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A Carta Outorgada de 1824: Ponto de Partida ou Ponto de Chegada?

Raphael Neves Martins*

RESUMO: este artigo contextualiza e analisa a Carta Outorgada de 1824 em alguns de seus aspectos

sintomáticos, como Do Império do Brasil, Dos Cidadãos Brasileiros, Do Poder Moderador entre outros.

No entanto, as discussões acerca da Carta terão como suporte alguns textos teóricos e, sobretudo

analíticos, do período em questão.

PALAVRAS-CHAVE : Estado-Nação, Constituição, Cidadão.

ABSTRACT : this article contextualizes and analyzes the Imposed Letter of 1824 in some of its

symptomatic aspects, such as Of the Empire of Brazil, Of the Brazilian Citizens, Of the Moderating

Power among others. However, the discussions with respect to the Letter will be supported by some

theoretical and above all analytical texts of the aforementioned period.

KEY-WORDS : Nation-State, Constitution, Citizen.

* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Bolsista CNPq. Atualmente é Professor Tutor e Assistente da Coordenação do Curso de Licenciatura em História, modalidade à Distância da PUC-Rio.

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“(...) as elites enfrentaram a difícil tarefa de converter os ideais em

realidade. Haviam conquistado seu objetivo principal: libertar a

colônia da metrópole. O segundo objetivo era assegurar que o

controle da nação permanecesse em suas mãos.”

Emília Viotti da Costa1

Esta reflexão tem por objetivo contextualizar e analisar a Carta Outorgada de

1824. No entanto, as discussões acerca da Carta terão como suporte alguns textos

teóricos e, sobretudo analíticos, do período em questão.

Da maneira como foi pensada e conduzida pelos grupos liberais

conservadores, a independência do Brasil foi muito mais uma passagem habilmente

negociada e disputada pelas elites do que uma ruptura radical do conjunto da sociedade

com a dominação portuguesa. Do mesmo modo, o tumulto e os conflitos que se

seguiram a 1822 – e que se estenderam por longo período – revelaram mais a difícil

acomodação dos diversos interesses políticos e econômicos na nova ordem institucional

do que o compromisso com a mudança das estruturas sociais.

De fato, após o sete de setembro, os cenários social, econômico e cultural no

Brasil, continuaram praticamente sem mudanças relevantes, tal como começaram a ser

desenhados no período joanino. O estilo pomposo e festivo da Corte no Rio de Janeiro e

a maior presença de europeus na capital e em algumas outras cidades contrastavam com

os costumes rústicos, a pobreza e a violência que dominavam as zonas rurais e mesmo

certas áreas urbanas. A jovem nação que oficialmente nascia com o Império conservava

as marcas da herança social da colônia, sobretudo o trabalho escravo. Vista como

fornecedora de mão-de-obra, a escravidão, ao invés de ser eliminada, seria até

fortalecida com sua incorporação à estrutura política e jurídica do novo regime

brasileiro.

Tudo isso foi capturado e registrado por alguns contemporâneos, cidadãos

brasileiros e viajantes estrangeiros, na maioria europeus, dos quais são exemplos: José

da Silva Lisboa, Evaristo da Veiga, a escritora inglesa Maria Graham, o pintor francês

Jean-Baptiste Debret, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, o engenheiro

alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege, o naturalista alemão Carl von Martius, o pastor

metodista norte-americano Daniel Kidder e o comerciante inglês John Luccock.

1 Emília Viotti da Costa. Da Monarquia à República. Momentos decisivos. São Paulo, Ed. Unesp, 1999. (pp. 138).

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Dispomos de grande volume de diários de viagem, crônica, ensaios, textos jornalísticos

e literários, cartas, além de desenhos, pinturas e outras produções que permitem entrever

o panorama cultural, político, social e econômico do país na época da Independência,

entre as décadas de 1810 e 1830. Mas nenhum desses é o nosso documento em questão.

Aguardemos um instante!

Convocada em junho de 1822, a primeira Assembléia Constituinte brasileira

foi oficialmente instalada no Rio de Janeiro em maio de 1823. Das províncias

apresentaram-se quase 90 deputados, estes eram na maioria bacharéis, magistrados,

religiosos, militares, alguns poucos médicos, proprietários de terras, comerciantes e

funcionários públicos, todos eleitos pelo sistema de eleição indireta, representando ali

uma pequena parcela de eleitores.

