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A caixa de Zoé -

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A caixa de Zoé -

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- A.C. Gardini

A. C. Gardini

A caixa de

Z O É

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A caixa de Zoé -

À minha esposa,Minha Inspiração.

Ao meu filho,Minha Continuação.

Às minhas filhas,Minha Iluminação.

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- A.C. Gardini A caixa de Zoé -- A.C. Gardini A caixa de Zoé -

Capítulo 1

O velho encontrava-se sentado em sua poltrona, de

frente para a lareira, fingindo que lia um livro. A noite es-

tava fria e ele se deixou ficar ali, pensando em como a vida

conseguira lhe pregar tantas peças ao mesmo tempo em que

lhe dera uma recompensa que superava qualquer tesouro

no mundo.

Sua neta, filha de sua filha, era o único motivo que

fazia com que ele, de tempos em tempos, voltasse à civili-

zação.

Usava aquele escritório com decoração simples, teto

de vigas de madeira aparente e estantes de mogno cheias de

livros e recordações, que para ele representavam muito mais

que suas viagens. Ali ele colocara toda sua vida. Quantas

vezes se deixara ficar naquela mesma poltrona escrevendo

seu diário, que um dia pertenceria à sua neta!

Tinha uma paixão especial por Zoé.

Ela, uma menina inteligente, esperta, bonita, com

uns olhos que sempre estavam procurando por alguma no-

vidade.

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A caixa de Zoé -

Ele, que nunca se cansava de responder às suas per-

guntas e vezes sem conta ficava ali sentado, sempre se di-

vertindo com a curiosidade da pequena.

Naquela noite, a pequenina já havia se retirado e a

lua ia alta no firmamento. O calor do ambiente fez com que

ele adormecesse com o livro sobre suas pernas, e deixou-se

levar por seus sonhos em suas jornadas. Não ouviu o baru-

lho que veio da janela e nem percebeu o vulto que entrava.

Assim como o intruso, a lua agora também estava

oculta.

O vulto aproximou-se da poltrona onde ele dormia

e certificou-se do sono que o levara dali. Desferiu-lhe um

único golpe, tendo a certeza de que o matara. Teve tempo,

então, de revirar todo o aposento, buscando por algo que

parecia não encontrar. Já com raiva, tirou o aparador de

brasas da frente da lareira e, colocando-o de lado, espalhou

as brasas por todo o tapete, fazendo com que as chamas se

propagassem.

A poltrona se iluminou e fez com que o vulto ensan-

güentado adquirisse uma forma sobrenatural. Parecia que

mesmo na morte o velho estava tranqüilo, uma tranqüilida-

de irônica de quem escondeu algo.

O assassino tinha um propósito em mente. Metade

ele conseguiu.

Assim que o algoz abandonou o escritório em cha-

mas, o velho homem abriu os olhos e, sem entender direito

o que se passava, com o sangue escorrendo de sua cabeça,

gritou por socorro. Quando tentou se levantar, uma viga já

em chamas desprendeu-se do teto e caiu sobre suas pernas.

Preso, ele gritou ainda mais alto.

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0 - A.C. Gardini

No outro aposento, sua neta acordou em sobressalto

com os gritos e saiu em disparada em direção ao escritório.

Quando abriu a porta e viu o avô gritando em agonia sob

a viga em chamas, sentiu-se impotente. Recuou e desceu

as escadas, correndo em direção à rua. Ficou parada em

meio ao jardim, atônita, sem ter a quem pedir ajuda, e num

estado de torpor viu as chamas consumindo toda a casa.

A única coisa que restou naquela menina foram os gritos

do avô e as chamas que o envolviam. Uma cena que nunca

mais lhe sairia da mente.

Daquele dia em diante sua vida não poderia ser mais

a mesma, estava totalmente transformada.

Seria possível que desde pequena uma sina nefas-

ta a perseguisse como uma nuvem carregada de chuvas e

granizos a cair sobre uma região desértica? Desde pequena

já estava reservada ao sofrimento e às angústias de perdas

trágicas de entes tão próximos e tão amados?

Seu pai morrera logo depois de seu nascimento, víti-

ma de um acidente de carro, e sua mãe, quando ela contava

apenas quatro anos, fora vitimada por uma febre causada

por algum animal peçonhento em uma de suas viagens à

floresta. Desde então, o avô fizera o papel de pai e de mãe,

desempenhando-se como nenhum outro frente a tão árdua

tarefa. Ele sabia que nunca iria substituí-los, e ela agora

sabia, mais do que ninguém, que estava sozinha.

O que uma menininha órfã poderia fazer numa situ-

ação dessas? Como sobreviver sem o carinho de seu querido

avô? Como sobreviver a tão intensa dor? Será que não era

um sonho ruim que estava tendo? Um pesadelo?

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- A.C. Gardini

“Amanhã, quando eu acordar, ele estará esperando

por mim como todos os dias. Vai me contar aquelas histó-

rias de aventuras pela floresta encantada e me fará dormir

em seu colo.” — pensou.

Como qualquer outra criança, encolheu-se nos bra-

ços de um dos bombeiros e, pouco a pouco, fechando os

olhos, se deixou vencer pelo cansaço.

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A caixa de Zoé -

Capítulo 2

Olhando aquela paisagem, dizia para si mesma que

nunca se cansaria de ver tão magnífico pôr-do-sol, como

nunca pudera observar em seus tempos de interna no Con-

vento das Irmãs Carmelitas Descalças e Reclusas.

O seu pensamento tentava, em vão, voltar no tempo,

aos seus momentos de infância, mas sentia que os tinha

perdido em algum lugar de sua mente. Não conseguia se

lembrar de nada do que pudesse ser sua vida antes de estar

no convento.

O convento era austero, e a visão de sua fachada ex-

terna impunha um respeito que só era superado quando se

adentrava o portão principal.

A recepção era simples, sem grandes soluções ar-

quitetônicas. Uma simplicidade que beirava a rudeza, não

fosse pelas cores que resplandeciam do mármore no piso

todo trabalhado em uma imensa roseta nas cores rosa, ver-

de, preto, branco e amarelo contrastando com as paredes

totalmente lisas e sem nenhum tipo de adorno.

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A caixa de Zoé -

Toca-se uma campainha e espera-se que abram a por-

ta. Mas ali não era assim que acontecia. Uma corda pendia

ao lado da porta de entrada e do outro lado um sino ecoava

quando puxado com força. Ouvia-se o som do sino se dis-

sipando no éter e a espera fazia-se maior que a realidade

imposta pelo silêncio quase sepulcral e pelo sentimento de

opressão que se sentia ali, parado, esperando.

Zoé de Melo Rezende não se lembrava de como ti-

nha chegado àquele convento, mas sabia muito bem que

seu futuro não era como o de tantas outras suas colegas.

Quantas vezes olhara de soslaio para o céu, imagi-

nando como seria o espaço infinito que só sua alma poderia

alcançar. Seus braços abertos flanando pelo ar, percorrendo

as montanhas, florestas, rios e mares com uma sensação

de liberdade que a inebriava. Nessas horas, despertava de

seus devaneios e ficava a pensar qual seria o seu lugar neste

mundo, pois que ali não era.

Não conseguia se concentrar nas orações nem nas

ladainhas do anoitecer. Ficava vendo a escuridão chegar

através daquelas janelas altas e estreitas, como se algo a

sufocasse todas as noites.

Durante anos, recebera educação esmerada e de-

monstrava uma inteligência acima do normal para uma

menina de sua idade. Tinha um temperamento questiona-

dor, quase beirando a rebeldia, mas tinha um traço de do-

cilidade, que demonstrava ao aceitar as ordens que recebia

de suas superioras. Estas sentiam que o destino de Zoé não

poderia ser enclausurado naquelas paredes centenárias e

seu espírito nunca seria preso a uma só direção. As Irmãs lá

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- A.C. Gardini

estavam ou por vocação ou por determinação de suas pró-

prias vontades. Nunca Zoé, com seu interesse, sua curiosi-

dade por tudo o que acontecia.

Suas professoras, com a devida autorização da Ma-

dre Superiora, liberaram a biblioteca inteira para ela. Devido

ao seu interesse, foi sendo apresentada a diversos autores e

obras das mais variadas. Lia Shakespeare, Bacon, Filosofia,

Arte, Arqueologia, Música e estudava, além do Latim, Ara-

maico e Grego. Também Matemática, História e principal-

mente Geografia, a matéria à qual ela mais se dedicava.

Sentia-se realizada quando estudava Geografia e tei-

mava em dizer às suas professoras que essa era a matéria

mais completa que ela conhecia, depois da Matemática.

Pela Geografia, estudava Química, Física, até mesmo Lín-

guas, para poder entender o que vinha escrito em antigos

alfarrábios.

Por mais esmerada educação recebida no convento,

sempre orientada para ser uma esposa do Cristo, aquela

vontade que ela demonstrava de querer abraçar o mundo,

um mundo que ela só conhecia através dos livros, era maior

que qualquer laço criado para segurá-la entre as Irmãs do

convento. Cada livro que lia era uma janela aberta ao mun-

do para o qual ela ansiava em sair.

As Irmãs cochichavam entre si, sem que nunca ela

tivesse percebido nada:

— Zoé tem o sangue do avô — diziam em surdina.

Finalmente chegou o dia em que ela teria que optar

entre a vida monástica, seus votos eternos junto ao grande

Mestre, ou a continuação de seus estudos em lugares lai-

cos.

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Durante anos viveu reclusa como uma das Irmãs

Carmelitas, e agora, quando tinha a chance de sair e co-

meçar uma nova vida, o medo do desconhecido a envolvia

e fazia com que ela se sentisse desprotegida. Ano após ano

vivendo entre aquelas paredes, não conseguia se imaginar

em outro lugar. Ali era seu mundo, ali era toda sua vida.

Mas algo maior a impulsionava, algo inexplicável

ocorria dentro de seu ser e a impelia na direção contrária

aos seus sentimentos. Se ali ela se sentia segura, não era lá

que queria estar. O seu desejo de conhecer, de ver, de viver

era muito intenso, e parecia que nada neste mundo faria

com que ficasse no convento.

Ela tinha que descobrir quem era, como fora parar

ali. Não queria simplesmente aceitar seu destino sem con-

testação, aceitar um destino que lhe fora imposto por cir-

cunstâncias estranhas à sua vontade. Principalmente por

estar ali, tinha que sair para descobrir como havia entrado.

Não era sua vocação ser uma Irmã e não era de seu feitio

baixar a cabeça sem uma pergunta sequer. Ela haveria de

descobrir a origem de tudo, a causa de seus sonhos.

Durante os últimos anos, aqueles dos quais ela se

lembrava, teve sempre o mesmo sonho. Um grito, mãos

se agitando em sua direção, como a pedir socorro, e fogo,

muito fogo em volta de tudo. Sempre acordava no meio da

noite, suando, com medo, mas com uma incrível vontade

de descobrir o que significava tudo aquilo. De quem eram

as mãos que via em seu sonho? De quem eram os gritos? O

porquê do fogo.

Esse sonho recorrente sempre a deixava inquieta e

pensativa. Durante o dia não conseguia encetar um pen-

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- A.C. Gardini

samento em uma só direção. Ficava dispersa e com mui-

to esforço voltava a se concentrar em suas tarefas. Através

desses momentos desenvolvera uma imensa capacidade de

se abstrair do meio ambiente e aumentar seu poder de con-

centração.

Por isso, mais que tudo, tinha que sair para o mun-

do e, com o tempo, descobrir suas verdadeiras origens para

construir, ela própria, a partir de então, seu futuro.

Aquele ocaso representava para ela o início de uma

jornada que fora iniciada há muito tempo atrás, um cami-

nho que percorrera com garra, com determinação. Agora,

diante de si abria-se o mundo para o qual havia planejado

seu futuro.

A partir de agora poderia dedicar-se também a si

própria, à sua vida, ao seu passado, para poder enterrar de

vez todos os seus medos e angústias.

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- A.C. Gardini

Capítulo 3

Em pouco tempo o mundo acadêmico percebeu as

vantagens que recolheria com a escolha feita por Zoé.

Formara-se Suma Cum Laude, a mais alta distinção

que um aluno poderia almejar no final de seus estudos no

curso de Doutoramento de Geografia, e agora era a mais

nova PhD na sua especialidade. Era admirada por todos os

seus colegas, não só por sua inteligência, mas também por

sua postura acadêmica, seu respeito para com os colegas e

o desprendimento com que encarava suas conquistas sem

se deixar enlevar por glórias passageiras. Como ela mesma

dizia:

— Tudo o que eu sei, qualquer um pode saber. Está

tudo nos livros, é só a gente entender o que está escrito,

pois muitos são os caminhos e uma só é a direção.

Zoé era bonita. 1,78 de altura, setenta e um qui-

los, traços finos, pele alva, maçãs do rosto salientes, olhos

verdes, nariz bem talhado, formas normais para uma moça

com seus vinte e oito anos de idade, aparentando um pou-

co mais, talvez devido à forma sisuda com que se vestia e

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pelo penteado em coque no alto da cabeça prendendo seus

longos cabelos castanhos. Elegante, não abria mão de seu

tailleur ou de seus terninhos, sempre bem talhados, mode-

lando suas formas, escondendo muito mais do que alguém

poderia imaginar.

Sua pele branca contrastava com o verde de seus

olhos e o brilho que surgia deles era algo envolvente e ine-

briante. Podia-se ficar horas olhando aqueles olhos e nem

sentir o tempo passar.

Formara-se com louvor e agora passava a fazer parte

do quadro de doutores da Universidade Federal do Tocan-

tins como Titular da Cadeira de Geografia.

Aquele pôr-do-sol representava para ela o coroamen-

to de toda uma etapa de sua vida.

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0 - A.C. Gardini

Capítulo 4

Hélio Cortês era do tipo estudioso. Não aquele estere-

ótipo que temos do “nerd”. Não usava óculos de aro redondo

e nem era franzino. Pelo contrário. Ao mesmo tempo em que

era ótimo estudante — sempre o primeiro colocado —, não

abria mão de sua vida social. Era um rapaz alegre, divertido,

tinha facilidade para fazer amizades. Moreno, porte atlético,

cabelos castanhos e fartos, olhos verdes, sorriso largo e since-

ro, dentes alvos, conquistava a simpatia de todos que estives-

sem à sua volta. Imaginem tudo isso em 1,90 de altura e com

covinhas que se formavam nas bochechas quando sorria.

Seu currículo era muito parecido com o de Zoé, mas

sua criação fora bem diferente.

Filho de pais separados, sempre gostou de estudar

e encontrou na História a complementação de tudo o que

sempre havia buscado nos bancos escolares. Criara um mal-

estar com seu pai, que o queria a seu lado para gerenciar

seus negócios e para uma futura sucessão. Hélio, contra-

riando a expectativa paterna, dedicou-se aos estudos, e seu

pai, conformado, o manteve enquanto necessário.

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- A.C. Gardini

Além de Mestre em História, tinha curso de Religiões

Comparadas, Aramaico e Grego Antigo. Por onde quer que

tenha passado não encontrou ninguém a sua altura para um

embate acadêmico. Até se deparar com Zoé, quando perdeu

de vez sua arrogância e prepotência, deixando-se levar pela

simpatia e pelo carisma que a envolviam.

Apaixonou-se por ela sem nunca ter tido coragem de

se declarar. Mas nunca mais se afastou dela. Curtia a sensa-

ção de possuir o saber, mas também a de ter sido colocado

em seu devido lugar por uma mulher, uma moça, uma garo-

ta, que além de tudo, era bonita. Inteligente e bonita.

Para ele, ela era a sua Princesa.

Zoé sempre levava a melhor. Era difícil ser ultrapas-

sada naquilo que ela mais gostava.

Respeitava-a e sentia, quando ao seu lado, uma emo-

ção e uma firme ternura que a situava numa redoma intrans-

ponível para ele, acostumado a ter sempre tudo. Não chegava

a ser mimado, mas para chegar onde estava estudara muito,

sempre sem se preocupar com sua situação financeira.

E quantas vezes batia de frente com Zoé! Quantas e

quantas vezes brigavam para, adiante na discussão, perce-

berem que estavam falando a mesma coisa com diferentes

palavras.

— Os caminhos são muitos, — falava ela — e sempre

se encontram à luz da razão.

Tudo começou quando, certa vez, Hélio apresentou

um trabalho para publicação em uma revista na qual Zoé

trabalhava como revisora assistente. Viria a ser o início de

um relacionamento. Era uma publicação direcionada para o

meio acadêmico em comemoração ao aniversário da Conju-

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A caixa de Zoé -

ração Mineira, que estava fazendo, naquela época, duzen-

tos e dez anos.

Zoé contestara uma série de dados apresentados por

Hélio.

— Como é que o Professor vai apresentar um artigo

deste naipe para uma comunidade que vive e respira Histó-

ria insinuando coisas que podem vir a se tornar perniciosas

no estudo sério de nossa história?

— Minha cara Zoé, — respondeu Hélio — você já

ouviu falar em licença poética?

— Pois bem. Poesia e História não se coadunam, e

o senhor deveria deixar claro que se trata de um romance,

e não de fatos históricos, pois do jeito que está parece mais

fantasia escrita por alguém sem a mínima cultura.

Aquilo foi a gota d`água que faltava para que Hélio,

dentro de sua prepotência, pensasse em acabar com aquela

revisorazinha.

— A mocinha está pensando o quê? Com quem pen-

sa que está falando?

— Com um professor metido a sabichão que pensa

que pode escrever qualquer besteira e que acha que os ou-

tros irão acreditar — ela não deixava por menos e não se

assustava com a presença de ninguém. — Se quiser publicar

algo, pesquise antes e publique depois.

A partir daquele ponto Zoé começou a mostrar os

pontos falhos — poucos, é verdade — na pesquisa do pro-

fessor Hélio, o que foi suficiente para que houvesse uma

aproximação entre ambos. Nunca mais essa química seria

desfeita. O café com leite estava no ponto ideal.

Muitas vezes apresentavam trabalhos acadêmicos

para disputar conhecimento, onde ambos se beneficiavam

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- A.C. Gardini

e toda a consociação acadêmica acabava por lucrar imensa-

mente com esses verdadeiros combates, que, quando acon-

teciam, chamavam a atenção de toda a comunidade.

Agora estavam juntos na Universidade Federal do

Tocantins. Zoé e Hélio, a Geografia e a História. O café e

o leite.

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- A.C. Gardini

Capítulo 5

— Mas hoje não será um dia como outro qualquer

— foi logo dizendo Hélio, enquanto avançava apartamento

adentro, procurando por Zoé.

— Onde você está? Temos um programa verdadeira-

mente cultural — berrava ele, demonstrando uma alegria

fora do normal. — Imagine o que vai acontecer nestas ter-

ras de fim do mundo?

— Como posso saber, se nunca acontece nada? E

nunca vi você tão animado desde que chegamos. Desco-

briram uma nova tribo na região? — desdenhou Zoé, pois

desde que chegaram Hélio só sabia se lamentar e dizer que

aquilo era terra de índios e a única novidade seria descobri-

rem uma nova tribo.

“O que é que eu estou fazendo aqui?” era a sua frase

preferida.

A novidade agora era um leilão que haveria na cida-

de, em um dos melhores hotéis da capital.

— Minha querida colega, vai haver um leilão no ho-

tel Eldorado Plaza. Será beneficente, em prol da construção

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- A.C. Gardini

do novo Hospital de Clínicas. As principais entidades de

cunho social estarão lá representadas: Rotary, Lyons, Maço-

naria, Igreja Católica, Presbiterianos, Espíritas, etc., não só

através de seus representantes, mas principalmente de suas

doações de objetos que serão a grande sensação do evento.

— Parece coisa de primeiro mundo. A elite da cidade

vai estar presente e eu não vou poder ir.

— Acontece que você não pode perder uma opor-

tunidade como esta de estar no meio de obras de arte, pe-

ças de decoração, antiguidades, quadros, pequenos objetos,

tudo que um colecionador poderia querer. E também uma

dona-de-casa que quisesse acrescentar algo na decoração de

sua casa. Ou um executivo, para seu escritório.

— Não se trata de querer ou não, mas de poder. Infe-

lizmente não vou poder estar nesse leilão com você — Zoé

mostrava-se completamente contrafeita. — Já agendei pra

esta noite um compromisso com um representante da Natio-

nal Geografic Magazine que dará início a uma imensa reporta-

gem televisiva sobre a Gênese e Evolução Paleoambiental dos

solos do Planalto Central brasileiro e o estudo edafológico

dentro da Geografia física, humana e analítico-regional.

