e esquelético, diferente em tudo das maciças e volumosas catedrais do sul italiano, espargia suas benéficas influências sobre o vale. Vista das colinas, Milão parecia o último recanto do mundo em que se poderia enraizar a desordem e o pecado.Um trecho antes de chegar à Porta Ticinese, o mais nobre dos acessos ao burgo, ura amável mercador se ofereceu para me acompanhar até a torre de Filarete, a entrada principal da fortaleza do Mouro. Situado   num dos extremos do escudo urbano, o castelo dos Sforza parecia uma réplica em miniatura das enormes muralhas da cidade. O mercador riu ao ver minha cara de espanto. Disse que era curtidor em Cremona, bom católico, que me acompanharia com prazer até o interior da fortaleza em troca de minha bênção para ele e sua família. Aceitei o trato.O bom homem me deixou em frente ao castelo do duque justamente na nona hora. Aquele lugar era ainda mais magnífico do que eu supusera. Bandeirolas com a terrível insígnia dos Sforza - uma espécie de serpente gigante devorando um desgraçado - caíam das ameias. Faixas azuis tremulavam ao vento, enquanto meia dúzia de enormes chaminés, fincadas em algum lugar do interior da fortaleza, lançavam grandes baforadas de fumaça preta e espessa.

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A entrada de Filarete constava de uma ameaçadora grade de ferro e duas partes móveis da ponte elevadiça rebitadas de bronze, dobradas sobre si próprias. Pelo menos quinze homens a vigiavam, furando com lanças os sacos de cereal que as carroças queriam deixar perto das cozinhas.Um daqueles uniformizados me apontou o caminho. Eu devia me dirigir ao extremo oeste da torre, já dentro da fortaleza, e perguntar pela área de recepção de visitas e o "escritório de luto" instalado para receber as delegações que viriam para o funeral de donna Beatrice. Meu cicerone de Cremona já me advertira que toda a cidade pararia ao chegar aquele momento. E, de fato, nessa hora não havia muita atividade. Surpreendeu-me que o secretário do Mouro, um cortesão espigado de rosto inexpressivo, quase não tardasse em me receber. O servidor se desculpou por não poder conduzir este servo de Deus até seu senhor. Ainda assim, examinou minha carta de apresentação com ar cético, comprovou que o selo pontifício era autêntico e a devolveu com um gesto de desolação.- Lamento, padre Leyre - e Marchesino Stanga, como ele se chama va, desfez-se numa torrente de desculpas. - Deve entender que meu se nhor não recebe ninguém depois da morte de sua mulher. Suponho que compreende o difícil momento que atravessamos e a necessidade do duque de ficar a sós.- Claro - concordei com fingida cortesia.- No entanto - acrescentou -, quando passar o luto farei chegar a ele a notícia de sua presença na cidade.Gostaria de poder fitar os olhos do Mouro e deduzir, como em tantos interrogatórios que presenciei, se ocultavam ou não sinistras sombras da heresia ou do crime. Mas aquele funcionário, vestido com um gorro de cochinilha guarnecida de peles e gibão de veludo, que falava com ar de mesquinha superioridade, estava decidido a me impedir.- Tampouco podemos hospedá-lo, como é nosso costume - disse com secura. - O castelo está fechado e não recebemos hóspedes. Rogo- lhe, padre, que reze pela alma de donna Beatrice e que retorne depois do funeral. Então o atenderemos como merece.- Requiescat in pace - murmurei enquanto fazia o sinal da cruz. - Assim farei. Também rezarei pelo senhor.

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Tive uma sensação estranha. Impossibilitado de me instalar perto do duque e sua família, frustrado em meu propósito de deambular com mais ou menos liberdade por seu castelo, minhas primeiras pesquisas ainda demorariam. Devia conseguir um alojamento discreto que me garantisse certo ambiente de estudo. Com os documentos de Torriani queimando em minha bolsa, ia precisar de calma, três pratos de comida por dia e uma boa dose de sorte para decifrar o segredo. Não era prudente que um monge buscasse pousada entre os leigos, portanto minhas opções logo se reduziram a duas: ou me instalava no antigo convento de São Eustórgio ou no novíssimo de Santa Maria delle Grazie, onde a possibilidade de cruzar com o Augure excitava minha imaginação. Depois, com o abrigo resolvido, haveria tempo de submergir na chave que o mestre Torriani me entregou em Betânia.Reconheço que a Divina Providência fez um trabalho exemplar. São Eustórgio se revelou logo a pior das opções. Situado perto da catedral, junto ao mercado de mantimentos, costumava ficar cheio de curiosos que não tardariam a se perguntar que tipo de assunto retinha ali um inquisidor romano. Mesmo que sua situação me desse certo distanciamento sobre as atividades do Augure, economizando o risco de encontrá-lo cara a cara sem saber de quem se tratava, também sabia que me oferecia mais inconvenientes do que vantagens.QuanTo à outra opção, a de Santa Maria delle Grazie, além de ser o presumível refúgio de meu objetivo, só apresentava outro pequeno mas superável defeito: era ali que se celebrariam as multitudinárias exéquias   de donna Beatrice. Sua igreja, reformada havia pouco por Bramante, estava a ponto de se converter no centro de todos os olhares.Em compensação, Santa Maria dispunha de tudo o que se precisaria. Sua bem sortida biblioteca, situada no segundo piso de um dos prédios que davam para o que ali chamavam de Claustro dos Mortos, abrigava livros de Suetônio, Filóstrato, Plotino, Xenofonte e até alguns do próprio Platão importados no tempo de Cosme, o Velho. Situava-se perto da fortaleza do duque e não muito longe da Porta Vercellina. Tinha uma excelente cozinha, um extraordinário forno de pastelaria, porão, horto, alfaiataria e hospital. E, se não fosse pouco, todas aquelas vantagens empalideciam diante de uma única: se o mestre Torriani não se enganava, talvez o Augure pudesse surgir diante de mim em seus corredores, sem necessidade de resolver adivinhação alguma.

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Fui um ingênuo.Menos nesse aspecto concreto, a providência fez bem seu trabalho: em Santa Maria havia uma cela disponível que me foi atribuída de imediato. Tratava-se de um quartinho de três passos por dois, um catre de madeira sem colchão e uma mesa pequena situada sob um pobre postigo que dava para a rua chamada Magenta. Os frades não fizeram perguntas. Examinaram minhas credenciais com o mesmo olhar de desconfiança do secretário Stanga, mas relaxaram quando garanti que fora à sua casa em busca de serenidade para meu atribulado espírito.- Até um inquisidor necessita de recolhimento - assegurei.E eles entenderam. Só impuseram uma condição. O sacristão, um frade de olhos saltados e sotaque estranho, advertiu-me, severo:- Nunca entre sem permissão no refeitório. O mestre Leonardo não quer que alguém interrompa seu trabalho e o abade deseja satisfazê-lo em tudo. Entendeu?Concordei.A  primeira coisa que visitei foi a biblioteca de Santa Maria. Sentia uma grande curiosidade. Situada sobre o polêmico e agora restrito refeitório que o Augure convertera em foco de todo o mal, era uma peça ampla, de janelas retangulares, atravessada por uma dezena de pequenas mesas de leitura e uma grande carteira para o bibliotecário. Justamente atrás dele, depois de um grosso portão com fechadura, guardavam-se os livros. O que mais me chamou a atenção foi o sistema de calefação: uma caldeira no piso inferior fornecia vapor de água a condutos de cobre que esquentavam as lajes do solo.- Não é pelos leitores - apressou-se a me explicar o responsável pelo lugar quando me viu farejando com interesse aquele dispositivo engenhoso. - É pelos livros. Guardamos exemplares muito valiosos para deixar que sejam estragados pelo frio.Creio que o padre Alessandro, guardião e custódio daquela sala, foi o primeiro monge que não me olhou com desconfiança, e sim com uma descarada curiosidade. Comprido, ossudo, de pele branquíssima e modos finos, parecia encantado por ver uma cara nova em seus domínios.- Não costuma vir muita gente aqui - admitiu. - E muito menos de Roma!- Ah... Já sabe que sou romano?

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- As notícias voam, padre. Santa Maria ainda é uma comunidade pequena. Não creio que a esta hora haja alguém na comunidade que não saiba da chegada de um inquisidor em nossa casa.O frade me piscou um olho em sinal de cumplicidade.- Não estou aqui era missão oficial - menti. - Vim por motivos pessoais.- E que importa! Os inquisidores são homens de letras, estudiosos.  E aqui quase todos os frades têm dificuldade de ler ou escrever. Se ficar algum tempo conosco, creio que nos faremos boa companhia. Logo acrescentou:- É certo que em Roma trabalha na Secretaria de Chaves?- Sim... - hesitei.- Magnífico, padre. Isso é magnífico. Vamos ter muito o que falar.Creio que escolheu o melhor lugar do mundo para passar alguns dias.Alessandro me pareceu simpático. Beirava os cinqüenta, apresentava sem complexos um nariz em forma de gancho e o queixo mais saliente que eu jamais vira. O pomo-de-adão lutava para saltar da garganta. Tinha, sobre a mesa, grossas lentes com que devia aumentar as letras dos livros, e as mangas do hábito exibiam enormes nódoas de tinta. Não quis me abrir com ele de imediato - de fato, tentava não olhá-lo muito para não ser hipnotizado por aquele rosto contrafeito -, embora admitisse que uma corrente de afeto sincero circulou logo entre nós. Insistiu em atender às minhas carências enquanto estivesse no convento. Ofereceu-se para me mostrar os recantos daquele esplêndido lugar em que tudo parecia novo e me prometeu que velaria pela minha tranqüilidade para que pudesse me concentrar.- Se o seu exemplo se multiplicasse e mais frades viessem a esta casa para estudar - queixou-se, como se não pudesse conter a língua -, logo poderíamos convertê-la num Estúdio Geral, como os de Roma, e quem sabe numa universidade...- Os frades não vêm estudar aqui?- Poucos, considerando o que este lugar pode oferecer. Mesmo que pareça modesta, esta biblioteca reúne uma das coleções de textos antigos mais importantes do mundo.- Ah, sim?

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- Perdoe-me se peco por imodéstia, mas trabalho nela há muito tempo. Talvez a um romano culto como o senhor ela pareça pequena perto da Biblioteca Vaticana, mas acredite-me que aqui entesouramos textos que nem os bibliotecários do papa imaginam... - Então - disse, com cortesia - será um privilégio poder consultá-los.Frei Alessandro inclinou a cabeça como se aceitasse o elogio, ao mesmo tempo em que revolveu seus papéis procurando algo importante.- Antes preciso um pequeno favor seu. Na verdade, caiu do céu.Para alguém como o senhor, treinado em decifrar mensagens para a Secretaria de Chaves, uma adivinhação como esta será moleza.O dominicano estendeu um pedaço de papel com algo garatujado. Era um desenho simples. Uma escala musical tosca interrompida por uma espécie de nota fora do lugar {za, ou si bemol) e um anzol. Assim:  - O quê? - perguntou impaciente. - Já entendeu? Estou tentando há três dias sem êxito.- E o que supõe que se deve achar aqui?- Uma frase em língua românica.Observei a adivinhação sem chegar a intuir o significado. Era evidente que a chave devia estar naquele si bemol fora de lugar. As coisas fora de lugar sempre tinham a resposta, mas e o anzol? Organizei mentalmente aqueles elementos, começando pela leitura da escala, e sorri divertido.- É uma frase, certamente - disse por fim. - E muito simples.- Simples?- Basta saber ler, frei Alessandro. Veja, se você partir da tradução do anzol para a língua espanhola, que é "amo", o resto do desenho ganha logo sentido.- Não entendo.- É simples. Leia "amo" e em seguida as notas.O frade, indeciso, passou os dedos pelo desenho: - "L'amo... re... mi... fa... sol... Ia... za (si bemol)... re. Vamore mi fa sollazarel.. - Esse Leonardo é um pícaro! Verá quando eu o encontrar!Jogar com as notas musicais... Maledetto.- Leonardo?

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A menção daquele nome me devolveu à realidade. Eu fora à biblioteca em busca de um refúgio para decifrar a adivinhação do Augure. Uma chave que, se não nos enganávamos, relacionava-se com Leonardo, o refeitório proibido e o mural em que ele trabalhava.- Ah! - exclamou o bibliotecário ainda eufórico por sua descoberta.- Ainda não o conhece?Neguei com a cabeça.- É outro amante das adivinhações. Todas as semanas desafia a nós, monges, com uma adivinhação. Esta foi das mais difíceis...- Leonardo da Vinci?- E quem senão ele?- Acreditei... - hesitei - que não falava muito com os frades.- Só quando trabalha. Mas como mora aqui perto, muitas vezes passa para supervisionar seu mural e brinca conosco no claustro. Adora os duplos sentidos, os equívocos, e nos faz rir com suas lembranças."Os duplos sentidos.”Aquilo, longe de me divertir, inquietou-me. Estava ali para decifrar uma mensagem que zombara de todos os analistas de Betânia. Um texto, diferente daquela frase picara disfarçada por Leonardo em pentagrama, de cuja resolução dependiam vários assuntos de Estado. Como poderia perder tempo com aquela tagarelice insignificante?- Pelo menos - eu disse, cortante - seu amigo Leonardo e eu temos algo em comum: gostamos de trabalhar a sós. Poderia me dar uma carteira e zelar para que ninguém me incomode?Frei Alessandro entendeu que eu não pedia um favor. Apagou o sorriso de triunfo daquele rosto anguloso e concordou, obediente.- Fique aqui. Ninguém interromperá seu estudo.Naquela tarde, o bibliotecário cumpriu a palavra. As horas que passei diante dos sete versos que me foram entregues pelo mestre Torriani em Betânia foram algumas das mais solitárias que passei em Milão. Já ouviu falar do novo hóspede do convento de Santa Maria? Leonardo costumava dedicar as últimas horas de luz na contemplação da Última ceia. O Sol do ocaso transformava as figuras sentadas à mesa primeiramente em sombras avermelhadas e, depois, em perfis escuros, sinistros. Ia com

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freqüência ao convento de Santa Maria só para contemplar sua obra favorita e se distrair do resto de suas ocupações diárias. O duque o importunava para que terminasse a colossal estátua eqüestre em honra de Francesco Sforza, um cavalo monumental que o obcecava durante o dia; no entanto, até o Mouro era consciente de que a verdadeira paixão de Leonardo estava no refeitório de Santa Maria. Aquele mural de cinco metros por nove era a maior obra que já empreendera. Só Deus sabia quando ele a terminaria, mas esse detalhe pouco importava ao gênio. Tão abstraído estava diante de sua mágica criação que Marco d'Oggioni, o mais curioso dos discípulos do toscano, teve de repetir a pergunta:- Não ouviu mesmo falar dele?O mestre, abstraído, negou com a cabeça. Marco o encontrou sentado numa caixa de madeira no centro do refeitório, com sua cabeleira branca como neve solta, tal como se habituara ao concluir o dia de trabalho.- Não... É alguém interessante, caro?- É inquisidor, mestre.- Profissão terrível então.- O caso, meser, é que também ele parece interessado em seus segredos.Leonardo desviou a vista do Cenacolcf e buscou o olhar azul de seu Termo coloquial com que se conhece em Milão a Última ceia.- Meus segredos? Você pergunta de novo por eles, Marco? Estão todos aqui. Já disse ontem. À vista. Há anos aprendi que se você deseja ocultar algo da estupidez humana o melhor lugar é esse em que todo o mundo pode vê-lo. Você entende, não é verdade?Marco assentiu sem muita convicção. O bom humor que o mestre exibira no dia anterior se desfizera por completo.- Pensei muito no que me disse ontem, mestre. E creio ter compreendido algo mais sobre este lugar.- Verdade?- Apesar de trabalhar em solo sagrado e sob a supervisão de homens de Deus, na sua Ceia não quis pintar a primeira missa de Cristo, não é certo?As sobrancelhas ruivas e estufadas do mestre levitaram de assombro. Marco d'Oggiono prosseguiu:

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- Não finja surpresa. Jesus não segura a hóstia na mão, não renova o sacramento da eucaristia, e seus discípulos não comem nem bebem. Se quer recebem a bênção.- Grande - exclamou. - Continue. Está no bom caminho.- O que não entendo, mestre, é por que pintou esse nó corredio no extremo da mesa. O vinho e o pão estão nas Escrituras: o peixe, apesar de não ser citado por qualquer dos evangelistas, posso entender como um símbolo do próprio Cristo. Mas quem falou de um nó corredio no mantel do banquete pascal?Leonardo estendeu a mão em direção de Oggiono, chamando-o para junto de si.- Vejo que você tentou entrar no mural. Vai bem.- E, no entanto, continuo longe do seu segredo, não é?- Não se preocupe em chegar ao objetivo, Marco. Contente-se ape nas em percorrer o caminho.Marco abriu os olhos, atônito.- Escutou-me, mestre? Não o preocupa que um inquisidor chegou ao convento e ande perguntando pela sua Ceia.- Não.- Não? É só isso? - E que deseja que eu diga? Tenho coisas mais importantes com que me preocupar. Como concluir esta Ceia e... seu segredo. - Leonardo puxou a barba com um gesto divertido antes de prosseguir: - Sabe, Mar co? Quando por fim descobrir o segredo que estou pintando e for capaz de lê-lo pela primeira vez, não poderá deixar de vê-lo jamais. E se perguntará como pôde estar tão cego. Esses, e não outros, são os segredos mais bem guardados. Os que estão diante de nossos narizes e não somos capazes de ver.- E como aprenderei a ler sua obra, mestre?- Seguindo o exemplo dos grandes homens deste tempo. Como Toscanelli, o geógrafo, que já acabou de desenhar seu próprio segredo diante dos olhos de toda Florença.O discípulo nunca ouvira falar desse velho conhecido de Leonardo. Em Florença o chamavam de o Físico e embora ganhasse há muito a vida com seus mapas, fora antes médico e leitor apaixonado dos escritos de Marco Polo.

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- Mas você não saberá nada disso. - Leonardo sacudiu a cabeça. - Para que deixe de me acusar de não ensinar como ler um segredo, falarei hoje do que Toscanelli deixou na catedral de Florença.- Verdade? - Marco aguçou o ouvido.- Quando regressar àquela cidade, não deixe de ver a enorme cúpula que Filippo Brunelleschi construiu para o Duomo. Passe tranqüilo sob ela e se concentre na pequena abertura feita num dos lados. Nos dias de são João Batista e são João Evangelista, em junho e em dezembro, o Sol do meio-dia atravessa esse orifício a oitenta metros de altura e ilumina uma linha de mármore que meu amigo Toscanelli dispôs cuidadosa mente no solo.- Para quê, mestre?- Não compreendeu? É um calendário. Os solstícios ali marcados assinalam o início do inverno e do verão. Júlio César foi o primeiro a se dar conta e o primeiro a fixar a duração do ano em trezentos e sessenta e cinco dias e um quarto. Ele inventou o ano bissexto. E tudo graças à   observação do avanço do Sol sobre uma linha como aquela. Toscanelli, pois, dedicou-lhe esse engenho. Sabe como? Marco encolheu os ombros.- Colocando no início da meridiana de mármore, por esta ordem atípica, os signos de Capricórnio, Escorpião e Áries.- E o que têm a ver os signos do zodíaco com a homenagem a César, mestre?Leonardo sorriu.- O segredo está aí. Se você tomar as duas primeiras letras do nome de cada um desses signos, respeitando sua ordem, assim: ca-es-ar, terá o sobrenome oculto que buscávamos.- Ca-es-ar... Claro como a água! É perfeito!- É mesmo.- É algo assim que esconde seu Cemcolo, mestre?- Algo assim. Mas duvido que esse inquisidor que você tanto teme chegue a descobri-lo.- Mas...- E, por certo - atalhou-o -, o nó é um dos muitos símbolos que acompanham Maria Madalena. Um dia destes explico a você.Convertiam-se do latim oficial a uma gíria de consoantes e números graças a uns moldes de substituição muito elaborados, cunhados em bronze pelo meu

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admirado Leon Battista Alberti. Em geral, aqueles moldes eram formados por uma série de rodas superpostas em cujas bordas eram colocadas as letras do alfabeto. Com perícia e instruções mínimas, as letras da roda exterior eram substituídas pelas da roda inferior, cifrando assim qualquer mensagem.Tanta precaução tinha sua lógica: para a cúria, o pesadelo de se ver descoberta por nobres a quem odiavam, ou por cortesãos contra quem intrigavam, multiplicara por cem o trabalho da Betânia em pouco tempo e nos convertera em ferramenta imprescindível para o governo da Igreja. Mas como explicar tudo aquilo ao bom Alessandra? Como confessar que a chave que me atormentava se desviava dos métodos cifrados que eu conhecia e por isso me obcecava?Não. Óculos ejus dinumera não era dessa classe de mensagens que pudesse ser explicada a um leigo em códigos secretos.- Posso perguntar em que está pensando, padre Leyre? Começo a crer que não me dá atenção.Frei Alessandra puxou-me pelo hábito para reconduzir-me pelos escuros corredores do convento até a zona dos dormitórios.- Agora que já comeu - disse em tom patriarcal, sem perder aquele trejeito zombador com que me obsequiava desde nosso encontro -, será melhor que descanse até o ofício das laudes. Antes do amanhecer virei despertá-lo e me explicará o que tem entre as mãos. De acordo?Aceitei de má vontade.Àquela hora a cela estava gelada, e só a idéia de despir o hábito e me meter num catre úmido e duro me aterrava mais do que a vigília. Pedi ao bibliotecário que acendesse a vela sobre a mesinha e combinamos nos vermos e passar a alva no claustro do hospital para esclarecer certas coisas. Não que me seduzisse a idéia de compartilhar detalhes de meu trabalho com alguém. De fato, sequer apresentei meus respeitos ao prior de Santa Maria, mas algo me dizia que frei Alessandra, apesar de sua imperícia com as adivinhações, seria de utilidade naquela embrulhada.Vestido, deitei-me na cama e me cobri com a única manta de que dispunha. Ali, contemplando o teto de tábuas caiadas, tornei a rever o problema dos versos codificados. Tinha a sensação de que perdera algum detalhe. Algum absurdo, porém fundamental. E assim, com os olhos como pratos da balança,

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repassei tudo o que sabia sobre a origem das frases. Se não errava na minha apreciação e a madrugada não enganava minha inteligência, era bem claro que o nome de nosso informante anônimo - ou pelo menos sua cifra - se escondia nos primeiros dois versos.Era um jogo curioso. Como ocorre com certas palavras hebraicas, algumas têm, além de seu significado, um determinativo que complementa seu sentido. Os dois lemas dominicanos indicavam, pois, que nosso homem era um pregador. Disso estava quase seguro. Mas e as frases precedentes?Conte-lhe os olhos mas não olhe para a cara.A cifra de meu nome achará em suas costas.Olhos, cara, cifra, nome, costas...Na penumbra, com a mente exaurida, comecei a entender. Talvez se tratasse de outro beco sem saída, mas de repente o da cifra do nome não me pareceu tão absurdo. Os judeus chamavam de gematria a disciplina que atribui a cada letra de seu alfabeto um valor numérico. João, em seu Apocalipse, empregou-a com maestria ao escrever que "o que tiver inteligência que calcule o número da Besta. Pois é o número de um homem, e esse número é 666". Aquele 666 correspondia, com efeito, ao mais cruel dos varões de seu tempo: Nero César, cujas letras somadas davam a terrível cifra tripla. E se o Augure fosse um judeu convertido? E se, temendo alguma represália, ocultasse a identidade precisamente por esse detalhe de sua vida? Quantos monges de Santa Maria sabiam que são João era iniciado na gematria e apontou Nero em seu livro sem pôr em jogo sua vida?O Augure fez a mesma coisa?Antes de dormir, febril, transferi aquela idéia para o abecedário latino. Considerando que o A (o alef hebraico) equivale a 1, o B (bet) a 2, e assim sucessivamente, não era difícil transformar em cifras qualquer palavra. Agora só bastava somar entre si os números obtidos para que o produto resultante indicasse o valor numérico definitivo do termo eleito. A cifra. Os judeus, por exemplo, calcularam que o nome completo e secreto de Javé somava 72 e os cabalistas, os magos dos números hebraicos, complicaram mais ainda as coisas ao buscar os 72 nomes de Deus. Em Betânia zombávamos amiúde disso.

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No nosso caso, por desgraça, o assunto era mais obscuro, porque desconhecíamos até o valor numérico do nome do autor... se é que tinha algum. A menos que, seguindo ao pé da letra as instruções de seus versos, pudéssemos encontrar nas costas de alguém olhos que não pudéssemos ver na cara.E com esse enigma digno de uma esfinge, me deixei embalar pelo sono. Pouco antes do ofício das laudes frei Alessandro se apresentou em minha cela, risonho e feliz como um noviço. Devia pensar que não era todos os dias que um doutor chegado de Roma partilhasse com ele um enigma importante, e estava decidido a saborear seu dia de glória. Deu-me, no entanto, a impressão de que desejava fazê-lo pouco a pouco, como se temesse que a "revelação" se acabasse de repente e o deixasse insatisfeito. Por isso, não sei se por cortesia ou para dilatar o prazer de me ter em suas mãos, o fradeco considerou que a madrugada seria um bom momento para a confissão; isso sim, depois de me apresentar ao restante de sua comunidade.O relógio da cúpula de Bramante deu as cinco enquanto o bibliotecário me conduzia, entre as trevas e de rastros, até a igreja. O templo -localizado do lado oposto às celas, perto da biblioteca e do refeitório -constava de uma nave retangular de dimensões modestas, dispunha de uma abóbada cilíndrica sustentada por colunas de granito provenientes de algum mausoléu romano e era coberto do solo ao teto por afrescos com motivos geométricos, circunferências e sóis. O conjunto resultava algo carregado para meu gosto.Chegamos tarde. Apinhados no altar-mor, os irmãos de Santa Maria rezavam já o te deum sob a tênue luz de dois enormes candelabros. Fazia frio e o vapor exalado pelos frades esfumava seus rostos como uma espessa e misteriosa névoa. Alessandro e eu nos encostamos numa das pilastras do templo e os observamos de uma distância conveniente.- Aquele que está no canto - murmurou o bibliotecário, apontando Para um frade enfermiço, de olhos amendoados e cabelo branco crespo - é o prior Vicenzo Bandello. Ali onde está é douto entre os doutos. Há anos combate os franciscanos e sua idéia da imaculada concepção da Virgem... Muitos dizem que continua em desvantagem.- Estudou teologia?

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- Sem dúvida - assentiu com firmeza. - À direita dele, o rapaz moreno de pescoço comprido é seu sobrinho Matteo.- Já o vi.- Todos acreditam que algum dia será um escritor de renome. Mais adiante, junto à porta da sacristia, estão os irmãos Andrea, Giuseppe, Lucca e Jacopo. Não são apenas irmãos no sentido metafórico; também são filhos da mesma mãe.Olhei aqueles rostos um a um, tentando memorizar seus nomes.- Você disse que apenas uns poucos lêem e escrevem com fluência, verdade? - indaguei.Frei Alessandro não pôde avaliar a intenção oculta em minha pergunta. Se respondesse com precisão me permitiria descartar de um só golpe bom número de suspeitos. O perfil do Augure correspondia a um homem culto, instruído em muitas disciplinas e bem situado na corte do duque. Nessa altura acreditava que as probabilidades de fracassar em meus esforços para decifrar a chave eram elevadas - ainda me doía a proverbial lentidão com que examinei a adivinhação de Leonardo - e se tudo fosse mal só me restaria o remédio de encontrar o autor pela via da dedução. Ou da sorte.O bibliotecário passeou o olhar sobre os congregados, tentando recordar suas habilidades com o alfabeto:- Vejamos... - conjeturou. - Frei Guglielmo, o cozinheiro, lê e de clama poesia. Benedetto, o caolho, trabalhou como copista durante muitos anos. O bom monge perdeu o olho tentando escapar de um as salto em seu convento anterior, em Castelnuovo, enquanto protegia a cópia de um livro de horas. Desde então está sempre mal-humorado.Protesta por tudo, e nada do que façamos por ele parece satisfazê-lo.- E o pequeno?- Matteo, já disse, escreve como os anjos. Tem apenas doze anos, mas é um jovem esperto e inquieto... Deixe-me ver... - o bibliotecário hesitou de novo. - Adriano, Esteban, Nicola e Jorge aprenderam a ler comigo. E Andrea e Giuseppe também.Em poucos segundos, a relação dos candidatos saiu fora do leito. Devia tentar outra estratégia.

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- Diga-me, quem é o frade esbelto, alto e forte, da esquerda? - perguntei, curioso.- Ah! Esse é Mauro Sforza, o coveiro. Sempre se esconde atrás de algum irmão, como se temesse ser reconhecido.- Sforza?- Bem... É um primo afastado do Mouro. Faz tempo que o duque nos pediu o favor de admiti-lo no convento e o tratássemos como outro qualquer. Nunca fala. Tem sempre este aspecto assustado, e dizem as más línguas que é por tudo o que se passou com seu tio materno Gian Galeazzo.- Gian Galeazzo? - pulei. - Quer dizer Gian Galeazzo Sforza?- Sim, sim. O legítimo duque de Milão, morto há três anos. O mesmo que convenceu o Mouro a ficar com o trono. O pobre frei Mauro era quem cuidava de Gian Galeazzo antes que o mandassem para cá, e seguramente foi ele quem lhe administrou a beberagem de leite quente, vinho, cerveja e arsênico que lhe derreteu o estômago e o matou em três dias de agonia.- Ele o matou?- Digamos que o usaram para cometer o crime. Mas isso - soprou entre os dentes, satisfeito por me surpreender - é segredo de confissão; já me entende...Observei Mauro Sforza dissimuladamente, compadecendo-me de seu triste destino. Abandonar à força a vida palaciana e trocá-la por outra em que só dispunha de um hábito de lã áspera, uma muda e dois pares de sandálias deve ter sido duro de engolir pelo rapaz.- E escreve?Alessandro não respondeu. Empurrou-me até o ajuntamento não só para nos integrarmos às rezas mas também para nos beneficiarmos do calor do grupo. O abade inclinou a cabeça à maneira de saudação tão logo nos viu e continuou com suas orações. Elas se prolongaram até que o primeiro raio solar atravessou a rosácea de azulejo e o vitral que se abria sobre a porta principal. Não posso dizer que minha chegada causou sensação na comunidade porque, além do prior, de perfil aquilino e aspecto cauteloso, duvido que algum outro frade reparou em mim. Mas a Milão deixando atrás graves antecedentes de manipulação de obras de arte. Algumas das frases lapidares que lera nas cartas anônimas começavam a ressoar em minha mente como trovões que anunciam tormenta. Deixei-o continuar:

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- Aquela não era uma adoração qualquer. Não tinha sequer uma estrela de Belém! Não lhe parece extraordinário?- E a você o que isto diz?- A mim? - As maçãs do rosto marmóreas de frei Alessandro adquiriram uma morna cor de pêssego. Ruborizava-se porque um homem ilustrado vindo de Roma lhe perguntasse abertamente por sua sincera opinião sobre algo. - A verdade? Não sei o que pensar. Leonardo, já disse, é uma criatura fora do comum. Não me estranha que a Inquisição se fixou nele...- A Inquisição?Outra pontada me atravessou o estômago. No pouco tempo que nos conhecíamos, frei Alessandro desenvolveu uma habilidade inata de me sobressaltar. Ou talvez eu estivesse mais suscetível? Sua menção ao Santo Ofício me fez sentir culpado. Como não pensei antes? Como não me ocorreu consultar o arquivo geral da Sacra Congregazione antes de viajar a Milão?- Deixe-me contar - disse, entusiasmado, como se ficasse encanta do de rebuscar na memória essa classe de coisas. - Depois de deixar inacabada sua Adoração dos magos, Leonardo se mudou para Milão e foi contratado pela Confraternidade da Imaculada Concepção, que, como sabe, são os franciscanos que obedecem a São Francisco, o Grande, e com quem nosso prior tem litígios permanentes. Ali o toscano voltou a ter os mesmos problemas que em Florença.- De novo?- Imediatamente. Meser Leonardo tinha de realizar um tríptico para a capela da Confraternidade com os irmãos Ambrósio e Evangelista de'Predis. Entre os três, cobraram duzentos escudos adiantados por conta do trabalho, e cada um se encarregou de uma parte do retábulo. O toscano ficou com a parte central. Sua incumbência era pintar uma Virgem rodeada de profetas, enquanto as partes laterais mostrariam um coro de anjos músicos.- Não continue: jamais concluiu seu trabalho... - Mas não. Desta vez meser Leonardo terminou sua parte, mas não cumpriu o que fora pedido. Na sua madeira não havia profeta algum.Em compensação, apresentou um retrato de Nossa Senhora dentro de uma gruta, junto com o menino Jesus e São João. O muito ousado garantiu aos frades que sua tábua representava o encontro que as duas crianças tiveram

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enquanto Jesus e a família fugiam para o Egito. Mas isso também não está em nenhum Evangelho!- E, claro, denunciaram-no ao Santo Ofício.- Sim. Mas não pelo motivo que o senhor imagina. O Mouro interferiu para trancar o processo e o livrou de um julgamento certeiro.Hesitei se devia continuar fazendo perguntas. Ele é quem desejava que o pusesse ao corrente de minhas adivinhações. Mas não podia negar que suas informações me intrigaram.- Então, qual foi a denúncia que levou à Inquisição?- Leonardo se inspirou no Apocalipsis Nova para pintar o quadro.- Nunca ouvi falar de semelhante livro.- Trata-se de um texto herético escrito por um velho amigo seu, um franciscano menorita chamado João Mendes da Silva, também conheci do como Amadeu de Portugal, que morreu em Milão no mesmo ano em que Leonardo terminou seu quadro. O tal de Amadeu publicou um libelo insinuando que a Virgem e São João eram os verdadeiros protagonistas do Novo Testamento, e não Cristo.Apocalipsis Nova. Memorizei aquele dado para acrescentar ao eventual sumário que poderia abrir contra Leonardo por heresia.- E como os frades se deram conta dessa relação entre o Apocalipsis Nova e a pintura de Leonardo?O bibliotecário sorriu.- Era evidente. O quadro representava a Virgem com o menino Jesus e o anjo Uriel ao lado de João Batista. Em condições normais, Jesus deveria aparecer abençoando seu primo João, mas no quadro acontecia exatamente o contrário! Além disso, a Virgem, em vez de abraçar seu primogênito, estendia os braços protetores sobre o Batista. Já entendeu?Leonardo retratara São João não só legitimado por Nossa Senhora mas A Virgem dos rochedos, hoje no Louvre, distribuindo sua bênção ao próprio Cristo, demonstrando assim sua superioridade sobre o Messias.Felicitei entusiasmado frei Alessandro.- Você é um observador sagaz - disse. - Iluminou a mente deste servidor de Deus. Estou em dívida consigo, irmão.- Se me perguntar, responderei. É uma promessa que sempre cumpro.

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- À semelhança do jejum?- Sim. Como o jejum.- Admiro-o, irmão. De verdade.O bibliotecário inchou como um pavão e enquanto a claridade ia empurrando as sombras do claustro, revelando os relevos e ornamentos que ocultava, atreveu-se por fim a romper a, suponho, provocadora espera que se impusera.- Então deixará que o ajude em suas adivinhações? Naquele momento não soube o que responder. Além de frei Alessandro, o outro frade com quem eu falava com certa freqüência era o sobrinho do prior, Matteo. Ainda era uma criança, porém mais esperto e curioso do que os de sua idade. Talvez por isso o jovem Matteo não resistiu à tentação de se aproximar de mim e perguntar como era minha vida em Roma. A grande Roma.Não sei o que imaginaria como seriam os palácios pontifícios e as intermináveis avenidas de igrejas e conventos, mas em troca de minhas generosas descrições me presenteou com algumas confidências que me fizeram desconfiar das boas intenções do bibliotecário.Entre risos me contou qual era a única coisa capaz de tirar do eixo seu tio, o prior.- E o que é? - perguntei, intrigado.- Encontrar frei Alessandro e Leonardo, de mangas arregaçadas, cortando alface na cozinha de frei Guglielmo.- Leonardo vai à cozinha?A surpresa me deixou perplexo.- Como? Mas não faz outra coisa! Quando meu tio deseja encontrá-lo já sabe que esse é seu esconderijo favorito. Poderá não molhar nenhum pincel durante dias, mas é incapaz de nos visitar e não passar horas junto aos fogões. Sabia que Leonardo teve uma taberna em Florença, na qual era cozinheiro?- Não.- Ele me contou. Chamava-se A Insígnia das Três Rãs de Sandro e Leonardo.- De verdade?- Certamente! Contou-me que a montou com um amigo seu que também era pintor, Sandro Botticelli.- E o que aconteceu?

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- Nada! A clientela não gostava de seus guisados de verdura, suas anchovas enroladas em gomos de couve, ou uma coisa que faziam com pepino e folhas de couve cortadas em forma da rã.- E aqui faz a mesma coisa?- Bem - Matteo sorriu. - Meu tio não deixa. Desde que chegou ao convento, o de que mais gosta é examinar nossa despensa. Diz que está buscando o cardápio para a Última ceia. Que a comida que deve estar sobre a mesa é tão importante como o retrato dos apóstolos... e o desavergonhado leva semanas trazendo seus discípulos e amigos para comer numa mesa que dispôs no refeitório, enquanto esvazia a adega do convento. - E frei Alessandro o ajuda?- Frei Alessandro? - repetiu. - Ele é dos que se sentam à mesa para comer! Leonardo diz que aproveita então para estudar a silhueta deles e como pintará o que comem, mas ninguém o viu fazer outra coisa além de devorar nossas reservas!Matteo riu, divertido.- A verdade - acrescentou - é que meu tio escreveu várias vezes ao duque protestando contra os abusos do toscano, mas o duque não lhe fez caso. Se continuar assim, Leonardo terminará por nos deixar sem a colheita.

Existe exatidão histórica desta prática de Leonardo. Uma carta de frei Vicenzo Bandello a Ludovico, o Mouro, escrita na Semana Santa de 1496, diz: "Meu senhor, passaram-se já mais de doze meses desde que me enviou o mestre Leonardo para realizar esta encomenda e durante todo o tempo não fez um só traço em nossa parede. Neste tempo, meu senhor, a adega do priorado sofreu um grande desgaste e agora está quase completamente seca, pois o mestre Leonardo insiste que se provem todos os vinhos até achar o adequado para sua obra-prima e não aceitará qualquer outro. Enquanto isto, meus frades passam fome, pois o mestre Leonardo dispõe a seu capricho nossa cozinha dia e noite, confeccionando o que ele afirma serem as comidas de que necessita para sua mesa; mas nunca se dá por satisfeito; e, duas vezes por dia, manda sentar seus discípulos e serventes para comer todas elas. Meu senhor, rogo-lhe que apresse o mestre Leonardo a executar sua obra, porque sua presença e a da sua quadrilha ameaçam nos deixar na miséria.”

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A s sextas-feiras 13 nunca foram do agrado dos milaneses. Mais sensíveis às superstições francesas que outros latinos, as jornadas que unem o quinto dia da semana ao fatídico lugar que ocupava Judas na mesa da Última Ceia lhes recordavam efemérides traumáticas. Sem ir mais longe, foi numa sexta-feira 13 de outubro de 1307 que prenderam os templários na França por ordem de Filipe IV, o Belo. Então os acusaram de negar Cristo, de cuspir no crucifixo, trocar beijos obscenos em locais de culto e adorar um extravagante ídolo chamado Bafomet. A desgraça da ordem dos cavaleiros das capas brancas foi tal que desde aquele dia todas as sextas-feiras 13 são tidas por dias de mau agouro.O décimo terceiro dia de janeiro de 1497 não ia ser exceção.Ao meio-dia, uma pequena multidão se acotovelava às portas do convento de Santa Maria. A maioria fechara antes do tempo suas lojas de seda, perfume ou lã na praça do Verzaro, atrás da catedral, para não perder o prodígio. Pareciam impacientes. O anúncio que os atraíra até ali era singularmente preciso: antes do ocaso, a serva de Deus Verônica da Binasco entregaria a alma a Deus. Ela própria fizera a previsão com a segurança de quem se jactara antes de profetizar outras desgraças. Recebida por príncipes e papas, tida por santa em vida por muitos, sua última façanha fora ser expulsa do palácio do Mouro havia só dois meses. As más línguas diziam que pediu para ser recebida por donna Beatrice d Este para lhe anunciar seu fatal destino. Fora de si, donna Beatrice mandou recolhê-la ao seu convento para nunca mais voltar a vê-la.Marco d'Oggiono, discípulo predileto do mestre Leonardo, conhecia-a bem. Vira o toscano falar com ela amiúde. Leonardo gostava de discutir com a religiosa suas estranhas visões da Virgem. Anotava não aPenas o que ela dizia mas também bosquejava detalhes de seu rosto angelical, de seus ademanes doces e o porte dolente, que depois tratava de transferir para seus quadros. Por desgraça, se sor Verônica não errava, tais confidências terminariam aquela sexta-feira. Sem almoçar, Marco arrastou o toscano até o leito fúnebre da religiosa, consciente de que não lhes restava muito tempo.- Agradeço-lhe por ter vindo. A irmã Verônica agradecerá por vê-lo pela última vez - sussurrou o discípulo ao mestre.

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Leonardo, impressionado pelo cheiro de incenso e azeites daquela pequena cela, contemplou admirado o rosto marmóreo da beata. A pobre mal podia abrir os olhos.- Não acredito que possa fazer algo por ela - disse.- Sei, mestre. Ela é quem insistiu em vê-lo.- Ela?Leonardo inclinou a cabeça até chegar perto dos lábios da moribunda. Os lábios tremeram um bom tempo, como se murmurassem uma litania apenas audível. O pároco de Santa Maria, que espargira os santos óleos sobre sor Verônica e rezava o santo rosário junto dela, deixou que o visitante se acercasse um pouco mais.- Ainda pinta gêmeos em suas obras?O mestre estranhou. A monja o reconhecera sem sequer se dar o trabalho de abrir os olhos.- Pinto o que sei, irmã.- Ah, Leonardo! - balbuciou. - Não acredite que não percebi quem é. Sei perfeitamente. Embora a esta altura de minha vida não valha a pena discutir consigo.Sor Verônica falava com lentidão, num tom imperceptível que o toscano custava a perceber.- Vi seu retábulo da igreja de San Francesco, a sua madonna.- Gostou?- A Virgem, sim. Você é um artista com um grande dom. Mas os gêmeos, não... Diga-me, já os corrigiu?- Já, irmã. Tal como me pediram os irmãos franciscanos.- Você tem fama de teimoso, Leonardo. Hoje me disseram que voltou a pintar gêmeos no refeitório dos dominicanos. É verdade?Leonardo se ergueu, perturbado.- Viu o Cenacolo, irmã? - Não. Mas o seu trabalho está sendo muito comentado. Deveria saber.- Já disse a eles antes, sor Verônica: só pinto aquilo de que estou seguro.- Então por que insiste em incluir gêmeos em suas obras para a Igreja?

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- Porque existiram. André e Simão foram irmãos. É o que dizem Santo Agostinho e outros grandes teólogos. O apóstolo Tiago confundia-os amiúde com Jesus porque se pareciam muito. Nada disso inventei. Está escrito.A monja deixou de sussurrar.- Ai, Leonardo! - gritou. - Não incorra no mesmo erro que em San Francesco! A missão de um pintor não é confundir o fiel e sim lhe mostrar com clareza os personagens encomendados.- Erro? - Leonardo levantou a voz sem querer. Marco, o pároco e as duas irmãs que cuidavam da moribunda se voltaram para ele. - Que erro?- Vamos, mestre! - resmungou a moribunda. - Por acaso não o acusaram de confundir em sua obra São João com Jesus? Por acaso não os retratou como se fossem duas gotas d'água? Não tinham o mesmo cabelo frisado, as mesmas bochechas e quase o mesmo gesto? Sua obra não induzia a uma perversa confusão entre João e Cristo?- Desta vez não acontecerá, irmã. Não no Cenacolo.- Mas me dizem que pintou Tiago com o mesmo rosto de Jesus!Todos ouviram o protesto de sor Verônica. Marco, que ainda sonhava demonstrar ao mestre que seria capaz de decifrar os segredos de sua obra, prestou atenção.- Não há confusão possível - respondeu Leonardo. - Jesus é o eixo de minha nova obra. É um enorme "A" no centro do mural. Um alfa gigante. A origem de toda minha composição.D'Oggiono acariciou o queixo, meditabundo. Como não se dera conta antes? Repassava mentalmente A última ceia: Jesus parecia de fato um enorme "A" maiúsculo.- Um "A"? - sor Verônica baixou a voz. Aquilo a surpreendeu. - E pode se saber o que escreveu desta vez em sua obra, Leonardo?- Nada que os verdadeiros fiéis não possam ler.- A maioria dos bons cristãos não sabe ler, mestre.- Por isso pinto para eles.- E isso lhe dá o direito de se incluir entre os Doze?- Encarno o mais humilde dos discípulos, irmã. Represento Tadeu, quase no fim da mesa, como o ômega que vai no fim do alfa.

