a bibliografia didÁtica de geografia: história … · composition, giving voice to a discipline...

414
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: GEOGRAFIA E GESTÃO DO TERRITÓRIO A BIBLIOGRAFIA DIDÁTICA DE GEOGRAFIA: história e pensamento do ensino geográfico no Brasil (1814-1930...) JEANE MEDEIROS SILVA UBERLÂNDIA/MG 2012

Upload: dangdieu

Post on 31-Aug-2018

232 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    INSTITUTO DE GEOGRAFIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA

    REA DE CONCENTRAO: GEOGRAFIA E GESTO DO TERRITRIO

    A BIBLIOGRAFIA DIDTICA DE GEOGRAFIA: histria e pensamento do ensino geogrfico no Brasil (1814-1930...)

    JEANE MEDEIROS SILVA

    UBERLNDIA/MG

    2012

  • JEANE MEDEIROS SILVA

    A BIBLIOGRAFIA DIDTICA DE GEOGRAFIA: histria e pensamento do ensino geogrfico no Brasil (1814-1930...)

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Geografia da Universidade Federal de Uberlndia, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutora em Geografia.

    rea de Concentrao: Geografia e Gesto do Territrio.

    Orientadora: Profa. Dra. Vnia Rubia Farias Vlach.

    Uberlndia/MG

    INSTITUTO DE GEOGRAFIA

    2012

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    Jeane Medeiros Silva

    A BIBLIOGRAFIA DIDTICA DE GEOGRAFIA: histria e pensamento do ensino geogrfico no Brasil (1814-1930...)

    _________________________________________________

    Profa. Dra. Vnia Rubia Farias Vlach

    Orientadora

    _________________________________________________

    Profa. Dra. Marsia Margarida Santiago Buitoni UERJ

    Examinadora

    _________________________________________________

    Profa. Dra. Rogata Soares Del Gaudio UFMG

    Examinadora

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Dcio Gatti Jnior UFU

    Examinador

    _________________________________________________

    Profa. Dra. Rita de Cssia Martins de Souza UFU

    Examinadora

    Data: 27/junho/2012

    Resultado: Aprovada com Louvor

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

    S586b

    2012

    Silva, Jeane Medeiros, 1978-

    A bibliografia didtica de geografia: histria e pensamento do ensino geogrfico no Brasil (1814-1930...) / Jeane Medeiros Silva.

    2012.

    394 f. : il.

    Orientador: Vnia Rubia Farias Vlach.

    Tese (doutorado) Universidade Federal de Uberlndia, Progra-

    ma de Ps-Graduao em Geografia.

    Inclui bibliografia.

    1. Geografia - Teses. 2. Geografia - Estudo e ensino - Brasil -

    Histria - Teses. 3. Geografia - Bibliografia - Teses. I. Vlach, Vnia

    Rubia Farias. II. Universidade Federal de Uberlndia. Programa de

    Ps-Graduao em Geografia. III. Ttulo.

    CDU: 910.1

  • Aos meus pais, Geraldo e Herotildes, minha fora e meu refgio sempre.

  • AGRADECIMENTOS

    divina fora, imensurvel, que me protege, guia e vela pelos meus atos, agradeo

    pela f que me sustenta e me equilibra, nos dias difceis, nas alegrias da vida.

    Profa. Dra. Vnia Rubia Farias Vlach, orientadora e amiga, que me acompanha h

    doze anos, indicando-me os caminhos do ensino da Geografia, atenta, paciente e

    generosa: sou sua indisfarvel discpula e levarei para sempre as marcas de sua

    dedicao Geografia brasileira, transmitidas minha formao acadmica.

    minha famlia, fora oculta que se desvela em zelo e apoio incomensurveis:

    Geraldo e Herotildes, meus pais, Naama, minha irm, e Deds, meu cunhado.

    Adrianna Silveira das Neves e ao Itamar Carlos de Jesus Jr., pela alegria do

    convvio e pela fora nos dias difceis: vocs so muito especiais e eternos em meu

    corao.

    s amigas de f, sonhos e ousadias, Lvia Silva Sousa e Andria Mello Lac: toro

    pela fora do futuro a nosso favor, nenhum plano em vo.

    nia Franco de Novaes, amiga to ntegra, que me inspira verdadeiramente.

    Aos amigos da infncia geogrfica: Clcio Jos Carrilho e Mrcia Andria Ferreira

    Sousa pelo entusiasmo, humor e torcida, pessoas muito especiais para mim.

    Roberta Afonso Vinhal Wagner e Elza Canuto, pelo incentivo sempre.

    amiga Miyuki Kurokawa, pela torcida carinhosa, primeiro do outro lado da ponte do

    Araguari e depois do outro lado do mundo mesmo.

    Claudia Ftima Kuiawinski e Sofia Lorena Vargas Antezana, companheiras de

    lida, sempre dispostas a ouvir e a ajudar.

  • Aos Profs. Drs. Adriany de vila melo Sampaio, Eucidio Pimenta Arruda e Srgio

    Luiz Miranda, pelo acurado exame e contribuio por ocasio da qualificao da

    tese.

  • RESUMO

    Considerando que os livros didticos de Geografia so um dos lugares manifestos do discurso histrico-ideolgico do pensamento geogrfico no Brasil, instituinte, tambm, da histria desta cincia, o objetivo da tese foi compreender a bibliografia didtica do ensino de Geografia, bem como a histria e o pensamento deste ensino, entre as dcadas de 1810 e 1930, por meio da descrio da trajetria constitutiva e da anlise do livro didtico de Geografia e dos discursos dos seus sujeitos. Considerou-se a Anlise do Discurso, a Histria das Disciplinas Escolares e a Histria do Currculo como subsdios terico-metodolgicos para apreender a bibliografia didtica de Geografia como objeto de pesquisa. A bibliografia sistematizou dados referentes a 276 ttulos, de 510 edies, escrita por 183 autores. As primeiras manifestaes da Geografia como disciplina independente surgiram no ensino superior, na organizao curricular de alguns dos primeiros cursos cientficos introduzidos no territrio brasileiro, no contexto da formao da Academia Real Militar (1810), pelo que a Geografia passou a ser estudada em aulas avulsas, marcando esse processo o surgimento de livros didticos no incio da dcada de 1820, at ser introduzida permanentemente no quadro curricular do Colgio Pedro II a partir de 1837. O ensino de Geografia, com intensidade variante, ao longo de sua trajetria, assumiu um papel cultural, um papel nacional e um papel cientfico no contexto da educao brasileira. Os discursos didticos de Geografia, desde seu surgimento, inscreveram-se na Geografia moderna em sua vertente clssica, emergente no sculo XVIII, assimilando a estrutura da Geografia Fsica, da Geografia Poltica e da Cosmografia como vertentes da sua organizao, modelo que, em fins do sculo XIX, comeou a apresentar sinais de esgotamento. Os anos 1920 foram um divisor de guas para o ensino de Geografia e para a bibliografia didtica dessa disciplina. O sopro da orientao moderna da Geografia, somada ao sentimento de cansao aferido pela Geografia descritiva, a reorientao dos objetivos do ensino contriburam para compor um novo quadro didtico para a Geografia. O exame da bibliografia permitiu acompanhar a formao e o desenvolvimento da Geografia como disciplina escolar. Demonstrou como o seu contedo transgrediu sua funo auxiliar, no ensino implcito desse saber, caracterstico aos perodos jesuticos e pombalino, at canalizar uma constituio nica, dando voz a uma disciplina formada, com lugar e responsabilidades na instituio escolar, entre o reinado e a primeira repblica. Foi possvel, ainda, examinar questes como autoria, autoridade, legitimao da disciplina, a relao dos textos com os currculos propostos, a questo das fontes e das tradues, posicionamentos frentes tradio, metodologia de ensino e formao dos professores, a questo da nacionalidade, e outras, percebidas enquanto regularidades na disperso do discurso didtico de Geografia.

    Palavras-chave: Ensino de Geografia; Bibliografia didtica de Geografia; Geografia Descritiva; Currculo de Geografia; Discurso didtico.

  • ABSTRACT

    Considering the geography textbooks as one of the places of historical and ideological discourse of geographical thought in Brazil, instituting the history of this science, the thesis aim to understand the didactic bibliography of geography, its history and thought, between 1810s and the 1930s, through the constitutive description of the trajectory and the analysis of the Geography textbook and the discourses of their subjects. It was considered Discourse Analysis, History of School Subjects and Curriculum History as theoretical-methodological to grasp the geography teaching for research subject. The bibliography systematized data on 276 books, 510 editions, written by 183 authors. The first manifestations of Geography discipline as independent discipline emerged an in superior education in the curriculum of some early science courses introduced in Brazil in the context of Royal Military Academy (1810) formation, so the geography began to be studied in independent courses, marking this process the emergence of textbooks in the early 1820s, being introduced permanently in the curriculum of the Colgio Pedro II from 1837. The geography teaching, with an intensity variation along its trajectory, assumed a cultural, a national and a scientific paper in the context of Brazilian education. The didactic discourses of Geography, since its inception, enrolled in Geography modern classic, emerging in the eighteenth century, understanding the structure of the Physical Geography, the Political Geography and Cosmography as aspects of its organization, a model which, at the end nineteenth century, began to show signs of exhaustion. The 1920s were a watershed for the teaching of Geography and the its didactic literature. The "modern lines" of geography, coupled with the feeling of fatigue as measured by descriptive geography, the reorientation of the education aims contribute to compose a new framework for teaching geography. The examination of the literature allowed the monitoring of the formation and development of geography as a school subject. Demonstrated its content violated its auxiliary function, implicit in the teaching of this knowledge to channel a unique composition, giving voice to a discipline formed, with place and responsibilities in the school between the kingdom and the first republic . It was also possible to examine issues such as authorship, authority, discipline legitimacy, the relationship of the texts with the proposed curriculum, the question of sources and translations, fronts positions tradition, the teaching methodology and teacher training, the question nationality, and others perceived as regularities in the dispersion of the geography didactic discourse.

    Keywords: Teaching Geography; Bibliography teaching of Geography, Descriptive Geography, Geography Curriculum, teaching discourse.