Hélio parecia não estar dando muita atenção, e Zoé

continuou.

— Trata-se de uma oportunidade impar, algo no

qual tenho trabalhado durante tempos. E serei a primeira

a esquematizar de forma científica esses primeiros estudos

edafológicos, ou seja, da influência dos solos nos seres vi-

vos, que foi desviado do âmbito das espécies vegetais para

a espécie humana. Isso despertou o interesse de toda a co-

munidade científica internacional.

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A caixa de Zoé -

— O que você pretende com tudo isso? — Hélio

gostava de ver como sua colega se empolgava com certos

assuntos.

— Nós demos um grande passo na conquista de

mais espaço para o homem sobre o planeta de uma forma

racional e sem agressões ao meio ambiente — Zoé parecia

fazer um discurso. — O casamento perfeito está a caminho.

O homem e seu habitat, a exploração do solo sem sua de-

gradação. Aquilo que os índios fazem há centenas de anos

resgatado agora de uma forma científica e geradora de for-

mas mais aprimoradas de preservação ambiental.

Zoé arrematou seu discurso quase sem fôlego, ani-

mada com o assunto e com as idéias que lhe fervilhavam a

cabeça.

Mas devido a esses estudos fizera também alguns de-

safetos, não só na comunidade científica, mas também no

meio dos empresários da exploração da madeira e de alguns

laboratórios multinacionais mais interessados em dissipar

qualquer vestígio de biodiversidade ou de cultura que por-

ventura encontrassem para poder levar para outros lugares

suas descobertas e surgir com suas novas patentes.

Hélio não se conformava e insistia com ela para que

o acompanhasse ao leilão, mas era tudo inútil.

— Desde quando uma reportagem desse porte come-

ça num sábado à noite? — argumentou ele.

— Esse encontro já está marcado a mais de seis me-

ses e não posso ser eu a furar com eles. É uma oportunidade

única de fazer com o que o mundo veja nosso país com uma

imagem diferente daquela que tem hoje em dia — contra

argumentou ela. — Eu gostaria muito de ir, mas minha res-

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- A.C. Gardini

ponsabilidade com o projeto e com o objetivo que espero

alcançar com essa reportagem me impede.

O compromisso estava agendado e Zoé, como sem-

pre, aguardava ansiosa pelo momento em que se encontra-

ria com toda a equipe de produção para poder iniciar esse

novo projeto.

Em meio à espera, recebeu um telefonema da equi-

pe, que já deveria estar chegando ao campus.

— Alô? Doutora Zoé?

— É ela mesma. Quem fala?

— Somos da equipe da National Geografic. A senhora

não vai acreditar no que aconteceu. Nosso carro quebrou,

pois não vimos alguns buracos na estrada, e agora não te-

mos como chegar até aí ainda hoje. Optamos por passar a

noite com o equipamento e o carro avariado e aguardar o

dia amanhecer para então irmos atrás de socorro.

A voz no telefone parecia ir se perdendo no espaço,

pois Zoé já não conseguia prestar atenção. Apenas na se-

gunda-feira estariam em sua companhia.

Só faltou Zoé gritar de alegria, mas achou melhor

primeiro desligar o telefone. Despediu-se assegurando que

na segunda-feira os estaria aguardando.

Mais que imediatamente ligou para Hélio.

— Se eu resolver ir, você ainda quer companhia?

— Estou subindo já.

E Hélio, já pronto, correu escada acima subindo de

dois em dois degraus. Chegou à porta com o coração dis-

parado pelo esforço e pela emoção. Apertou a campainha e

vibrou quando ela abriu a porta.

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A caixa de Zoé -

— Agora tenho certeza do que foi que me trouxe

para este fim de mundo — Hélio estava extasiado com a

visão de Zoé. — Eu nunca poderia deixá-la aqui, sozinha no

meio desses caipiras.

Um leve rubor percorreu as faces de Zoé, mas sem

demonstrar esse constrangimento ela saiu do apartamento,

pegou na mão de Hélio e seguiram em direção ao elevador.

— Você não tem mesmo jeito. Mas eu gostei muito

do que falou.

— Ah! Como eu queria que esse elevador quebrasse

agora — disse Hélio, como sempre brincando com ela para

vê-la sem jeito.

— Por quê? O que você faria? — e com um risinho

muito insinuante, Zoé completou. — Talvez eu até gostas-

se.

sativo.

E foi a vez de Hélio ficar sem ação. Mas sorriu, pen-

Era esse jeito de menina naquele corpo de mulher

que fazia com que Hélio fosse sempre pego desprevenido.

Ele nunca sabia quando ela iria usar seus artifícios femini-

nos, e isso fazia com que cada vez mais ele fosse se apaixo-

nando por ela.

— Agora me conta a verdade. O que fez você mudar

de idéia? — perguntou Hélio.

— Nada além do amor que sempre senti por você.

E eu não poderia deixá-lo sozinho numa noite de sábado,

numa cidade com tantas garotas ávidas por caras novas

— respondeu Zoé, dando risada. — Tantas “caipirinhas”,um carro quebrado, uma equipe de gente mole que prefere

passar a noite na estrada e deixar seus compromissos para

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- A.C. Gardini

segunda... Parece até aquela história de deixar tudo pra se-

gunda-feira, aquele papo de quem vai começar um regime.

— Por quê? — perguntou Hélio, sem entender.

— Deixando o regime pra segunda.

— Você é infame. Parece até que suas piadas têm

graça.

— Se não têm, por que você sempre ri?

— Sou educado.

— Ou tonto.

— Lá vamos nós de novo.

— Hahaha! Já perdeu a paciência.

— Sabe o que é? Hoje eu gostaria de ter uma noite

especial com você, sem discussões, afinal de contas é a pri-

meira vez que acontece alguma coisa nesta cidade. E nós

fomos convidados.

— Fomos? Como? — quis saber Zoé.

— Bom, é uma longa história — começou Hélio a

contar enquanto percorriam as ruas, no automóvel dele, em

direção ao hotel.

Mesmo com seu jeito alegre e descontraído, Hélio

agradeceu interiormente, com uma breve oração, o pronto

atendimento de seu pedido e também as imperfeições das

estradas naquela região, que de alguma forma haviam cola-

borado para que Zoé mudasse de idéia.

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0 - A.C. Gardini

Capítulo 6

O hotel havia sido construído quando da constitui-

ção do Estado do Tocantins. Sofisticado e merecedor das

seis estrelas que ostentava na entrada, era visivelmente

contemporâneo em suas linhas arquitetônicas de um típico

hotel-fazenda e possuía um requinte que contrastava com

o cerrado e uma linda estrada de acesso feita de cascalho

cercada de palmeiras imperiais e percorrida em menos de

cinco minutos de automóvel até o pátio de estacionamento.

De lá se avistava a entrada principal, hoje feéricamente ilu-

minada, aguardando os visitantes que pouco a pouco aden-

travam o salão de convenções onde seria realizado o leilão.

Zoé pensou que nunca havia estado em um leilão e

o pouco que conhecia sobre isso era o que ouvira dizer ou

lera em livros.

Quando entrou no salão, apertou os olhos, incomo-

dada pela iluminação do imenso lustre de cristal que pendia

do teto e dava um ar vitoriano àquele ambiente campesino.

Deslocava-se com Hélio em meio aos lotes observando e

admirando tudo ao seu redor. Sentia-se como uma criança

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- A.C. Gardini

que nunca esteve num parque de diversões, e agora, leva-

da pelas mãos de seu amigo, caminhava entre os objetos e

mesas onde se encontravam expostos os lotes que seriam

anunciados em breve pelo leiloeiro oficial do evento.

— Que coisas lindas! Nunca esperei ver tantas anti-

guidades e coisas exóticas num lugar como este — admirou-

se Zoé.

Em meio aos lances e lotes, um em especial lhe cha-

mou a atenção. Não o lote inteiro, mas um bloco de madei-

ra de ébano, retangular, com quatro letras em dourado, um

V, um T, um O e um L, que fazia parte do lote 26.

Zoé, que nunca havia participado de um leilão, dei-

xou-se levar por uma sensação de êxtase que a transportou

para um local que não conseguia identificar. Algo a arrebatou

daquela sala e lhe modificou o tempo, ou o espaço, quando

então viu uma linda menina correndo em um jardim cheio

de flores em um belo dia ensolarado. Viu a figura de um

velho com cabelos brancos e tez morena queimada do sol,

figura com a qual muitas vezes sonhava, mas que nunca con-

seguira identificar. O velho estava de braços abertos, como

que a recebê-la, com um largo sorriso.

Sentia-se feliz com aquela visão que de alguma ma-

neira a acalmava.

Hélio, percebendo que algo estava errado com sua

amiga, amparou-a.

Um sobressalto percorreu o corpo de Zoé quando

uma mão encostou-se em seu ombro e a parabenizou pela

magnífica aquisição.

Ela não saberia dizer quanto tempo se passou e o que

acontecera nos últimos minutos. Ou teriam sido horas?

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A caixa de Zoé -

Sentiu-se desfalecer.

Hélio a olhava espantado. Pois então Zoé, que dizia

nunca ter estado num leilão, agora arrematava um lote com

uma determinação que ele somente via quando de seus em-

bates culturais.

Ela não conseguia entender direito o que havia acon-

tecido. Em seu desligamento momentâneo havia comprado

todo um lote por um valor simbólico, pois ninguém mais se

interessara em comprar aquelas bugigangas. No meio das

quinquilharias ela podia vislumbrar o retângulo de madeira

de ébano com algumas inscrições douradas.

— O que houve? — quis saber Zoé. — Como foi que

isso veio parar em nossas mãos?

— Você não se lembra? Você comprou e até a feli-

citaram pela participação, pois eu acho que ninguém iria

querer esses pedaços de madeira preta.

— Não são pedaços de madeiras comuns — Zoé ape-

nas conseguiu balbuciar a frase.

Hélio admirou-se, mas se manteve calado. Ampara-

da por ele, Zoé voltou ao carro.

— Eu ainda não consigo entender o que foi que acon-

teceu comigo — disse Zoé sem conseguir articular as pala-

vras com exatidão e parecendo embriagada. — Isso nunca

me aconteceu.

— Não se preocupe, Zoé — seu tom de voz era cari-

nhoso. — Você só precisa descansar um pouco.

— Me senti tomada por uma emoção que não pude

dominar — e ela ia arquejando enquanto tentava descrever

o que havia sentido. — Alguma coisa me sufocou. Era como

uma mão me esmagando!

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- A.C. Gardini

— Já estamos quase chegando.

— Aquela caixa mexeu comigo de tal maneira que

não consigo tirá-la da cabeça.

— Não é uma caixa, é apenas um bloco de madeira

preta — disse Hélio, tentando disfarçar seu espanto.

— É uma caixa, tenho certeza — Zoé balbuciou e

fechou os olhos, recostando-se no assento do carro.

Hélio levou Zoé de volta para casa e percorreram

quase todo o restante do trajeto sem dizer uma palavra.

Ele já a conhecia há muito tempo para perceber que havia

algo de estranho do qual ela não queria falar. A hora era de

calar.

Nessa noite ela não conseguiu dormir. Algo martela-

va em sua cabeça e não a deixava partir para o mundo dos

sonhos. Algo brotava de dentro de si como uma planta que

ao nascer rompe a casca da semente e começa a se desenvol-

ver movida por uma força cósmica e sutil. Sua consciência

ainda ia adquirindo a noção do que acontecera naquele sa-

lão, naquela noite.

O que tinha visto em seu sonho? Mas não foi um so-

nho. Ela esteve cercada de pessoas o tempo todo, inclusive

Hélio.

Arrematara o bloco de madeira de ébano e ao mes-

mo tempo viu-se levada a outro lugar, outro tempo. Ela era

outra pessoa.

Agora ela era aquela menininha de sua visão, cor-

rendo ao encontro daquele velho homem tão amistoso e

que tanta segurança lhe inspirava. Ela corria de encontro a

ele e podia ver em suas mãos um retângulo de madeira, o

mesmo que viu no leilão.

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A caixa de Zoé -

As mesmas mãos com que sempre sonhava. O fogo.

Tudo começava a surgir em sua mente.

— Vovô! — a palavra surgiu de seus lábios. — VI-

TRIOL!

Lágrimas surgiam em seus olhos agora e uma von-

tade de gritar a sufocava. Sentiu falta de ar e correu abrir

a janela de seu apartamento, deixando que uma lufada de

vento lhe refrescasse a face molhada. Não conseguia enten-

der direito o que estava acontecendo, mas sabia que não

adiantaria lutar contra esses sentimentos que surgiam aos

borbotões de dentro de seu ser.

Quem era aquele homem? Avô? Por que lhe inspirava

tanta confiança, tanto amor? O que era aquela menina que

era ela? Onde estava? Havia um incêndio, o velho gritava

por ela, igual às outras tantas vezes que o vira nos sonhos.

Aquele pedaço de madeira de ébano nas mãos do homem

velho agora se tornava mais visível. E ela vislumbrava uma

chave, um medalhão hexagonal com o desenho de uma es-

trela de cinco pontas igual ao que ela usava desde que saíra

do convento, presente da Madre Superiora sob a recomen-

dação de nunca o perder, pois pertencera à sua mãe.

Instintivamente Zoé levou a mão ao peito e apertou

com força o medalhão hexagonal que carregava, sua única

lembrança de uma família que não mais existia.

O que havia acontecido naquele salão? O que era

aquele pedaço de madeira de ébano? Tentando encontrar

respostas, Zoé adormeceu ali mesmo, na sala, embalada pela

leve brisa que entrava pela janela trazendo o calor do cerra-

do. Em suas mãos, o pedaço de madeira de ébano com inscri-

ções douradas e o eco de suas palavras: Vovô! VITRIOL!

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A caixa de Zoé -

Capítulo 7

O sol entrava pela janela da sala e foi encontrar Zoé,

já desperta, em seus afazeres diários de uma maneira mecâ-

nica, preparando-se para mais um dia de horas interminá-

veis, como sempre eram os domingos naquela região.

Nunca havia prestado atenção em como sua vida era

formada por hábitos, maneiras sempre iguais pelas quais

acertava sua agenda, suas aulas, sua vida.

Mas alguma coisa acontecera. Naquela manhã de do-

mingo sentia-se diferente. Ela estava mudada, alguma coisa

a transformou, não era mais a mesma Zoé da noite anterior.

Precisava encontrar Hélio o quanto antes, pois ele era o

único que presenciara a cena da noite passada e percebera

que algo havia acontecido. Ela lhe devia uma explicação e

ao mesmo tempo sentia que iria precisar de sua ajuda.

Desceu os dois andares pelas escadas, bateu à porta

do amigo e esperou longos e intermináveis minutos. Tudo

nela tremia, havia quase que um torpor mental e uma ânsia

muito grande por algo que não conseguia decifrar.

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A caixa de Zoé -

Hélio, ainda de pijama e com a cara amarrotada do

sono da noite, a princípio assustou-se com a presença de Zoé

àquela hora da manhã, mas percebeu que o assunto era sério,

pois nunca a tinha visto com o semblante tão angustiado.

— Precisamos conversar, Hélio — Zoé Foi falando

enquanto entrava no apartamento do amigo.

Ele, mais do que depressa, deu passagem para que ela

entrasse em sua sala ainda desarrumada, como deve ser a sala

de um professor solteirão de uma Universidade no meio do

cerrado. Rapidamente jogou no chão os livros que estavam

no sofá, abrindo espaço para que ela tivesse onde sentar. Es-

pantou-se com a desenvoltura que ela aparentava e chegou a

achar que existia até mesmo certa excitação por parte dela.

Em menos de dez minutos ele já estava de banho

tomado, barba feita, aprumado e bem acordado, com os

dois ouvidos aguçados para ouvir a história que Zoé queria

começar a lhe contar.

— Zoé, desculpe, mas você devia estar em outro pla-

neta para dar um lance em um lote que não valia nada

— falou Hélio. — E ainda mais por se agarrar a um pedaço

de madeira enegrecido, talvez pelo tempo, como se aquilo

valesse sua própria vida.

— É sobre isso que eu queria conversar com você.

— Eu achei muito estranho, ainda mais partindo de

você, que sempre foi tão lúcida, racional... e agora dando

uma dessa! Achei que a temperatura do Tocantins começa-

va a fazer mais uma vítima.

Enquanto falava, ia preparando um café que deixava

o ambiente com cara da casa de mamãe.

— Meu Deus, Hélio! Só você sabe fazer um café des-

se jeito. Eu não entendo como você consegue fazer com que

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- A.C. Gardini

ele tenha esse aroma — disse Zoé e fez uma pausa antes de

finalizar. — Mas eu não vim pra isso.

Serviram-se de uma xícara de café quentinho e ela

começou sua narrativa após sorver um grande gole, sabore-

ando lentamente enquanto organizava seus pensamentos.

— Ontem, quando você me deixou na porta de meu

apartamento, não consegui dormir de imediato. Eu estava

muito assustada com tudo o que aconteceu no leilão — foi

dizendo ela. — Acabei adormecendo no sofá e acordei so-

bressaltada no meio da noite.

— Pois eu dormi feito uma pedra — atalhou Hélio.

— Acontece que eu acordei no meio da noite — con-

tinuou Zoé. — Estava me sentindo dominada por uma for-

ça misteriosa e apanhei o que nós pensávamos tratar-se de

um bloco de madeira, limpei seus lados e percebi que não

eram apenas quatro letras douradas. Havia uns entalhes

para mais algumas e dava para perceber o contorno das le-

tras que faltam, um I, um R e outro I formando a palavra

VITRIOL.

Zoé interrompeu sua narrativa com o peito arfando

de emoção, parecendo estar revelando um grande segredo,

não para seu amigo, mas para si própria. Aproveitou para

tomar mais um gole de café enquanto se recompunha.

— Aconteceu então — continuou ela — que eu pe-

guei o medalhão, aquele que você sempre me pergunta de

onde veio, que as Irmãs me deram quando saí do convento

e disseram pertencer à minha família, e, sem saber por quê,

o encaixei na depressão que existe aqui em cima, na tampa

do bloco de madeira, no centro dessa estrela de seis pontas.

Pressionando nas laterais abri o bloco como a uma caixa,

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A caixa de Zoé -

como tinha visto a menina dos meus sonhos, fazer — e

Zoé, emocionada e com os olhos marejados, interrompeu

sua narrativa por um instante. Mas continuou. — Uma vez

aberto o bloco de ébano, percebi que desde sempre soubera

do que se tratava e retirei de dentro dele folhas amareladas

pelo tempo, amarradas com tiras de panos. Formavam uma

massa compacta e estavam cobertas por um pergaminho.

Hélio serviu-se de outra xícara de café sem desgru-

dar os olhos de Zoé, que continuou.

— Em um breve instante vi-me menina ainda, senta-

da no colo do meu avô, no escritório que ele usava quando

vinha à cidade, brincando com a caixa de madeira que ele

me ensinava a abrir com o medalhão. Meu avô sempre dizia

que se alguma coisa acontecesse em nossas vidas, se por um

acaso nós nos separássemos, eu deveria pegar aquela caixa

de madeira e abri-la. Lá dentro estaria meu passado e meu

futuro. Do medalhão eu nunca deveria me separar, aconte-

cesse o que fosse.

Zoé estava falando sem parar, por isso parou para

respirar um pouco. Mas novamente continuou.

— Mas ele não contava com o incêndio que termi-

nou por levar-me ao convento, ao mesmo tempo esquecida

de meu passado pelo grande trauma que foi a perda dele no

incêndio. Agora tudo começa a voltar à minha memória.

O diário de seu avô.

— O que é isso, afinal? — perguntou Hélio. — O que

são essas folhas?

— São o diário de meu avô!

— Como assim? Você nunca comentou nada de sua

família. Ainda mais de um avô! — Hélio se mostrava cada

vez mais intrigado.

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- A.C. Gardini

— Quando eu era pequena, morava com meu avô. Foi

ele que me criou — as lembranças eram vivas em sua memó-

ria. — Eu fui criada num orfanato e quando cresci saí para po-

der continuar meus estudos e minha busca pelo meu passado.

Eu morava com meu avô, pois meus pais haviam morrido e eu

só tinha ele — disse Zoé, se atrapalhando nos pensamentos e

falando de uma forma incoerente, não conseguindo concate-

nar suas idéias e nem se comunicar com clareza.

— Acho melhor você tomar fôlego e começar do

princípio — interrompeu Hélio e colocou mais uma xícara

de café nas mãos de Zoé. — É melhor se acalmar, senão não

vou entender nada.