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- Ômega? Você?... Vá com cuidado, meser. É muito pretensioso e o orgulho poderia perder sua alma.- É uma profecia? - perguntou, irônico.- Não zombe desta anciã e aguarde o presságio que tenho para lhe fazer. Deus me deu uma visão clara do que está por vir. Deve saber, Leonardo, que não serei eu a única que hoje entregará sua alma ao Pai Eterno - disse. - Alguns dos que chamam de verdadeiros fiéis me acompanharão ao Tribunal do Juízo. Temo que não merecerão a misericórdia do Altíssimo.Marco d'Oggiono, impressionado, viu sor Verônica ofegar por causa do esforço.- Você, em compensação, ainda tem tempo para se arrepender e salvar sua alma. Nunca agradecerei bastante irmão Alessandro pelo muito que me ajudou nos dias que se seguiram àquele passeio. Além dele e do jovem Matteo, que às vezes visitava a biblioteca para bisbilhotar o trabalho do frade insociável vindo da cidade pontifícia, mal trocava palavras com alguém. Só via o restante dos monges nas horas de comer no improvisado refeitório que preparavam junto ao chamado Grande Claustro, ou então na igreja nos momentos de oração. Mas nos dois lugares predominava a regra do silêncio e não era fácil estabelecer relações com qualquer deles.Na biblioteca, pelo contrário, tudo mudava. Frei Alessandro perdia a rigidez que mostrava entre os seus e soltava a língua tão reprimida em outros lugares da vida monástica. O bibliotecário era de Riccio, junto ao lago Trasimeno, mais perto de Roma do que de Milão, o que de certo modo justificava seu isolamento do resto dos frades e fazia com que me visse como um patrício necessitado de proteção. Ainda que jamais o vi provar pedaço, cada dia me trazia água, massas de trigo pretas como seixos rolados (especialidade de frei Guglielmo que surrupiava às escondidas para mim), e até me abastecia de azeite limpo para a lâmpada cada vez que ameaçava se extinguir. E tudo - como compreendi mais tarde -para não se afastar de mim à espera de que o inesperado hóspede necessitasse descarregar em alguém suas tensões e revelasse novos detalhes de seu "segredo". Creio que a cada hora passada, Alessandro supunha o segredo cada vez maior. Eu o criticava porque a

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imaginação não era bom aliado para alguém que pretendia decifrar mistérios, mas ele se limitava a sorrir, certo de que suas habilidades seriam de utilidade algum dia.Do que jamais pude me queixar dele foi de sua extraordinária humanidade. Logo frei Alessandro se tornou um bom amigo. Estava por perto sempre que fazia falta. Consolava-me quando eu jogava a pena no chão, desesperado diante da falta de resultados, e me estimulava a perseverar naquela diabólica adivinhação. Mas Óculos ejus dinumeni resistia a tudo. Mesmo quando aplicava valores numéricos às letras só apresentava confusão. No terceiro dia de decepções e desvelo, frei Alessandra já vira os versos, sabia-os de cor e brincava com eles impaciente, buscando com o semblante franzido a maneira de romper o código. Cada vez que encontrava alguma luz naquele aranzel seu rosto se iluminava de satisfação. Era como se, de repente, suas feições aguçadas conseguissem se suavizar, trocando aquele rosto duro por outro de criança entusiasmada. Numa daquelas comemorações soube, por exemplo, que os enigmas de cifras e letras eram seus favoritos. Desde que leu Raimundo Lulio, o criador da Arsmagna dos códigos secretos, vivia para eles. Arqueie gufo (mocho, como eram chamados os frades que tresnoitavarn ou os que não pareciam se importar em se levantar nas matinas) era uma fonte inesgotável de surpresas. Parecia conhecer tudo - cada obra importante da arte da criptografia, cada tratado cabalístico, cada ensaio bíblico. E, no entanto, tamanha preparação teórica não parecia nos servir muito...- Então - murmurou Alessandro numa daquelas tardes em que sua comunidade fervia de atividade preparando os funerais de donna Beatrice - pensa de verdade que devemos contar os olhos de alguma imagem do convento para resolver seu problema?... Seria tão simples assim?Toquei suas mãos com afeto enquanto encolhia os ombros. O que podia responder? O bibliotecário me observava com seus olhos de coruja, enquanto roçava o queixo curto. Mas como eu, ele também desconfiava dessa opção. Tínhamos nossos motivos. Se a cifra do nome devia ser buscada no número de olhos de uma imagem - fosse a Virgem, São Domingos ou Santa Ana -, o resultado nos levaria a um beco sem saída. No fim das contas não era possível achar um nome próprio de apenas uma ou duas letras, que seria o resultado evidente que nos daria o número de olhos de qualquer das estátuas de Santa

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Maria. Além disso, nenhum dos frades da comunidade respondia por nome ou apelido tão conciso. Nenhum Io, Eo, Au ou nada parecido se alojava ali. Sequer um nome como Job, de apenas três letras, serviria. Em Santa Maria não havia nenhum, e tampouco nenhum Noé, Lot, e ainda que houvesse, em que rosto encontraríamos três olhos para atribuir a autoria das cartas?De repente me dei conta de algo. E se a adivinhação não se referisse aos olhos de um ser humano? E se se tratasse de um dragão, uma hidra de sete cabeças e quatorze olhos, ou alguma outra espécie de monstro pintado nas "costas" de alguma sala?- Mas não há monstros assim em qualquer lugar de Santa Maria - protestou frei Alessandro.- Nesse caso talvez estejamos errados. Talvez a figura de quem de vemos contar os olhos não esteja neste convento, mas em outro prédio.Numa torre, um palácio, outra igreja próxima...- É isso, padre Agustín! Achamos! - Os olhos do bibliotecário re- lampejaram de emoção. - Não percebe? O texto não está falando de uma pessoa ou de um animal, mas de um prédio!- Um prédio?- Claro! Meu Deus, que estupidez! Está claro como a água! Os óculos, além de olhos, são também janelas. Janelas redondas. E a igreja de Santa Maria está cheia delas!O bibliotecário rabiscou algo num pedaço de papel. Era uma versão alternativa, rápida, que me estendeu nervoso com a esperança de que eu a aprovasse. Se estivesse com a razão, todo o tempo tínhamos a solução diante de nossos narizes. Segundo o gufo, nosso "conte-lhe os olhos / mas não olhe para a cara" também podia ser entendido como "conte-lhe as janelas, mas não olhe sua fachada".Devíamos reconhecer: embora forçado, o texto tinha um sentido esmagador.A parte exterior da igreja de Santa Maria estava, com efeito, cheia de óculos, de janelas redondas desenhadas por um certo Guiniforte Solari de acordo com o mais puro gosto lombardo estimulado pelo Mouro. Havia janelas por todas as partes, até mesmo encaixadas no contorno da novíssima cúpula bramantina sob a que eu rezava há uma semana. Podia ser tão simples? Frei Alessandro não tinha dúvida:

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- Vê? É a fachada lateral, padre Agustín! - voltou a insistir. - A se gunda frase confirma: In latere nominis mei notam rinvenies. Deve-se buscar a cifra de seu nome nas costas! Contar as janelas de um único lado, sem considerar as da fachada! Aí está sua cifra!Foi o melhor momento de minha estadia em Milão.Ninguém percebeu. Nenhum dos vendedores, cambistas ou frades que vagueavam naquele ocaso pelos arredores de San Francesco il Grande prestou atenção no indivíduo malvestido que entrou às pressas na igreja dos franciscanos. Era véspera de feriado, dia de mercado, e os milaneses tinham de se abastecer de carne e mercadorias para os dias de luto oficial que se avizinhavam. Além disso, a notícia da morte de sor Verônica da Binasco correu como rastilho de pólvora pela cidade, ocupando boa parte das conversações e desencadeando um apaixonado debate sobre seus verdadeiros poderes como visionária.Em semelhantes circunstâncias, era lógico que um vagabundo não lhes despertasse a atenção.Mas aqueles néscios se equivocaram mais uma vez. O mendigo que entrou em San Francesco não era um qualquer. Tinha os joelhos arroxeados por horas de penitência e a cabeça tonsurada com esmero como prova de devoção. Tratava-se com efeito de um homem temente a Deus, um varão de coração puro que atravessou, tremendo, o umbral da porta grande da igreja dos franciscanos, certo de que alguns desses vizinhos supersticiosos, talvez impressionados pelos presságios de sor Verônica, iam delatá-lo cedo ou tarde.Não lhe era difícil imaginar o que estava a ponto de se desencadear: alguém, sem muito tardar, correria a informar o sacristão da presença de outro mendigo no templo. O sacristão informaria o diácono que, também sem demora, avisaria o verdugo. Há semanas as coisas ocorriam assim, e ninguém parecia se importar. Os falsos mendigos que entraram no templo antes dele desapareceram sem deixar rastro. Por isso   estava certo de que não sairia vivo dali. E no entanto era um preço que ia pagar a gosto...Sem respirar muito, o homem da roupa surrada deixou para trás a dupla fila de bancos que ladeavam a nave principal e acelerou o passo até o altar-mor. Não se via uma só alma na igreja. Melhor. De fato, já quase podia sentir a presença do Santo. Jamais se sentira tão perto de Deus. Ele estava perto. A essa hora a

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luz filtrada pelos vitrais era a ideal para apreciar todos os detalhes do "milagre". O peregrino aguardara tanto para chegar até aquele retábulo e render homenagem à Opus Magnum que as lágrimas lhe saltavam dos olhos, de emoção. E não em vão. Enfim lhe fora permitido ver uma obra de que poucas pessoas em Milão conheciam o verdadeiro nome: a Maestà. Era esse o fim do caminho?O falso vagabundo deduzia assim.Aproximou-se com cautela. Ouvira descrever tantas vezes a Obra que as vozes dos que o instruíram sobre os detalhes ocultos, sobre sua verdadeira chave de leitura, acotovelavam-se agora na sua memória, ofuscando-lhe a razão. O quadro, de 189 x 120 centímetros, ajustado como uma luva na abertura do altar previsto para ele, era inequívoco: na parte de baixo duas crianças de pouca idade se olhavam sem desviar os olhos. Uma mulher de rosto sereno protegia ambos com seus braços enquanto um anjo solene, Uriel, apontava o leito do Pai com um dedo firme e acusador. "Quando contemplares esse gesto confirmarás a verdade que foi revelada a você", acreditava ouvir ainda. "O olhar do anjo te dará razão.”Seu coração se acelerou. Ali, na solidão absoluta do templo, o peregrino esticou a mão com certo temor, como se pretendesse se unir para sempre àquela cena divina. Era exato. Exato como as bondades de sua fé. Os que peregrinaram em segredo até aquele lugar antes dele não mentiam. Ninguém mentiu. Aquela obra do mestre Leonardo continha as chaves para culminar a busca milenária da verdadeira religião.O peregrino lançou um novo olhar sobre o notável óleo quando de repente algo atraiu sua atenção. Que estranho. Quem pintara um halo Majestade. Era o nome original da composição de Leonardo, A Virgem dos rochedos. Não duvide: Deus castigará frei Amadeu de Portugal e seu Apocalipsis Nova como deve. E, com ele, seu ideal da Virgem entendida não como mãe de Cristo, mas como símbolo da sabedoria.- E no entanto é um símbolo belo - protestou. - Um símbolo partilhado por muitas pessoas. Ou pensam condenar todos aqueles que pintem a Virgem com o menino Jesus e o menino João?- Se induzem à confusão nas almas dos crentes, sim.

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- E de verdade acreditam que poderão se aproximar do mestre Leonardo, de seus discípulos ou do pintor Luino?- Bernardino de Lupino? Aquele a que também chamam Lovinus ou Luini?- Conhece-o?- Conheço suas obras. É um jovem imitador de Leonardo que pelo visto comete os mesmos erros. Não duvide: também ele cairá.- O que pensa fazer? Matá-lo?O peregrino notou que algo ia mal. Um atrito metálico, como o que faria uma espada ao sair de sua bainha, soou em suas costas. Seus votos o impediam de carregar arma, de modo que elevou uma prece à falsa Maestà, pedindo sua proteção.- Também me matará?- O Augure matará os imprudentes.- O Augure...?Não terminou de formular a pergunta quando uma estranha convulsão agitou suas entranhas. A afiada lâmina de um enorme sabre de aço perfurou suas costas. O peregrino soltou um estertor terrível. Um palmo de metal partiu em dois o coração. Foi uma sensação aguda, fugaz como um relâmpago, que o fez abrir os olhos de puro terror. O falso vagabundo não sentiu dor, e sim frio. Um abraço gélido que o fez cambalear sobre o altar e cair sobre os joelhos arroxeados.Foi a única vez que viu o agressor.O Augure era uma sombra corpulenta, de carvão, sem expressão no rosto. Começava a anoitecer na igreja. Tudo se tornava escuro. Até o tempo começou a ficar mais lento de maneira estranha. Ao tocar o degrau do altar, a trouxa que o peregrino levava ao ombro se desfez, deixando cair dois pedaços de pão e um maço de estampas com curiosas imagens. A primeira representava uma mulher com o hábito de São Francisco, uma coroa tríplice na cabeça, uma cruz como a de João na mão direita e um livro fechado na esquerda.- Maldito herege! - resmungou o Augure ao ver aquilo.O peregrino devolveu um sorriso cínico, enquanto via como o Augure apanhava a estampa e molhava uma pena em seu sangue para anotar algo no reverso.

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- Jamais... abrirá... o livro da sacerdotisa.Daquela posição contrafeita, com o coração bombeando sangue aos borbotões no lajeado, conseguiu vislumbrar algo que lhe passara despercebido até agora: embora Uriel não apontasse já para João Batista como na verdadeira Opus Magnum, seu olhar entreaberto dizia tudo. A "chama de Deus", com os olhos semicerrados, continuava apontando o sábio do Jordão como o único salvador do mundo.Leonardo - consolou-se antes de desaparecer na obscuridade eterna - não os atraiçoara apesar de tudo. O Augure mentira.Esperamos as primeiras luzes do sábado, 14 de janeiro, para sair do convento e percorrer com tranqüilidade a fachada ladrilhada de Santa Maria delle Grazie. Frei Alessandro, que demonstrara certa tendência natural para as adivinhações, estava de novo exultante. Era como se a geada que horas antes petrificava aquela parte da cidade não o acompanhasse. Às seis e meia, logo depois dos ofícios, o bibliotecário e eu estávamos preparados para sair à rua. Ia ser uma operação simples, que não levaria mais de dois minutos mas que, no entanto, perturbava-me profundamente.Frei Alessandro reparou, mas decidiu ficar quieto.Sabia que fosse qual fosse a "cifra do nome" que obtivéssemos contando os olhos da fachada continuaríamos sem resolver o problema. Teríamos um número; talvez o do valor do nome de nosso informante anônimo, embora não pudéssemos estar seguros disso. E se fosse a cifra total das letras de seu sobrenome? Ou seu número de cela? Ou...?- Esqueci-me de dizer algo - interrompeu-me enfim.- De que se trata, irmão?- De algo que talvez lhe traga alívio: quando tivermos esse bendito número, ainda faltará muito o que fazer se quisermos chegar ao fundo de sua adivinhação.- É certo.- Pois bem, deve saber que Santa Maria acolhe a comunidade de frades mais acostumada a resolver adivinhações de toda a Itália.Sorri. O bibliotecário, como tantos outros servos de Deus, jamais ouvira falar de Betânia. Era melhor assim. Mas frei Alessandro insistiu em me explicar as razões de sua orgulhosa afirmação: garantiu que o passatempo favorito

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daquela trintena de dominicanos de elite era, precisamente, resolver hieróglifos. Havia-os bastante habilidosos nessa arte, e até não poucos se divertiam criando-os para os demais.- Os bosques geram filhos que depois os destroem. Quem são? - enunciou o cantador, diante de minha inapetência para acrescentar jogos à nossa missão. - Os cabos dos machados!Frei Alessandro não economizou detalhes. De tudo o que me disse, o que mais me chamou a atenção foi saber que o uso de adivinhações em Santa Maria não era apenas recreativo. Amiúde os frades os empregavam em seus sermões, convertendo-os em instrumentos de doutrinação. Se o que aquele frade dizia não era exagero, as paredes agasalhavam o maior campo de adestramento de criadores de enigmas da cristandade, além de Betânia. Por esse motivo, se o Augure saiu de algum lugar, ali era o local ideal.- Acredite-me, padre Leyre - o bibliotecário se adiantou aos meus cálculos. - Quando tiver o número e não souber o que fazer com ele, consulte qualquer irmão nosso. Quem em menos pensar terá uma solução.- Qualquer um, está dizendo?O bibliotecário torceu o semblante.- É claro! Qualquer um! Seguramente quem fizer a ronda do pátio saberá mais de adivinhações do que um romano como o senhor. Pergunte sem receio ao prior, ao padre cozinheiro, aos responsáveis pela dispensa, aos copistas, a todos! Mas cuide para que não o ouçam muito e o repreendam por romper o voto de silêncio que todo monge deve respeitar.E dizendo isto retirou a tranca que bloqueava o acesso principal do convento.Uma pequena avalancha de neve caiu do telhado, esborrachando-se com estrondo aos nossos pés. Para ser sincero, não esperava que algo tão banal como esquadrinhar a fachada de uma igreja de madrugada resultasse exercício delicado. O frio intenso convertera a neve em perigosa pista de gelo. Tudo estava branco, deserto e envolto num silêncio que intimidava. Só a idéia de se apoiar ao muro de azulejo do mestre Solari e costear o fosso que circundava o terceiro claustro assustaria o mais valente: um escorregão fora de tempo poderia quebrar a nuca ou nos deixarem aleijados para o resto de nossos dias. E isso para não dizer como seria difícil explicar aos frades o que fazíamos

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àquela hora longe de nossas orações, arriscando nossas vidas fora dos muros do convento.Não pensamos mais. Com cautela, tratando de molhar as sandálias só o indispensável, avançamos devagar entre as placas de gelo rumo ao centro da fachada, paralelamente à rua. Atravessamos a rua quase de gatinhas e quando frei Alessandro e eu subimos a uma distância prudente, com perspectiva sobre o conjunto do prédio, nós a contemplamos. Uma iluminação tênue, vinda de dentro, fazia as janelas brilharem como os olhos de um dragão. Ali, de fato, desenvolvia-se uma série de janelas redondas, de olhos, que adornavam a igreja em todo seu comprimento. A fachada ficava na volta da esquina, uns passos adiante, com a "cara" virada para outro lado.- Mas não olhes para a cara... - bati com os dentes.Gelado de frio, escondendo as mãos nas mangas do hábito de lã, contei: um, dois, três... sete.Aquele sete me desconcertou. Sete versos, sete olhos... A cifra do nome do anônimo remetente era, sem dúvida, esse maldito sete recorrente.- Mas sete o quê? - perguntou o bibliotecário.Encolhi os ombros. O  que aconteceu em seguida iluminou meu caminho. - Então é o padre romano que acaba de se instalar em nossa casa? O prior de Santa Maria delle Grazie, Vicenzo Bandello, sondou-me com o semblante severíssimo antes de me convidar a entrar na sacristia. Enfim conhecia o homem que redigira o informe sobre a morte de Beatrice d'Este para a Betânia.- O irmão Alessandro me falou muito do senhor - prosseguiu. - Ao que parece é um homem estudioso. Um intelectual atento, com força de vontade, com quem esta comunidade poderá se enriquecer enquanto dure sua permanência entre nós. Como disse que se chama?- Agustín Leyre, prior.Bandello acabara de concluir os ofícios da hora terceira, com aquele Sol insuficiente gravitando sobre o vale de Padana. Estava prestes a se retirar, para preparar o sermão do funeral de donna Beatrice, quando o abordei. Foi um impulso irracional só em parte. Não insistira frei Alessandro que eu perguntasse a qualquer irmão da comunidade sobre minha adivinhação? Não

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era ele quem me assegurara que o monge menos esperado poderia ter uma resposta adequada? E quem poderia ser mais inesperado do que o abade?Tomei a decisão logo depois de regressar gelado do exterior em busca de algum calor intramuros no convento. Quis o acaso que eu farejasse na sacristia e o padre Bandello se encontrasse nela. O bibliotecário me deixou sozinho. Acabara de se ausentar com o pretexto de descer à cozinha em busca de alguma provisão para nossa nova sessão de trabalho e foi então que senti a oportunidade.Frei Vicenzo Bandello devia ter mais de sessenta anos, o rosto enrugado e pregueado como um velame recolhido ao mastaréu, um queixo forte e uma surpreendente capacidade de permitir que seus gestos denunciassem cada uma de suas emoções. Era ainda mais baixo do que supus na noite em que o vi na igreja. Movia-se nervoso de um para outro dos armários de portas pintadas da sacristia, duvidando qual fechar primeiro...- Diga-me, padre Agustín - interveio enquanto recolhia o cálice e a patena da última missa. - Tenho uma curiosidade: qual é seu trabalho em Roma?- Meu cargo é no Santo Ofício.- Sim, sim... E, segundo entendi, nos momentos livres de suas obrigações se distrai resolvendo adivinhações. Muito bem - sorriu. - É certo que nos entenderemos.- É exatamente disso que gostaria de falar consigo.- De verdade?Concordei. Se o prior era a eminência que o bibliotecário descreveu, era provável que não lhe escapasse a presença do Augure em Milão. No entanto, devia ir com cautela. Talvez ele mesmo fosse o redator dos bilhetes anônimos, mas temesse revelar sua identidade até se assegurar a respeito de minhas verdadeiras intenções. Ou podia ser pior: talvez não conhecesse sua existência, mas se eu a revelasse o que o impediria de alertar o Mouro de nossa operação?- Diga-me algo mais, padre Leyre. Como amante da elucidação de segredos, já ouviu falar da arte da memória, verdade?Bandello fez aquela pergunta como sem querer, enquanto eu tentava em vão determinar seu grau de implicação no assunto das cartas. Talvez pecasse por excesso de zelo. De fato, cada novo monge que eu conhecia em Santa Maria

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engordava minha lista de suspeitos. E frei Vicenzo não seria exceção. Para dizer a verdade, de todas as opções possíveis, dos quase trinta frades que residiam naquele lugar, o prior era o homem que melhor se encaixava no perfil do Augure. Não sei como não percebemos antes em Betânia. Até o nome, Vicenzo, tinha sete letras. Nem uma a mais. Como as sete linhas do endiabrado Óculos ejus dinumera ou as sete janelas da fachada sul da igreja. Percebi o detalhe quando comprovei o desembaraço com que abria e fechava portas e relicários do aposento e mantinha um grande molho de chaves sob o hábito. O prior era dos poucos que tinha acesso aos cálculos e projetos do duque para Santa   Maria, e talvez o único que utilizasse um correio oficial e seguro para fazer chegar suas cartas a Roma.- Então? - insistiu, cada vez mais divertido diante de minha atitude pensativa. - Ouviu ou não falar dessa arte?Sacudi horizontalmente a cabeça enquanto tentava encontrar nele alguma expressão que confirmasse meu julgamento.- Pois é uma lástima! - prosseguiu. - Poucos sabem que nossa ordem deu grandes estudiosos em tão digna disciplina.- Jamais soube dela.- E certamente tampouco sabe que o próprio Cícero mencionou essa arte em seu De oratore, ou que um tratado ainda mais antigo, Ad Herennwm, detalha-a e nos oferece a fórmula exata para se lembrar em seguida tudo o que alguém deseje...- Oferece-nos? Aos dominicanos?- Claro que sim! Há trinta ou quarenta anos, padre Leyre, muitos irmãos nos entregamos ao seu estudo. O senhor mesmo, que trabalha diariamente com expedientes e documentos complexos, nunca sonhou em arquivar na memória um texto, uma imagem, um número, sem se preocupar em repassar outra vez porque já sabe que o levará consigo para sempre?- Claro que sim. Mas só os mais privilegiados podem...- E, tendo necessidade para sua atividade - atalhou-me -, não se preocupou em averiguar qual é a melhor fórmula para obter semelhante prodígio? Os antigos, que não tinham a mesma capacidade para fazer cópias de livros do que nós, inventaram um recurso magistral: imagina ram "palácios de memória" nos quais juntar seus conhecimentos. Também não ouviu falar deles, verdade?

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Neguei com a cabeça, mudo de perplexidade.- Os gregos, por exemplo, imaginavam um prédio grande, cheio de aposentos e galerias suntuosas, e atribuíam a cada janela, arcada, colunata, escada ou sala um significado diferente. No vestíbulo "guardavam" seus conhecimentos de gramática, no salão os de retórica, na cozinha a oratória... E para lembrar qualquer coisa previamente armazenada ali, só tinham de recorrer a este canto do palácio com sua imaginação e extrair, em ordem inversa, o que foi colocado. Engenhoso, não é certo?Olhei para o prior sem saber o que dizer. Estava dando corda para que eu perguntasse sobre as cartas que recebemos em Roma ou não? Devia seguir o conselho de frei Alessandra e consultá-lo, sem rodeio, sobre minha adivinhação? Temeroso de perder prematuramente sua confiança, deslizei uma insinuação:- Diga-me uma coisa, padre Vicenzo; e se em lugar de um "palácio da memória" usássemos uma "igreja da memória"? Poderíamos, para dar um exemplo, disfarçar o nome de uma pessoa numa igreja de pedra e azulejo?- Vejo que é perspicaz, frei Agustín - piscou um olho com certa malícia. - E prático. O que os gregos criaram com palácios imaginários, os romanos e até os egípcios tentaram com edifícios reais. Se aqueles que entravam neles conheciam o "código de memória" exato, poderiam caminhar por suas salas enquanto recebiam uma valiosa informação.- E numa igreja? - insisti.- Sim, também poderia ser feito numa igreja - concedeu. - Mas deixe-me ensinar-lhe algo antes de explicar como funcionaria um mecanismo desse tipo. Como eu dizia, nos últimos anos padres dominicanos de Ravena, Florença, Basileia, Milão ou Friburgo estamos trabalhando num sistema de memorização que repousa sobre imagens ou estruturas arquitetônicas especialmente preparadas para isso.- Preparadas?- Sim, adaptadas, retocadas, enfeitadas com detalhes decorativos que parecem supérfluos aos profanos, mas são fundamentais para quem conhece o abecedário secreto escondido. Compreenderá com um exemplo, padre Agustín.

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O prior tirou de sob o hábito um papel dobrado que alisou sobre a mesa das oferendas. Era uma folha não maior do que a palma de sua mão, branca, com manchas de lacre numa ponta. Alguém gravara nela uma figura feminina com o pé esquerdo apoiado numa escada. Aparecia rodeada de pássaros e objetos estranhos pendurados em seu peito e uma inscrição latina sob os pés que a identificava plenamente. A "senhora Gramática" - e é dela que se tratava - olhava para lugar nenhum com expressão ausente:- Recentemente acabamos uma dessas imagens que, adiante, servirá para lembrar as diferentes partes da arte da gramática. É esta - disse, apontando aquele extravagante desenho. - Quer ver como funciona?Concordei.- Olhe bem - excitou-me o prior. - Se alguém nos perguntasse ago ra mesmo sobre os termos em que se fundamenta a gramática e tivéssemos esta gravura diante de nossos olhos, saberíamos o que responder sem vacilar.- Deveras?Bandello avaliou minha incredulidade.- Nossa solução seria precisa: praedicatio, applicatío e continentia.Sabe por quê? Fácil: porque "li" nesta imagem.O prior se inclinou sobre a folha e começou a traçar círculos imaginários ao seu redor, apontando partes diferentes do desenho:- Olhe-a bem: praedicatio está assinalada pelo pássaro do braço direito, que começa por "P", e porque seu bico tem a forma dessa letra.E o atributo mais importante da figura, por isso é mostrado com duas  imagens, além de ser o emblema de nossa ordem. No fim das contas, somos pregadores, não é verdade?Fixei-me no gracioso galhardete segurado pela "senhora Gramática", dobrado sobre si mesmo formando o "P" de que falava Bandello.- O atributo seguinte - prosseguiu -, applicatio, está representado pela Áquila -, a águia segurada pela Gramática na mão. Aquila e applicatio começam pela letra "A", como o cérebro do iniciado na ars memoriae estabelecerá logo a relação. Quanto a continentia, é vista quase escrita no peito da mulher. Se é capaz de ver esses objetos, um arco, uma roda, um arado e um martelo, como se fossem letras, lerá logo c-o-n-t...

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Continential. Assombroso. Numa imagem de aspecto inocente, alguém conseguira concentrar uma teoria tão completa da gramática. De repente me passou pela cabeça que os livros impressos às centenas nas gráficas de Veneza, Roma ou Turim incluíam gravuras em seus frontispícios que poderiam conter mensagens ocultas que passariam despercebidas a nós, leigos. Na Secretaria de Chaves nunca nos ensinaram algo semelhante.- E os objetos que estão pendurados ou são sustentados pelos pás saros? Também têm algum significado? - perguntei, ainda espantado por aquela revelação.- Meu caro irmão: tudo, absolutamente tudo, tem um significado.Nesta época em que cada senhor, cada príncipe ou cardeal tem tantas coisas para ocultar dos outros, seus atos, as obras de arte que encomenda ou os escritos que protege escondem coisas dele.O prior encerrou aquela frase com um sorriso enigmático. Foi minha oportunidade:- E o senhor? - eu disse em voz baixa. - Também oculta algo?Bandello me olhou sem perder o semblante irônico. Acariciou o cocuruto perfeitamente barbeado e arrumou distraidamente os cabelos.- Um prior também tem seus segredos, de fato.- E os esconderia numa igreja já construída? - prossegui em meu desafio.- Oh! - saltou. - Seria muito fácil. Primeiro numeraria tudo: paredes, janelas, torres, sinos... A cifra é o mais importante! Depois, com a igreja reduzida a números, buscaria aqueles que poderiam se casar com letras ou palavras adequadas. E os compararia tanto no número de   caracteres formados por uma palavra como pelo valor dessa palavra quando reduzida por sua vez a números.- Isso é gematria, padre! A ciência secreta dos judeus!- É gematria, de fato. Mas não é um saber desprezível, como o senhor dá a entender com tanto escândalo. Jesus era judeu e aprendeu gematria no templo. Como não saberíamos que Abraão e Misericórdia são palavras numericamente gêmeas? Ou que a escada de Jacó e o monte Sinai somam, em hebraico, cento e trinta, o que nos indica que os dois são lugares de ascensão aos céus designados por Deus?

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- Quer dizer - atalhei - que se tivesse de esconder seu nome, Vicenzo, na igreja de Santa Maria, escolheria alguma particularidade do templo que somasse sete, o mesmo que as sete letras de seu nome.- Exato.- Como, por exemplo... sete janelas? Sete olhos?- Seria uma boa opção, embora eu escolhesse algum dos afrescos que adornam a igreja. Permitem acrescentar mais matizes do que uma simples sucessão de janelas. Quanto mais elementos se somarem a um espaço, mais versatilidade se concederá à arte da memória. E a fachada de Santa Maria é muito simples para isso.- Verdade ou impressão?- Verdade. Além disso, o sete é um número sujeito a muitas interpretações. É a cifra sagrada por excelência. A Bíblia recorre a ele com freqüência. Não me ocorreria usar uma cifra tão ambígua para mascarar meu nome.Bandello parecia sincero.- Façamos uma combinação - acrescentou de surpresa. - Confio ao senhor a adivinhação na qual minha comunidade trabalha agora e o senhor me confia a sua. Estou certo de que poderemos nos ajudar mutua mente.Como é natural, aceitei.O  prior, satisfeito, pediu-me que o acompanhasse ao convento. Desejava me mostrar algo. De repente.Com o passo rápido, atravessamos o altar-mor, deixamos para trás o coro e a tribuna que estava sendo enfeitada para o funeral de donna Beatrice, e enveredamos pelo longo corredor que desembocava no Claustro dos Mortos. O convento era um lugar sóbrio, com paredes de azulejo e colunas de granito organizadas de forma impecável ao longo de corredores cuidadosamente pavimentados. A caminho de nosso misterioso destino, frei Vicenzo fez um sinal ao padre Benedetto, o copista caolho, que, como de costume, passeava sem rumo entre as arcadas, com o olhar perdido num breviário que não consegui identificar.- E então? - resmungou ao se sentir reclamado pelo superior. - Outra vez de visita à Opus DiabolP. Seria melhor que a sepultasse sob uma camada de cal!- Por favor, irmão! Quero que me acompanhe - ordenou-lhe o prior. - Nosso hóspede precisa de alguém que saiba contar histórias deste lugar, e ninguém

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melhor do que você. É o frade mais antigo da comunidade. Mais ainda do que as paredes desta casa.- Histórias, hein?O único olho do ancião brilhou de emoção ao perceber meu interesse. Estava enfeitiçado por aquele homem que parecia se divertir mostrando sua deformidade ao mundo, exibindo com orgulho a chaga que o órgão perdido deixou no rosto.- Nesta casa se contam muitas histórias, sem dúvida. Sabe por que chamamos este pátio de Claustro dos Mortos? - perguntou, enquanto se unia aos nossos passos. - É fácil: porque aqui sepultamos nossos frades para que regressem à terra tal como vieram ao mundo. Já sabe, sem honras nem placas que os recordem. Sem vaidades. Só com o hábito de nossa ordem. Chegará o dia em que todo este pátio ficará semeado de ossos.- É o seu cemitério?- Muito mais do que isso. É nossa ante-sala para o céu.Bandello já estacara diante de um enorme portão de madeira de folha dupla. Era um anteparo de aspecto rijo que exibia uma forte fechadura de ferro na qual o prior não tardou a inserir outra das chaves de seu molho. Benedetto e eu nos olhamos. Minha pulsação se acelerou: ao vê-la, percebi que era exatamente o que o abade queria me mostrar. Frei Alessandro já me pusera na pista e, naturalmente, preparei-me para o grande momento. Atrás, numa grande sala localizada abaixo do solo da biblioteca devia estar o famoso refeitório de Santa Maria delle Grazie a que Leonardo proibira o acesso dos monges. Se eu não me enganava, aquela era a razão última de minha presença em Milão e o motivo que levara o Augure a escrever suas cartas ameaçadoras à Casa da Verdade.Uma nova dúvida me assaltou: Bandello e eu acaso estávamos com a mesma adivinhação, sem saber?- Se este lugar já estivesse benzido - o rosto do prior se iluminou enquanto empurrava o portão -, lavaríamos antes as mãos e o senhor esperaria aqui fora até que eu o autorizasse a entrar...- Mas não está! - reclamou o caolho.- Não. Ainda não. Mas isso não impede que sua atmosfera sagrada impregne nossa alma.

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- Atmosfera sagrada! Bobices!E, dizendo isto, entramos os três.Tal como supus, acabara de pôr o pé no futuro refeitório do convento. Era um lugar obscuro e frio, coberto por grandes papelões que descansavam apoiados nas paredes e dominado pelo caos. Cordas e azulejos, biombos, cubos e - coisa curiosa - uma mesa posta para um almoço, servida e coberta por uma grande toalha branca, completavam um recinto que parecia estar há muito no esquecimento. A mesa foi o que mais me chamou a atenção porque era, com segurança, o único rastro de ordem em meio àquela desordem. Nada indicava que fora usada. Os pratos estavam limpos e toda a baixela aparecia coberta por uma fina camada de poeira, resultado de semanas de abandono. - Peço-lhe que não se assuste pelo lamentável estado de nosso refeitório, irmão Agustín - disse Bandello enquanto arremangava o hábito e evitava parte daquele mar de tábuas. - Este será nosso refeitório. Estamos quase três anos assim, pode imaginar? Os frades só podem entrar no recinto com autorização expressa do mestre Leonardo, que o mantém fechado até terminar seu trabalho. Enquanto isto, nosso mobiliário se estraga naquele canto, em meio à sujeira e deste detestável cheiro de pintura.- É um inferno, já não disse? Um inferno com diabo e tudo...- Benedetto, por Deus! - recriminou-o o prior.- Não se preocupe. Em Roma estamos sempre em obras; este ambiente me resulta familiar.Separada do resto por biombos de madeira, numa das laterais do imenso salão, adivinhava-se um tabuleiro em forma de "U", sobre o qual estavam dispostas grandes banquetas envernizadas de preto. Os restos de um fino baldaquim de madeira descansavam também naquele espaço obscuro, apodrecendo por culpa do mofo. À medida que íamos afastando bugigangas, Bandello dizia:- Não há trabalho de decoração neste convento que não sofra atraso. Mas o pior é o desta sala. Parece impossível acabar com ele.- A culpa é de Leonardo - voltou a resmungar Benedetto. - Leva meses brincando conosco. Acabemos com ele!- Cale-se, eu lhe peço. Deixe-me explicar nosso problema para frei Agustín.Bandello olhou à direita e à esquerda, para se assegurar de que ninguém mais escutava. A precaução era absurda: desde que deixamos a igreja não cruzamos

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com nenhum irmão, à exceção do ciclope, e era pouco provável que algum deles estivesse escondido ali quando devia estar se preparando para o funeral ou fazendo seus deveres diários. No entanto, o prior parecia inseguro, atemorizado. Talvez por isso baixou tanto a voz quando se inclinou no meu ouvido:- Logo compreenderá minha precaução.- Deveras?Frei Vicenzo concordou, nervoso.- Meser Leonardo, o pintor, tem fama de ser um homem muito influente e poderia afastar-me do caminho se soubesse que permiti sua entrada sem autorização... - Refere-se ao mestre Leonardo da Vinci?- Não grite seu nome! - balbuciou. - Estranha isso? O duque em pessoa o chamou há quatro anos para que ajudasse a decorar este convento. O Mouro deseja que o panteão familial dos Sforza se situe sob a abside da igreja e necessita um entorno magnífico, incontestável, para justificar sua decisão diante da família. Por isso o contratou. E acredite quando digo que desde que o duque embarcou neste projeto não houve um só dia de descanso nesta casa.- Nem um só - repetiu Benedetto. - E sabe por quê? Porque esse mestre que sempre se veste de branco, a quem nunca verá comer carne ou sacrificar um animal, é na realidade uma alma perversa. Introduziu uma heresia sinistra em seus trabalhos nesta comunidade e nos desafiou a encontrá-la antes que os dê por prontos. E o Mouro o apóia!- Mas Leonardo não é...- Um herege? - me cortou. - Não, claro. À primeira vista não pare ce. É incapaz de fazer dano a uma mosca, passa o dia meditando ou tomando notas em seus cadernos, e passa a impressão de ser um varão sábio. Mas estou seguro de que o mestre não é um bom cristão.- Posso perguntar uma coisa?O prior consentiu.- É verdade que mandou reunir toda informação possível sobre o passado de Leonardo? Por que nunca confiou nele? O irmão bibliotecá rio me pôs ao corrente.

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- Foi logo depois que nos desafiou. O senhor compreenderá que nos sentimos obrigados a pesquisar seu passado para saber que tipo de homem enfrentávamos. O senhor teria feito a mesma coisa se ele tivesse desafiado o Santo Ofício.- Suponho que sim.- Encarreguei frei Alessandro de traçar um perfil de sua obra para que pudéssemos nos adiantar a seus passos. Foi assim que averiguamos que os franciscanos de Milão já tiveram sérios problemas com o mestre Leonardo. Ao que parece, usou fontes pagãs para documentar seus quadros, induzindo os fiéis a graves equívocos.- Frei Alessandro me falou disso, e também de certo livro herético de um tal frei Amadeu.- O Apocalipsis Nova.- Exato.- Mas esse livro é apenas uma pequena amostra do que ele encontrou. Nada lhe falou dos escrúpulos de Leonardo em relação a certas cenas bíblicas?- Escrúpulos?- Isso é bastante revelador. Até agora não fomos capazes de localizar uma única obra de Leonardo que mostre a crucificação. Nem uma.Tampouco alguma que reflita algumas das cenas da Paixão de Nosso Senhor.- Talvez nunca lhe encomendaram algo assim.- Não, padre Leyre. O toscano evitou pintar essa classe de episódios bíblicos por algum motivo obscuro. No início pensamos que podia ser judeu, porém mais tarde descobrimos que não. Não respeitava as normas do shabat, tampouco outros costumes hebraicos.- E então?- Bem... Creio que essa anomalia se relaciona com o problema que nos ocupa.- Fale-me dele. Frei Alessandro nunca mencionou que Leonardo os desafiou.- O bibliotecário não estava presente quando aconteceu. E, na comunidade, só meia dúzia de frades conhecem os fatos.- Escuto.- Foi durante uma das visitas de cortesia que donna Beatrice fazia a Leonardo, há uns dois anos. O mestre acabara de pintar São Tomé em sua Última ceia.

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Representou-o como um homem barbudo que levanta o dedo indicador para o céu, perto de Jesus.- Suponho que é o dedo que depois poria na chaga de Cristo, uma vez executado, não é?- Foi o que eu pensei e assim o manifestei a sua alteza, a princesa d'Este. Mas Leonardo riu de minha interpretação. Disse que os frades não tínhamos nenhuma idéia de simbolismo e que se quisesse poderia retratar uma cena do próprio Maomé ali mesmo sem que nenhum de nós percebêssemos.- Disse isso?- Donna Beatrice e o mestre riram, mas a nós pareceu uma ofensa.Mas o que podíamos fazer? Indispormo-nos com a mulher do Mouro e   com seu pintor favorito? Se o fizéssemos, seguramente Leonardo nos culparia pelo atraso do trabalho com A última ceia. O prior continuou:- Na realidade, eu o desafiei. Quis demonstrar que não era tão inábil no terreno da interpretação de símbolos como pretendia, mas pisei num terreno onde jamais deveria entrar.- A que se refere, padre?- Naquela época, costumava visitar o palácio Rochetta. Devia informar o duque sobre os avanços nas obras de Santa Maria. E não eram raras as ocasiões em que surpreendia donna Beatrice se distraindo na sala do trono com um jogo de cartas. As gravuras eram figuras estranhas, chamativas, pintadas com cores fortes. Nelas eram representados enforcados, mulheres segurando estrelas, faunos, papas, anjos com os olhos vendados, diabos... Logo soube que aquelas cartas era um velho legado da família. Desenhou-as o antigo duque de Milão, Filippo Maria Visconti, com a ajuda do condottiero (chefe) Francesco Sforza, em torno de 1441. Mais tarde, quando ele assumiu o controle do ducado, presenteou aquele baralho aos filhos, e uma cópia acabou nas mãos de Ludovico, o Mouro.- E o que aconteceu?- Uma daquelas cartas representava uma mulher vestida de franciscana que segurava um livro na mão. Chamou-me a atenção porque o hábito que vestia era de varão. Além disso, parecia grávida. Pode imaginar? Uma mulher grávida com hábito de franciscano? Parecia uma zombaria. Pois bem. Não sei por que recordei esse naipe durante aquela discussão com Leonardo e lancei

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uma provocação. "Sei o que significa a carta da franciscana", disse. Recordo que donna Beatrice ficou muito séria. "Que sabe o senhor?", irritou-se. "É um símbolo que fala da senhora, princesa", eu disse. Aquilo a interessou. "A franciscana é uma donzela coroada, o que significa que tem sua mesma dignidade. E está grávida. O que anuncia a chegada deste estado de graça para a senhora”.Essa carta é um anúncio do que lhe reserva o destino.”- E o livro? - Perguntei.- Isso foi o que mais a ofendeu. Disse-lhe que a franciscana tapava o uvro para ocultar que era uma obra proibida. "E que livro acredita que > perguntou-me mestre Leonardo. "Talvez o Apocalipsis Nova., que o senhor conhece bem", respondi não sem ironia. Leonardo ficou valente e então lançou seu desafio. "O senhor não tem idéia", disse. "Claro que esse livro é importante. Tão ou mais que a Bíblia, mas seu orgulho de teólogo fará com que nunca o conheça." E acrescentou: "Quando esse futuro filho da duquesa nascer, já terei acabado de incorporar seus segredos ao Cenacolo. E garanto que embora estejam diante de seus narizes jamais poderão lê-los. Essa será a grandeza de meu enigma. E a prova de sua ignorância.” Quando poderei ver A última Ceia?. - perguntei ao prior. Benedetto sorriu.- Agora mesmo, se quiser - disse. - Está na sua frente. Basta abrir os olhos.No início não soube para onde olhar. A única pintura que era capaz de distinguir naquele refeitório que cheirava a umidade e poeira era uma Maria Madalena agarrada aos pés da cruz de Cristo. Brilhava numa parede do sul do salão e chorava com amargura ante o olhar extático de São Domingos. Aquela Madalena tinha os joelhos apoiados numa pedra retangular em que se podia ler um nome que eu jamais vira: "Io Donatvs Montorfanv P.”- É um trabalho do mestre Montorfano - Bandello me tirou a dúvida. - Uma obra piedosa, louvável, pronta há quase dois anos. Mas não é o que deseja ver.O prior apontou então a parede oposta. A história da carta e seu livro secreto me distraíra tanto que quase não era capaz de decifrar o que viam meus olhos. Um monte de tábuas tapava boa parte do canto sul do refeitório. No entanto, a escassa claridade que banhava aquele canto me deixou entrever algo que me paralisou. De fato, além da barreira de caixas e papelões, entre os espaços

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deixados pelo grande andaime de madeira que cruzava a parede de lado a lado, avistava-se... outra sala! Demorei algum tempo para entender que se tratava de uma ilusão, e que ilusão! Sentados ao longo de uma mesa retangular idêntica à de banquete que tanto me chamara a atenção ao entrar, treze figuras humanas de semblantes e atitudes vivas, frescas, pareciam representar uma obra teatral só para nós. Não eram atores, Deus me perdoe; eram os retratos mais reais e surpreendentes que jamais vira de Nosso Senhor Jesus Cristo e de seus discípulos. Ainda faltava definir alguns dos rostos, entre eles o do próprio Nazareno, mas o conjunto estava quase pronto e... respirava.- O quê? Já pode vê-lo? Distingue o que está atrás?Engoli saliva antes de concordar.O padre Benedetto, misteriosamente satisfeito, deu-me uma palmadinha suave nas costas convidando-me a tomar posição mais próxima daquela parede mágica.- Aproxime-se, não vai mordê-lo. É a Opus Diaboliàt que eu tentava preveni-lo. Sedutora como a serpente do Paraíso, e tão venenosa como ela...Impossível expressar em palavras o que senti naquele momento. Tinha a impressão de contemplar uma cena proibida, a imagem suspensa de algo que aconteceu há quinze séculos e Leonardo conseguira imortalizar com um realismo inacreditável. Então ignorava porque o caolho a chamava "obra do Diabo", quando parecia um legado dos próprios anjos. Como que ébrio, caminhei absorto ao seu encontro sem olhar onde punha os pés. À medida que me aproximava a parede ia ganhando mais vida. Santo Cristo! De repente compreendi o que fazia aquela mesa preparada sob os andaimes: toalha, pratos, jarros e grandes copos de cristal e até travessas de cerâmica apareciam dispostos de maneira idêntica dois metros mais acima, na parede, sem desmerecer em nada os verdadeiros. Mas e os discípulos? De onde copiara suas expressões? De onde tirara suas roupas?- Se quiser, irmão Agustín, podemos subir à armação para ver o afresco mais de perto. Não creio que o mestre Leonardo venha hoje su pervisionar seu trabalho..."Claro que quero", pensei.- Logo descobrirá que por muito que se aproxime não apreciará mais nada - o prior sorriu com malícia. - Aqui acontece o contrário do , que em qualquer

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quadro: se alguém se aproxima muito da obra, perde a | sensação de conjunto, confunde-se, e é incapaz de encontrar um só traço do pincel que lhe sirva de guia para interpretar a pintura.- Mais uma prova de sua heresia! - bradou o caolho. - Esse homem| é um mago!Não soube o que dizer. Durante um instante, talvez minutos, não sei, fui incapaz de tirar a vista das figuras mais maravilhosas que contemplei em minha vida. Ali, de fato, não havia marcas, perfis nem raspaduras de espátulas ou borrões sobre riscos de carvãozinho. E que importava? Ainda inacabado, com dois dos apóstolos apenas esboçados na parede, com o rosto de Nosso Senhor ainda sem expressão e as bordas exteriores de outras três figuras sem colorir, já se podia passear dentro daquele banquete sagrado. Bandello, vendo o tempo correr, esforçou-se por me devolver à realidade.- Diga-me, frei Agustín: com essa sagacidade com que impressionou o irmão Alessandro, ainda não apreciou nada diferente nesta obra?- Não... Não sei a que se refere, prior.- Vamos, padre. Não nos decepcione. Aceitou nos ajudar em nossa adivinhação. Se conseguirmos relacionar as anomalias desta obra com as contidas em algum livro proibido conseguiremos deter Leonardo e acusá-lo de voltar a se inspirar em fontes apócrifas. Seria seu fim.O prior aguardou um instante antes de continuar:- Darei uma pista. Reparou que nenhum dos apóstolos, sequer o próprio Jesus, conserva o halo de santidade? Não me diga que é normal na arte cristã!Deus abençoado. Vicenzo tinha razão. Minha estupidez era ilimitada. Estava tão surpreso pelo extraordinário realismo dos personagens que não percebi aquela ausência capital.- E o que diz da eucaristia? - gritou o ciclope, desbocado. - Se esta é, na verdade, A última ceia, por que Jesus Cristo não tem diante de si o pão e o vinho para consagrá-los? Onde está o Santo Graal que contém seu precioso sangue redentor? E por que sua tigela está vazia? Herege! É um herege!- Que insinuam, irmãos? Que o mestre não seguiu o texto bíblico ao pintar esta cena?Parecia-me ouvir ainda as explicações de frei Alessandro sobre o retrato da Virgem que Leonardo pintou para os monges de San Francesco u Grande.

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Então também o toscano desatendeu tanto as indicações bíblicas como as instruções de seus patronos. A pergunta seguinte, portanto, devia lhes parecer pueril:- Perguntaram-lhe por que fez assim?- Claro que sim! - respondeu o prior. - E continuou rindo em nossas barbas, chamando-nos de ingênuos. Disse que não é tarefa sua e que vai nos ajudar a interpretar sua Ceia. Pode acreditar? O muito esperto passa de tarde em tarde por aqui, dá um par de pinceladas em algum dos apóstolos, senta-se durante horas para contemplar o que já fez e mal se digna a falar à comunidade para explicar as extravagâncias de seu trabalho...- Pelo menos explicará citando alguma passagem evangélica, não? - eu disse, adivinhando já sua resposta.- Algum evangelho? - A pergunta do caolho soou maliciosa. - Os senhores que conhecem tão bem os evangelhos como eu me digam em que parte deles se descreve Pedro segurando uma adaga à mesa, ou Judas e Cristo pondo a mão no mesmo prato... Não encontrarão qualquer alusão a essas cenas. Não senhor.- Pois exijam que ele explique!- Tira o corpo fora. Diz que só presta contas ao duque, que é quem paga suas jornadas.- Querem dizer que entra e sai desta casa quando deseja?- E se faz acompanhar por quem quer. Às vezes, até por mulheres da corte a quem deseja impressionar.- Perdoe-me a ousadia, frei Benedetto, com todo o respeito por alguém tão zeloso como o senhor, esses não são argumentos para acusar alguém de heresia.- Como não? Não são argumentos suficientes? Não basta um Cristo sem o atributo divino, uma Última Ceia sem eucaristia e um São Pedro escondendo uma adaga sabe Deus para atacar quem?Benedetto franziu o nariz vermelho de ira, resmungando contra o que eu acabara de lhes dizer. O prior tentou contemporizar:- Não o compreende, verdade?- Não... - respondi.- O que frei Benedetto tenta nos explicar é que ainda que para o senhor esta cena só pareça uma representação maravilhosa da ceia pascal, talvez não o

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seja em absoluto. Vi trabalharem muitos pintores em encomendas semelhantes, menos ambiciosos sem dúvida, mas ignoro que demônio Leonardo deseja representar em minha casa - o prior enfatizou o possessivo para demonstrar como se sentia atingido pelo caso. Logo, segurando-me a manga do hábito, prosseguiu em tom sombrio. - Tememos, irmão, que o pintor do Mouro queira zombar de nossa fé e nossa Igreja e, se não encontrarmos a chave de leitura de sua obra, ela ficará aqui para sempre, como escárnio eterno por nossa estupidez. Por isso precisamos de sua ajuda, padre Leyre.A última frase do padre Bandello ecoou pelo enorme refeitório. Sem me soltar a manga, o ciclope me puxou até outro lugar sob o andaime, de onde dava para ver vários comensais do Cemcolo.- Quer mais provas? Darei outra, para que esse impostor seja queimado!Segui-o.- Está vendo? - vociferou. - Olhe bem.- O que devo ver, padre Benedetto?- Leonardo! Quem, senão ele? Não o reconhece? O bastardo se re- tratou entre os apóstolos. É o segundo a partir da direita. Não há dúvida:seu mesmo olhar, as mãos grandes e poderosas e até a cabeleira branca.Diz que se trata de Tadeu, mas tem todos os seus traços!- Na verdade, padre, também nada vejo de errado nisso - repliquei.- Também Ghiberti se retratou nas portas de bronze do Batistério de Florença e não aconteceu nada. É um costume bem toscano.- Ah, sim? E por que Leonardo é o único personagem de toda a mesa, juntamente com o apóstolo Mateus, que aparece dando as costas a Nosso Senhor? Acredita mesmo que isso nada indica? Nem o próprio Judas Iscariotes tem atitude tão insolente! Aprenda uma coisa - acrescentou, em tom ameaçador: - Tudo o que faz esse diabo de Da Vinci obedece a um plano oculto, a um propósito.- Então, se Leonardo encarna Tadeu, quem é o verdadeiro Mateus, que dá as costas a Nosso Senhor?- Isso é o que esperamos do senhor! Que identifique os discípulos, que nos diga o que significa de verdade esta maldita Ceia!Tentei acalmar aquele ancião enérgico e temperamental.

