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A Carta Outorgada de 1824: Ponto de Partida ou Ponto de Chegada?
Raphael Neves Martins*
RESUMO: este artigo contextualiza e analisa a Carta Outorgada de 1824 em alguns de seus aspectos
sintomáticos, como Do Império do Brasil, Dos Cidadãos Brasileiros, Do Poder Moderador entre outros.
No entanto, as discussões acerca da Carta terão como suporte alguns textos teóricos e, sobretudo
analíticos, do período em questão.
PALAVRAS-CHAVE : Estado-Nação, Constituição, Cidadão.
ABSTRACT : this article contextualizes and analyzes the Imposed Letter of 1824 in some of its
symptomatic aspects, such as Of the Empire of Brazil, Of the Brazilian Citizens, Of the Moderating
Power among others. However, the discussions with respect to the Letter will be supported by some
theoretical and above all analytical texts of the aforementioned period.
KEY-WORDS : Nation-State, Constitution, Citizen.
* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Bolsista CNPq. Atualmente é Professor Tutor e Assistente da Coordenação do Curso de Licenciatura em História, modalidade à Distância da PUC-Rio.
“(...) as elites enfrentaram a difícil tarefa de converter os ideais em
realidade. Haviam conquistado seu objetivo principal: libertar a
colônia da metrópole. O segundo objetivo era assegurar que o
controle da nação permanecesse em suas mãos.”
Emília Viotti da Costa1
Esta reflexão tem por objetivo contextualizar e analisar a Carta Outorgada de
1824. No entanto, as discussões acerca da Carta terão como suporte alguns textos
teóricos e, sobretudo analíticos, do período em questão.
Da maneira como foi pensada e conduzida pelos grupos liberais
conservadores, a independência do Brasil foi muito mais uma passagem habilmente
negociada e disputada pelas elites do que uma ruptura radical do conjunto da sociedade
com a dominação portuguesa. Do mesmo modo, o tumulto e os conflitos que se
seguiram a 1822 – e que se estenderam por longo período – revelaram mais a difícil
acomodação dos diversos interesses políticos e econômicos na nova ordem institucional
do que o compromisso com a mudança das estruturas sociais.
De fato, após o sete de setembro, os cenários social, econômico e cultural no
Brasil, continuaram praticamente sem mudanças relevantes, tal como começaram a ser
desenhados no período joanino. O estilo pomposo e festivo da Corte no Rio de Janeiro e
a maior presença de europeus na capital e em algumas outras cidades contrastavam com
os costumes rústicos, a pobreza e a violência que dominavam as zonas rurais e mesmo
certas áreas urbanas. A jovem nação que oficialmente nascia com o Império conservava
as marcas da herança social da colônia, sobretudo o trabalho escravo. Vista como
fornecedora de mão-de-obra, a escravidão, ao invés de ser eliminada, seria até
fortalecida com sua incorporação à estrutura política e jurídica do novo regime
brasileiro.
Tudo isso foi capturado e registrado por alguns contemporâneos, cidadãos
brasileiros e viajantes estrangeiros, na maioria europeus, dos quais são exemplos: José
da Silva Lisboa, Evaristo da Veiga, a escritora inglesa Maria Graham, o pintor francês
Jean-Baptiste Debret, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, o engenheiro
alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege, o naturalista alemão Carl von Martius, o pastor
metodista norte-americano Daniel Kidder e o comerciante inglês John Luccock.
1 Emília Viotti da Costa. Da Monarquia à República. Momentos decisivos. São Paulo, Ed. Unesp, 1999. (pp. 138).
Dispomos de grande volume de diários de viagem, crônica, ensaios, textos jornalísticos
e literários, cartas, além de desenhos, pinturas e outras produções que permitem entrever
o panorama cultural, político, social e econômico do país na época da Independência,
entre as décadas de 1810 e 1830. Mas nenhum desses é o nosso documento em questão.
Aguardemos um instante!
Convocada em junho de 1822, a primeira Assembléia Constituinte brasileira
foi oficialmente instalada no Rio de Janeiro em maio de 1823. Das províncias
apresentaram-se quase 90 deputados, estes eram na maioria bacharéis, magistrados,
religiosos, militares, alguns poucos médicos, proprietários de terras, comerciantes e
funcionários públicos, todos eleitos pelo sistema de eleição indireta, representando ali
uma pequena parcela de eleitores.