— Muito bem — recomeçou Zoé, com calma. —Meus pais morreram quando eu ainda era muito peque-

na. Meu avô, que me criou, sempre me contava que meu

pai morreu logo após meu nascimento, e minha mãe, que

era exploradora, morreu durante uma de suas viagens, aco-

metida por uma febre. Eu nem tinha cinco anos. A partir

daí sempre estava junto de meu avô, e me lembro bem de

quando entrava no escritório que ele tinha em casa, sentava

em seu colo para ouvir histórias de aventuras e brincava

com esta caixa. Ele me deixava usar este medalhão e com

ele eu abria a caixa. Para mim, era uma verdadeira mágica

a maneira pela qual o medalhão abria a caixa. Quando saí

do convento, as Irmãs me deram o medalhão falando que

pertencera à minha família, mas na hora não me lembrei

de nada, assim como nunca me lembrei de nada durante

os anos que passei lá. A única coisa que surgia em minha

cabeça era o sonho que tinha.

E Zoé começou a contar a Hélio todas aquelas lem-

branças da noite anterior.

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0 - A.C. Gardini

Capítulo 8

Aquele diário não contava sua vida nem seus roman-

ces, mas suas aventuras. Ou melhor, a única aventura pela

qual valeria a pena ter vivido.

Seu avô pertencera ao exército e durante muito tem-

po serviu junto às fronteiras amazônicas, tornando-se um

verdadeiro apaixonado pela floresta tropical.

Antes dos vinte anos, em pleno vigor de sua juventu-

de, foi servir com aquele que seria sua grande inspiração. Ele

o chamava de “Meu General” e por ele nutriu uma admira-

ção e desenvolveu um carinho tão grande, que prometeu a

si mesmo continuar sua obra se algum dia o velho General

não tivesse mais forças. Mas não foi a falta de forças que

afastou o velho. A força política que o envolvia, o poder de

seu nome e o respeito que ele inspirava aos outros serviram

de desculpas para sua prisão, em 1930, e para sua passagem

para a aposentadoria.

Depois disso, o avô de Zoé ainda continuou servin-

do seu antigo chefe, não mais na condição de militar, mas

na condição de amigo de confiança, até o conflito de Le-

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- A.C. Gardini

tícia, entre o Peru e Colômbia, em 1938, quando o velho

General foi chamado de seu retiro, pois era o único capaz

de solucionar o conflito. Ele conseguiu restabelecer a paz na

região, mas retornou quase cego para então nunca mais ser-

vir ao seu país da maneira que sabia, desbravando sertões.

Carregava consigo o mesmo lema de seu amigo: “Morrer, se

preciso for. Matar, nunca.”Quando finalmente seu avô se afastou do convívio

do General, carregava consigo um dos mais preciosos se-

gredos que jamais fora revelado pelo General ou por ele a

quem quer que fosse.

Os dois tinham se tornado inseparáveis, não só na

vida, mas na morte, ao carregarem consigo revelações que

poderiam mudar a história, a nossa e a do mundo conhe-

cido. Os historiadores teriam que reescrevê-la com outras

tintas e outros significados.

Quando partiu da casa do General pela última vez,

seu avô sabia que não o veria mais, e continuou a percorrer

a selva como o explorador de sempre, secretamente alimen-

tando um sonho.

Lera muitas histórias a respeito dos povos que haviam

habitado as Américas, principalmente a América Espanhola.

Ouvira muitas lendas a respeito dos povos amazônicos, re-

gião tão grande e inexplorada que se poderia viver sete vidas

e ainda assim seria pouco para percorrer todos os seus rios e

igarapés. Conhecia todas as lendas, mitos, canções de cada

tribo com que haviam tido contato e levava consigo sempre

um bloco de madeira com inscrições douradas.

Sua única alegria na vida parecia ser a neta, aquela

menina adorável, bela, alegre e cheia de vida que parecia ter

saído do ventre de um anjo.

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A caixa de Zoé -

Sua filha, a mãe de Zoé, morrera vítima do vene-

no de um animal em uma das muitas expedições das quais

participara. Tivera apenas aquela filha, e sua filha lhe dera

apenas aquela neta. A ela seu avô contava histórias. Dentre

tantas histórias, a que mais gostava de contar era a do Im-

perador Montezuma. A que mais ela gostava de ouvir era a

do Imperador Montezuma.

Hélio ouvia tudo com atenção e não se conteve.

— Um momento. Essa história está indo longe de-

mais! O que é que seu avô tem com os Astecas?

— Eu sei tanto quanto você. Se você não me atra-

palhar com essas interrupções nós saberemos o que ele nos

deixou — irritou-se Zoé.

— Ei! Espere um pouco, Professora. Foi a minha pri-

meira interrupção.

— Desculpe. Desculpe — e Zoé ficou corada. — Não

sei o que deu em mim pra responder desse jeito.

— Tudo bem. Mas eu queria saber o que seu avô tem

com os Astecas. De qualquer forma, quem pode lhe falar

um pouco a respeito sou eu, afinal, quem é o historiador

aqui? — disse Hélio, sorrindo com seu sorriso de quem está

fazendo as pazes que nunca foram quebradas.

E agora foi a vez de Hélio falar. A Zoé ele contou a

seguinte história.

Quando os espanhóis chegaram na América, vieram

atraídos por lendas que diziam que por aqui corriam rios de

ouro, as casa eram feitas e cobertas com telhas de ouro puro

e os nativos se vestiam com roupas tecidas de ouro.

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- A.C. Gardini

Montezuma recebeu os espanhóis como deuses que

estavam sendo enviados de acordo com antigas profecias de

seu povo, cujo salvador viria do leste, pelo oceano, e seria

um deus, um homem branco, de barba, olhos azuis, bem ao

tipo dos espanhóis.

Chegavam, pois, em terra, as personificações de seus

salvadores esperados e cantados pelos anciãos através dos

séculos.

Montezuma colocou-se à disposição, assim como

todo seu império, submetendo-se ao jugo espanhol sem um

mínimo de desconfiança dos verdadeiros interesses desses

que seriam seus algozes. A ingenuidade marcava esse povo

pacífico que apesar de conhecer a roda, só a utilizava para

brinquedos de crianças. Suas ciências astronômicas, físicas

e matemáticas eram de um adiantado conhecimento, que

poderia rivalizar com os homens mais sábios do Oriente,

famosos por seus avanços científicos.

Mas em nome de El Rei, um rei desconhecido, esse

povo foi sendo sistematicamente eliminado. Quando Mon-

tezuma percebeu que estava sendo enganado por aqueles

que recebera como deuses, arregimentou uma parte de seu

povo, fiel ainda aos princípios que norteavam aquela socie-

dade, e transferiu todo o restante de seu tesouro, incluindo

escritos científicos e históricos.

Toda a fortuna do reino estaria em lugar seguro e,

o mais importante, toda sua cultura e seu conhecimento

estariam preservados daqueles conquistadores para os quais

apenas interessava o ouro amarelo.

Montezuma, mais tarde ferido por um súdito seu,

deixou-se morrer numa prisão sem nunca ter revelado o

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A caixa de Zoé -

verdadeiro paradeiro de seu imenso tesouro. Parte desse co-

nhecimento, uma pequena parte, foi capturada e enviada

para a Europa como uma demonstração da arte pitoresca

dos índios selvagens que aqui habitavam. São conhecidos

como Códex. Esse tesouro escondido de Montezuma deu

origem à lenda do El Dorado, lugar sagrado cheio de ouro,

buscado com avidez por Orellana e que nunca foi encontra-

do, passando a fazer parte das lendas amazônicas.

Várias expedições foram feitas na época e o histe-

rismo em torno dessas lendas chegou a tal ponto que um

explorador disse ter visto, numa de suas andanças pelo rio,

uma tribo de mulheres guerreiras. Tanto alarde se fez, que

o rio passou a se chamar o Rio das Amazonas, provocando

a ira de um outro rei, que já estava de olho na exploração

da abundante madeira vermelha destas terras, fazendo com

que oficializasse a posse de tão longínquas paragens e en-

viasse para cá seu cavaleiro Cabral.

Aquele povo outrora ocupara lugar de destaque nes-

te continente, do México até a Colômbia, com a construção

de estradas que poderiam rivalizar em extensão e beleza

com as do Império Romano. Também construíram um im-

pério, que foi destruído por conquistadores que não soube-

ram ver a verdadeira riqueza daquele povo tão tranqüilo no

seu viver e tão poderoso em sua essência, povo que agora se

encontrava disperso e perdido para sempre nos meandros

dos rios que serpenteiam pela Amazônia.

Homens mataram e morreram em busca do El Dora-

do, assim como tantos outros morreram em busca da fonte

da juventude.

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- A.C. Gardini

Ouvindo extasiada essa história contada por Hélio,

um brilho diferente surgiu nos olhos de Zoé. Era como se

ela estivesse no colo do avô e ele lhe contando suas aventu-

ras e peripécias.

Quando menina, enquanto seu avô lhe contava essas

histórias, ela, com seus olhos verdes faiscando de curiosi-

dade, vibrava a cada ponto e a cada vírgula e sofria com as

respirações que o avô dava para poder concluir um parágra-

fo, criando aquele clima de suspense que envolve qualquer

criança no ouvir de histórias fantásticas.

Que idade de ouro, quando as palavras criam vida em

uma mente vazia de pré-conceitos ou de pré-juízos! Aquela

cabecinha ouvia as histórias e criava seus personagens com

as cores que a infância permite. E a caixa do avô, quantas

vezes brincava com ela abrindo-a com a chave “mágica” que

agora carregava consigo!

Quanta coisa Zoé havia deixado de lado em sua me-

mória por causa daquele incêndio!

— Eu acho que vou aceitar mais de seu café — disse

ela a Hélio. Sua cabeça girava enquanto desfiava, aos bor-

botões, suas lembranças ao único amigo que possuía naque-

la hora.

Ele, empolgado, parecia que iria ficar o dia inteiro

discursando, mas Zoé deixou-se ficar por mais um instante

pensativa no sofá..

Hélio agora a escutava e escutava. Anos de terapia

não teriam surtido o efeito que tiveram aquele bloco de

madeira enegrecida e aquele amigo a escutá-la. Ela nunca

poderia supor que um dia tudo aquilo viraria cinzas. Sua

casa, suas histórias, seus sonhos, seu próprio avô, preso em

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A caixa de Zoé -

seu escritório com a queda de uma das vigas que sustenta-

vam o teto.

O incêndio começara perto da lareira do escritório.

Nunca haviam conseguido determinar a real causa, mas es-

peculava-se que uma fagulha podia ter caído sobre o tape-

te e iniciado o incêndio que acabou por consumir toda a

casa. Todos que conheciam seu avô não aceitavam a versão

oficial do ocorrido e comentavam que o velho tinha sido

assassinado para revelar segredos de um grande tesouro que

ele escondia.

A única coisa que ficou de pé foi a lareira com sua

chaminé, como a provocar o destino de uma forma arrogan-

te e a dizer “Continuo de pé, apesar de tudo”. Um monu-

mento à vida de uma criança que continuava seu caminho.

Dentro dessa lareira, acima daquela inclinação na parede

traseira, escondia-se uma caixa de madeira de acácia com a

inscrição V.I.T.R.I.O.L. em dourado, agora totalmente ene-

grecida pelo fogo e tão conhecida da pequenina Zoé.

O choque com a perda do avô, o incêndio, a agonia

do avô, o medo a que foi submetida, a solidão a que se viu

projetada, tudo aquilo ficara escondido em seu subcons-

ciente, como que para protegê-la de um mal que só poderia

ser curado por ela mesma.

Quando foi levada ao convento das Irmãs Carme-

litas, estava em tal estado de letargia que as Irmãs combi-

naram nunca tocar no assunto, mas iriam lhe entregar o

medalhão se algum dia ela quisesse deixar o convento para

uma vida profana.

Alguém, um dia, localizou a caixa dentro da chami-

né, mas tal era o estado de sujeira e fuligem que o processo

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- A.C. Gardini

de limpeza acabou por arrancar-lhe a crosta dourada que

cobria as letras que restavam. Tudo o que sobrou foi um

bloco de madeira ebanizado e sem valor.

Seu avô sempre lhe contava que aquela caixa, aque-

le bloco de madeira, havia sido esculpido de um bloco de

acácia e que um engenhoso sistema de travas feitas por

movimentos na própria madeira, deslizando umas sobre as

outras, não permitiria sua abertura, a não ser utilizando-se

inicialmente uma chave, a chave mágica que lhe pertencia

desde sempre. Era igual às antigas caixas chinesas que en-

cerram dentro de si jóias ou outras coisas de valor.

Zoé nunca se esqueceu o que seu avô dizia a respeito

da acácia.

— Suas flores cegam, suas sementes matam e suas

raízes curam. A semente é o veneno, a raiz, o antídoto.

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- A.C. Gardini

Capítulo 9

Hélio foi se deixando fascinar pela narrativa da colega

e começou a perceber que poderia haver algo mais do que ela

imaginava em relação àquele bloco. Segurou-o em suas mãos

e pôde sentir uma estranha vibração percorrendo todo seu

corpo. Sempre fora espiritualista e como bom estudante das

forças que regem os destinos humanos, nada deixando es-

capar de sua mente alerta e vívida, percebeu que havia algo

mais do que simplesmente madeira e metal em suas mãos.

Agora não conseguia articular uma palavra. Virava

a caixa em suas mãos tentando adivinhar o que sentia. Até

que uma idéia lhe ocorreu.

— Espere um pouco, Zoé.

Hélio correu até o quarto e voltou com uma fita

métrica nas mãos e já dizendo:

— Se for o que estou pensando, seu avô era um bo-

cado inteligente.

— Muito obrigada pelo elogio — retrucou Zoé. — É

um mal de família. Mas me diga no que você está pensando.

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0 - A.C. Gardini

Hélio media e media o retângulo e anotava tudo

num papel, até que liberou uma bela gargalhada.

— Eu sempre quis gritar “Eureka”. Hoje me sinto

realizado com esse seu avô gênio.

— O que foi? — entusiasmou-se Zoé. — Se é sobre

meu avô, tenho que saber.

— O que você está vendo não é uma caixa retangu-

lar.

— Se isso não é um retângulo, então o que aprendi

minha vida toda é pura filosofia.

— Preste atenção, Zoé — continuou falando Hélio

sem se deixar interromper. — Aquilo que nossos olhos vêem

muitas vezes não é a realidade. O que para você parece ser

um retângulo, na verdade é uma realidade matemática da

qual sempre fugimos. Isto é um quadrado oblongo.

Ele nem conseguiu terminar a frase e Zoé já estava se

levantando para ir embora.

— Você falou que eu era vítima do calor do Tocan-

tins. Acho que é verdade. O calor derreteu seu cérebro de

vez.

— Estou falando sério, Zoé — continuou Hélio com

voz séria.

A seriedade foi tanta que Zoé tornou a se sentar.

— Como eu ia dizendo, isto é um quadrado oblongo,

ou um retângulo de secção dourada.

— Dourados são os metais que o recobrem.

— Em algumas seitas secretas, que hoje em dia não

são mais tão secretas assim, aprendemos que quando um

retângulo é feito de forma que a parte menor esteja em

relação à maior assim como a maior em relação ao todo, ou

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A caixa de Zoé -

seja, a divisão de uma reta em média e extrema razão, te-

mos um quadrado oblongo. Entendeu? — perguntou Hélio

para Zoé, que estava com a boca aberta.

— Eu tenho a impressão que você não dormiu direi-

to esta noite. Acho melhor voltar mais tarde, quando você

acordar direito.

— Tô falando sério, Zoé — disse Hélio, dirigindo-se

à estante, onde pegou o terceiro livro da quarta prateleira.

Como sempre fazia, assoprou a lombada superior do

livro como a tirar um pó que não existia e começou a fazer

contas sob o olhar curioso de Zoé, que cada vez entendia

menos.

— Seu avô pertencia a alguma associação secreta,

tenho quase certeza disso — continuou ele.

Ela nunca ouvira ou vira nada que poderia lembrá-la

de tal coisa.

— Não sei te dizer, Hélio — ela foi dizendo com

toda a sinceridade. — Que eu me lembre, nunca vi nada

sobre isso. Mas também, se vi, não saberia dizer.

— Pois pode acreditar que era sim. E fazia parte do

alto escalão — afirmou Hélio.

— Como você pode saber essas coisas se nem eu me

lembro direito? — questionou Zoé

— Eu não preciso conhecer seu avô pra saber um

pouco da vida dele e das pistas que ele deixou nas coisas

que ele gostava.

— Como assim?

— As letras na lateral da caixa têm um significado

esotérico, e o seu medalhão hexagonal com essa gravação

da estrela de cinco pontas encaixado no centro da estrela

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0 - A.C. Gardini

de seis pontas gravado na tampa também tem outro signi-

ficado.

— Você está me confundindo cada vez mais. Como

poderia meu avô ter deixado tudo isso sem nunca ter falado

nada?

— Ele não precisava falar. Os símbolos falam por ele

— disse Hélio, fazendo marcações num papel para que ela

o acompanhasse no raciocínio. — Veja. Com o medalhão

colocado no centro da estrela de seis pontas, o que vemos

é a estrela de cinco pontas inserida na de seis. Consegue

acompanhar?

— Até agora não vejo nada de mais — retrucou

Zoé.

— Sim. Mas o que você não sabe é que a soma de

seis mais cinco é onze. A largura do cordão do mestre é de

onze centímetros. Onze é dez mais um, isto é, as dez Sephi-

roth e En-Soph. Isso tudo faz parte do início da Árvore da

Vida na Cabala judaica. Qualquer hora te explico.

— Tem lógica, mas não sei aonde isso pode nos levar.

— Além disso, — continuou Hélio, entusiasmado

com sua descoberta — os seis triângulos do hexagrama, ou

estrela de seis pontas, têm dezoito lados. Os cinco triângu-

los do pentagrama, ou estrela de cinco pontas, têm quinze

lados. Se somarmos dezoito com quinze teremos o número

trinta e três. E agora?

— Estou quase entendendo — falou Zoé, fingindo

estar perplexa com tudo aquilo.

— Os trinta e três graus da maçonaria escocesa! —continuou Hélio, inflamando-se em seu discurso como se

estivesse diante de uma platéia. — Podem ser divididos em

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A caixa de Zoé -

três séries de onze, o número de ouro. Logo, seu avô era

maçom do mais alto nível, grau trinta e três. Um Soberano

Grande Inspetor Geral — disse Hélio, empolgado com o

próprio raciocínio. — Além disso, a loja maçônica, assim

como a maioria dos documentos e diplomas maçônicos,

tem o formato de um quadrado oblongo — concluiu quase

gritando de empolgação pelo seu raciocínio esotérico, afinal

de contas estudara tanto e agora tinha a oportunidade de

colocar em prática tudo o que sempre vira nos livros.

— Eu ainda não consigo assimilar tanta coisa em tão

pouco tempo — disse Zoé.

Ela estava zonza. Além de todas as recordações, mais

essas revelações todas. Ela ainda tinha muitas dúvidas.

— Mas... Aquelas letras... VITRIOL. O que signifi-

cam? Você falou que talvez tenham um sentido esotérico?

— perguntou ela, confusa.

Hélio continuava com seu livro nas mãos e o folhea-

va com a certeza daquilo que procurava. Até que parou em

determinada página.

— Tem, sim. Veja aqui — respondeu ele enquanto

rabiscava numa folha de papel. — V.I.T.R.I.O.L. significa

“Visita Interiora Terrae Rectificandoque Invenies Occul-

tum Lapidem”. É Latim.

— Mas o que significa? — perguntou Zoé com es-

panto, pois nunca soubera que aquelas letras pudessem ter

algum significado. — “Visita o Interior da...”— “...da Terra e, Retificando-te, Encontrarás a Pedra

Oculta” — completou Hélio. — Trata-se de um convite à

procura do EGO profundo, que nada mais é do que a própria

alma humana no silêncio e na meditação — arrematou.

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- A.C. Gardini

— Mas por que será que meu avô guardaria seu di-

ário e um mapa? Simplesmente para meditarmos? — per-

guntou Zoé, ainda mais confusa e atônita com tantas re-

velações. — Hélio, preste atenção. Estão faltando alguns

pergaminhos. Eu acho que os últimos.

Zoé havia percebido que todas as páginas eram nu-

meradas. Olhou todas as páginas e concluiu:

— Faltam exatamente cinco páginas. O que será que

aconteceu com elas?