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- Mas padres - eu disse, dirigindo-me ao prior e a seu excêntrico confessor -, para colocar minha cabeça a serviço desta adivinhação necessito que me expliquem em que fundamentam sua acusação contra o mestre Leonardo. Se querem um julgamento contra ele, se buscam interromper os trabalhos com um argumento sólido, devemos lidar com provas irrefutáveis, não com meras suspeitas. Não preciso recordar que Leonardo é protegido do senhor de Milão.- Nós o esclareceremos, não se preocupe. Mas antes conteste mais uma coisa...Fiquei contente em voltar a escutar o tom sereno do prior, que retrocedeu um par de passos para examinar A última ceia em sua totalidade.- Só de vê-la, sabe exatamente o que representa esta cena?Sua ênfase me fez desconfiar.- Diga-me o senhor, padre.- Está bem. Ao que parece, se trata do momento descrito pelo Evangelho de João no qual Jesus anuncia aos discípulos que um deles vai traí-lo. O Mouro e Leonardo escolheram a passagem com o máximo cuidado - Amen dico vobis guia unus vestrum me traditus esf - citei de memória.- "Um de vocês me atraiçoará." Exato.- E o que vê de extraordinário nisso?- Duas coisas - esclareceu. - Primeiro, que, à diferença das Últimas Ceias clássicas, não escolhesse o momento da instituição da eucaristia para este mural; e, segundo... - hesitou -, aqui o traidor não parece Judas.- Ah, não?- Olhe para o mural, santo céu - urgiu Benedetto. - Só me resta um olho, mas vejo claramente que quem quer atraiçoar Cristo, até quem:deseja matá-lo, é são Pedro.- Pedro? São Pedro, está dizendo?- Sim, Simão Pedro. Esse aqui - insistiu o caolho, apontando entre a dezena de rostos. - Não vê como esconde uma adaga nas costas e se prepara para agredir Cristo? Não vê como ameaça João pondo-lhe a mão , no pescoço?O ancião murmurava suas acusações com veemência, como se levasse tempo examinando em segredo a disposição daquelas figuras e chegasse a conclusões que escapavam ao comum dos mortais. O prior, ao seu lado, assentia com algum temor:

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- E o que me diz precisamente desse apóstolo João? - Sua ênfase me alertou. - Viu como o pintou? Imberbe, com mãos finas e cuidadas, com rosto de Madonna. Parece uma mulher!Sacudi a cabeça, incrédulo. O rosto de João não estava terminado. Apenas se intuía do esboço uns traços doces, arredondados, quase de adolescente.- Mulher? Está seguro? Nos Evangelhos não se diz que uma mulher se sentou à mesa...- Vejo que começa a compreender - respondeu Bandello mais calmo. - Por isso urge resolver essa adivinhação. A obra de Leonardo encerra muitos equívocos. Muitas alusões veladas. Sabe Deus quanto gosto de enigmas, a arte de esconder informação em lugares reais ou pinta dos, mas este me escapa.Notei como o prior se continha.- Claro que - acrescentou sem esperar resposta - ainda é cedo para que aprecie todos os matizes do problema. Volte aqui quando quiser.Aproveite as ausências do pintor para isso. Sente-se para apreciar o mural e trate de decifrá-lo por partes, tal como nós fizemos. Em alguns dias será invadido pelo mesmo desgosto que nos domina. Este mural o obcecará.E, dizendo isto, o prior remexeu seu molho de chaves buscando a chave adequada: uma grande e pesada, de ferro, com três hastes em forma de cruz latina.- Fique com ela. Existem só três cópias. Uma está com Leonardo, e amiúde a empresta aos aprendizes. Outra fica comigo e a terceira o senhor tem agora em suas mãos. E disponha de Benedetto ou de mim se precisar de qualquer esclarecimento.- Sem dúvida - acrescentou o caolho -, seremos de mais ajuda do que o bibliotecário.- Posso perguntar o que esperam deste inquisidor que agora está ao seu serviço?- Que encontre uma interpretação total e convincente para a Ceia.Que identifique, se existe, esse livro em que disse ter-se baseado. Que determine se é ou não um texto herético como aquele Apocalipsis Nova, e se for, que o detenha.- Em troca - o prior sorriu -, o ajudaremos com sua adivinhação.Que, por certo, ainda não nos disse qual é.

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- Procuro o homem que escreveu estes versos.E, dizendo isso, estendi-lhes uma cópia de Óculos ejus dinumera.Bernardino quase não se atrevia a olhar por cima do cavalete. Embora já não fosse adolescente e superara de longe o limiar dos trinta, essa espécie de trabalho o punha nervoso. Jamais conheceu mulher, talvez fosse o único da corporação que não conhecesse, e a Deus jurou que nunca conheceria. Prometeu também ao pai, ao cumprir os quatorze anos, e também ao seu mestre ao ingressar como aprendiz na bottega mais prestigiada de Milão. No entanto, arrependia-se agora. A filha dos Crivelli há duas semanas punha à prova sua débil natureza. Nua, com seus cabelos dourados e encaracolados caindo-lhe nas costas, ereta na beirada do sofá e com o olhar azul cravado no teto, aquela condessinha de dezesseis anos era a imagem viva do desejo. Cada vez que abandonava o trejeito de anjo e cravava os olhos nele, Bernardino se sentia morrer.- Mestre Luini - a voz de donna Lucrezia lhe falou em surdina, como se ela também se insinuasse -, quando acredita que o retrato da menina ficará pronto?- Logo, senhora condessa. Logo.- Lembre-se que o prazo de nosso contrato expira na próxima se mana - insistiu.- Sei muito bem, senhora. Não existe em minha vida data tão presente como essa.A mãe da Afrodite vigiava amiúde as sessões de pose. Não que desconfiasse de Bernardino, homem de reputação irrepreensível raramente; visto trabalhar fora de um convento, mas ouvira tantas coisas sobre a voracidade dos cônegos e até do próprio papa, que não achava exagero supervisionar aqueles serões. Além disso, Bernardino era um varão atraente, talvez algo efeminado, e o único gentil-homem que o marido deixava! entrar em casa sem temer por sua honra. O conde tinha razões de sobral   para desconfiar: os boatos de uma relação sentimental de sua belíssima mulher com o duque estavam há tempo na boca de todos. Lucrezia era a desejada. A mulher liberada que se excitava com todas as novidades. E Elena, sua filha, aprumava-se já como digna sucessora.

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- É bela, não é verdade? - observou com orgulho a condessa. - Essas maçãs que tem por peitos, tão firmes, tão duras... Não pode imaginar, mestre, quantos homens enlouqueceram por elas."Enlouqueceram?" O pintor conteve a duras penas o tremor do pincel. Sua tela já continha quase todos os detalhes do corpo de Elena: embora a imaginasse com cabelos mais escuros e compridos, uma cascata deles acariciava seu ventre até tapar aquele maravilhoso rincão de prazeres a que o artista renunciara.- O que não entendo, mestre, é por que escolheu o tema de Madalena para retratar minha filha, exatamente agora. É como se quisesse chamar a atenção do Santo Ofício. Além disso, todas as Madalenas são mulheres aflitas, tétricas. E nem sei o que parece essa horrível caveira em suas mãos...Bernardino depositou o pincel na paleta e se voltou para donna Lucrezia. A luz da tarde iluminava seu divã, dando relevo a formas que lhe resultavam vagamente familiares: as mechas louras e sinuosas eram idênticas às de Elena; as maçãs do rosto marcadas, exatas, os mesmos lábios úmidos e carnosos. E outros peitos abundantes palpitavam sob um corpete ajustadíssimo de tecido holandês. Vendo-a ali recostada podia entender o apetite desmesurado do Mouro por semelhante beldade. Era até lógico que a tagarelice sobre a Inquisição lhe passasse despercebida.- Condessa - disse -, lembro-lhe que deu liberdade a meser Leonardo para escolher o tema e enviasse o discípulo de sua escolha.- Sim. É uma lástima que o mestre esteja tão ocupado com esse venturoso Cenacolo.- O que posso dizer eu? Meser me pediu que pintasse uma Madalena, e é o que faço. Além disso, vindo dele, o tema eleito deveria orgulhar sua família.- Orgulhar? Maria Madalena não foi uma puta? - exclamou. - Por que não pôde encomendar um retrato ao natural como o que seu mestre pintou para mim? Por que insistir em estigmatizar minha família com uma sombra que há séculos nos persegue?Bernardino Luini se calou. A família Crivelli era um cia de origem veneziana que, confiando na destreza de Leonardo, acreditava possível 1 encontrar um bom partido para a filha graças a um retrato que exaltasse suas virtudes. E com uma Madalena assim resultaria difícil. De fato, fora sua magra economia,

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e não seu critério, o que deixou o caminho livre ao mestre para escolher o tema da tela. E não desperdiçou a oportunidade. Bernardino olhou sua indolência ao recordar a astúcia do toscano. Donna Lucrezia posava há anos em sua bottega da rua Magenta, dando vida a alguns de seus quadros mais notáveis. Se agora concordara em deixar a filha posar como a favorita de Jesus era porque pensava logo em iniciá-la em seus mistérios.Não em vão. Lucrezia era o último expoente de uma longa estirpe de mulheres que se acreditava herdeiras da autêntica Maria de Magdala. Uma saga de fêmeas de feições claras e suaves, que há gerações inspiravam poetas e pintores e que nem sempre eram conscientes da herança que transmitiam.Luini deu mais um par de pinceladas tentando evitar o sorriso contagiante de Elena. Logo, pensativo, retomou sua conversação:- Creio que se precipita em seu julgamento, senhora. Maria Madalena... Santa Maria Madalena - corrigiu em seqüência - foi uma mulher valente como poucas. Chamaram-na casta meretriz e, à diferença do restante dos discípulos, que, à exceção de João, fugiram de Jerusalém quando crucificaram Nosso Senhor, ela o acompanhou até o pé do Gólgota. Aí está, senhora, o porquê da caveira que sua filha segura. Mas, além disso, Madalena foi a primeira a quem Jesus Cristo apareceu depois de ressuscitado, demonstrando o profundo carinho que sentia por ela.- E por que acredita que fez algo assim?Luini sorriu, satisfeito:- Para premiá-la por seu valor, naturalmente. Muitos acreditamos que Jesus ressuscitado confiou então a Madalena um grande segredo.Maria demonstrou que era merecedora dessa distinção, e nós, cada vez que a pintamos, tratamos também de nos aproximarmos daquela revelação.-Agora que mencionou, também eu ouvi meser Leonardo falar desse segredo, embora evite dar muita explicação sobre ele. Certamente seu mestre é um homem cheio de enigmas. - Do ponto de vista espiritual, muitos consideram a inteligência um mistério, senhora. Talvez um dia o mestre decida nos contar. Ou talvez escolha sua filha para fazê-lo...

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- Tudo pode acontecer com esse homem. Conheço-o desde que chegou a Milão em 1482, e nunca deixei de me surpreender com suas intrigas. É tão imprevisível...Lucrezia se deteve um instante, como se sua mente repassasse velhas recordações. Logo perguntou com vivo interesse:- Não conhece, por acaso, o segredo da Madalena?Luini voltou a olhar para a tela.- Pense nisto, senhora: o verdadeiro ensinamento de Cristo aos homens só pôde chegar depois que o Senhor superou o transe da Paixão e ressuscitou com a ajuda do Pai Eterno. Só então teve certeza absoluta da existência do Reino dos Céus. E quando retornou de entre os mortos, quem encontrou primeiro? Maria Madalena, a única que teve a coragem de esperá-lo, mesmo contrariando as ordens do sinédrio e dos romanos.- Nós mulheres sempre fomos mais valentes do que os varões, mestre Luini.- Ou mais imprudentes...Elena continuava muda, assistindo divertida à conversa. Se não fosse pela lareira bem carregada que tinha por trás há muito teria apanhado um bom resfriado.- Admiro como a senhora a tenacidade das mulheres, condessa - disse Bernardino, voltando a sopesar o pincel. - Por isso é bom que sai ba que Maria Madalena desfrutou, a partir daquela revelação, virtudes ainda mais notáveis.- Ah, sim?- Se algum dia forem reveladas, verá com quanta fidelidade se refletem no retrato de sua Elena. Então ficará mais do que satisfeita com esta tela.- Meser Leonardo nunca me falou de tais virtudes.- Meser Leonardo é prudente, senhora. As bondades de Madalena é um assunto delicado. Até assustaram os discípulos no tempo de Nosso Senhor. Nem os evangelistas quiseram contar muitas coisas sobre elas! O olhar da condessa faiscou maliciosamente. - Natural! Porque era uma puta!- Maria nunca escreveu uma linha. Nenhuma mulher daquele tempo escreveu - prosseguiu o mestre Luini, ignorando as provocações. - Por isso quem quiser saber sobre ela deve seguir os passos de João. Como já disse, o amado foi o único que esteve à altura das circunstâncias quando crucificaram Cristo.

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Quem admira Madalena também admira João e considera seu evangelho o mais belo dos quatro.- Perdoe-me se insisto: até que ponto Madalena foi alguém especial para Cristo, mestre Luini?- Até o ponto de beijá-la na boca diante dos discípulos.Donna Lucrezia se sobressaltou. Seu corpete estalou ao encolher do peito.- Como disse?- Pergunte a Leonardo. Ele conhece os livros em que se contam estes segredos. Só ele sabe como era o verdadeiro rosto de João, ou Pedro ou Mateus... e até Madalena. Não viu ainda seu maravilhoso trabalho no convento de Santa Maria?- Sim, claro que vi - respondeu com tédio, lembrando de novo que por culpa do Cenacolo não era Leonardo quem estava agora em sua casa.- Estive lá há uns meses. O duque quis me mostrar o avanço do trabalho de seu pintor favorito, e me deslumbrou com a magnífica execução daquele mural. Recordo que ainda faltavam os rostos de alguns apóstolos e no convento ninguém sabia dizer quando estariam prontos.- Ninguém sabe, é certo - concordou Luini. - Meser Leonardo não encontra modelos para alguns apóstolos. Embora haja muitos rostos sinistros na corte é difícil retratar a perversidade de um Judas. Imaginei como é complicado encontrar um rosto puro e carismático como o de João. Nem imagine quantos rostos o mestre teve de examinar para encontrar um bom para o discípulo amado! Leonardo sofre muito cada vez que tropeça nestes obstáculos e se atrasa sem solução.- Leve então minha filha! - riu. - E que sente Madalena na mesa no lugar de João!A condessa Crivelli, divertida, levantou-se do divã, expondo ao ar uma nuvem de perfume em que nadava pelo palácio. Majestosa, aproximou-se das costas do pintor e deixou cair a mão delicada sobre seu ombro.!- Já chega de conversa por hoje, mestre. Acabe o retrato logo e receberá o restante do pagamento. Restam-lhe pelo menos duas horas de luz antes de que o Sol se ponha. Aproveite-as.- Sim, senhora.

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Os sapatos de donna Lucrezia repicaram sobre o lajeado até o som sumir. Elena não pestanejava. Continuava ali, magnífica, com a pele rosada e limpa, e com o corpo recém-raspado pelas criadas do palácio. Quando se assegurou de que a mãe entrou em seus aposentos, saltou sobre o divã.- Sim, sim, mestre! - aplaudiu, soltando Gólgota, que se dirigiu ao pé do braseiro. - Isso! Apresente-me a Leonardo! Apresente-me!Luini a contemplou entrincheirado por trás da tela.- Quer mesmo conhecê-lo? - sussurrou depois de dar mais um par de pinceladas, quando já não podia fingir indiferença.- Claro que quero! O senhor mesmo me disse antes que talvez ele me revele seu segredo...- Mas a advirto: talvez não goste do que vai encontrar, Elena. É um homem de caráter forte. Parece distraído, mas na realidade é capaz de contemplar tudo com a precisão de um relojoeiro. Percebe o número de folhas de uma flor só de olhá-la de soslaio, e se empenha em estudar as minúcias de tudo, levando seus companheiros ao desespero.A condessinha não desanimou:- Isso me agrada, mestre. Enfim um homem detalhista!- Sim, sim, Elena. Mas ele, digo-lhe a verdade, não gosta muito das mulheres...- Oh! - Um tom de desilusão se filtrou de sua vozinha. - Esta parece ser a norma entre os pintores, não é verdade mestre?O pintor se escondeu ainda mais por trás do quadro quando a modelo ficou de pé, mostrando-se como era bonita. Um calor repentino lhe subiu à cabeça, enrubescendo-lhe a face e secando a garganta.- Mas... por que diz isso, Elena?- Porque já está há quase dez dias retratando-me nua, os dois fechados nesta mesma sala, e não fez nenhum gesto de aproximação. Minhas damas de companhia dizem que isso não é normal e até se perguntam, as muito espertinhas, se o senhor não é castratus.Luini não soube o que responder. Levantou o olhar para encontrar o de sua interlocutora e a encontrou a dois palmos dele, cheirando a  essência de nardo e com toda a pele palpitando. Nunca pôde explicar o que aconteceu depois: a peça começou a dar voltas ao redor enquanto uma força poderosa, estranha,

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que nascia de suas vísceras, dominou-o por completo. Lançou o pincel e a paleta para o lado e puxou a condessa para si. O contato com aquele corpo jovem excitou sua entreperna.- É... donzela? - titubeou.Ela riu:- Não. Não mais.E descendo sobre ele beijou-o com um ímpeto desconhecido. Tal como previu o padre Bandello, a última ceia logo se tornou uma obsessão para mim. Só naquela tarde de sábado, com a chave na mão, visitei-a quatro vezes antes do pôr-do-Sol. Só ia depois de me assegurar de que o lugar estava vazio. De fato, creio que foi a partir desse dia que na comunidade começaram a me chamar de padre Trotolla, que quer dizer pião. Tinham seus motivos. Sempre que algum frade cruzava por mim me encontrava como doido, vagando perto do refeitório, e com uma idêntica e insistente pergunta nos lábios: "Alguém viu o mestre Leonardo?”Suponho que cheguei ao convento no pior momento para tropeçar nele. A preparação do funeral mudou os costumes da cidade, mas em especial os de Santa Maria delle Grazie. Enquanto frei Alessandra e eu queimávamos a mufa para decifrar a adivinhação do Augure, o restante dos irmãos só se preparava para o dia seguinte. A princesa morrera há treze dias e seu cadáver repousava embalsamado numa arca de madeira de acácia na capela da família do castelo. Os embaixadores dos reinos convidados para o sepultamento passeavam impacientes pela fortaleza do Mouro e o convento em busca de notícias sobre a cerimônia.Na realidade, estive alheio à agitação até a manhã de domingo, 15 de janeiro, dia de São Mauro. Agradeci aos céus pelos toques de sino que me despertaram cedo. Dormira mal, inquieto; sonhei com os doze homens do Cenacolo que se moviam e tagarelavam em torno do Messias. Já quase podia adivinhar as obscuras intenções de cada um deles, mas intuía que o tempo para arrancar-lhes seus segredos corria contra mim. Naquele domingo donna Beatrice ia ser sepultada no novíssimo panteão dos Sforza, sob o altar-mor de Santa Maria, e era provável que o misterioso Augure que nos prevenira tantas vezes contra ela decidisse comparecer ao convento.

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Dirigi-me ao refeitório depois das orações do amanhecer. Seguramente aquele seria o único momento que teria para recolher-me em sua tranqüila solidão. Voltaria a me enfronhar nos traços de cores vivas do mestre Leonardo e imaginar que o misterioso trabalho do toscano não consistia em pintar aquele mural, mas em resgatar dele, pouco a pouco, com precisão de cirurgião, uma cena mágica gravada sob o estuque pelos próprios anjos.Estava nesse devaneio quando, ao dobrar a oeste do Claustro dos Mortos e dirigir meus passos até o portão que protegia o refeitório, encontrei-o aberto de lado a lado. Dois homens que eu nunca vira conversavam animadamente sob a entrada:- Já sabe a do bibliotecário? - ouvi falar o que estava mais perto de mim. Vestia calça vermelha, gibão com listras amarelas e brancas, e tinha rosto de querubim com cabelos encrespados. Ao ouvi-los falar de frei Alessandro tirei o capuz e, com ar distraído, decidi prestar atenção, de uma distância segura.- O mestre me falou algo - respondeu o outro, um jovem de bom aspecto, moreno, atlético e atraente. - Dizem que anda muito nervoso, e todos temem que possa cometer algum desatino.- É lógico. Mantém há tempo esse venturoso jejum... Creio que está perdendo o juízo.- O juízo?- A falta de alimento deve provocar alucinações. Está obcecado em ser descoberto e que o afastem dos livros. Deveria tê-lo visto tremer de medo ontem à noite. Parecia um junco açoitado pelo vento.O mais forte dos dois olhou então para onde eu estava colocado, obrigando-me a me mexer se não quisesse ser descoberto. Consegui ainda ouvir uma última coisa:- Afastá-lo dos livros, está dizendo? Isso não é possível. Não acredito que se atrevam a tanto. Fez muito bem seu trabalho, para merecer esse castigo...- Então, concorda comigo?- Certamente. O jejum acabará matando-o.Aquilo me provocou uma suspeita. Não era normal que algo tão  íntimo, tão intramuros, como o jejum do padre Alessandro, estivesse na boca de uns leigos alheios à comunidade. Mais tarde soube que o homem das calças vermelhas era Salaino, o discípulo favorito e protegido de Leonardo, e o

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moreno era um fidalgo aprendiz de pintor amigo de Marco d'Oggiono. Eles, como Bandello já me advertira, usavam amiúde a chave do refeitório. Quase sempre o abriam para preparar as misturas de tinta do mestre ou colocar os utensílios em ordem. Pois bem: o que faziam ali num domingo, com o enterro de donna Beatrice às portas, e vestidos a rigor? Como é que falam de frei Alessandro com essa naturalidade e, sobretudo, com esse conhecimento de seus costumes? E a troco de que afirmavam que estava nervoso? Intrigado, passei diante deles em direção à escada da biblioteca, tentando não chamar muito sua atenção. Minha mente, sempre em movimento, continuava disparando perguntas: onde diabos o bibliotecário esteve na noite anterior? Era verdade que se encontrara com o mestre Leonardo? Para quê? Não criticara abertamente o mestre em nossas conversas? Era agora seu amigo?Um calafrio me percorreu a coluna. A última vez que falei com frei Alessandro foi no dia anterior, nas vésperas. Aplicava-se em me mostrar os manuscritos consultados por Leonardo na biblioteca do convento, no tempo em que eu tratava de identificar neles o livro que o abade vira nas cartas de donna Beatrice. A verdade é que em nenhum momento percebi mudança em seu humor. De certa maneira, causou-me dó. O frade que melhor me acolheu, que esteve grudado em mim desde o primeiro momento em que pus os pés em Santa Maria era dos poucos que não conhecia o que se estava armando ali.Naquela tarde senti remorso e acabei por confessar-lhe o que sabia de Leonardo e do desafio do Cenacolo. Devia a ele.- O que vou lhe contar - adverti-o - jamais deve sair de sua boca...O bibliotecário me observou surpreso.- Jura?- Por Cristo.Concordei com gosto.- Está bem. O prior acredita que meser Leonardo ocultou uma mensagem secreta no mural do refeitório.- Uma mensagem secreta? Na Última ceia. - O prior suspeita que é algo que ofende a doutrina da Santa Igreja. Uma crença que meser Leonardo pode ter lido num dos livros que o senhor lhe emprestou.- Qual? - impacientou-se.

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- Pensei que o senhor soubesse.- Eu? O mestre consultou muitos títulos de nossa biblioteca.- Quais?- Foram tantos... - duvidou. - Não sei. Talvez se interessou por De secretis artis et naturae oper bus. - De secretis artis?- É um manuscrito franciscano raro. Se não me engano ouviu falar dele por frei Amadeu de Portugal. Lembra-se?- O autor de Apocalipsis Nova.- O próprio. Nesse livro, um monge inglês chamado frei Roger Bacon, conhecido inventor e escritor acusado de heresia e encarcerado pelo Santo Ofício, falava das doze maneiras diferentes que existem para esconder uma mensagem numa obra de arte.- É um texto religioso?- Não. É mais técnico.- E que outro livro pode tê-lo inspirado?Frei Alessandro roçou o queixo, pensativo. Não me parecia nervoso, nem alterado por minhas perguntas. Continuava serviçal, como sempre, quase como se minhas confissões sobre Leonardo não o afetassem em nada.- Deixe-me pensar - murmurou. - Talvez se utilizasse das vidas dos santos de frei Jacopo da Varazze... Sim. Ali poderia ter encontrado o que o senhor busca.- Nos livros do conhecido bispo de Gênova? - Repliquei assombrado.- Foi, de fato, há mais de trezentos anos.- E o que tem a ver Da Varazze com a mensagem oculta do Cenacolo?   - Se tal mensagem existe, estes livros poderiam conter a chave para decifrá-la - os olhos do macilento frei Alessandro se fecharam, como se buscasse concentração. - Frei Jacopo da Varazze, dominicano como nós, recolheu no Oriente todas as informações possíveis sobre a vida dos primeiros santos, e a dos discípulos de Nosso Senhor. Suas descobertas entusiasmaram mestre Leonardo.Arqueei as sobrancelhas, incrédulo.- No Oriente?

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- Não estranhe, padre Leyre - prosseguiu. - Os detalhes contidos neste livro não são precisamente canônicos.- Ah, não?- Não. A Igreja nunca aceitaria o parentesco que frei Jacopo garante que tiveram os Doze entre si. Sabia que Simão e André eram irmãos? Talvez isso explique por que Leonardo os pintou como gêmeos.- Deveras?- E sabia que Da Varazze afirmou que muitos confundiam Tiago com o próprio Cristo? E não percebeu a enorme semelhança que tem com Jesus no Cenacolo?- Então - suspeitei -, Leonardo leu este livro.- Deve ter sido mais do que isso. Estudou-o a fundo. E leu com mais interesse do que o opúsculo de Roger Bacon. Pode crer.Frei Alessandro suspendeu aí nossa última conversa. Por isso, quando escutei os discípulos do toscano dizerem que o bibliotecário se encontrara com Leonardo naquela mesma noite, estremeci. Sua casual indiscrição não só confirmava que o bibliotecário me ocultara algo tão importante como sua amizade com Leonardo, mas quem eu acreditava ser meu único amigo em Santa Maria me delatara.Mas por quê?

* Na realidade, este livro não foi impresso antes de 1542, quando o parisiense? Cláudio Celestino decidiu levá-lo aos tipos móveis. Antes circulou em âmbitos! muito restritos, sempre em forma manuscrita. Uma cópia ficou guardada na biblioteca de Santa Maria delle Grazie.

Procurei o bibliotecário em todos os lugares. Em sua mesa ainda repousavam os dois volumes do bispo Da Varazze que me mostrara na tarde anterior. Cinzelados em caracteres grandes se destacavam o nome do autor e o título italiano do livro: Legendi di sancti vulgarík storiado. Do outro livro, no entanto, o das artes secretas do padre Bacon, não havia nem rastro. Se frei Alessandro o guardasse em sua coleção, devia tê-lo bem escondido.Era imaginação minha ou o bibliotecário pretendera desviar minha atenção daquele tratado? Por quê?

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As perguntas se acumulavam. Eu precisava que frei Alessandro me explicasse algumas coisas. No entanto, por mais que o procurasse na igreja, na cozinha ou no prédio das celas, ninguém soube me informar; sobre seu paradeiro. Tampouco pude insistir muito. Com a crescente: maré de gente que se aproximava de Santa Maria para ver de perto o cortejo fúnebre, era fácil perder de vista o bibliotecário. Sabia que cedo; ou tarde o encontraria e então me esclareceria que diabo se passava ali. Pelas dez da manhã, a praça situada em frente à igreja e todo o caminho que separava Santa Maria do castelo estavam ocupados por uma multidão silenciosa. Todos vestiam suas melhores roupas e vinham munidos de velas e palmas secas que agitariam à passagem do féretro princesa. Não cabia um alfinete no trajeto. Na igreja, em compensação a entrada fora restrita aos convidados e embaixadores por desejo expresso do duque. Sob a tribuna fora instalado um estrado revestido veludo atravessado por cordões de ouro terminados em borlas, em que o Mouro e seus homens de confiança entoariam suas orações. Toda a área estava sob a proteção da guarda pessoal do duque e só nós, os monges de Santa Maria, tínhamos certa liberdade de entrar e sair.Dirigi-me à zona nobre da igreja não tanto com a esperança de encontrar frei Alessandro, mas com a idéia de ver pela primeira vez o mestre Leonardo. Se os ajudantes tinham aberto o refeitório de manhã era provável que o mentor não andasse longe dali. Meu instinto não falhou.Ao toque das onze, uma repentina agitação alterou a calma do templo de Santa Maria. A porta principal, sob a maior de todas as janelas, abriu-se com estrondo. As trombetas do exterior bramiram anunciando a chegada do Mouro e seu séquito. O sinal arrancou muda ovação entre os fiéis que tiveram acesso permitido. Então uma dezena de homens de rosto severo e olhar vazio, cobertos por longas capas e adornos de pele preta, entraram com passo marcial rumo à tribuna. Ali o vi. Ainda que encerrasse o grupo, o mestre Leonardo se destacava como Golias entre os filisteus. Mas não foi sua altura a única coisa que me chamou a atenção. O toscano, à diferença dos brocados de pedras preciosas e mantos de seda vestidos pelo restante dos cavalheiros, ia coberto de branco da cabeça aos pés, e sua barba, comprida, loura e bem recortada lhe caía sobre o peito, e enquanto caminhava olhava para um e outro lado, como se buscasse rostos conhecidos entre a concorrência. Sua figura

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parecia um fantasma de outra época. O Mouro, que ia três passos à frente, a pele escura e os cabelos negros como o betume, cortados em forma de taça, era o oposto do perfil solar do gigante. Todo mundo reparava nele. Os porta-estandartes das diferentes casas reais que compareceram ao sepultamento percebiam antes sua presença do que a do próprio Ludovico. No entanto, o toscano parecia viver alheio a tudo isso.- Sejam bem-vindos à casa do Senhor - recebeu-os do altar o prior Bandello, rodeado por monges vestidos para a ocasião. Junto a ele se encontravam o arcebispo de Milão, o superior dos franciscanos e uma dezena de clérigos da corte.O Mouro e seu séquito se persignaram e se acomodaram no estrado reservado para eles, quase ao mesmo tempo em que o grupo de músicos com o brasão dos Sforza penetrava no templo anunciando a chegada do féretro.O mestre Leonardo, de pé na terceira fila do estrado, olhava com ansiedade para todos os lados e anotava com rapidez, sabe Deus o quê, num daqueles taccuini que sempre tinha consigo. Pareceu-me que da mesma maneira vigiava os rostos da multidão, ouvia as notas do órgão de Santa Maria e o drapejar dos estandartes das comitivas. Alguém me disse que na tarde anterior ficou extasiado observando o vôo dos quatrocentos pombos libertados na praça do Domo, e até me garantiram que fez anotações sobre as salvas de canhão que o núncio de Sua Santidade mandou disparar sob as muralhas da cidade em honra da defunta. Para ele tudo merecia ser registrado. Tudo continha os traços da ciência secreta da vida.Certamente, não fui o único a observar seus movimentos durante a cerimônia. Ao meu redor as pessoas falavam em voz baixa sobre o toscano. Quanto mais me perdia em seu olhar azul e o seu porte majestoso, mais necessidade sentia de conhecê-lo. O Augure primeiro e o padre Bandello depois exacerbaram essa sede que agora me queimava por dentro.Os convidados não ajudaram exatamente a sufocar minhas ânsias. Cochichavam como periquitos sobre a última obsessão do toscano: concluir um tratado sobre pintura em que tencionava insultar poetas e escultores para exaltar a superioridade de seus pincéis. Sua mente privilegiada se empenhava ao mesmo tempo em distrair o Mouro da dor e em desenhar pontes levadiças impossíveis, torres de assalto que se moveriam sem cavalos ou gruas para

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descarregar a lã dos barcos dos navigli (Canais artificiais que cruzam Milão e que na época do Mouro serviam para o transporte de mercadorias). Da Vinci, abstraído, ignorava as paixões que despertava. Agora parecia rabiscar no caderno um esboço do estranho traje que o duque vestia para a ocasião: um manto de seda preta belíssimo, navalhado por toda parte, talvez dando a entender que o rasgara com suas próprias mãos.Eu mal podia imaginar como estava perto de conversar com o mestre.Foi o irmão Giberto, sacristão de Santa Maria, quem me propiciou aquele primeiro contato com o pintor, em meio a uma circunstância tão dramática como inesperada.Ocorreu enquanto frei Bandello pronunciava as palavras da consagração. Aquele rapagão do norte, de bochechas rosadas e cabelo cor de abóbora, aproximou-se de mim pelas costas e puxou ferozmente o hábito.- Padre Agustín! Escute-me! - suplicou frei Giberto, desesperado.Seus olhos saltados quase não lhe cabiam no rosto. Estavam injetados de sangue. - Acaba de acontecer algo terrível na cidade! O senhor deve to mar conhecimento de imediato!- Algo terrível?As mãos do alemão tremiam.- É um castigo de Deus - ciciou. - Um castigo para quem desafia o Altíssimo!...O sacristão não teve oportunidade de terminar. Benedetto, o caolho facilmente irritável, confessor do prior, e frei Andrea de Inveruno, com seus gestos afetados, aproximaram-se com idêntico movimento de urgência:- Devemos ir de imediato. E depressa!- Acompanha-nos, padre Agustín? - disse quase sem fôlego o sa cristão. - Creio que necessitaremos de reforços.Tanta urgência me desarmou. Não sabia para onde ia acompanhá-los nem para quê, mas quando vi um pajem do duque se aproximar de Leonardo e sussurrar-lhe algo ao ouvido enquanto o puxava com a expressão alarmada, aceitei. Ali acabara de acontecer algo extraordinário. E eu queria saber o que era.Os dois oficiais de justiça do duque não acreditavam em seus olhos. Diante deles estava o corpo sem vida de um frade. Uma corda da grossura de um

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punho o submetia com firmeza pelo pescoço, fixando-o a uma das vigas da praça do Comércio.Andrea Rho, chefe da guarda, ainda não desjejuara. De fato, nem abotoara o uniforme quando aquela notícia truncou sua entediante manhã de domingo. Com os cabelos brancos revoltos, o estômago vazio e o inconfundível odor de urso recém-desperto, Rho se aproximou de má vontade para ver o que se passava. Pouco havia que fazer. O desgraçado estava com a pele azulada e fria, veias do rosto inchadas e os olhos abertos e secos. O terror esboçado naquelas pupilas sugeria uma morte cruel. O defunto agonizara um bom tempo antes de sufocar. Os braços, agora inertes, estendiam-se paralelos ao hábito branco de São Domingos enquanto o punho das mangas apenas deixava entrever duas mãos cuidadas, magras, rígidas. Um suave fedor a cadáver chegou ao nariz do capitão.- E então? - o olhar de Andrea vagueou entre a turbamulta de curiosos sedentos de espetáculo. Muitos regressavam para casa frustrados por não ver o suntuoso coche mortuário da duquesa, e aquela agitação na rua prometia compensá-los. Rho desconfiava de todos. Procurava algum rosto cúmplice, alguém que contemplasse a cena com orgulho. - O que temos aqui?- É um religioso, senhor. Um frade - respondeu aguerridamente seu companheiro, enquanto tentava conter, com os braços em cruz e a lança cravada no solo, a multidão nos limites.- Isso já percebi, Adriano. Acordaram-me com essa notícia.  - Verá, senhor - titubeou o soldado. - Esse homem apareceu pendurado esta manhã mesmo. Nenhuma oficina ou armazém desta região abriu hoje, por isso ninguém viu nada...- Você o revistou?- Ainda não.- Não? Ainda não sabe se o roubaram antes de pendurá-lo?O tal de Adriano negou com um gesto de apreensão. Provavelmente nunca tocara num cadáver. Rho o presenteou com um esgar de desprezo antes de se dirigir à assistência.- Ninguém sabe de nada, não é? - repreendeu-a aos gritos. - Vocês são um bando de covardes. Ratos!

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Ninguém se perturbou. As pessoas olhavam extasiadas o sutil movimento pendular do monge, conjeturando em voz baixa sobre o que acontecera. Deus sabe que os religiosos não costumam carregar bolsa alentada e não compensa aos assaltantes agredi-los. Mas se não se tratava de ladrões, quem acabara com aquele monge? E por que o justiçaram, abandonando-o em plena rua?Andrea Rho rodeou um par de vezes o cadáver antes de formular outra pergunta maliciosa ao companheiro:- Está bem, Adriano. Sejamos diligentes. Você diria que aconteceu o que aqui? Mataram-no ou se enforcou?O rapaz, de espaldas fortes e olhar intermitente, meditou um instante, como se da resposta dependesse sua promoção. Ruminou, portanto, a resposta com cuidado, e quando estava a ponto de abrir a boca para dizer algo... não pôde. Um vozeirão magnífico se levantou do meio da multidão:- Tirou-se a vida! - gritou alguém do fundo. - Tirou-se! Disso não há dúvida, capitão!Era um timbre varonil, seco, que quase fez tremer o átrio do mercado, deixando a multidão impressionada.- Além disso - prosseguiu -, também sei o nome: frei Alessandro Trivulzio, bibliotecário do convento de Santa Maria delle Grazie! Deus acolha essa alma era Seu seio!O desconhecido deu então um passo à frente, abrindo caminho entre os curiosos. Adriano, ainda com a boca aberta, permaneceu olhando-o. Tratava-se de um indivíduo extraordinário: alto, robusto, impecavelmente vestido com uma camisa de algodão que lhe caía até os pés e uma comprida cabeleira recolhida sob um gorro de lã. Acompanhava-o um rapazinho de aspecto tímido, que não teria mais de doze ou treze anos e parecia impressionado pela proximidade do morto.- Vejam! Enfim um valente! E o senhor quem é, pode-se saber? - interrogou Rho. - Como pode estar seguro do que diz?O colosso procurou os olhos de Andrea Rho antes de responder.- É fácil, capitão. Se prestar atenção ao aspecto do corpo, verá que não apresenta outros sinais de violência além da dilaceração do pescoço.Se resistisse a morrer ou fosse atacado, seu hábito estaria sujo, talvez rasgado ou ensangüentado. E não é o caso. Esse frade aceitou seu fim de boa vontade.

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E se prestar ainda mais atenção, embaixo verá ainda o barrilzinho que lhe serviu de apoio para subir à viga e colocar a corda no pescoço.- Sabe muito sobre mortos, senhor - disse, irônico.- Vi-os mais do que imagina, e de perto! Seu estudo é uma de minhas paixões. Até abri-lhes passagem para converter suas entranhas em ciência. - O gigante ressaltou aquela frase, ciente de que um murmúrio de horror se estenderia por toda a praça. - Se o senhor tivesse ocasião de contemplar tantos enforcados como eu, capitão, também perceberia outra coisa.- Outra coisa?- Que este corpo está pendurado aqui há várias horas.- Deveras?- Sem dúvida - afirmou. - Basta se deter no exército de moscas que esvoaçam ao seu redor. As dessa espécie, pequenas e nervosas, demoram de duas a três horas para se aproximar de um defunto. E olhe como revoam em busca de alimento!... Não é extraordinário?- O senhor ainda não me disse quem é!- Chamo-me Leonardo, capitão. E sirvo ao duque como o senhor.- Nunca o vi antes.- Os domínios do Mouro são extensos - disse, esboçando uma risada imprópria para a circunstância. - Sou artista e trabalho em vários | projetos, um dos quais no convento de Santa Maria delle Grazie; por isso conhecia bem este desgraçado. Sabe? Era um bom amigo.Enquanto fazia intenção de se benzer, o oficial estudou os modos   daquele estrangeiro. Acabou por aceitar a idéia de se encontrar diante de um mestre da cidade. Como todos em Milão, ouvira falar de um certo sábio chamado Leonardo e seus extraordinários poderes. Tentava recordar o que diziam dele: que não apenas era capaz de capturar a alma humana numa tela, ou de fundir a maior estátua eqüestre vista em séculos para recordar o defunto Francesco Sforza, mas que tinha conhecimentos médicos que raiavam o milagre. Aquele tipo se ajustava bem à idéia que fizera dele.- Diga-me então, mestre Leonardo. Segundo o senhor, por que um frade do convento de Santa Maria delle Grazie quis se enforcar aqui?

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- Isso ignoro, capitão - respondeu mais amável. - Embora possa interpretar com facilidade os signos externos, a vontade dos homens é amiúde impossível de captar. No entanto, talvez a resposta seja simples.Assim como venho seguidamente comprar minhas telas e tintas neste lugar, ele poderia ter se aproximado em busca de alguma outra mercadoria. Depois, algum pensamento funesto passou por sua mente e decidiu que era um bom momento para morrer... Não acredita?- No domingo? - o capitão Rho suspeitou. - E com o funeral da princesa Beatrice sendo celebrado em seu próprio convento? Não. Não acredito.O gigante encolheu os ombros:- Só Deus sabe o que pode passar pela mente de um de seus servos...- Sim.- Talvez se o soltasse e revistasse seu cadáver com cuidado encontraria alguma pista sobre o que veio buscar no comércio. E se o senhor achar oportuno, ponho a seu serviço a ciência médica que conheço e minha completa disposição para estabelecer a causa e o momento de sua morte. Bastaria que enviasse o corpo ao meu estúdio de...O mestre não terminou a frase. Giberto, Andrea, Benedetto e eu alcançamos o círculo de curiosos nesse preciso momento. O caolho caminhava à frente, mudo, com esse olhar das feras antes de atacar. Quando seu único olho distinguiu a túnica branca de Leonardo junto ao corpo do irmão Alessandra, empalideceu.- Nem ouse profanar o corpo de um servo de São Domingos, meser Leonardo! - gritou antes de alcançá-lo.O toscano virou a cabeça para onde estávamos. Um segundo depois nos saudava com uma reverência e nos apresentava suas desculpas:- Sinto, padre Benedetto. Lamento esta morte tanto como o senhor.O caolho lançou um olhar ao rosto inerte de frei Alessandro, reconhecendo-o de imediato. Parecia impressionado. Mas não tanto como eu. Apalpei espantado suas mãos frias e rígidas, incapaz de crer que estivesse morto. E o que pensar de Leonardo? Que fazia ali o mestre pintor, mostrando tanta preocupação pelo bibliotecário? Seria a confirmação definitiva de que frei Alessandro e ele mantiveram estreito relacionamento? Benzi-me, jurando esclarecer o assunto, enquanto o toscano murmurava seus pêsames:

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- Que o Senhor o acolha em sua glória - disse.- E o que mais deseja para ele? - frei Benedetto, furioso, encarou o gigante com brio. - No fim das contas, não passou de um inocente útil para o senhor, mestre! Admita-o agora, quando ainda o tem de corpo presente.- O senhor sempre o subestimou, padre.- Não tanto como o senhor.Uma leve agitação ameaçou a fortaleza do mestre.- Além disso - prosseguiu Benedetto -, me surpreende que emita, apreciação tão prematura sobre sua morte. É impróprio para sua fama. Nosso bibliotecário amava a vida, porque haveria de tirá-la?Aguardei a resposta, mas o toscano não abriu a boca. Provavelmente percebeu o jogo do caolho. Os frades de Santa Maria tratariam de convencer a polícia de que nosso irmão caíra numa emboscada. Aceitar a hipótese do suicídio seria desonrá-lo e, ainda por cima, tornar inviável o sepultamento em solo sagrado.Com cuidado, tiramos o cadáver de seu improvisado patíbulo, bibliotecário conservava aquele curioso trejeito desenhado no rosto; era um mocho brincalhão, quase divertido, que contrastava com seu olha descomposto, cheio de terror. O toscano, num gesto piedoso que ninguém esperava, aproximou-se dele, baixou-lhe as pálpebras e murmurou-lhe algo ao ouvido.- Também fala com os mortos, meser Leonardo?A cabeça de Andrea Rho, a um palmo da do pintor, escarneceu gesto.- Sim, capitão. Já lhe disse que éramos bons amigos.E, dizendo aquilo, agarrou a mão do adolescente de cachos louros e olhar transparente com quem viera e dirigiu os passos para o beco do Galo.A inda não expliquei por que reagi assim. Ao ver o mestre Leonardo se afastar entre a multidão, me lembrei do conselho de frei Alessandro: "Em quem menos pensar terá uma solução para seu enigma." E se a solução para a identidade do Augure a tivesse seu maior inimigo?, pensei. Que poderia perder se o consultasse? Acaso enfraqueceria minha investigação trocar um par de frases com aquele gigante de túnica branca e olhos azuis?Foi quando decidi tentar.Deixei frei Benedetto, o irmão Giberto e Andrea arregaçando o hábito e recolhendo os restos mortais de frei Alessandro. Desculpei-me como pude e

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acelerei o passo para o mesmo beco por onde acabara de entrar o mestre. Ao virar a esquina e não vê-lo, decidi correr ladeira acima.- Dá-se muito trabalho para deter um pobre artista - o vozeirão do mestre soou de repente em minhas costas. Deteve-se para remexer numa barraca de verduras e eu passei ao largo sem advertir sua presença.Leonardo e seu efebo sorriram por sua vez, estirando os lábios da mesma forma e entrecerrando os mesmos olhos claros em uníssono.- Vou averiguar - prosseguiu o gigante, enquanto sopesava uns alhos.- Manda-o o lacaio do prior, o frade de um único olho, Benedetto, para perguntar-me se sei algo mais sobre a morte de seu irmão. Engano-me?- Engana-se, mestre - esclareci, enquanto recuava parte do caminho. - Não é o padre Benedetto quem me manda, e sim minha própria curiosidade.- Sua curiosidade?Senti uma estranha sensação no estômago. De perto, Leonardo era mais atraente do que me parecera na tribuna das autoridades. Suas feições retas revelavam um homem de princípios. Tinha mãos grandes  e fortes, capazes de arrancar um dente molar se fosse preciso... ou de dar vida à uma parede com seus desenhos mágicos. Quando me atravessou com seu olhar, tive a impressão extraordinária de que não poderia mentir para ele.- Permita-me que me apresente - respirei de novo. - Na realidade não pertenço à comunidade de Santa Maria. Sou apenas um hóspede. Chamo-me Agustín Leyre. Padre Leyre.- E então?- Estou de passagem por Milão. Mas não queria perder a ocasião d manifestar o quanto admiro seu trabalho no refeitório. Desejaria vê-lo em circunstância mais propícia, mas Deus dispõe à sua vontade.- O refeitório, sim - o gigante desviou o olhar para o solo. - É uma lástima que nem todos os frades de Santa Maria pensem como o senhor - Frei Alessandro também o admirava.- Sei, irmão. Sei. O irmão bibliotecário me socorreu em alguma etapas difíceis de meu trabalho.- É a isso a que se referia o padre Benedetto quando disse que lhe serviu de inocente útil?

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Leonardo me observou com cuidado, como se estudasse que palavras devia empregar com o homem que tinha diante de si. Talvez não me identificasse como o inquisidor de que sem dúvida os seus discípulos lhe teriam falado. Mas se identificou, fez com que eu não me desse conta.- Talvez ainda não saiba, padre, mas frei Alessandro me foi de grande ajuda para concluir um dos personagens mais importantes de Cenacolo. E foi tão generoso, tão desprendido comigo, como para posai sem nada me pedir em troca e aceitar as dificuldades que lhe surgiriam com seu gesto.- Dificuldades? - lamentei não entender. - Que dificuldades?Leonardo levantou as sobrancelhas ao perceber meu gesto de assombro. Suponho que não concebia como me passava despercebido um detalhe de tanto alcance. E, com aquele tom sereno e magnífico, dignou-se a me ilustrar:- O trabalho de um pintor é mais duro do que as pessoas acreditam disse, muito sério. - Durante meses vagamos daqui para ali em busca  de um gesto, um perfil, um rosto adequado às nossas idéias e que nos sirva de modelo. Para mim faltava um Judas. Um homem que tivesse um mal gravado no rosto; mas não um mal qualquer: necessitava de fealdade inteligente e desperta, que refletisse a luta interna de Judas para cumprir a missão confiada a ele pelo próprio Deus. Concordará comigo que, sem a traição de Judas, Cristo nunca consumaria seu destino.- E o encontrou?- Como? - o gigante se sobressaltou. - Ainda não entendeu? Frei Alessandro foi meu modelo para Judas! Seu rosto tinha todas as características que eu buscava. Era um homem inteligente mas atormentado, de expressão dura, adelgaçada, que quase ofendia quando fitava alguém - E se deixou retratar como Judas? - perguntei espantado.- De bom grado, padre. E não foi o único. Outros padres da comunidade posaram para este mural. Só escolhi aqueles de expressão pura.- Mas Judas... - protestei.- Compreendo seu espanto, padre. Mas deve saber que frei Alessandro sempre soube ao que se expunha. Estava consciente de que ninguém em sua comunidade voltaria a olhá-lo da mesma maneira depois de se prestar a algo assim.- É compreensível, não acredita?

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Leonardo meditou um momento se devia continuar falando, e, enquanto segurava de novo a mão da criança, acrescentou algo que pareceu provir do mais profundo de seus pensamentos:- O que não se podia prever e muito menos desejar - sussurrou - que frei Alessandro fosse terminar seus dias como o próprio Iscariot enforcado e em solidão, longe de seus companheiros e quase repudiado por todos. Por acaso não reparou também nessa estranha coincidência padre?- Até agora, não.- Nesta cidade, padre Leyre, logo aprenderá que nada ocorre por acaso. Todas as aparências enganam. A verdade está onde menos se espera.E, dizendo aquilo, sem me atrever a perguntar-lhe o que falara de frei Alessandro na noite anterior à sua morte, nem perguntar se alguma vez ouvira falar de um feroz inimigo seu que alguns conhecíamos como Augure, o mestre esfumou-se ladeira acima. Luini desejou fugir dali com todas as forças, mas sua escassa vontade lhe falhou mais uma vez. Embora a consciência lhe pedisse a gritos que escapasse daquela jovem, seu corpo gozava já com os embates rítmicos de donna Elena. "E que mais ordenava a consciência?", pensou para se arrepender um instante depois.O mestre nunca se vira numa situação semelhante. Uma das mulheres mais desejáveis do ducado o levou pelos atalhos da paixão sem que ele sequer abrisse a boca. A filha dos Crivelli era bela; sem dúvida a Madalena de rosto mais angelical que jamais contemplara. E, no entanto, Luini não podia evitar se sentir como Adão arrastado à perdição pela mão de uma Eva luxuriosa. Ainda sentia como mordia sua maçã envenenada e seu domínio o fazia perder uma inocência guardada com tanto zelo até então. Por estranho que pareça, o mestre Bernardino se contava entre os poucos que ainda acreditavam que a verdadeira árvore da ciência do bem e do mal foi oculta por Deus entre as pernas de uma mulher e que comer dela, ainda que fosse uma única vez, equivalia à condenação eterna.- Miserere domine... - desesperou-se.Se donna Elena lhe desse então um segundo de descanso, o pintor cairia no choro. Mas não: vermelho como o chapéu de um cardeal, cedeu a cada um dos

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pedidos da condessinha, horrorizando-se quando brincando sobre sua virilidade, perguntava de vez em quando pelas virtudes de Maria Madalena.- Conte-me, conte-me tudo! - ofegava e ria com olhar de desejo. - Explique-me por que se interessa tanto por Madalena! Antecipe-me o fedo de Leonardo!Luini, sufocado, com as calças abaixo dos joelhos e sentado no mesmo divã que momentos antes era ocupado por donna Lucrezia Crivelli fazia verdadeiros esforços para não gaguejar.- Mas Elena - respondeu sem coragem -, assim não posso.- Prometa-me que me contará!Luini não respondeu.- Prometa-me!E aquele mestre pecador extenuado, terminou prometendo vezes por Cristo. Só Deus sabe por quê.Quando tudo terminou e pôde recuperar o fôlego, o pintor se sentou lentamente e se vestiu. Estava confuso. Perturbado. O titã Leonard já o advertira sobre o perigo das filhas da serpente e como se entregar a elas era faltar à suprema obrigação de todo pintor, violando o sagrado preceito da criação solitária. "Só se você se mantiver longe da mulher ou da amante poderá se dedicar de corpo e alma à suprema arte da criação” - escreveu. - "Se, pelo contrário, tem mulher, dividirá seus dons por dois. Por três se tem um filho, e o perderá se trouxer duas ou mais criaturas ao mundo”. Aquelas censuras começaram a emergir do interior de sua mente, fazendo-o sentir-se fraco e indigno. Pecara. Em apenas alguns minutos sua reputação de homem perfeito se arruinara, cedendo lugar a uma má paródia de si mesmo. E o mal era irreversível.Donna Elena, ainda sem abrigo, no divã, olhava o pintor sem compreender por que, de repente, ficara rígido.- Você está bem? - perguntou com doçura.O mestre continuou quieto.- Por acaso não o agradei?Luini, com os olhos úmidos e uma expressão contida, tentou focar o remorso que o angustiava. O que podia dizer àquela criatura? Acaso ela entenderia sua sensação de fracasso, de debilidade diante da tentação? E, o que era pior: não acabara de prometer-lhe, invocar Jesus por testemunha, que revelaria o

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segredo que tanto desejava conhecer? E como faria? Não tinha ele tanto desejo como a própria? Dando as costas à amante, amaldiçoou sua fraqueza. Que ia fazer? Cairia duas vezes, numa mesma tarde, faltando à castidade primeiro e às palavra depois?- Você está triste, meu amor - sussurrou, acariciando-lhe os ombros.   O pintor fechou os olhos, ainda incapaz de articular palavra.- Em compensação, você me encheu de felicidade. Sente-se culpado por me dar o que eu pedia aos gritos? Sente-se mal por agradar uma dama?A condessinha, lendo no silêncio as funestas idéias daquele varão desfeito, tentou aliviar-lhe a consciência:- Não deve me censurar nada, mestre Luini. Outros, como frei Filippo Lippi, aproveitaram seu trabalho em conventos para seduzir jovens noviças. E ele era um clérigo!- O que está dizendo?- Oh! - riu ao ver o amante sobressaltado. - Deveria conhecer a história, mestre. O padre Lippi morreu há menos de trinta anos e seguramente o seu Leonardo o conheceu em Florença. Era muito conhecido.- E você dizia que frei Filippo...- Sem dúvida - brincou. - No convento de Santa Margarita, enquanto terminava uns quadros, seduziu uma tal de Lucrezia Buti e até teve um filho com ela. Não sabia? Ora, vamos! Muitos acreditam que a desonrada família Buti foi a que o enviou ao outro mundo com uma boa dose de arsênico. Está vendo? Você não é culpado de nada. Não quebrou nenhum voto sagrado. Deu amor a quem pediu!O mestre duvidou. Ainda esfrangalhado, era capaz de sentir que a bela Elena tentava ajudá-lo. Comovido, seus lábios articularam por fim uma frase inteligível:- Elena... Se ainda deseja, se ainda quer descobrir esse mistério que tanto a intriga e inspira o retrato que estou pintando, contarei o que sei do segredo de Maria Madalena.A condessinha o observou com curiosidade. Luini parecia extrair da dor cada uma de suas palavras.- Você é um homem de honra. Cumprirá sua promessa. Eu sei.