Esses deputados eram quase todos inexperientes nos assuntos legislativos, com
exceção daqueles que tinham participado das Cortes portuguesas, como Antônio Carlos
de Andrada e Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. Eles se dividiam em duas facções
políticas: o Partido Brasileiro, majoritário, defensor da Monarquia constitucional,
limitando os poderes do imperador e dos portugueses, e o Partido Português, defensor
da reunião com Portugal, sobretudo após a restauração do absolutismo por D. João VI.2
Vale lembrar que, por uma ótica política, não havia partidos, no sentido de
máquina política sob alguns critérios que tomaram corpo no século XX. No período
histórico aqui tratado, a partidarização ganha carga pejorativa: os mesmos eram
associados às facções. O que se entendia por partido político na primeira metade do
século XIX, era muito mais do que “tomar partido” de alguma coisa, constituía-se em
formas de agrupamento em torno de um líder, ou através de palavras de ordem e da
imprensa, em determinados espaços associativos ou de sociabilidade, e a partir de
interesses e motivações específicas de seus participantes.
As disputas e conflitos entre as duas facções não tardaram, envolvendo a figura
de D. Pedro I. Por sugestão de José Bonifácio, na abertura dos trabalhos da Assembléia,
o imperador dirigiu-se aos “dignos representantes da Nação brasileira” para pedir-lhes
“ firmeza nos princípios constitucionais” e para lembrá-los que: “espero que a
Constituição que façais seja merecedora da minha imperial aceitação, que seja tão
2 Cf. Francisco Adolpho Varnhagen. História da independência do Brasil: até ao reconhecimento pela antiga metrópole, compreendendo, separadamente, a dos sucessos ocorridos em algumas províncias até essa data. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, 1917.
sábia e tão justa quanto apropriada à localidade e civilização do povo brasileiro”3, ou
seja, que a Constituição fosse digna do Brasil e dele, o imperador. Este ato
elocucionário, de certa maneira, deflagrou a crise no governo.
Esse foi um “ato de fala”4, dito pelo imperador, que funcionara como um
“ lance” 5; como um indício para os seus partidários mais conservadores na Assembléia,
no intuito de que a Carta Constitucional ao ser feita não diminuísse seu poder. Para a
oposição, o lance soa como uma advertência, indicando que o governo ia lutar por uma
“Constituição não demagógica, mas monárquica”6 nas próprias palavras do ministro
José Bonifácio.
Nessa movimentação havia certo ranço de absolutismo pairando no ar. O
imperador deixava claro que sua autoridade precedia e se sobrepunha à da Constituinte,
convocada por ele próprio. Para os parlamentares, a Constituinte era soberana, porque
nela estava a soberania popular, transferida para os representantes eleitos pelo povo.
Uma soma exagerada de poderes nas mãos do imperador chocava-se com as idéias e
princípios liberais.
Com isso, a Constituinte já começara a funcionar em um clima conflituoso. As
divergências manifestaram-se já nos primeiros debates, como aconteceu na discussão
sobre a necessidade ou não da aprovação imperial para as leis aprovadas pela
Assembléia. As constantes interferências do ministro Andrada nos trabalhos
parlamentares contribuíram para aumentar as tensões.
O agravamento do conflito entre as duas facções aproximava o imperador do
Partido Português e enfraquecia o Ministério dos Andradas. A sua queda – do ministério
– tornou o clima mais tenso na Assembléia Constituinte.