Imediatamente abriu a caixa à procura de alguma fo-

lha que tenha ficado perdida lá dentro, mas não encontrou

nada.

— Eu tenho a impressão de que é um pouco mais do

que ler um diário. Um mestre como ele deve ter mais a nos

dizer que simplesmente nos mandar meditar — ponderou

Hélio.

Ficaram grande parte da manhã consultando livros

que Hélio tinha em suas estantes, livros que ele sempre le-

vava consigo. Pesquisavam tudo o que fosse relacionado à

Maçonaria, Rosa Cruz, e outras seitas, algumas já extintas,

outras apenas secretas em suas origens, mas se revelando

depois seitas de caráter sectário.

O que mais chamava a atenção de Zoé era a quanti-

dade de símbolos, muitos dos quais ela já havia visto sem

nunca pensar em prestar atenção. Percebia agora o quan-

to esses símbolos faziam parte do seu dia-a-dia e quanto

aprendera com seu avô sem se dar conta disso.

O sol já passava do zênite e começava seu caminho

para o ocaso no céu daquele domingo.

Hélio mais uma vez mostrou do que era capaz para

poder fazer com que ela se sentisse mais à vontade.

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A caixa de Zoé -

— Enquanto você tenta decifrar mais alguma coisa

— foi falando — vou preparar uma bela pasta para nós, se-

não morreremos de fome neste fim de mundo.

Em pouco tempo estava pronto um belo prato de

pasta ao molho de vinho tinto com manjericão, uma das

especialidades de Hélio.

Em questão de minutos preparou aquela base com

tomate picadinho em pequenos cubos, sem sementes e sem

a polpa branca, para evitar má digestão, como ele sempre di-

zia, puxado no alho bem amassado, cebola bem picadinha,

tudo isso com azeite de prima esprimitura, deliciosamente

extra virgem e um copo de vinho tinto italiano. Depois de

apurado, misturava o macarrão de grano duro escorrido e

al dente com aquele molho e servia o que ele chamava de

“Pasta en su própria tinta”, numa alusão ao prato de lula,

no qual também era um expert.

Uma garrafa de vinho tinto acompanhava o almoço,

e entre um copo e outro a conversa foi girando em torno

dos acontecimentos que tanto revelaram a Zoé.

— Eu não poderia imaginar a quantidade de coisas

que meu avô me ensinava quando brincávamos em seu es-

critório. Nos dias de inverno, quando ele me deixava ficar

em frente à lareira, me contava histórias e sempre aprovei-

tava a luz das chamas para brincar com as sombras, fazendo

os mais diversos animais se projetarem na parede e no teto.

Eu morria de medo e sempre ia dormir na cama dele, toda

enrolada nas cobertas, com medo que algum bicho viesse

me pegar. E agora...

Não tinha nada mais bonito que o pôr-do-sol na-

quele cerrado e parecia que hoje era um dia especial. O sol

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- A.C. Gardini

brilhava no seu ocaso sem ofuscar os olhos, sem queimar a

pele, e Zoé sentia cada onda de luz entrando em seu ser a

aquecê-la internamente.

Tinha ficado com Hélio até o final da tarde e agora,

sozinha, novamente em seu apartamento, pensava em tudo

o que acontecera desde aquele instante do leilão. Seu avô

sempre lhe dizia que dentro da caixa estaria seu passado e

seu futuro. Agora ela começava a entender o significado da-

quelas palavras. Será que ele lhe deixara o segredo de algum

tesouro oculto? O tesouro de Montezuma? O segredo de

sua origem, de sua mãe, de seu pai e também de seu futuro?

Tudo isso em suas próprias mãos?

Nunca acreditara em coincidências ou acaso. Por

que seu avô não usufruíra tudo isso se ele tinha todo esse

tesouro à sua disposição? Por que durante anos percorrera

a selva como um simples explorador? O que seu avô queria

dizer com tudo aquilo? Isso era bem típico dele.

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- A.C. Gardini

Capítulo 10

A segunda-feira despertou com um céu azul, aquele

de brigadeiro, um sol maravilhoso e uma vibração no ar tão

boa que era difícil acreditar que estivessem em tão longín-

quas terras.

De sobressalto, Zoé levantou-se e sem se dar tempo

de uma merecida espreguiçada tomou uma ducha, vestiu-se

e pegou suas coisas já preparadas no dia anterior. Estava

pronta para a reunião com o pessoal da TV. Engoliu um

copo de leite semidesnatado acompanhado de uma papaia,

devorada com uma colher e com tanta pressa que nem sen-

tiu aquele gostinho deliciosamente gelado característico da

fruta.

Durante muito tempo acalentara o sonho de um dia

poder aparecer em um programa de alcance mundial para

falar a respeito do nosso solo, da nossa Amazônia, dos pro-

blemas que estávamos enfrentando em relação ao desma-

tamento sem controle, o tráfico de madeira, muito mais

rentável que o de drogas e que estava sendo legalizado pelo

governo.

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- A.C. Gardini

Eram tempos difíceis. O discurso oficial era dirigido

para encobrir as verdadeiras máfias que se formavam para

dilapidar o nosso maior patrimônio e aqueles que tinham

alguma esperança de um dia possuir um título de terra e

que eram despojados de qualquer esperança, tendo que re-

tornar ao seu status de sem-terra, ou mais propriamente

dizendo, sem-esperança.

As denúncias sempre se voltavam para causar mais

confusão no público e deixar uma impressão de que have-

ria um grande salvador da pátria na forma de governo. O

desmatamento da Amazônia legal e o desbravamento da

Amazônia. Uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra

coisa.

A Amazônia estava sendo dilapidada como se fosse

um prato de sopa quente que se come pelas beiradas, mas

mesmo assim ainda era imenso e selvagem. Mais de cinqüen-

ta bilhões de metros cúbicos em reserva madeireira, sendo

apenas quinze bilhões em madeira comercializáveis com um

potencial de lucro acima de alguns trilhões de dólares, muito

ao gosto de tantos políticos corruptos, de tantas ONG’s or-

ganizadas para mascarar suas verdadeiras intenções.

Mas agora, com a cabeça cheia de recordações e lem-

branças, Zoé tinha que se concentrar de forma redobrada

para conseguir por em prática aquela que sempre fora sua

grande idéia.

O pessoal da National Geografic estava à espera dela

no prédio da Geografia quando ela adentrou, esbaforida, a

sala de reuniões. Em questão de minutos já havia se esque-

cido, pelo menos momentaneamente, dos acontecimentos

do final de semana.

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A caixa de Zoé -

Durante toda a segunda-feira e a semana subseqüen-

te ficaram em gravações e diagramações, sendo que tudo

que estava sendo feito tinha que ser por ela aprovado. Fo-

ram quinze dias onde nem mesmo Hélio teve espaço em

seus pensamentos.

Quando se trabalha, o tempo passa rápido.

A campainha tocou no apartamento de Hélio. Quan-

do a porta se abriu, ele, estupefato, afastou-se para que Zoé

entrasse carregando aquele monte de caixas.

— Se eu soubesse que você vinha, teria preparado

uma recepção à sua altura — alegrou-se Hélio ao vê-la tão

bem disposta. — Afinal de contas, agora é uma grande es-

trela de TV. E aí, como foram as gravações e quando vere-

mos você na TV?

— Me falaram seis meses ou mais. Tudo depende

de pauta, ou seja lá o que for — respondeu ela. — O mais

importante é que foi feito e poderemos mostrar uma outra

realidade dos acontecimentos.

— Pra que essas caixas? Aonde você vai? — pergun-

tou Hélio sem saber onde acomodar os apetrechos que Zoé

ia tirando das caixas, até que se deparou com um jantar

chinês completo para duas pessoas. — Opa! O que é isso?

É impressionante como você tem o dom da premonição.

Como sabia que eu não havia jantado ainda?

E quando se dirigia para a cozinha, deu de cara com

Zoé, que já estava lá, com os pratos e talheres nas mãos,

rindo de seu amigo e da sua distração em não percebê-la.

— Os bolinhos chineses são de recheio misto, e só

comprei dois.

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- A.C. Gardini

— Eu sou um abençoado nesta terra! — exclamou

Hélio. — Quem mais depois de quinze dias sem uma “janta”decente ganha um jantar chinês, e com a sua companhia?

— Até parece que você ficou sem comer até hoje— Zoé ria da brincadeira de seu amigo. — Não emagreceu

nem um pouquinho.

— Tenho sobrevivido à base de bolachas e água,

meu único alimento material nesses dias sofridos, e da sua

lembrança, que estava quase se apagando de minha mente

igualmente sofrida com a falta de substâncias sólidas — dis-

se Hélio de uma forma séria e compenetrada, provocando

risadas ainda maiores em Zoé.

— Você me engana com essas caras sérias que faz

— e ela ria.

— Eu sei o que fazer para reativar meus neurônios

— disse ele.

Foi até a cozinha e voltou trazendo uma garrafa de

vinho.

— Este eu guardei para uma ocasião especial e tenho

certeza que é hoje essa ocasião — falou erguendo a garrafa.

— Eu não acredito que você ainda tem essa garrafa

de vinho!

Zoé lembrava-se do dia em que, durante uma via-

gem de estudos, haviam comprado aquele vinho importado,

caro para eles naquela época. Haviam combinado de tomá-

lo juntos em uma ocasião especial.

— É lógico que tenho! Você por um acaso pensou

que eu iria tomar sozinho? — retrucou Hélio, mostrando-se

ofendido.

— Não quis dizer isso.

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A caixa de Zoé -

— Mas disse.

— O que eu quis dizer...

— Mas não disse — e Hélio começou a rir do mau

humor que começava a tomar conta de Zoé.

— Será que você nunca vai tomar jeito? — zangou-

se Zoé.

A noite foi passando tranqüila, e eles abrindo caixa por

caixa. Foram conferindo tudo o que Zoé havia trazido: bús-

solas, gps, mapas, roupas, utensílios que, Hélio começava a

perceber, não eram para utilização na própria Universidade.

— Pra quê tudo isso? Você não pretende sair a cam-

po com sua turma de pós-graduandos, não é? — perguntou

Hélio, desconfiado.

— Oh, não! Isso tudo aqui é pra nós dois — respon-

deu ela, fingindo certa indiferença.

— Como assim “pra nós dois”?— Você é um e eu sou outra, logo um com outra são

dois, nós dois, Zoé e Hélio, Hélio e Zoé. Nós vamos nos

preparar para uma viagem.

— Como assim?

— O meu querido colega sempre se mostrou muito

inteligente e perspicaz. Solicito então ao seu neurônio Teco

que se esforce e tire as conclusões necessárias tendo em vis-

ta todos estes objetos.

— Agora você enlouqueceu de vez — espantou-se

Hélio. — E pensa em me levar junto sem me consultar?

— Eu já o consultei a partir do instante em que você

partilhou da minha vida e quando lhe contei tudo sobre

meu passado e sobre a caixa do diário de meu avô. É condi-

ção sine qua nom a sua companhia nessa expedição.

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0 - A.C. Gardini

— Mas que expedição? O que foi que eu fiz para

você me reservar uma piada dessas?

— Não é piada, e você deveria saber que a reitoria apro-

vou não só a sua ida comigo, mas também nos garantiu verba

suficiente para um mês de exploração da selva Amazônica.

Zoé colocou-se arrogantemente de pé de maneira

tão natural que Hélio desatou a rir.

— Você é muito cara-de-pau — Hélio ria de nervoso.

— Quem disse que eu concordo com isso? Quem te autori-

zou a cuidar de tudo sem minha benção?

— Oh, senhor! Me abençoe com sua graça e me

acompanhe à floresta tropical.

— Assim está melhor. Eu irei, mas com uma condição.

Hélio nunca seria capaz de recusar um pedido de

Zoé. Se é que aquilo era um pedido.

— Qual condição, majestade? — Zoé não se agüen-

tava mais querendo segurar o riso.

— Eu sento na janela no avião.

Ambos deixaram-se ficar até tarde, agora de uma for-

ma mais descontraída, pois Hélio aceitara o “convite” deZoé e estava tudo arranjado.

A noite passou tranqüila, e quando a última caixa foi

aberta, Hélio pôde vislumbrar parte dos equipamentos que

fariam parte da expedição que a Universidade autorizara

a Titular da Cadeira de Geografia realizar com o apoio da

Cadeira de História, para um trabalho de campo.

Teriam trinta dias no meio da Floresta Amazônica,

mas não sabiam ainda exatamente o que estariam procu-

rando por lá.

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- A.C. Gardini

Capítulo 11

Zoé chegou ao aeroporto com duas horas de ante-

cedência sem nenhuma necessidade, pois não se tratava de

uma viagem internacional ou de pegar um grande jato. Se-

ria um vôo doméstico em um avião sucateado de outros

países e que ainda prestava grandes serviços em nosso inte-

rior. Não conseguia esconder seu nervosismo por saber que

estava iniciando uma viagem que fora o objetivo da vida

de seu avô. Uma viagem que custara, anos antes, a vida de

sua mãe.

— Estou impressionado com seu nervosismo — Hé-

lio falava como se Zoé o estivesse ouvindo. — Chegar tão

cedo para ficar mais tempo esperando?

Enquanto esperavam o embarque para a cidade de

Barcelos, no Alto Rio Negro, que seria seu ponto de partida,

foram repassando os pontos principais de sua jornada e do

que iriam precisar. Desceriam em Barcelos e de lá seguiriam

pelo Rio Negro até Tapuruquara, onde ficariam três dias,

o suficiente para encontrarem o guia mateiro que haviam

contratado e sua turma de carregadores. Subiriam daí pelo

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- A.C. Gardini

Rio Marauiá até os picos fronteiriços do Brasil com a Vene-

zuela e Guiana.

Estariam viajando sob o disfarce de uma ONG inte-

ressada na pesquisa geofísica da região, e para todos os efei-

tos estariam fazendo um levantamento paleontogeográfico

com análises de solo, estudo de fauna e flora encontradas e

sua adaptabilidade ao solo úmido da floresta tropical e sua

influência no efeito estufa.

A quantidade de equipamento científico justificava

a contratação de carregadores e de um guia com experiência

na região.

A última expedição científica e equipada a explorar

daquela forma racionalizada havia sido a do ex-presidente

americano Teodore Roosevelt, em 1913, na companhia do

então General Rondon.

O velho General sabia muito bem o que fazia e onde

levava o presidente. Durante meses passeou com ele por

florestas inexploradas fazendo-o colecionar borboletas e

acumular picadas de abelhas e outros insetos. A expedição

foi um sucesso do ponto de vista ornitológico e botânico,

sendo comparada inclusive ao trabalho de Claus Martius e

Johann Spix sobre nossa flora e fauna.

Do ponto de vista estratégico, foi do jeito que o ve-

lho General quis que fosse.

A expedição de agora, pela primeira vez na história

do país, utilizaria o que pode haver de mais moderno em

termos de tecnologia incorporada ao assunto. Equipamen-

tos GPS (Global Positioning System) para que soubessem exa-

tamente onde estariam, telefones celulares e computadores

portáteis conectados via satélite com os main frame (base

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A caixa de Zoé -

de dados) das principais universidades do país, tudo isso

alimentado por baterias solares capazes de gerar energia

suficiente para um grande número de pessoas, podendo in-

clusive abastecer um sistema de chuveiro para um eventual

banho quente.

Estavam saindo para essa expedição na época pró-

pria, o verão, e para isso temos que entender o clima da

região.

Verão é quando chove uma vez ao dia com horário

marcado, e inverno é quando a temperatura cai um ou dois

graus e chove durante o dia todo, todo dia.

— Quer dizer: quando chove pouco é verão, quando

chove muito é inverno, e durante o ano inteiro parece uma

eterna primavera devido à exuberância das flores. Mas o

calor na selva é sufocante!

A explicação de Hélio deixou nossa expedicionária

preocupada.

O vôo levou menos de cinqüenta minutos e foi mais

difícil carregar e descarregar o avião do que chegar ao des-

tino. O aeroporto de terra batida, comum naquela região,

era melhor do que supunham e com sorte não perderam

nenhuns dos equipamentos durante o pouso.

Hospedaram-se no único hotel de Tapuruquara, se é

que se podia chamar de hotel aquela espelunca de pensão,

Nossa Senhora de Aparecida.

Até que se tornava simpática, pitoresca, com sua

passadeira de borracha vermelha que ia da recepção até os

quartos, passando por um corredor com seus vitrôs de ferro

de correr e um jardim interno.

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- A.C. Gardini

Aquele local era a fronteira entre a civilização e a flo-

resta tropical, último refúgio às margens do maior celeiro de

biodiversidade do planeta. Ficariam ali esperando a chega-

da de seu guia, que já havia sido contatado do aeroporto.

Passado algum tempo, a recepção informou, através

de um menino com feições de mestiço, que o guia estava es-

perando por eles no bar ao lado da pensão. Lá, não tiveram

dificuldades em saber quem era o seu guia. Dirigiram-se

para um tipo nativo, grandalhão, carrancudo, com longos

cabelos negros cobrindo as orelhas e cortados numa franja

rente aos olhos. Ele, assim que os viu dirigindo-se a ele,

colocou a mão no cabo da faca que trazia pendente em seu

cinto e esperou.

— Como vai, Seu João Augusto? — foi logo dizendo

Hélio como se estivesse em pleno corredor da universida-

de encontrando um aluno seu, tentando não demonstrar o

nervosismo que sentia ao ver aquele tipo estranho. — Espe-

ro que estejamos no horário.

Ouviu-se uma voz saindo de trás do gigante, e este,

saindo de lado, deixou que vissem um tipo bem mais amis-

toso sentado no fundo do restaurante. Era o guia mateiro

contratado.

Zoé ficou impressionada.

Era um tipo surfista, loiro, quase trinta anos, olhos

azuis, um bronzeado um pouco diferente do bronzeado do

mar, mas que o tornava algo mais atraente em meio àquele

povo de feições grosseiras. Seu talhe tornara-se algo rude

pelo seu contato com a natureza.

— Como vai, Professor? — disse o homem fazendo

um gesto para que os dois se aproximassem da mesa onde

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A caixa de Zoé -

estava sentado. — Creio que seja a professora Zoé com o

senhor.

João Augusto — esse era o nome do guia — revelava-

se uma pessoa agradável, de boa conversa, demonstrando

um conhecimento inusitado para uma pessoa naquele local.

Tinha sido surfista lá no Rio de Janeiro, de onde viera, e na

sua adolescência, um dia, por causa de um desafio veio para

a selva surfar na pororoca, aquele fenômeno do encontro

das águas do rio com o mar.

— Eu me surpreendo ao vê-lo aqui, longe de qual-

quer vestígio de civilização — Zoé estava realmente admi-

rada com aquele sujeito, naquele lugar. — Ainda mais com

uma história dessas, de surfar na pororoca! Deve ter sido

uma sensação incrível!

— Esse fenômeno gera ondas que às vezes percorrem

quilômetros rio adentro — disse João Augusto, contando a

mesma história que vinha contando nesses últimos anos.

— O grande desafio era ver quem ficava mais tempo sobre

a prancha e até onde chegaria. A sensação de se surfar na

pororoca é algo indescritível, não se comparando em nada

com surfar no mar. No mar você está no meio de elemen-

tos violentos da natureza, as ondas, as correntes, o vento,

numa constante briga para não cair, ultrapassar mais uma

crista, “dropar” mais uma onda. Lembram-se do “no vaca”?Então. Às vezes ficávamos horas esperando a onda perfeita

e invejando os que estavam no Havaí ou então na Austrália

com aquelas ondas gigantes. É uma luta constante contra o

mar. Aqui no rio é diferente. Vão me desculpar falar como

vou falar, mas é a única maneira que encontrei para descre-

ver como é surfar no rio: é sexo!

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- A.C. Gardini

— Como assim, sexo? — Hélio, que nunca subira

numa prancha, estava absorvendo cada palavra de seu novo

amigo como se lesse um livro.

— Eu também não faço a mínima idéia do que seja

surfar no mar, quem dirá em um rio — disse Zoé, extasiada

por alguém conseguir descrever o surfe daquela maneira.

— Por favor, continue.

— O surfe no rio é tranqüilo. Você sabe quando a

onda vem e todas são boas, não tem aquela neura de es-

perar a melhor. Você não briga com as águas, mas se dei-

xa levar. Elas são mansas, quentes, vão te arrastando terra

adentro durante a pororoca e você nem percebe o quanto

navega. O prazer que se sente é muito maior que a luta na

água salgada. Você sente o perigo, mas se deixa levar. É um

sentimento interessante de entrega e ao mesmo tempo de

preservação. O rio é dócil, morno, aconchegante, é traiço-

eiro, é feminino. Se puder, ele te mata, mas mesmo assim

você não consegue deixar de gostar dele.