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- Sim. Mas me prometa agora que nunca mais voltará a me tocar nem falará com ninguém sobre o que direi.- E esse segredo, mestre, me fará conhecer a razão de sua tristeza?O pintor procurou o olhar transparente da condessinha, que mal sustentava. Aquela insistente preocupação de Elena Crivelli por seu bem-estar o desarmou. Recordou então o que ouvira dizer da estirpe Madalenas: que seu olhar era capaz de amolecer o coração de qualquer homem graças ao seu poderoso feitiço de amor. Os trovadores diziam a verdade. Como não mereceria aquela criatura conhecer a verdade sobre sua origem? Seria tão desalmado para não lhe dizer onde estavas o caminho que devia percorrer para descobri-la? E assim Bernardino Luini, forçando seu melhor sorriso, assentiu por fim aos seus desejos.O segredo de Maria Madalena segundo o mestre Luini.   Espere, pois - disse. Eu acabara de fazer treze anos quando o mestre Leonardo me aceitou em sua bottega de Florença. Meu pai, um soldado da fortuna que reunira certa quantidade de dinheiro graças aos Visconti de Milão, achou conveniente me instruir na arte da pintura antes de me consagrar à vida monástica ou, pelo menos, a uma existência secular regida pelas leis de Deus. Ele, então, enxergava com mais clareza do que eu: desejava me afastar do fragor da guerra e me proteger sob o espesso manto da Igreja. E como em Milão não existia nenhuma boa oficina de belas-artes, fixou-me um dote anual e me enviou à suntuosa Florença, ainda governada por Lorenzo, o Magnífico. Ali começou tudo.Meser Leonardo da Vinci me instalou num casarão enorme e descuidado. Por fora era preto. Assustava. Por dentro, em compensação, era luminoso e quase desprovido de paredes. Seus quartos foram desfeitos para dar lugar a uma sucessão de grandes espaços invadidos pelos artefatos mais estranhos que alguém possa imaginar. No andar térreo, junto ao saguão, dava-se o encontro de coleções inteiras de viveiros de Plantas, vasos de barro e gaiolas com cotovias, faisões e até falcões. Ao lado, empilhavam-se moldes para fundir cabeças, patas de cavalo e corpos de tritão em bronze. Havia espelhos por toda parte. E velas também. Para chegar à cozinha se devia atravessar uma galeria de madeira e amedrontavam qualquer um; e só de pensar no que o mestre escondia no desvão me enchia de pavor.

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Na casa também viviam outros discípulos do mestre. Todos eram mais velhos do que eu e, assim, depois das brincadeiras dos primeiros conquistei uma posição mais ou menos confortável e pude começar a me aclimatar à nova vida. Creio que Leonardo simpatizou comigo. Ensinou-me a ler e a escrever latim e grego clássicos e me explicou sem essa preparação seria inútil me mostrar outra forma de escrita qual chamava de 'ciência das imagens'."Imagina, Elena? Meus conhecimentos se multiplicaram por três e incluem coisas tão peculiares como botânica ou astrologia. Naqueles anos a divisa do mestre era lege, lege, relege, ora, labora et invenies, e suas leituras favoritas (e, portanto, também as nossas) eram as vidas de santos de Jacopo da Varazze Tommaso, Andrea e os demais aprendizes odiavam aqueles escritos, mas para mim foram um achado. Aprendi coisas incríveis com ele. Suas páginas me fizeram desfrutar dezenas de notícias curiosas, milagres e aventuras de santos, discípulos e apóstolos que jamais teria imaginado que existissem. Por exemplo, li ali que Tiago Menor era chamado de 'irmão do Senhor' porque se parecia com Ele como um floco de neve com outro floco. Quando Judas acertou com o sinédrio a encontrar-se e de beijar Nosso Senhor no monte das Oliveiras temia que os sicários confundissem o verdadeiro Jesus com seu quase gêmeo Tiago.Disto, naturalmente, os evangelhos jamais disseram uma palavra. Também me deleitei com as aventuras do apóstolo Bartolomeu. Aquele discípulo com aspecto de gladiador manteve aterrorizados os Doze graças à sua incrível capacidade de se adiantar ao futuro. No entanto, tanta ciência lhe serviu de pouco: não soube prever que o estraçalhariam vivo na Índia."Aquelas revelações se sedimentaram dentro de mim, dotando-me de uma capacidade única de imaginar os rostos e o caráter de pessoas tão importantes para nossa fé. Era o que Leonardo queria: estimular-nos na visão das histórias sagradas e nos dotar desse dom especial para transferi-las às nossas telas. Entregou-me então uma lista de virtudes apostólicas extraída de Jacopo da Varazze que ainda conservo. Olhe: Bartolomeu de Mirabilis, o prodigioso, por sua capacidade de se antecipar ao futuro. O irmão gêmeo de Jesus, João, foi chamado de Venust o cheio de Graça...”"Leia, leia, releia, ore, trabalhe e encontrará.”

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Elena, divertida ao perceber a veneração com que Luini desdobrava aquele pedaço de papel guardado num bolsinho costurado em sua camisola, arrancou-o das mãos e o leu sem entendê-lo muito bem:

Bartolomeu Mirabilis - O prodigioso. Santiago Menor Venustus - O cheio de graça André Temperator - O que previne.Judas Iscariote Nefandus - O abominável. Pedro Exosus - O que odeia. João Mysticus - O que conhece o mistério.Tomé Litator - O que aplaca os deuses. Tiago Maior Oboediens - O que obedece. Filipe Sapiens - O amante das coisas elevadas. Mateus Navus - O diligente. Tadeu Occultator - O que oculta. Simão Confector - O que leva a termo. 

- E guardou isto por tantos anos? - disse enquanto brincava com aquele papel sujo.- Sim. Trata-se de uma das lições mais importantes do mestre Leonardo.- Pois já não o verá mais - riu.Luini não quis se dar por vencido. A provocadora Elena levantava a lista por cima da cabeça, esperando que o pintor se atirasse sobre ela. Não caiu na armadilha. Vira tantas vezes aquela lista, estudara-a com tão intensa devoção tentando extrair de suas qualidades os perfis dos Doze, que já não necessitava dela. Sabia-a de cor.- E a Madalena? - perguntou por fim a condessinha algo decepcionada. - Ela não está entre estes nomes. Quando me falará dela?Luini, com o olhar perdido no crepitar da lareira, prosseguiu seu relato:- Como disse, estudar o livro de frei Jacopo da Varazze me marcou. Com o tempo reconheci que de todos os seus relatos o que mais me chamou a atenção foi o de Maria Madalena. Por alguma razão, meser Leonardo quis que o estudasse com especial atenção. Foi o que fiz. Naquela época, as revelações com que o mestre completou a lição do bispo de Gênova não me chocaram em

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absoluto. Aos treze anos ainda não distinguia entre ortodoxia e heterodoxia, entre o aceito pela Igreja e o inaceitável. Talvez por isso a primeira coisa que me ficou gravada foi o significado de seu nome: Maria Madalena queria dizer 'mar’, ‘amargo’, 'iluminadora' e também 'iluminada'. Sobre a primeira expressão, o bispo escreveu que tinha a ver com a torrente de lágrimas que esta mulher derramou em vida. Amou com todo seu coração o Filho de Deus,! mas Ele viera ao mundo com uma missão mais importante do que formar família com ela, e assim Madalena teve de aprender a gostar dele de maneira diferente. Leonardo me mostrou que o melhor símbolo para lembrar as virtudes desta mulher era o nó. Já no tempo dos egípcios o nó se associou à magia da deusa Ísis. Explicou-me que em seus mitos Ísis ajudou a ressuscitar Osíris e se valeu de sua destreza em desfazer nós para conseguir seu objetivo. Madalena foi a única a ajudar Cristo quando voltou à vida, e é justo pensar que também ela devia ser hábil na ciência dos nós. Uma ciência, disse o mestre, não isenta de amargura,! Pois, quem não se angustia ao se deparar com um laço bem amarrado no momento de desfazê-lo?Quando se deparar com um nó pintado bem visível numa tela lembre-se de que essa obra foi dedicada a Madalena, ensinou-me.Quanto às outras duas acepções de seu nome, mais profundas misteriosas, tinham a ver com um conceito caro ao mestre Leonardo de que nos falava assiduamente: a luz. Segundo ele, a luz é o único lugar em que Deus descansa. O Pai é luz. O céu é luz. Tudo, no fundo, é luz. Por isso repetia tantas vezes que se os homens aprendessem a dominá-la seriam capazes de evocar o Pai e falar com ele sempre que necessitasse!O que então não sabia era que essa idéia da luz como transmissor de nossos diálogos com Deus chegara à Europa graças exatamente Madalena.Também vou explicar:"Depois da morte de Jesus no Gólgota, Maria Madalena, José Arimatéia, João o discípulo amado e um pequeno número de fiéis seguidores do Messias fugiram para Alexandria para se proteger da repressão que se abatera sobre eles. Alguns ficaram no Egito e fundaram as primeiras e mais sábias comunidades cristãs que se recordam, mas Madalena, depositária dos grandes segredos de seu amado, não se sentia bem assim   tão perto de Jerusalém. Por

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isso acabou se ocultando na França, em cuja costa penetrou buscando refúgio mais seguro.”- E que segredos eram esses?A pergunta da condessinha tirou o mestre da concentração.- Grandes segredos, Elena. Tão grandes que desde então só poucos e seletos mortais tiveram acesso a eles.A jovem abriu os olhos.- São os segredos que Jesus revelou a ela depois de ressuscitar?Luini assentiu.- São esses. Mas ainda não me foram revelados.Depois, o mestre retomou seu relato:- Maria Madalena, também chamada de Betânia, pisou na terra ao sul da França num povoado que depois se chamou Les Saintes-Maries de La Mer, porque foram várias as Marias que chegaram com ela. Ali pregou a boa nova de Jesus e instruiu as pessoas no "segredo da luz", aceito de imediato por hereges como os albigenses (ou cátaros), e que acabou por se converter na nova padroeira da França, Notre-Dame de La Lumière.Mas a época de revelações pacíficas logo acabou. A Igreja sentiu que essas idéias representavam um perigo para a hegemonia de Roma e quis pôr fim à sua expansão. De seu ponto de vista era lógico: como poderia algum papa aceitar a existência de comunidades cristãs que dispensam uma cúria regular para se dirigir a Deus? Poderia acaso o representante de Cristo na Terra ficar em inferioridade - ou sequer igualdade - de condições em relação a Madalena? E o que dizer de seus seguidores? Não era idolatria reverenciar algo como a luz? A Igreja, pois, execrou de imediato aquela mulher que amou Jesus e conheceu como nenhum outro mortal sua condição humana.Deixe-me, querida Elena, explicar mais uma coisa: Um dia do início de 1479, quando Florença ainda se recuperava do furioso ataque contra nosso amado Lorenzo de Médicis, o mestre Leo- Luini se refere à célebre "conjuração dos Pazzi" que tentou acabar com a vida de Lorenzo, o Magnífico, na catedral de Florença. Lorenzo conseguiu escapar, mas ao seu irmão Giuliano, a quem atacaram com vinte e sete punhaladas. A repressão posterior deste crime foi uma das mais profundas do século XV.

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Leonardo recebeu uma estranha visita em sua bottega. Um homem aí pelos cinqüenta anos chegou ao nosso ateliê quando o Sol da manhã estava alto. Envaidecia-se da cabeleira loura e encaracolada e se pavoneava com sua parecença com os querubins que então esboçávamos com lentic em nossas telas. Aquele estranho tinha um trato afável e estava impecavelmente vestido de preto. Chegou sem se anunciar e vagueou pelos domínios do mestre como se fossem seus. Tomou até a liberdade de olhar um por um os trabalhos que estávamos fazendo. O meu por casualidade era o retrato de uma Madalena que segurava com as mãos um recipiente de alabastro, que pareceu agradar sobremaneira o visitante:“Vejo que meser Leonardo sabe ensiná-los! Aplaudiu. Seu esboço tem grande possibilidade... Continue assim”. Senti-me lisonjeado.Certamente, disse depois, sabe qual é o significado do frasco que sua Madalena está segurando?Neguei com a cabeça.Está no capítulo catorze do Evangelho de São Marcos, rapaz, a mulher ungiu Jesus quebrando, sobre sua cabeleira, o frasco com ungüentos, como uma sacerdotisa faria com um verdadeiro rei... Um mortal, de carne e osso.O mestre chegou nesse momento. Para surpresa de todos, não se ofendeu ao ver um intruso em sua bottega, mas seu rosto se iluminou. Logo que se reconheceram se fundiram num abraço, beijaram-se nas faces e começaram a falar ali mesmo sobre o divino e o humano. Então escutei pela primeira vez algo que jamais imaginaria sobre a verdadeira Maria Madalena:Os trabalhos prosseguem em bom ritmo, querido Leonardo, disse, ufano, o querubim. Embora desde a morte de Cosme, o Velho, tenho a impressão de que nossos esforços podem cair num saco sem fundo a qualquer momento. A república de Florença, estou certo, pode por provações terríveis em breve. O mestre segurou as mãos do visitante e as apertou contra as suas grandes como as de um ferreiro.Num saco sem fundo, você diz? Seu vozeirão sacudiu tudo. A sua Academia é um templo do saber tão sólido como as pirâmide Egito! Ou não é certo que em poucos anos se converteu em lugar de peregrinação favorito de jovens que desejam saber mais coisas sobre nossos brilhantes antepassados? Você traduziu com êxito livros de Plotino, Dionísio, Proclo e até do próprio Hermes

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Trismegisto, e verteu para o latim os segredos dos antigos faraós. Como vai entrar água em toda essa bagagem? Você é o pensador mais notável de Florença, amigo velho! O homem de burel preto enrubesceu.Suas palavras são amáveis, amigo Leonardo. No entanto, nossa luta para recuperar o saber que a Humanidade perdeu nos míticos tempos da Idade de Ouro passa por seu momento mais fraco. Por isso vim ver você. Você fala de fracasso? Você? Você sabe qual é minha obsessão desde que traduzi os livros de Platão para o velho Cosme, não é verdade?Claro. A sua velha idéia da imortalidade da alma! Todo o mundo honrará seu nome por esse achado! Posso visualizá-lo esculpido em letras douradas sobre grandes arcos de triunfo: Marsilio Ficino, herói que nos devolveu a dignidade. Até o papa cumulará você de bênçãos!O querubim riu:Sempre tão exagerado, Leonardo. É o que você acredita? Na realidade o mérito é de Pitágoras, de Sócrates, de Platão e até de Aristóteles. Não meu. Eu só os verti ao latim para que todos pudessem ter acesso a esse saber. Então, Marsilio, o que o preocupa?Preocupa-me o papa, mestre. Há várias razões para acreditar que foi ele quem mandou assassinar Lorenzo de Médicis na catedral. E estou seguro de que não foram apenas ambições políticas que motivaram seu Plano insensato, e sim religiosas. Leonardo arqueou suas grossas sobrancelhas, sem se atrever a interrompê-lo.Duram já vários meses esse maldito interdito na cidade. Desde o tratado aos Médicis a situação ficou insustentável. As igrejas não podiam celebrar os sacramentos ou atos de culto, e o pior é que esta pressão continuará até que eu me renda... Você? O titã respirou. E o que você tem a ver com isto?   O papa quer que a Academia renuncie à posse de uma série de textos e documentos antigos em que se afirmam coisas contrárias à doutrina de Roma. A conjuração contra Lorenzo buscava, entre outras coisas, apoderar-se deles pela força. Em Roma estão especialmente interessados em nos arrebatar os escritos apócrifos do apóstolo João que, como você sabe, estão em nossas mãos há algum tempo.

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Entendo... Meu mestre cofiou a barba como fazia sempre que meditava alguma coisa.E que informações você teme perder, Marsilio? Perguntou.Esses escritos, cópias de cópias de linhas inéditas do apóstolo amado, falam-nos do que aconteceu com os Doze depois da morte de Jesus. Segundo ele, as rédeas da primeira Igreja, da original, nunca estiveram nas mãos de Pedro, e sim de Tiago. Você imagina? A legitimidade do papado saltaria pelos ares!E você acredita que em Roma sabem da existência desses papéis. Eles pretendem se apoderar deles a qualquer preço...O querubim assentiu com a cabeça, acrescentando algo mais:Os textos de João não param aí.Ah, não?Dizem que além da Igreja de Tiago, entre os discípulos nasceu outra dissidência liderada por Maria Madalena e seguida pelo próprio João.O mestre conteve a expressão, enquanto o homem do burel prosseguia:Segundo João, Madalena sempre esteve bem perto de Jesus. Acho que muitos acreditavam que ela seria a continuadora de seus ensinamentos, e não o bando de discípulos covardes que O renegaram nos momentos de perigo...E por que você me conta tudo isto agora?Porque você, Leonardo, foi escolhido como depositário desta informação. O querubim de olhar nobre respirou forte antes de prosseguir: Sei como é perigoso conservar estes textos. Poderiam levar qualquer um à fogueira. No entanto, antes de os destruir peço-lhe que estude, que aprenda o que possa sobre essa Igreja de Madalena e de tudo que estou falando, e à medida que tenha oportunidade vá deixando   essência destes novos Evangelhos em suas obras. Assim se cumprirá o velho mandato bíblico: quem tenha olhos para ver... ...que veja.Leonardo sorriu. Não pensou muito. Naquela mesma tarde prometeu ao querubim se encarregar do legado. Sei até que voltaram a se encontrar e que o homem do burel preto entregou ao mestre livros e papéis que depois estudou com atenção. Mais tarde, ante o rumo dos acontecimentos, a ascensão do frade Savonarola ao poder e a queda da casa Médicis, nós nos mudamos para Milão a serviço do duque e começamos a trabalhar nas mais diversas tarefas. Da pintura passamos ao desenho e à construção de máquinas de combate ou de

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engenhos para voar. Mas aquele segredo, aquela estranha revelação que testemunhei na bottega de Leonardo jamais me saiu da memória.Quer que a surpreenda com algo mais, Elena?O mestre não voltou a falar disso com nenhum de seus aprendizes e creio que agora ele está justamente cumprindo a promessa feita àquele Marsilio Ficino em Florença. Digo-lhe com o coração na mão: não há dia em que visite seu trabalho no refeitório dos dominicanos sem me lembrar das últimas palavras que ele disse ao querubim naquela longínqua tarde de inverno...Quando você vir numa mesma pintura o rosto de João e o seu próprio, amigo Marsilio, saberá que é aí, e não em outro lugar qualquer, onde decidi esconder o segredo que me confiou. E sabe? Já encontrei o rosto do querubim na Última Ceia. Enterramos o irmão bibliotecário no Claustro dos Mortos pouco antes das vésperas de terça-feira, 17 de janeiro. Não queriam que seu corpo começasse a se decompor na capela em que foi velado e se decidiu enterrá-lo rapidamente. Dois noviços o envolveram num lençol branco, que amarraram com correias, e o desceram ao fundo de uma cavidade que não tardou a se cobrir de terra e neve. Foi uma cerimônia rápida, sem protocolo, uma despedida apressada, apenas justificada pela nossa obrigação de cear antes que escurecesse. E enquanto os frades sussurravam sobre o arroz com legumes que os esperava ou os pasteizinhos de mel que ainda sobravam do Natal, um estranho desgosto se apoderava de mim. Por que motivo o prior e seu séquito - tesoureiro, cozinheiro, Benedetto o caolho e o responsável pelo scríptorium - presidiram o segundo enterro em Santa Maria em menos de uma semana como se fosse uma coisa corriqueira? Por que se importavam tão pouco com o irmão Alessandro? Ninguém ia derramar uma lágrima por ele? Só o padre Bandello teve, à sobremesa, um indício de humanidade; em relação ao infeliz que jazia sob nossos pés. Em seu breve sermão insinuou que tinha provas para demonstrar que ele fora vítima de um complô de algum demente que se instalara em Milão naqueles dias. Por isso, ninguém como ele merece sepultura cristã neste lugar. Bandello, no entanto nos instruiu seriamente: "Não acreditem nas mentiras que já circulam pela cidade", disse sem levantar a vista do caixão funerário, enquanto o via descer pouco a pouco. "O irmão Trivulzio que Deus o tenha em sua glória, morreu mártir nas mãos de um

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criminoso abominável que cedo ou tarde será castigado. Eu próprio farei com que assim seja.”Crime ou suicídio, por mais que tratasse de aplacar minhas suspeitas, não era fácil aceitar que dois enterros em tão pouco tempo fossem coisa normal em Santa Maria. As últimas palavras que o mestre Leonardo me dirigiu antes de se encaminhar para seu ateliê me bateram na mente como o trovão que pressagia a tempestade:- Nessa cidade - disse antes de se despedir no beco do Galo - nada acontece por acaso. Jamais esqueça.Naquele dia não ceei.Não pude.O restante dos frades, menos escrupulosos do que este pobre servo de Cristo, apressaram-se em encher o estômago num salão contíguo preparado como sala de jantar, dando conta das sobras do ágape oferecido pelo duque no dia do enterro de sua mulher. Com o refeitório fora de uso por causa dos andaimes e o cheiro do verniz, os costumes dos frades estavam transtornados há anos e já quase achavam normal subir ao primeiro andar para fazer as refeições.Entre tanta coisa provisória, não demorei a descobrir algo bom: enquanto durasse a pintura, sabia que a peça da Última ceia seria o esconderijo perfeito para me retirar e meditar, na hora da comida. Nenhum frade perturbaria ali meus pensamentos; e ninguém alheio ao convento bisbilhotaria num local em obras, frio e poeirento como aquele.E para ali, com a mente nos dias compartilhados com frei Alessandro e na adivinhação interrompida que nos ocupou, dirigi meus passos para rezar pelo descanso de sua alma.A sala estava vazia. As últimas luzes da tarde mal iluminavam a parte inferior do mural do toscano, destacando os pés de Nosso Senhor, que apareciam cruzados, um sobre o outro. Era aquilo uma antevisão do que Cristo estava a ponto de viver no Calvário? Ou o mestre dispusera assim os pés por alguma outra obscura razão? Benzi-me. A fina claridade filtrada pelas colunas irregulares do pátio vizinho conferia uma impressão fantasmal à cena.Só então, ao olhar para os comensais da Santa Ceia, dei-me conta.Era certo. Judas tinha a cara do irmão Alessandro.Como não percebi antes?

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O mau apóstolo estava ali sentado, à direita do galileu, admirando tudo com sua serena beleza. De fato, salvo a expressão de assombro de Tiago Maior e a animada discussão que pareciam manter Mateus, Tadeu e Simão no outro extremo da mesa, o restante dos apóstolos fechava os lábios em silêncio. Havia algo de irônico pensar que naquele preciso momento a alma de frei Alessandro poderia estar contemplando de verdade o rosto do Pai Eterno.Se, como Judas, o bibliotecário decidiu tirar a própria vida e Bandello se enganava presumindo sua inocência, seu destino a essa hora não seria a Glória e sim os tormentos perpétuos do inferno.Ao percorrer meu olhar pelo mural, um novo detalhe captou minha atenção. Judas e Nosso Senhor pareciam disputar um pedaço de pão, talvez uma fruta, que nenhum dos dois conseguia alcançar. O traidor, que segurava com a direita a bolsa de moedas da infâmia, estendia a mão esquerda até o exterior da mesa tentando colher algo. O Senhor, alheio àquele gesto, estendia sua direita na mesma direção. Que podia haver ali que interessasse a um e a outro? Que podia roubar Judas do Nazareno nesse instante, quando o Filho de Deus já sabia que o atraiçoara e que sua sorte estava lançada?Estava mergulhado nessas reflexões quando uma visita inesperada interrompeu meus pensamentos:- Aposto dez contra um que nada entendeu, não é verdade?Respirei fundo. Uma figura que não fui capaz de identificar atravessou a penumbra coberto com uma capa de seda granada e se deteve a poucos passos de mim.- O senhor é o padre Leyre, por acaso? - Perguntou.Minhas pupilas se dilataram ao distinguir o rosto de uma mulher, doce e arredondado, sob um barrete violeta emplumado. Aquela donzela estava disfarçada de varão, algo não apenas ilegal mas perigoso, e me olhava com uma curiosidade nada dissimulada. Teria mais ou menos minha altura, e suas formas de fêmea estavam bem dissimuladas sob sua ampla roupagem. Enquanto aguardava minha resposta, uma de suas luvas de pele acariciava a empunhadura brilhante de um florete.Creio que gaguejei ao lhe responder.

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- Não se preocupe, padre - sorriu. - A espada é para protegê-lo. Não lhe causará dano. Vim procurá-lo porque todas suas dúvidas merecem resposta. E para conhecê-la meu senhor acredita que deve permanecer vivo. Emudeci.- Preciso que me acompanhe a um lugar mais discreto - acrescentou. - Um assunto urgente reclama sua presença em outra parte da cidade.Seu convite não soou à ameaça, e sim a um pedido cortês. A mulher de maneiras finas resplandecia sob sua capa, filtrando uma força pouco habitual. Tinha um olhar desperto, felino, e uma atitude firme de quem não aceitaria um não como resposta. E embora as trevas já não se apossassem do local, a intrusa refez seu caminho, arrastando-me pelo corredor que unia o refeitório à igreja e por onde habitualmente só transitavam os frades. Como podia conhecer tão bem esses aposentos? Quando desembocamos na rua sem ter visto nem a sombra de um dominicano, a travestida me intimou a apressar o passo.Demoramos dez minutos para alcançar a igreja de Santo Estêvão, quatro ou cinco quadras mais abaixo; então já era quase noite. Rodeamos o templo pela direita e entramos numa ruazinha que seria difícil de reparar sem um bom guia. A fachada de azulejo de um importante palácio de dois andares, iluminada por duas tochas recém-acesas, palpitava ao fundo do estreito passadiço. Minha interlocutora, que não voltara a dizer palavra desde que saímos de Santa Maria, apontou o caminho.- Já chegamos? - perguntei.Um mordomo com gibão de lã apertado no corpo e coberto por um capuz veio ao nosso encontro.- Se vossa paternidade concorda - disse cerimonioso -, eu o levarei até meu senhor. Está impaciente por recebê-lo.- Seu senhor?- Assim é - desfez-se numa exagerada reverência.A espadachim sorriu.A mansão era decorada com peças de extraordinário valor. Velhas colunas romanas de mármore, estátuas extraídas da terra há não muito tempo, telas e tapetes se amontoavam em patamares de escada e muros por toda a casa. Aquele imóvel soberbo se organizava ao redor de um pátio central, amplo,

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com um labirinto de sebes ao centro, para onde nos dirigimos. Estranhei aquele silêncio. E muito mais quando saímos a céu aberto e as ruas do labirinto estavam cheias de rostos graves que pareciam aguardar alguma fatalidade.De fato: ao atravessar o pátio distingui um grupo de serventes que não tiravam os olhos de dois indivíduos que se olhavam com ferocidade. Estavam em mangas de camisa, seguravam dois ferros desembainhados de lâmina estreita e, apesar do frio, suavam copiosamente. Minha anfitriã se descobriu e contemplou, extasiada, a cena.- Já começou - disse decepcionada. - Meu senhor queria que visse isto.- Isto? - me alarmei. - Um duelo?Antes que pudesse replicar, o mais alto daqueles homens, um varão corpulento, alto, de pouco cabelo e costas largas, lançou-se sobre o mais jovem, descarregando nele toda a força de sua arma.- Domine Jesus Christe - gritou o agredido enquanto detinha a investida cruzando sua arma sobre o peito e abrindo os olhos de puro terror.- Rex Gloríael - respondeu o agressor.Aquilo não era treinamento. A fúria do calvo crescia por instantes, enquanto os metais se chocavam com dureza. Os golpes eram rápidos e duros. Clan, clan, clan. Cada impacto soava como nota de uma melodia frenética e mortal.- Mário Forzetta - voltou a me sussurrar a espadachim, apontando para o jovem, que recuava agora para tomar ar - é um aprendiz de pintor, de Ferrara. Quis enganar meu senhor num negócio. O duelo é ao primeiro sangue, como na Espanha.- Como na Espanha?- Ganha o que ferir primeiro o adversário.A luta recrudesceu. Um, dois, três, quatro novos golpes ecoaram no pátio como canhonaços. O brilho metálico dos gumes se projetava nas sacadas.- Não é sua juventude que salvará sua vida - gritou o calvo -, e sim minha clemência!- Ponha-a onde melhor caiba, Jacarandá!O orgulho daquele Forzetta durou pouco. Três violentas cutilac minaram sua resistência, deixando-o de joelhos e obrigando-o a apoiar as mãos contra o solo. Seu adversário sorriu triunfalmente, enquanto aplausos percorriam o

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pátio. O inimigo do senhor da casa perdera a partida. Restava apenas cumprir o ritual: e assim, com precisão de cirurgião, a espada do vencedor fendeu o ar até roçar com sua ponta a face do jovem, que logo soltou um líquido vermelho intenso. Primeiro sangue.- Viu? - rugiu satisfeito. - Deus fez justiça às suas mentiras. Nunca mais ouse me enganar com falsas Antiguidades. Nunca.Então, dirigindo-se até onde eu me encontrava, satisfeito por ver meu hábito branco e meu capuz preto entre os seus, fez uma reverência e acrescentou algo mais para que todos ouvissem:- Este rufião já tem sua justiça... - sentenciou. - Embora acredito que ainda não se fez justiça a alguém tão extraordinário como o senhor, não é verdade, padre Leyre?Fiquei mudo. O diabólico brilho de seus olhos me fez recear. Quem era aquele indivíduo que sabia meu nome? A que injustiça se referia?- Os pregadores são sempre bem-vindos a esta casa - disse. - Embora eu o tenha mandado chamar porque desejo que juntos reabilitemos o nome de um amigo comum.- Temos um amigo comum? - balbuciei.- Tivemos - precisou. - Ou acaso não se encontra entre aqueles que acreditam que algo extraordinário se esconde por trás da morte de nosso frei Alessandro Trivulzio?O vencedor, que logo soube que se chamava Olivério Jacarandá, deixou a cena do duelo e se aproximou de mim, tocando suavemente meu ombro em sinal de amizade. Depois se perdeu dentro do palácio. Minha acompanhante me pediu que o esperássemos. Pude ver assim o pequeno exército de servidores de Jacarandá entrar em ação: em pouco mais de dez minutos desmancharam o pódio sobre o qual se realizou o duelo, e carregaram aquele Forzetta, ferido e manietado, até algum lugar dos fundos do palácio. Quando passou por mim, pude ver que o desgraçado era quase uma criança. Um jovem de rosto redondo e olhos de esmeralda que, durante um instante fugaz, cravaram-se nos meus implorando socorro.- Os espanhóis são homens de honra - a mulher, que soltara a cabeleira loura e pendurara o cinturão com seu florete, falou-me com amabilidade. - Olivério é de Valença, como o papa. Além disso, é seu provedor favorito.

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- Seu provedor? - Disse, na verdade. Embora - mudei a expressão do rosto - duvide que me chamasse para me pôr ao corrente de seus negócios. Ou me engano?O dono do palácio deixou escapar um risinho cínico.- Sei quem é, padre Leyre. Há alguns dias se apresentou como inquisidor perante os funcionários do duque e apresentou seus respeitos no funeral de donna Beatrice. Vem de Roma. Alojou-se no convento de Santa Maria e passa a maior parte do tempo resolvendo adivinhações em latim. Como vê, mal tem segredos para mim, padre.O antiquário bebeu daquele líquido vermelho antes de estabelecer uma nuance:- Apenas...- Não entendo.- Permita-me que vá diretamente ao ponto. O senhor parece ser um homem inteligente e talvez possa me ajudar a resolver um problema que temos em comum. Trata-se de frei Alessandro Trivulzio, padre.Por fim entrou no assunto da morte do bibliotecário.- Muito antes de que o senhor chegasse a Milão, ele e eu éramos bons amigos. Até podíamos dizer que éramos sócios. Trivulzio atuava como intermediário entre algumas famílias importantes de Milão e meu negócio. Por intermédio dele, fazia chegar minhas ofertas de antiquário sem levantar suspeitas na cúria, e frei Alessandro recebia certas compensações por isso.Dei um passo atrás.- Estranha, padre Leyre? Outros frades em Bolonha, Ferrara ou Siena me ajudam nesta espécie de tarefas. Não matamos ninguém. Só passamos por cima de proibições e escrúpulos absurdos que, estou seguro, um dia recordaremos como algo risível, próprio de mentes antiquadas.Que há de errado em recuperar fragmentos de nosso passado e entregá-los aos ricos para seu deleite? Por acaso não brilha um obelisco egípcio na praça de São Pedro, em Roma?- Está se metendo na boca do lobo, senhor - respondi muito sério.- Lembro que faço parte dessa cúria que o senhor passa ao largo.- Sim, sim, mas me deixe continuar. Por desgraça, não é só sua severa cúria que põe obstáculos ao nosso trabalho. Como pode supor, vendo obras de arte e

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peças antigas a ricas senhoras da corte, às escondidas de seus maridos, que tampouco aprovam esta classe de negócios. Frei Alessandro foi peça-chave em algumas de minhas operações mais importantes. Tinha a excelente habilidade de se convidar a qualquer mansão de Milão com o pretexto de uma confissão, e depois era capaz de fechar um negócio nas próprias barbas dos nobres lombardos.- E o que obtinha em troca? Dinheiro?... Permita-me duvidar.- Livros, padre Leyre. Recebia livros escritos a mão, ou impressos, proporcionalmente ao valor da venda. Obras copiadas com delicadeza ou fabricadas com pranchas modernas na França ou no Império Germânico. Cobrava em espécie, se prefere chamar assim. Sua obsessão era reunir volumes e mais volumes para a biblioteca de Santa Maria. Mas suponho que o senhor já sabia.- O que não consigo entender é por que me conta isso. Se o irmão Alessandro era seu amigo, por que mancha sua memória com suas confidências?- Nada mais longe de minha intenção - riu, nervoso. - Permita-me explicar algo mais, padre: pouco antes de morrer, seu bibliotecário participou de uma tarefa muito especial. Relacionava-se com uma de minhas melhores clientes e portanto pus o assunto em suas mãos sem hesitar um minuto. Na verdade, era a primeira vez que alguém de alta linhagem não me pedia a estátua de algum fauno para decorar uma casa de campo. Seu pedido, embora pareça estranho, entusiasmou a nós dois.Olhei para Jacarandá intrigado.- Minha cliente só queria que solucionássemos um pequeno enigma, quase doméstico. Como especialista em antiguidades, pensou que eu poderia identificar certo objeto precioso de que possuía uma descrição exterior bem precisa.- Uma jóia, talvez?- Não. Nada disso. Era um livro.- Um livro? Como os que o senhor utilizava para pagar a...?- Esse nunca foi impresso - me interrompeu. - Ao que parece, tratava-se de um antigo manuscrito de raridade e valor excepcionais. Um exemplar único que chegou aos seus ouvidos por fontes diversas, e que minha cliente ansiava possuir mais do que qualquer outro tesouro no mundo.

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- E que livro era esse? - Eu nunca soube. Só me deu alguns detalhes de seu aspecto: um livro de capa azul, de poucas páginas, com a cobertura rebitada por quatro cravos de ouro e as folhas iluminadas com o mesmo metal precioso.Uma pequena jóia com aspecto de breviário, sem dúvida importada do Oriente.- E pôs mãos à obra com a ajuda de frei Alessandro - intervim.- Tínhamos duas valiosas pistas a seguir. A primeira era a pessoa de quem minha cliente ouviu falar pela primeira vez daquele livro: o mestre Leonardo da Vinci. Por sorte, o seu bibliotecário o conhecia bem, e não lhe seria difícil chegar a ele e averiguar se o pintor o tinha ou não em seu poder.- E a segunda?- Entregou-me um desenho exato do livro que devia descobrir.- Sua cliente tinha um desenho do livro?- Exatamente. Aparecia num jogo de naipes muito caro a ela. Numa das cartas, a que mostrava o retrato de uma grande mulher, aparecia representado esse livro. Não era grande coisa, certamente, mas muitas vezes iniciei negócios com menos informação. Na carta se identificava uma religiosa que segurava esse livro nas mãos. Um livro fechado, sem título na capa nem qualquer outro sinal identificativo."Um livro num jogo de cartas?", alarmei-me. "Não fora frei Bandello quem me falou antes de algo parecido?”- Posso perguntar quem é a sua cliente? - perguntei-lhe.- Claro. Por isso exatamente convoquei-o para esta reunião: a princesa Beatrice d'Este.Meus olhos se escancararam.- Beatrice d'Este? A mulher do Mouro? Está dizendo que frei Alessandro e donna Beatrice se conheciam?- E muito. Agora, como se vê, ambos estão mortos.- O que insinua?Jacarandá procurou assento por trás da escrivaninha, satisfeito por ter captado toda minha atenção.- Vejo que começa a entender minha preocupação, padre Leyre.Diga-me: até que ponto conheceu meser Leonardo?

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- Só falei com ele uma vez. Esta manhã.- Deve saber que se trata de uma pessoa estranha, a mais extravagante e obscura que jamais veio a estas terras. Emprega cada minuto do dia para trabalhar, ler, desenhar e pensar sobre os assuntos mais absurdos que se possa imaginar. Ele inventa receitas culinárias com que diverte o duque, modela em marzipã máquinas de guerra de aspecto extravagante para seus banquetes. Também é um homem desconfiado. Tem um grande zelo por suas coisas, suas propriedades. Jamais deixa alguém bisbilhotar suas anotações e muito menos farejar sua biblioteca, que como não é difícil de imaginar, é grande e valiosa. Escreve até da direita para a esquerda, como os judeus!- Deveras?- Não mentiria sobre algo assim. Se quiser ler algum de seus cadernos deverá recorrer a um espelho. Só refletindo nele as páginas conseguirá compreender o que escreveu nelas. Não é um ardil demoníaco. Conhece alguém capaz de escrever invertido, desta maneira? Esse homem, creia-me, esconde segredos terríveis.- Continuo sem compreender por que está me contando isto - insisti.- Porque... - fez uma pausa teatral - estou seguro de que acabaram com nosso amigo comum, padre Alessandro, por ordem de Leonardo da Vinci. E creio que a culpa por tudo isso se deve à posse desse maldito livro, o mesmo que foi ambicionado pela princesa e que também lhe custou a vida.Devo ter empalidecido.- É uma acusação muito grave!- Comprove-a - desafiou-me. - O senhor é o único que pode. Vive em Santa Maria delle Grazie, mas não está vendido ao duque como os outros. O prior deseja que o mosteiro seja concluído com o dinheiro do Mouro, e duvido que se atreva a arremeter contra seu artista favorito, ameaçando as subvenções. Convido-o a resolver este enigma comigo: consiga o livro e não apenas lançará luz sobre as mortes da princesa e de frei Alessandro mas terá também provas para acusar Leonardo de assassínio.- Não me agradam seus métodos, senhor Jacarandá.- Meus métodos? - riu. - Observou bem o homem que derrotei em duelo?- Forzetta?

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 - Ele mesmo. Pois direi algo mais de meus métodos: trabalhava para mim. Ordenei-lhe que apanhasse o "livro azul" da bottega de Leonardo.Forzetta foi um antigo discípulo do toscano e conhecia bem os lugares em que poderia estar escondido.- Mandou roubar algo de Leonardo da Vinci?- Queria resolver este assunto, padre. Mas reconheço meu fracasso.Esse inútil pegou de seu ateliê um livro diferente: a Divini Platonis Opera Omnia. Um livro impresso há alguns anos em Veneza, de pouquíssimo valor. E pretendia me enganar com ele, vendendo como se fosse o incunábulo que eu procurava.- Divini Platonis... - murmurei. - Conheço esse livro.- Deveras?Concordei:- É a famosa tradução das obras completas de Platão feita por Marsilio Ficino para Cosme, o Velho, de Florença.- Pois o velhaco assegura que Leonardo o tinha em grande apreço. Que ficou dias usando-o para dar forma a um dos apóstolos do Cenacolo.O que me importa isso, com os diabos? Perdi um amigo por culpa dele e quero saber por quê. Vai ajudar-me? Porta Romana era o bairro elegante da cidade. Percorrido dia e noite pelas carruagens mais esplêndidas da Lombardia, tinha a vaidade de ser o único acesso monumental a Milão. Suas galerias estavam sempre cheias de gente de boa presença e as damas gostavam de passar por elas para tomar o pulso diário da cidade. Núncios papais, embaixadores estrangeiros ou fidalgos, todos procuravam se deixar ver ali, aspirando se sentir admirados. Sua situação junto ao principal canal da cidade até a Porta Romana era uma exposição de vaidades sem igual.Bem na metade da rua se erguia o Palazzo Vecchio. Era um prédio público querido pelos milaneses, foro habitual de confrarias, grêmios e até de juízes. Tinha três pisos, seis amplos salões e um labirinto de escritórios que mudavam de dono com facilidade.Pois bem, na noite que passei na casa de Olivério Jacarandá todas as suas peças ferviam de expectativa. Mais de trezentas pessoas faziam fila na rua

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para admirar a última obra do mestre Leonardo; muitos dos homens probos da cidade aproveitaram o pretexto e marcaram encontro para comentar os últimos acontecimentos da corte. Não havia cidadão ou cidadã que não reivindicasse convite para aquele ato.O toscano organizou sua exposição às pressas, talvez a pedido do próprio duque que, a apenas quarenta e oito horas do enterro de sua mulher, já pensava em reativar a vida pública milanesa.O mestre Luini chegou em companhia de uma radiante Elena Crivelli. Insistiu tanto que o jovem mestre concordou em levá-la consigo. Ainda se envergonhava só de pensar no que ocorrera entre eles há apenas um par de dias, e seu íntimo continuava agitado como uma tormenta marítima. Para tornar a situação mais difícil, a filha de donna Lucrezia escolheu um impressionante aparato para a ocasião: um vestido azul provido de peles, corpete com decote quadrado, bordado com fios de ouro. O cabelo recolhido numa redezinha de pedraria e o tom carmim dos lábios a elevavam à categoria de deusa. Luini se esforçava para manter distância, para sequer roçá-la.- Mestre Bernardino! - O vozerio de Leonardo os deteve quando iam subir para o segundo andar do Palazzo Vecchio. - Que alegria vê-lo. E tão bem acompanhado! Diga-me, quem veio com você?Luini inclinou cerimonioso a cabeça, surpreendido pela descarada curiosidade do mestre:- É Elena Crivelli, meser - respondeu sem demora. - Uma jovem que admira o senhor e que insistiu em me acompanhar à sua exposição.- Crivelli? Grande surpresa! É por acaso da família do pintor Cario Crivelli?- Sou sua sobrinha, senhor.Os olhos claros de Elena despertaram certas recordações do toscano. Leonardo parecia embriagado.- É portanto filha de...- De Lucrezia Crivelli, que o senhor conhece bem.- Donna Lucrezia! Claro! - disse, olhando de novo para Luini. - E veio com mestre Bernardino, a quem sem dúvida conheceu durante suas sessões de pose. É sua nova Madalena!- É assim.

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- Magnífico! Chegou num momento mais do que oportuno. Leonardo examinou de novo a jovem, em busca dos traços que tanto o impressionaram em sua mãe. Um olhar rápido bastou para identificar uma mesma arquitetura frontal, nariz idêntico, incluindo as maçãs do rosto e queixo geminados. O prodígio geométrico do rosto de donna Lucrezia conseguiu uma nobre continuação no de sua filha.- Se dispuser de tempo, gostaria que me acompanhasse à sala que preparei para mostrar meu retrato. Logo estará cheia de convidados e já não teremos oportunidade de admirá-lo em particular.O mestre apontou para uma peça pequena, contígua ao gigantesco maquinário na escada. A peça fora preparada com carinho. Cada uma de suas paredes estava coberta com panos pretos que deixavam só visível um pequeno quadro de 63 x 45 centímetros, emoldurado por uma madeira clara de pinho lisa. - Sabe? - prosseguiu Leonardo. - Pensei que esta era a melhor ocasião de mostrá-lo. A morte de donna Beatrice nos entristeceu tanto que precisamos de toda a beleza possível para recuperar o ânimo. O mestre Luini talvez já tenha dito: necessito de alegria ao meu redor. Vida. E como sempre que tirei de meu ateliê algum quadro tive tanta aceitação...- Pensou que mostrar uma nova obra sua poderia devolver as pessoas às ruas - aplaudiu Bernardino.- Exato. E, apesar do frio, parece que conseguirei. E então? - O toscano mudou de parede, apontando agora para sua composição. - Que lhes parece?Os três fixaram o olhar na parede assinalada. O óleo era sensacional. Uma mulher jovem, com um vestido vermelho a que Leonardo exprimira não só os tons do veludo mas também os pontos do tecido da gola, olhava-os serena à mesma altura deles. Tinha o cabelo recolhido numa longa trança e um fino diadema cingia a testa com infinita ternura. Era um retrato incrível. Outra obra do apogeu do mestre. Se em vez de uma moldura estivesse rodeada por uma janela, ninguém poderia dizer que aquela senhora não estava realmente ali, observando-os (Trata-se do quadro conhecido pelos críticos como La belle Ferronière atual-mente no Louvre). Elena e Bernardino se olharam perplexos, sem saber o que dizer.- Acreditávamos... - balbuciou Luini. - Acreditávamos que ia mostrar um retrato de donna Beatrice, mestre.

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- E por que haveria de mostrar? - sorriu. - A princesa d'Este nunca teve tempo de posar para mim.Os olhos de Elena se umedeceram de emoção.- Mas é... é...- É sua mãe, donna Lucrezia. Sim - disse o toscano, enrugando seu enorme nariz. - Sem dúvida uma das mulheres mais belas que conheci.E beleza, harmonia, é justamente o que precisamos neste momento de luto, não lhe parece?A jovem Elena não podia afastar o olhar do retrato.- Jamais mostraria em público este trabalho se não fosse necessário. Deve acreditar em mim.- É?... - hesitou. - É acaso por sua teoria da luz? Bernardino me explicou como é importante para o senhor.- Deveras?Um brilho de malícia faiscou nos olhos do toscano.- Para o senhor, a luz é a essência do divino. Sua presença ou sua ausência num quadro revela tudo sobre o objetivo final do artista. Não é certo?- Pode ser... Surpreende-me, Elena. E me diga: que espécie de propósito oculto adivinha neste retrato?A condessinha examinou a tela mais uma vez. O rosto resplandecente de sua mãe só faltava falar.- É um sinal, mestre.- Um sinal?- Oh, sim. O senhor envia sinais em meio à obscuridade. Como faria um farol na noite. Envia sinais aos homens de fé. Aos que preferem a luz às sombras.O mestre se sentiu embaraçado.De repente sua surpresa se transformara em preocupação. E Elena notou. Viu o mestre se certificar de que ninguém mais escutava sua conversa e pediu à condessinha que lhes concedesse, a Bernardino e a ele, um minuto para conversarem a sós. A dama, solícita, afastou-se até uma das janelas grandes com vista para a Porta Romana.- Mas pode-se saber o que fez, mestre Luini?O sussurro de Leonardo se cravou como uma adaga nos ouvidos de seu discípulo.

