a capoeira como prÁtica de ensino de histÓria e … · tratamento desigual, promovendo o...

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A CAPOEIRA COMO PRÁTICA DE ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA: SUA APLICAÇÃO COM ALUNOS DE 9° ANO DO

COLÉGIO ESTADUAL 29 DE ABRIL – EFM. GUARATUBA, PARANÁ

Professora PDE: Silvia Lipski Vicentine

Orientadora: Prof. Dra. Eulália Maria A. De Moraes

RESUMO Este projeto atém-se à cultura afro-brasileira e africana, sobretudo na capoeira como

uma maneira significativa de refletir sobre sua valorização. A Lei 11. 645/março de

2008 instituiu algo que deveria ser naturalmente reconhecido pela sociedade, uma

vez que 50% da população brasileira possui uma afrodescendência. Como não

trabalhar as heranças, as culturas dos diferentes africanos aqui escravizados?

Entretanto, a Lei foi promulgada na intenção de que a Cultura afrodescendente fosse

trabalhada de maneira significativa e não apenas em datas comemorativas, ou

ainda, retomando fatores voltados à escravidão. Neste sentido, este artigo é

resultado de uma pesquisa-ação que objetivou estimular os alunos a refletirem

sobre a constituição da população brasileira através da influência da cultura

afrodescendente, reconhecendo e valorizando esta por meio de práticas de ensino

voltadas para a Capoeira, sua história, dança, musicalidade, ritmos, valores, etc.

Também, possibilitando a interação da sociedade estudantil, como instrumento

pacificador entre as diferenças raciais e culturais, respeitando o modo de pensar de

cada cidadão, contribuindo assim, na inserção social dos educandos

afrodescendentes, vista a partir da adoção de seus valores, origens, tradições

religiosas, favorecendo assim, para a ampliação do conhecimento da história afro-

brasileira.

Palavras-chave: História; Cultura afro-brasileira; Capoeira; Sociabilidade.

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INTRODUÇÃO A capoeira é apresentada neste artigo como uma maneira atrativa de

envolver os alunos e levá-los a reconhecerem a importância da cultura

afrodescendente, além do mais, na essência de sua prática, os mestres de capoeira

preocupam-se em exaltar a etnicidade e as relações de afetividade, prezando pela

corporalidade, coletividade, sociabilidade e o companheirismo, questões importantes

dentro do contexto escolar. Assim, o trabalho com práticas de ensino voltadas para o

conhecimento da capoeira, bem como esporadicas apresentações e sucintas

atividades de prática desta, favoreceu no desenvolvimento e formação dos

educandos, levando a compreensão desta como constituinte da cultura nacional.

Todo o trabalho demonstrado neste artigo é resultado de uma pesquisa-

ação. Uma modalidade de pesquisa muito utilizada na área de educação e ensino,

onde os profissionais podem oportunizar sequências de atividades que envolvam

teoria e prática, podendo avaliar seu próprio desempenho dentro do processo de

ensino e aprendizagem, ou seja, observar a prática dentro do próprio processo de

investigação. Onde a sala de aula é o lugar que se pode atuar, intervir, estudar e

transformar realidades.

Assim, para uma melhor demonstração dos resultados dessa pesquisa-ação

e discussão de como foi desenvolvida e implementada no Colégio Estadual 29 de

abril, Guaratuba, Paraná, primeiramente serão exploradas as razões e justificativas

que levaram a construção do projeto de intervenção e em seguida a unidade

didática, atendo-se também em uma definição do que vem a ser a ―pesquisa-ação‖

através de subsídios teóricos, para por fim, apresentar e refletir-se sobre os

resultados significativos que foram alcançados ao longo dessa caminhada.