  • SUMRIO

    CONSIDERAES INICIAIS ............................................................................. 01

    CAPTULO 1 UMA PERSPECTIVA TERICO-METODOLGICA PARA A

    ANLISE DA BIBLIOGRAFIA DIDTICA DE GEOGRAFIA: disciplina,

    currculo e discurso .............................................................................................

    12

    1.1 A Histria das Disciplinas Escolares e a Histria do Currculo: algumas

    contribuies para uma histria da disciplina escolar de Geografia e de sua

    literatura didtica ................................................................................................

    13

    1.2 Anlise do Discurso: fundamentos terico-metodolgicos da interpretao 25

    1.2.1 O sujeito, a histria e a ideologia na anlise discursiva: a questo

    da autoria .................................................................................................

    28

    1.2.2 O discurso, seus elementos e a formao do dizer didtico .......... 37

    1.3 Procedimentos metodolgicos da pesquisa da Anlise do Discurso ........... 45

    CAPTULO 2 DESCRIO DA BIBLIOGRAFIA DIDTICA (1814-1939):

    discusso da trajetria constitutiva dos manuais de Geografia ..........................

    49

    2.1 A bibliografia didtica de Geografia .............................................................. 49

    2.2 A autoria da bibliografia ................................................................................ 87

    2.3 A editorao .................................................................................................. 93

    2.4 O desenvolvimento fsico-grfico dos manuais didticos de Geografia ....... 108

    CAPTULO 3 DO ENSINO IMPLCITO AO ENSINO EXPLCITO DA

    GEOGRAFIA: prenncios da disciplina e do livro didtico nos movimentos

    histricos anteriores independncia poltica do Brasil .....................................

    121

  • 3.1 A educao colonial: os primeiros indcios de uma educao geogrfica ... 125

    3.2 A educao colonial: a influncia do isolacionismo ...................................... 136

    3.3 Reinado (1808-1821): o surgimento dos primeiros indcios de uma

    literatura didtica de Geografia ...........................................................................

    139

    3.3.1 Academia Real Militar do Rio de Janeiro (1810): a primeira

    explicitao da Geografia como disciplina .................................................

    144

    3.4 Uma avaliao da posio da Geografia como atividade de ensino entre

    1549 e 1821: prenncios da formao de uma disciplina geogrfica no Brasil .

    161

    CAPTULO 4 DELINEAMENTOS CONSTITUTIVOS DA GEOGRAFIA

    ESCOLAR NO IMPRIO (1822-1889): o estabelecimento de uma disciplina e

    de uma bibliografia didtica ................................................................................

    169

    4.1 A educao brasileira e o ensino de Geografia no perodo Imperial ............ 172

    4.1.1 Da Assembleia Constituinte de 1823 ao Ato Adicional de 1834: o

    entreposto da consolidao da Geografia como disciplina ........................

    174

    4.1.2 Currculo e ensino de Geografia no Imprio: o papel do Colgio

    Pedro II .......................................................................................................

    180

    4.2 O currculo e a constituio da bibliografia didtica de Geografia no

    perodo imperial ..................................................................................................

    200

    4.2.1 A tradio da Cosmografia, da Geografia Fsica e da Geografia

    Poltica ........................................................................................................

    201

    4.2.2 A bibliografia didtica de Geografia no Imprio ................................. 205

    4.2.3 A formao do currculo escolar de Geografia no Imprio ................ 212

    CAPTULO 5 DELINEAMENTOS CONSTITUTIVOS DA GEOGRAFIA

    ESCOLAR NA PRIMEIRA REPBLICA (1889-1930...): permanncias e

    transformaes na disciplina e em sua bibliografia didtica ...............................

    227

  • 5.1 A educao brasileira na Repblica: o lugar da Geografia escolar e sua

    proposta curricular ..............................................................................................

    229

    5.2 A constituio da bibliografia didtica de Geografia no perodo republicano 252

    5.2.1 A bibliografia didtica de Geografia na Repblica ............................ 253

    5.2.2 A contribuio de Said Ali: o significado da sua proposta de

    regionalizao ............................................................................................

    257

    5.2.3 A contribuio de Delgado de Carvalho: a orientao moderna da

    Geografia e sua relao com o livro didtico .............................................

    260

    5.2.4 Antonio Firmino Proena: sntese das transformaes no ensino de

    Geografia ....................................................................................................

    265

    5.2.5 Fernando Antnio Raja Gabaglia: o ensino de Geografia por

    prticas .......................................................................................................

    268

    CAPTULO 6 DISCURSOS NO LIVRO DIDTICO DE GEOGRAFIA:

    anlises de elementos constitutivos da bibliografia e do ensino geogrfico ......

    272

    6.1 O discurso da designao das obras ........................................................... 275

    6.2 A formao do discurso didtico de Geografia: estabelecimento da

    Geografia descritiva ............................................................................................

    287

    6.3 Prefcios, prlogos, notas de advertncia, apresentaes e imprensa: os

    discursos do entorno ..........................................................................................

    300

    6.3.1 Estabelecimento da autoria e da obra: vozes constitutivas dos

    sujeitos e dos discursos didticos ..............................................................

    301

    6.3.2 A identidade e a legitimidade da disciplina ........................................ 310

    6.3.3 Os sujeitos da recepo enunciativa ................................................. 314

    6.3.4 A relao do discurso didtico de Geografia com os currculos e

    programas ..................................................................................................

    315

    6.3.5 Enfrentamentos das tradues, fontes e lacunas do discurso

    didtico de Geografia .................................................................................

    317

  • 6.3.6 Discursos emergentes como oposio tradio da bibliografia

    didtica de Geografia .................................................................................

    325

    6.3.7 Enunciados ao professor: instrues e recomendaes dos autores

    aos docentes de Geografia ........................................................................

    329

    6.3.8 Posies constitutivas da bibliografia didtica de Geografia quanto

    ao nacionalismo ..........................................................................................

    334

    6.4 Livro escolar de Geografia e representaes sobre o ensino geogrfico no

    perodo em questo ............................................................................................

    340

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 351

    REFERNCIAS .................................................................................................. 366

    APNDICE ......................................................................................................... 389

    01 obras de importncia direta para a bibliografia didtica de geografia

    brasileira .............................................................................................................

    390

  • LISTA DE FIGURAS

    01 Atos de controle e advertncia contra a pirataria de obras didticas em

    exemplares de Henrique Martins (1896), Carlos Ges (1918) e Jos Theodoro

    de Souza Lobo (1927) ........................................................................................

    85

    02 Distribuio geogrfica da produo da bibliografia didtica de Geografia

    no Brasil (1814-1939) .........................................................................................

    100

    03 Distribuio geogrfica da produo da bibliografia didtica na Europa

    (1814-1939) ........................................................................................................

    102

    04 Baptiste Louis Garnier (1823-1893), pioneiro das atividades editoriais

    para o livro didtico brasileiro e Francisco Alves de Oliveira (1848-1917), que

    consolidou o mercado das publicaes didticas no Brasil ................................

    107

    05 Encadernaes tpicas da bibliografia didtica de Geografia at fins do

    sculo XIX ...........................................................................................................

    110

    06 Capa da 5. ed. da Chorographia do Brasil, de Henrique Martins (1896): a

    identificao da obra desloca-se da lombada e da folha de rosto para a capa

    frontal ..................................................................................................................

    112

    07 Reproduo da folha de rosto na capa do exemplar de 1902 de A Terra

    illustrada. Geographia universal, physica, ethnographica, poltica e econmica

    das cinco..., de Frere Ignace Chaput (F.I.C.) .....................................................

    113

    08 Geographia Elementar, de A. de Rezende Martins exemplar de 1926:

    das primeiras obras em formato panormico .....................................................

    114

    09 Ilustraes e um dos mapas coloridos da obra Curso methodico de

    Geographia physica, politica, histrica, commercial e astronomica, composto

    para uso das escolas brazileiras, de Lacerda, 1887 ..........................................

    116

    10 Capa da obra Geographia Elementar, de Arthur Thir ............................... 118

  • 11 Algumas pginas internas da obra Geographia Elementar, de Arthur

    Thir ....................................................................................................................

    118

    12 Fotografias ilustrando a obra Lies de Chorographia do Brasil, de

    Horacio Scrosoppi ..............................................................................................

    119

    13 Esquema da explicao para o processo de Gormao das chuvas

    proposto por Gabaglia (1930) .............................................................................

    270

  • LISTA DE GRFICOS

    01 Produo da bibliografia didtica de Geografia por dcada (1814-1939) .. 86

    02 Distribuio da produo de livros didticos por localidade (1814-1939) .. 99

  • LISTA DE QUADROS

    01 Bibliografia didtica brasileira de Geografia (1814-1939) ........................... 51

    02 Produo por autoria, para autores com mais de dois ttulos de manuais

    didticos de Geografia (1814-1939) ...................................................................

    91

    03 Descrio das casas publicadoras da bibliografia didtica de Geografia

    (1814-1939) ........................................................................................................

    94

    04 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na

    vigncia do Imprio 1838 .................................................................................

    188

    05 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na

    vigncia do Imprio 1841 .................................................................................

    189

    06 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na

    vigncia do Imprio 1850 .................................................................................

    191

    07 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na

    vigncia do Imprio 1855 .................................................................................

    192

    08 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na

    vigncia do Imprio 1857 .................................................................................

    194

    09 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na

    vigncia do Imprio 1862 .................................................................................

    195

    10 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na

    vigncia do Imprio 1870 .................................................................................

    196

    11 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na

    vigncia do Imprio 1876 .................................................................................

    197

    12 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na

    vigncia do Imprio 1878 .................................................................................

    197

    13 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio na

    vigncia do Imprio 1881 .................................................................................

    198

  • 14 Organizao curricular da obra Compendio de Geographia Universal,

    rezumido de diversos authores e offerecido a mocidade brazileira, de Bazilio

    Quaresma Torreo, 1824 ...................................................................................

    213

    15 Organizao curricular da obra Corografia, ou abreviada historia

    geographica do imperio do Brasil..., de Domingos Jose Antonio Rebello, 1829

    216

    16 Plataforma curricular do Colgio Pedro II em 1850 ensino secundrio ... 217

    17 Plataforma curricular executada na segunda e quarta edies de

    Pompo Brasil ....................................................................................................