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- Mestre, eu...- Falou-lhe da luz! A uma criança!- Mas...- Nada de mas. Sabe também que a luz é um dos atributos da Santa família? O que mais revelou a ela, insensato?Luini estava paralisado de terror. De repente compreendeu o terrível equívoco que pressupunha o fato de que Elena o acompanhou àquele ato. Sufocado, abaixou a cabeça sem saber o que dizer.- Já vi - prosseguiu Leonardo. - Agora compreendo tudo.- O que compreende, mestre?Um nó apertou-lhe a garganta, como se fosse estrangulá-lo. - Dormiu com ela. Não é certo?- Dormi?- Responda-me!- Eu... Sinto, mestre.- Sente? Não se dá conta do que fez?Leonardo tentou abafar suas palavras para não chamar a atenção da condessinha.- Deitou-se com uma Madalena! Você! Um fiel da causa de João!O mestre engoliu saliva. Necessitava de tempo para pensar. Sua mente tratava de absorver aquela situação da mesma maneira como buscava que as peças de suas máquinas se ajustassem umas às outras. Que outra coisa podia fazer? O gigante acabaria por absorvê-la como um sinal a mais da Providência. Outra indicação de que os tempos estavam mudando em grande velocidade, e de que logo seu segredo lhe escaparia das mãos.Como pudera ser tão ingênuo? Como não previra a eventualidade de que o jovem discípulo encarregado de vigiar de perto a filha de donna Lucrezia acabasse em seus braços? Leonardo, que repudiava o amor carnal, devia se apressar. Creio que foi nesse dia que o mestre decidiu a conveniência de iniciar Elena nos mistérios de seu apostolado, antes que outros amantes a desviassem de seu caminho.Sim. Foi então que exigiu a presença da condessinha a seu lado e fez algo que ninguém lhe vira fazer antes: falou-lhe de suas preocupações.

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- Desculpe-me esta interrupção - desculpou-se. - Quero dizer que sua visita não podia ser mais oportuna. Necessitava falar com alguém de confiança. Creio que me espionam. Que vigiam meus movimentos e os de meus ajudantes.- O senhor, mestre? - Luini estremeceu.- Você verá - prosseguiu. - Estou suspeitando há anos. Você sabe, Bernardino, que sempre suspeitei das pessoas. Há anos que escrevo em cifra toda minha correspondência, anoto minhas idéias de maneira que poucos possam lê-las e desconfio daqueles que se aproximam só para arejar minhas coisas. No entanto, domingo, dia em que enterramos a princesa, esses velhos temores se confirmaram de maneira dramática.Naquele dia, perto daqui, morreram dois homens de Deus em estranhas circunstâncias.Frei Bernardino e Elena abanaram a cabeça incrédulos. Não sabiam daquilo.- Um apareceu enforcado na praça do Comércio. Estava com uma carta que você, mestre Luini, conhece tão bem como eu. Pertence a um baralho desenhado para os Visconti em meado do século, e mostra uma irmã franciscana com a cruz do Batista numa mão e o Livro de João na outra.- A Madalena!...- É uma de suas muitas representações, de fato - prosseguiu. - Os nós na corda que circunda seu ventre inchado evidenciam isso. Mas são poucos, pouquíssimos, os que conhecem o código.- Continue, por favor - insistiu Bernardino.- Como você pode imaginar, meser Luini, interpretei o achado da carta como um sinal. Um aviso de que alguém tratava de me assediar.Tentei convencer os soldados do duque de que o frade se suicidara. Queria ganhar tempo para fazer minhas averiguações, mas a segunda morte confirmou meus temores.- Que temores? - Elena não pestanejou.- Você saberá, Elena. O outro também era um velho amigo meu.A condessinha estremeceu.- O senhor o conhecia?

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- Conhecia. Os dois. Giulio, a segunda vítima, morreu dessangrado diante da Maestà. Alguém atravessou seu coração com uma espada. Não roubou dinheiro, nem qualquer pertence, a não ser...- A não ser?- ...A não ser a carta da franciscana que depois foi encontrada junto ao frade. Tenho a desagradável sensação de que o assassino queria que eu estivesse a par de seus crimes. No fim das contas, a Maestà é uma obra minha e o frade enforcado pertencia ao convento de Santa Maria. Mesmo com receio de ser importuna, Elena falou de novo.- Mestre, e isso se relaciona com seu desejo de mostrar agora o trato de minha mãe? Tem algo a ver com estas horríveis notícias?- Já compreenderá, Elena - respondeu o mestre. - Sua mãe não pousou para mim apenas para este retrato. Quando era mais jovem, serviu de modelo para a Virgem da Maestà. Voltei a recorrer a ela quando pintei de novo há apenas alguns meses. Quando entreguei a encomenda, há dez dias, os franciscanos a substituíram pela velha versão. Tudo foi tão rápido que não tive tempo de avisar os Irmãos da substituição. "Os Irmãos?" Desta vez Elena não o interrompeu.- Vejo que o mestre Luini ainda não contou tudo - sussurrou Leonardo. - Este quadro é como um evangelho para eles. Era seu conforto espiritual, sobretudo depois que a Inquisição os despojou de seus livros sagrados. Vinham vê-lo às dezenas. No entanto, quando os franciscanos se deram conta e começaram a brigar comigo me vi forçado a apresentar-lhes uma nova versão, desprovida dos símbolos que a tornavam tão especial. Demorei dez anos para completar a encomenda, mas já não pude atrasá-la mais. Por desgraça não avisei os Irmãos para que deixassem de ir a San Francesco em busca de iluminação, e o último deles, meu querido Giulio, pagou o desacerto com a vida. Alguém o esperava.- Tem idéia de quem possa ser?- Não, Bernardino. Mas seu móbil foi o de sempre; o mesmo que levou São Domingos a criar a Inquisição: acabar com os últimos cristãos puros. Pretendem sufocar pela força o que não conseguiram sufocar em Montségur aniquilando os albigenses.- Então, meser, aonde irão agora os Irmãos para satisfazer sua fé?

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- Ao Cenacolo, naturalmente. Mas só acontecerá quando estiver pronto. Por que acham que pinto na parede e não na madeira? Pensam por acaso que é pelo tamanho? Nada disso - levantou o indicador em sinal de negação. - É para que ninguém possa arrancá-lo e me obrigar a refazê-lo. Só assim os Irmãos encontrarão um local para seu consolo definitivo. Não ocorrerá a ninguém procurar nas barbas dos inquisidores.- É engenhoso, mestre... mas arriscado.Leonardo sorriu de novo:- Entre os cristãos de Roma e nós há uma grande diferença, Bernardino. Eles necessitam de sacramentos palpáveis para se sentir abençoados por Deus. Ingerem pão, ungem-se com azeites ou submergem em águas bentas. Mas nossos sacramentos são invisíveis. Sua força reside na abstração. Quem os nota dentro de si percebe um golpe no peito e uma alegria que o inunda todo. Alguém sabe que está salvo quando sente este ato. Minha Última Ceia os dispensará de semelhante obrigação. Por que acreditam que Cristo não ostenta ali a hóstia dos romanos? Porque seu sacramento é outro...- Mestre - Luini o interrompeu. - O senhor fala diante de Elena como se ela já conhecesse sua fé. E o certo é que ainda não tem informação sobre o alcance do que o senhor está dizendo.- E então?- Espero que me faça uma concessão: que me permita levá-la ao Cenacolo e iniciá-la ali em seu idioma. Em seus símbolos. Talvez assim... - Bernardino duvidou, como se medisse as palavras - ambos possamos nos purificar e merecer um novo lugar junto ao senhor. Ela assim o deseja.O toscano não pareceu muito surpreso.- Isso está certo, Elena?A jovem assentiu.- Pois deve saber que a única maneira de conhecer minha obra é participar dela. Você sabe melhor do que ninguém, Bernardino - resmungou. - Eu sou o único Ômega a quem deverá doravante se dirigir.  - Se sua intenção é atraí-la, mestre, então por que não a toma como modelo? A mãe dela serviu para seu evangelho da Maestà. Por que não a filha serviria para o mural que está ultimando?Leonardo titubeou.

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- Para o Cenacolo? - E por que não? - respondeu Luini. - Por acaso não necessita de um modelo para o apóstolo amado? Acredita que encontrará um rosto mais angelical do que este para concluir o João?Elena baixou o olhar, deleitada. Aquele asceta de roupa branca acariciou pensativo as barbas espessas, enquanto examinava de novo a jovem Crivelli. Depois soltou uma gargalhada que ecoou por toda a parte. - Sim - trovejou. - E por que não? No fim das contas, não há ninguém melhor do que ela para esse destino. Oliverio Jacarandá? Uma expressão de desgosto se desenhou no rosto do prior logo que pronunciou aquele nome. Frei Vicenzo mandou me chamar quando soube que eu regressara ao convento. Ao que parecia, a comunidade ficara horas em alerta por causa de minha inesperada ausência. Alguns padres, armados com cajados e tochas, saíram à minha procura ao cair da noite. Por isso, quando Maria Jacarandá me devolveu à porta do convento, ileso embora com a mente algo perturbada, o prior se apressou a reclamar minha presença junto a ele.- E o senhor diz, irmão Leyre, que passou o serão em companhia de Oliverio Jacarandá, na casa dele?Seu tom era de franca preocupação.- Vejo que o conhece, prior.- Claro que sim - respondeu. - Toda Milão sabe quem é esse parasita. Comercializa objetos litúrgicos, compra e vende igualmente retratos de santos e Vênus nuas, e manipula mais dinheiro e recursos do que muitos nobres da casa do duque. O que não entendo - acrescentou entrecerrando os olhos com uma expressão astuta - é o que poderia querer do senhor.- Desejava me falar sobre frei Alessandro, prior.- Do padre Trivulzio?Concordei. Bandello parecia perturbado.- Ao que parece, ambos mantinham uma espécie de relação comercial. Estavam, digamos assim, associados.- Isso é uma estupidez! Que poderia interessar o padre Trivulzio, descanse em paz, num homem imoral e depravado como esse?

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- Se o que o senhor Jacarandá me disse é certo, frei Alessandro tinha a vida dupla. Diante do senhor era um homem temente a Deus, amante das letras e do estudo; mas longe de seu olhar protetor se convertia num traficante de antiguidades.A mente de Bandello fervia como uma panela de sopa.- Custa acreditar no senhor - resmungou. - Embora, olhando talvez isso explique certas coisas...- Certas coisas? A que se refere, prior?- Falei com a polícia do Mouro sobre as circunstâncias da morte de frei Alessandro. Há um ponto obscuro que não soubemos interpretar. Uma contradição suprema que nos mantém desconcertados.- Explique, peço-lhe.- Veja, a polícia não encontrou sinais de violência ou resistência no corpo do padre Trivulzio. No entanto, tudo indica que não se enforcou sozinho. Alguém mais esteve com ele naquele momento. Alguém deixou um estranho cartão de visita preso a um dos pés descalços do bibliotecário.O prior remexeu no bolso, estendendo-me um pedaço de pergaminho cheio de garatujas e linhas de aspecto incompreensível. Foram traçadas sobre uma espécie de cartão oblongo, de bordas finas, muito deteriorado pelo uso.- Olhe - disse, estendendo-me o cartão.Minha expressão devia ser de espanto, porque o prior me observou satisfeito por atrair toda minha atenção. Como não ia me espantar? Aqueles traços correspondia à adivinhação que me levara até ali. De fato: Óculos ejus dinumera, a estranha assinatura do Augure, ocupa o centro do cartão. Seus sete versos foram escritos com letra trêmula, davam a impressão de passar por uma intensa investigação, como as anotações que os rodeavam fizessem parte dos esforços para encontrar o sentido.- É a minha adivinhação! - admiti.- "Conte-lhe os olhos / mas não olhe para a cara. / A cifra de seu nome / achará em suas costas”... - Sim, eu sei. O senhor confiou-a a mim antes da morte de frei Alessandro. Recorda-se? Mas estas notas - descrevendo, com o dedo, um círculo ao redor do escrito - não são minhas, padre Leyre.A malícia brilhou em seus olhos.

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- E isso não é tudo. Olhe. O padre Bandello virou o cartão. A inconfundível estampa de uma franciscana segurando na mão direita uma cruz e na esquerda um livro me paralisou.- Santo Cristo! - exclamei. - A carta... Sua carta!- Não. A carta de Leonardo - corrigiu-me. - Ninguém sabe quem colocou esta carta no corpo de frei Alessandro depois de morto, mas é óbvio que significa algo. Lembro-lhe que o toscano nos desafiou com esse mesmo desenho. E agora este aparece junto à sua adivinhação, no pé do bibliotecário. Que pensa disto?- Respirei fundo.- Há algo que ainda não contei, prior.Bandello enrugou a testa.- Não sei como interpretar à luz de suas revelações, mas o senhor Jacarandá e eu estivemos falando precisamente dessa carta. Ou, para ser mais exato, do livro que essa mulher está segurando.- O livro?- Não é um livro qualquer, prior. Jacarandá quis encontrá-lo para satisfazer uma importante encomenda, e confiou o trabalho a frei Alessandro. Ao que consta, quem possui tão importante volume é o mestre Leonardo, portanto pensou que ao nosso bibliotecário seria mais fácil do que qualquer outro chegar até ele e fazer-lhe uma oferta. Uma simples operação comercial que já custou a vida de duas pessoas.- Duas pessoas está dizendo?- Ainda não disse, prior, mas a cliente que desejava comprar o livro era Beatrice d'Este, que descanse em paz.- Deus do céu.O prior me convidou a prosseguir:- Jacarandá não sabe por que motivo a condessa contratou seus serviços para localizar o livro e não o pediu diretamente ao mestre Leonardo. Mas está convencido de que, de uma maneira ou outra, Leonardo está implicado nestas mortes.- E o senhor, o que pensa, padre Leyre?- Resisto a acreditar. Leonardo é um artista, não um soldado.Frei Vicenzo baixou a vista, preocupado.

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- Concordo, por pensar igual, mas pelo que vejo as mortes se acumulam de maneira insólita ao redor do mestre.- O que deseja dizer?- Ontem mesmo ocorreu algo estranho não muito longe daqui, igreja de São Francisco foi profanada com o assassínio de um peregrino - Um crime? - A notícia me sobressaltou. - Em solo sagrado?- Isso mesmo. Atravessaram o coração do infeliz justamente diante do altar-mor, sob o novo retábulo de Leonardo, poucas horas antes da morte de frei Alessandro. E quer saber mais?O prior respirou fundo antes de prosseguir:- A polícia encontrou entre seus haveres o baralho a que esta pertencia. A pessoa que matou esse homem lhe roubou a carta, anotou sua adivinhação no reverso e depois a depositou junto ao corpo de nosso bibliotecário. O senhor deve me ajudar a encontrá-lo. Ou muito engano ou nosso assassino, seja quem for, também está à procura de maldito livro de Leonardo. Necessito que me entreguem seu prisioneiro. Maria Jacarandá me olhou estupefata. Já não vestia as roupas masculinas da noite anterior e sim um vestido pouco ajustado, de mangas branco-azuis e corpete listrado. A cabeleira loura estava recolhida numa simpática redezinha, e seu aspecto era radiante.Era evidente que a jovem Jacarandá não esperava voltar a me ver tão rapidamente, e muito menos que regressasse ao seu palácio por um motivo tão... peculiar. O que ignorava, no fundo, era que não restava a este inquisidor outra escolha. Mário Forzetta, o espadachim que seu pai derrotara em duelo era, ao que se soubesse, a última pessoa que lidara com o "livro azul" da carta de Leonardo. E a única que ainda continuava com vida. Como não ia querer falar com ele?- Não creio que esta idéia agrade meu pai - disse sem escutar minhas explicações desajeitadas.- Nisso se equivoca, Maria. Estava presente quando dom Olivério me pediu que o ajudasse a encontrar o livro de Leonardo. É exatamente por isso que estou aqui.- E o que pensa fazer com Mário?

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- Primeiro, colocá-lo sob minha custódia, que é a do Santo Ofício. E depois levá-lo para interrogatório.A menção da Santa Inquisição foi o que minou as escassas reticências da jovem. A bela Maria, impressionada pelo meu ar sério, reprimiu seus receios e concordou em me acompanhar até o sótão do palácio. Para evitar um conflito com os dominicanos na ausência de seu pai, explicou-me que ele partiu em viagem logo depois de nossa entrada e era previsível que não regressasse a Milão por uma semana.Enquanto estivesse fora, ela era responsável pelo bom funcionamento da casa e a custódia de todas suas posses, entre elas, naturalmente, o jovem Forzetta.- É violento? - perguntei.- Oh, não. Nada disso. Creio que seria incapaz de matar uma mosca. Mas é astuto. Tenha cuidado com ele.- Astuto?- É uma qualidade que adquiriu com Leonardo - acrescentou María. - Todos os discípulos dele são astutos.O rapaz fora recolhido a uma parte do palácio que antigamente servira de cárcere. Paredes grossas e escadas profundas davam acesso a um estranho mundo subterrâneo impossível de imaginar se só se conhecia o jardim da superfície. A indulgência de Jacarandá lançara o ousado servidor a uma das prisões murus strictus, isto é, a uma cela de dimensões justas para que pudesse se sentar, pôr-se de pé e dar um par de passos de uma parede a outra. Sem janela, sem outra visão que a mais impenetrável obscuridade, Mário Forzetta ainda assim podia se sentir afortunado A poucos metros dali Maria me mostrou as celas murus strictissimi onde não se podia nem levantar nem deitar ao comprido, e da qual todos saíam loucos ou mortos.Quando me deixou em frente à porta de sua cela, uma sensação de sufoco se apoderou de mim. Não queria que a filha de Jacarandá me visse vacilar. Detestava visitar prisões. Os lugares fechados me deixavam doente. De fato, o único trabalho de inquisidor que jamais recusara era o administrativo. Preferia a esmagadora carga dos dossiês àquele cheiro de umidade e o pingar das goteiras sobre a pedra. Esse ambiente corta minha respiração. Quando fiquei sozinho, segurando entre as mãos o candeeiro e um molho de pesadas chaves de ferro, ainda demorei algum tempo para articular palavra.

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- Mário Forzetta?Ninguém respondeu. Do outro lado da aldraba comida pela oxidação só se poderia esperar a morte. Introduzi uma das chaves na fechadura e abri caminho em direção ao interior. Forzetta, de fato, estava ali dentro de pé, apoiado numa das paredes, com o olhar perdido. O pobre cobriu os olhos quando percebeu a presença da lâmpada. Ainda vestia a casaca cheia de manchas de sangue. A ferida da face adquirira um tom preocupante. A cabeleira estava coberta de poeira e seu aspecto, apesar do pouco tempo de reclusão, era deplorável.- Então você é de Ferrara, como donna Beatrice... - eu disse enquanto me sentava em seu estrado e lhe dava tempo de se acostumar à luz. Ele concordou, confuso. Nunca ouvira minha voz, nem sabia exatamente quem eu era.- Que idade você tem, filho?- Dezessete anos."Dezessete anos!", pensei. "Nem sequer é um homem." Mário não deixava de olhar minhas vestes, e de se maravilhar por tão estranha visita. Devo dizer, para ser sincero, que uma corrente de simpatia se estabeleceu entre nós. Decidi tirar partido:- Está bem, Mário Forzetta. Direi a que vim. Tenho permissão para tirar você daqui e deixá-lo em liberdade, se chegarmos a um acordo - menti. - Só terá de me responder a algumas perguntas. Se responder com a verdade, poderá ir embora.- Sempre digo a verdade, padre.O jovem se afastou da parede e concordou em se sentar ao meu lado. Visto de perto não parecia, de fato, um rapaz perigoso. Algo doentio e de ombros largos, era evidente que era pouco dotado para os trabalhos físicos. Não estranhei que Jacarandá o abatesse com tanta facilidade.- Sei que foi discípulo do mestre Leonardo, verdade? - perguntei-lhe.- Sim. É verdade.- O que se passou? Por que deixou seu ateliê?- Não fui digno dele. O mestre é muito exigente com seus discípulos.- O que deseja dizer?- Que não superei as provas a que me submeteu. Só isso.

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- Provas? Que tipo de provas?Mário respirou fundo, enquanto contemplava as mãos presas por grilhetas. À luz de minha lâmpada descobriu que tinha os pulsos arroxeados.- Eram provas de inteligência. O mestre não se contenta com que seus discípulos saibam misturar tintas ou esboçar o perfil sobre um papelão. Exige mentes despertas...- E as provas? - insisti. - Um dia me levou para ver algumas de suas pinturas e que as interpretasse. Estivemos no Cenacolo, quando quase não começara a pintá-lo, mas também no castelo do duque, admirando alguns seus retratos. Suponho que interpretei mal, porque pouco depois pediu que abandonasse o ateliê.- Entendo. E por isso você decidiu se vingar e roubá-lo, não é assim?- Não! Nada disso - agitou-se. - Nunca roubaria o mestre. Ele é um pai para mim. Levava-nos a todas as partes para nos ensinar a pintar e até nos dava comida. Quando o dinheiro escasseava, lembro que nos reunia no refeitório dos dominicanos de Santa Maria; sentava-nos como os apóstolos, ao redor de uma grande mesa, e nos contemplava a certa distância enquanto comíamos...- Então você foi testemunha da evolução do Cenacolo.- Claro. É a grande obra do mestre. Levou anos estudando para poder completá-la.- Estudando em livros como aquele que você roubou, verdade? Mário voltou a protestar:- Não roubei nada, padre! Foi dom Olivério quem me pediu que fosse à bottega e conseguisse de sua biblioteca um livro antigo de cor azul.- Isso é roubar.- Não, não é. A última vez que estive no ateliê pedi-o ao meser. Quando lhe expliquei para que o queria, e lhe disse que era para agradar meu novo senhor, entregou-me o volume que mais tarde pus na mão de dom Olivério. Foi como um presente. Algo que me deu em consideração aos velhos tempos. Disse-me que já não precisava mais dele.- E você quis vendê-lo ao senhor Jacarandá.- Foi meser Leonardo quem me ensinou que aos que vivem do ouro se deve pedir-lhes. Por isso estabeleci um preço. Nada mais. Dom Olivério não

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escutou minhas súplicas. Fora de si, entregou-me a espada e me obrigou a defender a honra num duelo. Depois me trouxe aqui.Aquele rapaz me pareceu sincero. Sem dúvida muito mais Jacarandá, um ser mesquinho, capaz de traficar com frades e adolescentes para conseguir uma antiguidade com que extrair uma boa   quantidade de ducados. E se eu pusesse Marco a meu serviço? E se aproveitasse os conhecimentos daquele antigo aluno de Leonardo, mestre de adivinhações e o tentasse com meus problemas? Decidi experimentar a sorte:- O que sabe de um baralho em que aparece uma mulher vestida de franciscana, com um livro no colo?Mário me olhou surpreso.- Sabe do que estou falando? - insisti.- Dom Olivério me mostrou essa carta antes de me enviar para buscar o livro do mestre.- Continue.- Quando fui pedi-lo a meser Leonardo, mostrei a carta e ele riu.Disse que continha um grande enigma, e que a menos que eu fosse capaz de decifrá-lo por mim mesmo, jamais me falaria dele. Sempre age assim. Nunca revela nada, a menos que alguém investigue antes.- E disse a você como poderia investigar?- O mestre educa todos os discípulos na arte da leitura oculta das coisas. Foi ele quem nos doutrinou na Ars Memoriae dos gregos, os códigos numéricos dos judeus, as letras que formam figuras dos árabes, a matemática oculta de Pitágoras... Mas como lhe disse, fui um aluno vil que não absorveu muitos ensinamentos com perspicácia.- Você trabalharia numa adivinhação para mim, se eu pedisse?Mário titubeou um segundo, antes de assentir com a cabeça.- É uma adivinhação digna de seu antigo mestre - expliquei enquanto buscava um pedaço de papel com o que poderia me fazer entender. Contém o nome de uma pessoa a quem procuro. Olhe o texto com cuidado e o estude. - disse, estendendo-o. - Faça por mim. É um padecimento por um dom que hoje lhe concederei.O rapaz se aproximou da luz da lâmpada para vê-lo melhor.- Óculos ejus dínumera"... Está em latim.

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- Pois sim.- Então me libertará?- Depois de perguntar uma última coisa, Mário. Entendi que você disse a dom Oliverio que Leonardo utilizou o livro para dar forma a um dos discípulos do Cenacolo.- É certo.Matteo bateu os dentes de terror. O prior e seu secretário falavam do mesmo assunto que o trouxera até ali.- E então? - insistiu o tio, alheio ao seu espanto.- O padre Leyre passava aqui suas horas mortas, graças à chave que o senhor deu. O normal.- E frei Alessandro?- Isso é o estranho, prior Bandello. O sacristão o surpreendeu várias vezes falando com Marco d'Oggiono e Andrea Salaino, os discípulos prediletos de Leonardo. Reuniam-se no Claustro dos Mortos e conversavam durante muito tempo. Aqueles que cruzaram por eles coincidem em tê-los ouvido falar da enorme preocupação do toscano pelo retrato de São Simão.- E isso despertou-lhes a atenção? - Matteo viu seu tio grunhir, encolhendo o nariz e enrugando a testa, como fazia tantas vezes. - O mestre é um doente do detalhe, do pormenor, do minúsculo... O senhor deveria saber. Não conheço outro artista que reveja tantas vezes o que produz.- É como diz, prior. No entanto, naqueles dias frei Alessandro atendeu mais do que o costume os caprichos de Leonardo. Procurou livros e gravuras para ele. Trabalhou fora de seu expediente na biblioteca. Visitou até a fortaleza do duque para garantir o transporte de um pacote pesado que ainda não descobri o que era.O prior encolheu os ombros:- Talvez não seja tão extraordinário como parece, padre. Frei Alessandro não posou para ele? E ele não o escolheu entre muitos para dar o rosto a Judas? Está claro que puderam desenvolver uma amizade, e pode ter-lhe pedido que o ajudasse nos dias que precederam sua morte.- O senhor acredita era casualidade? Creio que o padre Leyre falou-lhe já de suas suspeitas, não é?

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- O padre Leyre, o padre Leyre - resmungou. - Esse homem me esconde algum segredo. Posso ver na cara dele sempre que falamos..Matteo hesitava em interrompê-los. Quanto mais os escutava divagar sobre o Cenacolo e seus segredos, mais se impacientava. Ele sabia algo importante daquele mural!- Mas ele acredita que Leonardo poderia ter participado do assassínio de frei Alessandro, não é verdade? - Engana-se. Isso foi o que disse Olivério Jacarandá, velho inimigo do mestre. O fato de Leonardo ser um homem extravagante, de gostos insólitos, não ser visto muito na missa e presumivelmente encerrou um mistério neste mural não o converte num assassino.- Humm... - o caolho vacilou. - Isso é verdade. Converte-o em herege. Quem senão um homem de sua vaidade se retrataria na Última Ceia?. E nada menos do que como Tadeu!- É uma ambigüidade interessante. Ele se pinta a si próprio como o Judas (Tadeu) "bom", e a frei Alessandro como o Judas "mau".- Com todo o respeito, prior: já percebeu como se colocou Leonardo na Última Ceia?.- Imediatamente - respondeu enquanto o localizava na parede. - Está de costas para Nosso Senhor.- Exato! Leonardo, ou o Tadeu, como desejar, conversa com São Simão em vez de prestar atenção ao anúncio da traição que Cristo acaba de fazer a eles. Por quê? Por que para Leonardo São Simão é mais importante do que Nosso Senhor? E levando a dúvida ainda mais longe: se sabemos que cada discípulo representa uma pessoa significativa para o mestre, quem é concretamente esse apóstolo?- Não vejo para onde deseja me levar.- É fácil - respondeu Benedetto. - Se os personagens de A última Ceia não são o que parecem, e o próprio meser Leonardo mostra mais sua predileção por São Simão do que pelo Messias, esse São Simão tem, forçosamente, de ser alguém fundamental para ele. E isso frei Alessandro sabia...- São Simão... São Simão, o Cananeu...

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O prior esfregou a testa como se tentasse encaixar no mural a peça que frei Benedetto acabara de lhe presentear. Matteo, em silêncio, impacientava-se. Sua mensagem era urgente!- Agora que insiste, irmão, lembro que algo estranho aconteceu quando Leonardo completou essa parte do Cenacolo - disse por fim o tio, que continuava ignorando sua presença no refeitório.- Deveras?O único olho de Benedetto se iluminou.- Foi bastante peculiar. Leonardo levou três anos entrevistando candidatos para encarnar os apóstolos. Fez-nos todos posar, lembra-se?Depois mandou vir a guarda do duque, os jardineiros, os ourives, pagens... De todos tirava algum proveito: um gesto, um perfil, um braço. Mas quando chegou a hora de pintar a ponta direita, Leonardo interrompeu suas entrevistas e deixou de guiar por modelos humanos... O caolho encolheu os ombros.- O que desejo explicar, padre Benedetto, é que para pintar São Simão meser Leonardo não usou nenhum daqueles indivíduos.- Inventou-o, então?- Não. Utilizou um busto. Uma escultura que mandou trazer do castelo do Mouro.- É mesmo! A caixa de frei Alessandro!- Lembro bem do dia em que trouxeram aquela peça de mármore ao convento - prosseguiu sem se mexer. - Fazia um Sol de rachar e a dupla de cavalos fez um esforço memorável para subir até aqui a caixa que protegia a peça. A verdade é que não sei por que se empenhou tanto naquela manobra, mas quando já a desciam chegou donna Beatrice.- Donna Beatrice?- Oh, sim! Estava radiante, com um daqueles trajes enfeitados com rendinhas que tanto lhe agradavam, e com as bochechas avermelhadas de calor. Chegou escoltada como sempre, mas rompeu o protocolo para se aproximar dos operários que manejavam o busto. E sabe de uma coisa? Gritou com eles.- Gritou? A princesa deu uma ordem direta a alguns carregadores - Mais do que isso, irmão. Perdeu sua compostura régia. Insultou-os, humilhou-os com palavras soezes e os ameaçou enforcá-los se fizessem algum dano ao seu filósofo.

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- Ao seu... filósofo. Mas não era um busto de São Simão?- Você me perguntou se eu me lembrava de algo extraordinário não? Pois isso é o mais extraordinário de que recordo.- Perdoe-me, prior. Prossiga, peço-lhe.- Leonardo instalou aquele busto perto da entrada do refeitório sobre uma pilha de sacos de areia. Era um busto velho, uma antiguidade. Movia-o de vez era quando para estudar como influíam nele as luzes do dia, e quando memorizou tudo, se apressou a desenhar sua expressão na parede. Sua técnica era prodigiosa... - E de onde surgiu esse busto?- Isso é o mais curioso: segundo soube depois, donna Beatrice o mandou trazer de Florença só para agradar o mestre.Matteo já não podia mais. Necessitava interrompê-los, mas continuava sem se atrever.- Donna Beatrice sempre foi tão complacente com o mestre? - perguntou o caolho.- Sempre. Leonardo era seu artista favorito.- E pode me esclarecer o porquê desse interesse de Leonardo por um São Simão de Florença?- Também estranhei. Que fossem a Florença trazer um Batista, que enfim é o padroeiro da cidade, teria certo sentido. Mas um Simão...- Esse não é Simão, tio! Não é!Matteo, vermelho de desespero, surpreendeu os frades. Sabia que não devia interromper as conversas dos mais velhos, mas não foi capaz de morder a língua por mais tempo.- Matteo! - O prior ficou atônito. Seu sobrinho de doze anos estava plantado ali, balançando-se de um lado para outro, o rosto manchado de lágrimas e o olhar descomposto. - O que aconteceu?- Sei quem é esse apóstolo, tio - murmurou, enquanto tentava dissimular seu tremor. Depois desmaiou.Frei Benedetto e o prior Bandello demoraram um bocado para reanimar Matteo. Ele despertou nervoso. Tinha dificuldade de articular as palavras e, quando falava, o corpo estremecia de frio e de medo. Toda sua obsessão era que saíssem do refeitório o quanto antes. "É uma obra de Satanás", balbuciou

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entre soluços para assombro de seu tio e do caolho. Como era impossível acalmá-lo, aceitaram suas súplicas se refugiando na biblioteca. Ali, ao calor da calefação, o menino foi voltando a si pouco a pouco.No início não quis falar. Agarrava-se ao braço do prior com toda a força, e negava com a cabeça cada vez que lhe dirigiam a palavra. O menino não apresentava feridas nem hematomas visíveis; embora sujo com a roupa manchada de barro, não parecia ter sido agredido. E então Benedetto desceu à cozinha para buscar um pouco de leite quente e alguma marzipã de Siena guardado para ocasiões especiais. Com o estômago reconfortado e o calor de volta ao corpo, Matteo foi soltando a língua. O que contou deixou-os mudos de espanto. Como era seu costume, o noviço fora naquele dia à praça do comércio comprar alguns mantimentos para a despensa do convento. Quinta-feira era o melhor dia para se abastecer de grãos e verduras; portanto, apanhou algumas moedas da bolsa de frei Guglielmo e se dispôs a realizar sua missão o mais rapidamente possível. Ao passar pela frente do palácio da Razão, o solene imóvel de pedra e azulejo de três andares que preside a praça do Comércio, esbarrou num ajuntamento enorme de pessoas. Pareciam extasiadas. Escutavam sem pestanejar a arenga de um orador que improvisara um palco sob o pórtico do palácio. No início, o palco não lhe chamou muito a atenção. No entanto, quando estava prestes a dar as costas à multidão, algo acabou por chamar a sua atenção. Matteo conhecia aquele pregador.- Aqui mesmo, neste passadio, deu a vida por Deus um verdadeiro crente! - ouviu-o vociferar. - Um bom homem que se sacrificou por sua fé e por vocês! Como Cristo! E para quê? Para nada! Vocês sequer se mexem quando o lembro! Não se dão conta que cada vez nos parecemos mais com os animais? Não vêem que com sua atitude passiva estão dando as costas a Deus?O prior e o caolho contiveram seu espanto. Sob aquele pórtico que Matteo descrevia encontraram enforcado frei Alessandro. Entre uma e outra golada de leite, o noviço continuou seu relato. Quando revelou a identidade daquele orador, ficaram ainda mais perplexos. Matteo titubeou. O homem que acusava os passantes de perder a alma por não reconhecer os enviados do Altíssimo era frei Giberto. O sacristão germano, o do cabelo cor de abóbora que guardava as portas de Santa Maria, largou naquela mesma manhã sua função para pregar bem onde o bibliotecário pôs fim a seus dias. Por quê?

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Porém o mais extraordinário de sua descrição ainda estava por aparecer:- Serão todos condenados se não renunciarem à Igreja de Satanás e regressarem à autêntica religião! - clamava o sacristão, fora de si. - Nada comam que proceda do coito! Repudiem a carne de animais! Abominem os ovos e o leite! Preservem-se dos falsos sacramentos. Não comunguem nem batizem em falso! Desobedeçam a Roma e revisem sua fé se ainda querem ser salvos!O caolho sacudiu a cabeça. "Frei Giberto disse isso?" O prior animou-o a continuar. Matteo, mais calmo, contou-lhes que quando o sacristão o descobriu entre a multidão baixou como um raio de seu improvisado altar e o agarrou pelo pescoço, mostrando-o a todo mundo.- Estão vendo bem? - disse, sacudindo-o como um saco. - É o sobrinho do prior de Santa Maria delle Grazie. O que será dele se agora que é uma criança ninguém o educa na verdadeira fé? Eu direi - bufou.- Vai se converter em servidor de Satanás como seu tio! Um verdadeiro renegado de Deus! E arrastará centenas de cordeiros como vocês à condenação eterna!O rosto do prior se enrugou, severo.- Disse isso? Está seguro, filho?O noviço assentiu.- E logo me desnudou.- Desnudou você?- E me levantou e me agitou para que todo mundo pudesse me ver - E por que, Matteo? Por quê?Os olhos do menino se umedeceram ao recordar aquela parte.- Não sei, tio. Eu... Só o ouvia gritar à multidão que não acreditava que uma criança é pura só porque não perdeu sua inocência. E que todos viemos a este mundo para purgar nossos pecados e se não os purgarmos nesta existência regressaremos de novo a este vale de lágrimas de matéria ruim para uma vida ainda pior do que a primeira.- A reencarnação não é uma doutrina cristã! - protestou o caolho. - E sim albigense - interrompeu-o o prior. - Deixe-o continuar irmão.Matteo enxugou os olhos e prosseguiu:

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- Logo... logo disse que embora os frades deste convento vivam na Igreja de Satã e obedeçam a um papa que adora os deuses antigos, prometeu que esta casa não tardará a se converter num farol que guiará o mundo até a salvação.- Disse isso? - O caolho franziu o rosto. - E explicou por quê?- Não o perturbe, irmão.O noviço se agarrou outra vez ao tio.- Não é certo, verdade? - choramingou. - Não é certo que somos a Igreja de Satã.- Claro que não, Matteo. - Bandello acariciou-lhe a cabeça. Por que você diz isso?- É que... é que frei Giberto se aborreceu muito quando eu disse que isso não era verdade. Esbofeteou-me e gritou que só quando os expulsarem do Cenacolo e permitirem que este seja contemplado por todo mundo, poderia voltar a brilhar a verdadeira Igreja.Uma sensação crescente de raiva invadiu o prior.- Colocou a mão em você! - concluiu indignado.Matteo não fez caso.- Frei Giberto dizia que quanto mais contemplarmos o Cenacolo mais nos aproximaremos de sua Igreja. E que o mural do mestre Leonardo escondia o segredo da salvação eterna. E por isso tanto ele como frei Alessandro aceitaram que os retratasse junto de Cristo.- Disse isso?- Sim... - conteve um soluço. - Pintados ali já haviam merecido a glória.O menino observou os sérios semblantes de seus dois superiores. O caolho o tirou da dúvida: não fora apenas o bibliotecário que posara para o Judas. Outros frades, como Giberto, deixaram-se retratar por ele fazendo as vezes de apóstolos. O alemão encarnou Filipe, mas também Bartolomeu, os dois Tiagos ou André tinham rostos cedidos pelos monges. O próprio Benedetto se prestou a se deixar retratar como Tomé.- Estou de perfil para que não vejam o olho perdido - explicou.O caolho afagou o impressionado Matteo.- Você é um rapaz valente - disse. - Fez bem em nos tirar dali de dentro. O mal pode nos fazer perder a razão, como a serpente de Eva.

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Algo devia desconfiar sobre a verdadeira identidade dos apóstolos, porque quase sem pensar na conseqüência, Benedetto interpelou Matteo com uma pergunta que surpreendeu até o próprio prior.- Há pouco você disse que sabia quem era de verdade o apóstolo Simão. Ouviu o sacristão dizer?O noviço desviou os olhos em direção às carteiras vazias do scríptoríum e assentiu.- Enquanto me detinha ali nu, pendurado para que todos me vissem, contou a história de um homem que viveu antes de Cristo e pregou sobre a imortalidade da alma.- Deveras?- Disse que esse homem aprendeu dos sábios mais antigos do mundo. Também pregou coisas sobre o jejum, a oração e o frio.- O que disse exatamente? - insistiu Benedetto.- Que essas três coisas nos ajudam a abandonar o corpo, onde vivem todos os pecados e ruindades, e a nos identificar só com a alma... E também disse que no Cenacolo esse varão continua ainda a distribuir seus ensinamentos vestido de branco imaculado.- Só um dos treze se veste assim no mural - observou Bandello. - E é Simão.- E deu o nome do sábio tão grande? - insistiu o caolho.- Sim. Chamou-o de Platão.- Platão! - Benedetto deu um salto. - Claro! O filósofo de donna Beatrice. O busto que mandou trazer de Florença era o seu!... O prior esfregou a testa, perplexo.- E por que haveria Leonardo de se retratar prestando atenção em Platão em vez de Cristo?- Como? Ainda não percebeu, padre? É claríssimo! Leonardo nos indica em seu mural de onde vêm seus conhecimentos. Leonardo, prior, como frei Giberto e frei Alessandro, é albigense. O senhor já disse antes.E tinha razão. Platão, como os albigenses depois, afirmou que o verdadeiro conhecimento humano é obtido diretamente do mundo espiritual, sem mediadores, sem igrejas, nem missas. Chamava isso de gnosis, prior, a pior das heresias possíveis.

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- Como pode estar tão seguro? Um testemunho assim não bastará para acusá-lo de heresia.- Ah, não? Não vê que Leonardo sempre se veste de branco, como Simão no Cenacolo. Não sabe que se recusa a comer carne e pratica o celibato? Por acaso conheceu alguma mulher dele?- Nós também vestimos roupas claras e jejuamos, padre Benedetto.Além disso, dizem que ele gosta de homens, que não é tão celibatário como você afirma - assinalou frei Vicenzo diante do desconcertado olhar do jovem Matteo.- Dizem! E quem diz, prior? Não passam de falatórios. Leonardo é uma pessoa solitária. Recusa a idéia de se unir como se fosse a peste.Aposto que é celibatário como os partidários da heresia albigense... Tudo se encaixa!O prior não ocultou seu desprazer.- Suponhamos que você esteja certo. Nesse caso, o que devemos fazer?

* Existe nos Uffizi de Florença um busto de Platão atribuído ao escultor grego Silanião, que foi, ao que se sabe, o único que retratou em vida o filósofo, por ordem do rei Mitrídates, em 325 a.C. É provável que o busto florentino a que se alude neste texto seja esse ou uma cópia, já que apresenta uma assombrosa semelhança com o apóstolo Simão da Última Ceia. - A primeira coisa - prosseguiu Benedetto - é convencer o padre Leyre da heresia dele. Ele é inquisidor, está aqui quase por milagre de Deus, e seguramente saberá mais sobre os albigenses do que nós.- E depois?- Deter frei Gilberto e interrogá-lo, certamente - respondeu.- Isso não é possível...Matteo sussurrou aquela frase temendo importunar. Embora já se sentisse mais reconfortado, ainda não terminara de contar o que vira na praça do Comércio.- Como diz?- Que já não poderão detê-lo.- E por que, Matteo?

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- Porque... - titubeou - depois de terminar o sermão, o irmão Giberto tocou fogo na roupa e se queimou à vista de todos.- Santo Deus! - o caolho tapou a boca horrorizado. - E então, prior? Já não há dúvida. O sacristão preferiu se submeter à endura do que ao nosso julgamento...- A endura?A dúvida do jovem Matteo ficou sem resposta, flutuando na atmosfera rarefeita da biblioteca. Benedetto pediu permissão para se retirar e meditar sobre aquilo e deixou o recinto às pressas. Naquela manhã, impressionado pelas informações de Matteo, não tardou a me contar que em Santa Maria delle Grazie viveram pelo menos dois bonhommes, que era como os antigos albigenses se chamavam a si mesmos. Um inquisidor devia saber. Mas o caolho pôs a ênfase numa segunda descoberta que acreditou mais de minha responsabilidade: enfim conseguiu identificar o interlocutor do mestre Leonardo na mesa pascal do Cenacolo. Já sabia quem era realmente o homem do manto branco e as mãos oferecidas com que distraía a atenção de pelo menos dois discípulos de Cristo: Platão. Esta oportuna confidência preencheu uma lacuna que eu não conseguia compreender desde que me reuni com Olivério Jacarandá. A presença do filósofo no refeitório esclarecia por que o mestre Da Vinci conservava em sua biblioteca as obras completas do ateniense. Livros que, por certo, a esta hora deviam estar em algum canto do palácio de Jacarandá sem que ninguém prestasse a atenção que mereciam.O círculo portanto ia se fechando.

Roma, três dias depois o  guarda pontifício apontou para a frente, tenso como uma balestra, mostrando ao mestre geral dos dominicanos o caminho que devia percorrer. As medidas de segurança pareceram exageradas até para o padre Torriani, a quem os homens do papa conheciam de sobra. Mas suas ordens eram estritas: acabara de morrer de indigestão o terceiro cardeal em apenas seis meses, e o pontífice, a quem muitos responsabilizavam por aquelas mortes repentinas, ordenara um simulacro de investigação que incluía o rigoroso controle dos acessos ao palácio pontifício.O ambiente não era bom. Roma tinha motivos suficientes para tremer quando Alexandre VI nomeava cardeal algum homem probo de sua comunidade.

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Todos sabiam que se o Santo Padre ambicionasse suas posses, tudo o que tinha a fazer era nomeá-lo cardeal primeiro e assassiná-lo discretamente depois. As leis garantiam-no: o papa era o único e legítimo herdeiro dos bens de sua cúria. E com Sua Eminência o cardeal Michieli, riquíssimo patriarca de Veneza cujo corpo já esfriava na antecâmara pontifícia, a lei voltou a ser executada com absoluta precisão.Torriani se submeteu às novas normas de acesso aos aposentos do Borgia sem reclamar. Ao cabo de uns minutos, logo ao deixar para trás a porta de ouro da capela do Santo Sacramento, divisou-os claramente: estavam na terceira sala, com os olhos cravados no teto e um estranho gesto de triunfo desenhado em seus rostos. Ali, junto às janelas da ala leste, protegidos dos rigores do inverno romano, o mestre Annio de Viterbo e Sua Santidade conversavam animadamente sob uns afrescos que pareciam recém-acabados. De fato, ainda cheiravam a verniz e resina.O pontífice, barbeado e com o cabelo metade castanho metade branco, dissimulava a barriga sob uma sotaina cor vinho que o cobria da cabeça aos pés. Annio, ao contrário, tinha o aspecto de uma doninha, cabelo pontiagudo de onde saía um montículo de pelinhos pretos eriçados e mãos grandes e ossudas, quase de espantalho, com que fazia pomposos movimentos em direção às pinturas.O verbo inflamado de Nanni, que era como todos chamavam aquele sábio, ecoava como os trovões de uma tormenta de verão:- A arte é mais necessária do que suas armas, Santo Padre! Mantenha-a sempre ao seu serviço e dominará a cristandade! Perca-a e fracassará em sua tarefa pastoral!Torriani viu Alexandre VI concordar sem articular palavra, enquanto notava como seu estômago se alterava pouco a pouco. Escutara aquele discurso muitas vezes. Essa idéia peregrina invadira Roma e, com ela, a flor e a nata das artes florentinas. O papa em pessoa atraíra um verdadeiro exército de artistas de Lorenzo de Médicis, o Magnífico, só para satisfazer os desejos ocultos de Annio. E isso para não falar dos sofrimentos de Torriani diante da irresistível promoção dos privilégios de pintores e escultores, sempre em detrimento dos frades e cardeais. Incomodado, ciumento da influência que aquele pernicioso monge De Viterbo exercia sobre o Santo Padre, o geral dos

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dominicanos se fez de desatento e se dirigiu ao chefe da guarda para que anunciasse sua chegada. O grande responsável pela Ordem de São Domingos estava ali tal e como Alexandre VI solicitara. O papa sorriu:- Alegro-me de vê-lo enfim, querido Gioacchino! - exclamou estendendo o anel ao visitante, que o beijou com respeito. - Chega no momento oportuno. Nanni e eu falávamos há pouco desse assunto que tanto o preocupa...O dominicano encarou o papa.- O que... sabe disso?- Oh, vamos mestre Torriani! Não é necessária tanta discrição comigo. Sei praticamente tudo: até que enviou um espião em meu nome a Milão para comprovar certos rumores que falam de uma heresia que toma conta da corte do Mouro.- Eu... - o velho pregador titubeou. - Exatamente vinha para colocá-lo em dia sobre o que nosso homem descobriu.- Alegro-me - riu. - Sou todo ouvidos.Annio de Viterbo e o Santo Padre abandonaram a contemplação dos afrescos para se sentarem em duas grandes cadeiras que os camareiros acabavam de dispor para eles. Torriani, nervoso, preferiu permanecer de pé. Levava uma pasta sob o braço em que guardava uma extensa carta que eu próprio escrevera ao descobrir uma ramificação albigense no coração de Milão.- Há alguns meses - começou a se explicar Torriani, ainda impressionado por minhas averiguações - recebíamos informes que insinuavam que o duque de Milão utiliza um célebre mestre florentino, Leonardo da Vinci, para difundir idéias heréticas numa obra majestosa que prepara sobre a Última Ceia de Cristo.- Leonardo, está dizendo?O papa olhou para Nanni, aguardando algum de seus sábios comentários.- Leonardo, Santidade - repetiu Nanni. - Não se lembra dele?- Vagamente.- É natural - a doninha o desculpou. - Seu nome não figurava na lista de artistas recomendados pela casa Medici para embelezar Roma quando o senhor era ainda cardeal. Pelo que sabemos dele, trata-se de um homem orgulhoso, irascível e, certamente, pouco amigo de nossa Santa Mãe Igreja. Os Médicis sabiam disso e, com bom critério, evitaram recomendá-lo.

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O papa suspirou:- Outro homem problemático, não?- Sem dúvida, Santidade. Leonardo se sentiu desmerecido por não ter sido recomendado para trabalhar em Roma, e em 1482 abandonou!Florença, deu as costas aos Médicis e se instalou em Milão para trabalhar como inventor, cozinheiro e, se fosse possível, não como pintor. - Em Milão? E como acolheram um homem assim? - o gesto de papa se tornou caricato, antes de prosseguir. - É isso. Já entendo... Por isso você dizia que o duque não me é fiel, não é, Nanni?- Isso deve perguntar ao mestre dominicano, Santidade! - respondeu secamente. - Ao que parece, traz as provas para demonstrá-lo.Torriani, ainda de pé, protestou:- Ainda não são provas; só indícios, Santidade. Leonardo, guiado e protegido pelo Mouro, partiu para a elaboração de uma obra de proporções colossais e tema cristão, mas cheia de irregularidades que preocupam o prior de nosso convento de Santa Maria delle Grazie.- Irregularidades?- Sim, Santidade. Trata-se de uma Última Ceia.- E o que há de extraordinário numa obra assim?- Verá, Santidade: sabemos que seus doze apóstolos não são apóstolos, e sim retratos de personagens pagãos ou de fé duvidosa, cuja secreta disposição parece querer transmitir uma informação que não é cristã.O papa e Nanni se olharam. Quando o sábio De Viterbo requereu mais detalhes, o dominicano abriu sua pasta:- Acabamos de receber o primeiro informe de nosso homem na cidade - disse, esgrimindo minha carta. - É um erudito de Betânia, um especialista em idiomas cifrados e códigos secretos, que neste momento estuda tanto a obra como meser Leonardo. Examinou retrato por retrato dessa Última Ceia e buscou uma relação entre eles. Nosso especialista comprovou quase tudo: desde a comparação de cada apóstolo com um signo do zodíaco até a busca de equivalências entre a posição de suas mãos e as notas musicais. As conclusões não tardarão a chegar e o que hoje são indícios amanhã talvez sejam provas.Nanni se exasperou.- Mas descobriu ou não algo concreto?