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A PRÁTICA DO ENSINO DE HISTÓRIA E A REALIDADE SOCIAL DO EDUCANDO

A Cultura Afro-brasileira e africana tem sido alvo de inúmeras pesquisas e

discussões em função dos problemas complexos que se referem a ela. Problemas

estes relacionados, especialmente as diferenças que ainda permanecem nas

escolas, ocasionadas pelas diferenças étnico-raciais. Entendemos que somente a

abordagem discursiva, não levará a exclusão do racismo mas sim o trabalho voltado

para o reconhecimento e valorização desta cultura que contribuirá para uma

amenização do racismo e preconceito. Entendemos que o trabalho contribui,

também, no desenvolvimento social, cognitivo dos alunos advindos desta cultura que

sofrem bloqueios na aprendizagem, entre outros fatores do seu desenvolvimento

devido a repressão, ocasionada pelo racismo.

A reivindicação afro se apóia sobre o pilar de sua contextualização na base

histórica nacional. Contudo, há lugares em que a Lei 11.645/março de 2008 é

praticamente ignorada, sendo deixada de lado, muitas vezes, por falta de

capacitação de professores como também a escassez de materiais e recursos sobre

a temática: história e cultura afro-brasileira e africana.

Percebe-se que, as mudanças não estão ocorrendo apenas na parte

estrutural, pois também são sentidas na pele por alunos e professores. Estes, agora,

têm de buscar atualizações, cursos de extensão, capacitação profissional, entre

outros; aqueles terão que se acostumar a conhecer novas culturas e histórias

diferentes das quais estão expostos todos os dias.

Compreende-se que o primeiro passo foi dado, pois não teria um lugar

melhor, do que um estabelecimento de ensino, para abordar de forma didático

pedagógica todo um processo histórico cultural que envolve a presença da

população afro em solo brasileiro, qual teve por muito tempo suas vozes silenciadas.

O trabalho com a cultura afro é bem complexo e exige planejamento e

consciência de comprometimento no dia-a-dia escolar. Sobre essa complexidade,

cabe citar Carneiro (2003), que aponta a piora na qualidade do ensino nos últimos

anos, de acordo com estudos realizados pelo Ministério da Educação e Cultura

(MEC). Mostra que tal queda, entre os anos de 1995 e 2000, atingiu com maior

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impacto os estudantes negros, quer seja em estabelecimentos públicos quanto nos

privados. Avaliações posteriores demonstraram as diferenças existentes entre

alunos afros e brancos, em termos de aproveitamento escolar.

De acordo com a pesquisadora, entre os principais motivos das diferenças

existentes, destacam-se os seguintes: má qualidade do ensino; escassez de

repertório cultural das famílias negras, em geral, pobres ou abaixo da linha de

pobreza e; sobretudo, o racismo presente no cotidiano escolar que perpetua um

tratamento desigual, promovendo o esmagamento psicológico dos alunos negros,

rebaixando as suas habilidades cognitivas e impactando negativamente o seu

desempenho escolar (CARNEIRO, 2003).

Assim, destaca-se também que esta pesquisa não procurou excluir o

racismo e preconceito das escolas, mas proporcionou a estas novas gerações,

condições de reflexões partindo dos estudos de história e arte, priorizando um

material diversificado, como por exemplo: o caminho trilhado pela capoeira como

uma dança afro-brasileira (partindo das suas realidades,pois há alunos que

participam da capoeira em Guaratuba, Paraná), abrindo-se caminho para direcionar

e ampliar seus horizontes com o conhecimentos históricos, culturais, éticos, físicos,

entre outros. Além das reflexões e conhecimentos sobre a capoeira como dança,

optou-se por outros recursos interligados, como filmes, textos, documentários,

canções populares e reportagens.

Considerando-se que a capoeira já conquistou um espaço como esporte,

adotou-se nesta pesquisa-ação a sua importância como dança na constituição da

população afro descendente, e em conseqüência a influência que desencadeou na

cultura nacional.

Os esclarecimentos do parágrafo acima se devem ao fato de mostrar que

dessa maneira, deu-se uma atenção especial para que os alunos fossem

estimulados sobre a importância e riqueza da cultura afrodescendente, e sua

influência na cultura da sociedade brasileira.