— Eu não gostei dessa parte de que ele é feminino

— Zoé resolveu brincar um pouco.

— Sem intenção de magoá-la ou de me mostrar

preconceituoso — continuou João Augusto. — Muito pelo

contrário, eu estou aqui exatamente por causa desse lado

feminino do rio. Quando você entra nas águas do rio, você

está se entregando de corpo e alma a um ente vivo. Ele te

abraça, te envolve de uma maneira tão carinhosa que nos

esquecemos de onde estamos e vamos ao fundo tranqüila-

mente. É um retorno ao útero materno. Eu acho que grande

parte da lenda da sereia do rio é por causa dessa sensação

de paz que nos envolve. Foi isso que me segurou aqui esses

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A caixa de Zoé -

anos todos. Um verdadeiro sexo, selvagem pela localização,

mas extremamente gratificante — e agora foi a vez de João

Augusto dar sua risada, mostrando dentes alvos e perfeitos.

— Eu não só venci em distância, como também em tempo,

pois nunca mais voltei à civilização. Descobri neste povo

a simplicidade de espírito que deveria ser a razão de viver

de todos os seres humanos. Eu descobri a verdade através

dos bem-aventurados que herdarão a terra. Aqui neste fim

de mundo eles são os verdadeiros herdeiros da Terra e de

tudo que ela contém. Aqui eu vivo em contato direto com a

natureza e em contato com a civilização, mas sem se deixar

manchar pelo egoísmo, pela ambição, tão característicos do

progresso.

Seu companheiro, o gigante mal-encarado, uma vez

apresentado mostrou-se uma pessoa delicada e sensível,

com uma índole dócil como a de uma criança. Seu nome

era Amoroso. Seguia João Augusto como um cão segue seu

dono e parecia ser capaz de dar a vida por ele. Chamava-o

de Patrão.

Hélio e Zoé ficaram sabendo depois que João Augus-

to salvara a vida de Amoroso, tendo com isso angariado sua

companhia como uma forma de agradecimento. Tornara-se

seu anjo da guarda, e Amoroso, seu cão de guarda.

O que Zoé e Hélio não sabiam é que para poderem

adentrar em território indígena precisariam de mais auto-

rizações além das que já tinham. Toda aquela região fora

dominada por ONG´s multinacionais e todas as tribos já

tinham seus missionários e seus protetores. Muitos países

mantinham estreitas relações com certas tribos, dependen-

do do interesse de cada um. Tribos que se especializavam

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- A.C. Gardini

na coleta de material vegetal que era levado embora para

extração de seus princípios ativos; tribos que se especiali-

zavam na extração de minerais, que eram transportados de

avião, saindo de aeroportos considerados clandestinos, mas

que todos sabiam de sua existência; outras ainda especiali-

zadas em servir de cobaias para experiências in loco realiza-

das por grupos farmacêuticos internacionais. Tudo isso sob

o beneplácito do governo.

Por mais que João Augusto conhecesse a região e os

grupos, teria que convencer esses grupos de que a expedi-

ção era realmente o que dizia ser.

Por uma coincidência incrível, por mais que não acre-

ditemos em coincidências, naquela pensão estava acomo-

dado também um missionário americano, John Marcinkus,

estabelecido junto a um grupo da etnia Yanomami.

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0 - A.C. Gardini

Capítulo 12

serva.

Há aqueles acasos que o destino, por vezes, nos re-

Quando ainda estavam João Augusto, Zoé e Hélio

discutindo as várias maneiras de como ou o que poderiam

ou não fazer para adentrarem a selva, providencialmente

John entrou no boteco e colocou-se no balcão.

Em menos de cinco minutos de conversa com o Zé

Mandioca, dono do local, foi colocado a par do que esta-

va ocorrendo com aquele pessoal estranho e do que João

Augusto planejava. Num lugar desses, o dono do bar, além

de poliglota, pode também servir de intermediário para se

conseguir muitas coisas. Esse era o Zé Mandioca.

John se aproximou da mesa onde estava o grupo e se

apresentou.

— Vejo que temos gente nova por aqui, e por isso

mesmo não posso deixar de me apresentar. Meu nome é

John Marcinkus. Fiquei sabendo que os senhores são pro-

fessores da Universidade do Tocantins — Marcinkus não

era de rodeios.

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- A.C. Gardini

— O senhor está muito bem informado — Hélio foi

rápido na resposta. — Pelo jeito nossa chegada aqui não

passou despercebida.

— Daqui pra frente você vai ver como o mundo é

pequeno, Professor — disse João Augusto, que já conhecia

John Marcinkus. — Professora, Professor, este é John Mar-

cinkus, como ele já disse, e vai nos arranjar os passaportes

necessários para sua expedição.

— Como assim? Que passaportes? — quis saber Zoé.

— É maneira de falar — retrucou John. — Eu sou

uma pessoa que conhece muita gente por aqui, e esta é uma

região onde todos nós nos ajudamos, professora...

— Zoe de Melo Rezende. Sou professora titular de

Geografia e este é meu colega Hélio Cortês, professor titu-

lar de História.

— Tenho imenso prazer em conhecê-los, e terei

maior prazer ainda em ajudá-los.

John se fazia interessante, e com uma conversa cati-

vante logo deixou nossos dois exploradores à vontade, dei-

xando clara a sua admiração pelo trabalho envolvente de

Zoé.

— Durante os últimos anos — continuou Marcinkus

— estive na selva por diversas vezes em várias expedições.

Quando não envolvido pessoalmente, era como observador.

Nossas expedições eram sempre de grande penetração na

selva.

E seu conhecimento da selva era ainda maior que o

de João Augusto.

Zoé, como não poderia deixar de ser, empolgada

por encontrar ouvidos receptivos a escutá-la naquilo que

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A caixa de Zoé -

ela mais gostava, discorria sobre o projeto que os levara

até ali, contente por estar recebendo apoio de pessoas tão

abnegadas e interessadas em ajudá-los pelo simples prazer

de ajudar. João Augusto estava sendo pago para isso, mas

mesmo ele se revelara uma pessoa boníssima, acima da ex-

pectativa deles.

John Marcinkus era um típico americano. Alto, ca-

belo escovinha, traços bem definidos, escondia bem seus

45 anos de idade e se não fosse missionário passaria fácil

por um militar, aqueles que a gente vê nos filmes fazendo a

segurança de algum presidente.

Na realidade, Marcinkus fazia parte de um grupo

muito especial de missionários bem treinados de uma agên-

cia americana. Além de conhecer bem o evangelho, era um

profundo conhecedor de plantas e ervas, sendo diplomado

em botânica pela Universidade do Colorado com especiali-

zação em plantas tropicais.

Vários laboratórios farmacêuticos participavam des-

se grandioso projeto de evangelização dos índios em troca

do conhecimento acumulado pelos pajés sobre a flora e,

eventualmente, fauna ainda pouco exploradas.

Marcinkus representava uma ONG que cuidava dos

interesses de minorias étnicas através do mundo inteiro e

estava lá averiguando denúncias feitas por um grupo de ín-

dios Yanomami recebidas pela matriz. Esse grupo Yanoma-

mi, originário do norte do estado do Amazonas, estava aos

cuidados de uma outra ONG, denominada URIHI, dedica-

da aos cuidados médicos de toda uma comunidade. A carta

tinha sido enviada por um grupo de chefes solicitando a

intervenção dessa outra ONG junto ao governo brasileiro,

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- A.C. Gardini

pois não mais estavam recebendo assistência médica por

falta de verbas, que não eram repassadas a eles.

Era pouco mais de dois milhões e meio de dólares em

verbas para poderem cuidar da saúde dos quase quinhentos

índios da reserva. Chapas dos pulmões, tratamento dentá-

rio, prevenção de tuberculose, remédios contra malária e

uma outra série de doenças, nem todas introduzidas pelo

homem branco, como comumente se pensa, mas a grande

maioria endêmica.

Toda essa calamidade na saúde dos Yanomami numa

aérea de mais de noventa e dois mil quilômetros quadrados,

ou seja, noventa e dois milhões de hectares.

John Marcinkus tinha a função precípua de avaliar

o trabalho que estava sendo feito junto aos índios e os re-

sultados obtidos pela URIHI e também o destino dado à

verba conseguida.

Doenças endêmicas não despertavam os interesses

desses laboratórios, pois muitas delas eram raras e localiza-

das, como a doença de Jorge Lobo, que recebeu esse nome

em homenagem ao médico pernambucano que a identificou

na década de 30. Até hoje essa doença não tem cura. Uma

doença incômoda ao portador, pois também é discriminató-

ria pelo aspecto, mas que não é fatal. Morre-se com ela, mas

não dela. Como são poucos os casos relatados, os laborató-

rios preferem investir em produtos de consumo massivo e

por vezes de uso constante.

Conforme a conversa transcorria, John foi se intei-

rando do destino do grupo de pesquisadores. Deixando-se

levar pela conversa inteligente de Zoé, foi mentalmente fa-

zendo um roteiro pelo qual deveriam passar para atingirem

seus objetivos.

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A caixa de Zoé -

Logicamente que iriam até aquela região mais ao nor-

te, nas montanhas que nos separam da Venezuela e Guiana,

pois desde a foz até mais ou menos três mil e oitocentos

quilômetros rio adentro o terreno, com seu perfil de planí-

cie e uma queda em torno de apenas oitenta e dois metros,

apresentava solo da era do Cenozóico, de um período bem

moderno e de formação recente.

O que eles buscavam era o estudo dos vários tipos

de terrenos que sabiam iriam encontrar mais ao norte, em

direção às altas montanhas de onde se destacava o pico cul-

minante, o Pico da Neblina, e ao seu lado o Pico 31 de Mar-

ço. Ao redor daquele maciço rochoso sabiam existir todos

os tipos de terreno que poderiam interessar a eles, desde os

mais antigos até os mais recentes, com todas suas camadas

bem delineadas.

— Eu queria saber como uma moça tão bonita veio

se meter em um lugar como este — Marcinkus agora estava

agradavelmente curioso.

— Meu avô foi um grande explorador, ainda que des-

conhecido. Mas era disso que ele gostava, do anonimato.

Eu ficava horas e horas ouvindo suas histórias e sonhando

com aventuras que me levariam por todo este país.

Falava de seu avô e da grande paixão dele pela mata,

sua amizade com o velho General, as histórias de desbra-

vamento e as grandes expedições que percorreram aquela

parte do país.

John era um ouvinte dos mais interessados, queren-

do saber de cada detalhe.

— Você está me falando de seus antepassados. Mas e

agora, o que a trouxe aqui? — perguntou Marcinkus, curioso.

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- A.C. Gardini

— Nosso objetivo são as montanhas ao norte, pois lá

encontraremos solo adequado à nossa pesquisa — respon-

deu Zoé.

— A minha curiosidade aumenta quando fico saben-

do que o professor Hélio é da cadeira de História. O que faz

um historiador aqui no meio de nenhuma civilização?

— Não creio que a falta de seres humanos hoje aqui

seja parâmetro para que possamos afirmar nunca ter havi-

do uma civilização que ocupasse este território, pois desde

antes do ano de mil e quinhentos temos gente entrando

e saindo daqui, fundando vilas e desaparecendo — Hélio

tinha um tom de voz nada amistoso, respondendo de uma

forma seca e direta.

— O professor tem razão — Marcinkus não se dei-

xou intimidar pela agressividade da voz de seu interlocutor.

— Já vi vestígios de civilizações muito antigas por onde va-

mos, e se o professor quiser poderemos nos aproximar delas

para, quem sabe, estudá-las melhor.

John Marcinkus revelava uma diplomacia acima de

qualquer suspeita.

— Mas continue, Professora. Me fale mais de seu

avô e de seu trabalho. Diga-me: seus pais, nunca acharam

ruim seu avô roubá-la deles? — continuou ele, interessado

na história de Zoé.

— Lembro-me pouco de mamãe, apenas que era uma

mulher bonita, altiva, orgulhosa, de traços marcantes, ma-

çãs do rosto salientes, testa alta. Notava-se não apenas em

seus traços, mas também em seu porte, uma altivez que lhe

era própria do berço. Nasceu assim, quase uma rainha. Ou

quem sabe em outras encarnações tenha sido uma.

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A caixa de Zoé -

— Mas e seu pai? Por que ele não a criou?

— De meu pai pouco vovô me contava a respeito.

Disse apenas que era um bom homem e que havia cumpri-

do seu papel. Morreu jovem, um pouco depois de eu ter

nascido, vítima de um acidente de carro. Mamãe também

morreu, mas de contato com animal venenoso — disse Zoé

e ficou pensativa por um momento. — Irônico. Como pôde

acontecer de uma mulher acostumada à selva com todos os

tipos de animais, fossem venenosos ou não, de repente ser

vítima de um sapo, minúsculo, mas mortífero. O destino

assim quis, e eu, órfã, fui criada por meu avô.

Falar de sua família, principalmente de seu avô, fazia

com que Zoé se sentisse orgulhosa, não mais apenas de seu

trabalho, mas de seu passado com seu avô, porque quanto

mais ela contava mais se dava conta do herói que ele fora.

Desde pequenina, sempre a ouvir histórias e a brin-

car com aquela caixa que seu avô tinha em grande conta.

Quando Zoé citou a caixa, John pareceu acordar de

um marasmo auditivo, pois se até aquele instante ouvira e

se interessara, tinha sido quase que um ato reflexo de seu

treinamento como missionário. Até ouvir falar da caixa.

— Você falou de uma caixa. Por que será que todos

os avôs do mundo têm uma caixa onde guardam segredos

que os netos não podem ver? Meu próprio avô falava sem-

pre de uma caixa secreta.

A curiosidade foi despertada. E que coisa estranha!

Seu próprio avô, que havia participado da primeira grande

guerra e também conhecido o velho General durante a visi-

ta de Teodore Roosevelt, lhe falara de uma caixa. Como será

que era a caixa à qual Zoé se referia?

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- A.C. Gardini

Durante mais algum tempo ficaram falando de seus

antepassados e Zoé, movida por uma intuição que nem

mesmo ela soube determinar a origem, calou-se em relação

ao seu achado no leilão. Teve que morder os lábios um bom

par de vezes para não revelar o verdadeiro motivo de sua

jornada, fato que não passou despercebido por John. Ele

sabia muito bem analisar as reações humanas e pressentiu

que Zoé lhe dizia menos do que queria e sabia mais do que

demonstrava.

À noite, Zoé foi dormir aliviada por poder conversar

com alguém que tanto sabia a respeito de selva e que era

um homem de Deus. John deitara naquela noite com a cer-

teza de que a sorte havia sorrido em seu caminho e de que

sua busca de décadas estava para terminar.

Quem não estava muito satisfeito com tudo era Hé-

lio. Desconfiado de tantas amabilidades, chegou a pergun-

tar para Zoé:

— Você não acha muito conveniente encontrarmos

alguém tão conhecedor da selva e dos meios de se chegar

aonde queremos ir?

Zoé riu do amigo, pois tinha certeza que Hélio es-

tava movido pelo ciúme só porque alguém mais estava se

interessando pelo seu trabalho.

— Que coisa feia, Hélio! Você não está sendo nenhum

pouco “cortês” — e Zoé calou-lhe a boca enquanto fazia esse

trocadilho o qual ela sabia que ele tanto detestava.

— Que coisa horrorosa de trocadilho! Você sempre

aproveita as oportunidades para me infernizar com isso.

— Ora, Hélinho! — disse Zoé, abrindo um sorriso

pelo qual Hélio sempre se derretia, mostrando seus dentes

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A caixa de Zoé -

alvos, agora ainda mais bonitos naquela moldura de selva.

— Você está com ciúmes.

— Acho melhor mudarmos de assunto já que você

acha que é ciúmes. Estou preocupado com nossa segurança.

Se você está segura de tudo aqui, eu estou muito desconfia-

do com essas coincidências — disse Hélio, parecendo abor-

recido com a atitude de Zoé.

— Não precisa se aborrecer tanto assim — Zoé as-

sumiu um ar ressabiado, como se tivesse sido chamada à

atenção. — Se você se preocupa tanto, não me deixe ficar

falando, pois sabe que muitas vezes não me contenho e me

empolgo na conversa.

Os contatos no Boteco do Pau D`água não poderiam

ter sido melhores se fossem encomendados.

Tudo arranjado. Com João Augusto, o pessoal neces-

sário para o transporte do material, com John, o itinerário

ideal e o objetivo de acordo com seu avô.

O alvorecer na selva era um pouco diferente do alvo-

recer no cerrado. O sol no cerrado nasce lá longe, no hori-

zonte, e vai subindo no céu. Aqui na selva a gente sabe que

ele nasceu porque fica claro. Só se consegue ver o sol quan-

do ele já está lá em cima, mas o horizonte é verde e denso.

— Muito bem, Doutora, — foi falando Hélio enquan-

to Zoé saía do quarto. — Vamos logo tomar nosso café para

podermos dar uma volta pela cidade e ir nos aclimatando.

Zoé parecia mais radiante naquela manhã. Um peso

estava sendo retirado de suas costas e com isso seu sem-

blante ia se iluminando a cada dia.

— Parece que quanto mais o tempo passa, mais bo-

nita você fica — Hélio falava com sinceridade na voz.

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- A.C. Gardini

— Fico impressionada com como o ciúme lhe faz

bem — brincou Zoé

— Eu não estou com ciúme. Continuo a dizer que é

tudo muito estranho, muito fácil.

— Pois eu acho bom a gente achar logo esse salão,

porque senão quem vai ficar de mau humor sou eu — disse

Zoé, e seu estômago roncou de fome.

— Pare! — gritou Hélio segurando-a pelo braço e fa-

zendo uma concha com a mão ao redor do ouvido. — Você

ouviu algum animal selvagem roncando?

— Pare com isso já! Foi meu estômago com fome.

Pobrezinho!

Quase que simultaneamente ambos caíram na risa-

da. Desde quando aquela pensão no meio da selva teria um

salão de desjejum?

— Você está pensando no que eu estou pensando?

— perguntou Zoé.

— Acho que sim — respondeu Hélio, não conseguin-

do controlar a risada.

— Eu acho que também sei do que vocês estão rindo

— interrompeu João Augusto.

Zoé e Hélio se assustaram, pois não o haviam nota-

do na entrada da pensão. Mas logo em seguida caíram na

risada novamente.

— Você não acredita! — falou Zoé. — Estávamos

procurando o salão de desjejum, mas não creio que exista

isso por aqui.

— Pode acreditar que não — retrucou João Augusto.

— Mas me acompanhem até o boteco que preparamos uma

surpresa pra vocês dois.

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0 - A.C. Gardini

E saiu caminhando na frente dos dois, que não ha-

viam ainda parado de rir.

— O pessoal aqui da cidade quis que vocês tivessem

a melhor das impressões do local antes de partirem.

Augusto abriu a porta do boteco e os deixou entrever

uma mesa colocada no centro do local com todos os tipos

de frutas da região, sucos e um maravilhoso pão feito em

casa. Pão de mandioca, a especialidade do Zé, o Mandioca,

dono do local.

Partiram no dia seguinte com três canoas, “voado-

ras”, como são chamadas naquela região as canoas de si-

lhueta baixa escavadas em troncos de árvores. São extre-

mamente velozes com seus motores de popa. Duas para o

material e o pessoal da universidade e outra para o reveren-

do John Marcinkus.

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A caixa de Zoé -

Capítulo 13

A viagem já transcorria há três dias quando na pas-

sagem do Estreito de Óbidos, em meio à forte correnteza,

enfrentaram ondas parecidas com as de um mar bravio.

— O que está acontecendo, João Augusto? — pergun-

tou Hélio, assustado com aquela situação. — Cadê aquele

sexo morno que era o rio?

— Essa parte do rio é o lado masculino dele — gri-

tou João Augusto enquanto manobrava a voadora com ma-

estria e motor ao máximo. — Não podemos nos deixar levar

para as margens, pois ficaremos presos nos redemoinhos e

seremos jogados de encontro às pedras. Não solte os

remos — gritou ele mais alto ainda.

Zoé, sentada, apavorada no meio da embarcação, fa-

zia orações, pois foi a única coisa em que pensou fazer para

não atrapalhar os remadores.

— Não deixe o barco virar de lado — gritava João

Augusto enquanto remava vigorosamente, tentando domi-

nar a embarcação que teimava em se posicionar transversal-

mente no rio. — Se ele virar nós morreremos.

