a casa de ulisses

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    A CASA DE ULISSES (A MO DE MIM)

    Choveu hoje pela manh. Em poucas ocasies vi ana !"ua cai# num s$ %ia& um%il'vio eempo#neo& eu %i#ia& pois apesa# %e esa#mos em pleno ouono as manhs o

    cau%al %eiou os caminhos in#ansi!veis. *eli+mene o #en,ue %e eucalipos ,ue con-ina as

    e##as -oi p#ese#va%o. elos la%os %o #io& meu av/0 pouco mais a1aio& as e##as %os ou#os

    %onos.

    Dos meus sonhos cui%o eu. 2anas as ima"ina3es e os #a3os suaves.

    Ealo um leve suspi#o %e passa%o a%mi#!vel& o ,ue 1asa pa#a #ecompo# a

    pe#speciva %os sales la%ea%os po# eno#mes espelhos %e pu#o c#isal& emol%u#a%os

    %e ama#elo ou#o. O mesmo espelho %os empos %e minha av$ on%e as mo3as eciam

    suas ho#as %e p#e"ui3a ocupa%as em co-ia# os co,ue #ijos.

    Os #e#aos e-4me#os "ua#%am a -isionomia -u"a+ %as mo3as en,uano minha av$ se

    ocupa %e #eoca# o volume %os ca1elos %isposos em #an3as comp#i%as ,ue mos#am

    #es,u5cios %e vai%a%e.

    Deiam ,ue espiem o ajuse %os %ecoes comp#imin%o os seios com #ecao.

    A,uelas mo3as e#am ain%a meninas.

    Mu%a %e espano& minha av$ a%mi#ava as vai%a%es. Espiava& com %o# "ososa& ossinais %o co#po. S$ espia& ela espiava.

    De #epene su#"i#ia "ene nova. 6avia %e ve#. 2alve+ %e es#anho. 7uieo. E#a ou#a

    "ene& %e nova esi#pe0 -isionomia %o pai.& como o%as as manhs& chei#an%o -umo %e

    v8spe#a e alho p#eso nos %enes.

    o# cona %ele& a%mi#ava as mo3as meninas e suas "#a3as& umas e ou#as. Con#olava

    a enu##a%a %e coisas 9 oa ,ue lhe ,ueimam as 1ochechas po# %en#o e %epois es,uecia s$

    pa#a lem1#a# %epois com mais -o#3a.

    Ajusa#am 9s oio& a . Diziam que o pianista, apesar de ainda jovem, era

    temperamental, a ponto de no se apresentar enquanto os convidados ainda estivesse

    tranando pelo salo buscando os seus lugares. Os mais afoitos se acotovelavam,

    impacientes, ou agitavam-se, ruidosamente, nas poltronas cedidas pelo conservatrio.

    Eram mveis antigos estofados com veludo verde, encardidas por uma indefectvel

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    camada de poeira, al!m de e"alarem um odor acre de vel#aria. $udo deveria ser

    restitudo imediatamente aps o concerto. % no ser o mofo, nada mais agredia a

    pituit&ria de D!zin#a, a mais nova, e"mia con#ecedora dos c#eiros mais

    e"travagantes. Era capaz de identificar at! mesmo a cor dos objetos de onde originava

    a fedentina. 'edor verdadeiramente verde, disse ela, com ar de repugn(ncia

    esfregando o nariz com o leno que sempre trazia escondido no covo da mo para

    en"ugar o deflu"o. )o tardou a preconizar um festival de espirros al!rgicos. E no

    #ouve tempo que bastasse ao relgio para que fosse ouvido um primeiro estrondo

    seguido do susto geral da plat!ia. De ento para um verdadeiro festival de espirros foi

    questo de segundos.

    Os lugares reservados esto todos assinalados com um discreto bil#ete

    recortado em cartolina e alfinetado no brao de cada poltrona, com o nome do titular.% partir de um croqui afi"ado numa das portas de acesso ao salo no ! difcil

    localizar o lugar correspondente. *atilde e %dalgisa esto na terceira fileira, um

    pouco + esquerda do piano. om uma ponta de esc&rnio, ainda em p!, buscam

    recon#ecer os outros convidados. Dali podem atestar, + grandes ol#os, os atributos do

    jovem concertista. )o coment&rio de *atilde, esto livres do ass!dio dos moos

    bulioso e do palavrrio viscoso das mul#eres.

    ecompondo o flego, aproveitam para retocar a maquiagem e remover os

    e"cessos com a nesga rendil#ada do leno.

    //

    % tempo e modo, o mestre de cerimnia, um vel#o de un#as grandes e palet

    folgado, de gola em cetim pudo, fez breves coment&rios sobre o artista destacando sua

    origem caucasiana, e os estudos feitos nos grandes centros de cultura e antes mesmo

    que o jovem se dirigisse ao tablado, anunciou a primeira pea no sem advertir que a

    ordem do programa #avia sido alterada de 0ltima #ora por causa do e"travio de

    algumas partituras, sem que o e"ecutor tivesse se dado conta. Em lugar do concerto

    mozartiano seria inicialmente apresentado um ad&gio, em l& sustenido, de um

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    compositor descon#ecido, cujo nome era quase impronunci&vel, tantas as consoantes.