Em conseqüência, houveram situações/ oportunidades concretas, que

consolidaram no imaginário dos alunos no geral, não somente o sentimento, mas a

certeza da sua inclusão social (no caso alunos que tem raízes na cultura afro

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descendente). Também economicamente, mas ainda mais sócio/ histórico e

culturalmente, se reconhecendo - os afros descendentes - como sujeitos do

processo histórico.

AS LEIS SANCIONADAS E A AFRICANIDADE BRASILEIRA A Lei 11. 645/março de 2008 instituiu algo que deveria ser naturalmente

reconhecido pela sociedade: em um contexto com 50% da população "afro", como

não trabalhar as heranças, as culturas dos diferentes africanos aqui escravizados?

Assim a Lei vem gerando resultados significativos, onde milhares de jovens

negros e brancos estão aprendendo sobre a cultura e a história afro-brasileira e

principalmente a conviver e respeitar as diferenças.

Mais especificamente observa-se que a Lei 10.639 de 09 de janeiro de

2003, sancionada pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva alterou a Lei de Diretrizes

e Bases (LDB) e por sua vez foi alterada pela Lei 11.645/ março de 2008, a

diferença é que esta ultima inclui no currículo oficial da rede de ensino a

obrigatoriedade da temática ―História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena‖, pois a

questão do indígena também é importante na constituição da cultura brasileira.

Buscou-se com isso, resgatar a contribuição da raça negra nas áreas sócio /

econômico, política e cultural no cenário brasileiro. A lei propõe ainda, que os

calendários escolares incluam o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da

Consciência Negra”.

Salienta-se que a lei vem ganhando força. Um exemplo são os livros

didáticos, pois os que existiam omitiam a história negra e restringiam personagens

políticos apenas à figura de Zumbi.

Neste sentido, a inclusão do tema História e Cultura Afro-brasileira e

Africana nos currículos das escolas, já se tornou um direcionamento significativo,

para o reconhecimento da influência dessa cultura no Brasil. No entanto, somente a

inclusão não levará a nada, não basta a intenção estar no papel e ser trabalhada

apenas em datas especiais, ou semanas específicas para se refletir sobre tal cultura.

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É necessário assumir um compromisso, onde o trabalho com a história e a

cultura afro, se praticado desde cedo, na infância e adolescência, com certeza

modificará hábitos viciosos que levam à prática cotidiana do racismo. Neste

contexto, é com atividades, reflexões e atividades do cotidiano/contexto escolar que

tornarão o que é exigido em Lei, efetivo contribuindo no desenvolvimento social,

assumindo e compreendendo a importância da Cultura afro-Brasileira na

constituição da sociedade como um todo.

Cabe destacar que a maioria da população de origem negra vive em um

meio socioeconômico desfavorável, carregando consigo formas culturais

relacionadas a conflitos, resistências, rejeição, superação e exclusão. Assim, os

elementos associados à valorização, arte, música e dança, não são exaltados,

prevalecendo ainda às outras referências históricas e culturais, que levam algumas

vezes à recusa da origem e identidade negra.

Enfim, os resultados aqui demonstrados, vão contribuir na reflexão, partindo

da Lei que já está incluída no Currículo e Projeto Político Pedagógico do Colégio

Estadual 29 de Abril, em Guaratuba, Paraná.

No entanto, através dessa inclusão no currículo somada às práticas

metodológicas elaboradas especialmente para a implementação, os alunos

acabaram envolvidos conhecendo não só a importância da Lei, e da cultura como

um todo, mas principalmente nas atividades relacionadas à música e dança da

capoeira, com o ritmo, o movimento, os valores, entre outros elementos

fundamentais para o reconhecimento e valorização da história e cultura afro-

brasileira.

A afirmação da identidade negra, com orgulho e com amor, é um dos

maiores ganhos possíveis a partir da prática efetiva desta Lei, e isso foi possível de

se vivenciar e perceber na transformação do conhecimento e comportamento dos

educandos do nono ano, que participaram deste trabalho de intervenção.