Os deputados do Partido Brasileiro, possuindo a maioria na Assembléia,
começaram a discutir e a aprovar um projeto de Constituição elaborado por Antônio
Carlos de Andrada, e que refletia, é claro, seus interesses. Com o intuito de cercear a
ação dos portugueses, estipulou-se que os estrangeiros seriam inelegíveis para os cargos
de representação nacional; a fim de evitar a restauração do Reino Unido, decidiu-se que
o imperador não poderia tornar-se governante de outro Reino; a fim de garantir o lugar
de destaque no processo decisório, fortaleceu-se o poder das Câmaras dos Deputados,
3 Anais da Assembléia Constituinte, 1823, tomo I. 4 POCOCK, J. G. A. “Introdução: o estado da arte”, In: Linguagens do Ideário Político. São Paulo: EDUSP, 2003. pp 23-62 5 Idem. 6 Diário da Assembléia Geral, Constituinte e legislativa do Império do Brasil. (1973), Vol. I. p. 30.
que seria indissolúvel e teria subordinadas a si as Forças Armadas; e, a fim de excluir da
vida política a grande maioria da população, instituiu-se um sistema eleitoral indireto e
censitário, que exigia uma renda mínima equivalente ao valor de 150 alqueires de
mandioca.
De fato, o imperador e os integrantes do Partido Português não aceitavam essas
decisões, o que provocou o acirramento dos conflitos. Em novembro de 1823 houve
uma reação do Partido Português, ou seja, daqueles que defendiam o reforço da
autoridade do Imperador D. Pedro I. Tal reação abriu caminhos para o fechamento da
Assembléia Constituinte. Em caráter justificativo de tal ato – o fechamento da
Assembléia –, D. Pedro I disse:
“Havendo esta Assembléia perjurado ao tão solene juramento que
prestou à Nação, de defender a integridade do Império, sua
independência e a minha dinastia: Hei por bem, como Imperador, e
Defensor Perpétuo do Brasil, dissolver a mesma Assembléia, e
convocar já uma outra (...); a qual deverá trabalhar sobre o projeto
de Constituição que eu lhe hei em breve apresentar; que será
duplicadamente mais liberal, do que o que a extinta Assembléia
acabou de fazer.”7
No entanto, não foi convocada a nova assembléia, mas houve a nomeação de
um Conselho de Estado para elaborar a Constituição Política do Império do Brasil. Em
25 de março de 1824 era outorgada a Constituição.
Chegamos ao nosso tão aguardado documento de análise! Mas o que parece ser
o ponto de chegada é apenas um ponto de partida. Um novo pacto político é
estabelecido entre o Estado Nacional brasileiro em formação e a Sociedade. Logo, é
necessário estabelecer uma análise desse pacto, a fim de compreender permanências e
deslocamentos nas estruturas sociais e políticas da nova Nação.
Outorgada a Constituição Política do Império, “oferecida e jurada por Sua
Majestade o Imperador” destacam-se alguns de seus principais dispositivos logo ao
início de seu texto:
7Coleção das leis do Império do Brasil de 1823, p. 85.
(Art. 1) “O Império do Brasil é a associação política de todos os
cidadãos brasileiros. Eles formam uma Nação livre, e independente,
que não admite com qualquer outra laço de união, ou federação, que
se oponha à sua independência.” (Grifo meu).
A partir do termo grifado e do restante do artigo constitucional podemos
identificar o Império do Brasil como uma Nação independente e, sobretudo uma nação
nos moldes modernos, pois, em diálogo com Chiaramonte, o conceito de Nação que
aparece no artigo, está diretamente ligado ao advento da Revolução Francesa. A carga
substancial desse conceito não agrega o caráter étnico, mas um conteúdo político, ou
seja, bem como definido pelo Abade Sieyès, o conceito “aparece como um conjunto
humano unido por vínculos políticos”, neste sentido, associado politicamente.
A forma de governo e a permanência de uma religião oficial também podem
ser contempladas na Carta:
(Art. 3) “O seu governo é monárquico, hereditário, constitucional e
representativo.”
(Art. 5) “A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a
religião do império. Todas as outras religiões serão permitidas com
seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem
forma alguma exterior do templo.”
Entraremos agora em um ponto relevante na Constituição e, sobretudo
sintomático no quadro social do Império do Brasil – “Dos Cidadãos Brasileiros”. Mas,
antes de explicitá-lo, algumas ressalvas deverão ser feitas.
