a burca e a depilação

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A Burca e a Depilação “Era o ano de 2005. Eu tinha quase dezenove anos. Saía do país pela primeira vez, para participar de um fórum mundial de jovens. O local? Tunísia, no norte da África. Em 2005, na Tunísia, eu não sabia de muitas coisas. Reproduzia, como vocês entenderão nesta breve anedota, um discurso segundo o qual as mulheres árabes muçulmanas são infelizes oprimidas e deveriam era fazer logo uma revolução, não usar véu e sair de fio dental por aí. Depois dessa viagem pensei, repensei, encontrei amigas árabes muçulmanas que me ajudaram a enxergar o quão complexas são as questões de dominação. Em qualquer lugar. O nome da primeira tunisiana que conheci não me lembro. Ela mudou minha vida e nem mesmo trocamos contato. Era verão. Fazia 40ºC na sombra. Comecei a conversar, ela supersimpática. Aí reparei que enquanto eu estava de saia e blusinha, ela estava de saia até o tornozelo, meias, tênis fechado e blusa de manga comprida. Imaginei que ela estivesse morrendo de calor e perguntei. Ela disse que não, que já estava acostumada e as roupas ainda a protegiam do sol. Em minha ignorância antropológica pensei “coitada, tão dominada…” e continuei cutucando o assunto pra ver se dava caldo. Quem sabe ela não começava uma revolta ali mesmo? Quem sabe eu, que era ocidental, educada na liberdade, não abria seus olhos? Ela me disse, então, algo muito, mas muito sábio. Gostaria de ter registrado as palavras exatas, mas não lembro. Tentarei reproduzir. - As roupas compridas aqui são a depilação de vocês. - Hein? (claro, não entendi nada na época) - Nós podemos, aqui na Tunísia, usar roupas curtas como as que você está usando. - Então como não usam, com um calor desses? - Bom, aí é que está a questão. Poder, você pode. Mas se você usar, não consegue namorado, aí não consegue casar, aí é uma tristeza pra você e pra sua família… - Mas e a depilação? - Bom, imagino que dói fazer depilação, certo? - Sim. - Então por que vocês se depilam sempre? Teoricamente você pode parar certo? - É, mas aí… Creio, leitoras (e eventuais leitores), que não preciso continuar a conversa. Confio no nível de inteligência de vocês. O que tememos que aconteça se não nos depilarmos? Por que nos sentimos “sujas” ou “feias” se não estamos depiladas. Depois desta lição de vida (e outras mais) na Tunísia, meu ponto de vista e minhas perspectivas e opiniões sobre depilação, véu, burca, dominação de gênero, estética e por aí vai, mudaram para sempre. A complexidade das relações que estabelecem um fenômeno social (como este sentimento de imprescindibilidade da depilação na sociedade brasileira) vai muito além de relações imediatistas de causa e consequência como somos levados a acreditar pelos meios de comunicação de massa. (…)” ———————————————————————

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Antropologia cultural

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A Burca e a DepilaoEra o ano de 2005. Eu tinha quasedezenove anos.Saa do pas pela primeira vez, para participar de um frum mundial de jovens. O local?Tunsia, no norte da frica.Em 2005, na Tunsia, eu no sabia de muitas coisas. Reproduzia, como vocs entendero nesta breve anedota, um discurso segundo o qualas mulheres rabes muulmanas so infelizes oprimidas e deveriam era fazer logo uma revoluo, no usar vu e sair de fio dental por a. Depois dessa viagem pensei, repensei, encontrei amigasrabes muulmanasque me ajudaram a enxergar o quo complexas so as questes de dominao.Em qualquer lugar.O nome da primeira tunisiana que conheci no me lembro.Ela mudou minha vidae nem mesmo trocamos contato.Era vero.Fazia 40C na sombra.Comecei a conversar, ela supersimptica.A reparei que enquanto eu estava de saia e blusinha,ela estava de saia at o tornozelo, meias, tnis fechado e blusa de manga comprida.Imaginei que ela estivesse morrendo de calor e perguntei. Ela disse que no, que j estava acostumada e as roupas ainda a protegiam do sol. Em minha ignorncia antropolgica penseicoitada, to dominadae continuei cutucando o assunto pra ver se dava caldo.Quem sabe ela no comeava uma revolta ali mesmo? Quem sabe eu, que era ocidental, educada na liberdade, no abria seus olhos?Ela me disse, ento, algo muito, mas muito sbio. Gostaria de ter registrado as palavras exatas, mas no lembro. Tentarei reproduzir.- As roupas compridas aqui so a depilao de vocs.- Hein? (claro, no entendi nada na poca)- Ns podemos, aqui na Tunsia, usar roupas curtas como as que voc est usando.- Ento como no usam, com um calor desses?- Bom, a que est a questo. Poder, voc pode. Mas se voc usar, no consegue namorado, a no consegue casar, a uma tristeza pra voc e pra sua famlia- Mas e a depilao?- Bom, imagino que di fazer depilao, certo?- Sim.- Ento por que vocs se depilam sempre? Teoricamente voc pode parar certo?- , mas aCreio, leitoras (e eventuais leitores), que no preciso continuar a conversa. Confio no nvel de inteligncia de vocs. O que tememos que acontea se no nos depilarmos? Por que nos sentimos sujas ou feias se no estamos depiladas.Depois desta lio de vida (e outras mais) na Tunsia, meu ponto de vista e minhas perspectivas e opinies sobre depilao, vu, burca, dominao de gnero, esttica e por a vai, mudaram para sempre. A complexidade das relaes que estabelecem um fenmeno social (como este sentimento de imprescindibilidade da depilao na sociedade brasileira) vai muito alm de relaes imediatistas de causa e consequncia como somos levados a acreditar pelos meios de comunicao de massa. () engraado como muitas vezes nos submetemos a tratamentos dolorosos, caros e desnecessriosapenas para estar dentro dos padres da sociedade. Nem percebemos que muitas vezes estamospresasa esse tipo de presso.Somos educadas e acostumadas desde crianas a pensar queuma mulher deve fazer tal coisa, ser de tal jeito. algo que est to incutido na nossa sociedade que ns mesmas acreditamos que fazemos tudo isso porque achamos bonito e no para agradar os outros.Mas ser que se nenhuma mulher se depilasse, o padro de beleza fossem mulheres compelos, voc iria assim mesmo na depiladora toda semana?? Ser esse um costume que realmente te agrada ou que devido a sua educao e a sociedade que voc vive se tornou algo que faz parte da sua rotina??