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A PESQUISA-AÇÃO E A VALORIZAÇÃO DA CULTURA AFROBRASILEIRA

A pesquisa-ação conforme citado na apresentação deste artigo é uma

modalidade de pesquisa pertencente à pesquisa qualitativa, onde também recebe a

classificação de descritiva. O fato é que não há uma definição específica, e sim

diferentes conceitos para definí-la dentro do processo de pesquisa, investigação,

implementação, e transformação da realidade estudada.

Para uma melhor compreensão quanto a importância dessa modalidade de

pesquisa na área de educação, cabe citar Tripp (2005, p. 443):

A pesquisa-ação educacional é principalmente uma estratégia para o desenvolvimento de professores e pesquisadores de modo que eles possam utilizar suas pesquisas para aprimorar seu ensino e, em decorrência, o aprendizado de seus alunos [...].

Assim, como pode-se concluir a partir da citação anterior, a pesquisa-ação é

iniciada com um projeto de intervenção, onde são identificadas estratégias de ação,

que por sua vez são planejadas, implementadas e, a seguir, sistematicamente

submetidas a observação, reflexão e mudança.

A implementação aconteceu de maneira gradativa, onde se iniciou com

atividades e práticas mais simples, para outras mais complexas. Dessa forma,

conforme as estratégias de ação e a sequência didática elaborada no caderno

pedagógico, apresentou-se inicialmente o projeto de intervenção, demonstrando-se

aos alunos o que estaria se propondo.

Assim, a linguagem foi adequada conforme o público alvo, nono ano do

Ensino Fundamental do Colégio Estadual 29 de abril, Ensino Fundamental e Médio,

Guaratuba, Paraná.

As primeiras discussões e reflexões foram associadas a práticas de ensino

de história, atendo-se na importância da cultura afrodescendente e na sua influência

perante a cultura brasileira, entre outras questões importantes.

Destaca-se o que aponta Oliva (2003, p. 422) ― temos que reconhecer a

relevância de estudar a História da África, independente de qualquer outra

motivação‖. Assim foi fundamental contextualizar a influência da cultura africana na

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cultura brasileira em diferentes questões, como: a linguagem, culinária, música,

esportes, religião entre outros.

Considerando-se que foi fundamental estimular os educandos, salienta-se

que no total foram aplicadas e implementadas 5 (cinco) ações, das quais, utilizaram-

se diferentes recursos e linguagens, para envolver-se o aluno no universo da cultura

afro-brasileira. Logo, trabalhou-se com textos ilustrativos, trechos de filmes, também

um filme completo, juntamente a uma roda de capoeira, em que os alunos

participaram visualizando, ou envolvendo-se de alguma forma, como: ritmo,

disciplina, entre outras questões ligadas à linguagem corporal.

As práticas de ensino durante a implementação tiveram aproximadamente a

duração de duas horas aulas, havendo sempre uma retomada às atividades

anteriores. Após a explicação do projeto e explanação sobre a importância da

cultura africana na brasileira, e do texto informativo sobre a capoeira, deu-se

continuidade com a atividade intitulada ―Aprofundando os conhecimentos‖, onde os

educandos assistiram alguns vídeos explicativos visualizando a capoeira, o seu

ritmo e os movimentos. A partir das discussões, foram feitas atividades em grupo,

para que eles transmitissem para o papel o assunto internalizado.

Tal estudo foi direcionado com perguntas breves, para que houvesse a

sistematização das questões exploradas até então, como por exemplo o surgimento

da capoeira e sua relação com a escravidão, a religiosidade. Portanto, os alunos

seguiram com suas respostas constituídas a partir do saber prévio que tinham com

relação à capoeira, juntamente aos conhecimentos reelaborados com os vídeos e

textos mediados.