Na experiência colonial brasileira o corpo social agregava “portugueses
europeus”, “portugueses americanos”, que estavam ligados diretamente a sua terra,
portanto, pernambucanos, baianos, mineiros, paulistas, etc; e também as diferentes
“Nações Africanas”, como, monjolos, benguelas, quiloas, rebolos; esses indivíduos
dessas diferentes nações africanas eram trazidos como mão-de-obra escrava. Vejam
aqui que a palavra Nação não carrega o sentido político que analisamos acima, mas sim
o caráter étnico.
Com a emancipação política, em 1822, há o surgimento de um “tempo novo”
na experiência histórica brasileira. E esse “tempo novo” se dá no período do Sattelzeit
(1750 – 1850), período em que Koselleck concentra os seus estudos, no qual nos indica
mudanças profundas nas experiências de homens e mulheres, na aceleração e mudança
do tempo histórico, na concepção moderna de história e principalmente nas reclivagens
dos conceitos políticos centrais.8
Com o advento da Independência, ou seja, desse “tempo novo” se estabelece
uma nova relação entre nascer e pertencer à uma Nação, a um território brasileiro, um
território nacional.
Na etimologia da palavra nascer vem de nascor; do mesmo verbo latino deriva
natio, que dá a origem a palavra nação na língua portuguesa. Nação, no entanto, se
diferencia de pátria na própria etimologia, que vem de pater – “a terra de meus pais”.
Mas é claro que ambos os conceitos – nação e pátria – carregam certa sinonimização de
conteúdos.
Voltemos agora a Constituição de 1824, a fim de tornar claro nosso ponto até
então não explicitado de fato:
(Art. 6) “São Cidadãos Brasileiros”
I – Os que no Brasil tiverem nascido, que sejam ingênuos, ou libertos,
ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por
serviço da sua Nação. (...)
IV – Todos os nascidos em Portugal, e suas possessões, que sendo já
residentes no Brasil na época, em que se proclamou a Independência
nas Províncias, onde habitavam aderiram a esta, expressa ou
tacitamente, pela continuação da sua residência.
V – Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua religião.
A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de
naturalização.
Então, compreende-se que desde a Independência de 1822, nascer era pertencer
a um novo corpo político e consequentemente a uma nova Nação. No entanto, vê-se
aqui o surgimento de um Estado-Nação, onde o alicerce de sua soberania era marcado
pelo nascimento. O nascimento exigia certa adesão e fidelidade exclusiva, só tolerando
8 Reinhart Koselleck. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006.
outras identidades caso essas não conflitassem com a prioridade da lealdade nacional.
Não é por acaso que o velho Andrada, funcionando tanto como herdeiro de uma
experiência histórica – o período colonial brasileiro - quanto construtor de um novo
Estado-Nação9 diz que “brasileiro é todo aquele que segue a nossa causa”.
Bom, se os cidadãos do novo Império já não eram mais “portugueses
americanos”, eles ao menos permaneciam pernambucanos, paulistas, baianos, mineiros,
etc. Antes de expressarem suas localidades como sentimento de pertença, eles deveriam
pensar, sentir e agir como brasileiros. Percebe-se então que ‘n’ identidades (locais ou
regionais) se deslocavam para uma nova identidade, ou seja, o lugar de nascimento
(lugar ligado a uma família, lugar de poucos) – a Pátria – se deslocava para um outro
espaço mais amplo – a Nação.
Essa nova relação nascer – pertencer à Nação em um território permite
identificar quem não era brasileiro: os escravos e os portugueses (nascidos em
Portugal), embora habitassem o território do Império.
Os escravos, excluídos de cidadania, por mais que se tornassem libertos através
das alforrias, somente aqueles nascidos no território do Império se tornavam cidadãos
brasileiros. Com isso, configurava um corpo social pautado em hierarquias e exclusões.
A liberdade, aqui, estabelecia a diferença fundamental entre livres e não-livres
(escravos) ao mesmo tempo em que podia identificar libertos e ingênuos (os filhos de
escravas nascidos livres). O atributo liberdade definia a sociedade civil, formando uma
equação de homens livres iguais a cidadãos. Isso, no entanto, permite compreender a
diferença entre cidadãos e habitantes no território do Império do Brasil.
Um escravo não podia ser um brasileiro porque não era um homem livre. Um
escravo não era dono de si próprio, isto é, era propriedade de outra pessoa. Por essa
relação além de não ser considerado brasileiro, um escravo não deveria ser considerado
uma pessoa, existindo aí um entendimento do escravo como coisa.