Esses deputados eram quase todos inexperientes nos assuntos legislativos, com

exceção daqueles que tinham participado das Cortes portuguesas, como Antônio Carlos

de Andrada e Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. Eles se dividiam em duas facções

políticas: o Partido Brasileiro, majoritário, defensor da Monarquia constitucional,

limitando os poderes do imperador e dos portugueses, e o Partido Português, defensor

da reunião com Portugal, sobretudo após a restauração do absolutismo por D. João VI.2

Vale lembrar que, por uma ótica política, não havia partidos, no sentido de

máquina política sob alguns critérios que tomaram corpo no século XX. No período

histórico aqui tratado, a partidarização ganha carga pejorativa: os mesmos eram

associados às facções. O que se entendia por partido político na primeira metade do

século XIX, era muito mais do que “tomar partido” de alguma coisa, constituía-se em

formas de agrupamento em torno de um líder, ou através de palavras de ordem e da

imprensa, em determinados espaços associativos ou de sociabilidade, e a partir de

interesses e motivações específicas de seus participantes.

As disputas e conflitos entre as duas facções não tardaram, envolvendo a figura

de D. Pedro I. Por sugestão de José Bonifácio, na abertura dos trabalhos da Assembléia,

o imperador dirigiu-se aos “dignos representantes da Nação brasileira” para pedir-lhes

“ firmeza nos princípios constitucionais” e para lembrá-los que: “espero que a

Constituição que façais seja merecedora da minha imperial aceitação, que seja tão

2 Cf. Francisco Adolpho Varnhagen. História da independência do Brasil: até ao reconhecimento pela antiga metrópole, compreendendo, separadamente, a dos sucessos ocorridos em algumas províncias até essa data. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, 1917.

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sábia e tão justa quanto apropriada à localidade e civilização do povo brasileiro”3, ou

seja, que a Constituição fosse digna do Brasil e dele, o imperador. Este ato

elocucionário, de certa maneira, deflagrou a crise no governo.

Esse foi um “ato de fala”4, dito pelo imperador, que funcionara como um

“ lance” 5; como um indício para os seus partidários mais conservadores na Assembléia,

no intuito de que a Carta Constitucional ao ser feita não diminuísse seu poder. Para a

oposição, o lance soa como uma advertência, indicando que o governo ia lutar por uma

“Constituição não demagógica, mas monárquica”6 nas próprias palavras do ministro

José Bonifácio.

Nessa movimentação havia certo ranço de absolutismo pairando no ar. O

imperador deixava claro que sua autoridade precedia e se sobrepunha à da Constituinte,

convocada por ele próprio. Para os parlamentares, a Constituinte era soberana, porque

nela estava a soberania popular, transferida para os representantes eleitos pelo povo.

Uma soma exagerada de poderes nas mãos do imperador chocava-se com as idéias e

princípios liberais.

Com isso, a Constituinte já começara a funcionar em um clima conflituoso. As

divergências manifestaram-se já nos primeiros debates, como aconteceu na discussão

sobre a necessidade ou não da aprovação imperial para as leis aprovadas pela

Assembléia. As constantes interferências do ministro Andrada nos trabalhos

parlamentares contribuíram para aumentar as tensões.

O agravamento do conflito entre as duas facções aproximava o imperador do

Partido Português e enfraquecia o Ministério dos Andradas. A sua queda – do ministério

– tornou o clima mais tenso na Assembléia Constituinte.

Os deputados do Partido Brasileiro, possuindo a maioria na Assembléia,

começaram a discutir e a aprovar um projeto de Constituição elaborado por Antônio

Carlos de Andrada, e que refletia, é claro, seus interesses. Com o intuito de cercear a

ação dos portugueses, estipulou-se que os estrangeiros seriam inelegíveis para os cargos

de representação nacional; a fim de evitar a restauração do Reino Unido, decidiu-se que

o imperador não poderia tornar-se governante de outro Reino; a fim de garantir o lugar

de destaque no processo decisório, fortaleceu-se o poder das Câmaras dos Deputados,

3 Anais da Assembléia Constituinte, 1823, tomo I. 4 POCOCK, J. G. A. “Introdução: o estado da arte”, In: Linguagens do Ideário Político. São Paulo: EDUSP, 2003. pp 23-62 5 Idem. 6 Diário da Assembléia Geral, Constituinte e legislativa do Império do Brasil. (1973), Vol. I. p. 30.