    'oi dito que passara para a #istria das artes por tr&gica ironia do destino. )a

    culmin(ncia de sua vida artstica repleta de amores mal sucedidos teve morte

    prematura em seguida a um mergul#o definitivo nas &guas do Dan0bio, isso sob os

    aplausos entusi&sticos da jovem amante.

    omenta-se, entre os eruditos, que a pea escol#ida ! apenas sofrvel. De um

    romantismo l(nguido, quase c#oroso, bordada por intermin&veis fraseados meldicos

    de e"trema banalidade, embora requeira certa destreza dos e"ecutores, como o

    malabarismo de espalmar dez notas de uma s vez. 1uase um m&gico sofrido, na

    adjetivao de *atilde, sem disfarar o enfado pelos e"ageros do mestre de cerimnia

    que insistia em espic#ar ao m&"imo a falsa e"pectativa.

    .///

    2or acreditar nos astros, Diomedes tornara-se um obstinado colecionador de

    mapas zodiacais. )o #avia assunto que estivesse isento da ascend3ncia dos planetas

    tangenciando as #oras e graus de um c!u imagin&rio. Eram alfarr&bios garimpados

    durante anos em brec#s especializados. Os grandes rolos eram acondicionados em

    tubos enormes de papelo resistente amontoados no fundo de um arm&rio trancado a

    sete c#aves. 2referia a tranq4ilidade da noite para ento iniciar sua viagem pelos

    destinos mais incertos enquanto admirava cada ilustrao nos seus detal#es e a

    infinidade de cifras zodiacais. %dalgisa e as fil#as no resistiam ao sono at! altas

    #oras, o que dei"ava Diomedes livre para vos cada vez mais distantes pelo seu

    universo imagin&rio.

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    % ocasio era propcia para o requinte da mesa posta com o servio de

    porcelana ingl3s, copos de cristal da bo3mia e tal#eres de prata gravados com

    monograma. 5m lu"o que %dalgisa se permitia apenas para ocasi6es especiais e desde

    quando todos estivessem presentes. %quela era uma data particularmente especial, o

    anivers&rio do casamento.

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    *esmo na aus3ncia das fil#as, %dalgisa decidira comemorar em grande estilo,

    com direito a espumantes e creme #oland3s. %bsorto nas leituras, Diomedes no #avia

    se dado conta dos trinta e cinco anos que se passaram. $udo isso7 indagou. om o

    tempo se tornara ranzinza, taciturno, e as dores constantes pelo corpo. Durante os

    dias espiava atrav!s das janelas indagando sobre os sofrimentos do mundo, sem que

    jamais tivesse obtido resposta para isso. 2ara ele as noites comeavam mais cedo,

    quando ento se escondia entre as dobras no lenol at! a man# seguinte.

    % #istria de %dalgisa era venturosa, a comear pela toler(ncia dos avs

    maternos, com quem viveu bons momentos da inf(ncia. $in#a dois irmos, com quem

    partil#ava a cumplicidade das brincadeiras.

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    , pelo menos at! quando Diomedes resolveu criar p&ssaros e cultivar brom!lias.

    O entusiasmo repentino surgira depois de ler numa revista italiana sobre os

    segredos da ornitologia e sobre as qualidades medicinais da brom!lia. 8egundo a

    reportagem, a redeno dos males da seca estava nas brom!lias, que armazenam &guapor longos perodos de estiagem, e onde os p&ssaros vin#am mitigar a sede dos ver6es

    trridos.

    omo todas as outras casas, a no ser a inclinao suave do tel#ado. 9 sobradoimponente, de paredes altas, angulosas. : volta, os grandes muros, coloridos de

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    amarelo ovo, lembram as amuradas ine"pugn&veis das fortalezas coloniais. 1uatrojanelas recortadas em madeira tosca so mantidas sempre abertas para que os ventosamenizem o rano que impregna os mveis antigos. )a parede da sala o grandeespel#o com moldura dourada por uma fina camada de ouro em p. )asci aqui. 2ormero capric#o, meu pai insistiu que deveria ser preservada a tradio familiar de se

    nascer em casa, com parteira e tudo o mais. Dias depois, por desencargo deconsci3ncia, o m!dico veio ver se tudo estava bem. Desenrolaram os panos que meenvolviam para que ele atestasse o bvio; !...! menino.

    'oi naquela !poca que, + convite de min#a me, tio /sauro, enfastiado dasobriga6es conventuais, juntou os seus trapos e veio morar conosco. Devasso convicto,no tardou a dar vazo aos seus instintos e empren#ou eclia, que cuidava da casa.Da seduo vieram 'rancisca e a interdio aos coment&rios conseq4entes.