    220

    18 Ensino Secundrio: Programa de Geografia, no Colgio Pedro II, na

    vigncia do Decreto n. 8051, de 25 de maro de 1881 ......................................

    223

    19 Plataforma curricular executada no Curso methodico de Geographia, de

    Joaquim Maria de Lacerda, dcada de 1880 .....................................................

    225

    20 Plataforma curricular executada nos Elementos de Chorographia do

    Brazil, de Henrique Martins, dcada de 1880 .....................................................

    225

    21 Constituio da Grade Curricular de Geografia, de acordo com o Decreto

    n. 981, de 8 de novembro de 1890, para a instruo primria e secundria do

    Distrito Federal, Reforma Benjamim Constant ...................................................

    232

    22 Ensino Primrio: Programa de Geografia na vigncia da Reforma

    Benjamim Constant (1890-1901) ........................................................................

    234

    23 Ensino Secundrio: Programa de Geografia na vigncia da Reforma

    Benjamim Constant (1890-1901) ........................................................................

    235

    24 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio, de

    acordo com o Decreto n. 3.914, de 23 de janeiro de 1901, Reforma Epitcio

    Pessoa ................................................................................................................

    237

    25 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio, de

    acordo com o Decreto n 8.660, de 5 de abril de 1911, Reforma Rivadvia

    Corra .................................................................................................................

    239

    26 Ensino Secundrio: Programa de Geografia, Colgio Pedro II, na

    vigncia da Reforma Rivadvia Corra (1911-1915) .........................................

    240

  • 27 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio, de

    acordo com o Decreto n. 11.530, de 18 de maro de 1915, Art. 167, Reforma

    Carlos Maximiliano .............................................................................................

    242

    28 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio, de

    acordo com o Decreto n 16.782-A, de 13 de janeiro de 1925, Art. 47,

    Reforma Luiz Alves Rocha Vaz ..........................................................................

    243

    29 Ensino Secundrio: Programa de Geografia, Colgio Pedro II, na

    vigncia da Reforma Luiz Alves-Rocha Vaz (1925-1931) ..................................

    244

    30 Constituio da Grade Curricular de Geografia do Ensino Secundrio, de

    acordo com o Decreto n 19.890, de 18 de abril de 1931, Reforma Francisco

    Campos ..............................................................................................................

    249

    31 Programa de Geografia na vigncia da Reforma Francisco Campos

    (1931-1937) para o Curso Fundamental ............................................................

    251

    32 Programa de Geografia na vigncia da Reforma Francisco Campos

    (1931-1937) para o curso secundrio .................................................................

    251

    33 Exemplos enunciados de sujeitos-destino da bibliografia .......................... 281

  • LISTA DE TABELAS

    01 Populao e educao no Brasil 1820-1950 ........................................... 171

  • CONSIDERAES INICIAIS

    O Ensino de Geografia foi decisivo para a formao de um discurso cientfico

    geogrfico no Brasil, e uma prtica anterior sua institucionalizao em sociedades

    ou na academia: esse tem sido um consenso entre os que estudam a histria e o

    pensamento do ensino dessa disciplina. Os objetivos da Geografia acadmica, com

    tais razes, tm fundamentos que permeiam desde a estruturao territorial das

    atividades econmicas nacionais at o processo de constituio e consolidao das

    prprias regies nacionais, unificados aos interesses sociais, econmicos e polticos

    organizados em construes discursivas manifestas em prticas artsticas,

    miditicas, escolares, programas governamentais, entre outros, elaborando corpos

    ideolgicos que sustentaram (e sustentam) essa orientao. Dessa forma, considero

    a educao geogrfica como um dos pilares dos discursos sobre o territrio, e,

    nessas circunstncias, considero os manuais escolares como um dos pilares

    tradicionais desta educao e, como contribuio da presente pesquisa, considero-

    os parte importante da gnese de um pensamento e prtica da Geografia, bem

    como partcipe da histria da Geografia e do seu ensino no Brasil.

    Esses livros, ou o seu desenvolvimento e expresso, so um indicador

    cultural importante e, como objetivos discursivos, abrigam processos sobre a

    formao de sujeitos, efeitos de sentido e efeitos ideolgicos, sob orientao de

    alguma discursividade geogrfica, qual seja ela.

    No obstante, o gnero didtico, por suas contradies e, principalmente,

    por estar sob a tica de um produto cultural menor na linha dos gneros que

    documentam a pesquisa acadmica, foi desconsiderado por muito tempo enquanto

    objeto de estudo. Os livros didticos de Geografia, a propsito, apenas em fins do

    sculo XX, mais precisamente a partir da dcada de 1980, passaram a ser alvo de

    artigos, dissertaes de mestrado e teses de doutorado (PINHEIRO, 2005a; 2005b;

    SILVA, 2006). Anteriormente a essa dcada, so poucas as contribuies nesse

    sentido. Considerando essas pesquisas, indiscutvel o vnculo entre a produo

    dos livros didticos de Geografia e o discurso institucionalizado dessa cincia: sem

    aprofundar no mrito da questo, posso afirmar que as denominadas Geografia

  • Tradicional, Geografia(s) Crtica(s), Geografia Humanstica principalmente estas

    tiveram/tm seus professores e autores didticos (Cf. SILVA, 2006). Mas quais

    seriam essas relaes anteriormente institucionalizao brasileira da Geografia?

    De onde enunciavam aqueles autores? Quais formaes discursivas e ideolgicas

    orientavam suas prticas enunciativas? De quem eram essas vozes que

    conformavam um discurso pedaggico para a Geografia? Que obras foram aquelas,

    e quais suas marcas na histria e no pensamento da Geografia e do seu ensino?

    Esta pesquisa defende a tese de que os livros didticos de Geografia so

    um dos lugares manifestos do discurso histrico-ideolgico do pensamento

    geogrfico no Brasil, instituinte, tambm, de sua histria, e, por isso, prope estudar

    a constituio do discurso escolar da Geografia por meio de sua bibliografia didtica,

    identificando os autores pioneiros, suas instncias de interlocuo e as contribuies

    identificveis e manifestas nesses objetos no que tange formao da Histria e do

    Pensamento Geogrfico em um perodo especfico, isto , aquele que antecede

    institucionalizao da Geografia acadmica no Brasil, na dcada de 1930,

    procurando, em paralelo, perceber a construo desse discurso enquanto gnero

    bibliogrfico: um discurso didtico de Geografia. O perodo de abordagem, portanto,

    estende-se desde o tempo dos jesutas, perpassando pelos perodos pombalino e

    joanino at o Imprio (1822-1889), quando a educao brasileira, em geral, e a de

    Geografia, em especfico, comea a ser organizada, alcanando as transformaes

    que acompanharam o estabelecimento da Repblica (1889) at o surgimento da

    Geografia acadmica no pas, quando a Educao brasileira, j destituda da Igreja

    Catlica como mentora do ensino, e, sob orientao do Estado, compartilha com a

    Academia (ou com a classe intelectual) a regulamentao do ensino e, por

    conseguinte, da produo dos livros didticos, interveno que atinge igualmente os

    manuais de Geografia.

    Portanto, concentro meu objeto de pesquisa na bibliografia didtica aqui

    sistematizada, enveredando pela formao do ensino de Geografia, no que respeita

    constituio da disciplina, formao do currculo, perspectivas sobre esse ensino,

    e, sobretudo, o discurso do e sobre o livro didtico de Geografia.

    O livro didtico de Geografia, em geral, tendo sua relevncia denegada pela

    academia, quando foi, enfim, objeto de estudo, apenas alguns de seus aspectos

    despertaram o interesse da pesquisa: as polticas pblicas, a ideologia (ainda que

  • em uma viso marxista, base epistemolgica das Geografias Crticas, perspectiva

    que fez essas primeiras leituras do livro didtico), a metodologia de ensino, no

    sendo explorado, na totalidade, seu papel histrico e epistemolgico. Apesar de

    contraditrio, o livro didtico um produto complexo, com ampla margem para a

    investigao cientfica, sendo uma lacuna a produo de perspectivas histricas que

    compreendam e esclaream aspectos que engendram o surgimento e o

    desenvolvimento da Geografia e do seu ensino no Brasil.

    Considerando que os textos didticos de Geografia (e, por conseguinte, o

    ensino dessa disciplina) anteciparam a institucionalizao acadmica da cincia, e

    muitos de seus debates, inclusive o da orientao moderna (Said Ali e Delgado de

    Carvalho, dentre outros, que sero examinados nessa pesquisa, so exemplos

    desse processo, sendo esta expresso de Delgado), verifica-se a necessidade de se

    avanar no debate sobre os discursos materializados nessa bibliografia, mesmo

    porque o livro didtico, em si, foi das primeiras formas de institucionalizao do

    discurso geogrfico. Em pesquisa anterior, em nvel de dissertao de mestrado1,

    identifiquei um significativo desconhecimento sobre a histria do livro didtico de

    Geografia no Brasil, particularmente suas relaes com a academia e com outras

    fontes de produo da pesquisa e do conhecimento geogrfico, sobretudo um

    desconhecimento sobre o perodo delimitado para esta pesquisa, dado que as

    pesquisas existentes sobre o livro didtico se concentram prioritariamente na

    produo contempornea.

    Esse desconhecimento leva a prevalecer lugares comuns, simplistas e

    simplificadores ao referenciar o ensino de Geografia e os livros didticos do perodo

    em recorte: a noo de que existiriam poucos e raros livros de Geografia, a

    prevalncia de textos importados, o discurso apoltico, no cientfico, so algumas

    das redues que se engendram no desconhecimento histrico do livro didtico de

    Geografia.

    O preenchimento de tais lacunas anima o debate do ensino de Geografia e

    subsidia a formao de professores desta disciplina, pois auxilia o esclarecimento de

    um passado ainda sem luz apropriada, alocado na penumbra que antecede um

    1 SILVA, Jeane Medeiros. A constituio de sentidos polticos em livros didticos de geografia

    na tica da Anlise do Discurso. 2006. 275 f. Dissertao (Mestrado em Geografia) Instituto de Geografia, Universidade Federal de Uberlndia, Uberlndia, 2006.