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que seria indissolúvel e teria subordinadas a si as Forças Armadas; e, a fim de excluir da

vida política a grande maioria da população, instituiu-se um sistema eleitoral indireto e

censitário, que exigia uma renda mínima equivalente ao valor de 150 alqueires de

mandioca.

De fato, o imperador e os integrantes do Partido Português não aceitavam essas

decisões, o que provocou o acirramento dos conflitos. Em novembro de 1823 houve

uma reação do Partido Português, ou seja, daqueles que defendiam o reforço da

autoridade do Imperador D. Pedro I. Tal reação abriu caminhos para o fechamento da

Assembléia Constituinte. Em caráter justificativo de tal ato – o fechamento da

Assembléia –, D. Pedro I disse:

“Havendo esta Assembléia perjurado ao tão solene juramento que

prestou à Nação, de defender a integridade do Império, sua

independência e a minha dinastia: Hei por bem, como Imperador, e

Defensor Perpétuo do Brasil, dissolver a mesma Assembléia, e

convocar já uma outra (...); a qual deverá trabalhar sobre o projeto

de Constituição que eu lhe hei em breve apresentar; que será

duplicadamente mais liberal, do que o que a extinta Assembléia

acabou de fazer.”7

No entanto, não foi convocada a nova assembléia, mas houve a nomeação de

um Conselho de Estado para elaborar a Constituição Política do Império do Brasil. Em

25 de março de 1824 era outorgada a Constituição.

Chegamos ao nosso tão aguardado documento de análise! Mas o que parece ser

o ponto de chegada é apenas um ponto de partida. Um novo pacto político é

estabelecido entre o Estado Nacional brasileiro em formação e a Sociedade. Logo, é

necessário estabelecer uma análise desse pacto, a fim de compreender permanências e

deslocamentos nas estruturas sociais e políticas da nova Nação.

Outorgada a Constituição Política do Império, “oferecida e jurada por Sua

Majestade o Imperador” destacam-se alguns de seus principais dispositivos logo ao

início de seu texto:

7Coleção das leis do Império do Brasil de 1823, p. 85.

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(Art. 1) “O Império do Brasil é a associação política de todos os

cidadãos brasileiros. Eles formam uma Nação livre, e independente,

que não admite com qualquer outra laço de união, ou federação, que

se oponha à sua independência.” (Grifo meu).

A partir do termo grifado e do restante do artigo constitucional podemos

identificar o Império do Brasil como uma Nação independente e, sobretudo uma nação

nos moldes modernos, pois, em diálogo com Chiaramonte, o conceito de Nação que

aparece no artigo, está diretamente ligado ao advento da Revolução Francesa. A carga

substancial desse conceito não agrega o caráter étnico, mas um conteúdo político, ou

seja, bem como definido pelo Abade Sieyès, o conceito “aparece como um conjunto

humano unido por vínculos políticos”, neste sentido, associado politicamente.

A forma de governo e a permanência de uma religião oficial também podem

ser contempladas na Carta:

(Art. 3) “O seu governo é monárquico, hereditário, constitucional e

representativo.”

(Art. 5) “A religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a

religião do império. Todas as outras religiões serão permitidas com

seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem

forma alguma exterior do templo.”

Entraremos agora em um ponto relevante na Constituição e, sobretudo

sintomático no quadro social do Império do Brasil – “Dos Cidadãos Brasileiros”. Mas,

antes de explicitá-lo, algumas ressalvas deverão ser feitas.

Na experiência colonial brasileira o corpo social agregava “portugueses

europeus”, “portugueses americanos”, que estavam ligados diretamente a sua terra,

portanto, pernambucanos, baianos, mineiros, paulistas, etc; e também as diferentes

“Nações Africanas”, como, monjolos, benguelas, quiloas, rebolos; esses indivíduos

dessas diferentes nações africanas eram trazidos como mão-de-obra escrava. Vejam

aqui que a palavra Nação não carrega o sentido político que analisamos acima, mas sim

o caráter étnico.