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- Sem dúvida, padre Annio. A verdadeira identidade de três dos apóstolos foi totalmente revelada. Sabemos que o rosto de Judas Iscariotes, por exemplo, corresponde ao de certo Alessandro Trivulzio, um dominicano que morreu pouco depois do Dia de Reis, enforcado no centro de Milão...- Que coisa! Como o autêntico Judas - sussurrou o pontífice.- Pois não, Santidade. Ainda não pudemos determinar se se suicidou ou foi assassinado, mas nosso informante acredita que pertencia a uma comunidade de albigenses infiltrada em nosso convento.- Albigenses?O Santo Padre dilatou as pupilas de espanto.- Albigenses, Santidade. Acreditam ser a verdadeira Igreja de Deus. E aceitam o Pai-Nosso como oração e repudiam o sacerdócio ou a figura do Vigário de Cristo como único representante de Deus na Terra.- Conheço os albigenses, mestre Torriani! - disse o papa, colérico. - Mas acreditávamos que os últimos arderam em Carcassonne e Toulouse em 1325. O bispo de Pamiers não acabou com eles?Torriani conhecia aquela história. Nem todos pereceram. Depois do triunfo da cruzada contra os albigenses do sul da França e da queda de Montségur em 1244, produziu-se uma debandada de famílias hereges para Aragão, Lombardia e Alemanha. Os que cruzaram os Alpes se estabeleceram nas imediações de Milão, onde forças mais frouxas, como as dos Visconti, deixaram-nos viver em paz. Suas idéias extremistas, no entanto, foram caindo em desuso e muitos acabaram por desaparecer, sem perpetuar seus ritos e idéias heterodoxas.- A situação pode ser grave, Santidade - prosseguiu Torriani, muito sério. - Frei Alessandro Trivulzio não era o único suspeito de professar a heresia albigense em nosso mosteiro milanês. Há três dias outro frade declarou abertamente sua heresia e depois se suicidou.- Endura? - os olhos da doninha faiscaram.- É assim.- Por todos os santos! - bramiu. - A endura foi uma das práticas mais extremas dos albigenses. Há duzentos anos ninguém recorria a ela.O assessor olhou para o pontífice, que parecia não ter entendido bem o que era essa coisa da endura. Annio lhe explicou.

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- Em sua versão passiva - disse -, consistia no voto solene de não ingerir alimentos nem nada que contaminasse o corpo do albigense que aspirava à perfeição. Se morria puro, aquele desgraçado acreditava que salvava sua alma e se integrava em Deus. Mas existiu também uma versão ativa, a do suicídio pelo fogo, que só se consumou durante o cerco de Montségur. Os habitantes daquele último bastião militar albigense preferiram se lançar numa grande pira de troncos a se entregar às tropas pontifícias.- Este frade de que falo se imolou pelo fogo, padre.Nanni não saía de seu espanto.- Custa-me acreditar que alguém ressuscitou essa velha fórmula, mestre Torriani. Suponho que tem outras notícias que fundamentam seu alarme.- Desgraçadamente tenho. De fato, temos razões para pensar que provas da existência de uma comunidade albigense ativa em Milão estão   no mural. A Última Ceia que Leonardo da Vinci está acabando neste momento. Ele mesmo se retratou em sua obra conversando com um apóstolo que na realidade mascara Platão. Já sabe que é a referência antiga desses malditos hereges.A doninha deu um pulo de sua cadeira dobrável.- Platão? Está seguro do que diz?- Completamente. O pior, padre Annio, é que esse vínculo não está isento de uma lógica perversa. Como sabe, Leonardo se formou em Florença sob as ordens de Andrea dei Verocchio, um artista poderoso, bem considerado entre os Médicis e muito próximo da Academia que Cosme, o Velho, instalou sob a direção de certo Marsilio Ficino. E, como também sabe, essa Academia foi criada para imitar a de Platão em Atenas.- E então? - o assessor de Alexandre VI repuxou o rosto, receando tanta erudição.- Nossa conclusão não pode ser mais óbvia, padre: se os albigenses têm em comum muitas de suas doutrinas mais duvidosas, sendo que a Academia de Ficino ainda pratica costumes albigenses como não ingerir carne de animal, o que nos impede de pensar que Leonardo esteja utilizando sua obra para transmitir doutrinas contrárias a Roma?- O que nos pede? Que o excomunguemos?

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- Ainda não. Necessitamos provar sem margem de dúvida que Leonardo introduziu suas idéias nesse mural. Nosso homem em Milão trabalha para reunir essas evidências. Depois agiremos.- Mas mestre Torriani - cortou-o De Viterbo antes que seu discurso se inflamasse -, muitos artistas como Botticelli ou Pinturicchio se formaram na Academia e no entanto são excelentes cristãos.- Só parecem, mestre Annio. Deve desconfiar.- Os dominicanos sempre são tão perspicazes! Olhe ao redor.Pinturicchio pintou estes afrescos maravilhosos para Sua Santidade -respondeu, apontando para o teto. - Acaso vê neles sombra de heresia? Vamos! Vê?O dominicano conhecia bem aquela decoração. Betânia abrira em segredo um expediente sobre ela que nunca chegou a prosperar.- Não convém se exaltar, mestre Annio. Sobretudo porque, sem querer, está dando-me a razão. Examine bem a obra desse Pinturicchio: deuses pagãos, ninfas, animais exóticos e cenas jamais encontradas na Bíblia. Só um seguidor de Platão, imbuído das doutrinas pagãs, pintaria algo assim.- É a história de Ísis e Osíris! - protestou a doninha, quase fora de si.- Osíris, se não sabe, ressuscitou de entre os mortos como Nosso Senhor. E sua lembrança, ainda que pagã na forma, renova nossa esperança na salvação da carne. Osíris aparece aqui como um touro, como touro é nosso Santo Pai. Nunca viu o brasão dos Borgia? Não é óbvia a relação entre essa figura mitológica, símbolo de força e valor, e o soldado romano que brilha em seu escudo de armas? Os símbolos não são heresias mestre!Quando frei Gioacchino Torriani ia responder, a voz aveludada e cansada do pontífice abreviou a discussão:- O que não entendo bem - disse, arrastando as palavras, como se aquela discussão o aborrecesse - é onde vê o pecado do Mouro em tudo isto...- É porque não examinou a obra de Leonardo, Santidade! - garantiu Torriani. - O duque de Milão a financia totalmente e protege o artista das recomendações de nossos frades. O prior de Santa Maria há meses, tenta reconduzir o esquema do mural a uma estética mais piedosa, mas é impossível. É o Mouro quem permitiu a Leonardo que se retratasse a si próprio de costas para Cristo, entregue a uma conversa com Platão.

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- Já, já... - bocejou o pontífice. - Mencionou também Ficino, não Torriani assentiu com a cabeça.- E não é esse o homem de quem tantas vezes me falou, caro Nanni?- É assim, Santidade - concordou Nanni com um sorriso forçado. - Trata-se de um personagem extraordinário. Único. Não creio que um herege, como o mestre Torriani pretende pintar. É cônego da catedral de Florença e agora deve andar pelos sessenta e quatro ou sessenta e cinco anos. Seu espírito iluminado o encantaria.- Espírito iluminado? - o pontífice tossiu. - Seria outro conde Savonarola? Ou acaso não são ambos cônegos da mesma catedral?O papa piscou um olho para Torriani, que tremeu ao escutar o nome do exaltado dominicano que pregava a chegada do fim da "Igreja rica”. - É verdade que dividem o templo, Santidade - desculpou-se a doninha, perturbado -, mas são varões de personalidades opostas. Ficil é um estudioso que merece todo nosso respeito. Um sábio que traduz   para o latim incontáveis textos antigos, como os tratados egípcios que serviram a Pinturicchio para decorar estes tetos.- Deveras?- Antes de trabalhar nos afrescos, Pinturicchio leu as obras de Hermes que Ficino acabara de traduzir do grego. Nelas se narram estas belas cenas de amor entre Ísis e Osíris...- E Leonardo? - grunhiu o pontífice para Nanni. - Ele também leu Ficino?- E tratou com ele, Santidade. Pinturicchio sabe. Ambos foram seus discípulos no ateliê de Verocchio e ambos ouviram suas explicações sobre Platão e sua crença na imortalidade da alma. Pode haver algo mais profundamente cristão do que essa idéia?Nanni pronunciou aquela última frase em desafio às críticas do mestre Torriani. Sabia de sobra que a maioria dos dominicanos era tomista, defensora da teologia de Tomás de Aquino inspirada em Aristóteles, e inimiga de tudo o que significasse resgatar Platão do esquecimento. Meu mestre geral percebeu que só tinha a perder contra aquele interlocutor porque logo em seguida baixou o olhar e anunciou, submisso, sua despedida:- Santidade. Venerável Annio - saudou-os cortesmente. - É inútil que continuemos a especular sobre as fontes de inspiração dessa Última Ceia, de

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Milão, enquanto não concluirmos nossas averiguações. Se me der sua bênção, a investigação prosseguirá como até agora e determinará a espécie de pecado que Leonardo está cometendo contra nossa doutrina.- Se estiver - contemporizou De Viterbo.O papa devolveu a saudação a Torriani e, fazendo o sinal da cruz no ar, acrescentou:- Dou-lhe um conselho antes que se retire, padre Torriani: de agora em diante, avalie bem o terreno em que pisa.

Nunca vi rostos tão compridos como os dos monges de Santa Maria naquela manhã de domingo. Antes do toque de matinas, o prior em pessoa percorreu o convento, cela por cela, despertando-nos todos, e aos gritos ordenou que nos lavássemos o quanto antes e que preparássemos nossas consciências para um capítulo extraordinário da história e da comunidade.Certamente ninguém resmungou. Não havia frade que não soubesse que a morte do sacristão lhes seria cobrada cedo ou tarde. Talvez isso explicasse por que todos começaram a desconfiar de todos de um dia para o outro. Aos olhos de um forasteiro como eu, a situação se torna insustentável. Os frades se juntavam em pequenos grupos de acordo com sua origem. Os do sul de Milão não falavam com os do norte, que, por sua vez, evitavam se relacionar com os dos lagos, como se tivessem algo a ver com o desgraçado fim de frei Giberto. Santa Maria estava dividida... e eu ignorava o porquê.Nessa madrugada, depois de me lavar e me vestir na penumbra, compreendi como a crise era profunda. Embora fosse certo que não havia frade que não falasse mal de outro, todos pareciam estar de acordo em algo: deviam me manter o mais afastado possível de suas aflições, havia algo que os atormentasse era que, em virtude de meus poderes como inquisidor, poderia abrir um processo contra sua comunidade. O rumor de que frei Giberto morrera pregando como um albigense os aterrorizava. Ninguém por certo se atreveu a manifestá-lo abertamente. Olhavam-me como se eu tivesse obrigado frei Alessandro a se enforcar e conseguido que o sacristão perdesse o juízo. Tal era o poder demoníaco que me atribuíam.Porém o que mais me chamou a atenção foi ver a maneira como Vicenzo Bandello tirou proveito daqueles medos.

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Depois de nos despertar, o prior nos conduziu a uma grande mesa vazia que ele mesmo preparou num salão perto das cavalariças. Fazia frio e o aposento era ainda pior iluminado do que nossas celas. Mas foi assim, quase às apalpadelas, que Bandello nos tornou participantes do intenso programa que nos reservou. Das matinas às completas, disse, nós nos entregaríamos a exercícios espirituais, revisão dos pecados, atos de contrição e confissão pública. E quando acabasse o dia, um grupo de irmãos designado por ele próprio se ocuparia de ir ao Claustro dos Mortos e exumar os restos de frei Alessandro Trivulzio. Não só se arrancariam seus pobres despojos do abraço da terra mas também os levariam para além dos muros da cidade para exorcizá-los. E, com eles, também os ossos do irmão Giberto.Bandello queria que seu mosteiro ficasse limpo de heresia antes do anoitecer. Ele, que acreditara na inocência do irmão bibliotecário e defendera até a existência de um complô contra sua vida, sabia já que frei Alessandro vivera de costas para Cristo, pondo em sério perigo a integridade moral de seu priorado.Vi Mauro Sforza, o coveiro, benzer-se nervoso num extremo da mesa.Deparamos com o padre Vicenzo mais sério e taciturno do que nunca. Não dormira bem. As bolsas de seus olhos caíam como chumbo sobre as maçãs do rosto, conferindo-lhe um aspecto desolador. Em parte, a culpa por aquele deplorável estado era minha. Na tarde anterior, enquanto o mestre Torriani e o papa Alexandre se entrevistavam em Roma nas minhas costas, Bandello e este humilde servo de Deus conversamos sobre o que implicava ter dois albigenses infiltrados na comunidade. Milão - expliquei - estava sendo atacada pelas forças do mal como nunca nos últimos cem anos. Todas minhas fontes confirmavam. No começo, o prior me olhou incrédulo, como se duvidasse que um recém-chegado pudesse compreender os problemas de sua diocese, mas à medida que expunha meus argumentos mudava de atitude.Argumentei acreditar que a estranha cadeia de mortes que sofremos não obedecia a simples acasos. Até expliquei a ligação dos dois peregrinos assassinados na igreja de São Francisco. A própria polícia do Mouro me dava razão. Os oficiais concluíram que também esses desgraçados morreram sem opor resistência, da mesma maneira que frei Alessandro. Ainda mais: o local exato dos crimes em São Francisco fora o altar-mor, bem abaixo de um

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quadro do mestre Leonardo a que chamavam de Maestà. Esse detalhe, e mais o de que junto a seus pertences só se encontraram um pedaço de pão e um maço de cartas ilustradas, fez-me recear. Todos os mortos tinham sobre eles os mesmos objetos, como se formassem parte de um obscuro ritual. Talvez, admiti, de um cerimonial albigense até então desconhecido.Era estranho. Leonardo, tal como sugeri ao prior, era uma fonte singular de problemas. Frei Alessandro morrera depois de posar como Judas Iscariotes e eu sabia que o sacristão também estava entre os frades que mais simpatizavam com ele. E isso para não falar de donna Beatrice: desapossada da vida depois de lhe ter dado toda sua proteção. Como era possível não ver o fio sutil que ligava aqueles acontecimentos? Não resultava evidente que Leonardo da Vinci estava cercado de poderosos inimigos, talvez tão desconfiados da heterodoxia dele como nós próprios, mas capazes de chegar às armas para acabar com ele e os seus?Foram as vítimas, e a ameaça de que a elas pudessem se somar outras pessoas, as que me obrigaram a falar com Bandello sobre o Augure. E creio que fiz bem.Olhou-me incrédulo, no início, quando expliquei que Roma já fora advertida sobre este acúmulo de desgraças. De fato, altas instâncias políticas já há tempo recebiam notícias de um misterioso informante que anunciara o que aconteceria com todos aqueles que não detivessem os trabalhos do Cenacolo. O perfil daquele homem - expliquei - era o de um indivíduo sagaz, inteligente, de provável formação dominicana, que escondia a identidade por temor de sofrer represálias do duque. Um homem que, sem dúvida, atuava por despeito contra o mestre e cuja obsessão parecia ser a de levá-lo à ruína e ao descrédito. Um varão era, em suma, que devia ser localizado imediatamente se quiséssemos deter aquele incessante gotejamento de mortes e chegar às claríssimas provas incriminatórias contra Leonardo que ele garantia possuir.- Se não me engano, padre, a passividade de Roma diante das ameaças o obrigou a fazer justiça com as próprias mãos.- E por que, padre Leyre? O que pode ter esse homem contra nos pintor? - perguntou o prior, espantado. - Pensei muito nisso e, creia-me, só encontro uma explicação possível - Bandello me olhou intrigado, convidando-me a prosseguir. - Minha hipótese é

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que em algum momento do passado recente o Augure foi cúmplice de Leonardo da Vinci, e até chegou a comungar profundamente de suas crenças heterodoxas. Pode ser que por alguma razão obscura, que deveremos determinar, nosso homem se sinta defraudado pelo pintor, e decidiu delatá-lo. Primeiro escreveu cartas obsessivas a Roma, informando-nos sobre seus delitos contra a fé e as maldades que escondia no Cenacolo, mas diante de nosso ceticismo ficou desesperado e decidiu passar à ação.- À ação? Não entendo.- Não posso reprová-lo, prior. Também não tenho todas as chaves.No entanto, minha hipótese ganha sentido se concluirmos que o Augure é tão albigense como Alessandro ou Giberto. Durante um tempo, deveu-se acreditar herdeiro dos autênticos apóstolos de Cristo e, como os albigenses, aguardou com paciência a chegada do dia da Segunda Vinda do Messias. É o sonho de todo bonhomme. Acreditam que nesse dia se confirmará sua "verdadeira religião" aos olhos da cristandade - aproveitei a atenção do padre Vicenzo para arrematar minha idéia em tom solene. - Acredito que depois de longa e vã espera, alterado por algum sério contratempo, o Augure perdeu a paciência, renegou seus votos de não-violência e se dispôs a cobrar com sangue o tempo perdido com os "homens puros".- É uma acusação horrível, padre.- Estudemos os fatos, prior - convidei. - Os albigenses conhecem o Novo Testamento e quando o Augure matou frei Alessandro, preparou tudo para que parecesse suicídio. Leonardo se deu logo conta disso e embora tratasse de desviar a atenção da polícia, naquele dia, deu-me uma pista fundamental: Alessandro morreu da mesma maneira como Judas Iscariotes depois de delatar Jesus.- E que importância isso pode ter?- Muita, prior. O universo albigense se movimenta graças ao poder dos símbolos. Se o Augure conseguisse fazer a comunidade dos perfeitos acreditar que se reproduziam os acontecimentos que precederam a morte de Jesus, poderia fazê-los ver que a Segunda Vinda estava perto. Entende? O "suicídio" do bibliotecário lhes anunciava que estavam a ponto de surgir tempos proféticos: Cristo ia regressar à Terra em breve e sua fé ressurgiria triunfante por entre as sombras.

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- A Parúsia...- Com efeito. Por isso Giberto, impressionado pela revelação, deixou o medo para trás e saiu a pregar como albigense, dando a vida sem temor, na certeza de que, quando o Senhor regressasse, ressuscitaria salvo de entre os mortos. O Augure consuma sua vingança com uma inteligência demoníaca.- Parece seguro de sua hipótese.- E estou - concordei. - Já disse antes que nosso informante tem uma personalidade complexa: é brilhante e não deixa nada ao acaso, nem mesmo o lugar que escolheu para enforcar Alessandro.- Ah, não?- Pensei que se dera conta - sorri, cínico. - Quando visitei o pórtico do palácio da Razão e inspecionei a viga onde nosso bibliotecário estava pendurado, vi um baixo-relevo curioso. Pertence a um certo Orlando de Tressano, antigo carrasco de hereges a quem a inscrição descreve como "spada e tutore delia fede per aver fatto bruciare como si doveva i catari" ("Espada e mestre da fé por ter queimado os albigenses como mereciam”). Curiosa zombaria, não acredita?Vicenzo Bandello estava surpreso. A peste da heresia infectara seu convento além do imaginável.- Diga-me, padre Leyre - perguntou consternado -, até que ponto imagina que o Augure engana os seus?- O suficiente para convencer esses peregrinos de São Francisco abandonar seus esconderijos nas montanhas e se apresentar na cidade em busca da salvação. Entregaram a vida docilmente ante a aproximação da Parúsia. O Augure conseguiu assim que a comunidade albigense denuncie sozinha. E deve acreditar que é apenas uma questão de tempo que o mestre Leonardo dê um passo em falso.- Então... - titubeou o prior - acredita que o Augure vive ainda entre nós.- Sim, estou convencido - sorri. - E se esconde porque sabe que é tarde para conseguir seu perdão. Não apenas pecou contra a doutrina da Igreja, mas infringiu o quinto mandamento: não matarás.- Como o identificaremos?- Por sorte cometeu um pequeno erro.- Um erro?

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- Nas primeiras cartas, quando ainda tinha esperança na intervenção de Roma, deu-nos uma pista para que pudéssemos localizá-lo.A fronte enrugada do prior se retesou pela surpresa.- Claro! - exclamou, levando as mãos à cabeça. - É essa sua adivinhação! A assinatura do Augure! Por isso estava escrita na carta que encontramos junto com o bibliotecário!- Frei Alessandro quis decifrar o mistério por sua conta. Incauto, eu próprio lhe entreguei o texto e talvez foi a curiosidade o que acelerou sua morte.- Nesse caso, padre Leyre, já o temos. Basta decifrar o hieróglifo para chegar a ele.- Tomara que fosse tão fácil.O  bom prior não pregou o olho toda a noite. Mal o vi diante dos monges, de pé, com os olhos avermelhados e olheiras, supus que passara a noite dando voltas ao molesto Óculos ejus dinumera. Quase lastimei tê-lo encarregado daquela nova responsabilidade. À sua obrigação de desmascarar aqueles que entre seus monges professavam crenças heréticas, ou de determinar que espécie de mensagem provocadora se escondia na decoração de seu próprio refeitório, acrescenta-se nesse momento a de localizar o frade que provocara já várias mortes, convencido de agir por uma causa justa.Seus irmãos o olhavam desconcertados. O capítulo ia começar:- Irmãos - o prior abriu solene, de pé, com a voz dura e os punhos apertados sobre a mesa -, há quase trinta anos vivemos entre estas paredes e nunca até agora enfrentamos uma situação como esta. Deus Nosso Senhor pôs à prova nossa temperança, permitindo-nos ser testemunhas da morte de dois de nossos irmãos mais queridos e revelando-nos que suas almas estavam enegrecidas pelo fedor da heresia. Como acreditam que se sente o Pai Eterno diante de nossa fraqueza? Com que disposição vamos fazer súplicas se nós próprios, com nossa atitude, não fomos capazes de perceber nossos erros e permitimos que morressem em pecado? Os mortos que hoje repudiamos comiam nosso pão e bebiam nosso vinho. Isso não nos torna cúmplices de suas faltas?Ban-dello respirou fundo:- Mas Deus, caros irmãos, não nos abandonou neste transe terrível. Em sua infinita misericórdia, quis que esteja entre nós um de seus mais sábios doutores.

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Um murmúrio percorreu os presentes, enquanto o prior me apontava com seu indicador.- Por isso ele está aqui - disse. - Pedi ao nosso ilustre padre Agustín Leyre, do Santo Ofício romano, que nos ajude a compreender as tortuosas veredas que percorremos nestes momentos de dor.Levantei-me para que pudessem me ver, e saudei com uma ligeira reverência. Em tom conciliador, o prior continuou o sermão, fazendo verdadeiro esforço para não intimidar seus frades:- Todos conviveram com frei Giberto e frei Alessandro - disse. - Conheciam-nos bem. E no entanto ninguém percebeu irregularidades em seu comportamento, nem soube ver sua funesta submissão à heresia albigense. Dormíamos tranqüilos acreditando que essa doutrina deixara de existir há mais de cinqüenta anos, e pecamos pela arrogância ao crer que nunca mais voltaríamos a enfrentá-la. E não aconteceu assim. O mal, caros irmãos, é renitente em desaparecer. Aproveita-se de nossa ignorância. Nutre-se de nossa estupidez. Por isso, para nos prevenirmos de novos ataques, pedi ao padre Leyre que nos ilumine sobre o mais pérfido dos desvios cristãos. É provável que em suas palavras identifiquem usos e costumes que talvez praticaram sem conhecer a origem.Não temam: muitos se originam de famílias lombardas cujos antepassados tiveram algum contato com os hereges. Meu firme propósito é que antes de que o Sol se ponha, antes que abandonem esta sala, abjurem de tudo isso e se reconciliem com a Santa Igreja de Roma. Escutem nosso irmão, meditem sobre suas palavras, arrependam-se e peçam confissão.Quero saber se nossos defuntos irmãos foram os únicos infectados pela peste albigense e tomar as providências oportunas.O prior me cedeu a palavra, fazendo-me um gesto para que me aproximasse da cabeceira da mesa. Ninguém pestanejou. Os frades mais antigos, Luca, Jorge e Estêvão, velhos demais para assumir alguma tarefa ativa no convento, espicharam os pescoços para me escutar. Os demais escutaram minhas palavras com autêntico pavor. Não tive mais que olhar em seus olhos.- Estimados irmãos, hudetur Jesus Christus.- Amém - responderam em coro.

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- Ignoro, irmãos, até que ponto vocês têm presente a vida de São Domingos de Guzmán - um murmúrio se propagou na platéia. - Não importa. Hoje será um dia excelente para que juntos relembremos sua obra.Um suspiro de alívio percorreu a mesa.- Deixem-me contar-lhes uma coisa. No início do ano de mil e duzentos, os primeiros albigenses se estenderam por boa parte do Mediterrâneo ocidental. Pregavam a pobreza, o retorno aos costumes dos cristãos primitivos e advogavam uma religião simples que não requeria igrejas nem dízimos ou privilégios para os ministros do Senhor. Seus seguidores repudiavam o culto aos santos e à Virgem, como se fossem selvagens ou, pior ainda, muçulmanos. Renegavam o batismo. E esses animais não titubeavam em afirmar que o criador deste mundo não foi Deus e sim Satã. Que perversão da doutrina! Podem imaginar? Para eles, Javé, o Deus Pai do Antigo Testamento, foi na realidade um espírito demoníaco que expulsou Adão e Eva do paraíso e destroçou exércitos à passagem de Moisés. Em suas mãos, nós, os homens, éramos apenas marionetes incapazes de diferenciar o bem do mal. O povo simples acolheu aquelas calúnias com entusiasmo. Via nelas uma fé que os perdoava do pecado e os fazia entender por que havia tanto sofrimento num mundo criado pelo Maligno. Que anátema! Situavam Deus e o Diabo, o bem e o mal, na mesma altura, com incumbências e poderes idênticos!"A Igreja", continuei, "quis corrigir aqueles bastardos do púlpito, mas o remédio não funcionou. Seus cada vez mais numerosos simpatizantes se deram conta da desproporção de sua luta e a maioria acabou tendo piedade dos hereges, a quem muitos consideravam vizinhos exemplares. Argumentavam que os albigenses pregavam com o exemplo, dando mostras de humildade e pobreza, enquanto os clérigos se revestiam de finas casulas e ouropéis para condená-los de altares cobertos de adornos custosos. Assim, longe de desterrar a heresia, o que a Igreja conseguiu foi espalhá-la como a peste. São Domingos foi o único a compreender o erro e decidiu descer ao terreno dos 'puros', que significa katharosi em grego, para pregar-lhes com a mesma pobreza apostólica que admiravam. O Espírito Santo o tornou forte. Deu-lhe coragem para entrar nos bastidores hereges da França, lá onde os albigenses eram multidão e onde respondeu a eles um a um. Domingos

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desmontou suas teses absurdas e proclamou Deus como único Senhor da criação. Mas até semelhante esforço foi inútil. O mal estava muito espalhado.”Bandello me interrompeu: também ele estudara essa história durante seus anos de preparação teológica e sabia que os albigenses não ganharam adeptos entre camponeses e artesãos mas também entre reis e nobres que os consideraram a fórmula perfeita para evitar o pagamento de impostos e as cessões de privilégios aos eclesiásticos.- Isso é certo - admiti. - Não contribuir com o dízimo que a Bíblia estabeleceu para os sacerdotes era depreciar as leis de Deus. Roma não podia ficar com os braços cruzados. Nosso amado Domingos ficou tão preocupado com aquele desvio que decidiu pôr mãos à obra. Por isso fundou um grupo de pregadores para voltar a evangelizar amplos territórios como o Languedoc francês. Hoje somos os herdeiros dessa ordem e de sua divina missão. No entanto, com sua morte, vendo que era impossível combater o mal só com a palavra, o papa e as coroas fiéis a Roma decidiram pôr em marcha uma repressão militar em grande escala que acabou com os amaldiçoados. Sangue e morte, cidades inteiras passadas a fogo e espada, perseguição e dor sacudiram durante anos os alicerces do povo de Deus. Quando as tropas do papa entravam numa cidade em que se instalara a heresia, matavam todos sem distinguir entre albigenses e cristãos. Deus, diziam, reconheceria os seus quando chegassem ao céu.Levantei a vista até a mesa antes de continuar. Meu silêncio devia intimidá-los.- Irmãos - prossegui -, aquela foi nossa primeira cruzada. Parece incrível que ocorresse há menos de duzentos anos e tão perto daqui.Então não duvidamos em levantar as espadas contra nossas próprias famílias. Os exércitos ministraram a justiça das armas, dividiram os "puros", acabaram com muitos de seus líderes e obrigaram centenas de hereges a se exilarem longe das terras que um dia dominaram.- E foi assim, fugindo das tropas do Santo Padre, que os últimos albigenses chegaram à Lombardia - acrescentou Bandello.- Chegaram enfraquecidos a estas terras. E, embora tudo apontasse para sua extinção, tiveram sorte: a situação política favoreceu a reorganização dos hereges. Lembro que essa foi a época de lutas entre guelfos e gibelinos. Os

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guelfos afirmavam que o papa estava investido de uma autoridade superior à de qualquer rei. Para eles, o Santo Padre era o representante de Deus na Terra e, portanto, tinha direito a exército próprio e a grandes recursos materiais. Os gibelinos, em compensação, com o capitão Matteo Visconti à frente, repudiavam essa idéia e defendiam a separação do poder temporal e o divino. Roma, diziam, devia se ocupar só do espírito. O restante era tarefa dos reis. Por isso ninguém estranhou que os gibelinos acolhessem os últimos albigenses na Lombardia. Era outra forma de desafiar o papa. Os Visconti os apoiaram em segredo, e mais tarde os Sforza continuaram com essa política. É quase certo que Ludovico, o Mouro, ainda segue essas diretrizes, e por isso esta casa que hoje descansa sob sua proteção se converteu em refúgio desses malditos. Nicola di Piadena se levantou e pediu a palavra:- Então, padre Leyre, acusa nosso duque de ser gibelino?- Formalmente não posso acusá-lo, irmão - respondi, esquivando- me de sua pergunta venenosa. - Não sem provas. Mesmo suspeitando que alguns de vocês a ocultam não hesitarei em recorrer a um tribunal de oficio, ou ao tormento se for necessário, para obtê-las. Estou decidido a ir às últimas conseqüências.- E como pensa demonstrar que existem "homens puros" nesta comunidade? - pulou frei Jorge, o encarregado das esmolas, escudado em seus invejáveis oitenta anos. - Pensa torturar o senhor mesmo a todos estes irmãos, padre Leyre?- Explico como farei.Fiz um gesto para que Matteo, o sobrinho do prior, aproximasse da mesa uma gaiola contendo um frango. Pedi-o poucos minutos antes do início do capítulo. O animalzinho, desconcertado, olhava para todos os lados.- Como sabem, os albigenses não comem carne e se recusam a matar qualquer ser vivo. Se você fosse um bonhommee eu lhe pedisse que o sacrificasse diante de mim, se negaria a matá-lo.Jorge enrubesceu ao ver-me apanhar uma faca e levantá-la sobre a ave.- Se um de vocês se negar a matá-la saberá, que o reconheci. Os albigenses acreditam que nos animais habitam as almas dos humanos que morreram em pecado e regressam assim à vida para purgá-los. Temem que ao sacrificá-los estejam tirando a vida de um de seus companheiros.

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Segurei o frango com força sobre a mesa, estirei o pescoço para que todos pudessem vê-lo, e cedi a faca a Giuseppe Boltraffio, o monge que estava mais perto. A um gesto meu, o gume ceifou em dois o pescoço do animal, salpicando de sangue nossos hábitos.- Já se vê. Frei Giuseppe - sorri com ironia - está livre da suspeita.- E não conhece um método mais sutil de detectar um albigense, padre Leyre? - protestou Jorge, horrorizado pelo espetáculo.- Claro que sim, irmão. Há muitas maneiras de identificá-los, mas todas são menos convincentes. Por exemplo, se lhes mostrar uma cruz, não a beijarão. Acreditam que só uma Igreja demoníaca como a nossa é capaz de adotar o instrumento de tortura em que pereceu Nosso Senhor. Também não veneram relíquias, nem mentem, nem temem a morte. Embora, é claro, isso seja apenas para o caso dos parfaits.- Os parfaits - alguns frades repetiram a expressão francesa com surpresa.- Os perfeitos - esclareci. - São os que dirigem a vida espiritual dos albigenses. Acreditam que imitam a vida dos apóstolos como nenhum de nós. Rejeitam qualquer espécie de propriedade, porque nem Cristo nem seus discípulos a tiveram. São os encarregados de iniciarem os aspirantes no melioramentum, uma genuflexão que deve ser realizada cada vez que se encontrem com um parfait. Só eles dirigem os apparellamentum, confissões gerais em que os pecados de cada herege são expostos, debatidos e perdoados publicamente. E, como se fosse pouco, só eles podem administrar o único sacramento que os albigenses reconhecem: o consolamentum.- Consolamentum?. - voltaram os murmúrios.- Servia ao mesmo tempo de batismo, comunhão e extrema-unção - expliquei. - Administrava-se mediante a colocação de um livro sagrado sobre a cabeça do neófito. Nunca era a Bíblia. Esse ato era considerado um "batismo do espírito" e quem merecia recebê-lo se convertia em "verdadeiro" cristão. Um consolado.- E o que o fez pensar que o sacristão e o bibliotecário foram consolados? - perguntou frei Stefano Petri, o risonho tesoureiro da comunidade, sempre satisfeito por lidar com êxito sobre os assuntos materiais de Santa Maria. - Se me permite a observação, jamais os vi abjurar a cruz, nem creio que foram batizados mediante a imposição de um livro sobre suas cabeças.

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Alguns frades, ao redor, concordaram.- Em compensação, irmão Stefano, você os viu fazer jejuns extremos, não é verdade?- Todos vimos. O jejum eleva o espírito.- Não no caso deles. Para um albigense, os jejuns extremos são um caminho para ganhar o consolamentum. Quanto à cruz, convém não confundir. Aos albigenses basta limar as extremidades de qualquer crucifixo latino, tornando-o menos aguçado, para poder carregá-lo no pescoço sem problema. Se a cruz é grega, ou até com as extremidades largas, toleram-nas. Seguramente, irmão Petri, também os viu rezar o Pater Noster com vocês. Pois bem: é a única oração que admitem.- Só dá argumentos circunstanciais, padre Leyre - respondeu Stefano antes de se sentar.- É possível. Estou disposto a admitir que frei Alessandro e frei Giberto eram apenas simpatizantes à espera do batismo. Mas isso não os exime do pecado. Não esqueço também que o irmão bibliotecário colaborou com o mestre Leonardo na sua Última Ceia. Quis ser retratado como Judas no centro de uma obra suspeita, e acredito saber por quê.- Diga - murmuraram.- Porque para os albigenses Judas Iscariotes foi um servo do plano de Deus. Acreditam que trabalhou bem. Delatou Jesus para que se cumprisse a profecia e pudesse dar sua vida por nós.- Então sugere acaso que Leonardo também é um herege?A nova pergunta de frei Nicola di Piadena fez sorrir de satisfação o padre Benedetto, que pouco depois se ausentou da mesa para esvaziar a bexiga no pátio.- Julgue você mesmo, irmão: Leonardo se veste de branco, não come carne, jamais mataria um animal, não se sabe de nenhuma relação carnal dele e, se ainda fosse pouco, no Cenacolo omitiu o pão da comunhão e colocou uma adaga, uma arma, na mão de São Pedro, indicando onde acredita que está a Igreja de Satã. Para um albigense, só um servo de Maligno empunharia uma arma branca na mesa pascal.- Mas o mestre Da Vinci respeitou o vinho - observou o prior.

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- Porque os albigenses bebem vinho! Mas observe, padre Bandelle em lugar do cordeiro pascal que segundo os Evangelhos era o alimento consumido naquele serão, o mestre pintou pescado. E sabe por quê?O prior negou com a cabeça. Dirigi-me a ele:- Recorde o que o seu sobrinho escutou da boca do sacristão antes de morrer: os albigenses não aceitam qualquer alimento que proceda do coito. Para eles, os peixes não copulam e então podem comê-los.Um murmúrio de admiração se estendeu pela sala. Os monges seguiam boquiabertos minhas explicações, espantados por não ter detectado antes aquelas heresias na parede de seu futuro refeitório.- Agora, irmãos, necessito que um a um responda minha pergunta - eu disse, mudando meu tom descritivo por outro mais severo. - Façam um exame de consciência e respondam diante de sua comunidade: algum de vocês seguiu, por vontade própria ou alheia, algum tipo de comportamento que acabei de descrever?Percebi que os frades continham a respiração.- A Santa Mãe Igreja será misericordiosa com aquele que abjurar suas práticas antes de abandonar esta reunião. Depois, o peso da justiça cairá sobre ele.

O  Augure atuou com precisão prodigiosa. Se alguém tivesse a má sorte de cruzar por ele concluiria que se movia como se conhecesse até o último recanto do convento. Envolvido numa capa preta que o cobria da cabeça aos pés, atravessou as fileiras vazias de bancos da igreja, virou à esquerda rumo à capela da Madonna delle Grazie e entrou na sacristia. Ninguém lhe interrompeu a caminhada. Os frades estavam nessa hora reunidos no capítulo extraordinário, alheios à chegada do intruso.Satisfeito, abandonou o oratório atravessando o arco que dá para o pequeno claustro do prior; rodeou-o com passo rápido e uma vez dentro do Claustro dos Mortos deixou por trás o refeitório para subir de três em três os degraus que davam para a biblioteca.O Augure - homem ou espírito; anjo ou demônio, e o que mais fosse - deslocou-se com aprumo. Depois de inspecionar com olho profissional a sala do scriptoríum, dirigiu os passos até a carteira de frei Alessandro. Não tinha tempo a perder. Sabia que Marco d'Oggiono e um pintor cúmplice do toscano

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a quem chamavam Bernardino Luini acabaram de abandonar a casa de Leonardo, bem em frente ao convento de Santa Maria delle Grazie, e não demorariam a chegar ao refeitório.. Ignorava o que os trazia ali, e muito menos que eram acompanhados por uma rapariguinha por expresso desejo do toscano.Com cuidado, o Augure depositou a capa na mesa do bibliotecário e, tomando precaução para não fazer muito barulho, bateu no lajeado do solo. Encaixadas umas junto às outras, só duas lajes se mexeram ao serem golpeadas. Era o que buscava. Agachou-se para examiná-las e viu que não estavam unidas com argamassa: tinham as beiradas polidas e o  reverso limpo, sinal inequívoco de uso freqüente. Ao levantá-las, reconheceu o conduto da calefação a vapor. Observou-o satisfeito. O Augure sabia que essa minúscula abertura de alvenaria percorria de lado a lado o teto do refeitório e que, dali, um ouvido bem treinado nada perderia de qualquer coisa que se falasse debaixo.Com precaução, deitou-se o mais comprido possível para colar o ouvido ao lajeado e fechou os olhos em busca de concentração.Um minuto depois escutou um forte rangido. Era a aldrava do refeitório. Os convidados de Leonardo estavam prestes a entrar na sala da Última Ceia.- O que nos quis dizer o mestre com o ômega?A pergunta da bela Elena subiu diáfana pelo canal até o andar de cima. O Augure se surpreendeu ao perceber o timbre de uma mulher.- A primeira vez que o ouvi falar disso foi na presença de sor Verônica, no dia de sua morte - respondeu Marco d'Oggiono, cuja voz reconheceu logo.- Você esteve com sor Verônica da Binasco no dia em que se cumpriu a profecia?Elena não cabia em si de admiração.Passara a última noite acordada, boquiaberta diante das explicações de Leonardo e as brincadeiras de seus discípulos, preparando-se para sua pose. Leonardo concordou em retratá-la como o discípulo João se antes demonstrasse, com a ajuda de seus acompanhantes, que era capaz de compreender a importância daquele mural.O mestre, seduzido pela beleza da primogênita dos Crivelli, não podia tirá-la da cabeça desde que a conhecera no Palazzo Vecchio. Era um "João" perfeito. Mas não queria se precipitar. Convidara-a num par de ocasiões, sempre com o

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mestre Luini ao lado, aos seus célebres serões de música, poesia e trovadores com que obsequiava seus hóspedes. Queria acompanhar de perto a evolução daquele inesperado par. A jovem se sentia embriagada. Ver-se freqüentando um círculo que só conhecia pela mãe era como entrar no mundo dos sonhos. E não queria acordar. Desde que Lucrezia Crivelli iluminara suas noites infantis com contos de Príncipes e menestréis, cerimônias cavalheirescas e reuniões de magos, Elena quisera estar ali.- Sor Verônica? Ai! A monja se irritava com facilidade - recordou Marco, esfregando as mãos enquanto soprava nelas. O refeitório estava frio. Chegara a hora de aguçar a inteligência.- Deveras?- Oh, sim. Sempre recriminava os gostos excêntricos do mestre e o criticava por conhecer melhor os livros dos filósofos gregos do que a Sagrada Escritura. A verdade é que não costumavam falar de arte e muito menos dos trabalhos do mestre, mas, no dia em que morreu, a irmã Verônica perguntou por este refeitório.- E o que isso tem a ver com o ômega? - protestou Elena.- Deixe-me contar. Naquele dia Leonardo se sentiu ofendido. Sor Verônica o acusou de minimizar a importância de Cristo no Cenacolo. O mestre se aborreceu. Respondeu que Jesus era o único alfa desta composição.- Disse isso? Que Jesus era o alfa do mural?- Jesus, disse, é o princípio. O centro. O eixo deste trabalho.- De fato - observou Luini, esforçando-se por atinar com a silhueta de Cristo na penumbra -, é certo que Jesus ocupa o lugar dominante, mais: sabemos que o ponto de fuga da perspectiva de toda a composição se encontra exatamente sobre sua orelha esquerda, sob a cabeleira.Leonardo cravou seu compasso no primeiro dia. Eu mesmo vi. E a partir deste ponto sagrado traçou o resto.O Augure se surpreendeu ao escutar Luini. Era a primeira vez que escutava. Sabia que partilhava a trama herética de Leonardo pelos seus quadros. Também ele pintava obsessivamente cenas da vida de João. Seu encontro de menino com Jesus a caminho do Egito, seu batismo no Jordão ou sua cabeça servida numa bandeja de prata a Salomé! repetiam em seus quadros uma e outra vez. Todos os peregrinos que veneravam a Maestà de Leonardo o

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conheciam bem. "Os lobos", deduziu inquieto ao confirmar sua presença no sanctum sanctowm toscano, "sempre andam em bandos.”- Sua observação é correta, meser Bernardino - disse Marco sem perder de vista sua bela acompanhante que já começava a distinguir silhuetas dos apóstolos iluminadas pela claridade do amanhecer. - você se fixar no corpo, assim, com os braços estendidos para a frente verá que tem a forma de um "A" enorme. Trata-se de um “A” enorme que nasce no centro exato dos Doze. Percebe?- Estou vendo, mas e o ômega? - insistiu Elena.- Bem. Creio que o mestre disse isso porque se considera o último de seus discípulos.- Quem? Leonardo?- Sim, Elena. Alfa e ômega, princípio e fim. Tem sentido, não?Luini e a condessinha encolheram os ombros. O corpulento aluno intuía, como Marco, que aquela parede ocultava mensagem iniciática de grande proporção. Era evidente que se o mestre os deixara chegar até ali sem lhes dar a chave para a leitura se devia a que, de alguma maneira, estava pondo-os à prova. Estavam, pois, diante do maior hieróglifo jamais desenhado pelo toscano, e de sua habilidade para conseguir algum resultado ia depender do acesso a segredos maiores. E, sobretudo, a salvação de sua alma.- Talvez Marco esteja certo e o Cenacolo esconda uma espécie de alfabeto visual.Aquilo sobressaltou o Augure.- Um alfabeto visual?- Sei que o mestre estudou com os dominicanos de Florença a "arte da memória". Seu mestre, Verocchio, também a praticou e a ensinou a Leonardo quando ele era ainda criança.- Nunca nos falou disso - disse Marco, algo decepcionado.- Talvez não considerasse importante para sua formação. Afinal de contas, trata-se apenas de artifícios mentais para recordar grande quantidade de informação ou armazená-las em construções ou obras de arte.Esta informação fica à vista de todos, mas é invisível aos olhos dos não iniciados em sua leitura.- E onde está vendo aqui esse alfabeto? - insistiu, intrigado, d'Oggiono.

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- Você disse que o corpo de Jesus tem o aspecto de um "A" e que para Leonardo é o alfa da composição. Se ele disse de si próprio que é o ômega, conviria que não é despropositado procurar no retrato de Tadeu que lembre um "O".Os três se olharam com cumplicidade e, sem interpor palavras, aproximaram os pés da mesa pascal. A figura de Tadeu era inconfundível.Olhava para o lado oposto de onde se desenrolava a ação. Inclinado para a frente, tinha os braços cruzados em forma de X, com as palmas erguidas para o céu. Vestia uma túnica avermelhada, sem fecho, e nada havia em sua figura que permitisse imaginar um ômega.- Alfa e ômega também podem ter a ver com São João e Madalena murmurou Bernardino, escondendo a decepção.- O que você quer dizer?- É simples, Marco. Você e eu sabemos que o mural é secretamente consagrado a Maria Madalena.- O nó! - recordou. - É certo! O nó corrediço na extremidade mantel!- Creio que Leonardo quis nos despistar. O mestre levou tempp fazendo correr o boato de que o nó é sua particular maneira de assinar a obra. Em língua românica, Vinci provém da palavra latina vincoli, isto é, laço ou cadeia. No entanto, o significado oculto não pode ser tão grosseiro. Obrigatoriamente se relaciona com a favorita de Jesus.O Augure se mexeu incômodo em seu esconderijo.- Um momento! - protestou Elena. - E o que isso tem a ver com o alfa e o ômega?- Está na Escritura. Lendo os evangelhos você verá que João Batista desempenhou um papel fundamental no início da vida pública do Messias. João batizou Jesus no Jordão. De fato, de alguma maneira serviu de ponto de partida, de alfa, à sua missão na Terra. Madalena, em compensação, foi determinante no momento oportuno. Estava presente quando ressuscitou do túmulo. E, à sua maneira, também ela o batizou, ungindo-o poucos dias antes da Última Ceia na presença dos discípulos. Ou não se lembra de Maria Betânia no episódio em que lhe lava os pés? Ela atuou nesse momento como um verdadeiro ômega.- Madalena, ômega...

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A explicação ainda não convencera a rapariga. Em princípio João e Tadeu não se relacionavam, a não ser pelo fato de que nenhum dos dois olhava para Cristo. Elena demorou algum tempo elaborando uma interpretação opcional para aquele "O" tão fora de lugar. Olhava de um lado para outro do muro estucado, tentando encontrar sentido para o enigma. Logo amanheceria e deveriam se apressar se quisessem completar a prova antes da chegada dos monges. Se havia, no Cenacolo, algo para "ler", deviam encontrar com rapidez.- Creio que vocês propõem interpretações rebuscadas - disse por fim. - E o mestre, pelo pouco que conheço dele, é grande amante da simplicidade.Marco e Bernardino se voltaram para a condessinha.- Se atuou de forma tão evidente num dos extremos do mantel, deixando o outro liso, é porque deseja chamar a atenção do espectador para este recanto da mesa. Há algo ali, onde ele próprio se retratou, que quer que vejamos.Luini levantou o braço até o nó, acariciando-o com as pontas dos dedos. Aquele laço estava desenhado com grande mestria. Cada prega do tecido lhe conferia uma maravilhosa sensação de realidade.- Acho que Elena tem razão - admitiu.- Razão? Que razão?- Olhe bem, Marco: a zona que marca o nó é a área em que a luz da composição é mais intensa. Observe aqui as sombras no rosto dos apóstolos. Está vendo? São mais duras. Mais fortes do que no resto.O perfil grego de d'Oggiono explorou longitudinalmente a parede, comparando o amplo leque de claros-escuros nas roupas e nos rostos dos Doze.- Talvez tenha sentido - continuou Luini, como se pensasse em voz alta. - Essa zona aparece mais iluminada do que as demais porque para Leonardo o conhecimento parte de Platão. Ele é como o Sol que ilumina a razão. E o discípulo mais brilhante de todo o conjunto é São Simão, o que tem o rosto do grego e o único manto branco da cena...Aquela nuance devolveu a Luini uma recordação importante:- E Mateus, o discípulo que está cotovelo a cotovelo com o mestre é Marsilio Ficino... Claro! - exclamou em voz alta, de repente. - Ficino confiou ao mestre os textos de João antes que saíssemos de Florença. Aí está a chave!

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Elena o olhou perplexa.- A chave? Que chave?- Agora entendo. Os antigos faziam a iniciação de seus adeptos colocando um evangelho inédito de João sobre a cabeça deles. Acreditavam que assim se transmitia pelo contato a essência espiritual da obra à mente e ao coração do candidato a verdadeiro cristão. Esse livro de João continha grandes revelações sobre a missão de Cristo na Terra e mostrava o caminho que devíamos seguir para alcançar um lugar no céu. Leonardo... - Luini respirou fundo - substituiu esse texto por uma obra pictórica que contivesse seus símbolos fundamentais. Por isso enviou você aqui para ser iniciada, Elena! Para iniciar você com o segredo místico de João.- E vocês podem me iniciar sem saber exatamente o que o mestre inscreveu aqui?O tom da jovem soou incrédulo.- À falta de mais pistas, sim. Antigamente os noviços não chegavam sequer a abrir o livro perdido de João. Muitos nem sabiam ler. Por que não haverá o mural de atuar da mesma maneira conosco? Além disso, olhem para Cristo. Está a uma altura suficiente na parede para que se possa ficar debaixo, e receber sua mística imposição de mãos, com uma palma protegendo a cabeça e a outra invocando o céu.A condessinha olhou de novo para o alfa. Bernardino tinha razão. A cena do banquete estava colocada em altura suficiente para receber uma pessoa de certa envergadura sob o mantel. Era um bom lugar para se localizar e receber o espírito do quadro, mas, contudo, a mente pragmática de Elena a forçava a buscar uma interpretação mais racional. - Leonardo era um homem prático, pouco dado a velhas lucubrações místicas.- Pois eu acredito saber como podemos ler a mensagem do Cenacolo...Elena titubeou. Uma intuição súbita a iluminou e ela se pôs sob a proteção do alfa.- Lembram-se das atribuições que o mestre mandou-os memorizar para quando chegasse o momento de retratar os Doze?Bernardino concordou perplexo. As imagens do dia em que a condessinha lhe arrebatou aquela lista ainda continuavam vivas em sua memória. Enrubesceu.- E sabem me dizer que virtude atribuía a Tadeu? - insistiu.