  • perodo bem mais conhecido o da Histria do Pensamento Geogrfico e do ensino

    dessa cincia aps a institucionalizao acadmica da cincia geogrfica no

    Brasil, embora seja parte constituinte da realidade atual. Sobretudo, contribui para

    demover certas anlises destitudas de compreenso do perodo em foco, tais como

    as mencionadas acima, o que leva muitos pesquisadores a fazer avaliaes

    errneas e anacrnicas do ensino, mtodos e materiais daqueles anos, tornando-as

    um consenso amplamente reproduzido, de especial maneira no mbito da formao

    de professores de Geografia.

    O contexto das pesquisas do Ensino de Geografia, nesse incio de milnio,

    propcio valorizao do livro didtico como objeto de pesquisa e fonte da produo

    de conhecimentos: a distncia entre livro didtico de Geografia e a pesquisa

    acadmica tende a ser reduzida, pelo menos em vista da crescente quantidade, e

    qualidade, de trabalhos sobre o tema a partir do final da dcada de 1990. A

    propsito, em se tratando de uma atividade com linguagem(ns) autoria, escrita,

    formao bibliogrfica... oportuna a utilizao da Anlise do Discurso como

    sustentao terico-metodolgica de uma compreenso do livro didtico de

    Geografia, aliada a algumas perspectivas da Histria das Disciplinas Escolares e da

    Histria do Currculo enquanto sustentao para a construo de um corpo histrico

    para anlise. A linguagem por si s j contorna com relevncia a proposta, uma vez

    que, com a Anlise do Discurso, inova-se a questo da interpretao, que perpassa

    pelas prticas de produo e recepo textuais, fazendo desse campo de estudo

    uma contribuio vigorosa para o debate da educao geogrfica quanto

    considerao de relaes que atravessam a linguagem, a Histria, a ideologia, as

    condies de produo discursiva e, ainda, a constituio dos sujeitos e dos

    sentidos que entrecruzam a tessitura da Histria da Geografia no Brasil.

    Por objetivo geral, proponho compreender a bibliografia didtica do ensino

    de Geografia, bem como a histria e o pensamento deste ensino, entre as dcadas

    de 1810 e 1930, por meio da descrio de sua trajetria constitutiva e da anlise dos

    discursos dos seus sujeitos.

    As etapas de efetivao dessa proposta objetivam, especificamente:

  • a) Buscar elementos tericos e metodolgicos que auxiliem a

    compreenso da disciplina e da bibliografia didtica de Geografia,

    sobretudo na Anlise do Discurso de linha francesa;

    b) Reunir referncias da bibliografia didtica de Geografia no perodo

    entre a refuncionalizao da Colnia brasileira para sediar o Reino

    portugus at o momento contemporneo institucionalizao da

    Geografia acadmica no Brasil, sistematizando autores e obras que

    subsidiaram o ensino de Geografia brasileiro.

    c) Compreender historicamente a formao e a consolidao da

    disciplina nos movimentos histricos que a definiram, procurando

    perceber os reflexos desses movimentos na bibliografia didtica de

    Geografia;

    d) Analisar elementos constitutivos do discurso instituinte da

    bibliografia sistematizada na pesquisa, identificando posies

    autorais, discursos e efeitos de sentido que esbocem, a partir dela,

    os lugares da Histria do Ensino de Geografia brasileiro.

    Esse percurso agrega significados Geografia brasileira e ao seu ensino,

    alm de ressignificar o livro didtico de Geografia e seus autores como objeto de

    estudo e documento das prticas geogrficas no Brasil.

    Para conduzir a proposta de conhecer o pensamento e o ensino geogrfico

    por meio dos sujeitos, sentidos e fundamentos ideolgicos que, paulatinamente,

    tomam forma de um gnero integrante do discurso geogrfico, constituindo um

    acervo de obras e de referncias didticas, utilizo as tcnicas da pesquisa

    bibliogrfica como ponto inicial para vislumbrar, de acordo com as possibilidades da

    pesquisa, a histria do livro didtico de Geografia de 1814 at o final da dcada de

    1930. Defino este perodo tomando como marco inicial a publicao da obra

    Elementos de Astronomia para uso dos alumnos da Academia Real Militar, de

  • Manoel Ferreira de Arajo Magalhes, publicada no Rio de Janeiro em 1814, pela

    Impresso Rgia. O perodo de abordagem encerra-se sem limite preciso na dcada

    de 1930, quando a Geografia foi institucionalizada no Brasil, de acordo com o

    modelo de produo e formao que perdura at a atualidade, afirmando alguns dos

    vnculos entre a academia e a produo dos manuais didticos de Geografia, mas

    sem necessariamente aprofundar a questo dessa institucionalizao nesse

    momento da pesquisa. Apesar de limitar a sistematizao ao ano de 1939, algumas

    edies de anos anteriores so reeditadas nas dcadas seguintes, registros

    contabilizados na pesquisa, pois o critrio para a incluso de um ttulo na relao foi

    o ano da primeira edio, ou edio mais antiga identificada.

    Em linhas gerais, trata-se de uma pesquisa exploratria, visando

    proporcionar a discusso de um problema a produo da literatura didtica de

    Geografia no perodo anterior institucionalizao da cincia geogrfica um tema

    ainda pouco conhecido entre os historiadores do pensamento e do ensino

    geogrfico.

    A pesquisa, portanto, foi iniciada com um exaustivo levantamento de

    referncias e produo de fichas para localizao, acesso ou obteno das fontes

    primrias ou de dados a elas relacionados. Foram consultados catlogos de diversas

    bibliotecas de universidades brasileiras, bem como catlogos virtuais da Bibliotque

    Nationale de France, o Banco de Dados de Livros Escolares Brasileiros (1810 a

    2005) LIVRES, o Acervo Geral e Acervo de Obras Raras da Fundao Biblioteca

    Nacional (Rio de Janeiro, RJ) e da Biblioteca Arthur Viana (Belm, PA). Consultei,

    tambm, catlogos e extratos de catlogos de editoras, catlogos de exposies

    geogrfica e pedaggica, alm de consultar acervos particulares e obras de

    referncia bibliogrfica (SILVA, 1870; BLAKE, 1883; 1893; 1895; 1898; 1899; 1900;

    1903; GARRAUX, 1962; MORAES, 1969). Dentre os indicadores de busca,

    destacaram-se os termos geographia2, chorographia, compendio, cosmographia,

    geografia, geographico, geogrfico, geogrfica, geographica, corographia,

    corografia. Seguiram-se o levantamento de critrios histricos para classificao dos

    2 O perodo em abordagem nesta tese passou por diversas formas de ortografia da lngua

    portuguesa. Diante disso, as transcries diretas sero sempre de acordo com a ortografia vigente na fixao do texto poca, exceo de alguma transcrio cujo acesso obtido j constasse com uma atualizao. Os nomes dos autores igualmente tero observados a ortografia corrente poca de sua existncia ou registro.

  • grupos de referncias, seleo e anlise destas, notadamente os perodos Jesutico,

    Pombalino, do Reinado, Imperial e Republicano, com subdivises que se fizeram

    necessrias. Os principais perodos histricos do territrio brasileiro ficam como

    expresso mxima do recorte, pois so responsveis por transformaes

    significativas na educao brasileira, que diferenciam um perodo de outro.

    Esta etapa inicial permitiu a identificao de ttulos, autores, anos e locais de

    publicao, definindo um panorama histrico-descritivo que permite entrever o

    surgimento e o desenvolvimento dos manuais de Geografia e do ensino desta. A

    composio de um panorama bibliogrfico de obras e autores constituiu o arcabouo

    de fontes para construo histrica e anlise.

    Na delimitao da pesquisa no foram inscritos o levantamento, a anlise ou

    a historicizao de atlas, dicionrios, cartas, globos3, literatura para o ensino cvico,

    literatura pedaggica e demais materiais dessa linha que, embora tenham feito a

    histria da disciplina Geografia, constituindo sua literatura, considero produtos

    complementares e de referncia, sem a abrangncia que os livros escolares

    propriamente tm. fato inegvel que esses materiais subsidiaram o ensino de

    Geografia, apresentando vnculos diretos com esse ensino, mas no so oportunos

    a este trabalho, neste momento, pela necessidade de delimitao e controle da

    extenso da pesquisa de acordo com a estrutura de uma tese: apenas me utilizei

    dos mesmos marginalmente, por necessidade da anlise.

    Enganos e omisses so inevitveis em trabalhos com bibliografia,

    sobretudo em perodos com tempo dilatado em dcadas e, sobretudo, dcadas e

    sculos distantes da atualidade. A disperso eleva os objetos culturais categoria

    de raros ou desaparecidos, sustendo-se em seus contextos pelo valor e impacto

    histrico que tiveram uma condio que o tempo pode lembrar ou esquecer. De

    acordo com as condies da pesquisa, pretendi elaborar uma base ampla, a mais

    completa, de forma que a pesquisa dispe de uma bibliografia, dentre as possveis,

    para anlise.

    Nesta tese, denomino por bibliografia didtica de Geografia o acervo de

    documentos em anlise direta ou indireta dado que nem todos os ttulos so

    3 Uma histria da bibliografia didtica na perspectiva cartogrfica por ser encontrada na tese A

    cartografia nos livros didticos e programas oficiais no perodo de 1824 a 2002: contribuies para a histria da geografia escolar no Brasil, de Levon Boligian (2010).

  • acessveis. Atualmente, tratamos os objetos em estudo pelo termo livro didtico

    para os quais genericamente empregam-se com regularidade, enquanto sinnimos,

    obra didtica, livro-texto, manual didtico, compndio. Essas designaes so

    historicamente constitudas: compndio, por exemplo, foram os nomes gerais desses

    livros, em boa parte do sculo XIX, dada a concepo e a metodologia de

    elaborao, nomeando um conjunto de conhecimentos relativos a uma dada rea do

    saber, dentre os considerados mais importantes, em forma de livro, compilados ou

    no. Livro-texto j uma denominao mais recente, bem como livro didtico.