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Com a emancipação política, em 1822, há o surgimento de um “tempo novo”

na experiência histórica brasileira. E esse “tempo novo” se dá no período do Sattelzeit

(1750 – 1850), período em que Koselleck concentra os seus estudos, no qual nos indica

mudanças profundas nas experiências de homens e mulheres, na aceleração e mudança

do tempo histórico, na concepção moderna de história e principalmente nas reclivagens

dos conceitos políticos centrais.8

Com o advento da Independência, ou seja, desse “tempo novo” se estabelece

uma nova relação entre nascer e pertencer à uma Nação, a um território brasileiro, um

território nacional.

Na etimologia da palavra nascer vem de nascor; do mesmo verbo latino deriva

natio, que dá a origem a palavra nação na língua portuguesa. Nação, no entanto, se

diferencia de pátria na própria etimologia, que vem de pater – “a terra de meus pais”.

Mas é claro que ambos os conceitos – nação e pátria – carregam certa sinonimização de

conteúdos.

Voltemos agora a Constituição de 1824, a fim de tornar claro nosso ponto até

então não explicitado de fato:

(Art. 6) “São Cidadãos Brasileiros”

I – Os que no Brasil tiverem nascido, que sejam ingênuos, ou libertos,

ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por

serviço da sua Nação. (...)

IV – Todos os nascidos em Portugal, e suas possessões, que sendo já

residentes no Brasil na época, em que se proclamou a Independência

nas Províncias, onde habitavam aderiram a esta, expressa ou

tacitamente, pela continuação da sua residência.

V – Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua religião.

A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de

naturalização.

Então, compreende-se que desde a Independência de 1822, nascer era pertencer

a um novo corpo político e consequentemente a uma nova Nação. No entanto, vê-se

aqui o surgimento de um Estado-Nação, onde o alicerce de sua soberania era marcado

pelo nascimento. O nascimento exigia certa adesão e fidelidade exclusiva, só tolerando

8 Reinhart Koselleck. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006.

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outras identidades caso essas não conflitassem com a prioridade da lealdade nacional.

Não é por acaso que o velho Andrada, funcionando tanto como herdeiro de uma

experiência histórica – o período colonial brasileiro - quanto construtor de um novo

Estado-Nação9 diz que “brasileiro é todo aquele que segue a nossa causa”.

Bom, se os cidadãos do novo Império já não eram mais “portugueses

americanos”, eles ao menos permaneciam pernambucanos, paulistas, baianos, mineiros,

etc. Antes de expressarem suas localidades como sentimento de pertença, eles deveriam

pensar, sentir e agir como brasileiros. Percebe-se então que ‘n’ identidades (locais ou

regionais) se deslocavam para uma nova identidade, ou seja, o lugar de nascimento

(lugar ligado a uma família, lugar de poucos) – a Pátria – se deslocava para um outro

espaço mais amplo – a Nação.

Essa nova relação nascer – pertencer à Nação em um território permite

identificar quem não era brasileiro: os escravos e os portugueses (nascidos em

Portugal), embora habitassem o território do Império.

Os escravos, excluídos de cidadania, por mais que se tornassem libertos através

das alforrias, somente aqueles nascidos no território do Império se tornavam cidadãos

brasileiros. Com isso, configurava um corpo social pautado em hierarquias e exclusões.

A liberdade, aqui, estabelecia a diferença fundamental entre livres e não-livres

(escravos) ao mesmo tempo em que podia identificar libertos e ingênuos (os filhos de

escravas nascidos livres). O atributo liberdade definia a sociedade civil, formando uma

equação de homens livres iguais a cidadãos. Isso, no entanto, permite compreender a

diferença entre cidadãos e habitantes no território do Império do Brasil.

Um escravo não podia ser um brasileiro porque não era um homem livre. Um

escravo não era dono de si próprio, isto é, era propriedade de outra pessoa. Por essa

relação além de não ser considerado brasileiro, um escravo não deveria ser considerado

uma pessoa, existindo aí um entendimento do escravo como coisa.

Neste sentido, ao atributo da liberdade agregava-se o atributo da propriedade,

principalmente a propriedade de escravos. A ligação entre esses dois atributos fornece

mecanismos para a configuração de visões de mundo e sistemas classificatórios que se

impunham a sociedade no determinado momento. Essas representações dirigiam a

conduta social, pois, por meio delas é que cada indivíduo ou grupo social toma

consciência de sua relação com a experiência vivida.