    %quela metade esp0ria da famlia passou a ocupar o quarto das amoreiras, oespao no vi!s da parede e a escada que leva ao jardim e onde e"iste uma enorme lajecalc&ria com restos ainda + mostra do que teriam sido os alicerces de uma antigaconstruo, da qual no se con#ece a origem. Da escada para bai"o #avia a proibiodos ol#ares curiosos dos forasteiros e das crianas.

    Da janela v3m-se os port6es de ferro batido que guarda o cemit!rio dos pretos,supostamente trancado por um enorme cadeado corrodo pelo ferrugem. )aquelelugar, + sombra da imensa copa de um angico estempor(neo meus tios e avs, que j&se foram, espic#am a eterna modorra. Dos gal#os da &rvore en"ergam-se as duasdire6es

    , ao longe, o mar, ao longe, no e"tremo do calamento ngreme de pedraportuguesa, ou no camin#o improvisado no terreno carrascoso.

    %o todo a cidade resumia-se a uma dezena de casas alin#adas, de um lado e deoutro.

    2or entre as janelas da sala pode-se ver o casario decadente serpenteando nocontraste das colinas mais pr"imas, tingidas pelo amarelo p&lido da tardeterminando na capela dos 8antos %njos.

    ecortadas, no contraste das paredes brancas, as sombras pareciam brotar dasfrinc#as do soal#o de t&bua corrida para acomodarem-se, encol#idas, nos desvosmais altos, esgueirando-se no espao sim!tricos das antigas lumin&rias de fol#as decobre, os enormes candelabros sem uso, simples adornos desproporcionais.

    Embora a casa estivesse sempre + nossa disposio, no convin#am assurpresas de 0ltima #ora, como as c#egadas e partidas inusitadas, que aturdiam*aria eclia, que nunca se lembrava de onde #avia dei"ado a roupa de cama.*el#or era prevenir com anteced3ncia de dois ou tr3s dias, o bastante para arejaremos cmodos e removessem o mofo aparente, tanto tempo acumulado. 2ara ocupar oquarto dos fundos, o meu lugar preferido, no desnvel do quintal, no era precisoavisar.

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    confort&vel= apenas um colc#o alto e travesseiro de pluma sobre o estrado e umapequena escrivanin#a e cadeira, encostadas ao arm&rio, um pequeno quadromostrando um camin#o entre &rvores. 5ma manc#a vermel#a destoava no ambiente,a flor de pl&stico espetada no canto do arm&rio. 'oi ali que, pela primeira vez, tivenotcias de >uliano. 8oube por acaso, tirado de um dos muitos coment&rios

    intempestivos feitos por *aria eclia em tom de quase segredo. >urei no ter ouvidonada, fingindo pouco caso.

    )o aprendi a determinar os rumos, se um, se outro, apenas percorrer asdist(ncias com a mesma determinao que me trou"e at! aqui. 2or uma das janelas dasala ! possvel distinguir o contorno desfigurado do casario antigo, tingido peloamarelo p&lido do quanto ainda #avia de tarde, que se pode avaliar no contraste dasparedes onde brotam as sombras, espic#adas nos desvos mais altos, esgueirando-seno espao sim!trico e obscuro das antigas lumin&rias de fol#as de cobre, os enormescandelabros j& sem uso, meros adornos desproporcionais. %queles foram osacontecimentos mais mecanclicos que j& presenciei, portentosos e terrveis.

    Entretecidas

    *eu av fazia questo da postura empertigada, o que l#e dava um qu3 de falsanobreza, o modo rigoroso de sentar com as costas pregadas no espaldar da poltrona,mas que fingamos acreditar, a cabea erguida mostrando os ol#os de azul profundo epenetrante que guardavam a eloq43ncia muda, mas sem afetao, a no ser quando asjanelas estivessem abertas por causa das correntes de ar que o aborreciam, entotin#a-se que fec#ar tudo. %s refei6es nunca eram + mesma #ora. Dependia dele.Desde +s onze >andira ficava + postos.

    )aquele dia almoamos +s onze e meia.

    Eu estava no lugar e"ato onde eu devia estar, espiando por uma das janelas dasala a paisagem, +-toa, distante,

    'oi assim que tudo aconteceu. %inda me recordo de cada detal#e, como

    %ps alguma #esitao, dissimulada p?la tranq4ilidade aparente estampadana fisionomia, papai pediu que o mensageiro aguardasse at! quie todos terminassemde comer. Desde ento n@so #ouve coment&rios para que acab&ssemos de comer,

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    curiosos para receber o carteiro. 'oi-nos recomendadas boas maneiras. Era precisoque o visitante nos tivesse como e"emplo de bons modos.

    )a !poca das &guas meu pai nos runia, aos dominegos, para uma sopa de car&com carne defumada preparada pelas meninas da cozin#a. Ele dizia que era um

    costume de fempilia desde que meu av se instalou vindo da Arena, um paisencravado nas frinc#as das montan#as brancas da