Neste sentido, ao atributo da liberdade agregava-se o atributo da propriedade,
principalmente a propriedade de escravos. A ligação entre esses dois atributos fornece
mecanismos para a configuração de visões de mundo e sistemas classificatórios que se
impunham a sociedade no determinado momento. Essas representações dirigiam a
conduta social, pois, por meio delas é que cada indivíduo ou grupo social toma
consciência de sua relação com a experiência vivida.
9 Construtores e Herdeiros. A trama dos interesses na construção da unidade política. Almanack Braziliense - Revista Virtual, São Paulo, v.1, n. 1, p. 8-26.
Tais representações podem ser encontradas na literatura, a tomar como
exemplo, o trecho do romance Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis
pode nos tornar claro tais relações entre dominador e dominado, pessoa e coisa:
“(...) Prudêncio, um moleque da casa, era meu cavalo de todos os
dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa
de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão,
fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, -
algumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou,
quando muito, um ‘ai, nhonhô!’ ao que eu retorquia: Cala a boca,
besta! 10
O atributo propriedade reforçaria as desigualdades e hierarquias na sociedade
civil, ou seja, diferenciava os homens livres e os homens livres e proprietário de
escravos. Tal configuração projetava a sociedade política, ou seja, os cidadãos ativos –
com direitos políticos e os cidadãos não-ativos – sem direitos políticos. Na verdade, os
cidadãos ativos deveriam reunir “capacidades e habilitações”. Neste sentido, os
“Representantes da Nação” termo contido na Carta Constitucional, deveriam ser “a
parte mais importante da nacionalidade” diria um chefe de casa, também proprietário de
escravos e terras.
Tornando mais complexo o organograma da sociedade política da época
existiam, além de tudo, hierarquias entre os cidadãos ativos, os que reuniam
capacidades para ser deputado e os que reuniam para ser senador, em um sistema
eleitoral indireto e censitário. Vejamos como isso se dava no nosso documento em
destaque:
“Das Eleições”
(Art. 90) “As nomeações dos Deputados, e Senadores para a
Assembléia Geral, e dos Membros dos Conselhos Gerais das
Províncias, serão feitas por Eleições indiretas, elegendo a massa dos
Cidadãos ativos em Assembléias Paroquiais os Eleitores de
Província, e estes os Representantes da Nação, e Província.”
10 Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: Obra Completa. vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
(Art. 91) “Têm voto nestas Eleições primárias”
I – Os Cidadãos Brasileiros, que estão no gozo de seus direitos
políticos.
II – Os Estrangeiros naturalizados.
“São excluídos de votar nas Assembléias Paroquiais”
I – Os menores de vinte e cinco anos, nos quais se não compreendem
os casados, e Oficiais Militares, que forem maiores de vinte e um
anos, os Bacharéis Formados, e Clérigos de Ordens Sacras.
III – Os criados de servir (...), os Criados da Casa Imperial (...), e os
administradores de fazendas e fábricas.
IV – Os Religiosos, e quaisquer, que vivam em Comunidade claustral.
V – Os que não tiverem de renda líquida anual de cem mil réis por
bens de raiz, indústria, comércio, ou emprego.
(Art. 94) “Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados,
Senadores e Membros dos Conselhos de Províncias todos os que
podem votar na Assembléia Paroquial. Excetuam-se:”
I – Os que não tiverem renda líquida anual duzentos mil réis (...).
II - Os Libertos.
III – Os criminosos pronunciados por querela, ou devassa.
(Art. 95) “Todos os que podem ser Eleitores, hábeis para serem
nomeados Deputados, Excetuam-se:”
I – Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda líquida (...)
II – Os Estrangeiros naturalizados.
III – Os que professarem a Religião do Estado.
A igualdade jurídica baseada no princípio “todos são iguais perante a lei”;
plena garantia do direito de propriedade privada e de iniciativa econômica; abolição dos
açoites, castigos, torturas e penas cruéis; instrução primária gratuita para todos os
cidadãos estão expressos no artigo 179 na Constituição de 1824.