9 Construtores e Herdeiros. A trama dos interesses na construção da unidade política. Almanack Braziliense - Revista Virtual, São Paulo, v.1, n. 1, p. 8-26.

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Tais representações podem ser encontradas na literatura, a tomar como

exemplo, o trecho do romance Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis

pode nos tornar claro tais relações entre dominador e dominado, pessoa e coisa:

“(...) Prudêncio, um moleque da casa, era meu cavalo de todos os

dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa

de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão,

fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, -

algumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou,

quando muito, um ‘ai, nhonhô!’ ao que eu retorquia: Cala a boca,

besta! 10

O atributo propriedade reforçaria as desigualdades e hierarquias na sociedade

civil, ou seja, diferenciava os homens livres e os homens livres e proprietário de

escravos. Tal configuração projetava a sociedade política, ou seja, os cidadãos ativos –

com direitos políticos e os cidadãos não-ativos – sem direitos políticos. Na verdade, os

cidadãos ativos deveriam reunir “capacidades e habilitações”. Neste sentido, os

“Representantes da Nação” termo contido na Carta Constitucional, deveriam ser “a

parte mais importante da nacionalidade” diria um chefe de casa, também proprietário de

escravos e terras.

Tornando mais complexo o organograma da sociedade política da época

existiam, além de tudo, hierarquias entre os cidadãos ativos, os que reuniam

capacidades para ser deputado e os que reuniam para ser senador, em um sistema

eleitoral indireto e censitário. Vejamos como isso se dava no nosso documento em

destaque:

“Das Eleições”

(Art. 90) “As nomeações dos Deputados, e Senadores para a

Assembléia Geral, e dos Membros dos Conselhos Gerais das

Províncias, serão feitas por Eleições indiretas, elegendo a massa dos

Cidadãos ativos em Assembléias Paroquiais os Eleitores de

Província, e estes os Representantes da Nação, e Província.”

10 Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: Obra Completa. vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

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(Art. 91) “Têm voto nestas Eleições primárias”

I – Os Cidadãos Brasileiros, que estão no gozo de seus direitos

políticos.

II – Os Estrangeiros naturalizados.

“São excluídos de votar nas Assembléias Paroquiais”

I – Os menores de vinte e cinco anos, nos quais se não compreendem

os casados, e Oficiais Militares, que forem maiores de vinte e um

anos, os Bacharéis Formados, e Clérigos de Ordens Sacras.

III – Os criados de servir (...), os Criados da Casa Imperial (...), e os

administradores de fazendas e fábricas.

IV – Os Religiosos, e quaisquer, que vivam em Comunidade claustral.

V – Os que não tiverem de renda líquida anual de cem mil réis por

bens de raiz, indústria, comércio, ou emprego.

(Art. 94) “Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados,

Senadores e Membros dos Conselhos de Províncias todos os que

podem votar na Assembléia Paroquial. Excetuam-se:”

I – Os que não tiverem renda líquida anual duzentos mil réis (...).

II - Os Libertos.

III – Os criminosos pronunciados por querela, ou devassa.

(Art. 95) “Todos os que podem ser Eleitores, hábeis para serem

nomeados Deputados, Excetuam-se:”

I – Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda líquida (...)

II – Os Estrangeiros naturalizados.

III – Os que professarem a Religião do Estado.

A igualdade jurídica baseada no princípio “todos são iguais perante a lei”;

plena garantia do direito de propriedade privada e de iniciativa econômica; abolição dos

açoites, castigos, torturas e penas cruéis; instrução primária gratuita para todos os

cidadãos estão expressos no artigo 179 na Constituição de 1824.

Todavia, uma marca característica da Carta de 1824 era a instituição de um

quarto poder político – o Poder Moderador.

(Art. 10) “Os Poderes Políticos reconhecidos pela Constituição do

Império do Brasil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder

Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial.”

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(Art. 98) “O Poder Moderador é a chave de toda organização

política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe

Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que

incessantemente vele sobre a manutenção da Independência,

equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos.”

(Art. 101) “O Imperador exerce o Poder Moderador”

I – Nomeando os Senadores.