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- A Tadeu? - Sim, a Tadeu - exortou Elena, enquanto Luini procurava o dado entre suas recordações.- É Occultator. O que oculta.- Exato - sorriu. - Um "O". Está vendo? Aqui temos de novo nosso ômega. E isso não pode ser por acaso.Por todos os diabos! O júbilo de Bernardino Luini ressoou nas quatro paredes do refeitório.- Não pode ser tão fácil!Concentrado na descoberta da condessinha, o mestre começou a repassar a distribuição dos apóstolos. Teve de retroceder três passos para garantir uma visão panorâmica. Somente se colocando a uns metros da parede norte era possível avistá-los por inteiro, de Bartolomeu a João e de Tomé a Simão. Estavam agrupados de três em três, todos com o rosto dirigido para Cristo, menos o discípulo amado, Mateus e Tadeu, que fechavam os olhos ou olhavam para outra parte.Luini rasgou um dos papelões que Leonardo tinha espalhado no chão e, com um carvão, começou a rabiscar os perfis da cena no rever. Marco e Elena seguiram seus movimentos com curiosidade. Enquanto isso, o Augure, um andar acima, impacientava-se por nada escutar.- Já sei como ler a mensagem do Cenacolo - anunciou por fim. Estava todo o tempo diante de nossos narizes e não soubemos vê-la.O pintor se colocou então numa das extremidades de Bartolomeu, recordou-lhes sob a efígie encurvada e absorta, era Mirabille o prodigioso. Leonardo o retratara com o cabelo encaracolado e vermelho, confirmando o que Jacopo da Varazze escreveu sobre ele em sua Lenda dourada: era sírio e de índole inflamada, como corresponde a peles-vermelhas. Luini anotou um "M" no papelão, junto com sua silhueta. Depois fez o mesmo com Tiago Menor, o cheio de graça Venustus, aquele a quem amiúde confundiam com o próprio Cristo que por suas obras mereceu esse cognome. Um "V" se somou ao papelão. André Temperator, o que previne, retratado com as mãos para a frente como corresponde a tal atributo, logo ficou reduzido a um simples "T".- Estão vendo?

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Marco, Elena e o jovem mestre sorriram. Aquilo começava a ganhar sentido. "M-V-T" para o início de uma palavra. O frenesi disparou ao comprovar que o grupo seguinte de apóstolos dava lugar a outra sílaba pronunciável. Judas se converteu em "N" de Nefandus, o abominável traidor de Cristo. Sua posição, no entanto, era algo ambígua: embora Judas fosse a quarta cabeça a aparecer a partir da esquerda, a peculiar posição de São Pedro - com o braço armado nas costas do traidor - poderia dar lugar a um erro de contabilidade. Em qualquer caso, Luini explicou que o "N" continuava sendo válido já que Pedro foi o único dos Doze que negou três vezes Cristo. "N", pois de Negado.Elena protestou. O mais lógico era se guiar pela ordem das cabeças dos personagens e pelos atributos da lição de Leonardo. Nada mais.Seguindo essa ordem, o seguinte era Pedro. Encurvado para o centro da cena, merecia tanto o "E" de Ecdesia como o de Exosus, que o toscano lhe atribuiu. O primeiro agradaria Roma; o segundo, que significa "o que odeia", refletia o temperamento daquele sujeito de cabelo branco e olhar ameaçador, disposto a executar sua vingança armado com uma faca de folha larga. E João, abstraído, com a cabeça inclinada e as mãos unidas como as damas retratadas por Leonardo, fazia jus ao seu "M" de Mysticus. "N-E-M", pois, era o desconcertante resultado do trio.- Jesus é o "A" - lembrou Elena ao chegar ao centro do mural. - Continuemos.Tomé, com o dedo para cima, como que assinalando qual dos presentes era o primeiro a merecer o privilégio da vida eterna, passou para o esboço de Luini como o "L" de Litator. o que aplaca os deuses. Seu atributo provocou uma breve discussão. No Evangelho de João, foi Tomé quem pôs o dedo na ferida de Cristo. E também quem caiu de joelhos gritando "Senhor meu e Deus meu!" (João, 20, 28), aplacando assim a Possível ira do ressuscitado por não ser reconhecido de imediato.- Além disso - insistiu Bernardino, enfatizando sua teoria -, estamos diante do único retrato que confirma sua letra no perfil do apóstolo.- Você se esquece do alfa de Jesus - especificou a condessinha.- Só que nesta ocasião a letra não se esconde no corpo de Tomé, mas nesse dedo levantado para o céu. Estão vendo? O dedo indicador estirado forma, junto com a base do punho e o polegar saliente, um claro "L" maiúsculo.

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Os acompanhantes de Luini concordaram maravilhados. Contemplaram com cuidado Tiago Maior, mas foram incapazes de encontrar nele algum indício que reproduzisse o "O" que o representava.- No entanto - esclareceu Bernardino -, quem estudou a vida deste apóstolo concluirá que o "O" de Oboedíens, o obediente, ajusta-se nele como uma luva.De fato. Do filho de Zebedeu escreveu Jacopo da Varazze que foi o irmão carnal de João e que "ambos pretendiam ocupar no reino do céu os postos mais próximos ao Senhor e sentar-se, um deles, à Sua direita e o outro à esquerda". Leonardo, portanto, recriou no Cenacolo uma mesa divina, extraída do mundo da perfeição habitado pelas almas puras. E João e Tiago Maior ocupavam nela os lugares prometidos por Cristo.Assim, junto a Filipe, Sapiens entre os Doze, o único que se assinalava a si próprio, indicando-nos onde devemos buscar nossa salvação, Luini conseguiu armar uma terceira e desconcertante sílaba: "L-O-S".O grupo restante de apóstolos se resolveu com idêntica rapidez. Mateus, o discípulo cujo nome, segundo o bispo da Varazze, significava! "dom da presteza", já previa desenlace rápido. Luini sorriu ao recordar! como Leonardo o batizou de Navus, o diligente. Sua letra e o ômega de Tadeu formavam já uma sílaba legível, "N-O". Ao acrescentar o "C" a Simão, por Confector {o que leva adiante), o panorama resultante lhe pareceu promissor: quatro grupos de três letras, com uma vogal sempre ao centro, e um enorme "A" presidindo a cena, deixavam-se ler como se fossem uma estranha e esquecida fórmula mágica.MUT NEM A LOS NOC 

Bartolomeu Mirabilis – O ProdigiosoTiago Menor Vénustus – O cheio de graçaAndré Temperatur – O que previneJudas Iscariotes Nefandus – O abominávelPedro Exosus – O que odeia João Mysticus – O que conhece o mistérioTomé Litator – O que aplaca os deusesTiago Maior Oboediens – O que obedeceFilipe Sapiens – O amjante das coisas elevadas

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Mateus Navus – O diligenteTadeu Occultator – O que ocultaSimão Confector - O que leva adiante 

- E agora o quê? - Elena encolheu os ombros. - Significa algo?Os dois homens repassaram de novo a frase sem encontrar outro sentido que uma sucessão de monossílabos pronunciáveis com aspecto de velha litania. Tampouco os surpreendeu. Era próprio do mestre que uma adivinhação conduzisse a outra maior. Leonardo se divertia desenhando essa espécie de passatempo.- Mut, Nem, A, Los, Noc...Alguns metros acima de suas cabeças aqueles sons percorreram a garganta do Augure. Murmurou-os várias vezes antes de abandonar eufórico seu observatório clandestino. "Que zombaria astuta", pensou.E, satisfeito, conjeturou como faria chegar seu achado a Roma.

Roma, dias mais tarde. Devemos nos apressar. Logo serão doze horas. Giovanni Annio de Viterbo jamais abandonava seu palacete da margem oeste do Tiber sem seu coche e o fiel secretário Guglielmo Ponte. Era mais um dos privilégios que a doninha merecera de Sua Santidade Alexandre VI. No entanto, tamanha ostentação lhe nublava a razão. Annio de Viterbo era incapaz de suspeitar que o jovem Guglielmo, além de culto e refinado, era sobrinho do padre Torriani. E muito menos que eram seus olhos que iluminavam a Betânia sobre as atividades de um dos personagens mais ambíguos e embusteiros em séculos.- Às doze! - repetiu. - Você me ouviu? Às doze!- Não se preocupe - respondeu Guglielmo, cortês. - Chegaremos a tempo. Seu cocheiro é muito rápido.Nunca vira a doninha tão nervosa. A pressa era coisa rara em alguém como ele. Desde que se estabelecera nas imediações da mansão dos Borgia, por expresso desejo de Sua Santidade, Annio circulava em Roma como se a cidade fosse sua. Não devia explicações a ninguém. Suas horas de entrada e saída não feriam qualquer protocolo; tudo o que ele fazia era considerado bom. As más línguas diziam que suas prerrogativas foram ganhas graças à

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ânsia do pontífice de ilustrar sua antiquíssima, nobilíssima e diviníssima estirpe familiar com histórias que justificassem sua grandeza. E era certo que Annio sabia inventar como nenhum outro. Do papa valenciano chegou a inventar coisas incríveis. Descobriu que era descendente do deus Osíris que visitou a Itália na noite dos tempos para ensinar aos habitantes a cultivar suas terras, a fabricar cerveja e até a podar as árvores. Sempre apoiava suas mentiras em textos clássicos, e amiúde recitava passagens inteiras de Diodoro de Sicília para justificar sua estranha obsessão pela mitologia dos faraós.Nem Betânia nem o Santo Ofício jamais puderam conter tais fantasias. O papa adorava aquele charlatão. Partilhava até seu ódio visceral contra o esplendor das cultas cortes de Florença ou Milão, em cujas bibliotecas a doninha via séria ameaça às suas idéias despropositadas. Sabia que as traduções de Marsilio Ficino de textos atribuídos ao grande deus egípcio Hermes Trismegisto, também conhecido como Tot, o deus da Sabedoria, jogavam por terra a maior parte de suas invenções. Nem falavam da visita de Osíris à Itália, nem vinculavam os montes Apeninos a Ápis, nem a cidade de Osiricella a uma remotíssima visita desse deus aos arredores de Treviso.Até aquele dia Guglielmo imaginava que só a recordação de Ficino era capaz de tirar o mestre Annio de seu juízo. Mas era evidente que estava enganado.- Você viu a decoração dos apartamentos do papa?Guglielmo negou com a cabeça. Estava há tempo absorto no repique dos cascos dos cavalos nos paralelepípedos, tentando imaginar aonde a doninha ia com tanta pressa.- Vou mostrá-la a você - disse entusiasmado. - Hoje, Guglielmo, você conhecerá o grande artífice dessas pinturas.- Deveras?- Acaso menti para você alguma vez? Se você visse as cenas de que estou falando, entenderia como são importantes. Mostram o deus Ápis, o touro sagrado dos egípcios, como o ícone profético dos tempos que vivemos. Ou você não percebeu que no escudo de nosso papa também há um boi?- Um touro.- Qual a diferença? O importante é o símbolo, Guglielmo! Junto com Ápis também está representada a deusa Ísis. É solene como a rainha católica da

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Espanha, e aparece sentada em seu trono celeste com um livro aberto no colo, ensinando a Hermes e a Moisés as leis e as ciências.Pode imaginar?Guglielmo fechou os olhos, como se se concentrasse nas palavras de seu mestre.- O que dizem esses afrescos, caro, é que Moisés recebeu do Egito uma mensagem estranha que agora nos propomos decifrar. Uma carta recebida de Milão nos resolveu o mistério.Torriani entoou aquela sentença diante do papa e da doninha. Ninguém entendeu uma palavra. No entanto, para Nanni, a oração escondida no Cenacolo era indiscutivelmente egípcia.- Mut-nem-a-los-noc - sussurrou.Acaso não era clara sua origem? Não citava porventura a deusa Mut, mulher de Amon, rainha de Tebas? Não era providencial que Olivério Jacarandá, autêntico especialista em hieróglifos, chegasse quase ao mesmo tempo que aquela mensagem? Acaso não o mandara o próprio Deus para ajudá-lo a resolver aquela adivinhação e ganhar assim o respeito eterno do papa?Sim. A providência, pensou, estava de seu lado.

Diante das cavalariças do El Gigante Verde, Jacarandá beijou o anel de Annio e o convidou a entrar no estabelecimento. Falaram do velho tesouro e do hieróglifo.Guiado até o ventre da pousada, a doninha sentou-se num dos pequenos reservados. Foi uma sorte inesperada para Betânia que Guglielmo tivesse acesso ao que se falou ali dentro.- Meu caro Nanni - disse o espanhol, já acomodado em seu assento enquanto era servida uma generosa jarra de cerveja. - Espero não tê-lo assustado com esta repentina visita.- Pelo contrário. Sabe que sempre as aguardo com impaciência. Lástima que não faça mais por esta corte, onde é tanto valorizado.- É melhor assim.- Melhor?Olivério decidiu eliminar os rodeios:- Desta vez trago notícias que não o agradarão - disse.

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- Sua visita já me agrada. Que mais posso pedir?- O velho tesouro, naturalmente.- E então?- Resiste a cair em minhas mãos.Annio forçou a expressão do rosto. Sabia que conseguir aquele tesouro não ia ser fácil. No final das contas, seu tesouro chegara à Itália há mais de cem anos e circulara de mão em mão, desaparecendo nos momentos mais inesperados. Não era jóia, nem relíquia venerável, nem algo que satisfizesse os custosos gostos de um rei. O tesouro era um livro. Um velho tratado oriental, encadernado em marroquim e atado com tiras de couro, com que esperava encontrar a verdade sobre a ressurreição do Messias e seu vínculo com a poderosa e ancestral magia egípcia. E Leonardo era, ao que ambos sabiam, seu último possuidor. E a melhor prova estava na misteriosa frase que o padre Torriani encontrara no Cenacolo. Uma invocação egípcia que não poderia proceder de outra fonte.- Você me decepciona, Olivério - bufou a doninha. - Se não o traz consigo, para que me chamou?- Vou explicar: o senhor não é o único que ambiciona esse tesouro, mestre Annio. A princesa d'Este o desejou antes de perder a vida.- Isso é água passada! - protestou. - Sei que a muito ingênua recorreu a você, mas agora está morta. O que o impede, então?- Há alguém mais, mestre.- Outro competidor? - a doninha se inflamou. O mercador parecia amedrontado. - O que deseja, Jacarandá? Mais dinheiro? É isso? Ofereceu-lhe mais dinheiro e você vem aumentar seus honorários?O espanhol sacudiu a cabeça. Seu rosto redondo e os olhos arroxeados exprimiam uma gravidade raramente vista nele.- Não. Não se trata de dinheiro.- Então o quê?- Necessito saber quem estou enfrentando. Aquele que busca o seu tesouro está disposto a matar para consegui-lo.- A matar, está dizendo?- Há quase dez dias acabou com a vida de um de meus intermediários: o bibliotecário do mosteiro de Santa Maria delle Grazie. Sabe mais?

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O mui bastardo continuou eliminando todos os que mostraram interesse por sua obra. Por isso vim vê-lo: para que me esclareça quem estou enfrentando.- Um assassino... - a doninha fez um movimento violento com o corpo.* Javier Sierra levou anos investigando esta peculiar conexão entre as ressurreições de Jesus e Osíris. Parte de seus achados foram expostos em seu romance anterior, O segredo egípcio de Napoleão. (N. do editor espanhol.)

- Não é um criminoso qualquer. É um homem que assina seus crimes; zomba de nós. Na igreja de São Francisco acabou com a vida de vários peregrinos e sempre deixou com o cadáver um baralho de taro Visconti-Sforza a que faltava uma única carta.- Uma carta?- A sacerdotisa. Entende agora?Annio emudeceu.- É assim, Nanni. O mesmo naipe que tanto donna Beatrice como o senhor me entregaram para chegar até seu tesouro.Olivério bebeu um novo trago de sua cerveja, que desceu veloz pela garganta, umedecendo-a. Logo prosseguiu:- Sabe o que penso? Que o assassino conhece nosso interesse pelo livro da sacerdotisa. Creio que a escolha dessa carta não é casual. Conhece-nos e nos eliminará também se atravessarmos seu caminho.- Está bem, está bem - a doninha parecia perturbada. - Diga-me, Olivério, esses peregrinos assassinados em São Francisco também buscavam meu tesouro?- Fiz algumas averiguações com a polícia do Mouro e posso garantir que não eram peregrinos comuns.- Ah, não?- O último foi identificado como o irmão Giulio, um antigo albigense perfeito. Soube antes de viajar para encontrá-lo. A polícia de Milão está desconcertada. Ao que parece, esse Giulio foi reabilitado pelo Santo Ofício há alguns anos, depois de dirigir uma importante comunidade de perfeitos em Concorezzo.- Concorezzo? Está seguro?Jacarandá assentiu.

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O antiquário não percebeu o calafrio que percorreu a coluna dorsal do velho mestre. O mercador ignorava que aquela aldeia situada nos arredores de Milão, a nordeste da capital, fora um dos principais redutos albigenses da Lombardia e o local em que, segundo todas as fontes, guardara-se durante mais de duzentos anos o livro que Annio ambicionava. Tudo se encaixava: as suspeitas de Torriani sobre a filiação albigense de Leonardo, os perfeitos assassinados em Milão, a frase egípcia no Cenacolo. Se não se enganava, a origem de tudo tinha de ser procurada naquele tesouro: um texto de enorme valor teológico e mágico prenhe de referências ocultas aos ensinamentos que Cristo entregou a Madalena depois da ressurreição. Um legado que evidenciava a impressionante simetria entre Jesus e Osíris, que ressuscitou graças à magia de sua consorte Ísis, a única que esteve perto dele no momento de seu retorno à vida.O Santo Ofício investiu decênios investigando semelhante tratado. O máximo que pôde determinar foi que uma cópia, talvez até a única existente, saiu de Concorezzo e acabou nas mãos de Cosme, o Velho, durante o Concílio de Florença em 1439. E jamais regressou. De fato, só uma oportuna indiscrição de Isabella d'Este, a irmã de donna Beatrice, durante as comemorações de coroação do papa Alexandre em 1492, a fez saber que o livro estivera em Florença em poder de Marsilio Ficino, tradutor oficial dos Médicis, e que ele o deu de presente a Leonardo da Vinci pouco antes de partir para Milão. Não era, pois, improvável que os concorezzanos soubessem também dessas notícias e quisessem recuperar seu livro.- Diga-me então, padre Annio - perguntou Jacarandá, tirando o prelado de suas reflexões -, por que não me explica o que torna esse livro tão perigoso?Annio viu o desespero impresso nas rugas de seu velho amigo e compreendeu que não tinha escolha.- É uma obra extraordinária - disse por fim. - Recolhe o diálogo mantido por João e Cristo no céu sobre a origem do mundo, a queda dos anjos, a criação do homem e os caminhos dos mortais para conseguir a salvação de nossa alma. Foi escrito logo depois da última visão do discípulo amado antes de morrer. Dizem que é uma narrativa lúcida, intensa, que mostra detalhes da vida além da Terra e a ordem da criação a que nenhum outro mortal teve.

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- E por que acredita que um livro assim interessou Leonardo? Esse homem é pouco amigo da teologia...A doninha levantou o dedo indicador para calar Jacarandá:- O verdadeiro título do "livro azul", caro Olivério, dirá tudo. Só precisa me escutar. Há trezentos anos, Anselmo de Alexandria o revelou em seus escritos: chamou-o Interrogado Johannis ou A Ceia Secreta. E pelo que sabemos, Leonardo utilizou os mistérios contidos nas primeiras páginas para ilustrar a parede do refeitório dos dominicanos. Nem mais nem menos.- E esse é o livro que aparece na carta da sacerdotisa?Nanni concordou.- E seu segredo foi sintetizado por Leonardo numa única frase que desejo que me traduza.- Uma frase?- Em egípcio antigo. Diz: Mut-nem-a-los-noc. Conhece-a?Olivério sacudiu a cabeça.- Não. Mas traduzirei para você. Fique tranqüilo. De manhã à noite. Assim foram os interrogatórios do vigésimo segundo dia de janeiro.Lembro-me de que o prior Bandello, frei Benedetto e eu nos entrevistamos com os frades de Santa Maria delle Grazie um por um, esforçando-nos por encontrar em suas palavras pistas que resolvessem nossas adivinhações. Vivemos momentos surpreendentes. Todos tinham algo a confessar. Tremendo, suplicavam a absolvição de suas faltas e juravam que jamais voltariam a duvidar da natureza divina de Cristo. Pobrezinhos. Quase todas as revelações eram fruto de paupérrima educação teológica: confundiam fatos não-substanciais com pecados gravíssimos, e vice-versa. No entanto, foi assim, pouco a pouco, à força de pacientes interrogatórios, que os frades Alessandro e Giberto foram se alinhando como a ponta de lança de uma peculiar tentativa de controlar, por dentro, o local onde ia descansar o Cenacolo. Os quatro religiosos que apareceram como os mais implicados nos confessaram, em separado, a poderosa razão que os movia: aquela gigantesca obra do toscano encerrava o que definiram como "imagem talismânica". Isto é: um traçado geométrico sutil, desenhado para seduzir as mentes

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desprevenidas e gravar em sua memória uma informação que, por desgraça, nenhum deles podia precisar com palavras. "É a terceira revelação de Deus", atreveu-se a dizer um deles.Aquilo me chamou a atenção.Nossos quatro hereges procediam de pequenos povoados do norte de Milão, da região dos lagos e ainda mais acima, que se uniram aos dominicanos pouco depois da fundação do novo convento. Fizeram-no quando conheceram as intenções do Mouro de convertê-lo em seu mausoléu de família. É que, à diferença do resto, eram homens de boa formação, admiradores da célebre máxima de São Bernardo que diz "Deus é comprimento, largura, altura e profundidade". Conheciam Pitágoras, leram Platão e o estimavam mais do que Aristóteles, o inspirador de nosso sistema teológico. Logo se destacou entre eles frei Guglielmo Arno, o cozinheiro. Não só foi o único a se negar a confessar seus pecados diante de nosso tribunal, mas também nos tratou com desdém por militar na "Igreja falsa".O pouco que até então sabia dele era a grande amizade que o unia a Leonardo. Frei Alessandro foi o primeiro a me falar dele. Ambos eram tentados pelos mesmos prazeres: depreciavam entre risadinhas as comidas excessivas do Mouro, opondo à carne assada os brotos de couve, ameixas, rodelas de cenoura crua ou os pastéis fermentados. Soube também que Guglielmo e ele alcançaram seu momento de glória no Natal de 1495, quando inventaram um biscoito com o formato da cúpula projetada por Bramante para Santa Maria e o apresentaram no banquete ducal de 25 de dezembro. Foi um sucesso tal que até donna Beatrice implorou que revelassem o segredo da massa para fazê-la crescer daquela maneira. Frei Guglielmo fez caso omisso. A duquesa insistiu. E muitos se lembram ainda do grosseiro atrevimento do frade, que lhe valeu cinco semanas de prisão em sua própria cozinha e uma severa admoestação da casa Sforza.Frei Guglielmo nada mudou desde então. Seu temperamento excessivo e o encontro conosco demonstravam que preferia antes morrer do que se retratar de seus atos. Bandello ordenou que o encerrassem, enquanto murmurava entredentes o que pensava de seu cozinheiro:- É incapaz de controlar seu mau gênio - disse. - Não tem remédio.

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Quando posou de Tiago Maior para o Cenacolo até Leonardo era incapaz de controlá-lo.Sacudi a cabeça incrédulo.- Oh! - exclamou. - Também não lhe disse? Talvez a cabeleira comprida do apóstolo o distraiu, padre Leyre, mas se olhar bem para os traços do cozinheiro o reconhecerá. Eu o autorizei a posar para Leonardo. Ele   pediu que lhe indicasse um varão temperamental que gesticulasse como Tiago Maior na mesa, e pensei nele.- E por que queria o mestre incluir alguém assim entre os Doze?- Perguntei isso mesmo ao mestre, e sabe o que me respondeu? "Geometria", disse. "Tudo é geometria!" Explicou-me que media a beleza igualando a distância entre os mamilos com a que separa o peito do umbigo, e por sua vez entre o umbigo e as pernas. Quanto à ira, garantiu que era capaz de representá-la só esboçando um olhar. Quando voltar ao Cenacolo, contemple o olhar de Tiago. Evita o rosto de Cristo, baixando-o com horror até a mesa, como se ali descobrisse algo terrível.- Que um de seus companheiros vai trair o Messias - eu disse.- Não! - O caolho rompeu seu silêncio, como se eu tivesse dito algo inadequado. - Isso é o que quis nos fazer crer. Acaso nossos frades não lhe disseram que estamos diante de um talismã? Numa peça assim os símbolos, ou a ausência deles, são fundamentais para seu funcionamento. E neste caso, o que Tiago Maior olha horrorizado é o gesto de Judas Iscariotes e Jesus competindo para conseguir o mesmo pedaço de pão...Ou talvez a ausência do cálice de Cristo. O Graal.Sua observação era oportuna.- E pense em algo mais: Tiago Maior, o irascível, está no lado do Cenacolo em que a luz é mais brilhante. Está junto dos justos.Frei Benedetto nos explicou como assistiu a algumas palestras do mestre sobre distribuição do espaço e da luz, no claustro do hospital. Seus discursos eram ao mesmo tempo estranhos e embriagadores. Ensinava como a matéria inerte, distribuída de modo harmonioso, poderia ganhar vida própria. Amiúde comparava esse prodígio com o que ocorria com as notas de uma partitura: escritas sobre papel não eram mais do que uma sucessão de rabiscos estáticos sem outro valor que o ideográfico. No entanto, depuradas pela mente de um

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músico e transferidas para seus dedos ou pulmões, seus riscos vibravam, enchiam o ar de sensações novas e até alteravam nosso ânimo. Pode existir algo mais vivo do que a música? Para Leonardo, não.O magisterpictorum via sua obra de modo semelhante. Na aparência eram natureza morta, pouco mais do que estuques ou madeiras cobertas de pigmentos e cola. No entanto, interpretadas por um observador iniciado ganhavam força desmedida.- E como acredita que Leonardo possa dar vida a algo que não tem? - perguntei.- Mediante magia astral. Creio que já sabe que esse herege, Leonardo, estudou os textos de Ficino, não é verdade?A pergunta de frei Benedetto soou à armadilha. O caolho devia conhecer minhas suspeitas graças ao padre Bandello e assim, prudente, inclinei a cabeça em sinal de aprovação.- Pois bem - continuou. - Ficino traduziu do grego antigo o Asdepios, uma obra atribuída a Hermes Trismegisto, em que se ensinava como os sacerdotes dos faraós davam vida às estátuas de seus templos.- Deveras?- Dominavam o spiritus., uma ciência obscura mediante a qual desenhavam sobre as imagens signos cósmicos que as conectavam às estrelas. Signos astrológicos, para nos entendermos. E o mestre aplicou essas técnicas no Cenacolo. O prior e eu nos olhamos perturbados.- Não enxergam, irmãos? Doze apóstolos, doze signos do zodíaco.Cada discípulo corresponde a uma constelação, e Jesus, no centro, encarna o ideal de Sol. É uma pintura talismânica!- Acalme-se, padre Benedetto. Isso não passa de suposição...- Nada disso! Olhe bem o Cenacolo, porque ser um mural vivo não é sua pior característica. Visto a partir de nosso conhecimento das idéias albigenses, este mural recolhe com perfeição a mais profunda das teses dos hereges. É uma espécie de "Bíblia negra". E em nosso refeitório!- A que idéia se refere, Benedetto? - interpelei-o.

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* O estudo mais recente e profundo sobre a equivalência entre os signos do zodíaco e as figuras dos doze apóstolos é de Nicola Sementovsky-Kurilo. Ele assegura que os discípulos do Cenacolo estão distribuídos em quatro grupos de três para representar os quatro elementos da Natureza, e até atribui a cada um deles um signo zodiacal específico. Assim, a Simão - que está no extremo direito da mesa - corresponde o primeiro signo zodiacal, Áries. A Tadeu, Touro. A Mateus, Gêmeos. O signo de Câncer é para Filipe, Leão para Tiago Maior, Virgem para Tomé. E a balança da Libra para João, o que, para Sementovsky, tem uma leitura simbólica importante, ao considerar o jovem João o elemento estabilizador da futura Igreja. O restante dos signos são Escorpião para Judas Iscariotes, Sagitário para Pedro, Capricórnio para André, Aquário para Tiago Menor e Peixes para Bartolomeu. - Ao dualismo, padre. Se o entendi bem esta manhã, todo o sistema de crenças dos bonhommes se baseia na existência de um combate permanente entre um Deus bom e um mau.- É assim.- Então, quando retornar ao refeitório, olhe se a luta entre o bem e o mal está ou não retratada no Cenacolo. Cristo figura no centro, como o fiel de uma balança a meio caminho entre o mundo do espírito e o da carne. À sua direita - que é nossa esquerda - está a zona de sombra, do mal. Vá e olhe a parede de sua esquerda: está escurecida, sem luz. Não é por acaso que nesse lado se encontre Judas Iscariotes, mas também Pedro com a adaga. Com a arma que, segundo o senhor, confere-lhe um caráter satânico.O ancião mal-humorado respirou fundo antes de arrematar o discurso:- Ao contrário - acrescentou -, no lado oposto estão aqueles que Leonardo considera a luz. É a zona iluminada da mesa, e nela não só se retratou a si mesmo mas também Platão, o antigo inspirador de muitas das doutrinas heréticas dos albigenses.De repente me lembrei de algo:- E também os irmãos Guglielmo e Giberto, os dois albigenses confessos - acrescentei. - Ou não foi você quem me disse que Giberto posou para o perfil do apóstolo Filipe?O caolho concordou.

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- Certamente - argumentei, recordando a disposição geométrica dos apóstolos -, também você está ali. Dando vida a São Tomé.Benedetto resmungou alguma coisa, incomodado, e protestou com energia depois.- Deixemos de histórias. É bom que nos esforcemos para interpretar o mural de Leonardo, mas o que de fato deveria importar é decidir o que vamos fazer com ele. Direi uma única vez, irmãos: ou cortamos pela raiz este assunto e emparedamos essa pintura ou o conteúdo dele será um farol para os hereges que só nos trará problemas.Não o entendo. Ficará aí parado, esperando que o condenem? O espanto de Bernardino Luini em absoluto não comoveu o mestre Leonardo. Estava há tempo a céu descoberto, concentrado no desenvolvimento de sua próxima máquina, e mal prestara atenção ao regresso de seus discípulos. Para quê? No fundo alimentava pouca esperança de que Elena, Marco e Luini regressassem do Cenacolo iluminados pela sabedoria que tão cuidadosamente imprimira ao local. O mestre estava cansado de esperar. Aborrecia-o contemplar aquele ir e vir de seguidores incapazes de entender sua maneira particular de elaborar sua arte.Além disso, como de costume, seus pupilos só traziam notícias desoladoras do convento. Diziam que Santa Maria estava em pé de guerra. Que o padre Bandello decidira interrogar os frades em busca de hereges e ordenara o isolamento de seu caro frei Guglielmo, o cozinheiro, acusando-o de conspiração contra a Igreja.O mestre escutou aquelas explicações com pesar, sem saber o que dizer.- Tampouco entendo o senhor, mestre - interveio d'Oggiono. - Acaso fica satisfeito com o que acontece? Não teme pela sorte de seu amigo? Está ficando tão insensível, meser?Leonardo levantou o olhar azul da caixa de ferramentas, fixando-se em seu caro Marco:- Frei Guglielmo agüentará - disse por fim. - Ninguém poderá romper o círculo que ele representa.- Deixe de alegorias! Não vê o perigo? Não se dá conta de que em breve virão pelo senhor?

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- Do único que me dou conta, Marco, é que vocês não me escutam... - respondeu com secura. - Ninguém me escuta.- Um momento! - a jovem Elena, que até então permanecera calada atrás de Luini e d'Oggiono, deu um passo à frente, interpondo-se entre os três homens. - Já sei o que deseja nos ensinar, mestre! Agora entendo.Tudo está no Cenacolo. As espessas sobrancelhas de Leonardo se arquearam diante daquela inesperada reação. A condessinha prosseguiu:- O senhor usou frei Guglielmo para representar Tiago Maior. Disso não há dúvida. E no Cenacolo ele encarna a letra "O". O ômega. Igual ao senhor.Luini encolheu os ombros, olhando o mestre com rubor. Afinal de contas, fora ele quem desenhara aquilo para a rapariguinha dos Crivelli.- Isso só pode querer dizer uma coisa - acrescentou. - Frei Guglielmo e o senhor são os únicos que estão de posse do segredo que querem que encontremos. E também que está tão seguro de sua discrição como ele da sua. Enfim, representam o mesmo plano.- Admirável - aplaudiu Leonardo. - Vejo que você é tão esperta como sua mãe. E sabe também por que escolhi a letra "O"?- Sim... Creio que sim - titubeou.- Porque o ômega é o fim, ao contrário de alfa, que é o princípio - disse. - Desse modo situou-os no extremo final de um projeto que começou com Cristo, que é o único "A" do mural.- Admirável - repetiu o mestre. - Admirável.- Claro! Frei Guglielmo e o senhor são aqueles que vão nos revelar a Igreja de João! - pulou Luini. - Esse é o segredo!O sábio se inclinou de novo sobre a estranha máquina que acabara de desenhar, negando com a cabeça.- Há mais, Bernardino. Há mais.O que Leonardo tinha diante de si era um tremendo mecanismo artificioso. Concentrara-se nele depois de fracassar em seu intento de automatizar a cozinha da fortaleza dos Sforza. Seus espetos automáticos, a máquina de picar carne, aqueles enormes foles que avivavam uma onda gigantesca de água fervendo e a cortadora de pão acionada por ar, causaram vários ferimentos e resultaram ineficazes para satisfazer os bárbaros gostos gastronômicos do Mouro. Mas sua nova máquina ia ser diferente. Se tudo corresse bem, o duque

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não voltaria a zombar de sua colheitadeira gigante de rabanetes e a proporia como sua futura arma de guerra contra os franceses. Era certo que seu primeiro ensaio na herdade de Porta Vercellina custara três vítimas, mas depois de alguns ajustes oportunos a máquina deixaria de ser letal.- Mestre... - protestou Luino diante da dispersão do toscano. - Demos um passo enorme na compreensão do seu Cemcolo, e o senhor não parece se interessar por isso, em absoluto. Não percebe que chegou a hora de transmitir o seu segredo? A Inquisição está fechando o cerco em torno do senhor. Talvez amanhã queira detê-lo e interrogá-lo. Se o detiverem, todo o seu projeto se perderá.- Escutei-os, Bernardino. E com atenção - disse sem desviar o olhar do engenho. - E ainda que dê valor ao fato de que encontraram as letras ocultas no Cenacolo, também vejo que não são capazes de interpretá-las. E se vocês, que sabem onde procurar, parecem crianças que não aprenderam a ler, mais estarão perdidos esses frades que dizem que me perseguem.- Um livro. A chave está ali, não é verdade mestre? É num livro que o senhor aprendeu tudo.O novo comentário de Luini soou a desafio.- O que quer dizer com isso?- Vamos, meser. O tempo das adivinhações passou. E o senhor sabe.Vi no Cenacolo o rosto de seu velho amigo Ficino, o tradutor. Não foi com ele que o senhor concordou que um retrato assim assinalaria a chegada da Igreja de João? Ele não lhe entregou um livro destinado a ser a nova Bíblia dessa Igreja?Leonardo deixou cair as ferramentas junto à colheitadeira de rabanetes, levantando uma poeirada no jardim.- E o que sabe você disso! - protestou.- O que o senhor me ensinou: que desde os tempos de Jesus duas igrejas lutam pelo controle de nossas almas. Uma, a de Pedro, foi pensada como Igreja temporal. Útil para ensinar aos homens o caminho do despertar da consciência, mas é só a precursora de outra construção mais gloriosa que alimentará nosso espírito quando estivermos abertos para recebê-la. Pedro é a Igreja do passado, a que aplainou o caminho à que há de vir: a Igreja de João. A sua.

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O toscano quis intervir, mas seu antigo discípulo ainda não terminara de falar:- Esse homem que o senhor pintou como Mateus no Cenacolo-, chamado Ficino, confiou-lhe um livro com textos de João, para que o estudasse. Lembro-me bem. Eu estava presente no dia em que o entregou. Eu era, então, criança. E se agora o senhor o retrata, até para oferecer outros, como nós, o acesso à sua obra, é porque acredita que chegou c momento da mudança de guarda, não é verdade? Isso é o que significa o Cenacolo. Admita-o. O anúncio da nova Igreja.Marco e Elena sequer se atreveram a pestanejar. Leonardo pediu silêncio a Luini com um gesto que usava amiúde: apontar para o céu com o indicador levantado, como se pedisse autorização a Deus para falar.- Meu caro Bernardino - disse, tentando controlar o mau gênio que se desencadeava no interior. - É certo que Ficino me fez depositário de uns textos valiosíssimos logo antes que eu me mudasse para Milão. E também são exatas suas apreciações sobre as duas igrejas. Nada disse negarei. Há anos pinto João Batista em meus quadros, esperando a chegada de um momento como este. E creio que de fato já chegou.- O que o faz acreditar, mestre?- O quê? - respondeu a Elena, muito mais tranqüilo. - Não vê em todo o mundo? O papa conduziu a Igreja temporal a um grau de depravação difícil de igualar. Seus próprios clérigos, como esse Savonarola voltaram-se contra ele. Chegou o momento de que a Igreja do espírito do Batista, substitua a de Pedro e nos conduza à salvação verdadeira.- Mas o Batista não está no Cenacolo, mestre.- Batista, não. - Sorriu a Marco d'Oggiono, sempre atento aos pequenos detalhes. - Mas João sim.- Não entendo...- Quase tudo está nas Escrituras. Relendo os Evangelhos com atenção verá que Jesus não começou sua vida pública até que o Batista o banhou nas águas do Jordão. Os quatro evangelistas necessitaram justificar a missão de Jesus se referindo a ele como parte de sua preparação como Messias. Por isso sempre o pinto com o dedo erguido para o céu, é minha maneira de dizer que ele, o Batista, chegou primeiro.- Então por que adoramos Jesus e não João?

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- Tudo era parte de um plano cuidadosamente elaborado. João foi incapaz de transmitir àquele punhado de homens toscos e incultos seus ensinamentos espirituais. Como fazer pescadores entenderem que Deus está dentro de nós e não num templo? Jesus o ajudaria a doutrinar esses selvagens. Conceberam uma Igreja temporal imitada da judaica, e outra espiritual, secreta, como jamais se vira na Terra. E esses ensinamentos foram confiados a uma mulher inteligente, Maria Madalena, e a um jovem sagaz a quem também chamavam João... E esse João, caro Marco, está no Cenacolo.- E Madalena também!O toscano não pôde ocultar sua admiração por aquela jovem impetuosa. Luini, ruborizado, viu-se forçado a esclarecer sua reação: foi ele quem lhe ensinara que ali onde estava pintado um nó grande e visível se encontraria uma obra vinculada a Madalena. A última ceia tinha o nó.- Deixem-me explicar algo mais - acrescentou o mestre, já um tanto cansado. - João é mais do que um nome. Assim foram conhecidos em seu tempo tanto o Batista como o Evangelista. João, de fato, é um título.Trata-se do nome/mysticum atribuído a todos os depositários da Igreja espiritual. Como a papisa Joana, a das cartas dos Visconti.- A papisa Joana? Não era um mito? Uma fábula para ingênuos?- E que fábula não esconde fatos reais, Bernardino?- Então...- Você precisa saber que o homem que desenhou essas cartas foi Bonifácio Bembo, de Cremona. Um perfeito. Ele, vendo perigar o destino de nossos irmãos, decidiu esconder nesse maço de cartas para os Visconti alguns símbolos fundamentais de nossa fé. Como a crença de que somos descendência mística de Jesus Cristo. E que melhor símbolo dessa certeza do que pintar uma papisa grávida, segurando na mão a cruz do Batista, indicando a quem souber ler que da velha Igreja nascerá logo a nova? Essa carta - acrescentou o mestre em tom reverente - é a profecia exata do que está por acontecer... Não atino a razão pela qual o padre Bandello decidiu me enviar para semelhante missão. Se tivesse o dom da profecia e visse o que estava prestes a acontecer comigo é certo que me teria retido ao seu lado. Mas o destino é

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imprevisível, e Deus, naquele dia de janeiro, lançou os dados de meu devir fiel ao seu insondável proceder.No início, confesso, deu-me asco.Desenterrar, junto com Benedetto o caolho, Mauro o coveiro e frei Jorge, o embrulho funerário do padre Trivulzio, revolveu-me as entranhas. Há mais de cinqüenta anos o Santo Ofício não exumava cadáver de réu para fazer a queima, e, embora tivesse rogado ao prior que deixasse os mortos em paz, não pude evitar que frei Alessandro voltasse a ver a luz do dia. O cadáver, saponáceo e pálido, desprendia um fedor insuportável. Por mais que meus companheiros e eu tomássemos a precaução de envolvê-lo em novo sudário e o atássemos como uma salsicha, o mau cheiro não deixou de nos acompanhar durante toda a viagem. Por sorte nem tudo era desagradável. Chamou-me a atenção que embora não se pudesse respirar perto do corpo de frei Alessandro, não acontecia a mesma coisa com o do sacristão. Frei Giberto não cheirava a nada. A nada em absoluto. O coveiro atribuiu o fenômeno a que o fogo que o consumiu na praça do Comércio acabou com suas partes corruptíveis, conferindo-lhe esse estranho dom. Mas o caolho defendeu com veemência outra teoria. Para ele, o fato de permanecer a céu aberto num pátio do hospital da ordem, suportando temperatura de vários graus abaixo de zero, evaporara os piores eflúvios do sacristão. Nunca soube em qual dos dois acreditar.- Com os animais acontece o mesmo - o caolho tentou me convencer. - Ou fede a algo o corpo de um cavalo abandonado num caminho coberto de neve?Chegamos à planície de Santo Estêvão sem concluir nossa discussão e quando faltava apenas uma hora e meia para as vésperas. Atravessamos o controle militar da Porta delia Corte Arcivescovado e deixamos para trás a sede do Capitano di Giustizia sem dar muitas explicações à guarda. A polícia sabia de nossa desventura e concordava em que levássemos os hereges para longe da cidade. A carroça que conduzíamos, carregada de utensílios agrícolas e cordas, passou em todas as vistorias. E assim chegamos a Santo Estêvão, uma clareira em meio ao bosque, solitária e silenciosa, com solo de rocha firme, na qual não nos seria difícil empilhar os fardos de lenha que transportamos e prender com eles nossos defuntos.Jorge, solícito, dirigiu os trabalhos.

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Foi ele quem organizou a montanha de troncos que os reduziria a cinzas, e quem nos ensinou a melhor maneira de erguer uma pira sólida e calorífera. Para alguém como eu, que presenciara tantos autos-de-fé sem sequer levantar um pedaço de madeira, aquela foi uma sensação nova. Jorge nos mostrou como colocá-los seguindo uma ordem inversa ao seu tamanho. Vira muitas vezes como se fazia. Foi ele que nos ensinou que a madeira mais fina devia ser posta na base, para que ao arder enredasse com eficácia as peças mais grossas. Uma vez terminada a tarefa, nos obrigou a estender uma grande corda ao redor da montanha, firmá-la e levantar com uma das extremidades restantes os corpos de nossos irmãos até o cume. Cumpriríamos assim as ordens de nosso prior e regressaríamos antes que a noite se fechasse e os soldados do Mouro trancassem as portas de entrada do burgo.- Sabe qual é a melhor parte deste trabalho? - ofegou frei Benedetto, ao terminar de colocar o corpo de Giberto no cimo dos troncos. O caolho se encarapitara ao lado do coveiro até o alto para assim puxar com força o fardo de frei Alessandro e depositá-lo em seu lugar.- E tem algo bom?- O bom, irmão Mauro - ouvi frei Benedetto grunhir -, é que, com um pouco de sorte, as cinzas destes desgraçados cairão sobre os albigenses que se escondem nestas montanhas.- Albigenses aqui? - protestou. - Você os vê em todos os lugares, irmão.- E além disso você supõe que eles são muito perspicazes - inter-   vim, do chão, enquanto ajustava a corda ao redor de frei Alessandro. -Você acredita que são capazes de distinguir essas cinzas das de suas próprias fogueiras? Permita-me duvidar.O caolho não respondeu. Esperei que a corda se retesasse e começasse a içar o bibliotecário, mas tampouco adverti nada. Mauro Sforza não aproveitou a ocasião para arrematar os sempre amargos comentários do assistente do prior, e um incômodo e prolongado silêncio se instalou de repente na clareira.Surpreso, dei um passo atrás para ver o que acontecia no alto. Frei Benedetto estava imóvel como uma estátua de sal, o rosto voltado para trás e o olhar perdido em algum ponto do limite do bosque; soltara a corda. Mauro não podia vê-lo; o máximo que consegui discernir foi o ligeiro tremor de sua barbicha branca. Sorvia o ar com angústia, como faria um desses místicos

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diante de suas visões em êxtase do céu. Não pestanejava, nem parecia capaz de articular qualquer movimento. Logo compreendi: o caolho, paralisado por alguma impressão, parecia querer me apontar algo com a barbicha, alçando-a em espasmos irregulares e dando pequenos golpes no ar com o nariz. Por isso, quando me voltei de todo e olhei para o lugar em que ele olhava, quase caí de costas com o choque.Não estou exagerando.Bem na entrada do bosque, a uns vinte metros de onde nos encontrávamos, um grupo de quinze encapuzados observava em silêncio nossos movimentos. Ninguém os vira antes. Vestiam-se de preto da cabeça aos pés, tinham as mãos recolhidas dentro das mangas e pareciam estar ali há tempo, vigiando a clareira de Santo Estêvão. Não que parecessem hostis - de fato, não portavam armas, nem bordões, nada com que pudessem nos agredir -, mas reconheço que sua atitude não nos tranqüilizou: olhavam-nos pela abertura de seus capuzes, sem nada dizer ou fazer tenção de se aproximar. De onde saíram? Que soubéssemos não existia convento nem eremitério nos arredores, nem aquele era um dia litúrgico que justificasse a presença de monges em campo aberto.E então? O quer queriam? Acaso vieram presenciar a execução post mortem de nossos hereges?Mauro Sforza foi o primeiro a descer da pira e se dirigir aos encapuzados com os braços abertos, mas seu gesto foi recebido com indiferença. Nenhum dos visitantes moveu um músculo.- Santo Deus - conseguiu por fim exclamar o caolho. - Mas são revestidos!- Revestidos?- Não está vendo, padre Leyre? - balbuciou, entre a perplexidade e o mal-estar. - É o que eu dizia. Vão envolvidos em hábitos pretos, sem cordas nem ornamentos, como os albigenses que aspiram pela perfeição.- Albigenses?- Não estão armados - acrescentou. - Sua fé os proíbe.Mauro, que escutara aquilo, deu mais um passo em direção aos desconhecidos.- Adiante, irmão - animou-o o caolho. - Nada perderá se tocar neles. Se não são capazes de matar um pinto, como pensarão em lhe fazer dano?

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- Laudetur Iesus Christus. Estão aqui por seus mortos! - exclamou Jorge, que se agarrara ao meu hábito tremendo de medo ao perceber o que se passava. - Querem que os devolvamos!- E isso o amedronta? Não ouviu frei Benedetto? - sussurrei, pedindo-lhe que se acalmasse. - Estas pessoas são incapazes de usar a violência contra nós.Jamais fiquei sabendo se o irmão Giorgio chegou a me responder, porque quando devia responder os intrusos entoaram um plangente Pater Noster que estremeceu a clareira. Os timbres enérgicos encheram Santo Estêvão, deixando-nos sem palavras. Mas Jorge se equivocou. Os bonhommes não vieram resgatar o corpo dos correligionários. Jamais fariam algo assim. Eles odiavam os corpos. Consideravam-nos a prisão da alma, um obstáculo diabólico que os distanciava da pureza do espírito. Se se deslocaram até ali, arriscando-se a ser detidos e levados para a prisão, era porque decidiram orar pelas almas dos correligionários mortos.- Sejam todos amaldiçoados! - imprecou frei Benedetto, levantando os punhos do alto da pira. - Amaldiçoados uma e mil vezes!A reação do caolho nos surpreendeu. Frei Jorge e o irmão Mauro ficaram imóveis ao vê-lo pular ao chão e sair correndo em direção aos revestidos como se estivesse fora de si. Estava vermelho de ira, com Qj rosto a ponto de estalar e as veias do pescoço inchadas. Benedetto investiu com violência contra o primeiro encapuzado que atravessou seu caminho. O homem caiu de bruços no chão. E o caolho, enlouquecido, caiu de joelhos sobre ele, empunhando uma faca que tirou sabe Deus de onde.- Deveriam estar mortos! Todos! Não têm direito de estar aqui! - gritou.Antes que pudéssemos detê-lo, nosso irmão cravou a arma até o cabo nas costas do revestido. Um alarido de dor estremeceu o local.- Vão para o inferno! - bramiu.O que aconteceu depois ainda é confuso para mim.Os encapuzados se olharam entre si antes de se jogar sobre Benedetto. Separaram-no das costas feridas de seu irmão, cujo sangue jorrava aos borbotões, e o subjugaram contra um dos pinheiros. O caolho, que continuava proferindo maldições contra seus captores, tinha seu único olho injetado de ira.

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Quanto aos demais, é o que menos recordo. Jorge, o octogenário, fugiu correndo para a cidade. Nunca pensei que pudesse correr com tanta agilidade. Em compensação, perdi Mauro de vista enquanto um daqueles homens me aplicou um saco na cabeça, atando-o ao meu pescoço com uma correia. Algo devia conter aquele taleigo porque logo depois que me caiu em cima notei que fui perdendo os sentidos lentamente. Em questão de segundos deixei de ouvir os lamentos do encapuzado ferido, e uma extraordinária sensação de leveza se apoderou de meus membros de maneira inexorável.Antes de desfalecer, no entanto, ainda tive tempo de escutar uma voz que murmurou algo que não consegui compreender:- Agora, padre, por fim poderei esclarecer suas dúvidas.Depois, aturdido e confuso, desmaiei.Despertei com náusea e uma forte dor de cabeça, sem saber quanto tempo permaneci inconsciente. Tudo girava ao meu redor e minha mente estava mais confusa do que nunca. A culpa era daquela pressão constante sobre a fronte. Era uma dor cíclica, circular, que a cada tempo percorria meu crânio da esquerda para a direita, perturbando meus sentidos. Eram tão fortes as pontadas que durante bom momento sequer tentei abrir os olhos. Lembro-me até que apalpei a cabeça buscando alguma ferida, mas fui incapaz de encontrar algo. O dano era interno.- Não se preocupe, padre. Está inteiro. Descanse. Logo se recuperará.Uma voz amável, a mesma que me falou antes de perder os sentidos, sobressaltou-me antes que pudesse me reanimar completamente. Voltou a se dirigir a mim em tom sereno, afetuoso, como se me conhecesse há muito tempo.- O efeito de nosso óleo durará só mais algumas horas. Depois voltará a se sentir bem.- O seu... óleo?Desorientado, fraco, com as pernas e os braços fortemente apertados e estendido num chão irregular, consegui reunir forças para começar a falar. Deduzi que me levaram para algum lugar coberto, porque sentia a roupa seca e o frio não era tão intenso como na clareira de Santo Estêvão.- O pano que lhe colocamos em cima estava embebido num óleo que provoca o sono, padre. É uma fórmula antiga. Um segredo dos bruxos destes pagos.