    Podem ser compreendidos como livros se forem impressos, encadernados,

    legalmente catalogados, publicados4. Por apostilas, se a divulgao do texto sofre

    variaes em relao ao padro livro.

    Esses materiais, nessa pesquisa, so tratados, quando em conjunto, por

    duas denominaes: literatura didtica e bibliografia didtica de Geografia.

    Por bibliografia didtica, compreendo a sistematizao, possvel ao

    alcance dessa pesquisa, do acervo cujas fontes tenham sido identificadas,

    acessadas ou adquiridas; referem-se tambm, consequentemente, sistematizao

    de dados como indicao de autoria, titulao e subtitulao, edio, local e casa de

    publicao, ano de publicao, quantidade de pginas impressas e registro de

    outros dados complementares caracterizao formal do livro, tais como colees,

    volumes, traduo, adaptao, reviso, ampliao. Para o levantamento das obras

    em estudo, porm, os dados foram organizados em um levantamento bibliogrfico

    no qual constaram as primeiras edies ou a edio mais antiga que pude localizar,

    seguindo uma ordem cronolgica, conforme pode ser visto no Quadro Relao geral

    de ttulos por autor - ndice por data de primeiras e demais edies, ou edio mais

    antiga identificada, apresentada no Captulo 2. O levantamento foi organizado para

    que a entrada de cada ttulo registre, cronologicamente, todas as edies

    identificadas da obra. Esses documentos apresentam especificidades anlise e

    construo histrica da pesquisa, conforme abordo apropriadamente no desenvolver

    das descries e anlises.

    4 Publicao enquanto manifestao notria de uma obra, seja pelo uso (aquisio, leitura, adoo

    institucional), seja pela visibilidade, mesmo quando no institucional, pelas finalidades e direcionamento ao pblico, pela integrao a acervos, catlogos, bem como pela citao em obras de referncias.

  • Por literatura didtica de Geografia, entendo todos os aspectos que

    extrapolam as dimenses fsicas de uma obra ou da bibliografia, sobretudo os

    aspectos terico-metodolgicos, polticos, sociais, ideolgicos e outros que

    apresentam continuidades, rupturas, conflitos, contradies, mas se desenvolvem na

    composio de uma rea perfazendo uma formao discursiva em torno desses

    objetos. Nessa categoria, tambm so inclusos atlas, dicionrios, cartas, globos,

    literatura para o ensino cvico, literatura pedaggica e demais materiais dessa linha

    que, conforme demonstrado, embora sejam parte integrante da histria da disciplina

    Geografia, no esto em foco nesta pesquisa.

    O corpus est constitudo, assim, pela bibliografia didtica na qual se

    encontram majoritariamente livros compendiados, traduzidos, adaptados, produzidos

    ou importados para o ensino de Geografia brasileiro. Marginalmente, quando

    julgados importantes para a anlise, outros documentos, de outros gneros, so

    tomados como parte do corpus e como unidade de anlise, como j mencionei.

    A propsito da bibliografia e da literatura didticas de Geografia, considero, a

    partir de uma viso geral do corpus e do seu contexto, que h um ensino explcito e

    um ensino implcito de Geografia. O ensino explcito de Geografia compreende os

    programas e currculos elaborados para o ensino e aprendizagem exclusivo desta

    disciplina Geografia, com os materiais culturais produzidos para esse fim, tais como

    as obras da bibliografia. O ensino implcito de Geografia compreende, por sua vez, o

    aprendizado e o ensino incidental de contedos de Geografia em outros programas,

    currculos e disciplinas. Para exemplificar, os livros de leitura, os livros do ensino

    cvico, os livros de Histria esto todos eivados com discursos geogrficos, pois as

    formaes discursivas que justificaram e promoveram o ensino de Geografia em

    muito extrapolam os interesses desta disciplina.

    A pesquisa inicia-se com a construo de uma perspectiva terica,

    perpassando pela construo histrica da disciplina e dos manuais de Geografia, at

    alcanar uma sntese analtica do perodo delimitado.

    Por conseguinte, no primeiro captulo, Uma perspectiva terico-metodolgica

    para a anlise da bibliografia didtica de Geografia: disciplina, currculo e discurso,

    apresento discusses relativas Anlise do Discurso e a algumas perspectivas da

    Histria das Disciplinas Escolares e da Histria do Currculo, no que tocam de perto

    ao estudo do objeto proposto e aos objetivos lanados. No se trata propriamente de

  • fazer uma histria das disciplinas em geral, ou do livro didtico como um todo, o que

    no objetivo da pesquisa, mas de buscar elementos que auxiliem a compreenso

    da bibliografia didtica de Geografia, tendo na Anlise do Discurso elementos

    conceituais e metodolgicos que fundamentem essa compreenso. Procuro,

    portanto, construir uma perspectiva para compreender os documentos em anlise

    como bibliografia especfica do ensino da Geografia e partcipes do processo de

    constituio discursiva do gnero didtico.

    No segundo captulo, Descrio da bibliografia didtica (1814-1939):

    discusso da trajetria constitutiva dos manuais de Geografia, apresento os dados

    bibliogrficos, em sua sistematizao e discuto aspectos relacionados constituio

    do acervo, tais como autoria, editorao, apresentao grfica, dentre outros.

    No terceiro captulo, Do ensino implcito ao ensino explcito da Geografia:

    prenncios da disciplina e do livro didtico nos movimentos histricos anteriores

    independncia poltica do Brasil, percebo, na disperso do ensino jesutico,

    pombalino e joanino, as razes da disciplina e da bibliografia didtica de Geografia,

    com particular ateno Academia Real Militar (1810), instituio integrante do

    movimento de introduo do pensamento cientfico no Brasil, e marco no ensino de

    Geografia brasileiro.

    No quarto captulo, Delineamentos constitutivos da Geografia escolar no

    Imprio (1822-1889): o estabelecimento de uma disciplina e de uma bibliografia

    didtica, demonstro o surgimento da Geografia como disciplina consolidada na

    educao brasileira, bem como seu desenvolvimento curricular, aliando essa

    trajetria a um crescente mercado editorial, que ser aliado das nascentes

    instituies escolares, sobretudo do ensino secundrio, ambientando a consolidao

    da Geografia como disciplina escolar e a constituio de um acervo bibliogrfico

    desta disciplina, na vigncia do Imprio.

    No quinto captulo, Delineamentos constitutivos da Geografia Escolar na

    Primeira Repblica (1889-1930...): permanncias e transformaes na disciplina e

    em sua bibliografia didtica, examino o debate e os atos que promovem a

    transformao do fazer e modo de ser da disciplina geogrfica e da sua bibligorafia

    durante a vigncia da Primeira Repblica, em fins do sculo XIX at a dcada de

    1930, tempo em que a Geografia est constituida e institucionalizada, e incorporada

    de certa tradio quanto a uma literatura didtica.

  • No ltimo captulo, Discursos no livro didtico de Geografia: anlises de

    elementos constitutivos da bibliografia e do ensino geogrfico, procuro analisar as

    circunstncias e vnculos constitutivos da bibliografia, observando, em seu discurso,

    como os sujeitos autores se impem no cenrio educacional, aspectos da

    legitimao da disciplina, a relao com as propostas curriculares, o posicionamento

    da bibliografia em relao a sua prpria tradio, o posicionamento com suas fontes,

    com os professores, com as formaes ideolgicas.

    Em um aspecto geral, a trajetria delineada pela pesquisa demonstrou uma

    atividade intensa, embora fragmentada, que participou da delineao e afirmao da

    Geografia como disciplina escolar, respondendo s necessidades impostas pela

    educao brasileira, reagindo s crticas colocadas pela intelectualidade brasileira,

    de forma a compor um material extremamente rico para a compreenso da histria

    da Geografia escolar e mesmo do pensamento geogrfico brasileiro.

  • CAPTULO 1

    UMA PERSPECTIVA TERICO-METODOLGICA PARA A ANLISE

    DA BIBLIOGRAFIA/DIDTICA DE GEOGRAFIA: disciplina, currculo e discurso

    Para alcance dos objetivos propostos nesta tese, elejo um corpus de anlise

    os manuais de Geografia, examinados a partir do discurso didtico desta

    disciplina, o que um recorte de pesquisa, isso porque o discurso didtico da

    Geografia se enuncia em diferentes materialidades: na produo do professor

    (resumos, anotaes, relatrios, fala...), na produo dos alunos, na produo do

    Estado (legislao, relatrios, programas...), nos manuais didticos, na cincia

    geogrfica, na imprensa e em tantas outras instncias, alm da literatura didtica de

    Geografia propriamente dita. Dessa forma, a literatura do ensino de Geografia, por

    meio da bibliografia suscitada, colocada como objeto de estudo e, a partir dele,

    incorporar-se- outras materialidades que se fizerem necessrias para a construo

    e a anlise de uma histria do livro e da disciplina escolar da Geografia, dentre

    tantas possveis.

    A Geografia que se ensina tem uma histria e um desenvolvimento

    peculiares que atravessam sua constituio e sua institucionalizao. Nesta

    pesquisa, tomo a Anlise do Discurso como fundamentao terico-metodolgica

    para compreender este percurso, atravs dos livros didticos como materialidades

    discursivas deste ensino. Para isso, neste captulo, procuro compreender a Anlise

    do Discurso a partir da questo do sujeito e do discurso, especificamente o dos

    sujeitos autores e o didtico.

    A Anlise do Discurso, como o prprio nome enuncia, procede por meio da

    anlise como mtodo e do discurso como teorizao. Ambos, anlise e discurso,

    transitam em uma circunscrio histrica; neste caso, a histria da disciplina de

    Geografia. Para atingir esse enquadramento terico, parto de algumas das

    contribuies da Histria das Disciplinas Escolares e da Histria do Currculo como

    definio de uma perspectiva para compreender a histria do livro didtico de

  • Geografia, no bojo da qual a pesquisa se prope a compreender aspectos das

    formaes discursivas e ideolgicas que acompanham a emergncia e o

    desenvolvimento desta disciplina no sculo XIX at a dcada de 1930.