O surgimento da capoeira está diretamente relacionado ao período de

escravidão. Essa relação é devido a capoeira ter sido desenvolvida por escravos

como uma forma de luta contra a opressão. Soares (1994), explica que durante

grande parte do século XIX a capoeira, antes de receber o status de expressão

cultural, foi criminalizada. Pois, era entendida apenas como luta, ou forma de luta

corporal usada principalmente por escravos, isoladamente ou em grupos, chamados

‗maltas‘, assim, a capoeira foi alvo de perseguição violenta do Estado.

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Rodrigues & Braga (2008), complementam explicando que nas primeiras

décadas do período republicano a capoeira esteve no código penal brasileiro, sendo

proibida. No entanto, em 1937 ela foi descriminalizada pelo presidente Getúlio

Vargas e passou a ser praticada em academias, nas ruas e praças das cidades.

Santos (2004), complementa o pensamento de Soares (1994), afirmando que

historicamente, a capoeira consistiu em uma prática marginal e, por séculos, foi

vinculada a negros escravos e libertos. Surgiu da reelaboração cultural em que a

busca da ancestralidade, a preservação da tradição e a manifestação contra o poder

sempre estiveram presentes. Com o tempo, a visão da capoeira foi mudando na

sociedade brasileira.

De acordo com Barbosa (2005, p. 78):

A capoeira é um ritual de luta, dança e jogo que funciona como um sistema recreativo, estético, ético e profissional. Mestres e aprendizes cultuam-na como um processo libertário no qual o indivíduo aprende a se posicionar no centro de si mesmo e a encontrar seu espaço de mediação, ou seja, seu ponto de referência na roda do jogo e do mundo. Para eles, a capoeira é a articulação de uma linguagem do corpo com os planos mental e espiritual.

Observa-se assim que as expressividades direcionadas pela capoeira são

profundas, onde há interpretação da realidade, da vida e do mundo dos que a

praticam, buscando harmonia entre os movimentos da dança com os ritmos da

música.

Neste contexto, a capoeira tem por base aspectos da cultura afro-

descendente, sendo uma expressão que evolve dança, musicalidade e religiosidade,

possui um caráter lúdico.

É neste contexto da ludicidade e do ritmo que se proporcionou o estímulo ao

estudo e valorização da história e cultura africana e afro-brasileira. Para uma melhor

visualização da questão dos desafios enfrentados pelos capoeiristas na antiguidade,

como também uma melhor contextualização da capoeira no Brasil, foi passado aos

alunos o filme ―Besouro‖, uma produção nacional na Bahia, da década de 20.

Retrata os negros do interior que continuavam sendo tratados como escravos,

apesar da abolição da escravatura já ter ocorrido. Entre eles está Manoel (Aílton

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Carmo), que quando criança foi apresentado à capoeira pelo Mestre Alípio (Macalé).

O tutor tentou ensiná-lo não apenas os golpes da capoeira, mas também as virtudes

da concentração e da justiça. A escolha pelo nome Besouro foi devido à

identificação que Manuel teve com o inseto. Ao crescer Besouro recebe a função de

defender seu povo, combatendo a opressão e o preconceito existente.

A atividade seguinte do filme, foi um debate, no qual muito alunos

participaram significativamente, direcionados perceberam as nuances entre a cultura

africana e a capoeira com seus princípios e valores.

Soares (1994, p. 311) afirma que ―a síntese cultural construída pelos africanos

no ambiente da escravidão citadina teve na capoeira um representante digno‖. A

convergência destes diferentes elementos na prática da capoeira demonstra seu

diferencial em relação a outras formas de lutas e danças.

Com base em Pires (1996, p. 63) a capoeira foi se desenvolvendo tanto nos

meios rurais como nos centro urbanos, ―os capoeiras assim organizados produziram

relações culturais próprias, demarcando uma tradição de grupos específicos,

cumprindo papel singular nas relações sociais, políticas e culturais na cidade do Rio

de janeiro da segunda metade do século XIX‖.