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- Veneno... - murmurei.- Não exatamente - respondeu. - Trata-se de um ungüento extraído da cizânia, meimendro, cicuta e dormideira. Nunca falha. Basta absorvê-lo em pequenas doses através da pele para que seu efeito letárgico seja imediato. Mas passará logo. Relaxe.- Onde estou?- A salvo.- Dê-me de beber, peço-lhe.- Em seguida, padre.Às apalpadelas agarrei a vasilha que o desconhecido colocou entre minhas mãos. Era vinho quente. Um caldo amargo que ajudou meu corpo maltratado a se recompor. Agarrei-me ao recipiente com ânsia, juntando as forças antes de girar os olhos e lançar uma olhadela ao meu redor.Meu instinto não errara. Já não estava em Santo Estêvão. Fossem quem fossem meus captores, separaram-me de Jorge, Mauro e Benedetto, e isolado numa peça fechada, sem janela, que devia ser uma espécie de cela improvisada em alguma remota casa de campo. Supus que passara uma eternidade estendido sobre aquela esteira de palha. Minha barba crescera, e alguém se atrevera a me despir do hábito de São Domingos; em seu lugar eu vestia um burel tosco de lã. Mas era impossível calcular quanto tempo estava ali. E para onde foram levados meus irmãos? Quem era o responsável por me levar a esse lugar? E para quê?Uma sensação de angústia se apoderou de minha garganta.- Onde... estou? - repeti.- A salvo. Este lugar se chama Concorezzo, padre Leyre. E me alegra vê-lo recuperado. Temos muito, muito do que falar. Lembra-se de mim?- Co... como? - titubeei.Quis girar para procurar meu interlocutor, mas uma nova pontada me deteve.- Vamos, padre! Nosso óleo o adormeceu mas não apagou a memória. Sou um homem que sempre disse a verdade, não se lembra? Aquele que jurou resolver certa adivinhação que o atormentava.Um estalo me sacudiu o cérebro. Era certo. Por Deus bendito. Era certo que já escutara aquele timbre de voz em algum lugar. Mas onde? Tive de fazer um grande esforço para terminar de me recompor e achar o rosto de quem me

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falava. E, Santo Cristo, por fim o vi. Estava bem nas minhas costas. Redondo e ruborizado como sempre. Com aqueles olhos de esmeralda, claros e espertos. Era Mário Forzetta. Não havia dúvida.- Lembra-se de mim?Concordei.- Lamento ter recorrido a este método para trazê-lo aqui, padre. Mas, acredite-me, era a única opção que tínhamos. Por bem não nos teria acompanhado - sorriu.Aquele plural me desconcertou.- Quem tínhamos? Quem, Mário?O rosto de Forzetta se iluminou ao me ouvir pronunciar seu nome.- Os homens puros de Concorezzo, padre. Nossa fé nos impede de usar a violência, mas não o engenho.- Bonhommes... Você?- Ficará horrorizado, sei. Libertou um herege da prisão que merecia. Mas antes que forme opinião sobre o assunto, peço-lhe que me escute. Tenho muito a dizer-lhe.- E meus irmãos?- Nós os fizemos dormir em São Estêvão, como o senhor. A estas horas, se não congelaram, já terão regressado a Milão e terão sua mesma dor de cabeça.Mário ostentava um aspecto razoavelmente bom. Notava-se nele ainda a cicatriz que lhe dividira a cara dias atrás, mas deixara crescer a barba e sua tez estava morena do Sol. Distara muito do espectro que conversou comigo na prisão do palácio dos Jacarandá. Ganhara peso e o rosto irradiava felicidade. Saber-se fora do alcance de dom Olivério lhe caíra bem. O que eu não conseguia compreender era por que decidira me reter. E porque precisamente eu, que lhe dei a liberdade.- Meus irmãos e eu hesitamos muito antes de dar este passo - explicou-se Mário, que se sentou ao meu lado, no chão. - Sei que o senhor, padre, é inquisidor, e que sua ordem há mais de duzentos anos persegue famílias que, como as nossas, têm outra maneira de se aproximar de Deus.- Mas...- Mas ao vê-lo ontem em Santo Estêvão compreendi que era um sinal enviado por Deus. Apareceu ali bem quando eu já tinha as respostas que jurei dar.

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Lembra-se? Acaso não é um milagre? Convenci nosso perfeito para que o trouxéssemos aqui e eu pudesse saldar minha dívida.- Não há tal dívida.- Há sim, padre. Deus cruzou nossos caminhos por alguma razão que só Ele sabe. Talvez não seja para que o ajude a resolver suas adivinhações, e sim para que juntos enfrentemos o inimigo que temos em comum.Aquela afirmação me desconcertou.- Como diz?- Lembra-se da adivinhação que me confiou no dia em que me libertou?Concordei. Óculos ejus dinumera continuava desafiando minha inteligência. Quase me esquecera que também Forzetta a tinha em seu poder.- Depois de me despedir do senhor, refugiei-me no ateliê de Leonardo. Sabia que sua casa era o único lugar de Milão que me daria abrigo, como aconteceu. E naturalmente falei com o mestre. Contei-lhe meu encontro consigo, falei de sua infinita generosidade e pedi que me auxiliasse. Não só queria que me protegesse da ira de Jacarandá, mas desejava agradecer ao senhor o muito que fez por mim ao tirar-me de sua prisão.- Mas você já não era discípulo do mestre... não é verdade?- Não era. Mas na realidade nunca deixei de ser. Leonardo sempre trata seus pupilos como filhos, e, apesar de que alguns de nós não demonstramos estatura para seguir na pintura, sempre nos reserva seu afeto.Enfim, seus ensinamentos transcendem o mero ofício de artista.- Entendo. Assim você foi se refugiar sob a asa protetora de meser Leonardo. E o que ele disse?- Entreguei-lhe sua adivinhação. Disse que continha o nome de uma pessoa que o senhor buscava e o mestre o resolveu para mim.Aquilo me pareceu irônico. Leonardo decifrara a assinatura de quem escreveu a Betânia para provocar sua ruína? Cheio de curiosidade, tentei sobrepujar meu enjôo e peguei as mãos de Mário para dar ênfase à minha pergunta:- Diga-me, ele conseguiu?- Sim, padre. Até posso confirmar que nome encerra.Mário então depositou a carta da sacerdotisa no chão, bem entre nossas pernas.

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- Meser estranhou muito quando lhe mostrei a sua adivinhação - continuou. - De fato, disse-me que a conhecia bem. Que um irmão de Santa Maria a mostrara algum tempo antes e que já a resolvera para ele.- Frei Alessandro!A lembrança de Óculos ejus dinumera escrito atrás de uma carta como aquela achada junto ao cadáver do bibliotecário me provocou um estremecimento. De repente tudo fazia sentido: o Augure assassinou frei Alessandro ao se saber desmascarado por ele, e teve então de urdir um plano para desacreditar Leonardo. Assassinar um obscuro religioso era fácil, mas não acabar com o pintor favorito da corte. Assim optou por tentar incriminá-lo por heresia. Daí as cartas a Betânia.Antes que minha imaginação disparasse, Mário prosseguiu:- Sim, padre. Frei Alessandro. Lembro muito bem as palavras do mestre: ambas as adivinhações, naipe e versos, estavam intimamente unidas. Os versos eram incompreensíveis sem a carta da sacerdotisa e sem ela não se podia encontrar a chave do nome que o senhor procura.São como as duas faces de uma mesma moeda.Pedi a Mário que se explicasse melhor. O jovem apanhou então a frase latina que estava escrita no mesmo papel que lhe entreguei em Milão e a colocou junto do arcano do jogo dos Visconti-Sforza. Mais uma vez, voltei a ter aquelas incômodas sete linhas diante de mim:

Óculos èjus dinumera, sednoli voltum kdspicere.In latere nominis mei notam rin venies.Contemplar et contemplata aliis iradere.

Ventas - Na realidade, é uma simples adivinhação em três níveis - disse. -primeiro busca a identificação da carta que ajudará a resolver o enigma. "Conte-lhe os olhos, mas não olhe para a cara." Tem um significado muito simples. Olhando bem, nesta carta só existe um olho possível fora do rosto da mulher.- Um olho? Onde?Mário parecia se divertir.

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- Está no cinto, padre. Não está vendo? É o olho do nó por onde passa a corda que ata a cintura da mulher. Trata-se de uma metáfora utilizada com grande habilidade pelo seu homem. Detalhe do "olho" no cinto.- Mas isso não é tudo - prosseguiu. - Fixando bem, não sabemos em que costa buscar a cifra do nome que o senhor busca. "A cifra de meu nome achará em suas costas" deixa em aberto uma grande incógnita. É no lado direito ou no esquerdo que devemos buscar essa cifra? Já vou dizer: deve olhar na direita da mulher.- Como pode estar tão seguro?- O mestre esbarrou na resposta graças a um detalhe esteganográfico.- Esteganográfico?- Os gregos, padre, foram mestres na arte de ocultar mensagens secretas em escritos ou obras que estavam à vista de todos. No idioma deles steganos significa "escrita oculta" e aqui salta à vista que há algo oculto. Uma errata nos dá a chave: rinvenies se escreve sem "r". Um homem tão meticuloso como o autor desta mensagem não podia passar por alto semelhante detalhe, e, portanto, revisei com cuidado os versos e descobri que além dos "r" existiam outras cinco letras marcadas. Desta feita com um ponto. Elas passaram despercebidas, mas ali estão: ejus, dinumera, sed, adspicere e tradere. Estranho que ninguém se deteve diante delas.

Frei Benedetto escarrou outra vez no urinol novo coágulo de sangue. Tinha um mau aspecto. Muito mau.Desde que ficara seis horas a céu aberto na planície de Santo Estêvão, deitado, sem sentidos e descalço sobre a neve, o caolho não voltara a respirar com normalidade. Tossia. Seus pulmões estavam encharcados e lhe era cada vez mais difícil se mover.O prior determinou que o levassem ao hospital. Ali o deitaram na cama e o isolaram do resto dos doentes, receitaram vapores aromáticos, sangrias diárias e rezaram com fervor por sua recuperação. Mas Benedetto dormia mal. A febre subia de maneira inexorável e temia-se por sua vida.No último dia de janeiro, exausto, o mais carrancudo dos frades de Santa Maria pediu que lhe administrassem a extrema-unção. Passara a tarde

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delirando, proferindo frases ininteligíveis em línguas estranhas e instigando os irmãos a botar fogo no refeitório se ainda quisessem salvar a alma.Frei Nicola Zessatti, deão com cinqüenta anos de serviço na comunidade, velho amigo de Benedetto, foi quem lhe impôs os santos óleos. Antes lhe pediu que se confessasse, mas o caolho se negou. Não queria dizer uma só palavra do que acontecera em Santo Estêvão. Todas as tentativas foram inúteis. Nem ele e nem o prior puderam arrancar-lhe informação sobre meu paradeiro, e menos ainda sobre os homens que nos assaltaram.Sei que foram dias de incerteza. Por estranho que pareça, tampouco frei Jorge serviu de grande ajuda. O encarregado das contribuições mal recordava aqueles estranhos monges de preto que apareceram para nós.Tinha vista fraca e a idade o traía. Por isso, quando contou que o cara atingira a facadas um deles, tomaram-no por louco. Jorge ingressou no hospital de Santa Maria, na mesma ala de Benedetto, com as mãos tomadas pelo gelo e um resfriado de que se recuperou aos poucos por milagre.Quanto ao meu terceiro irmão, frei Mauro, ficava dias inteiros mergulhado em mutismo. Sua juventude resistiu bem ao choque, mas desde seu retorno a Santa Maria ninguém o vira fora de sua cela e as pessoas que o visitaram ficaram horrorizados ante seu olhar perdido. O frei mal ingeria alimento e era incapaz de prestar atenção quando se falava com ele. Perdera o juízo.Foi frei Jorge quem alertou o prior sobre a piora do padre Bened. Ocorreu a 31 de janeiro, terça-feira. O recolhedor de contribuições encontrou Bandello no refeitório, revisando com Leonardo os últimos traços no Cenacolo.Depois do enterro de donna Beatrice e de meu desaparecimento, o toscano retomara com ímpeto desusado seu trabalho. De repente parecia ter pressa de concluir o mural. Sem ir mais longe, naquele dia acabara de dar as derradeiras pinceladas no rosto adolescente de São João e mostrava orgulhoso ao prior que olhava tudo com desconfiança.O apóstolo ficara magnífico. Brilhava sua comprida cabeleira que lhe caía nos ombros, um olhar lânguido, olhos semicerrados, a cabeça descaída para sua direita, em atitude de submissão. O rosto prendia luz. Um brilho sobrenatural, mágico, que convidava à contemplação e à vida mística.- Disseram-me que usou uma rapariga como modelo para rosto.

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A recriminação do prior foi a primeira coisa que Jorge ouviu quando entrou no refeitório. Da sua posição não viu o mestre sorrir.- Os boatos voam - ironizou.- E chegam mais longe do que seus pássaros de madeira.- Está bem, prior. Não negarei. Mas antes que se aborreça deve saber que só empreguei a rapariga para certos retoques no discípulo amado.Jorge reconheceu o humor ácido do mestre no ato.- Então é certo.- João foi uma criatura doce, padre Bandello - prosseguiu. - Sabia que era o mais moço dos discípulos, e Jesus gostava dele como irmão.Ou melhor ainda: como filho. E também sabe que não fui capaz de encontrar entre seus frades alguém que me inspirasse essa candidez com que ele é descrito nos evangelhos. Que importância existe por ter recorrido a uma rapariguinha inocente para completar seu retrato? Que vê de mau nele, em face do resultado?- E quem é essa donzela, pode-se saber?- Claro que se pode saber. - Leonardo se inclinou cortês em direção do prior. - Mas duvido que a conheça. Chama-se Elena Crivelli. É de nobre família lombarda. Visitou minha bottega em companhia do mestre Luini há poucos dias. Quando a vi pela primeira vez soube que me fora enviada por Deus para me ajudar a concluir o Cenacolo.O prior olhou-o de soslaio.- Ah, se a visse! - prosseguiu. - Sua beleza é sedutora, pura, perfeita para o rosto de João. Ela me brindou essa aura de beatitude que agora se desprende de nosso João.- Mas não havia donzelas na ceia pascal, mestre.- E quem pode estar seguro? Além disso, de Elena só tomei as mãos, o olhar, a expressão abandonada dos lábios e as maçãs do rosto. Seus atributos mais inocentes.- Reverendo padre...A entrada de frei Jorge, que esperava impaciente uma pausa na conversa, não deu oportunidade de resposta a Bandello. Depois de uma genuflexão apressada, o monge aproximou-se de seu ouvido e lhe transmitiu a má notícia sobre a saúde do caolho.

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- Deve me acompanhar - sussurrou. - Os médicos dizem que já não lhe resta muito tempo de vida.- O que se passa com ele?- Mal pode respirar, e a pele às vezes perde a cor, prior.Leonardo observou com curiosidade as mãos atadas de Jorge, e deduziu que devia se tratar de um dos frades assaltados dias atrás fora dos muros de Milão.- Se lhes interessar minha opinião - confidenciou -, creio que o que aflige seu irmão é tuberculose. Uma doença mortal, sem cura.- Como diz?- Os sintomas descritos são os da tuberculose. Se desejarem, irmãos, podem dispor de meus conhecimentos médicos para aliviar seu sofrimento. Conheço suficientemente o corpo humano para propor um tratamento eficaz.- O senhor? - respondeu Bandello. - Pensei que o odiasse...- Vamos, prior. Como vou desejar o mal a alguém com quem estou em dívida? Recorde que frei Benedetto posou como São Tomé no Cenacolo. Eu, por acaso, odiaria Elena que me iluminou ao pintar João?Ao bibliotecário que emprestou seu rosto a Judas Iscariotes? Não. Ao seu irmão devo o rosto de um dos apóstolos mais importantes do Cenacolo.O prior agradeceu a cortesia inclinando a cabeça, sem perceber a ironia daquelas palavras. Era certo que São Tomé reunia todas as características de um frei Benedetto rejuvenescido. O toscano se dera até o incômodo de pintá-lo de perfil para esconder sua grave deformidade. Mas não era menos certo que há algum tempo Benedetto e o mestre não se davam bem.Com a bênção de Bandello, Leonardo recolheu às pressas seus pincéis, fechou os frascos com as últimas misturas de cores e se dirigiu com o passo rápido para o vizinho hospital. No caminho apanharam frei Nicola que portava num recipiente a água benta, uma vasilha com os santos óleos e um hissope de prata.Encontraram frei Benedetto deitado num catre do segundo andar, num dos limitados quartos independentes do recinto, sozinho, coberto com um grande pano de linho que descia do teto. Ao chegar à porta, o mestre pediu aos frades que o aguardassem no jardim. Explicou-lhes que a primeira fase de seu tratamento requeria certa intimidade, e que eram poucos os homens que, como ele, estavam a salvo dos eflúvios mortais da tuberculose.

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Quando Leonardo ficou sozinho diante da cama do caolho, afastou o pano que os separava e contemplou o velho resmungão. "Por que não inventara ainda uma máquina que o livrasse de seus inimigos?", pensou. Fazendo das tripas coração, o gigante se esforçou por despertá-lo.- O senhor?Frei Benedetto se refez da surpresa.- Mas que diabos está fazendo aqui?Leonardo observou o moribundo com curiosidade. O aspecto era pior do que esperava. A sombra azulada que se instalara nas maçãs do rosto nada de bom pressagiava.- Disseram-me que foram atacados no monte, irmão. Lamento deveras.- Não seja fariseu, meser Leonardo! - Tossiu, expulsando um novo escarro. - Sabe tão bem como eu o que aconteceu.- Se é o que acredita...- Foram os seus irmãos de Concorezzo, não é verdade? Esses bastardos que negam Deus e renegam a natureza divina do Filho do Homem... Saia daqui! Deixe-me morrer em paz!- Vim apenas para saber de sua saúde, Benedetto. Creio que está precipitando seu julgamento. Sempre agiu assim. Essas pessoas a quem se refere não negam Deus. São cristãos puros, que veneram o Salvador da mesma maneira que os primeiros apóstolos.- Basta! Não quero escutar! Não me fales disso! Vá!O caolho estava vermelho de ira.- Se meditasse por um momento, padre, perdoando-os, esses "bastardos" que demonstraram infinita misericórdia em relação ao senhor. Sobretudo sabendo que matou a sangue-frio vários dos seus.A ira do frade se transformou em espanto num piscar de olhos.- Como se atreve, Leonardo?- Porque sei em que se converteu. E sei também que fez todo o possível para me expulsar deste lugar e deixar na escuridão a fé de todas essas pessoas. Primeiro matou frei Alessandro. Logo atravessou o coração do irmão Giulio. Atordoou com suas histórias os irmãos que estavam a caminho da pureza...- Da heresia, melhor dito - graduou com seu único olho aberto como uma lua.

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- E mandou mensagens apocalípticas a Roma, anônimas, assinadas como Augur dixit, unicamente para provocar uma investigação secreta contra mim, que o deixei à margem. Não é certo?- Maldito seja, Leonardo! - O peito do monge estalou num novo estertor. - Seja maldito para sempre.O pintor, impassível, desatou do cinto sua inseparável bolsa de lona branca e a depositou sobre a cama. Parecia mais cheia do que de costume. O mestre a desabotoou cerimonioso e tirou dela um pequeno livro de capa azul que deixou cair sobre o colchão.- Reconhece? - sorriu, astuto. - Ainda que agora me amaldiçoe, padre, vim perdoá-lo. E oferecer-lhe a salvação. Todos somos almas de Deus e a merecemos.A pupila do caolho se expandiu de excitação ao ver aquele volume a dois palmos dele.- Era isto o que buscava, não é verdade?- "Inte... rrogatio Johan... nis" - decifrou Benedetto o título gravado na lombada. - O testamento final de João! O livro com as respostas que o Senhor deu ao discípulo amado em sua ceia secreta, já no reino dos céus.- A Ceia Secreta, é assim. Justamente o livro que decidi expor ao mundo.Benedetto espichou um de seus magros braços para tocar a capa.- Se o fizer vai acabar com a cristandade - disse, detendo-se para respirar fundo. - Este livro é maldito. Ninguém neste mundo merece lê-lo... E no outro mundo, ao lado do Pai Eterno, ninguém necessita dele. Queime-o.- E, no entanto, houve um tempo em que queria possuí-lo.- Houve, sim - resmungou. - Mas me dei conta do pecado da soberba que ele implicava. Por isso abandonei sua companhia. Por isso deixei de trabalhar para o senhor. Encheu-me a cabeça de pássaros, como os irmãos Alessandro e Giberto, mas me dei conta a tempo de seu estratagema... - expirou agônico - ... e consegui escapar.O caolho, pálido, levou a mão ao peito antes de prosseguir com voz desafiadora:- Sei o que quer, Leonardo. Chegou à Milão católica cheio de idéias extravagantes... Seus amigos, Botticelli, Rafaello, Ficino, encheram sua cabeça de idéias vãs sobre Deus. E agora quer dar ao mundo a

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fórmula para se comunicar diretamente com Deus, sem necessidade de intermediários nem da Igreja.- Como João.- Se o povo acreditasse neste livro, se soubesse que João falou com o Senhor no Reino dos Céus e regressou dele para escrevê-lo, por que alguém necessitaria dos ministros de Pedro?- Vejo que compreendeu.- E entendo que o Mouro o apoiou durante todo este tempo por que... - tossiu - porque enfraquecendo Roma ele se tornará mais forte. Quer mudar a fé dos bons cristãos com sua obra. É o diabo. Um filho de Lúcifer.O mestre sorriu. Aquele frade moribundo mal imaginava a meticulosidade de seu plano: Leonardo levara meses permitindo que artistas da França e Itália se aproximassem do Cenacolo para copiá-lo. Maravilhados por sua técnica e pela disposição inédita das figuras, mestres como Andrea Solário, Giampietrino, Bonsignori, Buganza e tantos outros já duplicaram seu desenho e começavam a difundi-lo por meia Europa. Além disso, sua técnica discutível de pintura a secco, pouco durável, convertia o projeto de copiar a obra em algo urgente. A maravilha do Cenacolo estava destinada a desaparecer por desejo expresso do mestre, e só um esforço continuado, meticuloso e planificado para reproduzi-lo e difundi-lo em toda parte conseguiria salvar o verdadeiro projeto... E de passagem disseminar seu segredo mais do que foi conseguido por qualquer outra obra de arte na História.Leonardo não respondeu. Por que ia responder?Suas mãos ainda cheiravam a verniz e a solvente, o mesmo que acabara de aplicar nos pincéis com que arrematara o rosto de João; o homem que escrevera o Evangelho que agora jazia aberto sobre o leito do caolho. O mesmo texto que os Visconti-Sforza, duques de Milão, representaram apertado nas mãos da sacerdotisa de seu baralho, o que aparece no regaço de Santa Maria dei Fiore logo na entrada da catedral de Florença. Em suma, um livro hermético que agora Leonardo pretendia revelar ao mundo.Sem medir palavras, Leonardo pegou o volume e o abriu na primeira página. Pediu a Benedetto que recordasse a cena da ceia do Senhor no refeitório e que se dispusesse a compreender seu plano. Depois, solene, colocou o volume sob suas barbas e leu:

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Eu, João, que sou seu irmão e tenho parte na aflição para ter acesso ao reino dos céus, enquanto repousava sobre o peito de nosso Senhor Jesus Cristo, disse-lhe: "Senhor, quem é o que o trairá?" "Aquele que põe a mão comigo no prato. Então Satã entrou nele, e ele já buscava a maneira de me entregar.”Benedetto se sobressaltou:- Isso é o que pintou no Cenacolo... Deus bendito.Leonardo assentiu.- Maldita víbora! - tossiu Benedetto.- Não se engane, padre. Meu mural é muito mais do que uma cena deste Evangelho. João formulou nove perguntas ao Senhor. Duas eram sobre Satã, três sobre a criação da matéria e o espírito, mais três sobre o Batismo de João e uma última sobre os signos que precederam o regresso de Cristo. Perguntas de luz e de sombras, do bem e do mal, dos pólos opostos que movem o mundo...- E tudo isso contém um sortilégio, sei.- Sabe?A surpresa brilhou no rosto do mestre. Aquele ancião que se recusava a morrer ainda tinha a inteligência desperta.- Sim... - ofegou. - Mut-nem-a-los-noc... E em Roma as pessoas também sabem. Eu transmiti a eles. Pronto, Leonardo, cairão sobre o senhor e destruirão tudo o que armou com tanta paciência. Nesse dia, mestre, morrerei satisfeito.

Doze dias mais tarde Milão, 22 de fevereiro de 1497. Mut-nem-a-los-noc...Escutei pela primeira vez aquela estranha frase no dia da dignidade do Sumo Pontífice. Passaram-se quase duas semanas desde que frei Benedetto entregou a alma a Deus no hospital de Santa Maria, em meio a um daqueles terríveis ataques de tosse. Deus castigou sua soberbia. O Augure não teve tempo de ver Roma descarregando sua ira contra o mestre Leonardo e demolindo seu projeto. Teve uma decadência física rápida. Os médicos que o atendiam dia e noite se renderam quando o ancião perdeu a voz e as pústulas se apossaram de seu corpo.Benedetto faleceu no entardecer da Quarta-feira de Cinzas, sozinho, febril, murmurando obsessivamente meu nome num desesperado intento de me atrair

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à sua cabeceira e me jogar contra o toscano. Por desgraça para ele, ainda demorei muitos dias a retornar de minha reclusão entre os "homens puros".Agora acredito que Mário Forzetta aguardou aquele preciso momento antes de me devolver a Milão. Nunca, nas semanas em que permaneci em Concorezzo, Mário me falou da doença do caolho; sequer me predispôs a atuar contra ele ou que informasse ao Santo Ofício de seus pecados contra o quinto mandamento, e muito menos avivou o fogo do ódio contra ele. Sua atitude me encantou. Seu conhecimento sobre os segredos da escritura oculta conseguiram desmascarar o padre Benedetto e sua complexa assinatura, mas uma estranha moral o impedia de cobrar vingança pelo assassínio de seus correligionários. Que fé estranha era essa.Cheguei a acreditar que os concorezzanos me reteriam para sempre. Compreendi que seu respeito extremo pela vida os impedia de acabar comigo, mas não ignorava que todos naquele povoado estavam conscientes de que se me libertassem suas vidas correriam perigo.Esse debate se prolongou por dias inteiros. Um tempo que aproveitei para me misturar a eles e aprender sobre seus costumes de vida. Surpreendeu-me saber que jamais entravam numa igreja para suas orações. Preferiam uma gruta ou o campo aberto. Confirmei muitas das coisas que já sabia sobre eles como, por exemplo, que renegavam a cruz ou repudiavam as relíquias, por considerá-las recordações impuras do corpo material, satânicas portanto, que um dia acolheu a alma de grandes santos. Mas descobri coisas que me encantaram. Por exemplo, sua alegria diante da morte. A cada dia que passava, comemoravam que já estavam mais perto do momento em que se desprenderiam de sua envoltura carnal e se aproximariam do espírito luminoso de Deus. Eles que, entre si, chamavam-se "verdadeiros cristãos", olhavam-me misericordiosos e se esforçavam para me integrar aos seus ritos.Um belo dia, Mário entrou em meu quarto e me despertou agitado; pediu-me que me vestisse depressa e me conduziu montanha abaixo, até o caminho empedrado que levava à Porta Vercellina. Eu estava atônito. O jovem perfeito tomara uma decisão que comprometia toda sua comunidade: ia devolver ao mundo um inquisidor que vira por dentro uma comunidade de albigenses, presenciara suas orações e conhecia os pontos fracos dos últimos "homens

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puros" da cristandade. E, apesar de tudo, arriscava-se a me libertar. Por quê? E porque nesse dia, e tão depressa?Ia logo descobrir.Ao nos aproximarmos do caminho que me levaria aos domínios do duque, Mário mudou o tom de sua conversação pela primeira e última vez. Vestira-se de branco imaculado, com um burel que o cobria até os joelhos e uma faixa na cabeça que segurava o cabelo eriçado. Parecia me conduzir a um último e estranho ritual.- Padre Leyre - disse solene -, já conheceu os verdadeiros discípulos de Cristo. Viu com os próprios olhos que não empunhamos armas nem ofendemos a natureza. Por esse mesmo motivo, e porque os seguidores originais de Jesus jamais aceitariam que os privássemos, da liberdade, não podemos retê-lo por mais tempo. O senhor pertence a um mundo diferente. Um lugar de ferro e ouro em que os homens vivem de costas a Deus...Quis replicar, mas Mário não me deixou. Olhava-me com tristeza, como se se despedisse de um amigo.- A partir de agora - prosseguiu -, nosso destino está em suas mãos.Os seus cruzados não teriam dito melhor: Deus Io volt!, como dispôs o Pai. Ou nos perdoa e integra nossas fileiras convertendo-se num parfait, ou nos delata e busca nossa morte e a ruína de nossos filhos. Mas será o senhor, em liberdade, quem elegerá o caminho. Nós, por desgraça, estamos acostumados a sermos perseguidos. É nosso destino.- Está me libertando?- Na realidade, padre, nunca esteve preso.Olhei-o, sem saber o que dizer.- Só peço que reflita sobre uma coisa antes de nos entregar ao Santo Ofício: não se esqueça que Jesus foi também um fugitivo da Justiça.Mário se atirou então em meus braços e me apertou contra ele. Depois, observando a tépida claridade que pressagiava o amanhecer, entregou-me um saquinho com pão e alguma fruta, e me deixou sozinho no caminho de Milão.- Vá ao refeitório - ordenou antes de se embrenhar no bosque. - Ao seu refeitório. Durante sua permanência fora aconteceram muitas coisas que o afetam. Medite sobre elas e decida então seu caminho. Tomara voltemos a nos ver algum dia e possamos olhar-nos nos olhos, como irmãos da única fé.

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Caminhei durante quatro horas antes de divisar no horizonte a silhueta fortificada de Milão. Que estranha provação era aquela a que a Divina Providência me submetia? Mário me devolvia à corte do duque para que eliminasse seu inimigo, frei Benedetto, ou por alguma outra obscura razão?Ao me aproximar do posto da guarda me dei conta do muito que o quarto de Concorezzo me mudara. Na entrada, o guarda do duque sequer me saudou. Aos seus olhos eu já não era o respeitável dominicano engolido pelo bosque de Santo Estêvão quase um mês antes. Não pude   recriminá-lo. A cidade acreditava que esse homem morrera numa emboscada. Ninguém me esperava. Meu aspecto era vulgar, sujo, e me vestia como um camponês. Tinha calções pretos e um tosco casaco de pele de ovelha que me fazia parecer um pastor. Meu rosto estava coberto por uma barba espessa e preta. E até minha tonsura se enchera de novo, obscurecendo definitivamente minha filiação sacerdotal.Cruzei o posto de guarda sem olhar para ninguém e enveredei pelas ruelas que me levariam até o convento de Santa Maria. Apesar de não ser um sábado ensolarado, respirava-se certo ambiente festivo. As redondezas do mosteiro foram engalanadas com bandeirinhas, vasos de flores e faixas de tecido, e havia muita gente conversando na rua. Ao que parecia, o duque acabara de passar por ali a caminho de alguma celebração importante.Foi então que escutei dos lábios de uma mulher a razão de tanto alvoroço: Leonardo concluíra o Cenacolo e Sua Excelência Ludovico, o Mouro, se apressara a visitá-lo para o admirar em todo seu esplendor.- O Cenacolo?.A mulher me olhou divertida.- Mas em que mundo vive? - riu. - Toda a cidade desfilará para vê-lo.Toda! Dizem que é um milagre. Que parece real. Os frades abrirão o convento durante um mês para que todos possam admirá-lo.Uma estranha indisposição se apoderou de meu estômago. O toscano concluíra um empreendimento que lhe custara mais de três anos de trabalho, mas completara também o terrível programa iconográfico que o Augure pretendia deter a qualquer preço? E o prior? Sucumbira também ao feitiço daquela obra? Dera-se conta da verdadeira identidade de seu secretário pessoal? E como me apresentaria diante dele? O que diria de meus seqiiestradores?

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Quando terminei a subida até o corso Magenta e consegui evitar a enorme fila que rodeava o convento, fiquei imóvel. A casa do duque colocara um enorme estrado no qual um esplêndido duque de Milão, enfeitado com uma túnica preta de veludo e um chapéu de aba baixa com uma faixa dourada, conversava com alguns homens probos da cidade. Entre eles distingui Luca Pacioli, o matemático, que se sobressaía com a expressão descansada. Alguém disse que há poucos dias entregara ao Mouro seu livro De divina proportione, no qual revelava os mistérios. 

- O segredo final?A fronte larga do espanhol se enrugou ante minha desconfiança.- O segredo que o seu bibliotecário levou para o túmulo, padre Leyre.Aquele que extraiu do "livro azul" que donna Beatrice d'Este me encarregou de obter para ela, e que nunca pude depositar em suas mãos. Lembra-se?- Sim.- Esse segredo, padre, talvez esteja em meu poder. E é outra dessas adivinhações incômodas do toscano. Como é especialista em resolver enigmas e, por sua posição, não é suspeito de cumplicidade com alguém, pensei que me ajudaria a decifrá-lo.Olivério disse aquilo com raiva contida. Ainda podia adivinhar em sua voz o desejo de vingar seu amigo Alessandro. E ainda que se enganasse de objetivo não deixava de me intrigar que revelação recebera de seu confidente. Mal podia imaginar que Betânia também dispusesse daquele segredo e também que fizera há dias o impossível para me encontrar.- Vai me mostrar o segredo, então?- Só diante do Cenacolo, padre. Que sensação estranha. Vestido com os trapos que foram dados por Mário Forzetta antes de me devolver a Milão, cruzei o umbral da igreja de Santa Maria sem que qualquer dos frades encontrados me reconhecesse. O cheiro de incenso me fez hesitar. Senti-me como se pusesse pela primeira vez os pés numa igreja. Aquela profusão de motivos florais, losangos vermelhos e azuis e desenhos geométricos que enfeitavam o teto, pareceram-me excesso

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impróprio na casa de Deus. Nunca reparara neles, mas agora, de repente, incomodavam-me.Olivério não percebeu meu desgosto e me puxou até a abside, obrigando-me a girar depois para a esquerda e passando à frente da enorme fila de fiéis que rezavam e cantavam à espera da permissão de acesso ao refeitório.Frei Adriano de Treviglio, com quem cruzara algumas vezes durante minha estadia no convento, saudou-o em espanhol e se mostrou satisfeito com a moeda que ele depositou em sua mão. Embora me lançasse um olhar penetrante tampouco me reconheceu. Melhor assim. Aquele refeitório que eu recordava como frio e inerte fervia agora de atividade. Continuava desprovido de móveis, como sempre, mas os frades o deixaram decente, ventilado e limpo em profundidade. Não havia mais cheiro de pintura, e o mural recém-terminado pelo mestre brilhava em todo seu esplendor.- A Ceia Secreta... - murmurei.Olivério não me escutou. Empurrou-me até o centro da sala, e, quando se abriu caminho entre a multidão, disse algo, meio em espanhol, meio em lombardo, que então eu não soube valorizar:- O mistério deste lugar tem a ver com os antigos egípcios. Os discípulos se distribuem de três em três como as tríades dos deuses do Nilo.Está vendo? Mas seu autêntico segredo é que cada personagem desta cena representa uma letra.- Uma letra? - as velhas lições da Ars Memoriae voltaram à minha mente. - Que tipo de letras?- Só uma delas é clara, padre. Olhe bem o grande "A" formado pela figura de Nosso Senhor. Essa é a primeira pista. Ela e as outras, ocultas nos atributos dos Doze recolhidos por frei Jacopo da Varazze, formam um hino estranho, escrito em egípcio antigo, que espero que o saiba decifrar...- Um hino?Olivério assentiu, deleitado com meu espanto.- É assim. Juntando as letras que Leonardo atribuiu a cada discípulo, e que me foram mostradas em Roma, forma-se uma frase: Mut-nem- a-los-noc.Mut.Nem.A.

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Los.Noc.Repeti uma a uma aquelas sílabas, tratando de memorizá-las.- E afirma que é um texto egípcio?- E seria o quê? Mut é uma divindade dessa civilização, esposa de Amon, "o Oculto", o grande deus dos faraós. Seguramente Leonardo ouviu falar dela por Marsilio Ficino. Ou não se lembra que o mestre tinha os livros dele em sua bottega. Como ia esquecer? Ficino, Platão, frei Alessandro, o caolho, todos estavam ali mesmo! Diante de meus olhos! Olhando-se entre si, como se confabulassem para preservar o mistério daqueles que não merecessem penetrá-lo. Todos foram representados como verdadeiros discípulos de Cristo. Bonhommes, em suma.- E se o idioma desta frase não for egípcio?Minha dúvida exasperou o espanhol. Aproximou-se de meu ouvido e, tentando fazer-se entender entre a multidão de curiosos e o rumor das orações, esforçou-se por me explicar o que aprendera daqueles homens reduzidos a letras pela mão de Annio de Viterbo. Contemplei um por   um aqueles discípulos tão vivos. Bartolomeu, com as mãos apoiadas na mesa, observava a cena como uma sentinela. Tiago Menor tentava acalmar o ânimo de Pedro. André, impressionado pela revelação de que havia um traidor entre eles, mostrava as palmas das mãos em sinal de inocência. E Judas Iscariotes. João. Tomé apontando para o céu. O maior dos Tiagos, com os braços em cruz anunciando o futuro suplício do Messias. Filipe, Mateus. Tadeu dando as costas a Cristo. E Simão, com as mãos estendidas, como que convidando a contemplar a cena mais uma vez, do seu canto na mesa.Contemplá-la mais uma vez.Cristo!Foi como um relâmpago na noite.Como se de repente uma daquelas línguas de fogo que iluminaram os discípulos no dia de Pentecostes caísse sobre mim.Santo Deus! Ali não havia enigma. Leonardo não pôs qualquer segredo no Cenacolo. Absolutamente nada.Uma emoção singular, como a que poucas vezes sentira em meus anos de Betânia, golpeou com força minhas entranhas.

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- Lembra-se do que me disse um dia sobre os usos peculiares de escrita de Leonardo?Olivério me olhou sem saber o que tinha a ver minha pergunta com sua revelação.- Refere-se à mania dele de escrever ao contrário? É outra de suas excentricidades. Os discípulos precisam de um espelho para ler o que o maestro lhes escreve. Faz assim com tudo: anotações, relações, recibos, cartas pessoais, até as listas de compra!... É um louco.- Talvez.A ingenuidade de Olivério me fez sorrir. Nem ele, nem Annio de Viterbo se deram conta de algo, apesar de chegar tão perto da resposta.- Diga-me, Olivério: por onde começou a ler sua ladainha egípcia?- Pela esquerda. O "M" é Bartolomeu, o "U" Tiago Menor, o "T"...De repente emudeceu.Girou a cabeça até o extremo direito do mural e esbarrou em Simão, que, com seus braços estendidos, parecia convidá-lo a entrar na cena. Se fosse pouco, também ali estava o nó do mantel, assinalando qual era o lado da mesa por onde se devia começar a "ler".- Santo Deus. Lê-se ao contrário!- E o que lê, Olivério?O espanhol, duvidando do que estava vendo e sem conseguir compreender, pronunciou pela primeira vez o verdadeiro segredo do Cenacolo. Bastou-lhe silabar sua ladainha, aquele misterioso Mut-nem-a-los-noc, como o mestre Da Vinci fazia há três anos:Con-sol-a-men-tum. Aquela revelação mudou minha vida. Não foi algo brusco, mas uma alteração pausada e não estancável, semelhante à que vive um bosque quando se aproxima a primavera. No início não me dei conta, e quando quis reagir já era tarde. Suponho que minhas conversas tranquilas em Concorezzo e a confusão em que mergulhei durante os primeiros dias em Milão operaram o milagre.Aguardei que se passassem aqueles dias de portas abertas em Santa Maria delle Grazie para retornar ao Cenacolo e me colocar sob as mãos de Cristo. Desejava receber a bênção dessa obra viva, que palpitava e eu vira se

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desenvolver quase imperceptivelmente. Ainda não sei bem por que fiz isso. Nem por que não me apresentei ao prior e lhe disse onde estivera e que coisas descobrira durante meu cativeiro. Mas como disse, algo mudara dentro de mim. Algo que acabaria enterrando para sempre aquele Agustín Leyre, pregador e irmão da Secretaria de Chaves dos Estados pontifícios, funcionário do Santo Ofício e teólogo.Iluminação? Chamado divino? Ou talvez loucura? É provável que morra neste penhasco de Yabal al-Tarif sem saber como chamar aquela atitude.Agora pouco importa.O certo é que a descoberta do núcleo de albigenses no centro mesmo da casa dos dominicanos, dirigentes da Inquisição e guardiões da ortodoxia da fé, teve um efeito ofuscante sobre minha alma. Descobri que a verdade evangélica abrira caminho por entre as trevas de nossa ordem, lançando âncora no refeitório como um poderoso farol na noite. Era uma verdade diferente da que eu acreditei durante quarenta e cinco anos: Jesus nunca, jamais, instaurou a eucaristia como único caminho para nos comunicarmos com Ele. Pelo contrário. Seu ensinamento a João e a Maria Madalena foi mostrar como encontrar Deus em nosso interior, sem necessidade de recorrer a artifícios exteriores. Ele era judeu. Vivenciou o controle que os sacerdotes do templo faziam de Deus ao encerrá-lo no tabernáculo. E lutou contra isso. Quinze séculos mais tarde, Leonardo se convertera no secreto responsável por essa revelação, e a confiou ao Cenacolo.Talvez ficasse louco nesse instante, admito. Mas tudo aconteceu como foi relatado aqui.Passaram-se já três decênios daqueles fatos e Abdul, que subiu a ceia até minha gruta como de costume, trouxe também uma estranha notícia: um grupo de ermitões seguidores de Santo Antônio chegou à sua aldeia com a intenção de se estabelecer por aqui. Sondei as margens do Nilo tentando localizá-los, mas meus olhos castigados não conseguiram distinguir o acampamento deles. Poderiam ser minha última esperança. Se algum deles merecesse minhas confidências nesta reta final da vida, depositaria em suas mãos estes papéis e o faria compreender a importância de conservá-los em lugar adequado até que chegasse o tempo de dá-los a conhecer. Mas minhas forças fraquejam e não sei se serei sequer capaz de descer o penhasco e me aproximar deles.

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Além disso, mesmo que descesse, tampouco seria fácil que me entendessem.Olivério Jacarandá, por exemplo, jamais compreendeu o segredo do Cenacolo apesar de tê-lo diante do nariz. Que os treze protagonistas encarnassem as treze letras do Consolamentum, o único sacramento admitido pelos homens puros de Concorezzo - um sacramento espiritual, invisível, íntimo - não lhe dizia grande coisa. Ignorava a ligação daquele símbolo ao seu desejado "livro azul", que jamais chegaria a ter entre as mãos. E também nunca suspeitou de que seu servidor Mário Forzetta o traiu por culpa daquele volume. Um livro que durante gerações fora utilizado em cerimônias albigenses para mergulhar os neófitos na Igreja do espírito, a de João, e iniciá-los na busca do Pai por conta própria.Sei que Olivério regressou à Espanha, instalou-se perto das ruínas de Tarraco e continuou tirando partido de seus negócios com o papa   Alexandre. Naquela época Leonardo confiou A Ceia Secreta ao seu discípulo Bernardino Luini, que por sua vez a confiou a um artista do Languedoc, que acabou por levá-la a Carcassonne, onde foi interceptada pelo Santo Ofício gaulês que nunca soube interpretá-la. Luini jamais pintou uma hóstia, nem Marco d'Oggiono, nem qualquer de seus caros discípulos.Outro destino curioso foi o de Elena, a quem nunca conheci pessoalmente. Depois de posar para o mestre, a inteligente condessinha compreendeu que talvez a Igreja de João nunca chegaria a se instaurar. Por isso se afastou da bottega, deixou de perseguir o infortunado Bernardino e ingressou num convento de irmãs clarissas perto da fronteira com a França. Leonardo, surpreendido por sua inteligência sagaz, acabou revelando-lhe o grande segredo a que estava vinculada sua estirpe: Maria Madalena, remota antepassada, viu Jesus ressuscitado, feito luz, fora do túmulo que José de Arimatéia preparara para Ele. Durante séculos, a Igreja se negou a escutar seu relato completo, coisa que Leonardo fez. Afinal de contas, naquele remoto dia de há quinze séculos Madalena viu Jesus vivo, mas não em corpo mortal. Seu cadáver - inerte e frio - descansava ainda no túmulo quando ela esbarrou em seu "corpo de luz". Impressionada, decidiu roubar os restos do galileu, ocultou-os em sua casa, onde os embalsamou com esmero, e os levou à França quando começaram as perseguições do sinédrio.

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Esse, e não outro, era o segredo: Cristo não ressuscitou em corpo mortal. Ressuscitou na luz, mostrando-nos o caminho para nossa própria transmutação quando chegar nosso dia.Soube que Elena, impressionada por esta revelação, ficou com as clarissas só mais cinco anos, até que um bom dia desapareceu da cela sem que não se voltasse a vê-la. Dizem que acompanhou Leonardo em seu exílio na França, instalou-se na corte de Francisco I como dama de companhia da rainha e ocasionalmente continuou posando para o mestre. Parece que o toscano usou-a como modelo até o dia de sua morte e pediu emprestados seu rosto e as mãos para retocar o retrato inacabado de uma donzela que todos conheciam por Gioconda. De fato, os que viram as duas obras dizem que as semelhanças entre o João do Cenacolo e a mulher desta tela pequena são mais que eloquentes. Eu, por desgraça, não pude julgar.Mas se Elena teve ou não mais acesso aos segredos dessa Igreja de João e Madalena que Leonardo planejou restaurar, o certo é que os levou para o túmulo. Pois antes que eu viesse ao Egito para viver meus últimos dias, Elena faleceu de febre.Só me resta, pois, explicar por que aportei aqui, no Egito, para escrever estas linhas. E por que jamais denunciei a existência de uma comunidade de perfeitos em Concorezzo, ligada ao mestre Leonardo.A culpa, mais uma vez, foi desse gigante de olhos azuis e roupas brancas.Não voltei a vê-lo após a apresentação do Cenacolo. Depois de descobrir seu significado oculto, regressei a Roma e cruzei a porta da Casa da Verdade, em Betânia, onde reassumi meu trabalho sem que alguém fizesse muitas perguntas. Foi ali que fiquei sabendo que Leonardo fugiu de Milão no ano seguinte, enquanto as tropas francesas venceram as defesas do duque e assumiram o controle da cidade. Refugiou-se em Mântua, depois em Veneza e finalmente em Roma, onde trabalhou a serviço de César Borgia, o filho do papa Alexandre VI. Para Borgia foi architecto e ingegnere generale, desperdiçando suas outras virtudes. Tampouco essa ocupação durou muito, mas o suficiente para se encontrar com o responsável pelo Palazzo Sacro, Annio de Viterbo.Annio ficou muito influenciado por aquele encontro. Seu secretário, Guglielmo Ponte, informou regularmente Betânia sobre a reunião que tiveram

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na primavera de 1502. Falaram da função suprema da arte, de suas aplicações para preservar a memória e de sua todo-poderosa influência na mente do povo. Mas foram duas frases do toscano as que, segundo o próprio frei Guglielmo, mais o impressionaram:- Tudo o que descobri sobre a verdadeira mensagem de Jesus não é nada em comparação com o que resta para ser revelado - respondeu, solene, a uma pergunta da doninha. - E da mesma maneira que para minha arte me abeberei em fontes egípcias, e cheguei aos segredos geométricos traduzidos por Ficino ou Pacioli, afirmo que à Igreja ainda resta muito para se abeberar nos Evangelhos que ainda repousam nas margens do Nilo.Giovanni Annio de Viterbo morreu cinco dias mais tarde, provavelmente envenenado por César Borgia.Um mês depois, abalado e suspeitando que logo sofreria represálias daqueles que temiam o retorno dessa Igreja de João, abandonei Betânia para sempre em busca desses Evangelhos.Sei que estão perto, mas ainda não os encontrei. Juro que os buscarei até o fim de meus dias.Um mês depois, abalado e suspeitando que logo sofreria represálias daqueles quie temiam o retorno dessa Igreja de João, abandonei Betânia para sempre em busca desses Evangelhos.Sei que estão perto, mas ainda não os encontrei. Juro que os buscarei até o fim de meus dias.

Em 1945, num lugar perto da aldeia egípcia de Nag Hammadi, no Alto Nilo, apareceram treze evangelhos perdidos, encadernados em couro. Estavam redigidos em copta e apresentavam alguns ensinamentos de Jesus inéditos no Ocidente. Sua descoberta, muito mais importante do que a dos Manuscritos do Mar Morto, em Qumran, demonstra a existência de uma importante corrente de cristãos primitivos que esperavam o advento de uma Igreja baseada na comunicação direta com Deus e os valores do espírito. Hoje são conhecidos como Evangelhos Gnósticos, e é certo que cópias deles chegaram à Europa no fim da Alta Idade Média, influindo em certos ambientes intelectuais.A gruta de Yabal el-Tarif onde morreu o padre Leyre em agosto de 1526 estava a apenas trinta metros da cavidade onde se encontraram estes livros.