    1.1 A Histria das Disciplinas Escolares e a Histria do Currculo: algumas contribuies para uma histria da disciplina escolar de Geografia e de sua literatura didtica

    A anlise discursiva leva-nos a identificar e mover-se nas circuntncias da

    histria, onde os discursos se filiam e produzem sentido. A literatura didtica, como

    as que compem o objeto desta pesquisa, s tem existncia na vida e dinmica de

    uma disciplina. Organizar e analisar uma bibliografia do ensino de Geografia, dessa

    forma, acompanhar o fazer histrico da disciplina de Geografia. No campo da

    Educao, duas reas de estudo, a Histria das Disciplinas Escolares5 e a Histria

    do Currculo, tm contribuies para auxiliar a construo de uma perspectiva

    histrica do Ensino de Geografia, quanto sua formao disciplinar, o que inclui

    uma compreenso do desenvolvimento curricular e quanto formao dos seus

    manuais didticos.

    Bittencourt (2008), ao abordar o problema do saber escolar, no mbito da

    Histria das Disciplinas Escolares, lembra que o mesmo se estrutura em uma trade:

    o saber a ser ensinado, o saber ensinado e o saber apreendido. O perodo

    delineado para esta pesquisa, historicamente distante dos dias atuais, dinamizado

    em geraes j extintas, apresenta dificuldades documentais para o estudo do saber

    ensinado e do saber apreendido, sem inteireza de fatos e repercusses, de modo

    que historicizar a disciplina precisa recorrer a meios indiretos para promover e

    construir conhecimentos. O sculo XIX no apresenta fartos registros sobre o ensino

    de Geografia quanto aos aspectos dos saberes ensinados e apreendidos, quando

    ainda era iniciante, no contexto geral da educao brasileira, a imprensa pedaggica

    e algo que se assemelhasse produo de saberes acadmicos sobre a educao

    5 Histria das Disciplinas Curriculares, Histria das Matrias Escolares, Histria dos Saberes

    Escolares e Histrias dos Contedos Escolares so outros campos com afinidades, na Educao, Histria das Disciplinas Escolares (SOUZA JNIOR; GALVO, 2005).

  • geogrfica. Registros oficiais, como relatrios inerentes vida burocrtica do Estado,

    obras memorialistas, a literatura ficcional (de forma muito fragmentada), so os

    documentos mais pertinentes compreenso da Geografia ensinada, no perodo

    circunscrito a esta pesquisa, para se conhecer os discursos instituintes da Geografia

    escolar brasileira. Apiam esta proposta, ainda, as diversas pesquisas acadmicas

    sobre o tema, embora tambm no sejam muitas. Nesse conjunto, mais acessvel

    o saber a ser ensinado, do qual os manuais didticos, a legislao e os programas

    educacionais so documentos muito vivos, indicativo do caminho trilhado nesta tese.

    No contexto da Histria das Disciplinas Escolares, para conhecimento do

    saber a ser ensinado, so importantes os currculos e programas, a legislao,

    pareceres, os documentos institucionais (editoras, rgos da administrao do

    Estado e escolar). Sobretudo, so importantes os livros didticos: os prefcios,

    prlogos, advertncias, textos introdutrios, ttulos das obras, informaes de folhas

    de rosto, os ndices, e propriamente os discursos produzidos e armados nessa

    estrutura. A documentao de referncia do saber a ser ensinado permite entrever a

    proposta de um ensino modelar como ponto de partida para as prticas que seriam

    exercidas, que resultam no saber ensinado e no saber apreendido. De acordo com

    Chervel (1990, p. 209):

    O estudo dos contedos beneficia-se de uma documentao abundante base de cursos manuscritos, manuais e peridicos pedaggicos. Verifica-se ai um fenmeno de "vulgata", o qual parece comum s diferentes disciplinas. Em cada poca, o ensino dispensado pelos professores , grosso modo, idntico, para a mesma disciplina e para o mesmo nvel. Todos os manuais ou quase todos dizem ento a mesma coisa, ou quase isso. Os conceitos ensinados, a terminologia adotada, a coleo de rubricas e captulos, a organizao do corpus de conhecimentos, mesmo os exemplos utilizados ou os tipos de exerccios praticados so idnticos, com variaes aproximadas. So apenas essas variaes, alis, que podem justificar a publicao de novos manuais e, de qualquer modo, no apresentam mais do que desvios mnimos: o problema do plgio uma das constantes da edio escolar.

    A Histria da Educao, em geral (ou as nacionais), tem tradio e

    divulgao ampla. Nela recente, no entanto, a Histria das Disciplinas Escolares,

    com ateno especial histria das disciplinas em particular. Chervel (1990)

    demonstra que, da crise dos estudos clssicos, a partir de 1850, emergiu uma

    perspectiva de ensino fundamentado no exerccio intelectual capaz de formar o

    esprito do aprendiz, e a essa acepo iniciou-se o desenvolvimento de conjuntos

  • culturais de contedos que, principalmente a partir das primeiras dcadas do sculo

    XX, associaram-se ao termo disciplina. No sentido original, enquanto formadoras

    de espritos, as disciplinas aplicavam-se s humanidades clssicas. No sculo XX,

    reforo desse processo, tem-se o fortalecimento de outra classe de estudos os

    contedos cientficos como motrizes da formao humana e, nesse contexto, o

    termo disciplina generaliza-se como classificao das matrias de ensino,

    consolidando-se como [...] os mtodos e as regras para abordar os diferentes

    domnios do pensamento, do conhecimento e da arte (CHERVEL, 1990, p. 181).

    Paradoxalmente, como demonstro nos prximos captulos, esse processo iniciou

    cedo no caso do ensino da Geografia brasileira, mas em um movimento espiralado,

    com dificuldade para estabelecer seu centro, seu lugar como disciplina, oscilando

    entre um saber clssico e um saber cientfico.

    Como tal, as disciplinas seriam o espao da sistematizao de

    conhecimentos introdutrios para um pblico iniciante, cujo acesso integralidade

    ficaria reservado ao ingresso no ensino superior. Aos educadores, ou a outros

    sujeitos autorizados pelas formaes institucionais e governamentais, caberiam a

    responsabilidade dessa realizao, isto , o desenvolvimento e a aplicao de

    mtodos de ensino, bem como o desenvolvimento discursivo das disciplinas,

    esquema esse de ampla aceitao dentre os estudiosos da educao,

    frequentemente denominado de vulgarizao da cincia. Chervel (1990) e outros

    historiadores das disciplinas questionam esse modelo pelo estreitamento da

    perspectiva das disciplinas quanto existncia autnoma de cada uma.

    No caso da Geografia, se tomamos o consenso da precedncia do ensino

    cincia (pelo menos na perspectiva da Geografia Moderna, e quanto

    institucionalizao desta), com as relativas ressalvas como demonstro em captulo

    posterior, permite-se creditar crtica de Chervel razes para desmistificar esse

    posicionamento tradicionalmente aceito. Pois na Geografia isso incisivamente

    particular: muitos dos textos a trabalhar o territrio brasileiro, na totalidade possvel

    poca, aps o trabalho de Ayres de Casal (1817a; 1817b), foram textos didticos,

    compendiados e produzidos para as prticas educacionais. Na gnese da histria e

    do pensamento geogrfico, nesse sentido, esto os livros escolares. Sobretudo, as

    instncias de produo desses conhecimentos em nada se assemelharam a um

    recipiente enchendo-se do jorro de uma cincia acadmica, em pores mais

  • palatveis aos sujeitos alvos os aprendizes; esta no deixar de ter a sua

    importncia e contribuio significativa, inclusive predominante, mas at pouco antes

    das ltimas dcadas do sculo XIX no so poucos os sinais que asseguram um

    fazer tambm autnomo para o ensino de Geografia no Brasil. No raro, os autores

    da bibliografia em questo, em prefcios ou notas introdutrias, deixam claro que, na

    elaborao de seus materiais, consultaram acadmicos de referncia na Geografia

    europeia, sobretudo franceses, mas que lanaram mo a consultas prprias, em

    especial s estatsticas governamentais. Essa trajetria atesta que os contedos

    geogrficos esto longe de ser reflexos exatos, simplificados e vulgarizados de uma

    cincia dada, antes se formando como uma construo histrica da instituio

    escolar, da cultura social desta. Alm disso, os livros didticos organizaram uma das

    primeiras formas de institucionalizao do saber geogrfico no Brasil.

    A finalidade da educao e a funo dos professores constituem um

    ncleo importante da Histria das Disciplinas Escolares (CHERVEL, 1990).

    Contrapondo este princpio com a anlise discursiva, torna-se evidente a questo

    ideolgica e o papel dos sujeitos na produo de sentidos constitutivos do discurso

    didtico duas feies dos livros escolares como instncia de produo linguageira.

    O livro escolar converge essas duas perspectivas: enquanto intrpretes do currculo,

    formadores de uma concepo disciplinar e propositores de uma metodologia de

    ensino, os sujeitos autores se comportam como professores, consolidando a

    percepo mais ampla da educao em seu tempo. Nestas circunstncias, a Histria

    das Disciplinas Escolares atribui ao currculo, especificamente Histria do

    Currculo, a explicao sobre porque certos conhecimentos, em determinado

    momento, so ensinados, e porque so conservados, excludos ou alterados

    (MOREIRA, 2007).

    O manual didtico testemunha as finalidades do ensino de um contedo,

    mas certamente no reflete o ensino como acontecimento e prtica social, nem os

    discursos que se articulam em torno dos sentidos produzidos em seu dizer. Apesar

    disso, o livro didtico um dos pilares do estudo das disciplinas escolares, e da sua

    historicizao, de maneira que uma das formas de se conhecer a histria de uma

    disciplina por sua produo editorial, desde que se rena, para tanto, um corpus

    representativo de suas diversas pocas aquelas de inovao e as de estabilidade.