II – Convocando a Assembléia Geral (...).

III – Sancionando os Decretos (...).

IV – A provando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos

Conselhos Províncias.

V – Prorrogando, ou adiando a Assembléia Geral, e dissolvendo a

Câmara dos Deputados, nos casos, em que exigir a salvação do

Estado; convocando imediatamente outra, que a substitua.

VI – Nomeando, e demitindo livremente os Ministros de Estado.

VII – Suspendendo os Magistrados (...)

Com seus 179 artigos, dos quais apenas o último abordava algumas questões

sociais, a Constituição de 1824 foi feita por “alfaiates políticos”, e estava sob medida.

Liberal na concepção geral, com os princípios da igualdade jurídica, da representação e

da divisão de poderes, era na verdade uma Carta fortemente conservadora e

centralizadora, com o primado do Poder Moderador; as restrições eleitorais e a

submissão das províncias ao governo central. Sobre a questão da escravidão, como

também a situação das populações indígenas, houve negligência e silencio absoluto no

texto constitucional.

Não bastaria estar formalizado o pacto político; a tarefa ainda não estava

concluída. A figura do Imperador precisava estar nos corações e mentes dos homens e

mulheres do Império do Brasil. No cotidiano, pós-independência, desses homens e

mulheres, a concentração de poderes nas mãos de D. Pedro I se refletiu, entre outras

manifestações, no culto à figura do imperador. Os escritos de Iara Lis mostram como

esse culto ao Imperador foi articulado ao discurso liberal, de modo a estabelecer limites

para a noção de liberdade e perpetuar a ordem escravista e a dominação das elites.

Vejamos a seguir:

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“Era muito importante espalhar a festa pelo país, pois ajudava a

circunscrever o território do soberano, fundando um Estado

Monárquico. (...) Note-se que as festas e os juramentos, cheios de

vivas e atravessados por um vocabulário de cunho liberal,

concorriam para aplacar as diversas reivindicações populares,

negras e escravas e punham um limite e um fim à noção de liberdade,

estabelecendo um modo correto, mais condizente com as elites, com a

perpetuação da ordem senhorial, de comprometer e fundar o pacto

político e a vida social.”11

Voltando a um indício deixado pela historiadora na epígrafe deste trabalho,

põe-se o término a reflexão com algumas observações; conquistada a Independência,

outros desafios apresentavam-se ao novo corpo político – conduzir a transição da

condição de colônia para a de nação, definir o regime de governo e organizar o Estado.

Descartada a solução republicana, segundo o modelo norte-americano, restava o

figurino inglês de uma monarquia constitucional. Mas as dificuldades para aplicá-lo

eram muitas, a começar pelas inclinações autoritárias do Imperador.

A isso somava o conservadorismo das classes dominantes, que não admitiam

alterações na estrutura da sociedade escravista. Essas ambigüidades e contradições

foram bem observadas e registradas por alguns contemporâneos. Além de seu valor

científico e cultural, as anotações desses observadores ajudam a compreender o

tumultuado processo político naqueles anos de construção do Estado-Nação e a

brevidade do Primeiro Reinado.

A única conclusão de fato é que consolidar a independência e estabilizar o

Império fora tarefa para mais de uma geração de herdeiros e construtores.

11 Iara Lis C. Souza. A Independência do Brasil. Rio de Janeiro, Zahar, 2000. pp. (56 – 62)

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FONTES

Constituição Política do Império do Brasil de 1824. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm Acesso

em: 29/07/2009.

Anais da Assembléia Constituinte de 1823.

Diário da Assembléia Geral, Constituinte e legislativa do Império do Brasil.

Coleção das leis do Império do Brasil de 1823.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

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XVII e XVIII”. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação.

São Paulo: Hucitec, 2003.

COSTA, Emilia Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São

Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.

GUERRA, François-Xavier. “A nação moderna: nova legitimidade e velhas

identidades”. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação.

São Paulo: Hucitec, 2003.

SOUZA, Iara Lis C. A Independência do Brasil. Rio de Janeiro, Zahar, 2000.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos

históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004.

______________________, Do Império do Brasil ao Império do Brasil. In:

Faculdade de Letras da Universidade do Porto. (Org.). Estudos em homenagem a Luís

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