Bomfim (2003), explica que a capoeira desenvolveu-se e dividiu-se em

modalidades, dentre elas o autor cita A Capoeira Angola e a Capoeira Regional, que

são as que mais se destacam. Na sua distinção entre estas modalidades, o autor

verificou que a Capoeira Regional se transformou em esporte nacional e caminhou

para uma elitização que a fez perder relativamente sua etnicidade e tradição,

enquanto a Capoeira Angola manteve a tradição e sua história ancestral.

Neste sentido, os mestres angoleiros se preocupam em transmitir os

conhecimentos da capoeira em todas suas esferas (musical, de movimentação e

histórica) quanto uma filosofia de vida. Assim, as pessoas que praticam a Capoeira

Angola exaltam a etnicidade dessa modalidade e mantém relações de afetividade

entre si, além de se oporem à massificação crescente que caracteriza a

contemporaneidade. Eis porque o ensino da Capoeira Angola tem em suas bases o

―sentido de comunidade, na oralidade, no respeito e na reverência aos ancestrais,

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na corporalidade, no olhar, no toque, na musicalidade, na mandinga‖ (SANTOS,

2004, p. 53).

Salienta-se também que, são extremamente valorizadas a coletividade, a

sociabilidade e o companheirismo, questões importantes dentro do contexto escolar.

Assim, compreende-se que o trabalho com práticas de ensino voltadas para o

conhecimento da capoeira como sucintas atividades de prática desta, podem

favorecer no desenvolvimento e formação dos educandos, além de compreenderem

a dança da capoeira como constituinte da cultura afro-brasileira.

Ainda citando o pensamento de Santos (2004), tem-se que o corpo nesta arte

pode ser visto como forma de expressão, divertimento e diálogo. A musicalidade

presente na Capoeira Angola é o complemento indissociável e indispensável ao

corpo. O corpo se movimenta mediante os sons emitidos pelos instrumentos que

compõem a roda de Capoeira Angola (berimbaus, pandeiros, atabaque, agogô e

reco-reco). Além disso, seu elemento poético, representado pelas cantigas entoadas

nas rodas, trazem em seus conteúdos ensinamentos, fatos históricos, culto aos

ancestrais e o passado de sofrimento destes no período da escravidão.

Enfim, compreende-se a partir de Santos (2004) que atualmente, a capoeira é

um ritual que mantêm o sincretismo cultural, como é demonstrado nos gestos, nos

cânticos, nos toques dos berimbaus, nos louvores, na dança, na luta e na

brincadeira. Uma vez que, com o tempo, a Capoeira desenvolveu uma linguagem

própria para expressar suas inquietudes e suas glórias, uma visão sobre o mundo

que carrega as experiências do oprimido e constituem história que contrapõem a

visão eurocêntrica que se sedimentou nas instituições, na memória e nos

documentos que até hoje se fazem presentes no ensino.

Assim, a Capoeira, então, é uma prática social constituída pela tradição

cultural dos negros no Brasil e tem na base de sua história a exclusão e as forças de

superação.

Devido a esta ser respeitada e entendida como esporte, dança ou brincadeira,

e também resultar em trabalhos de ressocialização através de diversos órgãos,

entidades e projetos sociais, destaca-se que foi um excelente meio para o trabalho

com a história da África e cultura Afro-brasileira, sobretudo, pelo fato de estimular

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nos educandos o desenvolvimento da cultura física, mesmo que superficialmente

através dos movimentos dançantes, também despertou o aprender sobre os

aspectos históricos da capoeira e a sua importância enquanto instrumento afirmador

de identidade étnica.

Por fim, na ultima atividade possibilitou-se uma palestra aos educandos, com

o mestre de capoeira do município de Guaratuba, explicitando-se sobre a Capoeira,

pontos importantes, como a disciplina, a defesa, a socialização, a música, os

instrumentos, entre outras questões. Após a palestra, os alunos juntamente ao

professor e o mestre fizeram uma pequena roda de capoeira para vivenciarem a

música, o movimento e a sistematização do histórico, estudado durante a

implementação.