    Em sua produo, de acordo com Chervel, os contedos so reapropriados por meio

  • de uma metodologia de ensino que diferencia os estados de aprendizagens: na

    produo de livros para o ensino, nesse sentido, h pressupostos na motivao da

    aprendizagem e na organizao dos saberes em uma progresso contnua. Os

    contedos, j pela seleo e, depois, pelo tratamento etrio dispensado,

    descaracterizam-se em relao aos seus objetivos originais:

    O que caracteriza o ensino de nvel superior, que ele transmite diretamente o saber. Suas prticas coincidem amplamente com suas finalidades. Nenhum hiato entre os objetivos distantes e os contedos do ensino. O mestre ignora aqui a necessidade de adaptar a seu pblico os contedos de acesso difcil, e de modificar esses contedos em funo das variaes de seu pblico: nessa relao pedaggica, o contedo uma variao (CHERVEL, 1990, p. 188).

    Os conceitos e processos cientficos precisam de traduo em nvel de

    linguagem pr-existente, no caso do discurso didtico. Por outro lado, h a

    exposio dos contedos. Nesta fase, h a execuo das prticas pedaggicas, que

    compreende desde a elaborao de manuais estrutura rgida no mdio prazo das

    relaes de ensino e aprendizagem at as prticas docentes estrutura flexvel

    dessa mesma relao: [...] uma varivel que, em geral, pe em evidncia algumas

    grandes tendncias: evoluo que vai do curso ditado para a lio aprendida no

    livro, da formulao estrita [...] para as exposies mais flexveis [...] (CHERVEL,

    1990, p. 207). Para Bakhtin (1997), o texto composto a partir de uma estruturao

    definida para o exerccio de uma funo e sua comunicao. O estilo no

    meramente a marca de um autor, em uma produo de nvel tcnico, porm , de

    igual modo, elemento de unidade de um gnero.

    Ainda na relao entre cincia e discurso didtico, os historiadores da

    disciplina escolar so crticos quanto s vises simplistas da vulgarizao da cincia:

    esta o esteio primo de dilogo da disciplina escolar e dos seus currculos, mas o

    saber escolar tem uma trajetria constitutiva prpria. Na realidade, trata-se de uma

    relao conflituosa, com acertos e desacertos, encontros duradouros e retrocessos,

    certamente peculiares a cada disciplina. Das cincias, as disciplinas querem os

    resultados mais conclusivos e abertos a explicaes assimilveis pelos alunos. No

    caso da Geografia, as primeiras fases da produo de manuais verificam essa

    questo. Em sua maioria, eram textos que compendiavam livros e documentos de

    diversas instncias, mas, ademais, eram produtores de conhecimento, ou no

  • mnimo, sistematizadores dos mesmos6. A anlise vertical dessa proposio

    apresenta dificuldades devido s condies autorais prprias poca da produo

    bibliogrfica em estudo nesta pesquisa, principalmente por no ser comum

    referenciar fontes, uma prtica que, relativamente, nunca deixou de ser usual na

    produo de discursos didticos. Como explicitado posteriormente, a

    heterogeneidade mostrada (processo discursivo que remete e nomeia o Outro no

    mbito da enunciao) no uma marca comum no discurso didtico, e quando ,

    tem um funcionamento especfico (complementar e para aprofundar

    desenvolvimentos de contedo ou ilustrar as abordagens em foco, por exemplo).

    As disciplinas constituem-se de forma aditiva, avanando ou retrocedendo,

    para uma nova composio, no que tange constituio da sua formao discursiva,

    nos quais se alojam os currculos, os mtodos, os objetivos. So de fato produtos

    histricos. Seus discursos so acrescidos, ampliados, reduzidos, de acordo com as

    necessidades socialmente colocadas e de acordo com o pblico definido para elas.

    Sua histria curricular e seus livros textos demonstram esse desenvolvimento: so

    as disciplinas escolares um

    [...] vasto conjunto cultural amplamente original que ela [a escola] secretou ao longo de decnios ou sculos e que funciona como uma indicao posta a servio da juventude escolar em sua lenta propenso em direo cultura da sociedade global (CHERVEL, 1990, p. 205).

    As disciplinas escolares se compem, assim, pelos mtodos de exposio

    dos contedos explcitos, o que funo do professor e tambm dos manuais.

    Os discursos didticos so selecionados tanto na cincia como em outras

    formaes discursivas: nas artes, na administrao pblica, na imprensa, nos

    saberes clssicos e na religio. Nesta perspectiva, os historiadores da disciplina

    escolar criticam a viso da disciplina como simples vulgarizao cientfica,

    acertadamente. A percepo da disciplina ampla e no condiz, necessariamente,

    com uma reduo da complexidade de uma cincia ao ponto palatvel dos

    estudantes em iniciao. E no que diz respeito cincia, nem todos os seus

    discursos interessam a um ensino bsico, seja pela complexidade, seja pelo estdio

    6 Os manuais de Geografia, em nosso caso, sobretudo aqueles que abordam o Brasil, ou sua

    corografia, tinham um pblico que ultrapassava os interesses escolares, como demosntro no ltimo captulo desta pesquisa.

  • de suas fronteiras. O saber cientfico um corpo em composio, em avano,

    apresentando espaos de incertezas, de debate, de problemas no resolvidos.

    Majoritariamente, o discurso didtico opta pela base mais slida da cincia ou dos

    conhecimentos de base, historicamente consolidada e mesmo por vezes cristalizada

    de acordo com os paradigmas dominantes, sendo da que o currculo escolar se

    alimenta.

    Nesse conjunto, o currculo se apresenta como uma plataforma estrutural

    para a literatura didtica. A base de estruturao dos manuais escolares (sejam eles

    compndios, livros didticos, apostilas) perpassa pelo currculo. Um passo

    importante autonomia de um conjunto de saberes e, por conseguinte, gnese de

    uma disciplina, a constituio de um currculo aplicado ao ensino, a proposio de

    objetivos que definem um lugar para esses saberes na formao em implemento.

    No Brasil, diferentes movimentos histricos e suas formaes marcam a

    construo do currculo, em termos gerais: as concepes jesuticas, o movimento

    cientificista do perodo joanino, o nacionalismo patritico, a concepo positivista no

    perodo inicial da Repblica, o movimento escolanovista, o movimento tecnicista,

    chegando at as formaes atuais, como o construtivismo e as tendncias histrico-

    culturais. No entrarei em detalhes nesses movimentos porque os atinentes ao

    currculo de Geografia, nico com espao nessa tese, tero desenvolvimento em

    captulo posterior. Todavia, vale ressaltar que a elaborao de currculos observando

    alguma teorizao, no mbito das instituies, somente se verificou aps a dcada

    de 1920, dcada na qual marcante a transferncia de influncia na educao da

    Frana para os Estados Unidos da Amrica. Em outras palavras, at ento o

    currculo era uma prtica das instncias educacionais, mas no necessariamente

    objeto de estudos formais. De acordo com Moreira (2007, p. 15), as reflexes e

    prticas com fundamentao em teoria tiveram, a partir da, trs recortes histricos

    na educao brasileira no sculo XX:

    O primeiro anos vinte e trinta corresponde s origens do campo do currculo no Brasil. O segundo final dos anos sessenta e setenta corresponde ao perodo no qual o campo tomou a forma e a disciplina currculos e programas foi introduzida [...nas] faculdades de educao. O terceiro de 1979 a 1987 caracteriza-se pela ecloso de intensos debates sobre currculo e conhecimento escolar, bem como por tentativas de reconceptualizao do campo.

  • A dcada de 1990 representou outro marco. Qual seja, contudo, sua instncia de

    emerso, o currculo uma construo histrico-cultural, reagindo a repercusses

    sociais, polticas e culturais. Apesar de o perodo anterior dcada de 1920 no

    contar com uma anlise sistmica, no significa que no tenha existido. Como dito

    anteriormente, a organizao do ensino sempre implica a organizao de um

    currculo.

    O termo "currculo", a propsito, tem emprego desde a primeira metade do

    sculo XVI; no entanto, as primeiras teorizaes remontam ao incio do sculo XX.

    Enquanto prtica educativa, o currculo passou a ter difuso do sculo XVI em

    diante, em universidades, colgios e escolas europeus, na forma do Modus et Ordo

    Parisienses. Modus referia-se s combinaes e subdivises das classes escolares,

    regidas com instruo individualizada. Ordo (ordem), por seu lado, referia-se

    sequncia, ou ordem de eventos, e tambm coerncia do ensino (HAMILTON,

    1992). Dentre os registros histricos referentes ao currculo, Hamilton (1992) relata

    que na Universidade de Leiden (1582), o aluno era certificado quando tinha

    "completado o curriculum de seus estudos; na Universidade de Glasgow (1633) e

    na Grammar School de Glasgow (1643), o curriculum condizia ao curso completo

    frequentado pelo aluno.

    Sua teorizao, desde ento, tem evoludo em associao compreenso

    das transformaes no mundo do trabalho e aos processos gerais de produo. No

    campo da educao, o termo foi definido e redefinido de acordo com as perspectivas

    de diferentes pocas a partir do sculo XX. Inerente a qualquer organizao de

    ensino, na concepo mais clssica de currculo7, tem-se uma estrutura organizada

    com contedos indicados para o ensino de um campo do saber; em outras palavras,

    a definio mais clssica de currculo ser uma relao de disciplinas em um curso,

    e uma relao de contedos em uma disciplina, organizada em sequncia a uma

    determinada lgica, ordenada em um tempo de execuo, obedecendo a alguma

    proposta ou necessidade institucional.

    Historicamente, a prtica do currculo escolar passou por duas tendncias de

    estudos sistematizados: as concepes tradicionais ou conservadoras e as

    concepes crticas, todas influentes na educao brasileira do sculo XX. Nas

    7 Do latim, curriculum, derivado de currere, significando "caminho", "trajeto", "percurso". Atribui-se,

    ainda, o significado de ordem como sequncia ou ordem como estrutura (GOODSON, 2001).