Todavia, uma marca característica da Carta de 1824 era a instituição de um
quarto poder político – o Poder Moderador.
(Art. 10) “Os Poderes Políticos reconhecidos pela Constituição do
Império do Brasil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder
Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial.”
(Art. 98) “O Poder Moderador é a chave de toda organização
política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe
Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que
incessantemente vele sobre a manutenção da Independência,
equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos.”
(Art. 101) “O Imperador exerce o Poder Moderador”
I – Nomeando os Senadores.
II – Convocando a Assembléia Geral (...).
III – Sancionando os Decretos (...).
IV – A provando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos
Conselhos Províncias.
V – Prorrogando, ou adiando a Assembléia Geral, e dissolvendo a
Câmara dos Deputados, nos casos, em que exigir a salvação do
Estado; convocando imediatamente outra, que a substitua.
VI – Nomeando, e demitindo livremente os Ministros de Estado.
VII – Suspendendo os Magistrados (...)
Com seus 179 artigos, dos quais apenas o último abordava algumas questões
sociais, a Constituição de 1824 foi feita por “alfaiates políticos”, e estava sob medida.
Liberal na concepção geral, com os princípios da igualdade jurídica, da representação e
da divisão de poderes, era na verdade uma Carta fortemente conservadora e
centralizadora, com o primado do Poder Moderador; as restrições eleitorais e a
submissão das províncias ao governo central. Sobre a questão da escravidão, como
também a situação das populações indígenas, houve negligência e silencio absoluto no
texto constitucional.
Não bastaria estar formalizado o pacto político; a tarefa ainda não estava
concluída. A figura do Imperador precisava estar nos corações e mentes dos homens e
mulheres do Império do Brasil. No cotidiano, pós-independência, desses homens e
mulheres, a concentração de poderes nas mãos de D. Pedro I se refletiu, entre outras
manifestações, no culto à figura do imperador. Os escritos de Iara Lis mostram como
esse culto ao Imperador foi articulado ao discurso liberal, de modo a estabelecer limites
para a noção de liberdade e perpetuar a ordem escravista e a dominação das elites.
Vejamos a seguir:
“Era muito importante espalhar a festa pelo país, pois ajudava a
circunscrever o território do soberano, fundando um Estado
Monárquico. (...) Note-se que as festas e os juramentos, cheios de
vivas e atravessados por um vocabulário de cunho liberal,
concorriam para aplacar as diversas reivindicações populares,
negras e escravas e punham um limite e um fim à noção de liberdade,
estabelecendo um modo correto, mais condizente com as elites, com a
perpetuação da ordem senhorial, de comprometer e fundar o pacto
político e a vida social.”11
Voltando a um indício deixado pela historiadora na epígrafe deste trabalho,
põe-se o término a reflexão com algumas observações; conquistada a Independência,
outros desafios apresentavam-se ao novo corpo político – conduzir a transição da
condição de colônia para a de nação, definir o regime de governo e organizar o Estado.
Descartada a solução republicana, segundo o modelo norte-americano, restava o
figurino inglês de uma monarquia constitucional. Mas as dificuldades para aplicá-lo
eram muitas, a começar pelas inclinações autoritárias do Imperador.
A isso somava o conservadorismo das classes dominantes, que não admitiam
alterações na estrutura da sociedade escravista. Essas ambigüidades e contradições
foram bem observadas e registradas por alguns contemporâneos. Além de seu valor
científico e cultural, as anotações desses observadores ajudam a compreender o
tumultuado processo político naqueles anos de construção do Estado-Nação e a
brevidade do Primeiro Reinado.
A única conclusão de fato é que consolidar a independência e estabilizar o
Império fora tarefa para mais de uma geração de herdeiros e construtores.
11 Iara Lis C. Souza. A Independência do Brasil. Rio de Janeiro, Zahar, 2000. pp. (56 – 62)
FONTES
Constituição Política do Império do Brasil de 1824. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm Acesso
em: 29/07/2009.
Anais da Assembléia Constituinte de 1823.
Diário da Assembléia Geral, Constituinte e legislativa do Império do Brasil.
Coleção das leis do Império do Brasil de 1823.
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