Dessa forma, tanto o projeto de intervenção, como o caderno pedagógico,

tiveram como foco central o estímulo da reflexão da cultura afro-brasileira nos alunos

do nono ano, unindo história e arte, não interpretando um conhecimento

fragmentado, mas interligado e contribuinte para amenizar o racismo e preconceito

na escola.

Com os vídeos e o Filme Besouro, foi possível povoar o imaginário dos alunos

com histórias que os levasse a refletir sobre os valores partilhados pela humanidade,

vividos por personagens negros, alimentando todos os discentes do sentimento de

igualdade e ao estudante negro, em especial, o qual recebeu parâmetros positivos

de identidade e de autoestima.

Assim, as reflexões favoreceram a desconstrução do preconceito racial e a

reafirmação de uma autoestima positiva da população negra e mestiça. Ensinando

sobre e diversidade, através de situações de aprendizagem desafiadoras como a

roda de capoeira compartilhada entre os educandos.

Durante a implementação, todas as atividades integrantes do PDE –

Programa de Desenvolvimento Educacional do Paraná, ficaram a disposição do

GTR – Grupo de Trabalho em Rede, para troca de experiências com outros

professores do estado do Paraná. Entre as mais variadas contribuições obtidas no

GTR, 2011, selecionou-se algumas para uma melhor apresentação, como pode se

observar nos depoimentos a seguir:

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[...] é vergonhoso pensar que foi preciso existir uma lei para que a cultura afro fosse vista com um pouco menos de discriminação, pois sabemos que mesmo hoje após a existência dessa lei ainda existe discriminação e é mais difícil aceitar que seres humanos no passado foram massacrados e torturados. Agora cabe a nós historiadores entre outros ―arregaçar as mangas‖ no intuito de repassar aos nossos educandos uma nova visão de mundo em relação aos afros e os indígenas (PROFESSOR/GTR/2011).

Assim, os professores do estado do Paraná, consideram que foi importante

a lei e a inclusão da história e cultura afro-brasileira e indígena nos currículos,

entretanto, se o preconceito não tivesse perpetuado desde a antiguidade, a criação

da lei não seria necessária.

Os esforços para se efetivar o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e

Indígena perpassam pela formação continuada dos/as professores/as e pelo

comprometimento do Estado em efetivar ações que imprimam novos olhares acerca

das relações étnico-raciais. O caminho estende-se desde a percepção da sua

importância no contexto histórico brasileiro ao estudo aprofundado da História e

Cultura Afro-brasileira e Indígena, até as possibilidades de se trabalhar esses

conteúdos no currículo escolar.

Em outro depoimento, encontra-se um ponto de vista mais positivo perante a

Lei e os resultados que ela pode desencadear na educação:

A lei foi criada para combater o racismo e a discriminação, valorizando a contribuição da raça negra para a construção da sociedade brasileira, dando oportunidades de todas as pessoas conhecerem um pouco melhor sobre a história dos negros (PROFESSOR/GTR/2011).

Portanto, conforme expõe o professor no depoimento acima, compreende-

se que até então a história e cultura dos afrodescendentes era abordada de maneira

fragmentada, superficial em datas ou semanas específicas para esta temática, onde

a sua inclusão no currículo, permite não a diminuição do preconceito, mas uma

amenização perpetuada com o conhecimento quanto as particularidades de tal

cultura que é tão presente na cultura brasileira.

A exploração a partir da capoeira foi recepcionada pelos professores do

GTR/2011, positivamente e muito opinaram em diferentes possibilidades em

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trabalhá-la, pois a mesma é muito abrangente, associada ao esporte, dança, ritmo,

respeito, disciplina, entre tantos outros fatores positivos para a formação e

constituição da identidade do educando, negro ou não.