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- A.C. Gardini

Essas últimas palavras, pronunciadas aos gritos, sur-

tiram um efeito tonificante em Hélio.

— Pra que lado eu ponho o remo?

Hélio apoiava o corpo na lateral da canoa e enter-

rava o remo na água como se a golpeasse, defendendo sua

vida, lutando contra um ser que, enquanto imaginário, es-

tava disposto a não deixá-los sair dali.

A canoa que levava os carregadores e a maioria do

equipamento vinha logo atrás deles com uma velocidade

muito superior a que deveria estar, por estar carregando

todo aquele peso, e precisando de manobras rápidas.

Quando Zoé sentiu que a voadora em que estava

tornou-se subitamente estável, ouviu Hélio gritando acima

do fragor das águas.

— Diminuam a velocidade! Vocês não vão conseguir

dominá-la!

Eles ainda tiveram tempo de ver o bico da canoa

com os equipamentos e os carregadores avançar para cima

deles.

— Cuidado! — João Augusto gritou para o professor,

que estava na parte traseira com o remo mergulhado na

água. — Para o outro lado!

Hélio, num ato reflexo, tirou o remo da água e jo-

gou o corpo para frente dentro da canoa. O impacto foi

inevitável e a canoa carregada subiu em uma última onda

antes de atravessar na correnteza e emborcar com todos

seus ocupantes. Os gritos foram rápidos e logo sufocados

pelo barulho das ondas.

Esses acontecimentos nunca poderiam ter sido pre-

vistos no início da viagem. Preveniram-se contra chuvas,

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- A.C. Gardini

insetos, queimadas, granizos, até mesmo neve, brincavam

eles antes da partida.

A morte, quando ocorre, mesmo prevista sempre é

inesperada.

Mesmo sem prestar atenção, John Marcinkus levou

sua voadora através da garganta com uma destreza de quem

está acostumado aos mais difíceis embates na vida.

Uma das canoas se perdeu, virando com todo o equi-

pamento, víveres e os carregadores que nela iam. Foi impos-

sível o resgate de qualquer um deles, pois isso colocaria em

risco a segurança da canoa em que estavam. O rio, nesse

ponto, se espreme em apenas um quilômetro e meio na lar-

gura e quase cento e trinta metros de profundidade.

Assim que saíram daquele trecho traiçoeiro busca-

ram e aguardaram durante algum tempo pelos companhei-

ros desaparecidos, mas em vão.

A grande perda foram os homens, pois, por maior

que fosse a perda material, nunca recuperariam aquelas vi-

das humanas ceifadas para sempre.

O rio cobrava tributo pela passagem de seus nave-

gantes.

Zoé ficou tremendamente abalada com o aconteci-

do. Começou a achar que algo de muito ruim ainda podia

acontecer.

Passado o estreito, até agora o pior trecho da semana,

continuaram com suas anotações de praxe, de localização,

do que viam sobre a flora, a fauna, algo um tanto entedian-

te, mas necessário para as confrontações das referências do

diário de seu avô.

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A caixa de Zoé -

Esse trecho ameno da viagem serviu como um bálsa-

mo nas feridas abertas pela tragédia. Zoé pôde refletir um

pouco sobre o ocorrido, e observando a natureza sentiu-se

reconfortada e energizada o suficiente para seguir adian-

te. Nem mesmo as tentativas de reconforto por parte do

missionário tinham alcançado aquele efeito que a floresta

surtia.

Seu avô descrevia o roteiro que tinha sido percorrido

tantos anos atrás com tantas minúcias e tantos detalhes

que ficava fácil seguí-lo enquanto iam navegando através

dos rios e igarapés.

Estava chegando a hora de deixarem os barcos e se-

guirem a pé pela floresta. Com a perda dos homens e parte

do equipamento, tinham agora que continuar por seus pró-

prios esforços e contar apenas com o que pudessem car-

regar.

Zoé, desde o acidente com a canoa, não ficava mais

tão à vontade e começava a dar razão a Hélio. Sentia no ar

um perigo eminente sem conseguir precisar de onde viria

esse perigo. Pediu a Hélio que ficasse atento, pois algo não

se encaixava.

Parecia que o destino começava a conspirar contra

eles. Um temporal desabou e encharcou quase todo mate-

rial eletrônico que levavam.

— Como foi possível molhar quase todo nosso equi-

pamento se mesmo dentro do rio nós conseguimos conser-

vá-los secos? — Zoé não se conformava com a sorte que

teimava em abandoná-los. — Vejam só o que sobrou!

— Não é tão ruim assim — tentou consolar Hélio.

— Com o material que sobrou podemos muito bem nos lo-

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- A.C. Gardini

calizar e seguir adiante. Vai ser um pouco mais demorado,

mas conseguiremos.

Os notebooks estavam inutilizados, assim como dois

aparelhos de GPS. Havia entrado água neles e danificado

as baterias.

Sobraram os velhos mapas militares — que por serem

plastificados não sofreram nenhum dano —, duas bússolas

militares, um aparelho de GPS, um relógio sinalizador e um

celular com bateria extra, por sorte guardados numa embala-

gem inviolável, pois pensavam em nunca ter que utilizá-los

Se voltassem atrás talvez nunca mais tivessem uma

chance como aquela. Desperdiçar todo aquele equipamen-

to, pelo menos aquele que se mantinha seco, seria um gran-

de passo para trás.

A decisão foi única. Seguiriam em frente, buscando

o objetivo traçado pelo avô.

Nesse trecho da jornada, despediram-se do missioná-

rio John Marcinkus, que se separou do grupo e seguiu um

caminho diferente da expedição. Iria ao encontro da tribo

Yanomami que formulara a reclamação junto aos organis-

mos internacionais.

Por mais equipados que estivessem, não tinham se

dado conta da realidade da selva. A densidade da vegetação

que a torna toda igual, os obstáculos incontáveis que difi-

cultam a marcha e vão desgastando o ser humano, exigindo

dos componentes da expedição algo mais que força física:

força espiritual para que, em contato com a natureza, pos-

sam prevalecer sobre ela, sobrepujando-a, fazendo com que

não mais seja um inferno verde, mas uma parte da criação,

uma parte real e palpável.

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A caixa de Zoé -

Seu avô sempre dizia que a selva forjava os verdadei-

ros espíritos altruístas.

“Na selva não existe o ‘eu’” — costumava dizer ele.

— “Existem seres humanos que, independentemente de

raça, credo ou cor, necessitam uns dos outros para sobre-

viver”.Começaram a marcha selva adentro caminhando

com dificuldade e se orientando através de seu equipamen-

to de GPS, suas bússolas e utilizando-se do mapa militar.

Tinham noção de onde estavam através de todas essas co-

ordenadas, mas não tinham a mínima noção de para onde

iam. A floresta permitia uma visibilidade de dez a trinta

metros no máximo, com tempo firme. As copas das árvores,

muitas delas centenárias, fechavam-se como um cobertor

vegetal com uma trama às vezes tão densa que dificultava

até mesmo a possibilidade de se ver o sol.

A jornada ia ficando cada vez mais difícil, com um

avanço lento durante o dia e com a parada obrigatória du-

rante a noite.

O maior perigo da noite não eram os animais ou os

insetos, mas a própria noite, tão escura que em noite sem

lua não se via a própria mão a um palmo de distância. Com

a lua, se sua luz pálida conseguisse atravessar as copas das

árvores, veriam um pouco mais adiante.

O epíteto de Inferno Verde era agora sentido em sua

plenitude e justificava-se plenamente.

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A caixa de Zoé -

Capítulo 14

Mais oito dias se passaram e o avanço do pequeno

grupo era cada vez mais lento. Cada quilômetro representa-

va uma superação individual.

João Augusto, o mais acostumado com a selva, en-

contrava-se agora mais responsável ainda pelos outros

membros do grupo. Mas ele próprio estava à beira de um

esgotamento.

O grupo seguia um destino pré-determinado e, mes-

mo com o corpo chegando à exaustão, Zoé era um exemplo

de determinação, pois, por mais percalços que encontras-

sem pela frente, era movida por uma força invisível, imbuí-

da de uma vontade até então inabalável.

Uma coisa começou a preocupá-los. Zoé e Hélio,

através das diretrizes do diário do avô e com a ajuda do

mapa, se deram conta de que o cenário à sua volta não

era mais o mesmo. Sessenta anos depois, a floresta havia

mudado. A paisagem, por mais monótona e igual em toda

sua extensão, havia mudado nesse mais de meio século de

crescimento generalizado.

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A caixa de Zoé -

Seu avô contava, na época, com um sistema de bús-

sola e anotações de mapas que hoje seria arcaico, sendo a

mesma coisa que comparar um carro fabricado há sessenta

anos atrás e um de agora com toda aquela tecnologia em-

barcada.

A única maneira que tinham de chegar ao fim da

linha era adaptar tudo aquilo que estava no diário e no

mapa com a realidade que encontravam agora. Seu sistema

GPS indicava a localização exata de onde eles estavam. As

indicações no diário mostravam exatamente onde deveriam

estar.

No diário foram registradas as latitudes e longitudes

de cada local que terminariam por indicar o local exato do

fabuloso tesouro de Montezuma.

— Não podemos nos esquecer — foi dizendo Hélio

para Zoé num dos raros momentos em que estavam a sós

— das pequenas variações que foram acontecendo no pla-

neta desde aquela época.

— Você quer dizer sobre a verticalização do eixo pla-

netário?

Zoé lembrou-se do Instituto de Geografia e História

da Universidade de Berna, Suíça, ligada à Universidade de

Neuchatel e Fribourg. Durante uma das palestras da qual

haviam participado anos antes, o cientista palestrante cha-

mava a atenção para uma das mudanças pela qual o planeta

estava passando: a verticalização do eixo terrestre.

A ciência ortodoxa, como sempre, recusava-se a acei-

tar um fato que explicaria as modificações climáticas pela

qual o planeta vem passando. Explicaria o efeito estufa sem

culpar este ou aquele país, o deslocamento das geleiras, a

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- A.C. Gardini

migração de insetos de uma região para outra, pequenos

sinais que poderiam ser notados, e ainda resolveria uma

série de fenômenos para os quais os cientistas não têm ex-

plicação hoje em dia.

Numa simples brincadeira, a mesma brincadeira que

um grego inteligente chamado Eratóstenes realizara a dois

mil e quatrocentos anos atrás, Zoé havia demonstrado que

o cientista estava certo. A Terra perdera quase seis graus em

sua inclinação de vinte e três graus em relação ao equador,

modificando com isso sua declinação em relação ao eixo.

Uma vareta espetada no chão, em local determinado, com

latitude e longitude conhecidas, não determinava mais as

mesmas coordenadas de cinqüenta anos antes.

O planeta estava sofrendo modificações que tinham

que ser compensadas na leitura atualizada de mapas de ago-

ra. Se o sistema GPS é tão preciso, era necessário promover

as correções necessárias para a atualidade. Uma variação de

um grau no mapa poderia levá-los a quilômetros de distân-

cia do alvo.

João Augusto às vezes não entendia o que eles fala-

vam lendo um mapa, fazendo anotações e seguindo direção

diferente da indicada. Ou eles estavam perdidos ou esta-

riam dentro de muito pouco tempo.

A selva parecia começar a cobrar o seu tributo, assim

como o rio cobrara o seu. Zoé continuava com a sensação

de perigo eminente, mas nem por um minuto pensara em

desistir.

Nessa noite, sentados em volta da fogueira do acam-

pamento, encontravam-se apenas Zoé e João Augusto. A

conversa ia em direção ao destino da expedição. Hélio, já

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A caixa de Zoé -

acomodado em sua rede de dormir, dava uma chance ao

corpo de descansar, tentando conciliar o sono com o turbi-

lhão que girava em sua cabeça.

João Augusto contava a Zoé o que era a Amazonia,

seus rios, igarapés, furos, seus duzentos e oitenta bilhões de

hectares compondo trinta por cento das reservas mundiais

de florestas.

De repente, Zoé sentiu um leve arrepio na pele e

percebeu que o luar conseguira romper aquela cobertura ve-

getal e a iluminava, deixando-a a mercê de sua luz argentina

resplandecendo em sua pele alva.

João Augusto não conseguiu prestar atenção em mais

nada e num movimento repentino colocou-se ao lado de

Zoé. Sem dar a ela tempo de oferecer resistência, colocou

seus lábios sobre os lábios dela e, segurando-a pela cintura,

apertou seu corpo, sentindo-a entre seus braços e esperando

ser retribuído com um longo beijo.

Zoé desvencilhou-se dos braços daquele que por um

instante lhe desviara a atenção do luar. Num ato reflexo,

levantou-se do tronco onde estava sentada, fazendo com

que João Augusto perdesse o equilíbrio e caísse de costas no

chão coberto de folhas úmidas. Sua surpresa transformou-

se em fúria, e quando João Augusto conseguiu se levantar,

tornou a cair sob a mão impiedosa de Zoé.

— Nunca mais faça isso — Zoé estava indignada.

— Eu estou aqui por um motivo muito mais sério do que

simplesmente uma noite poderia me proporcionar. Se você

está acostumado com um tipo de turista, saiba que nós não

estamos aqui a turismo — disse ela, possessa de raiva. —Nunca mais chegue perto de mim.

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0 - A.C. Gardini

Hélio, a que tudo ouvira, dormiu naquela noite o

sono dos justos. Ele conhecia muito bem o gênio de Zoé.

Mais um dia que começava. Mais um dia de sol in-

visível, pois se não fosse a luminosidade, nunca saberiam a

diferença entre dia e noite.

Estariam se aproximando do alvo? Estariam indo na

direção certa? As correções teriam sido precisas?

Alguma coisa errada estava acontecendo. Todo dia

desaparecia alguma quantidade de mantimento. João Au-

gusto não conseguia entender o que estava ocorrendo, pois

em todos seus anos de selva sabia que não havia animais

selvagens que agissem de forma tão seletiva. A não ser o bi-

cho homem. Mas eles estavam sozinhos naquela distância

da civilização.

Hélio não confiava no guia.

Mais ou menos na hora do almoço, quando estavam

se preparando para mais uma refeição à base de macarrão

instantâneo e concentrado de proteínas, surgiu no acampa-

mento um velho conhecido deles, John Marcinkus.

Na ocasião em que se separaram, ele foi em direção

ao acampamento Yanomami, e surpreendido por uma forte

tempestade e o alto nível dos rios no local viu-se isolado e

resolveu voltar atrás e se unir novamente ao grupo.

— Você não acha um pouco suspeito que o nosso

amigo missionário tenha conseguido nos achar nessa selva

que se apresenta como impenetrável para nós? — pergun-

tou Hélio para Zoé.

— Lá vem você de novo — redargüiu Zoé. — Por

que não dá uma chance ao reverendo e acredita na história

dele?

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- A.C. Gardini

— Eu não falei que não acredito, apenas quero ter

certeza do que ele está falando. E quanto à sua intuição de

perigo? Será que não tem nada a ver com essas coincidên-

cias? — insistiu Hélio.

— Por favor, Hélio, vamos recebê-lo como a um ami-

go que ele já demonstrou ser — disse Zoé, colocando um

ponto final na conversa.

Foram mais dois dias de marcha em meio a selva

fechada. Já haviam subido quase dois mil metros e encon-

travam-se em um estado deplorável pela falta de alimento,

que começava a escassear, e também pelo desgaste físico.

A selva mostrava-se mais inclemente, ainda mais

quando se subia pelas encostas montanhosas. Um passo

em falso significava a morte. Além do cuidado com a selva,

tinham que ter o cuidado redobrado com as armadilhas na-

turais do terreno, muitas delas escondidas pela vegetação.

Armaram o acampamento, dessa vez de uma forma

mais cuidadosa que das outras vezes, acreditando terem

chegado ao local do grande segredo de seu avô. Iriam passar

algum tempo ali.

Estavam quase chegando. Mas onde?

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A caixa de Zoé -

Capítulo 15

Olhavam para todos os lados e não viam nada além

de selva seguida de mais selva. Todos os pontos de referência

citados no mapa não mais existiam. Como poderiam atingir

seu objetivo se não havia uma só pedra para orientá-los?

Durante todo o dia analisaram o diário e o mapa

deixado dentro daquela caixa de acácia e não conseguiam

atinar com o significado das marcas e coordenadas.

Seu avô deixara a caixa de acácia como herança sua

e quis o destino que ela lhe pertencesse. Todos os aconteci-

mentos que envolveram sua ida ao leilão não haviam sido

aleatórios, todos se entrelaçavam e de alguma forma, como

se fossem afluentes de um grande rio, acabavam por desa-

guar em seu caminho, que agora parecia chegar a um final.

O que estava reservado para ela? Quais seriam as

revelações que a aguardavam? Seu avô falava que na caixa

estava seu passado, mas este ela conhecia. E o futuro? O

que ele quereria dizer com isso?

Durante todo o dia as dúvidas flutuaram em sua ca-

beça, e mesmo com Hélio ao seu lado Zoé sentia que nada

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- A.C. Gardini

sabia a seu próprio respeito. A caixa, os símbolos, números,

letras. Tudo parecia girar em alta velocidade em sua men-

te.

Ainda bem que aquele dia foi tirado para descanso,

pois assim seu corpo físico podia se recuperar um pouco do

desgaste. Mas seu cérebro não parava um só minuto.

A noite chegou e finalmente tiveram um merecido

descanso.

De uma forma amedrontada, quase submissa ao des-

tino, Zoé pediu que John Marcinkus fizesse uma oração em

agradecimento pelos resultados alcançados até aquele dia.

Estavam vivos, por enquanto.

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A caixa de Zoé -

Capítulo 16

Na encosta daquela montanha que haviam alcança-

do no dia anterior havia uma série de cavernas naturais.

Talvez dentro de uma delas Zoé encontrasse as respostas

que tanto procurava.

O sol surgia de uma forma diferente. Eles estavam

acampados numa altitude que lhes proporcionava ver o

nascer do sol desde o horizonte, agora não mais encoberto

pela vegetação, mas em sua plenitude.

— Zoé, lembra-se do que significam as letras

V.I.T.R.I.O.L.? — perguntou Hélio, tentando achar uma sa-

ída para aquela situação. — Você lembra do que falamos?

— Era alguma coisa que falava de uma mudança in-

terior — Zoé lembrava do assunto, mas não do significado.

— “Visita o interior da Terra, retificando-te, encon-

trarás a pedra oculta”.Hélio se lembrava porque tinha tudo anotado em

seu caderno de anotações.

— Nós estamos no local certo olhando para o lado

errado — disse Hélio, mais uma vez obrigando Zoé a racio-

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A caixa de Zoé -

cinar. — Se está escrito que é para visitar o interior da terra,

não podemos olhar para essas cavernas esperando que de

uma delas saia um seguidor de Montezuma e nos convide a

entrar. Seria muito óbvio e fácil de se chegar.

— Estou tentando entender o que você quer dizer.

Se for para visitar o interior da Terra, devemos olhar para

baixo, e não para os lados ou para cima — entusiasmou-se

Zoé, já pegando o fio da meada.

— É isso mesmo, Zoé! — a resposta veio com uma

entonação de vitória. — Nós estamos na posição exata.

Com as correções todas necessárias em função do tempo

decorrido só nós resta entender a charada por completo.

Sabemos que temos que olhar para baixo, mas o que mais?

— Eu não consigo imaginar o que mais poderia estar

escondido por trás disso tudo.

— Seu avô era um homem inteligente, tanto que

conseguiu nos trazer até aqui. Deve haver mais coisas rela-

cionadas a você e a esse enigma — Hélio ia argumentando,

tentando construir um raciocínio em cima da figura do avô.

— Como será que ele procederia?

— Ele sempre me dizia que essa caixa era meu pas-

sado e meu futuro — Zoé ia falando e lembrando como era

nos tempos em que passava horas no escritório de seu avô.

— Outra coisa. Lembro-me é de que ele determinou a mi-

nha ida para o convento das Carmelitas. Ele deixou indica-

ções precisas para que no caso de sua morte eu fosse para o

convento. Soube pouco antes de vir para cá que estava tudo

planejado e pago. Ele havia feito uma grande doação com a

recomendação que eu fosse educada por elas na sua falta.

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- A.C. Gardini

— Mas qual seria a pista por trás disso tudo? — in-

quietou-se Hélio.