  • teorias tradicionais, foi muito influente a compreenso do currculo a partir das

    teorias da administrao, particularmente a Teoria da Administrao Cientfica, de

    Frederick W. Taylor (1856-1915), prevalecendo a preocupao com resultados em

    razo da valorizao dos contedos, objetivos e ensino. Atuaria, assim, como uma

    seleo na totalidade cultural conhecida, seleo essa relacionada s dinmicas

    sociais polticas, culturais, econmicas , intencional, portanto. Sob influncia das

    teorias administrativas, predominou a elaborao de currculos tecnicistas,

    denunciados a partir dos anos 1960 na perspectiva da crtica ao funcionamento da

    sociedade capitalista e do funcionamento das instituies nesse contexto, dentre as

    quais a escolar (APPLE, 1982; MOREIRA, 2007). At as dcadas iniciais do sculo

    XX, o currculo foi uma prtica para a elaborao de planos de estudo, embora em

    nada se possa dizer que essa prtica fosse neutra e despossuda dos elementos

    que permaneceram na elaborao de currculos at a atualidade: definio de

    objetivos educacionais, debate poltico, dentre outras. A mudana para objeto de um

    campo de estudos sistematizados, a contemplar a totalidade das experincias

    orientadas a serem vivenciadas pelos estudantes no contexto escolar, considerando

    os interesses destes, surgiu a partir do trabalho pioneiro de John Franklin Bobbit

    (1876-1956)8, cuja obra The Curriculum foi publicada nos Estados Unidos em 1918

    (MOREIRA, 2007). O contexto do surgimento desse campo nos EUA compreendia

    as transformaes scio-econmicas que o pas atravessava entre fins do sculo

    XIX e incio do sculo XX, com a transformao de uma economia agrria para uma

    economia industrial, com uma populao predominantemente urbana e vivenciando

    os primeiros impactos da imigrao massiva (iniciada no sculo XIX). Os

    educadores, quele tempo, sentiam uma ameaa homogeneidade da cultura

    estadunidense,

    [...] uma cultura centrada na cidade pequena e sedimentada em crenas e atitudes da classe mdia. A comunidade que os antepassados ingleses e protestantes dessa classe lavraram de um deserto parecia desmoronar-se diante de uma sociedade urbana e industrial em expanso [...]. (APPLE, 1982, p. 108).

    Os trabalhos de Bobbit, e de outros pioneiros, direcionavam-se a convergir o

    currculo com as necessidades econmicas e culturais da poca e, com inspirao

    8 Outros tericos do currculo, contemporneos de Bobbit, foram: Edward L. Thorndike (1874-1949),

    W. W. Charters (1875-1952) e David Snedden (1868-1951), dentre outros.

  • nos princpios da Administrao Cientfica, procuraram especificar os objetivos

    educacionais para as dinmicas da vida social. Interessava, nesses estudos,

    preservar "[...] o consenso cultural e, ao mesmo tempo, [...] destinar aos indivduos o

    seu lugar adequado numa sociedade industrial interdependente (APPLE, 1982, p.

    107). A escola foi percebida como uma instituio partcipe na compensao dos

    problemas sociais, ampliando-se a concepo do currculo para alm de um

    conjunto de saberes, ou seja, compreendendo-o como estrutura para organizao

    de atividades e experincias capazes de moldar o comportamento e o pensamento

    do aprendiz. No coincidentemente, a experincia e a prtica foram integrantes da

    proposta curricular de Geografia a partir da dcada de 1930. Para tanto, o currculo

    poderia dispor de representaes da sociedade, em padres pr-definidos, de forma

    a produzir o "humano socializado" (MOREIRA, 1992, p. 15). O passo seguinte foi

    dado por Ralph W. Tyler (1902-1994) na dcada de 1940 e por John Dewey (1859-

    1952), um pouco antes. De acordo com Moreira (1992), Tyler trabalhou a proposta

    progressista de um currculo tecnicista, e Dewey, com a considerao dos interesses

    e as atividades da criana, tornando-se um importante crtico da educao herdada

    do sculo XIX, amplamente praticada no Brasil at quase a metade do sculo XX a

    pedagogia das lies:

    A escola tradicional est organizada para permitir que se pratiquem certas habilidades mecnicas e certas idias, sem cogitar da prtica de outros traos morais e emocionais desejveis em uma personalidade. Como aprender, com efeito, honestidade, bondade, tolerncia, no regime de lies marcadas para o dia seguinte? S uma situao real de vida, em que se tenha de exercer determinado trao de carter, pode levar sua prtica e, portanto, sua aprendizagem. Da ser necessrio que a escola oferea um meio social vivo, cujas situaes sejam to reais quanto as fora da escola (DEWEY, 1979, p. 57).

    A proposta de Tyler foi amplamente aceita. Basicamente consistia em

    controlar o planejamento do estudo em todos os ngulos, definindo os objetivos

    educacionais atravs de um trplice que considerava os interesses e necessidades

    discentes, o cotidiano extraescolar, as sugestes dos especialistas nos contedos,

    repassando-o pelo crivo filosfico e psicolgico, isto , dos valores e das condies

    de aprendizagem. Tratava-se de uma teoria pragmtica, voltada para implementar a

    viso cultural e ideolgica da ordem social e econmica estabelecida. Sem espao,

    portanto, para a diversidade, embora, por preconizar tantas perspectivas,

  • transparecesse neutralidade. A questo, clarificada na reviso crtica posterior,

    condizia a quais seriam os interesses, os cotidianos, as especialidades, os valores

    elegidos.

    Na concepo dialtica, base das interpretaes crticas do currculo, que se

    seguiram, o Estado articula uma classe social dirigente e uma classe social civil,

    propondo e atingindo objetivos coesos aos interesses de classes, a ser legitimado

    pela articulao de uma ideologia dada, sustentculo da hegemonia que mantm o

    poder em exerccio (GRAMSCI, 1995). Essa compreenso levou s teorias crticas

    que agiram analiticamente nos silenciamentos das abordagens conservadoras sobre

    o currculo. Essas crticas operaram com conceitos como reproduo cultural,

    emancipao e libertao, embasadas na questo da ideologia. Concepes

    como aparelho ideolgico do estado, reproduo da estrutura social e interesses

    da classe capitalista definiram duas linhas de estudo sobre o currculo: uma

    enfatizava os contedos (originando a Pedagogia Crtica dos Contedos) e outra,

    chamada genericamente de "educao popular", trilhou a reflexo sobre as lutas das

    classes trabalhadoras, orientando o currculo a contemplar tanto os contedos

    clssicos quanto os conhecimentos profissionais. Os fundamentos da teoria crtica,

    para o qual igualmente contriburam referenciais da psicanlise, da fenomenologia e

    da hermenutica, permitiram rever as relaes de ensino e aprendizagem a partir

    das conexes entre saber, currculo, ideologia e poder, discernindo o discurso

    escolar como entreposto de problemas expressos na excluso escolar, atravs da

    eleio curricular de determinadas formas de raciocnio que privilegiava alguns

    contedos e silenciava outros.

    Vistos em retrospectiva, de fato, os currculos apresentam vises de mundo

    sectadas em formaes discursivas que expressam determinados valores atuantes

    poca, embora atuem igualmente vozes dissonantes, capazes de perturbar a

    estabilidade e implodir determinados consensos. Por isso mesmo, tais vozes so

    contidas e silenciadas por todos os meios possveis: a interdio dessas vozes, em

    termos da bibliografia didtica, sinaliza a existncia ou no desses materiais e seus

    discursos no mercado educacional. Algumas obras didticas de Geografia ilustram

    esse processo, quando propem uma abordagem ou metodologia no concordante,

    que resultam na no publicao ou na no adoo nas escolas: o caso das Breves

    noes para se estudar com methodo a Geographia do Brasil, de Praxedes Pacheco

  • (1857), que analisarei em outro momento. s vezes, tem aceitao tmida no

    mercado escolar.

    Mais recentemente, o currculo na perspectiva humanista (teorias

    tradicionais), na tecnicista, bem como na perspectiva dos currculos emancipatrios

    das pedagogias crticas foi questionado por teorias ps-crticas. O pensamento ps-

    estruturalista (movimento ao qual a Anlise do Discurso pertence) desenvolveu

    formas de anlise prpria para a crtica s instituies, teorizando sobre um conjunto

    diversificado de objetos e meios, tais como a linguagem, a mdia, as artes, dentre

    outros, de modo que o estudo do currculo questionou a distino entre

    conhecimento clssico e cultura cotidiana. Passa-se a considerar um currculo

    flexvel, sensvel s diferenas culturais. A construo e o desenvolvimento de

    identidades no entreposto de prticas sociais integram a proposta de teorizao e

    elaborao dos currculos, proposta que tanto envolve o multiculturalismo quanto a

    Anlise do Discurso.

    A tradio, por seu lado, perpassa a histria dos currculos. No pretexto de

    transmitir o sentido etimolgico da palavra entregar (no latim, traditio, tradere)

    prticas, conhecimentos, atitudes, valores, normas, a elaborao do currculo

    introduz sutilmente as marcas de uma poca, ao mesmo tempo em que seleciona no

    passado o que condiz e silencia, ou exclui o que for inconveniente aos interesses em

    sustentao.

    Esse breve exame terico e histrico sobre o currculo, a ser aprofundado na

    medida em que for necessrio anlise da tese, introduz o currculo como um

    ncleo motor ao fazer da literatura didtica: contacta os espaos, sujeitos,

    instituies que se cruzam na formulao do discurso didtico e dos seus objetivos

    educacionais.

    importante ressaltar que o perodo em anlise tem deficincia de estudos

    gerais, no sentido epistemolgico, do currculo, cujos estudos sistematizados so

    marcados a partir do sculo XX, como visto. No entanto, o desenvolvimento atual do

    estudo do currculo permite perceber nuances e tendncias integradas s prticas

    antigas do currculo, no que tange constituio e s transformaes de um

    currculo para a Geografia escolar brasileira e para a constituio de sua bibliografia

    didtica.

  • 1.2 Anlise do Discurso: fundamentos terico-metodolgicos da interpretao

    A Anlise do Discurso um campo de estudo interdisciplinar que dialoga a

    Lingustica com cincias de formao social, destacando-se por considerar e

    valorizar, em seu corpo terico, a historicidade inscrita na linguagem e romper a

    noo de transparncia/literalidade desta, demonstrando-a como histrica e

    ideolgica.

    A partir do acervo terico-metodolgico da anlise discursiva, possvel

    pesquisa considerar a linguagem como categoria para investigar o processo de

    produo de sentidos e seu funcionamento histrico-social. Com a Anlise do

    Discurso, a lin