Sobre a capoeira, entre os vários depoimentos, foram escolhidos os a

seguir:

A capoeira é um atrativo para crianças e adolescentes independente da etnia ou classe social tendo forte poder socializador no que se refere à disciplina e respeito. Aliado ao ensino na forma multidisciplinar tem-se a possibilidade de uma aprendizagem mais ampla, consciente e reflexiva dos valores sócio culturais que a envolvem, construindo a integração do aluno negro ao ambiente escolar e a sua comunidade, facilitada pela valorização e pelo respeito a sua cultura. Acredito nas vantagens do ensino da capoeira dentro da prática pedagógica multidisciplinar que tem como possibilidade a conscientização da identidade cultural e da formação cidadã será capaz de promover nos alunos mudanças de atitudes em seu convívio social através do conhecimento mais amplo desta cultura (PROFESSOR/GTR/2011). [...] a capoeira é um símbolo de resistência da cultura africana, exibido com orgulho por nossos alunos afrodescendentes e simpatizantes. O educando tendo acesso ao conhecimento histórico da capoeira, que perpassa toda a história do Brasil, desde do tempo da colônia até os dias atuais. História que os livros didáticos não contam, quando contemplam fazem recortes e muitas vezes com estereótipos de inferiorização(PROFESSOR/GTR/2011). O estudo da Capoeira, aborda várias temáticas, como saúde, pois a Capoeira pode ser considerada um esporte; educação e cultura, pois é arte, como elemento de dança e de folclore; cidadania, pois é manifestação e expressão de um povo oprimido em busca da sobrevivência, liberdade e dignidade, tendo como tema principal a educação para a paz, pois tem como objetivo principal diminuir a agressividade, com erradicação da violência e desenvolvimento de valores humanos(PROFESSOR/GTR/2011).

Enfim, a Capoeira, é uma prática social constituída pela tradição cultural dos

negros no Brasil e tem na base de sua história a exclusão e as forças de superação.

Devido a esta ser respeitada e entendida como esporte, dança ou brincadeira, e

também resultar em trabalhos de ressocialização através de diversos órgãos,

entidades e projetos sociais, considera-se que foi um excelente meio para a

exploração da História e Cultura Afro-brasileira no Colégio Estadual 29 de Abril no

município de Guaratuba, Paraná e sobretudo, por ter estimulado nos educandos o

desenvolvimento da cultura física, mesmo que superficialmente através dos

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movimentos dançantes, também despertado o aprender sobre os aspectos históricos

da capoeira e a sua importância enquanto instrumento afirmador de identidade

étnica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitas questões tornaram-se claras ao final de todo o trabalho planejado e

desenvolvido. Principalmente de que ações coletivas são fundamentais para se

romper com barreiras de preconceito e comodismo no contexto escolar. Preza-se

por uma educação pela diversidade e diferença, mas pouco se efetiva na realidade,

além do mais, há leis, decretos, entretanto para que as ideias saiam do papel e se

transformem em ações, necessita-se de uma abordagem mais profunda e

sobretudo, volte-se para atividades que envolvam os educandos

interdisciplinarmente.

Percebeu-se sutilmente com a implementação do caderno pedagógico não

só a concretização dos objetivos do projeto de intervenção, mas a compreensão de

que a sala de aula não é apenas os espaço onde se transmitem informações, e sim

um espaço onde se estabelece uma relação de proximidade, onde as opiniões,

significações e sentidos vão se formando visivelmente.

Destaca-se também que muitos já se tem feito para a melhoria das

concepções sobre a história e cultura afro-brasileiras, e existem infinitas

possibilidades de trabalha-la de maneira produtiva e significativa para os educandos,

neste artigo, demonstrou-se uma delas. A qual ultrapassou os limites do ensino e

aprendizagem, e foi além da mecânica dos movimentos, e construiu-se múltiplas

inter-relações envolvendo os educandos em sua totalidade, considerando suas

particularidades, bem como, o contexto sócio cultural.

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REFERÊNCIAS

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