— O convento Carmelita pode ser uma pista, pois

me lembro agora do piso da entrada, todo feito em már-

more, representando um pelicano regurgitando alimento na

boca de seus filhotes dentro do ninho. Meu avô sempre me

dizia que ele se sentia um pelicano me contando histórias,

e eu achava que era porque ele era grande e eu, um filhoti-

nho no ninho. Nunca havia pensado nisso de outra forma

— Zoé agora começava a entrelaçar toda sua vida com a

vida de seu avô.

— Estou percebendo que você vai em direção ao

mesmo raciocínio de seu avô — admirou-se Hélio com a

seqüência dos acontecimentos. — Também o pelicano ali-

mentando seus filhotes é um símbolo muito forte na ma-

çonaria.

— Você deve saber, pois quem estudou religião foi

você, e não eu — disse Zoé, empolgada por descobrir mais

uma coisa que poderia ser outra pista. — Mas o nome Car-

melitas tem sua origem nas Escrituras, mais precisamente

com Elias, que é o fundador mítico da Ordem dos Carme-

los, significando “a força de Deus”. Elias “adormece sob

uma árvore e recebe de um anjo um pão e água, e tendo

comido, sobe no monte Oreb”. Como se chama esta mon-

tanha que subimos?

— Beró, de acordo com os indígenas — responde

Hélio, aguardando mais explicações.

— Então estamos no local exato. Basta apenas loca-

lizarmos alguma árvore ou porção de água que deve marcar

o ponto exato. Você, por um acaso, localizou alguma água

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A caixa de Zoé -

aqui por perto? — Zoé encontrava-se totalmente absorta

em suas especulações.

— Tem uma queda d`água aqui perto, mas por quê?

— Porque Elias comeu o pão, mas não se fala que ele

bebeu a água. Então deduzo que se acharmos a água, acha-

remos, de alguma forma, a entrada para o local sagrado.

— Como poderia ser marcado um lugar sagrado?

Como os Astecas marcariam o lugar de seu tesouro? — Hé-

lio questionava não mais a Zoé, mas fazia as perguntas em

voz alta, como querendo ouvir a própria voz e tentar res-

ponder suas próprias perguntas.

— Algo me diz que não foram os Astecas que marca-

ram o local sagrado. Aquela intuição feminina me diz que

outras pessoas fizeram isso.

E Zoé sentiu um arrepio.

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A caixa de Zoé -

Capítulo 17

Enquanto procuravam chegar ao local da pequena ca-

choeira que Hélio havia visto pouco adiante do acampamen-

to iam levantando mais conjecturas a respeito de como o te-

souro foi parar em um lugar tão distante de Montezuma e ao

mesmo tempo ter ficado escondido durante tantos anos sem

que ninguém tivesse qualquer conhecimento de seu paradei-

ro. Como tantas pessoas poderiam ter carregado um tesouro

imenso e nunca ter surgido comentário algum, a não ser as

lendas que envolviam o maravilhoso tesouro perdido?

— Veja! — alertou Hélio. — Estamos chegando na

cachoeira!

Era uma nascente que formava uma queda d`água

fluindo por debaixo de uma grande árvore formando um

lago fundo e com uma série de pedras colocadas dentro dele

em espaços suficientes para formar um caminho. Poderiam

andar com água pelos joelhos.

Quando chegaram, quase não acreditavam no que

os olhos viam. A árvore “debaixo da qual Elias deitara” e a

água escorrendo para formar o lago.

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A caixa de Zoé - 0

Colocando-se de frente para o lago, ao procederem

uma limpeza dos galhos e folhagens acumulados ali pelo

tempo perceberam uma estrutura de pedras em forma de

semicírculo em torno de todo o lago, tão bem colocadas que

não se poderia admitir o acaso da natureza em tão perfeita

harmonia de conjunto.

— Você contou quantas pedras estão arrumadas em

volta do lago? — perguntou Hélio, forçando Zoé a deixar

seus pensamentos de lado. — Repare que são em número de

nove, novamente um número relativo ao Mestre Perfeito.

Zoé, prestando atenção à sua volta, procurava por

algum detalhe que pudesse remetê-los a alguma entrada se-

creta ou algo parecido.

— Preste atenção, Zoé — alguma coisa mais chama-

ra a atenção de Hélio. — Das nove pedras que circundam o

lago, quatro são redondas e cinco de forma oblonga.

— Não vai me dizer que essas pedras querem dizer

algo?

— Desde quando você acredita em acaso? Ou será

que elas caíram nessa posição sem querer? — Hélio agora

anotava num papel a quantidade de pedras e seus respec-

tivos formatos. — Veja bem, temos cinco oblongas, ou, se

você preferir, são cinco barras e as outras quatro são redon-

das. Para os Astecas a forma oblonga vale cinco e a forma

redonda vale um.

— Pera aí — interrompeu Zoé. — Isso tudo tem a ver

com maçons ou com Incas? Só faltava Montezuma ser um

maçom! Essa é demais!

— Se você pensar um pouquinho, ninguém na rea-

lidade detém a verdade. Se nos apegarmos apenas aos Ma-

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00 - A.C. Gardini

çons, ou Rosa Cruzes, ou seja lá que seita for, Jesuítas ou Opus

Dei, Judeus, Espíritas, Pentecostais, veremos que todas essas

seitas têm seus segredos que buscam, em essência, a trans-

formação do ser humano em uma pessoa melhor — Hélio ia

falando como um professor com anos de estudo e pesquisa.

— Acontece que noventa por cento dos homens que entram

nessas Fraternidades não entendem seus objetivos e sim-

plesmente ficam nela para receberem benefícios materiais

e poderem dizer aos outros: “Eu pertenço a tal ou tal seita.

Tomem cuidado comigo”.— Quer dizer que o objetivo delas é um só. Ele sem-

pre me dizia que muitos são os caminhos, mas a verdade é

uma só.

— Quem dizia isso? Jesus? — perguntou Hélio, dis-

traído.

— Foi de meu avô que primeiro ouvi dizer, depois

descobri que no Novo Testamento também havia a mesma

coisa.

— Esse papo de que não existe uma única verdade

e de que cada um tem a sua é um pensamento egoísta do

homem profano — Hélio agora se concentrava em busca de

uma solução. — O iniciado sabe que existe uma verdade e

ela pertence ao Ser Supremo. Se a direção que ele tomar for

a mesma do Criador, então ele será um abençoado. Se for

a direção oposta, ele será um ser das trevas, pois estará se

afastando da Luz.

— Você está querendo dizer que todos aqueles que

são iniciados descobrem que existe uma só verdade e uma

só direção?

— Exatamente isso. Todos aqueles que se tornaram

dirigentes de seus povos de alguma forma foram iniciados

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A caixa de Zoé - 0

nos mistérios sagrados que o homem tanto busca como

grandes segredos que o levarão à fama e glória terrena.

— Se eu estou entendo, a verdadeira fortuna não

está neste plano?

— Você está entendendo certo — disse Hélio, sen-

tando-se em uma pedra como se fosse um dos antigos filó-

sofos, em seus jardins das Academias, ensinando aos seus

discípulos. — Temos notícias disso desde antes da primeira

dinastia do Egito.

— Agora que você falou em Egito, lembro-me das

tardes em casa, quando era pequenina, os livros que meu

avô mostrava cheios de gravuras de faraós, pirâmides, figu-

ras de pássaros, serpentes e as histórias que ele contava.

— Sem você perceber, seu avô estava te iniciando,

pois esses símbolos passaram a fazer parte de sua compre-

ensão e de seus conhecimentos adquiridos.

— Como assim? — quis saber Zoé.

— Conforme você adquire conhecimento, os símbo-

los vão mudando o seu significado, novas verdades vão se

revelando com as mesmas figuras — Hélio lembrava-se das

palestras de Religião Comparada sobre os símbolos variados

e sempre iguais para todas elas. — Os símbolos se distin-

guem por quatro sentidos diferentes: o Literal, o Alegórico,

o Moral e o Anagógico, este último destinado a elevar o

espírito às coisas do alto.

— Acho melhor conversarmos outra hora sobre

isso.

— Se seu avô queria dizer algo com tudo isso, foi de

uma forma bem esperta — cada vez mais Hélio se admirava

com o velho Maçom.

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0 - A.C. Gardini

— O que ele poderia dizer com essas pedras, traço

e ponto. Parece até código Morse — disse Zoé, meio desa-

nimada.

— Já que você perguntou, aposto como você sabe a

resposta — Hélio tinha certeza que Zoé era detentora de

mais conhecimentos do que ela própria poderia imaginar.

— Por que as cinco pedras e mais quatro?

— É muito simples. Isso é Matemática, não Geo-

grafia, nem História — respondeu Zoé com uma expressão

que era a mesma que tanto divertia seu avô, aquelas feições

de quem está pensando profundamente, se concentrando

num problema cuja solução deverá ser a simplicidade de

raciocínio, e não sua complexidade. — Se temos cinco pe-

dras, que você disse valer cinco para os Astecas, multipli-

cando-as teremos o número vinte e cinco. Se pegarmos as

quatro redondas valendo um cada uma, teremos quatro. A

única diferença é que não poderemos somar umas com as

outras, pois são grandezas diferentes, oblongas e redondas

— Zoé começava a se empolgar, pois nunca teria chegado a

essas conclusões se não fosse a chave fornecida pelo amigo.

— Teremos que extrair umas das outras e chegaremos ao

número vinte e um, que é o resultado de três vezes sete.

Três eu sei que é o número do aprendiz, do iniciado, e sete é

o número pitagórico chamado de Veículo da Vida Humana.

Eu sei porque, como sempre gostei dele, andei estudando

um pouco a respeito.

— Outra coisa que podemos juntar nisso tudo que

você acabou de dizer é: cinco pedras referem-se ao grau de

Companheiro e o número quatro refere-se à Marcha do

Companheiro — disse Hélio, admirado com o que Zoé aca-

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A caixa de Zoé - 0

bara de falar. — Mas o que você disse? Sete é o veículo da

vida humana? E o que significa seu nome em grego?

— O Sopro da Vida. Aquele sopro inicial que dá a

vida aos seres humanos — respondeu Zoé, espantada. —Quer dizer que meu avô sabia que um dia eu estaria aqui.

Eu sou o número sete e estou acompanhada de um três,

você, um Aprendiz.

— E se você reparar na lateral das pedras desse lago

— completou Hélio, virando-se completamente para a água

— vai ver ali na lateral, abaixo da linha d`água, um encaixe

retangular. Dê-me a caixa aqui.

Ao mesmo tempo em que falou, pegou a caixa de

madeira de acácia e mergulhou-a na água. A acácia é co-

nhecida por sua indestrutibilidade até mesmo quando em

contato com a água por centenas de anos.

Como por um passe de mágica, a caixa se encaixou

no vão previamente limpo por Hélio e ficou presa, como se

garras a segurassem.

Ficaram um tempo se olhando, Zoé e Hélio, sem en-

tenderem o que se passava. Por que a caixa estaria se encai-

xando naquele local?

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A caixa de Zoé - 0

Capítulo 18

Aproximava-se a hora do almoço, mas nenhum dos

dois conseguia pensar em parar naquele instante e voltar

para o acampamento. Estavam tão absortos em seus pen-

samentos e descobertas que não haviam reparado no mis-

sionário, o homem de Deus que os acompanhara de longe

até aquele ponto.

O sol estava brilhando no zênite e seus raios mer-

gulharam na água verticalmente. O dia era único no ano.

Solstício de verão. No mesmo instante seus raios, de uma

forma paralela, entraram através da água cristalina do lago

e tocando na tampa da caixa de acácia mergulhada na água

fizeram com que esta, iluminando-se, refletisse através da

estrela de seis pontas, projetando o espectro solar na parede

da montanha, pouco acima de onde estavam, através da

água que escorria em cascata.

Ao verem aquele espetáculo de cores se projetando

na parede da montanha, Zoé e Hélio não tiveram dúvidas

quanto ao significado de tudo aquilo. Estavam ambos em

companhia um do outro. Agora eram companheiros e a

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A caixa de Zoé - 0

Marcha do Companheiro, o sinal da cruz invertido, os le-

varia direto através de pedras colocadas no fundo do lago a

um ponto por baixo da cascata que teimava em continuar

caindo durante todos esses anos e que agora era iluminado

pelo espectro solar.

Um pé colocado em uma pedra errada os levaria fa-

talmente ao fundo do lago. Através da água que caía no lago

puderam divisar onde o arco-íris os levava. Na parede lisa,

um furo hexagonal marcava o centro do espectro solar.

— Espere um pouco — disse Zoé e, ato seguinte,

retirou seu medalhão do pescoço e o colocou ali, no furo

da pedra.

O espectro da luz que chegava até ali iluminou o

medalhão ao mesmo tempo em que ouviram um ruído. Pa-

recia que a montanha estava se rasgando inteira. Um bloco

maciço de rocha deslocou-se da frente deles e lhes revelou

uma escada. Nesse instante viram John Marcinkus.

— O que você faz aqui? — surpreendeu-se Zoé ao

ver o missionário surgir como se fosse do nada.

— Durante anos sonhei com este momento — vo-

ciferou John, empunhando um revólver. — Minha família

vem se dedicando à busca deste tesouro desde o princípio

dos tempos. Se você pensa que o seu avô é quem descobriu

este tesouro está muito enganada. Esse tesouro pertence à

nossa ordem e nada fará com que o destino dele seja dife-

rente do que planejamos esse tempo todo. Quando seu avô

morreu, não consegui tirar dele a localização do tesouro,

mas tínhamos certeza de que ele, de alguma forma, havia

deixado pistas para alguém da família, e você era a única

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0 - A.C. Gardini

sobrevivente. Só esperamos. Hoje realizo o que meus ante-

passados não conseguiram.

Zoé encontrava-se totalmente imobilizada pela sur-

presa e ainda mais pelas palavras de John. Hélio, impassível

sob a mira da arma, ficava esperando uma oportunidade de

reagir.

— Você é muito parecida com seu avô — continuou

John. — Quando ele estava morrendo, me pareceu tranqüi-

lo, parecia que escarnecia da nossa incapacidade de locali-

zar o que ele já sabia como descoberto há muito tempo, por

ele e pelo Marechal.

Zoé não se conteve. Explodiu de raiva e gritou:

— Então foi você que matou meu avô! Quando eu

o vi agonizando debaixo daquele fogo, ele olhou para mim,

parou de gritar e sorriu. Mesmo na hora da morte ele sabia

que eu estaria com ele e que vocês, seja lá o que vocês fo-

rem, não iriam conseguir nada.

— Nós somos o seu destino, nós somos aqueles que

vieram para herdar o tesouro de Montezuma — John tinha

os olhos injetados de sangue, totalmente fora de si. — Se

sucedemos a De Molay, este tesouro agora nos pertence por

direito.

— John! — gritou Zoé. — Você ficou louco! O que

estiver aí dentro pertence à humanidade. É um patrimônio

da humanidade. Não existe motivo para que fiquemos com

ele.

— Você é muito inocente, não é mesmo, Professora?

— ironizou John. — Pensar que esse ouro todo que está aí

dentro é da humanidade! Você acha mesmo que vai tudo

para um museu qualquer de um paísinho de terceiro mun-

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A caixa de Zoé - 0

do? Louco não sou eu, que esperei pacientemente esses

anos todos, te acompanhando onde quer que você fosse,

você e esse idiota do seu amigo.

— Você é maluco, isso sim — agora era Hélio quem

gritava. — Se pensa que pode simplesmente ficar com tudo

sem que venham atrás de nós está muito enganado.

— Meu tio amargou um longo exílio por causa desse

tesouro — disse John, desabafando e desatando um nó há

anos em sua garganta. — Desde que ele envolveu o Ban-

co do Vaticano com a Loja Maçônica P2 e ficou sabendo

da existência desse tesouro, movimentou mundos e fundos

para que pudéssemos localizá-lo.

John estava fora de si, e continuou.

— Durante anos ajudou na criação e na manutenção

de organizações que entraram por toda esta selva atrás de

um vestígio, um pequeno vestígio que fosse. E agora vêm

vocês, almofadinhas da cidade grande, gente sem a mínima

noção do que passamos estes anos todos por causa de Mon-

tezuma, e querem roubar o que é nosso por direito. Durante

anos vasculhando documentos escondidos pela inquisição,

que por mais que tivessem exterminado os selvagens, nunca

conseguiram tirar de qualquer um deles uma informação

confiável.

— Virão nos procurar aqui. Todo o mundo científico

está de olho em nós, no resultado de nosso trabalho — gri-

tou Zoé.

— Não se iludam com isso. A selva vai acabar com

vocês da mesma forma que acabou com seus amigos no rio

— John quase não conseguia controlar a risada nervosa,

quase insana. — A única coisa que vai restar da expedição

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da bela doutora será um sinal de GPS bem longe daqui e

um monte de roupas para provar que as formigas amazôni-

cas são carnívoras. A imprensa adora essas notícias.

— Você nunca vai se safar. Você precisa de nós pra

voltar — disse Hélio numa última tentativa de salvar suas

vidas.

— Mais um troxa no meu caminho — John ria des-

bragadamente. — Se o velho morreu sem revelar o cami-

nho, você acha que serve para alguma coisa agora que me

trouxeram até aqui?

John não se continha de tanto rir, esquecendo-se por

um momento da arma em sua mão. Hélio aproveitou esse

instante de distração e se jogou sobre ele, tentando segurar

a arma que estivera apontada para ele o tempo todo.

Os dois rolaram pela escada, caindo na escuridão dos

degraus abaixo. O único som que se ouviu foi o da respira-

ção dos dois em luta e em seguida um estampido.

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0 - A.C. Gardini

Capítulo 19

— Hélio! — gritou Zoé em desespero, já imaginando

seu amigo todo ensangüentado ao pé da escada.

— Fique tranqüila, Professora. Eu estou bem e já es-

tou subindo. Agora é a sua vez.

Era a voz ofegante de John.

Zoé tentou correr, mas se viu impedida por Amoroso,

o cão-de-guarda de João Augusto, que chegara exatamente

naquele instante ao lado dela.

— O Patrão mandou vir aqui tomar conta da senho-

ra, pois ele não confia no missionário — cochichou Amoro-

so entre dentes.

Fez a Zoé um sinal de silêncio com o dedo indicador

sobre a boca e colocou-se ao lado da entrada da caverna.

Quando John se precipitou para o lado de fora, com a cami-

sa ensangüentada pelo sangue de Hélio e apontando a arma

diretamente para Zoé, o gigante agarrou-o pelo pescoço e

numa gravata mortal trouxe o corpo dele para junto do seu,

apertando-o cada vez mais.

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- A.C. Gardini

John era bem preparado para esse tipo de situação

e conseguiu reagir. Jogando-se no chão, obrigou o gigante a

se curvar e a soltá-lo. Levantou-se num salto, como impul-

sionado por uma mola, e frente ao índio levantou a arma e

disparou uma vez.

O gigante estremeceu ao receber o impacto direto

no peito, mas não deteve sua marcha em direção ao gringo.

Mais um, dois, três, quatro estampidos, e desta vez o gigan-

te dobrou os joelhos em frente ao missionário e, agarrando-

se em suas pernas, caiu lentamente no chão pedregoso.

John se livrou daquelas mãos que mais pareciam um

alicate e abaixou-se bem juntinho da cabeça de Amoroso,

sussurrando em seu ouvido:

— Sempre tive vontade de fazer isso com você, gran-

dalhão. Quero vê-lo sofrer até o último suspiro.

Novamente John levou a arma em direção à cabeça

do índio, mas antes que pudesse disparar, o gigante, num

último alento de força, levantou os braços e agarrou a ca-

beça de John com uma das mãos, enquanto com a outra

segurou seu ombro.

Os olhos de John se arregalaram antes que Amoroso,

o gigante, conseguisse torcer seu pescoço e deixasse cair o

corpo inerte sobre as pedras.

Zoé correu em socorro do gigante que jazia caído no

chão, mas não pôde mais fazer nada pelo amigo que tivera

durante tão pouco tempo.

— Professora — balbuciou Amoroso.

— Por favor, Amoroso, não fale nada. Daremos um

jeito de tratá-lo e levá-lo de volta para a cidade.

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A caixa de Zoé -

— Não se preocupe comigo, Professora. A minha dí-

vida está paga. Não tenho mais nada a fazer aqui. Obriga-

do, viu? E agradeça ao Patrão por ter sido tão bom comigo

todo esse tempo.

Zoé não conseguiu segurar as lágrimas. Tivera muito

pouco contato com aquele homem, mas mesmo assim não

poderia esquecer das palavras de seu avô: “Na selva se reve-

lam os verdadeiros seres humanos”.Atraído pelos tiros, surgiu agora João Augusto, cor-

rendo pela trilha em direção a Zoé. Quando chegou ao lado

dela, viu o corpo de seu amigo dos últimos anos, o homem

de quem ele salvara a vida e que se tornara seu guardião.

Cinco furos no corpo dele pelos quais escorria o sangue e a

vida daquele que ao seu lado tinha passado bons momen-

tos. Agora, ao lado do missionário americano, nada mais

restava além de lembranças.

— O que houve, Zoé? Onde está Hélio?

— Lá embaixo — respondeu ela, apontando para

a entrada da gruta aberta pelo deslocamento da pedra. —John o matou.

— Pegue uma lanterna. Temos que descer e verificar

o que aconteceu.

João Augusto colocou-se à frente de Zoé e começa-

ram a descer as escadas. A escuridão, rompida apenas pela

luz das lanternas, parecia que tinha massa, viscosa, pega-

josa, tão densa que grudava em suas roupas. O ar viciado,

difícil de respirar, ia se tornando mais pesado à medida que

desciam os degraus, vinte e seis no total.

Ao chegar ao final da escada, estranhamente não vi-

ram o corpo de Hélio. Depararam-se com um patamar e

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- A.C. Gardini

uma porta de bronze ligeiramente aberta dando acesso a

outra escada com outros vinte e seis degraus escavados na

rocha. Estranhamente, quanto mais iam descendo mais fá-

cil ia se tornando a respiração e por algum motivo que não

conseguiam visualizar, a câmara no final da escada estava

iluminada.

Adentraram um salão profusamente iluminado por

pedras que emitiam uma luz, sem calor, sem que incomo-

dasse os olhos, sem que pudessem perceber de onde vinha

a fonte de energia que fazia com que esse espetáculo se

tornasse tão mágico.

Não foi preciso que seus olhos se acostumassem na-

quele local, tal a suavidade das luzes irradiadas das pare-

des.

Zoé e João Augusto não conseguiam mover um mús-

culo, emitir um som. A respiração suspensa como se tives-

sem sido surpreendidos por alguma coisa muito superior às

suas forças.

Olharam o salão sem entender direito o que viam.

Tudo era brilho. Para onde quer que olhassem viam ouro,

pedras preciosas, estátuas, caixas com gemas dos mais va-

riados matizes, jóias de ouro com pedras incrustadas, pei-

torais de ouro puro, tijolos, correntes de ouro, prata em

profusão e de todos os formatos, facas sacrificiais, lanças,

todos os tipos de armas brancas, roupas, escudos. Tudo isso

era visto agora pela primeira vez nesses últimos mil e qua-

trocentos anos.

Uma caixa retangular, com ornamentos dourados,

num altar colocado à entrada do salão, à direita de quem

estivesse descendo as escadas, chamou a atenção de Zoé.

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A caixa de Zoé -

Era parecida com a caixa que estivera durante anos com seu

avô e que ela havia arrematado no leilão.

Zoé, assustada e surpresa, pegou a caixa e ao exami-

ná-la percebeu que era idêntica à sua caixa. Inclusive o tam-

po com a estrela de seis pontas. Agora, mais familiarizada

com as coisas de seu avô, levou a mão ao peito buscando o

medalhão e instantaneamente entrou em desespero, tatean-

do mais rápido pelo peito e pelo pescoço, só conseguindo

encontrar um vazio e uma angústia que fizeram com ela

soltasse um grito de pânico.

— O que foi? — assustou-se João Augusto.

— Meu medalhão, eu o perdi — Zoé não sabia mais

para onde olhar ou o que fazer buscando pelo pingente.

— Acalme-se, Zoé. Provavelmente você o deixou cair

lá fora.

— Espere! Eu o deixei na fenda da pedra, debaixo

da cascata — disse Zoé, sentindo um alívio imenso. — Na

confusão dos tiros eu o deixei na pedra.

— Pra que você precisa dele? — João Augusto não

sabia da existência do medalhão mágico de Zoé.

— O medalhão me foi deixado como herança de meu

avô e tem sido a chave que nos trouxe até aqui.

— Como assim? Seu medalhão é uma chave?

— Exatamente! Através dele conseguimos abrir uma

caixa igual a esta que continha o diário e um mapa desta

região, deixados por meu avô. Como ele chegou em minhas

mãos é uma outra história.

Zoé não conseguia encaixar seus pensamentos den-

tro do cérebro com tantas novidades. A caverna, o desapa-

recimento de Hélio, sua vida nas mãos de um missionário

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- A.C. Gardini

maluco, a morte de Amoroso, o tesouro. Era muita coisa

acontecendo de uma só vez.

— E agora, Doutora? O que pretende fazer com tudo

isso? Como é que vamos tirar isso daqui? — perguntou João

Augusto.

Zoé sentiu uma coisa ruim na entonação de João

Augusto. Olhou-o de frente, debaixo daquela iluminação, e

era como se conseguisse vê-lo com uma nuvem em volta de

todo seu corpo. Ela estava sendo capaz de ver a aura que o

envolvia.

A aura dos seres humanos, de uma forma geral, é

em tons azuis, mas a aura de João Augusto apresentava-se

escura, uma nuvem negra o recobria. A ambição, a mentira

e a ganância tomaram conta dele, e agora ela conseguia ver

através de sua aura a realidade de seus sentimentos.

— Eu não sei o que fazer — disse Zoé, tentando dis-

farçar o nervosismo. — Teremos que pedir ajuda de alguma

forma para podermos sair daqui.

— Pedir ajuda? Como? — João Augusto começava a

se mostrar irritadiço. — O que vamos fazer com todo esse

tesouro?

— Vamos? Como assim “vamos”?João Augusto começou a, vagarosamente, se aproxi-

mar dela. Em volta deles, várias caixas com tesouros, mas

também com uma quantidade enorme de armas. Quais se-

riam as intenções dele?

— Você tem razão, Doutora. Não vamos. EU vou.

E João Augusto, num movimento brusco, apanhou

uma faca de sacrifícios de ouro puro e avançou em direção

de Zoé.

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A caixa de Zoé -

— Você acha que esse tesouro todo é para você? Que

foi o vovô que deixou? Você é doida! — disse ele, avançan-

do mais.

Com a mão armada, envolto naquela nuvem negra,

com suas feições se transfigurando em um verdadeiro demô-

nio, ele avançou em direção a Zoé. Num gesto derradeiro,

levantou o braço para o ataque final. Ouviu-se um silvo cor-

tando o ar, e de repente o braço não desceu em seu alvo.

O agressor ficou paralisado. Suas feições foram se trans-

formando, voltando àquela de surfista de pororoca, ami-

go de todos, quase angelical, lívida, exangue. De seu peito

sobressaiu uma ponta de lança de ouro puro, agora toda

manchada de vermelho. João Augusto tombou com o rosto

voltado para o chão. Zoé, que havia se protegido com o

braço, levantou o rosto e soltou um grito:

— Hélio!

Seu amigo, com o ombro esquerdo ferido, surgiu por

detrás de uma pilha de ouro cambaleando ainda pelo esfor-

ço do arremesso da lança.

— Olá, Princesa — disse ele, e dando um passo dei-

xou-se cair sobre os joelhos em tempo de Zoé se aproximar

e ampará-lo. — Sentiu minha falta?

— Ora, seu.... — Zoé tinha vontade de bater em seu

amigo que lhe pregara tamanha peça. — Como é que você

está aqui? Você não morreu?

— Morri sim, mas voltei para te salvar — Hélio san-

gra, mas não perde a graça. — Não me faça rir, porque dói.

Zoé teve tempo de ver, agora que tinha o amigo nos

braços, a aura de um azul intenso que emanava dele. No

local do ferimento sua aura apresentava uma tonalidade

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vermelha intensa, mas todo o resto transmitia uma paz,

uma tranqüilidade que fez com que Zoé tivesse certeza de

que seu amigo ficaria bem.

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- A.C. Gardini

Capítulo 20

Retornaram ao acampamento e Zoé, tendo cuida-

do do ferimento de Hélio, preparou-lhe um belo macarrão

instantâneo, que naquela altura dos acontecimentos era o

verdadeiro manjar dos deuses.

Os dois agora estavam sozinhos. A noite nem bem che-

gou e já os encontrou adormecidos. O cansaço os vencera.

O sol já ia alto quando acordaram. Os acontecimen-

tos do dia anterior pareciam um sonho, mas quando Zoé

saiu de sua barraca, percebeu que o que parecia um sonho

era a realidade a ser vivida. Correu para a barraca de Hélio

e a encontrou aberta. Assustada, levantou a cabeça e procu-

rou com os olhos onde poderia estar seu amigo. Não havia

vestígios de animal que tivesse entrado ou sinal de luta.

Onde se metera Hélio?

— Hélio! — chamou ela a plenos pulmões.

Seu grito ecoou na selva e obteve como resposta uma

revoada de araras azuis.

De repente surgiu Hélio Cortês, vindo da cascata,

com um sorriso nos lábios.

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0 - A.C. Gardini

— Acordou, Princesa? — como sempre, ele brincava

com ela. — Vou preparar nosso café da manhã.

— Onde você estava?

— Fui fazer três funerais e um casamento — respon-

deu ele numa alusão a um filme que haviam assistido havia

pouco tempo.

— Então é verdade! Não foi um sonho — disse Zoé.

— É verdade. Mas já está tudo resolvido. Resta saber

agora o que faremos.

— Como assim?

— O que fazer com tanto ouro?

— Vamos tomar um café primeiro.

Zoé não conseguia resistir ao café feito por Hélio.

Mas para surpresa sua, Hélio havia organizado o café da

manhã dentro da caverna, em meio aos tesouros escondi-

dos.

Envoltos pela iluminação natural refletida por aque-

las pedras, eles próprios emitiam uma luz azulada. Era má-

gico! Estavam sentados em milhões em ouro e pedras pre-

ciosas, tomando um café liofilizado horroroso, mas felizes.

Zoé lembrou-se da caixa no altar de entrada que ha-

via caído no chão durante a confusão do dia anterior.

— Hélio, deixei meu medalhão na porta de entrada.

Ontem, quando abrimos a porta, acabei deixando-o colo-

cado lá.

— Eu tenho a impressão que então está perdido,

pois hoje eu não o vi na porta — Hélio usava um tom sério.

— Mas se você usar algumas palavras mágicas, poderá tê-lo

de volta num piscar de olhos.

— Eu não acredito que você o pegou?

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A caixa de Zoé -

— É lógico! Com tantos caras maus em volta da gen-

te, você achou que eu ia deixar a chave na porta?

— Você nunca gostou deles mesmo, não é?

— Nunca.

— Por favor, me dê o medalhão.

— Muito bem, disse as palavras exatas.

Hélio ria, e enfiando a mão no bolso da calça tirou

o medalhão e entregou-o a Zoé, que já estava com a caixa

no colo.

— O que será que tem aqui dentro? — Zoé estava

um pouco assustada, pois a última caixa que abrira trouxera

os dois até os confins do Amazonas.

— Vamos logo, Zoé! Abra e pare de fazer onda. —apressou Hélio, ameaçando tirar a caixa do colo dela.

— Você me deu uma boa idéia — disse Zoé com o

rosto se iluminando. — Por favor, Professor, abra pra mim.

Assim você será o responsável pelo que tiver aí dentro —concluiu ela, entregando a caixa para Hélio.

Hélio não se fez de rogado. Pegou o medalhão, in-

troduziu-o no espaço hexagonal no meio da estrela de seis

pontas e pressionou as laterais. A caixa se abriu e revelou

mais algumas folhas de pergaminho, amareladas como as

que compunham o diário de seu avô.

— Veja! — exclamou Zoé. — As folhas que faltavam

no diário.

Hélio pegou as cinco folhas e as entregou a Zoé.

Com as mãos trêmulas, ela começou a folheá-las. A história

de seu avô continuava com mais surpresas do que ela pode-

ria imaginar.

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0 - A.C. Gardini

“Durante uma das muitas expedições no interior da

selva, eu, ainda jovem, saudável e bonito tinha tido um

contato com uma tribo em vias de extinção. Não eram

índios ou selvagens de alguma etnia desconhecida. Eram

mulheres guerreiras totalmente independentes em meio à

selva hostil. A maioria delas, morenas, vestia-se com saiotes

curtos feitos de tecido grosso e usavam um tipo de bota que

cobria até o joelho.

Não amputavam o seio esquerdo, como diziam as

lendas, para poderem usar seus arcos e flechas. Simples-

mente quando saíam para caçar, a roupa era um pouco mais

apertada para não atrapalhar os movimentos nem agarrar

nos ramos da floresta.

Falavam uma língua estranha, que posteriormente

identifiquei como sendo uma mistura de Latim Arcaico

com Nauatle, a língua dos Astecas.

Pela minha juventude e pela harmonia estética que

eu apresentava, fui escolhido para gerar uma filha com a

rainha delas.

Essas mulheres, conhecidas como guerreiras, esta-

vam em fase de extinção. Eram em número reduzido e pa-

rece que tinham consciência de sua fragilidade frente ao

futuro. Durante algum tempo fui mantido na tribo, até que

se confirmasse a gravidez da rainha.

Contrariando o ritual secular delas, não fui morto.

Ao contrário, assim que a rainha confirmou seu estado de

gravidez libertou-me com a condição de que eu voltasse à

aldeia para ter contato com a menina que nasceria. Elas ti-

nham métodos secretos de só gerarem filhas, evitando assim

qualquer inconveniente com o nascimento de um menino.

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A caixa de Zoé -

Durante alguns meses, retornei às minhas ativida-

des normais junto com meu comandante. Somente nós

dois tínhamos conhecimento de tudo aquilo. Quando che-

gou o tempo de retornar, ambos fomos até o local que

havia sido combinado anteriormente e de lá levados para

a aldeia. Durante essa estada, fiquei sabendo como tinha

sido escolhido: através de certas pedras que emitiam uma

estranha luz natural e totalmente sem calor. Debaixo da-

quela luz elas podiam saber as verdadeiras intenções das

pessoas.

Entre elas não havia inveja, egoísmo ou ambição,

pois qualquer sentimento negativo era mostrado através

daquela luz da pedra e a pessoa era obrigada a modificar

seu padrão de pensamento até ficar de acordo com o res-

tante da aldeia.

— Fico imaginando como seria constrangedor a uti-

lização de tais pedras na nossa civilização.

— Eu queria ver um negócio desses funcionando na

sala do Congresso Nacional, lá na capital — Hélio não po-

deria deixar escapar a oportunidade de uma blague.

— Cale-se e preste atenção — ralhou Zoé.

O diário continua a história contando que durante

essa segunda visita à aldeia foram alertados de que toma-

riam conhecimento de um segredo que havia sido responsá-

vel pela morte de milhões de seres humanos no decorrer da

história da humanidade.

A responsabilidade que estava sendo repassada a eles

era não só do segredo, mas também da preservação do co-

nhecimento que havia sido guardado junto com o ouro.

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- A.C. Gardini

Foram levados até o lago e conduzidos através da

passagem por trás da cascata. Desceram a escada e pas-

saram pela porta de bronze até a câmara do tesouro. Lá,

passados os primeiros instantes para poderem se refazer da

surpresa, foram sendo apresentados ao conteúdo das câma-

ras que compunham aquele complexo. Revelaram-se várias

câmaras, todas cheias de tesouros.

O mais importante não era o ouro, mas o conheci-

mento científico escondido. Rolos e rolos de pergaminhos

escritos com tinta indelével, coloridos, de todos os tipos,

empilhados em prateleiras muito bem organizados e apa-

rentemente catalogados. Era uma imensa biblioteca.

Aquelas mulheres não eram apenas uma tribo de

guerreiras, elas eram as guardiãs do segredo de Montezuma.

Quando o Imperador se viu ameaçado, enviou seu tesouro

ao único lugar no mundo onde sabia que ele estaria a salvo.

As Amazonas o esconderiam e nem mesmo ele ou qual-

quer de seus homens saberiam onde estaria. Por isso tantos

morreram sem revelar o local secreto. Não sabiam realmen-

te onde estava, e quando falavam nas mulheres guerreiras,

eram mortos de forma mais rápida, pois achavam que ha-

viam enlouquecido.

Seu avô e o velho General receberam essa tarefa com

a promessa de que não divulgariam esse segredo. A humani-

dade ainda não estava preparada para tanto poder.

Os Astecas tinham grande conhecimento científi-

co em arquitetura, astronomia, hidráulica, medicina, mas

eram, principalmente, um povo altamente espiritualizado e

com poderes psíquicos que ultrapassavam qualquer conhe-

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A caixa de Zoé -

cimento atual. Eles haviam herdado de seus antepassados,

os Atlantes.

Quando houve o afundamento definitivo de Atlân-

tida, com seus sessenta e quatro milhões de mortos, seus

cientistas e sua elite intelectual dispersaram-se pelo mundo,

e para que esses cataclismos não mais afetassem seu conhe-

cimento, guardado em rolos de pergaminhos, decidiram os

levar para locais diferentes em diferentes partes do mundo.

Parte para os altos da cordilheira do Himalaia, parte para o

Egito, codificado na grande pirâmide de Gizé, parte para as

altas montanhas da América do Sul.

Esse conhecimento agora estava nas mãos das Ama-

zonas. Estava também nas mãos de seu avô.

— Mas espere um pouco — disse Zoé, interrompen-

do sua própria leitura e sorvendo um gole de água fresca,

tomada em uma taça de prata maciça. — Se meu avô rela-

cionou-se com a rainha das Amazonas, então minha mãe

era a herdeira do trono real. Você sabe o que significa isso

Hélio?

— Estou começando a perceber onde você quer che-

gar — Hélio admirou-se. — Por favor, continue seu racio-

cínio.

— Eu sou filha de minha mãe, certo? Então a herdei-

ra desse legado todo sou eu!

— Minha amiga, você está com um belo problema

nas mãos — Hélio olhou espantado à sua volta. — O que

você pretende fazer com tudo isso?

— É uma decisão fácil, Hélio — Zoé não precisou de

muito tempo para pensar o que fazer. — Se a humanidade

não estava preparada para tais revelações na época do meu

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- A.C. Gardini

avô, agora, com toda certeza, está menos ainda. Se nós ten-

tarmos remover tudo isto daqui, por mais sabedoria que

exista aqui dentro, vai acontecer o que sempre acontece no

caso de descobertas assim: serão anos e anos de estudos

onde as vaidades serão exacerbadas e o conhecimento rele-

gado a segundo plano. Grande parte disto vai desaparecer

em coleções particulares, como troféus de caça escondidos

do povo que mais poderia se beneficiar com tudo isso.

Zoé parou e pensou por alguns instantes.

— Vamos fazer exatamente o que meu avô fez. Va-

mos pegar alguma coisa para que possamos viver com certa

tranqüilidade, uma dessas pedras luminosas, e fingir que

nunca estivemos aqui. Quando precisarmos, voltaremos. O

que você acha? — perguntou ela, já conhecendo a resposta

de Hélio.

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A caixa de Zoé -- A.C. Gardini

Capítulo 21

Passaram-se alguns meses. A vida teimava em retor-

nar ao ritmo normal na Universidade. Zoé ainda continua

morando no apartamento de sempre, tentando organizar

sua agenda. Era uma sexta-feira. Não haveria aulas no dia

seguinte, então poderia dormir até tarde no outro dia.

Desde que recuperara todos aqueles dados de sua

vida em sua memória, e com a ajuda das Irmãs Carmelitas,

conseguiu resgatar um elo perdido com seu passado. Com

isso herdou uma boa fortuna deixada pelo avô, podendo

pensar em outras coisas além de suas aulas.

Pegou o interfone e ligou para seu amigo Hélio, dois

andares abaixo.

— Hélio, você não quer subir e fazer um café pra nós?

— Estou indo.

Se falarmos que ele levou trinta segundos estaremos

exagerando, mas em menos tempo que se leva para ler um

parágrafo ele já estava à porta dela.

— Que bom que você me chamou! Ia mesmo inter-

fonar.

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- A.C. Gardini

— Por quê?

— Nada de muito importante, mas você sabe que

nesta cidade nunca acontece nada.

— Isso é verdade. Se pensarmos em termos de cida-

de, é um verdadeiro tédio.

— Alguma coisa em você está diferente. Você está

mais bonita!

Mesmo notando algo de diferente em Zoé, Hélio

não conseguia de pronto visualizar as mudanças. Cabelos

revoltos, sem óculos, mais solta, alegre, feliz.

E então ele fez o convite.

— Pois então. O que você acha de amanhã irmos a

um leilão?